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kantiana, mas procurou sempre uma adaptação à realidade social, como uma
manifestação de evolução do modelo político. Todavia, não obstante, as
numerosas tentativas de adaptação da democracia ao longo da história
humana, o filósofo Jacques Rancière, na sua obra O Ódio à Democracia,
tentou mostrar, precisamente, como uma grande parte do discurso político
actual se posiciona contra a democracia, isto é, de como ao usar toda a sua
retórica e aparelho conceptual que o constitui, o fez contra a própria
democracia, tal como foi originariamente concebida.
Se ele o disse há uma década atrás, as razões que invocou para o fazer
tornaram-se hoje ainda mais claras e a catástrofe que daí resulta está diante de
nós. O que não impede a usurpação da palavra e a sua apropriação, como
modo demagógico de servir a razão económica. O visionário Tocqueville, no
século XIX, encarava-a como o “falso nariz do despotismo mercantil e da sua
concorrência» [ CITATION Toc53 \l 2070 ], aludindo assim à forma como a
ideologia liberal a encarava. Ela reflectiu sempre, e Tocqueville compreendeu-
o, o triunfo do capitalismo, naquilo que o caracteriza essencialmente, como a
livre circulação dos capitais, a glorificação do consumo de massas, etc.
Todavia, aqueles que seriam os princípios essenciais, em particular a questão
da igualdade social, rapidamente passaram para segundo plano. Daí que o
conceito de democracia, tal como olhamos hoje para ele, se tenha esvaziado.
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interessa a ambos; ambos exercem, solitários, a sua profissão, a horas em que
os burgueses se entregam ao sono; até o gesto é o mesmo em ambos.
[CITATION Wal062 \p 81 \l 2070 ].
Au revoir ici, n’importe où. Conscrits du bon vouloir, nous aurons la philosophie
féroce ; ignorants pour la science, roués pour le confort ; la crevaison pour le
monde qui va. C’est la vraie marche. En avant, route ! [ CITATION Rim99 \l 2070 ]
Mais tarde, o velho Marx, hoje tão citado, mas tão fora de moda, haveria
de denunciar esse rosto de Janos que constituiu a base de toda a nossa
economia ao longo dos últimos séculos, preconizando um modelo de revolução
que pudesse acabar com as desigualdades sociais e criar uma sociedade
equitativa.
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esvaziamento da democracia já se pressentisse, a verdade é que o início do
século XXI acelerou a sua desintegração, em virtude de uma série de
circunstâncias políticas e económicas que vieram pôr fim ao estado de graça
de que gozava a democracia europeia, sobretudo. A globalização e a ausência
de regulação (de imposição de leis e de limites) do mercado financeiro, em
nome de uma suposta liberdade democrática, aceleraram essa corrosão dos
poderes democráticos, empurrando os países mais vulneráveis da Europa para
uma situação económica insustentável. Uma suposta «razão económica» dos
mercados, que nunca existiu e que não passa de um mito, tomou conta dos
estados e levou-os à perda da soberania, deixando-os à sua mercê. O único
ponto dessa razão é justamente o programa que lhes subjaz, o do ideário neo-
liberal, que intenta justamente vergar os estados ao capital, para melhor
exercer sobre eles o seu domínio.
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Tudo é regido por leis (validadas por tribunais europeus, internacionais)
que se aplicam aos estados, os quais, nesta escala mundialista, perderam a
sua soberania e se encontram sujeitos aos tribunais europeus e/ou
internacionais. Não faltam casos de embargos que, muitas vezes, reflectem o
carácter arbitrário de algumas leis, enquanto outras acções – que deveriam ser
condenadas internacionalmente – passam impunemente. E este carácter
arbitrário só parece sê-lo para quem se distrai e não vê a «mão oculta» que
move os cordelinhos da acção. Ora, estes «poderes invisíveis» também
contribuem também para a erosão da soberania, já que lhe retiram autonomia
em nome de uma suposta universalidade, facto que contribui para reacender
toda a espécie de nacionalismos, como a forma de contestação do povo face a
leis que não reconhecem como as do seu estado.
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reflexo dessa alteração significativa do paradigma político da democracia. Se a
crise económica serviu de pretexto para a ascensão da hegemonia da razão
neo-liberal e contribuiu para a dissolução dos direitos fundamentais, podemos
dizer que continuamos a falar de democracia e de direitos, mas tal pode não
passar de retórica, de conceitos esvaziados de sentido, se, na prática, tal não
se verifica.
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paradigma do Estado Democrático de Direito e minando também o próprio
sistema de justiça. Instaurou-se, assim, «uma espécie de “vale tudo”
argumentativo e utilitarista, como o diz Casara, no qual os fins afirmados pelos
atores jurídicos – ainda que distantes da realidade – justificam a violação dos
meios estabelecidos na própria Constituição da República, bem como das
formas e das substâncias que eram relevantes no Estado Democrático de
Direito». Abre-se, assim, e desta forma o caminho para a inconstitucionalidade
do poder, dinamitados os últimos obstáculos ao abuso de poderes. Abrem-se
também, «as portas para os “poderes selvagens”», como o diz Casara. E, se
no caso do Brasil, podemos citar os fenómenos como o impeachment de Dilma
Rousseff, se nos virarmos para a Europa, podemos falar no fecho das
fronteiras e na suspensão do Espaço Schengen, ao abrigo das novas leis do
Terrorismo e do Estado de Emergência que foi criado para actuar em
circunstâncias de não-normalidade, permitindo que a vigilância, por exemplo,
extrapole os seus limites. Ou aquilo em que nem é bom pensar, mas que se
sabe e não transpira para a comunicação social: os casos de migrantes e de
refugiados fechados em campos sem quaisquer condições ou espancados nas
fronteiras de países como Sérvia e Bósnia, etc. Estes são aqueles a que
chamo os indesejáveis. Os que não têm lugar ou não conhecem nenhuma
protecção social nem têm acesso aos direitos democráticos, vivendo agora
entre nós. Os que fugiram dos contentores de Calais e andam à deriva pelo
país, em modo de sobrevivência. Os migrantes que trabalham, em regime de
ilegalidade, e que não têm qualquer vínculo ao estado nem esperança de vir a
tê-lo. Já sem falar dos pobres sem qualquer protecção quando, nos países
ditos democráticos (falo dos países do Norte da Europa), a segurança social
prevê a sua protecção, por mínima que seja.
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longo de décadas, que asseguravam os direitos dos cidadãos, enfraquecendo
o poder dos sindicatos e as leis do trabalho.
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expansão) como modo de reacção à exclusão social, que é cada vez maior no
modelo pós-democrático.
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globalização. As revoluções, no passado sempre capitalizaram esse capital,
pondo-o em marcha, numa aplicação do preceito benjaminiano (e marxista) de
fazer justiça aos vencidos da história.
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proporcional ao excesso de poder que o Estado exerce sobre os indesejáveis.
Ela é a sua contrapartida, o único modo de anular esse excesso.
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