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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ANDRÉ SANCHEZ QUEIROZ

Cultura e política no Hip Hop na cidade de São Paulo:


redes, sociabilidades e territórios

Mestrado em Ciências Sociais

São Paulo
2019
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

ANDRÉ SANCHEZ QUEIROZ

Cultura e política no Hip Hop na cidade de São Paulo:


redes, sociabilidades e territórios

Mestrado em Ciências Sociais

Dissertação apresentada à Banca Examinadora


como exigência parcial para obtenção do título
de Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação da Profa. Dra. Silvia Helena Simões
Borelli.

São Paulo
2019
Banca Examinadora

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Com saudades sem fim,

à Mara, minha mãe

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Agradecimentos

Muitas pessoas, indivíduos, sujeitos, coisas fizeram parte desse mestrado. Alguns sabem,
outros menos. Durante este caminho, parece que cada pessoa produz um significado para
reflexão, para o produto da pesquisa e de sua busca. Vou me ater às pessoas que mais interviram,
cada uma à sua maneira.
Agradeço à minha mãe, que, historiadora, tinha muitos livros que me ajudaram em meus
estudos e percursos. Para este momento, vale lembrar de seus relatos sobre a história brasileira
e a ditadura civil-militar, e o que ela foi capaz de produzir na sociedade brasileira. Essas
lembranças me deixam até hoje atento. Mesmo sem saber, seu apoio à minha curva para ciências
sociais foi o que talvez me trouxe até aqui.
Ao meu pai, Fábio, que me apoiou e depositou confiança nos passos sob terrenos não
desbravados. Ao meu irmão, Lucas, que na diferença também conseguimos nos ver iguais.
Apesar de tudo, nós três seguimos unidos.
À toda minha – grande – família. Em especial, tia Maga, tia querida, tio Cássio, nas
risadas, Vovó Anita, com sua proteção, e Henrique, na irmandade; me acolheram com carinho
e deram uma segunda morada.
À Silvinha, que leu meu projeto, mandado no seu e-mail por um desconhecido que
desejava pesquisar Hip Hop, o que proporcionou essa experiência. Agradeço por também não
pensar duas vezes nos momentos de “puxar orelha”, por me dar algumas luzes sobre como
produzir conhecimento e por me apoiar quando foi preciso.
À todos e todas queridas e queridos do Jovens Urbanos: à Bi, Lili, Mateus, Rosana, Thi,
Pri, Fran, Camila, Anamaria e Marco Antonio. Entre cervejas, reuniões e viagens, as pesquisas,
as confidências, ideias e trocas de diversas formas foram essenciais para o desenvolvimento
desta dissertação.
À Ari e Ma, as coorientadoras informais e amigas que este mestrado me deu. Agradeço
pelas escutas, sinceridades, guias, parcerias e por se dedicarem à discussão e à leitura desta
dissertação.
Aos amigos e às amigas que se encontram no meu triângulo de circulação e travessias
entre interior e capital: Rio Claro, Campinas e São Paulo. Ao Luiz, Digo, Gu, Salvador e
Murylo, os amigos que guardo com muito carinho. À família Miranda, no Hip Hop ou em outras

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situações: à Cida, Robson, Ma, Ruddy, Zé Luiz, Amabile e Lilian. À família Monaco/ Marcos/
Ferreira, pelo apoio, risadas e aconchego.
À Mayara, minha amiga, confidente e companheira, que aceita estar junto comigo nos
melhores e piores momentos dessa trajetória. Para continuar o que escrevemos um para o outro,
meu amor permanece seu.
À Ju, Joca, Chris, Rodolfo, Marquinho e Ber, pertos e distantes, sempre uma saudade que
fica. Aos residentes, moradores e frequentadores do 62A e (ex)membros da Ensaio: Ga, Pedrão,
Arten, Gazão, Karel e Brunão.
Ao Tomás, Peña, Black, Fernandinho, Caio, Jamar, Gabi, Carminha, Regina e Marcola,
nas experiências novas e nas renovadas.
À Edneia, que escolhe, já há muito tempo, permanecer junto conosco e cuidar de mim,
do meu irmão e do meu pai.
À Eva, por contribuir no cuidado de nossa casa paulistana.
Às membras da Banca, Rita e Simone, que contribuíram imensamente na Banca de
Qualificação. À Amaílton e Rose por aceitarem formar a Banca.
Aos(às) professores(as) que tive contato e que influenciaram minha formação como
pesquisador.
À Rosangela, pela revisão inicial das primeiras partes, e à Vera, pela paciência e atenção
na revisão de todo o texto.
À todos os(as) funcionários(as) da PUC-SP, que mantém a universidade em
funcionamento, mesmo que nos bastidores.
Agradeço ao CNPq, que possibilitou a dedicação integral a esta pesquisa por meio da
concessão de bolsas de estudos com o número de processo 134260/2017-1.
Aos membros, frequentadores(as), participantes e/ ou apoiadores(as) do Fórum Hip Hop
MSP que estabeleci contato de alguma forma no decorrer desta pesquisa. Principalmente ao
Rapper Pirata, Nando, Gile, Sonora, Pec Jay, Bia, Nica, Gus e Angélica, que dividiram seu
tempo para me concederem suas narrativas, ou para trocar ideia e tirar dúvidas, ou nas trocas
mais formais. Com essas trocas, me permitiram aprofundar meus conhecimentos sobre Hip Hop
e construíram esta pesquisa de forma conjunta.

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“Tempo lento,
espaço rápido,
quanto mais penso,
menos capto.
Se não pego isso
que me passa no íntimo,
Importa muito?
Rapto o ritmo.
Espaçotempo ávido,
lento espaçodentro,
quando me aproximo,
simplesmente me desfaço,
apenas o mínimo
em matéria de máximo”.

(Paulo Leminski)

“Trata-se de um ser de uma afetividade imensa e instável, que sorri, ri, chora, um ser ansioso
e angustiado, um ser gozador, embriagado, extático, violento, furioso, amante, um ser
invadido pelo imaginário, um ser que conhece a morte e não pode acreditar nela, um ser que
segrega o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritos e pelos deuses, um ser que se
alimenta de ilusões e de quimeras, um ser subjetivo cujas relações com o mundo objetivo são
sempre incertas, um ser submetido ao erro, ao devaneio, um híbrico que produz a desordem.
E como chamamos loucura à conjunção da ilusão, do descomedimento, da instabilidade, da
incerteza entre real e imaginário, da confusão entre subjetivo e objetivo, do erro, da
desordem, somos obrigados a ver o Homo sapiens como Homo demens.”

(Edgar Morin – O Enigma do Homem)

“Fight The Power!”

(Public Enemy)

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Resumo

O Hip Hop – uma forma cultural urbana, negra e periférica, consolidada nas periferias das
grandes cidades brasileiras e organizada em coletivos, redes, “posses”, grupos de rap,
movimentos sociais e demais organizações da sociedade civil – atua por meio de práticas de
resistência e, ao mesmo tempo, de negociação nas diferentes formas que seus sujeitos usam os
territórios urbanos. Esta pesquisa investigou a rede de produção cultural Fórum Hip Hop MSP
(Município de São Paulo), que se formou por uma dinâmica de relações com outros coletivos
nas diferentes regiões da cidade de São Paulo. Esse percurso sustentou-se nas seguintes
perguntas: quem são os sujeitos que atuam nessa rede? Onde se situam suas práticas e ações
político-culturais nas fronteiras entre institucionalidade e autonomia? Em que situações e de
que forma os sujeitos resistem e negociam com o Estado e com outras organizações? Como o
Fórum se relaciona com as formas culturais residuais, dominantes e emergentes de culturas
negras e periféricas? Como incorporam, ao cotidiano, os significados e valores do Hip Hop e
as heranças dos movimentos sociais? Quais são as contradições nas apropriações e nos usos do
território? Como resistem ao racismo e ao genocídio da juventude negra, pobre e periférica? A
metodologia privilegiou técnicas de pesquisa qualitativa, como observação etnográfica,
entrevista em profundidade e acompanhamento de redes sociais, e priorizou as narrativas dos
sujeitos para compreender as práticas do Fórum Hip Hop que articulam cultura e política. Esta
pesquisa baseou-se nos estudos culturais britânicos, em autores como Raymond Williams e
Stuart Hall, e suas ressonâncias latino-americanas, em autores como Jesús Martín-Barbero. A
hegemonia do Hip Hop paulistano nas políticas públicas é representada, entre outros coletivos/
redes/ grupos, pelo Fórum. Mas a rede procura produzir suas ações político-culturais nas
fronteiras entre a institucionalização e as buscas por autonomia. Por meio de suas ações, negocia
com os territórios institucionalizados para resistir ao racismo e ao genocídio.

Palavras-chave: Fórum Hip Hop MSP, cultura, política, redes, sociabilidade, território usado,
vida cotidiana.

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Resumen

El Hip Hop – una forma cultural urbana, negra y periférica, consolidada en las periferias de las
grandes ciudades brasileras y organizada en colectivos, redes, “posses”, grupos de rap,
movimientos sociales y demás organizaciones de la sociedad civil- actúa por medio de prácticas
de resistencia y, al mismo tiempo, de negociación a través de las diferentes formas en las que
sus sujetos usan los territorios urbanos. Esta investigación indagó acerca de la red de producción
cultural Fórum Hip Hop MSP (Municipio de São Paulo), que se formó por una dinámica de
relaciones con otros colectivos en las diferentes regiones de la ciudad de São Paulo. Este
proceso se sustentó en las siguientes preguntas: ¿quiénes son los sujetos que actúan en esa red?
¿Dónde se sitúan sus prácticas y acciones político-culturales en las fronteras entre
institucionalidad y autonomía? ¿En qué situaciones y de qué forma los sujetos resisten y
negocian con el Estado y con otras organizaciones? ¿Cómo Fórum se relaciona con las formas
culturales residuales, dominantes y emergentes de culturas negras y periféricas? ¿Cómo
incorporan en lo cotidiano los significados y valores del Hip Hop y las herencias de los
movimientos sociales? ¿Cuáles son las contradicciones en las apropiaciones y en los usos del
territorio? ¿Cómo resisten al racismo y al genocidio de la juventud negra, pobre y periférica?
La metodología privilegió técnicas de investigación cualitativa, como la observación
etnográfica, la entrevista en profundidad y el seguimiento de redes sociales. Además, priorizó
las narrativas de los sujetos para comprender las prácticas de Fórum Hip Hop que relacionan
cultura y política. Esta investigación se basó en los estudios culturales británicos, en autores
como Raymond Williams y Stuart Hall, y sus resonancias latinoamericanas en autores como
Jesús Martín Barbero. La hegemonía del Hip Hop de la ciudad de São Paulo en las políticas
públicas es representada, entre otros colectivos/ redes/ grupos, por Fórum. Pero la red busca
producir sus acciones político-culturales en las fronteras entre la institucionalización y la
búsqueda por la autonomía. Por medio de sus acciones, negocia con los territorios
institucionalizados para resistir al racismo y al genocidio.

Palabras clave: Fórum Hip Hop MSP, cultura, política, redes, sociabilidad, territorio usado,
vida cotidiana.

5
Abstract

The Hip Hop – an urban, black and peripheric cultural form, consolidated in the periphery of
the major Brazilian cities and organized by collectives, networks, “posses”, rap groups, social
movements and others civil society organizations – acts through resistance and, at the same
time, negotiation practices in the different ways that its subjects uses the urban territories. This
research investigated the network of cultural production Fórum Hip Hop MSP (Municipality of
São Paulo), that was formed through a dynamic of relations with other collectives in different
regions of the city of São Paulo. This path was based on the following questions: who are the
subjects that act in this network? Where its political-cultural actions and practices are situated
in the frontier between institucionality and autonomy? In which situations and in what way the
subjects resist and negotiate with the State and other organizations? How the Fórum relates with
residual, dominants and emergency cultural forms of black and peripheric cultures? How they
incorporate, in the everyday life, the meanings and values of Hip Hop and social movements
inheritances? What are the contradictions in the appropriations and uses of the territory? How
they resist racism and genocide of the black, poor and peripheric youth population? The
methodology focused on qualitative research techniques, such as ethnographic observation, in-
depth interview and social media monitoring, and prioritized the subjects narratives to
comprehend the practices of the Fórum Hip Hop that articulate culture and politics. This
research was based on the Britain cultural studies, on authors such as Raymond Williams and
Stuart Hall, and its resonance in Latin America, on authors such as Jesús Martín-Barbero. The
hegemony in public policy of Hip Hop from São Paulo is represented, among other collectives/
networks/ groups, by the Fórum. But the network seeks to produce its political-cultural actions
in the frontier between the institutionalization and the search for autonomy. Through its actions,
negotiates with the institutionalized territories to resist racism and genocide.

Key-words: Fórum Hip Hop MSP, culture, politics, networks, sociability, used territory,
everyday life.

6
Sumário

Introdução 09
Caminhos da pesquisa 09
Trajeto teórico-metodológico 20
Estrutura do texto: descrição dos capítulos 30

Capítulo 1 - O Hip Hop de perto 33


1.1. Uma rede de cultura Hip Hop: o Fórum Hip Hop Municipal de São Paulo 33
1.2. Cultura e política na vida cotidiana 42
1.3. Instabilidade na relação com o Estado 54
1.3.1. Conflito nas políticas públicas: o Mês e o Núcleo de Hip Hop 57
1.3.2. Institucionalização e autonomia 67

Capítulo 2. Culturas e redes de sociabilidade 78


2.1. Elementos do Hip Hop no Fórum: resíduos, dominâncias e emergências 82
2.1.1. DJing 83
2.1.2. Breaking 89
2.1.3. Graffiting 95
2.1.4. MCing 101
2.2. Articulações e heranças nas formas de atuação do Fórum 107
2.2.1. Diálogos com movimentos sociais e organizações da sociedade civil 110
2.2.2. Possiblidades de agrupamento e organização no Hip Hop de São Paulo: “posses”,
coletivos e redes 120

Capítulo 3. Territórios: práticas de resistência e negociação 132


3.1. Ocupação dos territórios: ações político-culturais em rede 134
3.1.1. Hip Hop Politicamente, sociabilidade e uso dos espaços públicos 135
3.1.2. C.T Sitiada, experiência de união dos elementos e violência policial 141
3.1.3. Prêmio Sabotage e políticas públicas 146

7
3.2. Produção de conhecimento sobre as resistências 150
3.2.1. Prática de (des)centramento: os centros e as periferias do Fórum 154
3.2.2. À contrapelo do racismo estrutural 163

Considerações finais 178

Referências bibliográficas 184

Anexo 1 – Roteiro semiestruturado de entrevista em profundidade 192

8
Introdução

Caminhos da pesquisa

Esta pesquisa, em seu início, foi provocada por perguntas que emergiram nas idas e vindas
de uma pesquisa de campo iniciada em 2016, em Rio Claro, interior do estado de São Paulo,
para a elaboração do projeto de seleção do mestrado na PUC-SP. Na redescoberta de São Paulo,
cidade em que nasci e para a qual voltei esporadicamente desde que mudei para Rio Claro,
visitei lugares distantes que antes não conhecia e adaptei-me aos ritmos, barulhos e ao tempo
da metrópole. Com essa mudança e motivado pelas perguntas anteriores, fui pesquisar a cena
do Hip Hop de São Paulo.
Ao escrever sobre suas experiências em campo, como é possível ao(à) antropólogo(a) se
desvincular e se separar daquilo que constrói? Como adotar uma posição neutra, como se não
existisse um sujeito por trás da escrita ou de qualquer criação formal? As experiências da pessoa
que escreve e que tenta comunicar o desenvolvimento de um trabalho intelectual são
inseparáveis dos meios que utiliza para a realização da escrita. As experiências, os meios e o
sujeito que os utiliza estão imbricados um no outro: sem a experiência do sujeito, não há
pesquisa transformada em texto; e o texto, como resultado da pesquisa, é também o resultado
da experiência. Os caminhos e conclusões – sempre abertos – dependem dessas relações. O
sujeito da escrita, ao contar experiências pessoais relacionadas a uma pesquisa, não o faz
simplesmente como testemunho individual: dialoga com autores, mestres e mestras, colegas,
amigos e amigas, sujeitos que participaram da investigação e, sobretudo, consigo mesmo.
Enquanto escreve, não o faz sozinho; enquanto fala de si e dos seus caminhos, pessoas, coisas,
acontecimentos as palavras ganham textualidade. E o autor constitui-se, ao mesmo tempo, de
forma coletiva.
Vou escrever os próprios caminhos que me levaram a estudar Hip Hop1. O contato com
o Hip Hop ocorreu, em primeiro lugar, por meio de entrevistas realizadas com pessoas próximas

1
Retomo aqui os elementos que caracterizam o Hip Hop: o rap (ritmo e poesia) - música performatizada pelo
rapper e pelo MC (mestre de cerimônias); o/ a DJ (disk jockey) – sujeito responsável pela produção musical que
dá base para o rap; o breaking, praticado pelo b-boy ou pela b-girl – elemento da dança que se desenvolveu em
variados estilos; e o graffiti, as artes plásticas, geralmente realizados em muros e em lugares visíveis da cidade.
Esses elementos serão tratados mais a diante no capítulo dois. Vale ressaltar que há outras formas de abordar os
elementos do Hip Hop. Apesar da controvérsia existente entre uma ou outra abordagem, essa é, em linhas gerais,
a que é tratada como legítima. A inclusão do quinto elemento, ou seja, a produção de conhecimento não só sobre
o Hip Hop mas também sobre as questões que o rodeiam, também gera controvérsia.

9
a mim. Os irmãos da Edneia Miranda, que trabalha na casa de meus pais em Rio Claro
praticamente desde que mudei para o interior, são “do Hip Hop” desde os anos 1980 e faziam
atividades culturais com o apoio da prefeitura da cidade. Em julho de 2002, aconteceu a
primeira “Batalha da Amizade”, campeonato de breaking que recebia tanto auxílios de doações
como apoio – majoritário – da prefeitura, principalmente após 2011. O governo do PMDB, em
coligação com a vice-prefeita do PT, eleito em 2008 e reeleito em 2012, fornecia o
financiamento, o Centro Cultural Roberto Palmari e um cargo comissionado de “assessoria de
juventude do Hip Hop” para um dos irmãos da Edneia, o b-boy Zé Luiz, conhecido como Índio.
Ele e seus irmãos e irmãs – a família Miranda é composta por cinco irmãos e quatro irmãs,
sendo que três irmãos são diretamente vinculados ao movimento Hip Hop – possuem
ascendência indígena, e a tatuagem de um indígena com cocar no pescoço de Índio sugere a
identificação com o apelido.
Em 2016, Índio e seu irmão, o poeta Marcelo Miranda, concederam duas entrevistas que
foram publicadas na extinta revista Ensaio2, projeto que uniu alguns amigos que se conheceram
na faculdade e que serviu como meio para expressar as múltiplas inquietudes políticas, sociais,
culturais e artísticas de jovens brancos, de classe média, homo e heterossexuais e de distintas
cidades do interior de São Paulo, como Campinas, Mogi Mirim, Espírito Santo do Pinhal e Rio
Claro (representada por mim), e da capital.
Minha relação com Índio e Marcelo cresceu e, assim, concordaram em participar da
construção da pesquisa do meu mestrado, enquanto eu acompanhava e participava das
atividades que realizavam na cidade. Com as eleições de 2016, a mudança de governo para um
prefeito eleito pelo DEM (partido Democratas), no entanto, foi desastrosa para o Hip Hop de
Rio Claro: os grupos, coletivos e principais artistas desarticularam-se e cada um buscou salvar
seus meios de sobrevivência. O governo colocou em vigência o discurso da campanha com
características neoliberais: “choque de gestão”, que inclui corte de custos da prefeitura,
diminuição ou junção de secretarias e privatização dos serviços públicos. Novos atores

2
Na seção “Sobre” da página do Facebook da revista, escolhemos descrever o projeto da seguinte forma: “A
Ensaio é uma revista on-line que não terá formato, periodicidade ou temáticas definidas, uma página em branco a
ser preenchida”. A revista estava aberta para receber textos, por e-mail, de quem se sentisse identificado com o
que apresentávamos. Embora a periodicidade não estivesse prevista, aos domingos, séries de textos com temáticas
diversas ou entrevistas com artistas das mais diferentes linguagens eram publicadas. A entrevista era acompanhada
por impressões sobre o espaço em que era realizada, sobre o ambiente mais informal, entre outros, mas o
protagonismo do entrevistado era mantido. A página do Facebook ainda pode ser encontrada, mas sem a
disponibilidade dos textos, já que eram publicados em plataforma on-line. Disponível em:
<https://www.facebook.com/revistaensaiosp/>. Acesso em: 05 dez. 2018.

10
ingressaram na cena política e cultural da cidade: espaço ampliado para partidos conservadores
e novos sujeitos políticos e formas de fazer política; alterações na composição e nas políticas
de atuação no Conselho de Cultura e na Secretaria de Cultura (que permitiram, por exemplo,
que pessoas sem qualquer inserção ou participação na história e nas “tradições” do movimento
Hip Hop fossem alçados à condição de MC e de participantes nos processos de decisão do
Conselho, especialmente sobre Hip Hop); extinção de funções públicas relacionadas ao Hip
Hop, antes destinadas aos jovens da cidade, tais como assessoria de juventude, assessoria por
igualdades racial e de gênero e assessoria do Hip Hop.
Além dos impactos externos causados ao movimento pela atuação deletéria da política
implantada pela nova gestão na prefeitura da cidade, fatores internos ao próprio movimento
também contribuíram para sua fragilização: destaca-se, por exemplo, a quebra de
representatividade dos movimentos negros, que pode ser percebida nos fatos que envolveram
Kizzy, parceira de trabalho de Índio e que foi referência como assessora de igualdade racial e
de gênero. Com o fim do governo, Kizzy entrou para a política mais institucionalizada,
primeiro, como candidata vereadora e, depois, como membro de uma chapa que concorreu ao
sindicato dos bancários. Kizzy, embora não tenha sido eleita para nenhum desses cargos,
continua sua participação como ativista.
Além disso, a descaracterização do movimento Hip Hop de Rio Claro acompanhou a
extinção da Batalha da Amizade: artistas conhecidos da cena, como b-boy Arthur King, DJ
Kamarão e b-boy Sonic perderam a participação que tinham na prefeitura como oficineiros;
Marcelo mudou de cidade e foi para Ribeirão Preto, onde mora com o irmão mais novo e
também b-boy Ruddy; e Índio “saiu” do Hip Hop para trabalhar com seu pai. De qualquer
forma, Índio, Marcelo, Ruddy e eu criamos e mantivemos laços que se estendem até hoje.
Ainda assim, vale uma ressalva: como em muitas cidades brasileiras, os graffiti e pixos
contribuíram para moldar a paisagem estética da cidade e permanecem, desde a década de 1980,
espalhados pelos muros de Rio Claro. Além do graffiti, a presença dos demais elementos do
Hip Hop durante esses anos contribuiu para o uso dessa cultura como proteção social de
crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade, um papel já histórico do Hip Hop nas
periferias. Esses foram alguns dos legados mais visíveis do Hip Hop de Rio Claro que os
governos não conseguem retirar.
As culturas inseridas em um movimento complexo que transitam entre resistência e
negociação encontram maneiras de se mostrar novamente sob outras roupagens e outros sujeitos

11
envolvidos. Recentemente, atividades culturais diferentes que integram o Hip Hop ou são
específicas de Hip Hop, de caráter mais ou menos autônomos, começaram a aparecer. O
lançamento de editais por parte da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Rio Claro para
circulação de eventos, realização de oficinas e formação individual de artistas, de qualquer
modalidade (fotografia, cinema, circo, teatro, performances de tecido acrobático, Hip Hop,
cultura negra3, etc.) foi importante para potencializar a cena cultural. Os grupos, coletivos e
sujeitos que apareceram mostraram, no entanto, uma cena que, na verdade, eu desconhecia. Os
editais significa(ra)m mais um elemento de reativação do que de criação de grupos e coletivos.
Um projeto realizado por Índio e por mim, em 2018, para a Batalha da Amizade foi
aprovado no edital de circulação de eventos. Apesar dos conflitos existentes entre os agentes
culturais da cidade, os contatos dos irmãos Miranda com diversos(as) hiphoppers de muitos
estados brasileiros permitiu um amplo envolvimento com o projeto. Conseguimos verba para a
realização de um evento que articulasse os quatro elementos do Hip Hop, por meio de
campeonatos de MC e breaking e com oficinas de dança e graffiti, e uma roda de conversa
sobre a relação desse movimento cultural com a expressão poética, tanto escrita quanto
performática.
Assim que ingressei no mestrado e tive minha primeira reunião com a Prof.ª Dr.ª Silvia
Borelli (a Silvinha), minha orientadora, decidimos alterar o local da pesquisa para São Paulo.
A pesquisa do grupo Jovens Urbanos4, liderado por Silvinha, era desenvolvida por meio do
contato de coletivos juvenis da cidade de São Paulo, e Hip Hop era uma das modalidades
trabalhadas. Em um evento que ocorreu na PUC-SP sobre genocídio da juventude pobre, preta
e periférica, do qual participou o movimento “Mães em Luto da Zona Leste”, conheci o rapper
Pirata, que estava representando o Fórum Hip Hop MSP (Município de São Paulo). Em um bar
perto da PUC, Pirata me falou sobre o Fórum e conversamos sobre outros temas, como os

3
Reconheço que existiram diferentes formas para indicar as diferenças e desigualdades de pessoas negras
(Azevedo; Silva, 1999, p. 68); negro foi uma designação criada pela colonização, a partir do uso forçado de povos
africanos para serem usados como escravos(as) nas colônias da América e como classificação pseudocientífica
(essa classificação é aprofundada no capítulo 3). Esta designação, desde então, pode possuir um significado racista.
A resistência do povo negro, já no começo do século XX, procurou alterar o estigma presente no termo “negro”
para afirmação da “negritude”, ou seja, a afirmação de sua condição de negro(a) em busca de igualdade. Para esta
dissertação, portanto, uso “negro” nesse último sentido, como “cultura negra”, “negritude”, “movimento negro”,
“comunidade negra”. Porém, reconheço que pessoas de dentro do Hip Hop usam o termo “preto”, como “povo
preto” e até “genocídio do povo preto, pobre e periférico”.
4
“Jovens urbanos: políticas públicas, ações culturais, políticas e comunicacionais em São Paulo”, com apoio
PIPEQ-CNPq (2016-2017-2018); e vinculado ao GT CLACSO “Juventudes, Infancias: Prácticas Políticas y
Culturales, Memorias y Desigualdades en el Escenario Contemporáneo” e ao GP/CNPq “Imagens, metrópoles e
culturas juvenis”. Daqui para frente, denominada simplesmente Jovens Urbanos....

12
protestos contra o racismo existente nos Estados Unidos, o novo CD do Jay-Z, os Racionais, a
indústria cultural e as políticas públicas. No deslocamento da pesquisa para São Paulo, uma
pergunta em especial, que possuía ressonância com as problemáticas pensados pelo Jovens
Urbanos, se manteve: onde estão as práticas/ ações que podem resistir a ordem cultural e política
vigente?
Para mim, como para muitos jovens brancos de classe média no Brasil, nascidos no
começo da década de 1990 e até um pouco antes, o primeiro contato com o Hip Hop aconteceu
com o grupo Racionais MC’s. O fenômeno que ocorreu comigo é o mesmo que ocorre, em
formas bem distintas, com outras juventudes; mas o contato com as músicas é sempre intenso.
Sem compreender que gênero musical era aquele e sem entender as letras contidas nas músicas,
o rap entrava nas casas de classe média mais por sua forma que seu significado: mesmo sem
ser levado a sério e com amplas discriminações e segregações, o rap era visto como “da
periferia”, e isso dava um caráter cool à sua escuta. Esses jovens, frequentadores de escolas
particulares, compartilhavam essas músicas que conheciam em contato “com um amigo que é
da periferia”, ou, em alguns casos, “com um moleque da minha escola, que veio de escola
pública”.
Mesmo uma música codificada, de um modo ou de outro, o rap chegava aos nossos
ouvidos. As participações de b-boys em novelas da Rede Globo de Televisão e no Programa do
Gugu também deixaram a cultura mais visível. Os graffiti, como mencionado, espalhavam-se
pelas cidades: aos poucos, o Hip Hop disseminou-se pelos meios – TV, revistas especializadas,
cinema, rádio, etc. –, principalmente com o boom dos anos 1990. A disseminação se deu
também porque os meios passaram a compreender que o Hip Hop seria uma mediação legítima
que os(as) jovens faziam sobre a cidade e sobre as questões que envolviam suas vidas
cotidianas, como a violência, o racismo, as dificuldades e privilégios econômicos, entre outros.
Dessa expansão, o Racionais MC’s surgiu como principal grupo de disseminação do rap
e de representação da vida cotidiana na periferia. O que era ser homem negro na periferia de
São Paulo nos anos 1980 e 1990? O que é presenciar assassinatos sumários, cometidos tanto
pelo crime como pela PM, além de linchamentos, “caguetagem” e “zé-povinhagem”5? O que é
conviver com a pobreza, com a falta de perspectiva e com sonhos perdidos? O que é estar entre
o crime, o trabalho exploratório – ou a falta dele –, a prisão e o rap? Em suma, o que é ser

5
O caguete é o X-9, o que denuncia os outros; zé-povinho é o morador da periferia que inveja os seus iguais, que
supostamente são vistos como “melhores”. O zé-povinho expressa essa inveja no desejo de cuidar da vida alheia
e espalhar fofocas. Diz-se que este último foi cunhado por Carolina Maria de Jesus (1983).

13
jovem negro que “contraria as estatísticas”?6 Essas questões ficavam um pouco mais claras para
mim à medida que minha formação acadêmica também se desenvolvia. A mesma música
causou impactos distintos de acordo com a passagem do tempo. Músicas como “Estilo
cachorro”, “Vida loka” (partes I e II), “Tô ouvindo alguém me chamar”, “Negro drama” e
“Capítulo 4, Versículo 3” passaram a ser, de certa forma, a tradução desse mundo que eu não
compreendia. Embora ainda bem longe da minha existência, suscitava questionamentos tais
como as diferenças de classe, raça e geografia social, os principais marcadores trabalhados pelo
rap dos anos 1990.
Ainda não conhecia as músicas clássicas do disco de 1993 (Raio-X do Brasil), que
inspirou e despertou as consciências de tantos jovens negros das periferias do Brasil. No
decorrer da pesquisa e no contato com outras pesquisas sobre Hip Hop, os sentidos dessas
músicas, e da cultura em si, ficaram mais claros. No mesmo sentido, refletia sobre como os
pesquisadores se colocam frente ao que estudam – reflexão que é cara à Antropologia –, com
uma revisão crítica de suas origens e significados, revisão essa que deve passar também pelo
seu posicionamento como pesquisador.
Certeau (2014) faz uma provocação ética em relação à posição de poder do pesquisador:

Essa diferença tem, aliás, um revelador no interior do próprio estudo: a ruptura


ou o corte entre o tempo das solidariedades (o da docilidade e da gratidão do
pesquisador para com seus anfitriões) e o tempo da redação que põe à mostra
as alianças institucionais (científicas, sociais) e o lucro (intelectual,
profissional, financeiro etc.) que tem objetivamente nessa hospitalidade seu
meio. Os Bororo vão descendo lentamente para a morte coletiva, enquanto
Lévi-Strauss veste o fardão da Academia. Mesmo que ele não se console com
essa injustiça, isto não muda em nada o fato. E esta é também a nossa própria
história, não apenas a dele (Certeau, 2014, p. 81-2).

Impotências, violências, afetos, diferenças e desigualdades grandes demais para serem


desprezadas. O que fazer então? O mesmo Certeau, de novo colabora:

Com relação ao sistema econômico, cujas regras e hierarquias se repetem,


como sempre, nas instituições científicas, pode-se usar a sucata. No terreno da
pesquisa científica (que define a ordem atual do saber), com suas máquinas e
graças a seus resíduos, pode-se desviar o tempo devido à instituição; fabricar

6
No rap “Capítulo 4, Versículo 3”, do CD “Sobrevivendo no Inferno”, Mano Brown diz que “contraria a
estatística”. O rapper canta que prefere seguir outro caminho, negando violentamente o que lhe foi sempre dito
como o ideal de vida: “Mas não, permaneço vivo, prossigo a mística/ Vinte e sete anos contrariando a estatística/
Seu comercial de TV não me engana/ Eu não preciso de status nem fama/ Seu carro e sua grana já não me seduz/
E nem a sua puta de olhos azuis” (Racionais MC’s, 1997).

14
os objetos textuais que significam uma arte e solidariedades; jogar esse jogo
do intercâmbio gratuito, mesmo que castigado pelos patrões e pelos colegas,
quando não se limitam a “fechar os olhos” [...]; subverter assim a lei que, na
fábrica científica, coloca o trabalho a serviço da máquina e, na mesma lógica,
aniquila progressivamente a exigência de criar e a “obrigação de dar”
(Certeau, 2014, p. 85).

A pretensão é grande demais para cumprir, na prática, o que foi citado acima. A citação
não significa que o texto proposto demonstra um caráter artístico e que está plenamente de
acordo com uma ética específica, mas configura, ao menos, uma tentativa de um pesquisador
em constante formação de criar um texto em que essas questões sejam problematizadas.
O contato com outros colegas da PUC-SP mostrava-me o quanto eu não entendia minha
escolha de estudar o Hip Hop ou de estudar com grupos e sujeitos específicos. Algumas vezes
ouvi a pergunta: você canta rap? Dança? É DJ? A resposta era sempre negativa. Ser adepto de
uma modalidade cultural não era motivo suficiente para pesquisá-la. Será preciso fazer parte de
algo que se queira analisar a fundo ou com entusiasmo? O diálogo com sujeitos que também
são produtores de conhecimento, de reconhecimento mútuo pode ser um ato político em uma
sociedade que tenta separá-los: “um branco e um preto unido, respostas que cala o ridículo”
(Sabotage, 2000).
O rap é um elemento do Hip Hop com forte potência para comunicação. O MC fala ora
diretamente com o ouvinte, tenta convencê-lo de algo ou enfrentá-lo, ora indiretamente com os
manos da quebrada de várias localidades do país. O rapper GOG7, talvez o principal nome da
cena do Hip Hop do Distrito Federal, em discussão sobre Hip Hop e mercado, relatou 8 que “o
Brown [rapper do Racionais] falava comigo mesmo distante. Ele falava assim: ‘Para os mano
da baixada fluminense à Ceilândia/ Eu sei, as ruas não são como a Disneylândia’9. Nós
estávamos juntos”. Na fala direta com possíveis interlocutores brancos e de classe média, Mano
Brown procurou “tomar” os filhos dos homens brancos e poderosos para eles sentirem o que é
ser negro em São Paulo. Nas palavras exatas, sentir o “negro drama”:

[...]
Inacreditável, mas seu filho me imita,
No meio de vocês,
Ele é o mais esperto,
Ginga e fala gíria,

7
Nome artístico de Genival Oliveira Gonçalves.
8
“Hip Hop na mesa”. Centro de Formação e Pesquisa do SESC São Paulo. 11 Out. de 2017.
9
“Capítulo 4, versículo 3”, Racionais MC’s (1997).

15
Gíria não dialeto,

Esse não é mais seu,


Hó [assovio],
Subiu,
Entrei pelo seu rádio,
Tomei, cê nem viu,
Nós é isso, ou aquilo,

O que,
Cê não dizia,
Seu filho quer ser preto,
Rá,
Que ironia,

Cola o pôster do Tupac ai,


Que tal,
Que se diz,
Sente o negro drama,
Vai,
Tenta ser feliz [...] (Racionais MC’s, 2002).

Não quis necessariamente “ser negro”, pois a questão não passava por aí. Foi necessário
reconhecer-me como sujeito racializado. Mas permaneceu uma outra questão: o que é o “negro
drama” cantado pelo rap? Mano Brown desafia a branquitude ao descobrir, por meio do rap,
uma realidade distante da sua. O rapper chama para a conscientização desse drama. Quando a
tiver, “tenta ser feliz”. A branquitude, que não passa pelos mesmos problemas, só é feliz em um
país como o Brasil, porque o “negro” é infeliz. Como essa desigualdade existe? Não vivemos
em uma democracia racial? Entre experiências, encontros e consumos diversos de e com o Hip
Hop, procurei pensar sobre essas questões ligadas ao Hip Hop, movimento cultural que possui
presença massiva na sociedade brasileira, mas que ainda se constitui como potência entre os
jovens moradores em bairros periféricos das grandes cidades brasileiras.
Potência que surge no desenrolar histórico da modernidade, mas em seu sentido inverso:
surge contra os valores preconizados por ela, como os valores referentes às formas de vida tidas
como “comuns”, “normais”, ou “ideais” – ser homem, branco, heterossexual e classe média –
e todos os valores, significados, códigos e estéticas compartilhados. Suas influências, muitas
vezes dotadas de violência física e simbólica, espalham-se por todos os cantos do mundo com
o fenômeno da globalização e assumem novas formas e conteúdos na reterritorialização nos
países ditos subdesenvolvidos. O Hip Hop, por outro lado, procura não estar somente contra,

16
mas no diálogo, como exemplificado nos chamados de Mano Brown para a comunicação com
o ser que o oprime para que este “saiba a real”.
Existem fronteiras físicas e simbólicas, criadas historicamente, que separam os corpos e
colocam-nos em estruturas valorativas de poder. A existência dessas fronteiras tende a provocar
o encurtamento das possibilidades de contato, logo da criação de novas subjetividades políticas.
Embora constatemos que essa exclusão custa a vida de milhões de outros, submetidos a uma
condição desumana, ainda nos constituímos, enquanto sujeitos, como incapazes de enfrentar
essa dura realidade. Mas o reconhecimento dessas contradições não é o bastante: assumir uma
posição social privilegiada passa pelo uso crítico dos espaços acadêmicos, que envolve a
pesquisa e a escrita, para questionar o poder e os efeitos de seu exercício.
Por outro lado, questiona-se: o que é o Hip Hop, senão uma nova forma cultural de narrar
as histórias desses povos? A população negra se define somente pelas exclusões, os racismos e
as suas tentativas de desumanização? Essas histórias não atravessam somente as mazelas do
capitalismo e da modernidade. Embora as vidas desses sujeitos sejam atravessadas pela criação
de identidades e pelas estruturas hierárquicas de poder e que geram o conceito de vidas tidas
como menos humanas, suas histórias não são construídas somente por racismo, violência,
exclusão e desigualdade. Se o Hip Hop é pensado como resistência, então deve ser pensado
como resistência para viver e não apenas para sobreviver. Busca de sobrevivência, mas também
busca de novas experiências, afetos, amizades, solidariedades e uniões. Por meio da mescla
híbrida (Hall, 2003) do Hip Hop, jovens e ativistas, nem tão jovens assim, buscam reexistir:
após séculos de resistência e violências perpetradas pela população branca e pelas nações
colonizadoras, como criar novas formas de vida? E de que maneira é possível sustentar
materialmente essas formas de vida? O Hip Hop traz, portanto, a emergência de novos sujeitos
políticos?
Atravessado por todas essas questões, formulei algumas mais específicas: nas relações do
Hip Hop com a política, a busca por produção de atividades culturais por meio do Estado é mais
ou menos política do que a busca por formas mais autônomas de articulações? É possível
hackear o Estado, como um meio para desenvolver políticas públicas, ou é impossível dialogar
com um Estado que não só é conivente, mas também reproduz a violência nas periferias? O
caminho para a manutenção de perspectivas “revolucionárias” nessa cultura passa por sua
autonomia do Hip Hop, ou pode passar por brechas de transformação “de dentro” do Estado?
Sendo assim, ele deve se descolar das formas com que sujeitos se relacionam na política? Com

17
essas perguntas iniciais e com o avanço de leituras e pesquisa de campo, parti para
argumentações mais sólidas.
A atuação política da juventude do Hip Hop de São Paulo está inserida, primordialmente,
em três eixos que, no desenrolar da pesquisa foram considerados fundamentais: primeiro, no
conflito pela renovação do movimento – inserido na dinâmica de reformulação que essa cultura,
como outras, realiza entre formas culturais residuais, dominantes e emergentes (Williams,
2000) – e na preocupação com as novas questões sociais, como questões de gênero e
sexualidade; segundo, na sua relação com o Estado, políticas sociais e organizações da
sociedade civil, como ocorre na busca de financiamento a eventos e atividades em geral e na
ocupação/ utilização negociada de espaços públicos; e, terceiro, na procura por outras formas
de atuação, menos institucionalizadas que possam reduzir a dependência de políticas públicas
para sua inserção na cena do Hip Hop municipal. Uma questão que se levanta a respeito da
articulação nas relações entre cultura e política, tais quais as apresentadas pelo Hip Hop de São
Paulo, é: em qual medida é traçada a linha tênue que separa e, ao mesmo tempo, junta a ação
institucional e a ação autônoma e, nesse sentido, como lidar com as tramas que surgem entre
sociedade, cultura e política?
A escolha de um coletivo deu-se pela dificuldade de apreender a multiplicidade de
coletivos e produções culturais apresentadas por toda a cidade de São Paulo. O Hip Hop
mostrou-se como uma cultura dotada de capilaridade nas periferias, de maneira que novas
formas e novos conteúdos se mesclaram a ele, como é o caso do teatro Hip Hop (D’Alva, 2014).
Por outro lado, as formas mais conhecidas do Hip Hop mantiveram-se e diferentes conteúdos
foram introduzidos com base em novas questões sociais. A apreensão de um movimento, ou
um vetor, que significasse toda a produção cultural de Hip Hop pareceu uma tarefa difícil com
o tempo de pesquisa de um mestrado. Optou-se, nesse sentido, pelo acompanhamento de um
coletivo de Hip Hop como foco de pesquisa.
A escolha por acompanhar o Fórum Hip Hop, entretanto, justifica-se mais pela
participação ativa que esse Fórum exerce no poder público municipal. Com essa participação,
os membros do Fórum são conhecidos, nos meios cultural e do Hip Hop, pelas políticas públicas
que, na sociedade civil organizada, conseguiram aprovar para o Hip Hop, mas também são
conhecidos por suas contradições, falhas e por se colocar como uma rede de representação do
Hip Hop de São Paulo. É também conhecido, entretanto, por não ser tão representativo como
talvez deveria, já que o Hip Hop passa por transformações e novas subjetividades começam a

18
se relacionar com as potencialidades políticas do Hip Hop. Essa aproximação, personificada
por artistas e grupos da comunidade LGBTQ, como Tiely Queen, Rico Dalasam, Quebrada
Queer e Danna Lisboa, dentre tantos, foi um dado relevante para demonstrar que esse
movimento cultural continua a ser uma referência na relação entre cultura e política para essas
subjetividades. Danna Lisboa, aliás, não deixou de criticar a transfobia no Hip Hop, durante a
reunião de convocação do poder público para debater políticas públicas de Hip Hop, que
ocorreu na Galeria Olido, no dia 04 de fevereiro de 2019.
É comum a associação do Fórum diretamente à figura de Pirata, um de seus principais
articuladores políticos e culturais. Essa protagonismo centrado na figura de Pirata nem sempre
permite a emergência da participação de outros sujeitos que também se envolvem com o
cotidiano da rede cultural. Procurei, no entanto, incorporar a esta dissertação as contradições,
os conflitos de representatividade, a hegemonia constituída nas políticas públicas na cultura de
periferia, o uso dos territórios e o diálogo com o próprio movimento, com os movimentos
sociais e outras organizações. Ao mesmo tempo compreendo que a crítica a essa associação se
baseia na recusa, por parte de outros movimentos/ coletivos, de formas de institucionalidade
hierarquizadas. Esses coletivos partilham de princípios organizacionais, nos quais os canais de
tomada de decisão e de realização das ações são mais horizontalizados.
No decorrer da pesquisa e da escrita, me coloquei no meio desse debate, ainda que
adotando distanciamento necessário para refletir criticamente sobre ele. Não porque acredito
que posso resolver qualquer contradição ou conflito; a contradição pode ser lida não pela
negação de um lado ou de outro, mas por apresentar duas perspectivas que são ora opostas, ora
complementares (Morin, 2015). Esses conflitos e posições políticas, no entanto, não são
neutras, como as contradições na hegemonia do Hip Hop nas políticas públicas, na falta de
representatividade de mulheres, na (des)união dos elementos e nos usos do território pelo
Fórum; muitos dessas contradições são até reconhecidas pelos seus próprios membros. As
práticas de negociação e resistência também são frequentes para a rede e muitos sujeitos do Hip
Hop participam desse tipo de prática de forma conjunta. O Fórum está, nesse sentido, entre as
práticas de negociação e resistência, enquanto transita pelos lugares, espaços e territórios mais
ou menos institucionais e autônomos.
Cabe ressaltar que as categorias espaço, lugar e território são contextualizadas de forma
diferente na relação, por exemplo, entre Certeau (2014) e Santos (2000, 2005). Para Certeau há
uma distinção entre lugar e espaço, sem o uso da categoria território. O autor faz sua

19
diferenciação baseada nas práticas do cotidiano: espaço é o lugar praticado, onde há fluxos,
vetores de direção e o que se relaciona com a existência, enquanto lugar é onde há estabilidade
e controle de um “próprio”; o lugar é associado a um “corpo inerte” (Certeau, 2014, p. 185).
Porém, espaços podem se tornar lugares (tornarem inertes) e lugares se tornarem espaços (serem
praticados). O conceito de “lugar” de Santos (2000) é similar ao que Certeau entende por
espaço. “Lugar” é o espaço vivido e “o exercício da existência plena” (Santos, 2000, p. 114).
Território é introduzido como uma totalidade, também sinônimo de espaço geográfico, e só se
torna categoria de análise como território usado (Santos, 2005). Para Santos, a formação dos
lugares se dá pelos usos distintos do território, como a formação do “espaço banal”, usado como
espaço de todos, ou como um “lugar”. Nesta dissertação a categoria “território usado” será
utilizada para analisar as ações do Fórum nos territórios de São Paulo.
Dessa trama as barreiras acadêmicas que impedem o contato e a conexão entre as áreas
de produção de conhecimento são rompidas. O Hip Hop nasceu como resistência e desejo de
juventudes periféricas de se tornarem visíveis e serem escutadas e reconhecidas por meio de
uma identidade negra, urbana e fruto de seu tempo. Para compreender as práticas político-
culturais do Fórum, representativas de, ao menos, parcela do Hip Hop paulistano, categorias
analíticas para além das ciências sociais são mobilizadas, como território usado, de Santos
(2005). Este texto tenta analisar o Hip Hop em sua complexidade: “a complexidade pode ser
definida como um ponto de vista que liga o separado, contextualiza o descontextualizado,
entrelaça o desentrelaçado, tece o conjunto” (Carvalho, 2013, p. 6).

Trajeto teórico-metodológico

Nesta dissertação, as relações entre cultura, política e juventude apresentam-se de forma


transversal; estão sempre presentes, dão o tom para a argumentação e ancoram as linhas
condutoras de fundamentação teórico-metodológica. Além disso, o trabalho está baseado em
uma abordagem multimetodológica que busca relacionar diferentes procedimentos de pesquisa
de campo, como a observação etnográfica, relatos descritivos, coleta de dados e informações
por meio de redes sociais (principalmente, Facebook) e entrevistas em profundidade com
roteiro semiestruturado (Anexo 1). O roteiro foi desenvolvido conjuntamente ao elaborado pelo
grupo de pesquisa Jovens Urbanos..., mas de forma resumida e adaptada para esta pesquisa.
Antes de cada entrevista, os sujeitos foram informados de que a entrevista se baseava em um

20
roteiro. Críticas foram consideradas, apesar de que as sugestões eram poucas e, quando
perguntados se as questões que eu trazia tinha relação com as discussões e enfretamentos do
Fórum, o retorno foi positivo. Os nomes dos(as) entrevistados(as) foram suprimidos por siglas
de seus nomes – artísticos ou não.
Foram realizadas cinco entrevistas com hiphoppers com alguma ligação com o Fórum
Hip Hop e a escolha dos(as) entrevistados(as) permitiu identificar três tipos de relação desses
sujeitos com a rede cultural: relação mais direta com o cotidiano e com participação decisória,
como R.P. e G.; com apoio das pautas, menções sobre a importância da rede para o Hip Hop de
São Paulo e participação eventual nas ações do Fórum, como B. S. e N.; e participação de
algumas ações e relação mais próxima com a rede nas reuniões para organização de políticas
públicas, como o Mês do Hip Hop, como a graffiteira A.S. Com esses três tipos de relação, foi
possível construir a dissertação por meio das narrativas apresentadas como lugar metodológico
privilegiado (Borelli; Rocha; Oliveira, 2009), em relação com escolhas interpretativas. As
narrativas permitiram criticar não só da própria estrutura do texto e seleção de categorias
analíticas, mas também apresentar as controvérsias enfrentadas e vividas pelo Fórum Hip Hop.

Entrevistas em profundidade

Sigla Zona Bairro Elemento do Hip Hop Gênero Idade

R.P. C (Centro) Brás Rapper e MC Masculino 43

B.S. ZL (Zona Leste) Cidade Tiradentes DJ Feminino 35

Ipiranga (Ponte
G. ZS (Zona Sul) Rapper e MC Masculino 37
Preta)

A.S. ZL (Zona Leste) São Miguel Graffiteira Feminino 30

Cidade Tiradentes
N. ZL (Zona Leste) B-girl (Breaking-girl) Feminino 20
(Barro Branco)

A pesquisa de campo direcionou-se para o acompanhamento dos espaços em que o Fórum


circula na tentativa de compreender a experiência política e a produção cultural desses sujeitos
em relação ao movimento Hip Hop. Assim a pesquisa fez-se presente nos espaços destinados
ao diálogo político interno do Hip Hop, que se interessa pela inserção em política pública, como

21
nas reuniões que ocorreram na Galeria Olido10, no Centro Cultural da Juventude e no Fórum
Hip Hop, ou seja, nas reuniões mais específicas para decisão da presença em eventos que
levariam o nome da rede de alguma forma. Fez-se presente também na Câmara Municipal, o
espaço mais institucional frequentado pelos integrantes com maior atuação; nos eventos
produzidos com as verbas que o Fórum consegue arrecadar – seja por articulação política com
vereadores que encabeçam a votação do orçamento com a rubrica específica do Hip Hop, que
seria destinada à produção do Mês do Hip Hop11, seja por meio da presença, cobrança e pressão
que fazem nas audiências para discussão do orçamento público –; e nos eventos em territórios
“periféricos” e “centrais”, que podem ser vinculados ao Mês, financiados ou não com verbas
de políticas públicas.
A “escrita sobre uma cultura”, como no caso a escrita sobre Hip Hop, não é exatamente
a reprodução da realidade vivida pelos sujeitos que a produzem, mas são construções
antropológicas, baseadas na descrição feita pelo pesquisador (Geertz, 2008). Em outras
palavras, a descrição não é verdadeira ou falsa, ou uma transposição fiel ou infiel da experiência
dos sujeitos; ela é uma representação das ações e o significado atribuído e incorporado pelos
sujeitos envolvidos. Deve-se fazer algumas escolhas (escolha de categorias, distribuição do
texto em uma estrutura criada, formas de produzir uma análise, ordem da argumentação, etc.)
que influenciam os modos que a cultura é construída no trabalho científico, mas estão ao mesmo
tempo relacionadas com práticas culturais dotadas de sentido. A escolha das categorias
analíticas privilegiadas nesta dissertação levou em consideração os significados das ações do
Fórum Hip Hop MSP e de suas narrativas.
Nesse sentido, a observação das ações do Fórum Hip Hop MSP (Município de São Paulo),
sua participação direta com questões políticas institucionais e com outros coletivos de produção
cultural e a circulação da pesquisa de campo – também em outras ações que envolviam a cultura
Hip Hop –, o acompanhamento de redes sociais e as narrativas proporcionadas pelas entrevistas
provocaram os questionamentos e permitiram a constituição de um protocolo metodológico de
análise apresentados nesta pesquisa. A pesquisa de campo permitiu interpretar as práticas do
Fórum de forma conjunta à um contexto interpretativo que enxerga nas ações coletivas político-
culturais, produzida por coletivos e redes, novas formas de relacionar cultura e política. Essas

10
Além de situar a Secretaria de Cultura de São Paulo, a Galeria Olido é lugar de produção cultural (exposições
de artes plásticas, cinema, danças e teatro) e um ponto de encontro de jovens, principalmente na rua ao lado.
11
O Mês do Hip Hop é resultado da ampliação da Semana do Hip Hop, conforme lei municipal nº 13.924/2004, e
entrou no calendário de eventos da cidade de São Paulo por meio da Lei Municipal nº 14.485/2007.

22
relações podem ser constatadas por meio do surgimento de culturas juvenis como veículos de
resistência e de reformulação do político (Reguillo, 2000); pela constituição e expressão de
subjetividades políticas (Alvarado et al., 2008), como o “sujeito periférico” (D’Andrea, 2013),
no contexto paulistano; por meio de ações coletivas que procuram romper com a política
tradicional (Muñoz, 2011); e pelo fato de a cultura vista como “forma particular de vida e de
enfrentamento das diferenças e como práticas simbólicas e políticas” (Borelli; Aboboreira,
2011, p. 165) pelos coletivos juvenis de São Paulo.
As relações dos coletivos com o Estado são difíceis de serem evitadas e são tidas como
instâncias tanto de dominação e coerção quanto de consenso e dissenso; de possibilidades de
financiamento de atividades culturais e relação que representa, ao mesmo tempo, os limites
impostos pelas estruturas de poder. Embora a resistência exista, esses sujeitos são marcados
pela presença de políticas públicas em suas trajetórias de vida. Esses coletivos juvenis, em geral,
apresentam diferentes tipos de organização cultural e política e múltiplas formas de autonomear
as identidades (Hall, 2006; Valenzuela, 2014). E, nesse sentido, estão inseridos em um
determinado contexto:

Por meio das redes de sociabilidade – e nem sempre articulados a projetos


institucionais –alguns coletivos juvenis se tornam atores sociais, participam e
intervêm em processos dentro de suas próprias comunidades, assim como nos
espaços públicos das cidades em que residem. Alteram e transformam as
estruturas e características originais dos cenários urbanos pela ação da música,
do teatro, de leituras e narrativas, dança e arte popular urbana, como graffitis,
pixações, stickers (Oliveira, 2006); atuam em movimentos voltados para a
ecologia, o meio ambiente, as novas ordens planetárias, entre alternativas de
participação que adquirem um caráter político por sua intencionalidade e pelas
formas por meio das quais se apropriam dos espaços públicos, transformando-
os, mesmo que efemeramente, em “lugares seus” (Borelli; Rocha; Oliveira,
2009, p. 42-3).

A atuação do Fórum é vista, no cenário do Hip Hop, como exclusivamente institucional,


ou seja, somente vinculada às possibilidades que o Estado proporciona. O objetivo aqui é
demonstrar que suas ações podem apresentar momentos de autonomia em relação ao Estado:
procura de renovação do movimento e de atuação junto ao orçamento público do município ou
por meio da Lei de Fomento à Cultura da Periferia, do Programa VAI (Valorização das
Iniciativas Culturais), ambos da instância municipal. Essas escolhas para a viabilização de
ações político-culturais, ou artes de fazer (Certeau, 2014), são ora complementares, ora opostas

23
e, portanto, possuem uma trama de ambiguidades e contradições, que serão destrinchadas,
reabertas e rearticuladas no decorrer da dissertação.
Nessa trama diversos sujeitos estão envolvidos, não só dentro, mas também externamente
ao Hip Hop. Os coletivos e redes de Hip Hop “fortalecem” as ações de outros coletivos de
outras modalidades culturais. De modo semelhante, mas como renovação das formas de agir
politicamente, as “posses”, coletivos e redes formados por hiphoppers, principalmente a partir
da década de 90, estabeleceram relações simbióticas com movimentos sociais, sindicatos,
partidos e demais organizações da sociedade civil. Nas ações do Fórum é comum o
estabelecimento de alianças com diversos movimentos, dentre eles o movimento negro, de
moradia e de moradores de rua, com sindicatos e ONGs. Nesse sentido, o Fórum Hip Hop
(re)produz, por meio dos elementos do Hip Hop, como formas de uso do território (Santos,
2000, 2005), as potencialidades de contato político e cultural existente no que Gilroy (2001)
chamou de “atlântico negro” e Osumare (2015) denominou de marginalidades conectivas.
Nessas alianças, a rede busca fortalecimento para lutar contra o genocídio da população negra,
pobre e periférica.
A relação entre cultura e política, pressuposto desta pesquisa, tem em Williams (1992,
2000, 2007, 2011) um dos autores centrais para ancorar parte significativa da análise. Williams
propôs-se a ligar conceitos que seriam de áreas específicas de conhecimento – crítica literária,
sociologia da cultura, histórica social e comunicação – como forma de criar e desenvolver uma
teoria cultural marxista e crítica. O autor está situado na corrente de pensamento do “marxismo
ocidental” (Cevasco, 2007) ou “marxismo cultural britânico” (Dworkin, 1997), ou, como auto
denominada “teoria da cultura marxista” ou apenas “marxismo cultural” (Williams, 2011: 43)
ou, ainda, “teoria marxista da cultura” (Williams, 2011a: 294) – que procura entender, a partir
dos anos 1950, em um balanço sobre o momento histórico pós segunda guerra mundial –, as
razões pelas quais as sociedades industrializadas europeias não caminharam em direção à
revolução. Busca também compreender, os motivos pelos quais a classe operária,
tradicionalmente destinada a protagonizar as rupturas no modo de produção capitalista, estaria
mais interessada em alcançar as prerrogativas contidas em um modelo de sociedade voltado ao
bem-estar comum, sintetizados pelo acesso mais amplo à educação, à saúde, ao consumo, entre
outros. Propõe-se, ainda, e em especial, a um diálogo de base teórica e epistemológica de
apropriação da obra de Marx, numa perspectiva cultural, mesmo que a cultura esteja
regulamentada, no contexto, por “autonomias limitadas”:

24
Uma teoria marxista da cultura irá reconhecer a diversidade e a complexidade,
levará em conta a continuidade dentro da mudança, levará em consideração a
chance e certas autonomias limitadas, mas, com essas ressalvas, tomará os
fatos da estrutura econômica e as relações sociais consequentes como o fio
orientador no qual uma cultura é tecida e que, seguido, nos permitirá
compreender essa cultura (Williams, 2011a: 294)

Williams reitera sua posição teórica, em outra perspectiva, em um artigo escrito em 1976,
no entanto a argumentação pode ser transplantada para o presente, dada a relevância de sua
construção teórica:

Levei trinta anos, em um processo bastante complexo, para deslocar-me


daquela teoria marxista herdada [...] para a posição que defendo agora e que
defino como “materialismo cultural”. As ênfases da transição – na produção
(e não apenas na reprodução) de significados e valores por formações sociais
específicas; no primado da linguagem e da comunicação como forças sociais
formativas; e na interação complexa tanto das instituições e formas quanto das
relações sociais e convenções formais [...] uma teoria da cultura como um
processo (social e material) produtivo e de práticas específicas, e das “artes”
como usos sociais dos meios materiais de produção (desde a linguagem como
“consciência prática” material até as tecnologias específicas da escrita e das
formas de escrita, por meio de sistemas eletrônicos de comunicação)
(Williams, 2011, p. 331-2).

O autor percebe o mesmo movimento com outros conceitos, entre eles o conceito de
cultura. Cultura possui uma história diversa e complexa de seus diferentes usos. No século XV,
o conceito era usado para designar o cultivo da terra e de plantações, ou seja, de lavouras. Mas
o uso do conceito alterou-se no século XVI e, até o início do século XIX, cultura passou a
significar “cultivo das mentes”, na Inglaterra, e “civilização”, na Alemanha. Por meio desse
deslocamento, o conceito de cultura adquiriu sua complicada história moderna e passou a ser
representado pelo substantivo no plural: “culturas” (Williams, 2007).
São considerados, por Williams, três usos ainda atuais: substantivo independente e
abstrato, que descreve o desenvolvimento intelectual, espiritual e estético; substantivo
independente, que descreve o modo de vida geral ou específico, indicando um modo de vida
particular de um povo, um período, um grupo ou da humanidade em geral; e substantivo
independente e abstrato, que designa obras e atividades intelectuais e artísticas. O terceiro uso
assemelha-se a uma definição de arte, embora seja uma aplicação prática do primeiro (idem, p.
121). A associação do primeiro e do terceiro usos a distinções de classe produziu, no final do

25
século XIX e no começo do XX, afirmações de conhecimento superior. Criaram-se, dessa
forma, as hierarquias de alta cultura e entretenimento popular (vinculada à baixa cultura). Só
foi o uso social e antropológico do termo cultura, em expansão, que gerou menor hostilidade
ao termo: cultura passou a significar modos de vida de grupos ou subgrupos, ideia ligada,
portanto, à sociedade.
Essa perspectiva é de suma importância para analisar o Hip Hop: examinar os campos
não de forma separada, mas em sua conjunção complexa e histórica. Os fenômenos culturais12
só podem ser analisados por meio da aproximação de outros campos de conhecimento. Talvez
seja possível defender que, com as contribuições teóricas apresentadas, o fechamento
disciplinar das relações entre as áreas do conhecimento se torna não só insuficiente em termos
analíticos mas também uma posição política de reprodução das estruturas de poder vigentes na
sociedade.
A importância da análise histórica também leva Williams (2000) a propor uma leitura dos
processos culturais e de suas inter-relações dinâmicas para apreender não só o movimento das
formas sociais, que adquirem centralidade na análise cultural, mas também a conexão desses
processos com o passado e com o futuro (Williams, 2000, p. 143). O autor, dessa forma, não
pretende tratar processos culturais de maneira estática; para ele as dinâmicas internas possuem
tanta importância como as dinâmicas externas. As relações entre elas apresentam as formas
pelas quais o passado se mantém no presente – como residual, por vezes em conflito com o
dominante e o emergente – e também as tendências de transformação social e cultural além das
conexões e influências de vetores dominantes.
A perspectiva de Williams possui quatro elementos para a interpretação dos processos
culturais em sua dinâmica histórica: o arcaico, o residual, o emergente e o dominante. O arcaico
é algo a ser rememorado e trata do reconhecimento de elementos culturais passados, que ainda
podem ser observados e examinados. O residual é distinto, embora de difícil distinção na
prática. O residual trata de elementos culturais que se formaram no passado, mas que ainda se

12
Appadurai (2004, p. 25-8) apresenta um uso distinto do conceito de cultura: o termo cultura associado à sua
forma adjetiva, “cultural”. Além de significar uma propriedade de um indivíduo ou grupo social, a cultura, como
substância, objeto ou coisa que os grupos sociais “possuem”, conforme citado anteriormente, pode se assemelhar
aos discursos biológicos da raça. O autor argumenta que a cultura adjetivada deve ser usada para mobilizar as
identidades de grupos, ao aludir à diferença e abrir para as dimensões contextual, heurística e comparativa: “[...] a
cultura é uma dimensão penetrante do discurso humano que explora a diferença para gerar diversas concepções da
identidade de grupo” (Appadurai, 2004, p. 27). É nesse sentido que se permite a esta dissertação argumentar que
o Hip Hop é um movimento cultural, que se traduz, dentre outras maneiras, por distintas identificações dos/ das
hiphoppers. Essa discussão, presente na cena do Hip Hop, como demonstrado pelo trabalho de campo e por Felix
(2005), será aprofundada no capítulo 3.

26
encontram ativos no processo cultural. Deve-se distinguir, porém, os residuais que se
apresentam como alternativos e, até mesmo, opostos à cultura dominante daqueles que foram
incorporados por ela. A hegemonia aparece como pano de fundo, articulando esses elementos
para sua (re)formulação:

[...] a cultura dominante não pode permitir uma experiência e uma prática
residual excessivas fora de sua esfera de ação, ao menos sem que implique
algum risco. É pela incorporação do que é ativamente residual – por meio da
reinterpretação, diluição, projeção e inclusão e exclusão discriminada – que o
trabalho de tradição seletiva se torna especialmente evidente (ibidem, p. 145).

O dominante busca incorporar o que há de força ativa do passado no presente bem como
o que há de novo nas práticas, significados e tipos de relação. Já o emergente é o surgimento
de novos significados, valores, práticas e relações. Williams (2000) pensa que há complicações
ao comparar novas formas com formas dominantes ou que ainda guardam certa semelhança
com aspectos residuais. O emergente nasce primeiro como oposto ao dominante e não como
alternativo. Ele surge como força preliminar para, depois, descobrir novas formas e novas
adaptações. A incorporação do dominante ocorre no sentido de renovar sua própria dominância
sob os novos processos culturais, mas o processo nunca inclui toda a prática humana: há coisas
– algumas práticas ou experiências – que o dominante não considera ou não consegue atingir.
É nesse sentido que se cria a resistência à incorporação do dominante.
Na sua forma organizativa, o Fórum apresenta resíduos dos movimentos sociais que
surgiram em um momento anterior – anos 80 –, principalmente em seu caráter reivindicativo
(melhoria de bens públicos, acesso à moradia), mas difere por se inserir no campo da cultura e
se articular por meio dela. Esse é o salto dado pela juventude, que se organizou em coletivos
culturais e percebeu, também por meio do próprio Hip Hop, que a cultura seria uma chave para
agir politicamente contra as vias mais institucionais da política e que as ações já continham, em
si mesmas, conotações políticas ou na forma ou no conteúdo de suas produções culturais. O
Fórum assemelha-se a uma estrutura criada pelas posses13, que passaram a discutir o que seria
o Hip Hop paulistano em termos políticos. Este coletivo, no entanto, já se insere em parceria
com o poder público e no contexto de discussão de políticas públicas. No decorrer de sua
trajetória, seus membros mais envolvidos pressionam o Estado e outros setores da sociedade,

13
A explicitação do conceito de posse encontra-se no capítulo 2.

27
com o objetivo de garantir o acesso das pessoas que vivem nas periferias de São Paulo ao Hip
Hop e ao conhecimento das questões sociais, ao mesmo tempo mediado pelo Hip Hop.
O Fórum transita, nesse sentido, tanto pelo dominante quanto pelo residual e o emergente.
Situa-se nas vias institucionais e nas pautas relacionadas à política pública ao mesmo tempo em
que resiste por meio dela: procura outros meios para estabelecer ações coletivas nos territórios
de pertença dos sujeitos mais atuantes do coletivo e procura discutir e conscientizar o Hip Hop
e demais movimentos sociais sobre a questão do genocídio da população negra, pobre e
periférica. O Fórum, assim como outros coletivos, apresenta novas formas de fazer política e
luta para não ser assimilado às “velhas” formas, que, por outro lado, devem ser consideradas
pela luta dos direitos culturais14. A articulação em rede do Fórum, por um lado, propicia a
ampliação de horizontes políticos e um forte poder de mobilização e, por outro lado, pode
apresentar fragilidades, instabilidades e incertezas, como argumentado por Maia (2014, p. 81-
2).
Conforme analisam Williams (2000) e Martín-Barbero (2015), é possível articular as
dinâmicas de incorporação/ não incorporação entre cultura e política. Com ênfase nas práticas
do cotidiano, os autores, em permanente diálogo com Gramsci (2000), consideram que o
conceito de hegemonia se torna central não pelo fato de exprimir o domínio de uma classe social
por outra, mas, de forma mais profunda, por representar a articulação política que leva em conta
os aspectos culturais. Esses autores procuram ir além de análises marxistas exclusivamente
políticas e/ou econômicas, que estão mais preocupadas com os interesses envolvidos na luta de
classes, sem problematizá-los, e centradas na questão do trabalho.
Existem, entretanto, outros processos que o conceito de hegemonia busca articular para
compreender a complexidade da política e que envolve o cultural.

Uma hegemonia dada é sempre um processo [...] (ela) não se dá de modo


passivo como uma forma de dominação. Deve ser continuamente renovada,
recriada, defendida e modificada. Mesmo assim, é continuamente resistida,
limitada, alterada, desafiada por pressões que de nenhum modo lhe são
próprias. Portanto, devemos agregar ao conceito de hegemonia os conceitos
de contra-hegemonia e de hegemonia alternativa, que são elementos reais e
persistentes da prática [...]. A realidade de toda hegemonia, no seu difundido
sentido político e cultural, é que, apesar de que por definição sempre é

14
Está aberta, por essa dissertação, a leitura da “atualidade” de formas organizativas como o Fórum Hip Hop: o
Fórum é capaz de problematizar outras posições de sujeito, com as relacionadas à problemática de gênero? A falta
de sujeitos que se identificam dessa forma na atuação do Fórum condiz com uma contradição ao qualificá-lo como
“emergente”? A questão das “emergências” será trabalhada no capítulo 3, porém a conceituação da categoria
“gênero” não será aprofundada.

28
dominante, jamais o é de um modo total ou exclusivo (Williams, 2000, p. 134-
5. Tradução própria).

Não há hegemonia enquanto coisa ou como dominação social de imposição pura, vindo
de um exterior e sem a consideração de sujeitos. Trata-se de um processo vivido, feito não
apenas de força, mas de sedução e cumplicidade das classes populares.

[...] o que implica uma desfuncionalização da hegemonia – nem tudo o que


pensam e fazem os sujeitos da hegemonia serve à reprodução do sistema – e
uma reavaliação da espessura do cultural: campo estratégico na luta para ser
espaço articulador dos conflitos [...] o valor do popular não reside em sua
autenticidade ou em sua beleza, mas sim em sua representatividade
sociocultural, em sua capacidade de materializar e de expressar o modo de
viver e pensar das classes subalternas, as formas como sobrevivem e as
estratégias através das quais filtram, reorganizam o que vem da cultura
hegemônica, e o integram e fundem com o que vem de sua memória histórica
(Martín-Barbero, 2015, p. 112-3).

Deve-se olhar o outro lado: a hegemonia pode apresentar os modos de vida das classes
marginalizadas e seu potencial de transformação, pois a hegemonia é também o espaço das lutas
e dos conflitos. Se a hegemonia é lugar de um constante vir a ser, o conceito traz em si mesmo
a potencialidade contra-hegemônica. Tal potencialidade representa um deslocamento das
teorias de dominação completa e passiva das classes populares, que são, por sua vez,
manipuladas exclusivamente pela ideologia: frestas se abrem, talvez menores e silenciosas, mas
ativas no cotidiano e na atuação política para produção – não somente reprodução – de novos
significados e valores. A hegemonia cultural em processo pode apresentar outros efeitos.
É possível, portanto, atuar por vias hegemônicas, ou de hegemonia alternativa, com
levanta acima Williams, e por vez contra ela, por meio da resistência à dominação. Os limites
são duros e, por vezes, impossíveis de atravessar, mas os sujeitos podem ressignificar e
manipular o sistema por meio das brechas deixadas por ele mesmo, nos esquemas de operações,
nos jogos com a ordem, para alterá-la de forma imperceptível, sutil: “uma arte de dar golpes”,
como escreveu Certeau (2014, p. 74). O Hip Hop e o Fórum não atua somente como hegemonia,
dentro das políticas públicas, mas também como cultura contra-hegemônica e que atua no meio
da política hegemônica e se mistura para subvertê-la, mesmo que jogue com os riscos de ser
assimilado e capturado, aderindo a lógicas que tentou alterar.
Os editais públicos, tanto municipais (Lei de Fomento e VAI) quanto estaduais (ProAC),
voltados para produção cultural e financiamentos, que são amplamente utilizados pelos

29
coletivos de São Paulo (Borelli; Aboboreira, 2011), proporcionam ações mais autônomas, como
no caso do Fórum. Com esse apoio, são realizadas rodas de conversa e debates e cursos – que
visam discutir a violência policial, o genocídio, eugenia, moradia e acesso a políticas públicas,
tudo isso mesclado com apresentações de rap, breaking, realização de graffiti – e
disponibilizado o acesso a oficinas de formação artística por meio dos quatro elementos do Hip
Hop.
É importante ressaltar, novamente, o paradoxo: há alguns anos o Hip Hop é visto como
uma conquista hegemônica dentro da “cultura da periferia”, articulando resíduos de matrizes
populares por meio de seus quatro elementos constitutivos – MC, break, DJ e graffiti –,
principalmente no que diz respeito às políticas públicas, sua inserção massiva e midiática como
cultura possuidora de capilaridade tanto nas periferias das grandes cidades quanto em outros
setores sociais, e presença fundamental na produção acadêmica voltada para a cultura de
periferia (Borelli et al., 2012). Esta pesquisa procura, no entanto, reforçar a potencialidade
contra-hegemônica da atuação política do Hip Hop e do Fórum, ao mesmo tempo em que se
consideram as contradições e conflitos presentes.

Estrutura da dissertação: descrição dos capítulos

Como já mencionado anteriormente, o objetivo central desta dissertação é analisar as


relações entre cultura e política, no sentido de pesquisar as mediações existentes entre elas,
considerando tanto os usos culturais do político, por meio das ações propriamente políticas –
como as praticadas pelo Hip Hop e seus elementos artísticos constituintes – quanto os usos
políticos do cultural, como “espaço articulador de conflitos” (Borelli, Aboboreira, 2011). O
sujeito privilegiado, em diálogo com esta pesquisa, é o Fórum Hip Hop, rede de produção
cultural que possui práticas de resistência e negociação – tanto as encontradas na política
institucional quanto as expressas na vida cotidiana das periferias – estabelecidas em territórios
mais ou menos institucionalizados e autônomos.
Esta dissertação está estruturada em três capítulos. O capítulo 1 procura articular as
questões internas e externas relacionadas ao Fórum Hip Hop, seu cotidiano enquanto rede que
atua nas diferentes regiões da cidade de São Paulo e forma redes com outros coletivos. O Fórum
é “coletivo de coletivos” (Maia, 2014). Por ser um fórum aberto, a rede também lida com
divergências internas na decisão dos objetivos da rede nas reuniões semanais e nas reuniões

30
para resolução de políticas públicas, que surgem nos diferentes lugares em que as reuniões
ocorrem.
Em seguida, o capítulo direciona-se para a relação entre cultura e política na vida
cotidiana dos sujeitos que mais se envolvem com o Fórum. Os processos de identificação que
podem ser produzidos pelo Hip Hop possuem ressonância nas experiências da vida cotidiana e
produzem uma subjetivação política. Cada sujeito, na interação com o Hip Hop, passa a refletir
sobre sua realidade e age, por meio de coletivos e redes como o Fórum, para mudá-la. Uma
dessas formas de ação é atuar na conquista de políticas públicas, mesmo diante da existência de
instabilidade na relação com a política institucional e, mais especificamente, com a instância
municipal do Estado. Nas suas ações, o Fórum aparece entre a autonomia e a institucionalidade,
a hegemonia e a contra-hegemonia: busca políticas públicas, mas também formas de
apropriação que fujam da disciplina do Estado.
O capítulo 2 apresenta uma reconstrução histórica do Hip Hop, de forma não só a
contextualizar as ações do Fórum mas também a encontrar, por meio de seus elementos e
linguagens constituintes, os resíduos, as emergências e dominâncias político-culturais presentes
nessas ações. Essa dinâmica está relacionada à história cultural recente da diáspora africana, e
os elementos do Hip Hop são interpretados como uma união conflitiva, que dá forma a um
movimento cultural. Os elementos são divididos, mas as experiências estão, de alguma maneira,
entrelaçadas. Nesse primeiro item do capítulo, são levantadas controvérsias sobre a presença,
ou a onipresença, de alguns elementos em detrimento de outros nas práticas do Fórum.
Os sujeitos do Fórum, na busca por saídas em contextos de exclusão social e violência,
criam redes de sociabilidade ao mesmo tempo em que se apresentam continuidades e
descontinuidades em formas de articulação política e cultural. A história do movimento Hip
Hop, por seu forte conteúdo de denúncia e combate às desigualdades raciais, sociais,
econômicas, políticas e culturais, demonstra a formulação de alianças e parcerias com
movimentos sociais, sindicatos, coletivos, redes, posses e outras organizações da sociedade
civil. Nessas múltiplas possibilidades de união, mesmo que momentâneas, o Fórum amplia sua
circulação e a articulação política em suas produções culturais.
O capítulo 3 demonstra que os usos do território situam-se na fronteira entre a resistência
e a negociação. O Fórum produz suas práticas por meio da ocupação de territórios periféricos
e mais centrais, que são mais, ou menos, institucionais e/ ou autônomos. Nesses usos do
território, a rede procura encontrar as brechas na atuação político-cultural. Algumas

31
observações etnográficas foram selecionadas para trabalhar com temáticas presentes na
ocupação desses territórios, como sociabilidade, violência policial, políticas públicas e racismo.
Essas observações recaíram sobre os eventos Hip Hop Politicamente, C.T Sitiada e o Prêmio
Sabotage.
Na segunda parte do capítulo, observa-se a relação do Fórum com a produção de
conhecimento sobre o que é Hip Hop e sobre outras temáticas que também contribuem para a
atribuição de significado a esse movimento cultural, como a existência, ou não, de um quinto
elemento específico para produção de conhecimento da cultura. Outra tensão está nos usos dos
territórios centrais e periféricos pelo Fórum. As narrativas de sujeitos próximos do Fórum
levantam algumas controvérsias em relação às localidades em que acontecem as reuniões da
rede. Em seguida, o Fórum coloca-se a contrapelo do racismo estrutural. Por meio de cursos e
seminários, com produção ou com participação de membros mais frequentes da rede, o Fórum
procura alternativas para resistir ao genocídio da população negra, pobre e periférica.

32
Capítulo 1 - O Hip Hop de perto

1.1. Uma rede de cultura Hip Hop: o Fórum Hip Hop Municipal de São Paulo

Este capítulo apresenta com mais especificidade o que é o Fórum Hip Hop MSP
(Município de São Paulo). Caracteriza-se por uma rede de produção cultural de Hip Hop que
busca fortalecer a participação dos sujeitos que produzem essa cultura, por meio de um espaço
aberto O próprio Fórum, no entanto, atua tanto na garantia de acesso público a um direito social
– o direito à cultura –, com a adoção de mecanismos abertos e representativos, quanto na
participação de editais para ampliar as possibilidades de atuação e uso dos territórios da cidade.
O Fórum procura a inclusão do Hip Hop no orçamento da cidade de São Paulo, de forma
a permitir a produção de diversos artistas dessa cultura, e a produção de eventos, oficinas,
palestras, cursos, que podem se relacionar com outros modalidades culturais, movimentos
socias, sindicatos e ONGs nos diferentes territórios, em contato com coletivos residentes nas
comunidades e periferias. Para a rede e seus membros leva-se em consideração a união dos
quatro elementos do Hip Hop.
A rede surgiu em agosto de 2005 em parceria com a Coordenadoria de Juventude, ligada
à Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania do município de São Paulo, e com o movimento
Hip Hop com o intuito de aproximar os jovens e contatá-los com as políticas públicas na área
da cultura, de forma a conscientizar o poder público sobre a necessidade de incentivo e
investimento voltados à juventude da cidade. À época, eram realizadas reuniões quinzenais com
membros de ONGs, grupos e posses de Hip Hop, que atuam como artistas nos quatro elementos
da cultura, para discutir políticas públicas de juventude.
O Fórum possui oito eixos temáticos. Os eixos consistem em: 1) difundir o Hip Hop; 2)
elaborar políticas públicas de juventude; 3) inserir o Hip Hop como tema transversal da
educação; 4) combater a discriminação de gênero; 5) organizar uma agenda do Hip Hop na
cidade; 6) combater a discriminação racial; 7) atuar contra a violência policial; e 8) discutir
emprego e renda. Esses eixos estão em articulação com os objetivos principais do Fórum, que
são: estabelecimento de um diálogo entre movimento Hip Hop e poder público municipal;
criação de critérios públicos que direcionem essa relação e parceria; e interlocução com o
governo municipal para realizar ações conjuntas de políticas públicas de juventude. E, a esse

33
respeito, R.P. afirma: “e a gente respondeu isso até hoje, em todas nossas ações” (R.P. - C -
rapper, entrevista concedida).
R.P. relatou o acontecimento que provocou o surgimento do Fórum Hip Hop. Contou a
história considerando às percepções que tinha de outros grupos e coletivos envolvidos nesse
processo de relação com o poder público. Segundo R.P., depois de sua formação universitária
e da experiência como MC e como membro do movimento Hip Hop, começou a perceber que
a relação do Hip Hop com o Estado produzia entraves. Compreendeu que precisaria de um
movimento mais ativo, impulsionado por um fórum que fosse capaz de articular o movimento
Hip Hop na sociedade civil para demandar, pressionar, conseguir informações e acumular uma
troca de experiências entre sujeitos do movimento, para que as coisas começassem a tomar um
rumo.

[...] comecei a estudar, entrei na universidade. Aí, depois que eu terminei a


universidade, falei: “mano, preciso fazer as paradas andar”. Porque tava
entrando na música. E percebi que o Hip Hop não era organizado; sempre
alguém está fazendo por alguém do Hip Hop. Aí, em 2005, tinha a Ação
Educativa, que fazia os debates do Hip Hop, Semana do Hip Hop. Em 2005,
a coordenadora de juventude participou do debate. Fizemos um
questionamento e ela chamou um fórum, que era da coordenadoria de
juventude [...] Era governo Serra. E a partir dali, descobrimos que tinha as leis.
E falamos: “ah, por que não anda?” Não adianta ficar fazendo reunião para
ficar falando muita coisa... “por que tem as leis? Por que não anda?” “Ah,
porque precisa ser efetivadas”. “O que tem que fazer?” “Alguém tem que ir
lá”. Já que ficou nesse “alguém tem que ir lá”, então falei: “vamos lá”. E eu
também falei: “ah, eu vou lá”. A gente começou a ir (R.P. - C - rapper,
entrevista concedida).

Logo no começo desse vínculo, o rapper notou que a relação com o Estado produzia
armadilhas por “interesses próximos”.

No começo, quando o Estado chama, vai um monte de gente por interesses


próximos ao Estado. Mas teve um grupo de pessoas do Hip Hop, que são todos
os artistas, que falamos: “vamos tocar esse barco independente do Estado”. E
a gente manteve até hoje (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

O Fórum, no entanto, não conta com a representatividade do movimento Hip Hop


paulistano; há divergências em relação às suas práticas, o que distancia partes do movimento
Hip Hop da participação mais efetiva junto com o Fórum. É uma rede combativa, que tenta
puxar os demais sujeitos do Hip Hop para dentro das políticas públicas na área da cultura. Além

34
disso, procura articular ações entre os demais coletivos de Hip Hop nos diferentes territórios da
cidade para produzir cultura, política e educação para as comunidades periféricas.
A rede perdeu, desde sua criação, seu vínculo mais forte com o Estado. O Fórum Hip Hop
permanece na Câmara, nos atos públicos, nas manifestações públicas e no comparecimento às
reuniões com servidores do poder executivo e a favor do movimento Hip Hop, e possui uma
identidade constituída por alguns membros cativos. Nesse sentido, o Fórum também é
representado por esses sujeitos para produzir outros eventos – que são ou não financiados com
verbas concedidas por meio de editais municipais e estaduais – nos territórios periféricos de
São Paulo.
Antes denominado “Fórum Hip Hop e Poder Público do Município de São Paulo”, o
Fórum Hip Hop MSP é, antes de tudo, uma rede de ação cultural que agrupa diversos coletivos
de artistas de Hip Hop. Entre eles, estão os coletivos Fantasmas Vermelhos, Coletivo de
Esquerda Força Ativa15, Posse Elementos de Atitude, Hip Hop Coletivamente, Pânico Brutal
(que integra o Coletivo Perifatividade), Alma Sobrevivente, Letra Preta, entre outros, que, de
maneira efêmera ou continuada, participam das ações. Mas são esses os coletivos que, na
configuração atual das pessoas mais ativas no Fórum, participam, às suas próprias maneiras,
em seus territórios de pertença e que articulam, ao mesmo tempo, ações maiores sob a
organização do Fórum. O Fórum poderia se enquadrar na definição que Harika Maia (2014)
apresentou como “coletivo de coletivos”:

[os] ‘coletivos de coletivos’, ou redes, são um movimento maior de agentes


que se organizam em grupos distintos e misturados, que não se restringem ao
seu projeto, mas permitem-se participar de ‘projetos parceiros’, formando
redes de grupos conectados e representados por uma nomenclatura (Maia,
2014, p. 81).

A autora trabalha com a ideia de que as redes extrapolam os campos de atuação política,
que não seria possível com a atuação de um coletivo menor, o que pode significar maior
representatividade e força política. Esse é um argumento corroborado pela pesquisa feita por
Renato Almeida (2009), que interpretou a formação de redes não somente de forma espontânea,
de maneira a sanar momentos de necessidade de força, mas como um desejo desses movimentos
em rede de se relacionarem com o Estado. As redes seriam “novas formas de atuação juvenil
em São Paulo”. E é justamente por esse caminho que diversos coletivos com certa

15
A antiga posse Força Ativa.

35
correspondência ideológica e que, ao mesmo tempo, se reconhecem como diferentes decidiram
se organizar no Fórum Hip Hop para conseguir a efetivação do direito à cultura, conforme
previsto pelo marco regulatório da Constituição de 1988.
Durante sua atuação cultural, esses sujeitos socializam-se politicamente por meio dos
coletivos de que fazem parte e desenvolvem subjetividades políticas (Alvarado et al., 2008);
transformam-se em “sujeitos periféricos”, como aponta Tiarajú D’Andrea (2013), não apenas
moradores das periferias da cidade, mas sujeitos com uma nova subjetividade e que se
comprometem com a ressignificação desse espaço e de suas identidades. É um processo que
trata de

[...] romper os muros da vida privada e encontrar sentido na construção


política em cenários públicos, em que a pluralidade pode atuar como ação e
como narrativa, o que nos diferencia e o que permite nos reconhecer como
comunidades de sentido (Alvarado et al., 2008, p. 29).

A diversificação de sujeitos, coletivos e redes e a presença de diferentes sujeitos em


diferentes coletivos – até a presença do mesmo sujeito em mais de um coletivo – ocorre pela
própria diversidade das temáticas, temas, problemas e questões que podem ser tratados nas
periferias, resultado das heterogeneidades dos espaços urbanos e dos estilos de vida que podem
estar presentes em um mesmo espaço (Kowarick, Frúgoli Jr., 2016). Dessa forma, um mesmo
sujeito, por se interessar pela discussão e produção cultural de maneira mais ampla, pode se
integrar em um pequeno coletivo, que integra outro maior e que pode participar dos eventos e
articulações em rede.
O caso do coletivo Letra Preta, que participa de eventos no Fórum, é um exemplo dessa
articulação. Foi criado por mulheres jovens negras que participavam dos saraus e das rodas de
conversa da Biblioteca Comunitária Solano Trindade – iniciativa de décadas do Coletivo de
Esquerda Força Ativa – e que resolveram se juntar para formar o Slam contínuo Letra Preta. O
Letra Preta passou a integrar o Força Ativa e estabelecer relações com seus principais membros.
Em seguida, começaram a ser convidadas para realizar Slams nos eventos do Fórum, de forma
a abranger os “elementos” do Hip Hop e abrir para outras expressões culturais. Além das
práticas educacionais presentes nas oficinas, essas modalidades podem ser vistas também como
o quinto elemento: o conhecimento. Tudo que é escrito, filmado e produzido, em geral para

36
divulgação, difusão, memória, produção de conhecimento etc., pode ser considerado fruto do
quinto elemento do Hip Hop16.
O Fórum também possui um braço de produção musical, o Instituto Hip Hop Político,
que é responsável por lançar as músicas produzidas independentemente pelos artistas do Fórum
ou que possuem incentivo de alguma política pública, principalmente com editais de fomento.
Recentemente, o Fórum lançou LPs digitais de Gile, Tito e Pirata. Em setembro de 2017, foi
realizada a coletânea “Da colônia ao genocídio”17, que contou com a participação das faixas de
Negro Dre, Diplomatas MC, JG Loko, Pirata, Tito, Gile, Fantasmas Vermelhos, Muro MC e
Bener Zil, com produção musical de David Brehmer e Pirata. O CD digital recebeu apoio do
Fomento de Cultura de Periferia18, política pública da cidade de São Paulo. As produções
artísticas independentes demostram que um atributo de troca importante entre os coletivos que
compõem o Fórum, assim como em outras relações externas que também são estabelecidas, é
o fato de serem reconhecidos, por si e pelos outros, como artistas. A produção artística, nesse
sentido, também é usada como ação política.
G., como rapper e MC, aproximou-se do Fórum em meados de 2014 para produzir um
CD com seu grupo de rap, Alma Sobrevivente, e participar politicamente por meio de eventos
de Hip Hop. O encontro com o Fórum impulsionou sua trajetória no Hip Hop como artista e
ativista do movimento e produziu outras relações com o bairro em que mora, na região do
Ipiranga. No Fórum, G. conseguiu colocar em prática a força presente no Hip Hop dos anos 90,
década em que entrou mais em contato com o rap:

Minha aproximação com o Fórum, pelo qual eu consegui gravar esse primeiro
disco com o Alma Sobrevivente, foi dentro de um projeto do Fórum, em 2014,
que é quando eu tava me aproximando [...]. O Fórum era algo que eu tava
esperando para me encontrar e juntar com uma rapaziada para fazer Hip Hop.
Lance de evento eu sempre gostei, mesmo que em outros estilos, outros
segmentos culturais; sempre gostei de eventos. Tem a parte política, que a
gente sempre se identificou, que o rap nacional sempre falou muito disso
assim. É até chamado de Golden Era, anos 90, porque os caras batiam muito

16
Há controvérsia sobre a adoção de um “quinto elemento” pelo Hip Hop paulistano. Essa controvérsia está
presente no capítulo 3.
17
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=131&v=-pn7SHPEaME>. Acesso em 29 out.
2018.
18
Segundo o site da Prefeitura de São Paulo: “O Programa de Fomento à Cultura da Periferia proporciona apoio
financeiro a projetos e ações culturais propostos por coletivos artísticos e culturais em distritos ou bolsões com
altos índices de vulnerabilidade social, especialmente nas áreas periféricas do Município”. O Fomento permite
maior maturação dos projetos que aprova. Os projetos podem chegar a dois anos de duração. Disponível em:
<https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/cidadania_cultural/index.php?p=20403>. Acesso
em: 28 jun. 2019.

37
forte. Tinha uma ligação com os movimentos sociais muito forte também e a
coisa da criminalidade que era muito feia na época também. O rap falava
muito disso. Mas o Hip Hop é mais coisa... E o Fórum foi uma oportunidade
de eu me aproximar de um grupo que pensa o Hip Hop de forma total; não só
politizado, mas de forma total, conforme os ancestrais e os consolidadores do
Hip Hop colocaram, dos elementos, da dança, do breaking, DJ, graffiti [...]
Mas o lance do dinheiro público é o acesso à cultura, que o Fórum bate desde
2005 [...]. O Fórum começou com isso, mas conheci o Fórum anos depois. Fui
apresentado por uns parceiros meus aqui da área - sou do Ipiranga. Aí os caras
sabem fazer política com a linguagem do Hip Hop, que é bem difícil, porque
é considerado um segmento menor (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

Nessas redes de sociabilidade19 há, portanto, comunicação e troca tanto entre sujeitos do
movimento Hip Hop quanto com os de outras organizações e movimentos sociais. Os rumos,
táticas e estratégias (Certeau, 2014) do Fórum são decididos nas reuniões semanais que
acontecem todas as quintas-feiras, às 19h, na ocupação da União Nacional de Assistência à
Moradia (UNAM), no centro de São Paulo. As reuniões possuem a dinâmica de discussão
aberta, própria de um fórum, mas tem como pressuposto de existência a participação de artistas
do Hip Hop. Mas qualquer um, artista do Hip Hop, membro de ONG e de outros movimentos
e até qualquer observador, como um pesquisador, está convidado a participar e acompanhar as
discussões. Como dado de pesquisa, recai sobre o sujeito a maneira que se negociam as
entradas, permanências e saídas do contato com o grupo, pois a abertura já está dada. O próprio
Fórum é um espaço de alternância de membros e passa por reformulações: das reuniões
semanais, dificilmente participam as mesmas pessoas, embora Pirata, Pec Jay, Gile, Bener, Gus
e Melvez sejam figuras quase sempre presentes. Alguns frequentadores deixam de comparecer
por dificuldades de trabalho ou por outros compromissos.
Maia (2014) demonstrou as dificuldades para garantia da presença nas reuniões das redes
e os conflitos que surgem no cotidiano dessas organizações. A abertura para participação ou
não de coletivos e/ ou sujeitos que fazem parte de um ou mais coletivos pode significar
autonomia da rede, mas também fragilidade. Por vezes esses participantes deixam as reuniões
e grupos de decisão em segundo plano. Além das dificuldades relacionadas a trabalho e outras

19
Rede de sociabilidade se trata, para esta dissertação, de um uso apropriado do conceito de sociabilidade de
Simmel (2006). Para o sociólogo e filósofo alemão, “os homens” se relacionam em sociações, formas diversas de
relação humana. As sociações possuem conteúdos concretos, que são, basicamente, impulsos psíquicos [“reuniões
econômicas ou irmandades de sangue, em comunidades de culto ou bandos de assaltantes” (Ibidem, p. 47)] que
possuem correspondência no outro com que se relaciona. O conjunto de sociações forma-se uma unidade, ou “uma
sociedade”. A sociabilidade, porém, possui uma especificidade para Simmel: a sociabilidade é a forma lúdica de
sociação, que se desvincula da realidade objetiva para ser uma relação de felicidades entre iguais. Esse conceito é
relacionado com a categoria “rede”, que será desdobrada com um pouco mais de profundidade no capítulo 2.

38
atividades, a forma de “coletivo de coletivos” traz movimentação, autonomia e fragilidade no
cotidiano. A formação de alianças, que permitem novas configurações, é um movimento das
redes.
Quem se dedica às reuniões do Fórum pretende estabelecer alguma relação com a rede,
como explicitado pela narrativa de G.. Nas reuniões, há uma discussão sobre o papel de
liderança que os presentes assumem na cena do Hip Hop de cada região de São Paulo para a
execução, por exemplo, do Mês do Hip Hop. Outros eventos também são organizados com
frequência em todas as zonas da cidade, nos quais outras relações com coletivos, que “correm
junto” com o Fórum ou não, se configuram.
As reuniões também são espaços em que esses sujeitos anunciam que atividade e/ ou
evento acontecerão na “sua área”, ou para propor parcerias e alianças com outros grupos,
coletivos e movimentos sociais. O Hip Hop é um movimento que possui laços comunitários
orgânicos com os lugares em que vive parte relevante da população negra20 21
e periférica da
cidade. Essa relação é marcada pelos sujeitos que frequentam as reuniões do Fórum,
principalmente quando revelam suas táticas e propostas para possíveis ações: diálogo com
escola para realizar shows de rap e oficina de Hip Hop uma biblioteca; diálogo com o “mundo
do crime” para a revitalização de uma viela, tomada pelo tráfico, com graffiti; participação
como liderança comunitária; participação na gestão da Casa de Hip Hop Leste; evento com
movimento de população de rua, etc.
O acompanhamento de atos, protestos e eventos que são organizados por meio dessa troca
com diferentes coletivos, redes e movimentos demonstra, no entanto, que essas relações –
tomadas em um grau macro de discussão – são complexas e diversas. Divergências internas são
frequentes quando se procura propor estratégias políticas, de forma que os momentos de união,

20
Essas relações, principalmente entre surgimento do Hip Hop como uma cultura negra e as relações que
estabeleceu com as dimensões externas, serão confrontadas no capítulo dois, tanto em âmbito do Hip Hop mais
geral, quanto no de São Paulo.
21
A prefeitura de São Paulo, por meio da extinta Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, realizou em 2015
um levantamento da distribuição da população negra (como no IBGE, pretos e pardos) na cidade. O levantamento
foi feito pelas subprefeituras e analisou, além da desigualdade racial ligada aos locais, as desigualdades raciais
ligadas à distribuição de renda, ao acesso à educação e ao emprego formal, e à segurança pública. Bairros como
Parelheiros, M’Boi Mirim (zona sul), Cidade Tiradentes e Guaianases (zona leste) a população negra é maioria,
com 57,1%, 56%, 55,4% e 54,6% respectivamente. Em outros bairros, como Pinheiros, Vila Mariana, Santo Amaro
e Lapa, com 7,3%, 7,9%, 14,7% e 15,4%, respectivamente a população negra é minoria. Os bairros em que a
população negra é minoria possui os maiores índices citados acima. O movimento Hip Hop entende, de forma
hegemônica, que é preciso mudar essas realidades. Dentre os meios possíveis é a luta contra o racismo,
demonstrado por esses dados. Disponível em:
<https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/igualdade_racial/arquivos/Relatorio_Final_Virtual.p
df>. Acesso em: 17 jun. 2019.

39
necessários para o fortalecimento em acontecimentos centrais da atuação política, são por vezes
enfraquecidos. Divergências antigas e controvérsias quanto à atuação de um ou outro membro
são também empecilhos que impedem o avanço das proposições.
A representatividade do Fórum, importante para a efetivação das políticas públicas de
Hip Hop de São Paulo, é algo a ser construído e não uma perspectiva já dada. Há um esforço
para disseminação da relevância das discussões e das reuniões, com os objetivos centrais, as
pautas e verbas a serem efetivadas presentes em imagens transmitidas via redes sociais, como
acontece nas reuniões para definir a rubrica do Hip Hop no orçamento da cultura22. Nas reuniões
semanais, poucos estão presentes, mas às vésperas da execução de projetos de políticas
públicas, a presença é relativamente maior e as divergências também podem se acirrar. Outros
encontros precisam ser marcados para dar conta de todas as divergências e resoluções que
surgem nesses momentos.
A rubrica do Hip Hop no orçamento público visa garantir todas as políticas públicas
específicas do movimento. Essa percepção, construída historicamente pela trajetória de alguns
de seus principais membros, como Pirata, Pec Jay e Nando, se dá pela existência de uma disputa
de empresas e organizações da sociedade civil, mas também de representantes das diversas
modalidades culturais que são praticadas em São Paulo, pela repartição de verba pública para
financiamento de atividades em geral. O Fórum também considerou ser importante a
participação do Hip Hop, entre as modalidades culturais que também vão em busca do
orçamento, como o teatro, o circo e o Theatro Municipal.

Uma das coisas que a gente discute é o orçamento. A política brasileira é atrás
do orçamento público. Toda a discussão, pode falar o que quiser, mas é o
orçamento público. O lobby, etc. A gente entendeu a questão do orçamento. E
nessa luta do orçamento público, a gente conseguiu fazer de 50 mil reais, para
x mil pessoas. A gente tá discutindo [hoje] 21 milhões de reais para a periferia.
Isso que é mais louco, é para os artistas da periferia. Agora, isso é muito difícil,
sem você ter vínculo partidário, sem questões menores (R.P. - C - rapper,
entrevista concedida).

Apesar de não possuir a representatividade esperada, o Fórum Hip Hop permanece como
o coletivo conhecido como o principal organizador da política pública da Semana do Hip Hop
e da posterior ampliação dessa política para o Mês do Hip Hop. Embora os seus membros mais
atuantes enfatizem que as ações políticas do Fórum tendem a direcionar para a sustentação de

22
A rubrica do Hip Hop no orçamento será explicado adiante, no item 1.3.

40
políticas públicas de maior duração, a imagem do coletivo tende a ser relacionada
exclusivamente com o Mês. Em material desenvolvido para divulgação do evento “Hip Hop
Politicamente”, por meio da página do Facebook do rapper Pirata23, foram delineados os
conceitos de Mês do Hip Hop e das Casas de Hip Hop.
O Mês é:

Evento realizado pela Secretaria Municipal de Cultura em parceria com o


Movimento Hip Hop, com o objetivo de garantir visibilidade ao Hip Hop e
sua intervenção na cidade e sensibilizar a população no combate ao racismo,
evidenciando o papel da juventude afro-brasileira e da periferia. As
comemorações devem abranger os quatro elementos do Hip Hop (Break,
graffiti, DJ e MC) por meio de atividades como debates, apresentações e
oficinas. Desde 2015, a Semana do Hip Hop teve sua comemoração
expandida, ocorrendo ao longo do mês de março (Fonte: Lei Municipal nº
13.924/2004 – Institui a Semana do Hip Hop no Município de São Paulo).

O Fórum também procura a ampliação, reforma e manutenção das Casas de Cultura Hip
Hop, que são distintas das Casas de Cultura. As Casas de Cultura Hip Hop, localizadas uma em
cada zona da cidade, são:

Equipamentos voltados especialmente e para fomentar a cultura Hip Hop nas


regiões da cidade, valorizando seus elementos característicos – Break, graffiti
MC e DJ – por meio de oficinas, apresentações e rodas de diálogo, devendo
ainda manter a memória deste movimento cultural da cidade e do país, a partir
do acervo bibliográfico e audiovisual para pesquisa e estudo (Fonte: Minuta
do Decreto que dispõe sobre a organização e as atribuições da Secretaria
Municipal de Cultura).

O Fórum surgiu como força política da sociedade civil, mas em parceria com a sociedade
política24. Suas pautas políticas, porém, mudam com o passar de sua história. As pautas políticas
se articulam, os governos passam, o próprio Hip Hop ganha novas dinâmicas e as perspectivas
dos membros do Fórum se alteram. Atualmente, sua principal pauta política, a qual procuram
introduzir na discussão pública por meio do Hip Hop e de ações político-culturais, é apresentada
na frase que consta em seu logo: “contra o genocídio da juventude pobre, preta e periférica”.

23
Disponível em: <https://www.facebook.com/andreluizrapperpirata/videos/619447788407563/>. Acesso em 04
jun. de 2018.
24
Os conceitos de sociedade civil e sociedade política, que formam, para Gramsci, o Estado, serão explicados mais
adiante.

41
1.2. Cultura e política na vida cotidiana

Em uma audiência com a Defensoria Pública para denunciar a falta de efetivação do


orçamento por parte da Secretaria da Cultura de São Paulo e os desmandos realizados pela
Prefeitura, sob gestão João Dória (2017-2018), a fala de um hiphopper, que não se identificou,
chamou a atenção por mencionar a “ciência política” do Fórum. A menção pode se relacionar
como um proceder, adotado desde o surgimento do Fórum, de como lidar com a política
institucional, já que naquele momento seus membros buscaram pressionar judicialmente o
poder executivo para a efetivação das políticas públicas de Hip Hop. Essa ideia, de uma “ciência
política”, no entanto, pode se ampliar para se referir a uma forma de atuação que procura fugir
do uso exclusivo de territórios institucionalizadas. Nos territórios periféricos, por exemplo, os
sujeitos que atuam em rede também se relacionam com os lugares em que praticam suas vidas
cotidianas, principalmente enquanto produtores de Hip Hop.
Para entender essa “ciência política” do Fórum, em relação com os coletivos que o
formam e com o aprendizado do movimento Hip Hop – na tentativa de diálogo com o Estado e
na visão mais ampla da política –, este item do capítulo tece concepções de cultura e política
em conformidade com as narrativas dos sujeitos do Fórum, que estão também presentes em
suas ações e práticas. As narrativas podem ser articuladas com a concepção de cultura como
um modo de vida (Williams, 1992) praticado no cotidiano (Certeau, 2014) e com uma
concepção de política que procura relacionar a pluralidade do social com os antagonismos
políticos, geradores de conflito (Mouffe, 2015).
A cultura se torna, como um impacto do que Hall (1997) chamou de revoluções culturais
globais do final do século XX, central para a (re)produção de significados e concepções de

42
mundo que podem ou não se relacionar com a identidade nacional. As transformações em como
se compreende o mundo também influenciaram a formação de novas subjetividade e de novos
processos de identificação. Dentre as múltiplas possibilidades de identificação presentes no
mundo contemporâneo e fragmentado da cidade de São Paulo (movimentos sociais, religião,
educação, associações de bairro e as identificações territoriais, sindicatos, partidos políticos,
posses de Hip Hop, coletivos, grupos e redes, não só de Hip Hop mas também de outras
modalidades culturais), a identificação manifestada por muitos sujeitos que produzem Hip Hop
em São Paulo foi essencial para a formação de suas subjetividades políticas (Alvarado et al.,
2008).
A identificação é um processo discursivo constituído por dimensões tanto simbólicas e
imaginárias quanto materiais (Hall, 2000). Isso significa que não há eus estáveis para se
constituir e que esse é um processo de articulação e jogo da diferença baseado na contingência
e não em uma identidade fechada. Identidade é o ponto de encontro entre as subjetividades e os
discursos:

Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de encontro, o ponto de


sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos
“interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares
como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os
processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos
quais se pode “falar”. As identidades são, pois, pontos de apego temporário às
posições de sujeito que as práticas discursivas constroem para nós (Hall, 2000,
p. 111-2).

Essa interpelação gerada pelo discurso da identificação fez com que os sujeitos do Fórum
também se autodenominassem, após algum tempo, membros do movimento Hip Hop; se
identificaram por meio de uma cultura indissociável à política, tanto pelo próprio processo de
subjetivação, quanto pelas formas de enfrentar suas realidades. As narrativas de identificação
dos sujeitos com as formas e conteúdos culturais e políticos do Hip Hop estão ligados às
percepções dessas realidades. Três exemplos procuram trazer luz à esse processo de
identificação: narrativa de KL Jay, DJ do Racionais MCs, quando diz em entrevista concedida
ao programa Arte na Periferia do canal Quem Somos Nós do YouTube, sobre a descoberta do
título de um dos álbuns do grupo Public Enemy e das referências do movimento black power
estadunidense; relato do rapper Dexter, produzido no curso Hip Hop na Mesa25, sobre a

25
“Hip Hop na mesa”. Centro de Formação e Pesquisa do SESC São Paulo. 10 Out. de 2017.

43
primeira vez que assistiu um show do Racionais; e o momento que a DJ B.S. começa a gostar
de rap ao escutar uma música que dialogava com a sua vida cotidiana:

Quando a gente soube que o nome do CD do Public Enemy era “É preciso de


uma nação de milhões para nos fazer recuar (It takes a nation millions to hold
us back)”, falei: uau! E os caras pisando na bandeira dos Estados Unidos...
“Quem é esses cara [sic], meu?!” [Cara de espanto, voz baixa]. E ai a gente
viu o Chuck D falava de Malcolm X, que o Malcolm X, o Malcolm X ... E ai
a gente começou a ver que nas gravações do Public Enemy trechos dos
discursos do Malcolm X, ai falou: “Quem é esse cara [sic], mano?! E essas
ideias ai? Como é que a gente nunca soube desse cara? Nas escolas nunca
contaram... É nesse caminho que eu vou”. Você se identifica! (KL Jay no
programa Arte na Periferia, do canal Quem Somos Nós do YouTube.
Colchetes do autor26).

Foi como magia [...] foi a primeira vez que eu vi quatro pretos, vestidos de
preto, falando para dois mil e quinhentos preto, o que é ser preto e como viver
em uma sociedade que não quer o preto (Rapper Dexter, “Hip Hop na Mesa”,
Centro de Formação do Sesc, dia 10 out. 2017, “O rap narra a violência
policial”).

Primeiro que eu não gostava de rap. Eu não entendia. Esses malucos falam
tudo rápido. Gostava de samba. Eu falava “não entendo nada que esses caras
tão falando”. E sempre a música dominante, os manos cantando, porque
também são grupos importantes, como Consciência Humana. Gostaria um dia
que eles ouvissem isso, o quão foram importantes [...]. E eu só parei para ouvir
rap porque, na Cidade Tiradentes, teve uma época que, assim, hoje morre
muito jovem, mas antes a galera, os corpos mesmo. Você anda e sabe que
matou três ali na esquina, dois ali [...]. Uma pessoa que está sempre com a
gente, vai para a escola junto, tá pensando coisas ali junto. No sonho que vai
para uma faculdade, que vai trabalhar, vai ter família. Então eu comecei a
ouvir uma música, porque inclusive eu tenho uma amiga, que eu encontrei ela
recentemente, que ela já curtia rap, mas gostava de samba. E ela falou: “meu,
escuta essa música”. Era aquela música “Lembranças”, do Consciência
Humana. Primeiro que eles cantaram e eu tava entendendo o que eles estavam
dizendo. Que música consciente e falando de uma realidade que eu vivia.
Tinha tudo a ver aquela música com o que a gente tava vivenciando. A gente
perdeu muitos amigos, posso contar nos dedos quantos ficaram na época. E aí
fui me identificando (B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).

Esse é um processo, vale salientar, que acontece de forma distinta dentro das várias
gerações. Os membros mais ativos do Fórum são, em sua maioria, sujeitos que tiveram contato
com o Hip Hop nos anos 1990. A identificação é distinta daquela encontrada nos anos 1980,
uma cultura de rua até então “gringa”, assim como é diferente da que existiu nas gerações de

26
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VB9REiTqZcw>. Acesso em: 30 ago. 2019.

44
2000 e de 2010 do Hip Hop, com seus conflitos históricos e artistas renomados(as) e, de certa
forma, constituídos(as) dentro do movimento. O rapper e MC R.P. conta como foi “desafiado”
a cantar rap.

Eu comecei a fazer rap com 16 anos. Ficava zoando, não tava nem aí [...]
Tinha uma danceteria que a gente ia e eu ficava tirando sarro. Aí, um dia, um
cara me desafiou a cantar. Fui lá e cantei. O cara falou: “escreve uma letra”.
Aí falei: “ah, vou escrever letra?!”. Daí passou um tempo, com 17 anos
comecei a escrever a primeira letra e comecei a escrever as letras para entender
meu cotidiano, porque eu sou pobre, etc. (R.P. - C - rapper, entrevista
concedida).

O rapper e MC G. também fala de seu início como compositor e cantor de rap.

Sou rapper da zona sul de São Paulo. Escrevo letra de rap desde os 12 [anos].
Me juntei com o pessoal de Heliópolis, que era um grupo meio Heliópolis,
meio ABC ali, anos 90. Comecei a estar mais próximo, estar com os caras,
mas não cantava ainda. Passaram-se alguns anos, eu formei um grupo de rap
[...], que é o Alma Sobrevivente (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

G. ainda expõe sua percepção dos anos 90.

E o rap, por mais simples e não letrada que a pessoa seja, pega o moleque na
adolescência, que hoje já é ensino fundamental, né? Quinto ano e tal. Moleque
mal vai na escola, tem problemas mil na vida, ele vai escrevendo e surge as
questões políticas. “Ah, tem uns caras que aparecem na televisão, eu não tenho
em casa, mas vi no bar”. Isso é muito comum dos anos 90, esse tipo de relato
(risos), porque muita gente não tinha televisão. Hoje um barraco de dois
cômodos tem televisão maior do que eu tenho em casa. Aí “pô, tem um cara
na televisão, que fala que ele é prefeito da cidade, que manda na cidade, mas
o que esse cara faz?”. Na própria iniciativa que o moleque vai escrevendo, que
o cara vai escrevendo, ele vai descobrindo coisas (G. - ZS - rapper, entrevista
concedida).

A identificação é acompanhada pela descoberta de potencialidades políticas, por meio do


contatos com significados, valores e práticas da cultura Hip Hop que possuem ressonância com
alguma situação vivida constantemente, um acontecimento, ou história marcante na trajetória
de vida dos sujeitos. Com essa descoberta as potencialidades começam a fazer sentido nas
práticas, que esses significados se materializam e que são ao mesmo tempo formas de produção
cultural: práticas artísticas, eventos, oficinas, reuniões, atos e pressões políticas. Cultura e
política se tornam inseparáveis nas práticas cotidianas dos(as) hiphoppers e são expressões da

45
formação de subjetividades políticas. A percepção dos entraves, obstáculos e possibilidades
existentes na política produz o rompimento da vida privada e dos afetos que aprisionam e
provocam a busca pela socialização política (Alvarado, et. al, 2008). A b-girl N., por exemplo,
relata como passou a buscar soluções para “sua quebrada” com sua participação cada vez mais
ativa no movimento Hip Hop:

Para mim o Hip Hop tem fundamental importância na minha vida. Acho que
foi por ele que eu me despertei em diversos assuntos, principalmente em
quesitos sociais. Foi a partir do breaking, que eu comecei a querer participar
de ações sociais dentro da quebrada. Quando tinha oficinas voluntárias, eu
sempre tava no meio. Eu fiquei muito mais interessada (N. - ZL - b-girl,
entrevista concedida).

Volta-se a perguntar: quando se diz “ciência política”, o que isso significa para os sujeitos
em diálogo com esta pesquisa? São duas concepções inseparáveis que se definem pela atuação
tanto na política institucional, pensada aqui como fonte de financiamento de atividades, eventos
e ações, quanto na política do cotidiano, tida em sua articulação com as especificidades dos
lugares e espaços, sejam eles fonte de estabilidade para o poder, sejam eles os territórios abrigos
(Santos, 2000), que visam ao estabelecimento de relações comunitárias e procuram fugir das
lógicas institucionais de controle e aprisionamento.

E política é tudo [...]. É coisa do próprio sentido da palavra política, que é o


sentido coletivo mesmo. Tudo que tem a ver com política é o coletivo [...]. O
que pega é o entendimento sobre o que é política. As vezes a pessoa faz
política, mas nem menciona a palavra. E ela sabe que tá fazendo, só que tá
fazendo simplesmente. E o que acontece é que a pessoa tá fazendo política
onde ela mora, tá fazendo ali (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

R.P. diz que o poder está no “Parlamento” e no dinheiro público:

[...] tem que disputar o poder. O poder são duas coisas: ele está dentro do
Parlamento, porque toda a estrutura empresarial está no Parlamento, e o poder
é o dinheiro público (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

Mais adiante, o rapper diz que o poder também está presente no cotidiano:

[...] os caras querem ser o representante do povo, mas eles não querem o povo
lá. É assim que funciona. A gente vota em política, não no partido. E isso vai
refletir no cotidiano. Um pouquinho como Foucault lá, os micropoderes, você

46
vai percebendo isso. Vai entrar em conflito toda hora com a gente. Quando
você começa a perceber... “opa, entendi”. As coisas vão acontecendo. Você
vai ver a teoria na prática (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

Pensar o poder ou a política com base nessas duas concepções possui relação com o que
Mouffe (2015) definiu como a relação inseparável entre a política e o político, não como
reprodução de uma dualidade: a primeira é entendida como as diferentes práticas da política
institucional, que a autora chama de “convencional”; o segundo consiste na presença dos
conflitos antagônicos presentes na pluralidade do social. Para Mouffe, em sua crítica ao
liberalismo e à sua hegemonia política, o liberalismo é a expulsão do antagonismo da política,
pois pressupõe as soluções da política somente no plano do consenso universal baseado na
razão, que está na origem da incapacidade de pensar de forma política. O antagonismo da
pluralidade, próprio do político, estaria no campo da irracionalidade e deve ser negado para
atingir o consenso na política.
A autora propõe a política democrática agonística, que junta a natureza conflituosa do
político com a constituição de uma pluralidade democrática. Nesse sentido, seria uma ilusão
pensar que é possível excluir o antagonismo da política – nossa condição ontológica, para a
autora – e estabelecer políticas democráticas homogêneas. Mouffe salienta, ainda, que uma
forma possível da dimensão antagonística é a formação de uma diferenciação identitária, do
tipo “nós”/ “eles”, mas não uma relação amigo/ inimigo. A intenção teórica é a articulação, não
de um ponto de encontro em que ambos os grupos sejam racionalmente incluídos – sempre um
ou vários grupos ficam de fora –, mas os dois lados se reconheçam e compartilhem o mesmo
espaço simbólico. Nesse espaço, o conflito é por vezes “domesticado” por instituições e práticas
estabelecidas e é necessário que se criem novos canais para que vozes dissonantes se
manifestem.
Uma das possibilidades de compreender o movimento dessa relação está, como
mencionado, na articulação entre a atuação na política institucional e a atuação na política da
vida cotidiana. No cotidiano, é possível apreender os antagonismos presentes nos territórios, no
caso, periféricos ou nas bordas da cidade e nas regiões periféricas do centro de São Paulo, que
não estão presentes nos espaços e lugares reconhecidos pela institucionalidade. G. menciona
que “muitas vezes a pessoa faz política sem dizer a palavra”; essa pessoa lida com os conflitos
de seu cotidiano e tenta produzir ações que façam sentido nas comunidades, mas não menciona
a palavra, pois “política está em tudo”, ou nos “micropoderes”, como afirma R.P.. A atuação

47
nas institucionalidades, ao mesmo tempo, permite a esses sujeitos compreender a política
institucional por meio dessa visão da dimensão do político, da presença sempre conflituosa de
interesses plurais que são deixados de fora; um externo que a constitui, mas que,
simultaneamente, exclui o antagonismo e o diálogo com a heterogeneidade do social.
Esses sujeitos, portanto, partiram da cultura para construir novos sentidos para suas vidas
e procuram ressignificar esses sentidos para outros usos, seja pelo próprio sujeito e/ ou coletivo,
seja por aqueles que buscam, no Hip Hop, uma forma de agir e de expressar-se culturalmente –
crianças, adolescentes, jovens, adultos, e os interstícios entre essas faixas etárias. Os
significados e aberturas possíveis que essas ações proporcionam para o movimento Hip Hop e
para as vidas dos membros do Fórum Hip Hop traduzem-se em práticas no cotidiano e nos usos
dos diferentes territórios em que circulam.
Gramsci é um autor marxista e crítico da ortodoxia do marxismo. Desenvolve, dessa
forma, conceitos marxistas fundamentais, como os conceitos de estrutura e superestrutura:
estrutura, formada pelas configurações de classe de determinada sociedade capitalista, mas com
padrões mantidos de dominação econômica da burguesia; e superestrutura, tida como
articulação complexa entre sociedade civil e sociedade política, formando o Estado. Gramsci
critica a visão ortodoxa do marxismo, que consiste na defesa da determinação direta das
superestruturas pelas estruturas econômicas. Para o autor, as sociedades capitalistas avançadas
no sentido civil, industrial e militar possuem complexidades na configuração do Estado, por
meio da sociedade civil e da sociedade política, que devem ser levadas em consideração para
realizar qualquer teoria política. O pensamento gramsciano é, além de teórico, prático e
estratégico.
Gramsci condensa de forma contraditória os dois blocos da superestrutura no seu conceito
de Estado: a sociedade civil, lugar dos movimentos sociais, ONGs, família, igrejas e vida
religiosa, meios de comunicação, etc.; e a sociedade política, lugar dos partidos políticos, dos
poderes executivo, judiciário e legislativo e das forças policiais. Em reuniões marcadas na
Câmara Municipal, com o objetivo de pressionar o poder executivo para a execução de políticas
públicas, o Fórum procura garantir a presença de vereadores(as) de partidos de centro-esquerda
ou esquerda, como PT e Psol, que são oposição ao atual governo (gestão Bruno Covas) e
possuem identificação ideológica com os membros da rede. Esses partidos se posicionam na
defesa do direito à cultura e, no caso, do uso de verba pública para financiamento de atividades
relacionadas à cultura Hip Hop.

48
A rede procura garantir suas demandas por políticas públicas também dentro do Estado.
A hegemonia, tal como apresentada na introdução deste texto, é o processo vivido, constituído
por práticas políticas, culturais, intelectuais, morais e éticas pela conformação do espaço de
poder, realizado e mantido por meio da sedução e da cumplicidade de classes marginalizadas.
Por outro lado, pela característica de ser também o espaço de lutas e conflitos, a hegemonia
também pode se alterar por meio de práticas contra-hegemônicas. A guerra de posições é a
tática política que atua em várias frentes e deve se situar, portanto, na sociedade civil e na
sociedade política.
O Fórum atua em múltiplas frentes políticas para produzir cultura em São Paulo,: ampliar
os laços, buscar relações de apoio e acolhimento capazes de fortalecer as lutas. Essa forma de
atuação poderia estar incluída naquilo que Gramsci (1978) denominou de “guerra de posições”,
diferente da “guerra de manobras ou movimentos”. O autor refere-se à política de uma forma
mais ampla; relaciona guerra de manobras à guerra militar, de destruição do inimigo, e guerra
de posições à luta política, mais complexa e que subordina a guerra de manobras a si. Sem a
luta política, não há coordenação dos exércitos para que ocorra uma guerra de manobras. Não
se trata, porém, de uma luta estanque de um ou outro.
As reuniões públicas realizadas pelo Fórum buscam coordenar, mesmo com divergências,
as táticas com os(as) hiphoppers que comparecem. As táticas, que serão adotadas para
conseguir que determinada demanda seja colocada em prática na política institucional, são
decididas e debatidas em conjunto. As discordâncias podem provocar alguns rachas internos,
de forma que demandas de outros sujeitos do movimento Hip Hop, menos frequentes nas
reuniões do Fórum, podem ser diferentes das demandas pensadas e trazidas pela rede. Mesmo
que o Fórum se paute por demandas anteriores, como o próprio Mês do Hip Hop, esses outros
sujeitos podem não se identificar com elas. Em momentos de desarticulação, como vive o Hip
Hop paulistano na gestão Dória-Covas (iniciada em 2017), os problemas de falta de união na
decisão de demandas e táticas também aumentam.
Demandas como “profissionalização olímpica para o breaking”27 e “Banco do Hip Hop”
foram sugeridas na Audiência de Orçamento, que ocorreu na Câmara Municipal no dia 24 de
novembro de 2018, mas não foram debatidas na reunião do Fórum que ocorreu no dia anterior

27
A inclusão definitiva do breaking como modalidade olímpica só será decidida em 2020, após os Jogos Olímpicos
de Tóquio, que ocorrerão no mesmo ano. Como reportado pela Folha de São Paulo (Castro, Faria, 2019), entre ser
“levado a sério” e “ficar careta”, essa inclusão gera divergências entre b-boys e b-girls. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2019/07/breaking-na-olimpiada-gera-empolgacao-e-resistencia-de-
dancarinos.shtml>. Acesso em: 02 set. 2019.

49
na mesma Câmara. Tom, do Movimento Hip Hop Organizado (MH2O), fundado, dentre outros
sujeitos, por Milton Sales (primeiro produtor do Racionais MC’s), propôs a formação do
“Banco”, mas não foi amplamente discutido. Os membros do Fórum procuram manter certa
coesão nas demandas para que o movimento Hip Hop seja lido pela política institucional como
movimento organizado. A “guerra de posições" é travada, mas nem sempre de forma coesa; na
falta de coesão interna, a “guerra de manobras” se trava de forma debilitada.
Conforme Bianchi (2008), Gramsci defende a diversidade nas táticas utilizadas para
determinados conflitos e afirma que as táticas não se limitam à guerra de posições ou guerra de
movimentos. As táticas são mescladas, renovadas ou desenvolvidas por meio de determinadas
configurações do movimento Hip Hop, por exemplo. De qualquer forma, a luta política é o
“terreno contínuo”, que segue mesmo após uma vitória no campo de batalha. É essa luta
constante que não permite que exista calmaria após a paz – ou após a conquista –, mas faz com
que a luta seja permanente. Pode-se abrir, dessa forma, para as relações com as lutas de
conformação da hegemonia: a luta política é a batalha travada pela hegemonia, pois é articulada
dentro do Estado.
Certeau (2014) apresenta articulações com a dimensão do político que são pertinentes
para a posição tomada até então, e que constitui abordagem importante para esta dissertação: a
distinção entre o sujeito da disciplina e o sujeito que está submetido a ela, mas que não lhe
obedece completamente. As pesquisas que enfatizam a dominação completa dos oprimidos
deixam escapar os detalhes e a heterogeneidade que compõem a bricolagem do cotidiano. O
autor busca pesquisar esse outro lado: as redes de antivigilância, para além dos mecanismos de
disciplina que atuam sobre os sujeitos e que mostram, em contrapartida à disciplina, “maneiras
de fazer” criadas pelos sujeitos comuns no cotidiano. Nos usos que se faz dos espaços para criar
essas “maneiras”, Certeau estabelece a diferença entre dois espaços, nos quais essas forças se
articulam: o espaço da estratégia e o da tática.
A estratégia é “o cálculo das relações de força que se torna possível a partir do momento
em que um sujeito de querer e poder é isolável em um ‘ambiente’” (Certeau, 2014, p. 45). A
estratégia reivindica um “próprio”, que procura controlar uma exterioridade distinta; é
representada por sujeitos de poder, como empresas, Estados-nação e ONGs, ou seja, é o lugar
das instituições que os sustentam e adotam estratégias para exercer seu poder. A tática, pelo
contrário, não possui um próprio, nem o poder de apreender o outro; a tática deve lidar com

50
forças que lhe são estranhas com o objetivo de garantir, por meio de acontecimentos e de
combinações heterogêneas de “maneiras de fazer”,

[...] vitórias do “fraco” sobre o mais “forte” (os poderosos, a doença, a


violência das coisas e de uma ordem etc.), pequenos sucessos, artes de dar
golpes, astúcias de “caçadores”, mobilidade da mão de obra [...] achados que
provocam euforia, tanto poéticos quanto bélicos (Certeau, 2014, p. 46).

Os sujeitos que aderem a táticas não possuem estabilidade de um próprio para estabelecer
estratégias. As táticas tornam-se nômades e, por não possuírem um próprio, o poder é vasto
demais para ser deles, mas justo ao ponto de não permitir seus escapes. Criar um “ambiente
estratégico”, tal como fazem os sujeitos de poder, torna-se uma tarefa de difícil execução. Há
diferenças a serem consideradas quanto a essa dificuldade: Certeau refere-se às produções do
cotidiano realizado pelas classes populares. Isso não significa, no entanto, que esses sujeitos
não sejam capazes de criar momentos de estratégia. A institucionalização de qualquer
movimento social ou cultural brasileiro depende de, no mínimo, momentos de estabilidade para
se firmar como um “próprio”. Com isso, esses movimentos, como no caso do Hip Hop e do
Fórum mais especificamente, situam-se entre um e outro, dependendo das ocasiões e
oportunidades que surgem.
Procura-se, tanto pelas vias de financiamento público e outras parcerias públicas quanto
nas suas relações com os diversos membros da sociedade civil, manter um “próprio”
estratégico, como na existência da sede do Fórum, em um pequeno apartamento no centro de
São Paulo, mas, ao mesmo tempo, não deixar que esse “próprio” o defina como reprodutor das
lógicas que procura combater. Nessa sede, não são acontecem “reuniões”, como no formato
descrito, mas lá se reúnem artistas para produção musical. DJs e MCs se reúnem ou para gravar
uma coletânea de vários artistas, como na coletânea “Da colônia ao genocídio”, ou para gravar
um CD individual, como no caso de G.. A criação desse ambiente “próprio” é um dos frutos da
coordenação de táticas adotadas anteriormente pelo Fórum.
Outro exemplo dessa relação se encontra no Força Ativa. O Coletivo de Esquerda Força
Ativa, coletivo que também compõe o Fórum Hip Hop, ex “posse” Força Ativa, gerencia, desde
os anos 1990, a Biblioteca Comunitária Solano Trindade com o uso de políticas públicas, como
apoio direto da Prefeitura e editais para ampliação e manutenção de acervo. Os membros do
Força Ativa formaram-se em universidades, como PUC-SP e Uninove, e ainda cursam ou
mestrado ou doutorado em outras instituições de Ensino Superior. Mas a formação intelectual

51
e ativista, junto ao movimento Hip Hop, aos movimentos negros e aos marxismos, deram-se
fundamentalmente por meio da biblioteca que mantiveram em seu território, na Cidade
Tiradentes, e dos encontros que realizaram no sentido de uma posse. Nando Comunista, Weber
Góes, Bia Sankofa e Wellington “Lion” Góes são os principais exemplos de intelectuais
formados em parte por universidades, em parte por movimentos culturais e políticos, e em parte
por movimentos intelectuais.
Táticas e astúcias podem ser pensadas para as classes populares se fortalecerem. A
conquista de um “próprio” em uma posição de resistência ao poder estabelecido não é
exatamente desprezível, embora as instabilidades dessas práticas devam ser analisadas. Manter
uma distância estratégica do Estado, ou seja, não ser integrado à ele, assume uma posição
instável no estabelecimento de táticas de fuga. A relação com a UNAM é um exemplo: a maioria
das reuniões semanais do Fórum são realizadas na ocupação do centro da cidade e, em troca,
os membros do Fórum estabelecem uma agenda de oficinas, convidam os dirigentes da
ocupação para participar de eventos e criam outras formas de troca. O movimento de moradia
concorda em estabelecer um diálogo com parte do movimento Hip Hop, desde que o
fortalecimento conjunto exista.
As reuniões semanais, no entanto, não ocorrem sempre na mesma localidade. Conforme
a conjuntura política se altera ou os membros do Fórum decidem agir de forma distinta para
atingir seus objetivos, as reuniões podem ocorrer em outros lugares. Lugares vistos como
neutros, como as salas da Câmara Municipal, destinadas à reunião da sociedade civil e
agendadas por vereadores28, as salas da Galeria Olido e o Centro Cultural de Juventude (CCJ)
Ruth Cardoso, localizado na Vila Cachoeirinha, zona norte da cidade são utilizados para atrair
integrantes do movimento Hip Hop que buscam acesso às políticas públicas.
Como já visto em Certeau (2014), os lugares não assumem posições de neutralidade. Se
o lugar é onde impera o “próprio”, a estabilidade e a distribuição dos corpos, o lugar assume
sua posição. Mas seus usos podem ser distintos: um movimento defende moradia popular no
espaço considerado “centro” da cidade e procura certa estabilidade para gerir a disponibilidade
de moradia para quem a procura. O uso de um lugar como a Câmara Municipal e a Secretaria
de Cultura, qualificados como lugares que, no imaginário popular, não defendem o povo,
assume contradições na atuação política. Deve-se ficar atento, por outro lado, ao fato de que os

28
O Fórum consegue marcar as reuniões na Câmara junto com o vereador do PT, Jair Tatto. Tatto também foi
presidente da Comissão de Orçamento da Câmara nos anos de 2017 e 2018.

52
lugares podem ser transformados em espaços e os espaços transformados em lugares. O jogo,
a trama, o conflito devem ser articulados para que os lugares e os espaços não sejam vistos
como coisas essencialmente definidas, mas como usos distintos que podem alterar a própria
definição do que é lugar ou espaço.

[...] mesmo subjugados, ou até consentindo, muitas vezes [...] indígenas


usavam as leis, as práticas ou as representações que lhes eram impostas pela
força ou pela sedução, para outros fins que não os dos conquistadores. Faziam
com elas outras coisas: subvertiam-nas a partir de dentro – não rejeitando-as
ou transformando-as [...], mas por cem maneiras de emprega-las a serviço de
regras, costumes ou convicções estranhas à colonização da qual não podiam
fugir. Eles metaforizam a ordem dominante: faziam-na funcionar em outro
registro (Certeau, 2014, p. 89).

Isso não significa que os governos se transformem com a atuação política do Hip Hop de
São Paulo ou do Fórum Hip Hop. A pretensão não é essa; a citação de Certeau, em diálogo com
Gramsci, propõe que a ordem dominante não atinja de forma completa os corpos. As ações
culturais do Hip Hop, como forma de criar representações dos modos de vida da periferia, têm,
aqui, um significado diminuto. As “astúcias” ainda podem se referir ao uso silencioso de
mecanismos de dominação por parte dos praticantes para outros fins que não os esperados pelos
fabricantes. O movimento Hip Hop, por meio da atuação do Fórum, procura resistir à ordem
dominante não pela distância a ela, mas no seu trato direto. Procura-se produzir a revanche na
apropriação.
Essa apropriação e a consciência sobre o que seria o Hip Hop de São Paulo e quais os
interesses envolvidos deram ao movimento, aos poucos, seu caráter político. Na década de
1980, as volumosas reuniões na estação de metrô São Bento, no centro de São Paulo, ganharam
notoriedade em todo o território nacional. Esses encontros caracterizaram-se como construção
de laços e solidificação de uma forma de sociabilidade. Os frequentadores da São Bento viram
a potencialidade do que faziam e começaram a se organizar em “posses”.
Com o contato com a cultura Hip Hop, que se alastra desde os Estados Unidos para outros
países, e com a repressão policial, os hiphoppers da São Bento perceberam a potencialidade da
cultura Hip Hop. As “posses”, como ficaram conhecidas em São Paulo, são formas que foram
criadas para discutir sobre os significados políticos do Hip Hop brasileiro (Félix, 2015). As
posses significaram a transição das reuniões da São Bento, propriamente culturais, para a Praça
Roosevelt, e também marcaram a passagem do Hip Hop da década de 1980 para o da década

53
de 1990. Essa passagem significou o reconhecimento do Hip Hop, antes visto somente como
cultura de rua, como uma das representações da cultura negra (Macedo, 2016).
Com a experiência proporcionada pelas reuniões nas “posses”, o Hip Hop assumiu uma
posição de luta contra o racismo, o preconceito, a discriminação racial e a desigualdade social,
formando, assim, um movimento não apenas cultural mas também político. As posses que
ficaram mais conhecidas e que reuniam muitos integrantes foram: Conceitos de Rua, Sindicato
Negro, Aliança Negra e Força Ativa. Com a experiência política, os integrantes das posses
adquiriram conhecimentos e habilidades necessárias para lidar com o Estado e os políticos em
geral.
O Fórum procura dar outros sentidos à essa história de formação de espaços de luta,
reflexão política e produção cultural, própria das “posses” de Hip Hop. Na sua relação
conflituosa com o Estado e com os diversos espaços e lugares da cidade, enxergou, por meio
da atuação de seus principais membros ou frequentadores, possibilidades de garantia de acesso
das juventudes à cultura e à política, de forma a lutar contra o genocídio, o racismo e às
condições de marginalização do movimento Hip Hop.

1.3. Instabilidade na relação com o Estado

O vínculo com o Estado é incerto, ambíguo e movediço, não apenas pelas contradições
presentes no processo histórico de hegemonia do Hip Hop e nas políticas públicas – a demanda
atual do Fórum é uma rubrica específica no orçamento plurianual destinado ao gasto municipal
com cultura – mas também pela instabilidade representada pela conjuntura que atravessa a
política institucional. Como demonstram relatos obtidos na pesquisa de campo, a tensão entre
agentes culturais e políticos oficiais (cargos eleitos e comissionados do Estado) possui uma
história, processo que propiciou a criação de certas habilidades no manejo com o Estado por
parte dos coletivos culturais e, mais especificamente, do Fórum e de seus integrantes.
Com essa experiência adquirida, algumas ações são adotadas, no decorrer do ano, para
que o Hip Hop consiga entrar no orçamento público da cidade: participação em audiências e
pressão marcada por falas ácidas e diretas feitas no púlpito, demonstrando a realidade das
periferias e a necessidade de investimento público, falas que procuram deixar claro aos
vereadores e membros do poder executivo que eles não conseguem enganar membros do
movimento Hip Hop. Nessas manifestações, são denunciadas desigualdades orçamentárias –

54
como o investimento desproporcional em segurança pública e no gasto com dívidas do
município em relação ao orçamento da cultura e, ainda, desigualdades existentes dentro do
próprio orçamento, como a discrepância que se observa entre o que se destina ao Theatro
Municipal e às outras modalidades culturais. Conversas com vereadores(as) mais adeptos e
mais conhecedores das lutas do Hip Hop em seus gabinetes, parcerias efêmeras com outros(as)
artistas de outras modalidades culturais também são ações, entre outras, que são adotadas nessa
tentativa de estabelecer um diálogo com o Estado, diálogo que pode colocar o Hip Hop no
orçamento público da cidade.
Além disso, é necessário garantir a execução das políticas públicas.

[...] discutir leis e efetivar leis não é qualquer coisa. E acabei entendendo
outras coisas do Estado, que tem todas as leis lá. Você tem que correr atrás
desse direito e a lei, como qualquer lei de política pública, você tem que lutar
para ela existir; depois garantir ela passar pelo legislativo; depois precisa
efetivá-la pelo executivo, pela prefeitura, o governo seja qual for; depois
garantir sua participação, porque não adianta nada você não participar; e
depois a manutenção dela (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

O Fórum procura garantir que a juventude periférica participe das políticas públicas de
São Paulo, principalmente na área da cultura, não só como espectadora mas também como
produtora cultural. Esse é um objetivo claro das ações que os(as) principais membros do Fórum
realizam para o movimento Hip Hop e com a participação de parte de seus integrantes. O
caminho descrito por R.P. é recorrente em todo ano em que as discussões sobre orçamento se
iniciam na Câmara Municipal.
Descrita da forma acima, parece que a “entrada” do Hip Hop no orçamento público se
deu de forma simples. Como será visto adiante, no entanto, muitos conflitos surgiram na
procura de representatividade de um movimento tão político e diverso como é o movimento
Hip Hop. Os conflitos intrínsecos ao movimento acentuaram-se na representatividade
institucional e na instabilidade com relação ao Estado.
Ocampo (2012) pesquisou essa relação de coletivos culturais com o Estado no contexto
colombiano e latino-americano. Para a autora essa relação é repleta de sentidos subjetivos
elaborados pelos(as) os(as) produtores(as) culturais, principalmente os(as) jovens: horizonte
ideal do que deveria ser o Estado; atribuições morais (justiça, eficiência, honestidade); emoções
que permitem “visualizar formas de vivenciar, avaliar e conceitualizar relações de poder”
(Ibidem, p. 148), tanto nas experiências encarnadas e habitadas no corpo, quanto nas afetadas

55
pela história e pela cultura; atitudes de desconfiança, suspeita e distanciamento; e uma
combinação de reconhecimento da ação estatal com práticas de resistência em relação à ele.
Processos relacionados à políticas públicas são vistos por essas agrupações como:

[...] espaços políticos de ação estatal onde os e as jovens exerceram seus


direitos de cidadão de interpelar, enriquecer e/ ou resistir as propostas
governamentais, e a empreender ações coletivas com outros atores na defesa
de seus próprios interesses (Ibidem, p. 151).

As narrativas coletadas nas entrevistas em profundidade e nas observações etnográficas


evidenciam que esses sentidos estão em disputa até mesmo dentro do Fórum e entre os(as)
artistas ligados(as) à rede cultural. A pesquisa de Ocampo abre múltiplas interpretações do
contexto de atuação cultural e política dos coletivos culturais. Dentre esses sentidos levantados
pela autora, foi possível relacionar com os experenciados pelo Fórum. Como já apontado
anteriormente, o Estado é visto como possibilidade, desconfiança, espaço de expressão,
conquista e embate político, desafio, distanciamento e ator da violência policial e do genocídio
da juventude negra. A presença do Fórum no Estado visa, apesar de tudo, negociar com as
possibilidades e ao mesmo tempo resistir ao racismo, às violações, negligências e desigualdades
políticas.
O item seguinte tratará do conflito nas políticas públicas. O foco será uma política pública
em relação a outra demanda institucional proposta pelo Fórum, que foi criada pela gestão João
Dória: o Mês de Hip Hop e o Núcleo de Hip Hop. Essas não são, porém, as únicas políticas
públicas debatidas e disputadas. No orçamento da cidade de São Paulo, mais especificamente,
na rubrica do Hip Hop, há referência, fundamentalmente, a três demandas do movimento: o
Mês do Hip Hop, o Território Hip Hop e o investimento nas Casas de Cultura Hip Hop, que são
diferentes das Casas de Cultura e mais específicas que essas. Estas duas últimas políticas
públicas visam garantir a continuidade do Hip Hop durante todo o ano, e não só no mês de
março, quando ocorre o Mês. O Território Hip Hop é uma política similar ao Programa
Vocacional29 e é uma possibilidade de hiphoppers desenvolverem oficinas e workshops dos
elementos do Hip Hop com atuação nos territórios periféricos.

29
Programa Vocacional é uma política pública da Secretaria de Cultura e procura incentivar práticas artístico-
pedagógicas para adolescentes e jovens com arte-educadores contratados pela Prefeitura: “O Programa
Vocacional, existente na cidade de São Paulo desde 2001, tem como objetivo a instauração de processos criativos
emancipatórios por meio de práticas artístico-pedagógicas. Nesse contexto, abrem possibilidades de o indivíduo
se tornar sujeito de seus próprios atos e seus próprios percursos. Para tanto, essas práticas artístico-pedagógicas
buscam a apropriação dos meios e dos modos de produção ao instaurar novas formas de convivência, territórios

56
As Casas, como já citado anteriormente, são lugares de produção de memória do
movimento e lugares apropriados para praticar seus elementos. Apesar de as Casas oferecerem
às comunidades outras oficinas e rodas de conversa sobre outros temas para além do Hip Hop
– mas que, ao mesmo tempo, o constituem, como oficinas de Zumba, técnicas de som e rodas
de conversa sobre feminismo negro e racismo –, na prática, elas acabam assumindo, muitas
vezes, as mesmas funções que uma Casa de Cultura geralmente adota. O diferencial da Casa de
Cultura Hip Hop é ser uma referência simbólica para as juventudes e demais praticantes da
cultura, além de produzir memória dos acontecimentos que construíram a história do
movimento Hip Hop de São Paulo.
Embora a proposta do movimento tenha sido a construção de uma estrutura nova para as
Casas, o Estado reformou estruturas antigas para abrigar as Casas de Hip Hop. Algumas obras,
porém, não foram executadas. O Hip Hop de São Paulo pode contar com as Casas de Hip Hop
Leste, Diadema (se considerar a grande São Paulo) e Sul – a zona sul possui duas: uma de
iniciativa pública e outra, privada. Espera-se a conclusão da Noroeste, no bairro de Perus e que
o poder executivo cumpra os orçamentos na construção das Casas Centro, Norte e Oeste. Nas
audiências públicas, os membros do Fórum reiteram essas políticas e pressionam para que sejam
executadas.

1.3.1. Conflito nas políticas públicas: o Mês e o Núcleo de Hip Hop.

Durante uma série de governos da administração municipal, o Fórum permaneceu com as


tentativas de diálogo com o orçamento público da cidade. O coletivo passou pelos governos de
José Serra (2005-06), Gilberto Kassab (2006-12), Fernando Haddad (2013-16), João Dória
(2017-18) e Bruno Covas (2018-) e deu continuidade à sua relação com as políticas públicas,
com ganhos e perdas nesses diversos ciclos. Com exceção de Haddad, do Partido dos
Trabalhadores (PT), mais ligado, no espectro político, à centro-esquerda, e Gilberto Kassab, do
Democratas (DEM), partido conservador de direita, os outros três prefeitos foram eleitos pelo
Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB), partido ligado historicamente à centro-direita.
Durante o governo de Haddad, a aproximação com o governo foi quase óbvia: é difícil encontrar
um(a) produtor(a) cultural engajada(o) vinculado(a) às ideologias de direita nas periferias.

de aprendizado e de transformação mútua”. Disponível em:


https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/dec/formacao/vocacional/index.php?p=7548. Acesso
em: 05 nov. 2018.

57
Essa aproximação proporcionou reconhecimento para o movimento, o que significou
mudanças relevantes, e ao mesmo tempo evidenciou a instabilidade: o movimento Hip Hop
conquistou hegemonia nas políticas públicas (Borelli et al., 2012) da cultura de periferia, mas
não passou a ter grandes garantias de que suas políticas seriam melhor executadas. Embora as
políticas públicas de cultura possuem dificuldades históricas de acesso, G. relata uma das
formas de reconhecimento que o ex-Prefeito Haddad sinalizou em uma declaração pública sobre
o Mês do Hip Hop:

Políticas públicas de cultura é de difícil acesso, porque tem várias questões


alí, que a gente não pode afirmar, mas que simplesmente acontecem, que é
privilegiar quem é mais próximo. Mas é o jogo político também. E é muito
difícil você consertar isso [...]. [No] Mês do Hip Hop, o movimento se reuni,
rola uma chamada geral que cola quem for, assim como no [...] Fórum Hip
Hop MSP. Cola quem quiser, quem for do Hip Hop, e a gente faz junto a
parada. Já tá rolando há vários anos já. Desde 2007. É uma política pública
importante, porque serve como uma mostra de Hip Hop na cidade inteira. O
Haddad foi no Mês de Hip Hop 2015 e ele declarou que pegou a forma do Mês
do Hip Hop para fazer a Virada Cultural. Ele pegou a forma (G. - ZS - rapper,
entrevista concedida).

A instabilidade da relação com o Estado ficou evidente com a mudança do governo do


município, de Haddad, para o conservador e liberal João Dória. Essa relação oscilou em função
da vontade política desses governos. Na ocasião da realização de uma das conquistas políticas
do Fórum – o Mês do Hip Hop, no qual foram realizadas inúmeras atividades e eventos
relacionados aos quatro elementos do Hip Hop, além de oficinas, rodas de conversa e discussão
sobre temas, como “políticas públicas”, “gênero e sexualidade” e “genocídio da população
pobre, preta e periférica” –, a função de coordenação do Fórum foi substituída pela do Núcleo
de Hip Hop de São Paulo, órgão criado no início da gestão de André Sturm na Secretaria de
Cultura, com poder de assessoria à Secretaria e um antigo desejo do próprio Fórum para facilitar
a produção e a gestão dos eventos.
O Núcleo foi considerado uma conquista neste sentido: os membros do Fórum e de outros
coletivos poderiam colocar uma pessoa de confiança do movimento dentro da estrutura
institucional. Os membros do movimento Hip Hop teriam facilidade para dialogar com o Estado
e as dificuldades que o movimento tem para se organizar seriam diminuídas. O representante
do Núcleo buscaria as demandas, os projetos e as documentações e traria para a Secretaria de
Cultura. O embate político seria direto o bastante e qualquer secretário que entrasse no governo
não teria escolha a não ser aderir às demandas do movimento. Esse era o plano. Mas esse não

58
passou de um futuro possível. Logo que o Núcleo foi integrado pela Secretaria, o governo Dória
assumiu a Prefeitura e cooptou as articulações do movimento por meio do Núcleo Hip Hop. O
secretário nomeou como representante do Núcleo Hip Hop uma figura não indicada pelo
movimento, o MC Eazy Jay.
Essa mudança provocou rebaixamento dos cachês de mais de mil artistas que
participariam dos eventos. A verba foi concentrada em grandes shows e métodos desconhecidos
de seletividade de microempresas foram adotados. Na escolha das empresas, o Fórum abriu a
oportunidade para os artistas detentores de microempresas se autorrepresentarem. A
autorrepresentação seria correspondida com um cachê adicional relativo à produção de eventos.
Além disso, as imagens das empresas de cada artista seriam disseminadas.
Os eventos produzidos pelo Núcleo e que tinham o objetivo de celebrar (os eventos
principais chamavam-se “Celebration Hip Hop”) a “old school”, ou seja, quem fez história na
cultura Hip Hop de São Paulo, obtiveram três edições desde 2017. Artistas em ascensão na cena
hegemônica também foram convidados a participar, mas o rap foi o elemento privilegiado.
Uma das críticas do Fórum, apresentada publicamente em audiências públicas na Câmara
Municipal e em reuniões com membros da Secretaria de Cultura, entre eles, o próprio secretário,
recaiu sobre a concentração na “old school”, enquanto a “new school” não recebia visibilidade
e se tornava, cotidianamente, vítima das ações truculentas da polícia ou se encontrava envolvida
em atividades ilícitas, principalmente vinculadas ao mundo do crime.
A cultura comum e mais local, defendida pelo Fórum por meio da recepção das demandas
do movimento, do trabalho intermediário – o de ler e interpretar orçamentos e leis, e a
consequente repassagem desse conhecimento para o movimento Hip Hop e, no último estágio,
para as pessoas que participariam das políticas públicas – não foi privilegiada nesse processo.
No entanto, eventos ocorreram nos territórios, mesmo com baixa participação e o rebaixamento
dos cachês. Muitos(as) hip hoppers não tiveram escolha a não ser assinar com o Núcleo e ganhar
o cachê pequeno, porém existente. A cooptação também pode se dar na manutenção e
reprodução que leva os produtores culturais, pelas próprias condições de sobrevivência, a não
possuírem outra alternativa a não ser aceitar o que lhes é oferecido, já que esses sujeitos são
trabalhadores da cultura. Outras alternativas de trabalho podem significar menos participação
em atividades e discussões que envolvem Hip Hop e, até mesmo, deixar em segundo plano a
prática artística.

59
Essas clivagens impostas pela administração do Núcleo do Hip Hop – que se revelam,
por exemplo, na escolha arbitrária entre quem deve ou não participar das atividades; que
impõem àquelas pessoas que se encontram em posições instáveis no mercado de trabalho
nenhuma outra alternativa a não ser a participação no que lhes é apresentado, e a divisão tanto
entre “old school” e “new school” quanto entre artistas de suposta maior ou menor qualidade –
relacionam-se com as distinções levantadas por Williams (1989), que têm por base a falta de
produção, acesso e transmissão de uma cultura comum. A garantia de recursos – não só
econômicos, mas políticos e intelectuais – é fundamental para a produção de uma cultura
democrática e para todos.
Durante as reuniões, protestos, atos e eventos, o Fórum deixou clara a sua posição em
relação à gestão do Núcleo de Hip Hop:

[...] o que temos que fazer é garantir o acesso à essas políticas públicas da
cidade, embora muitos confundem o Fórum com partido político (N. C. – ZL,
ex-MC e educador, no curso “Da eugenia ao genocídio”);

[...] o que eles [do Núcleo e da Secretaria de Cultura] querem é manter aquela
panela30 entre artistas e as empresas que querem (W.S. – ZN – rapper, durante
reunião semanal do Fórum, na UNAM);

[...] não tem essa de falar que um é melhor que o outro, porque ninguém aqui
é melhor que ninguém e todos são do Hip Hop; aqui a gente é povo (R.P. – C
– rapper, em um pronunciamento na Câmara Municipal).

Embora a articulação, principalmente nos territórios periféricos das zonas da cidade seja
uma dificuldade, a qual deveria ser solucionada nas constantes reuniões, nem sempre tão
frequentadas, o objetivo do Fórum é garantir esse acesso das pessoas às políticas públicas
culturais da cidade, de forma que a cultura se dissemine, a produção do conhecimento se dê não
só sobre ela mas também sobre as questões que envolvem a cidade de São Paulo, e a política
mais ampla e a cultura sejam expostas às mudanças em contato com essa mesma disseminação.

30
Termo usado como referência a uma concentração, geralmente injusta, de pessoas, poder, dinheiro, entre outras
coisas, em posse de um grupo ou a uma desigualdade muito acentuada em relação a um ou outros grupos. No caso,
faz-se alusão a declarações públicas feitas por hiphoppers, como as que surgiram na reunião geral de chamamento
da nova gestão da Secretaria de Cultura, realizada no dia 04 de fevereiro de 2019, em que se referiram ao evento
“Hip Hop Celebration” como um evento custoso para o orçamento de Hip Hop, o que comprometeu o gasto com
o Mês, e que se tornou um “Hip Hop Panelation”, ou seja, concentrado nos(as) mesmos(as) artistas, ditos
“melhores” e com mais condição de apresentar um trabalho “de qualidade”, os quais, em oito edições, no centro
da cidade (Praça República), se apresentaram com certa frequência e com privilégio dado pela produção dos
eventos para os elementos MC e DJ.

60
A fala pública do, à época, secretário de cultura sobre o Mês do Hip Hop, no entanto,
apresenta transparência, diálogo, abrangência e a relevância que sua gestão deu ao Hip Hop:

“Iniciamos as conversas com o segmento ainda no ano passado e pudemos


construir essa proposta de celebração refletindo a forma como os movimentos
acontecem ao longo do ano na cidade, incluindo artistas locais e outros que o
público das regiões gostaria de assistir. Esta é uma oportunidade de
valorização das vozes de todos os cantos da cidade”, ressalta o secretário
municipal de Cultura, André Sturm (Secretaria Especial de Comunicação da
Prefeitura de São Paulo, 2018)31.

O discurso do secretário mascara essas rupturas e desarticulações impostas pelo governo.


O governo não só desarticulou como também alterou o projeto apresentado pelo movimento
Hip Hop, com o Fórum organizado na ponta da lança, e usou ideias e decisões que foram
apresentadas nas reuniões gerais realizadas entre Fórum, coletivos de Hip Hop e zonas de São
Paulo organizadas. O representante do Núcleo, presente nessas reuniões, produziu uma
articulação própria e rompeu com a união política do Hip Hop naquele momento. Em meio ao
auge dos conflitos relacionados à produção do Mês do Hip Hop 2018 – que ocorre geralmente
em março –, em janeiro de 2018, o Fórum lançou uma música nas redes sociais (blog32, página
do Facebook33 e canal na plataforma SoundCloud34) que traduz esse conflito: “A culpa é do
Fórum”.
Os rappers Gile, Tito e Pirata uniram-se para produzir uma música que falasse justamente
da confusão que os opositores fazem ao colocar a culpa somente no Fórum Hip Hop. O Fórum
não é isento de “culpa” – para continuar com as palavras do título da música –, mas o ataque
exclusivo a um grupo da sociedade civil limita a crítica ao Estado e aos governos que procuram
sabotar as demandas do movimento Hip Hop. Foi com essa indignação com os acontecimentos,
conflitos e a falta de execução do orçamento da cidade de São Paulo, conforme previsto em lei,
que os artistas produziram um rap com batidas fortes e com uma melodia que passa a percepção
de perseguição, (ânsia por acusar/ achar culpado) e denúncia. Os rappers escreveram a seguinte
letra:

31
Disponível em: http://www.capital.sp.gov.br/noticia/mes-do-hip-hop-abre-espaco-para-artistas-de-toda-a-
cidade-de-sao-paulo. Acesso em 28 out. 2018.
32
Disponível em: http://www.forumhiphopmsp.com.br/2018/01/e-culpa-do-forum-kizzy-gile-tito-e.html. Acesso
em 28 out. 2018.
33
Disponível em: https://www.facebook.com/forumdehiphopmunicipaldesaopaulo/. Acesso em 28 out. 2018.
34
Disponível em: https://soundcloud.com/estudio-consp/a-culpa-e-do-forum-kizzy-gile-tito-e-rapper-pirata.
Acesso em 28 out. 2018.

61
(Rapper Pirata) É culpa do Fórum, né niggaz
É culpa do Fórum (repetição rápida e crescente)

(Gile) A culpa é do faro, tem cheiro de esnobe,


Tem cheiro de otário
Desejos confusos, prioritário, confusos, hilários
Caráter rasos, não raros.
A culpa é de quem? A culpa é da dedicação, meu caro.
Sorrisos baratos, deslealdade, objetivos claros
Aqui nóis, nossa teoria da evolução
(...) o bangue bengue.
Porém, porém...

A culpa é do Fórum!

(Tito) A culpa é do Fórum, esquemas arquitetados/ Faz a panela, só canta aliados (pow
pow pow pow)
Simetria bilateral, serviço do capital/ Reproduz a opressão, sendo serviçal
Por baixo dos panos, Hip Hop em off/ Por cima dos manos, motherfucker sit, don’t stop!
A história do Hip Hop em São Paulo/ Antes do Fórum e depois do Fórum
Quem meteu o dedo na cara do poder?/ Faz te ter power.
Não se resume em um Mês/ Esse clichê sem noção vindo outra vez
Acorda meu povo! O Hip Hop é ano todo!/ Vamos incentivar a molecada, cêis não soltam
o osso
Querem transformar uma parada muito loca em negócio! (dim dim)/ Vai dá picaretagem
e sócios (Há há há)
Sistema é foda, vão amansando/ Envenenando, todos abraçando
Nóis é zika e estamos todos tumultuando!/ Que cara é essa? Estamos trabalhando.
A culpa é do Fórum!

(De quem?) A culpa é do Fórum!

62
(Rapper Pirata) No Brasil é só piada/ Veja só! Quem rouba? Quem mata? É Marcola?
É outros caras, e a gente, a gente sempre vai culpando/ Agora veja só o que os caras tá
falando
O Temer presidente, indecente, e nos golpeou
É culpa do Fórum!
O Cristo ainda nessa porra ainda não voltou
É culpa do Fórum!
Trump: merda, os países africano ele chamou
É culpa do Fórum!
PM alckmista mata mais do que febre amarela/ Morte nas pistas
É culpa do Fórum!
Negligências, chacinas, prisões de pretos na mira/ Eles ceifam vidas na periferia
É culpa do Fórum!
Muitos perderam a alma periférica/ Zé-povinhagem que só ferra o Hip Hop
É culpa do Fórum!
A direita pede votos e mata pobre/ Com uma cristã seita
É culpa do Fórum!
Lula condenado/ Vinte anos de direitos sociais congelado
É culpa do Fórum!
Nas ruas está declarado sangue, guerra declarada/ E contra todos, um contra um
No falso conflito se mantém/ E a chacina da era genocídio
É culpa do Fórum!
Desonestidades, falsas verdades (falso pá carai)/ Verdades, no Hip Hop já não há, na
cidade
É culpa do Fórum!

Os rappers lançam mão de hipérboles e piadas para afetar ouvintes e trazê-los para o
conteúdo da letra. O efeito só pode ser o riso: “No Brasil é só piada”. As ironias são criadas
para que se perceba o absurdo que é acusar o Fórum de ser o grande e único culpado pelo
desmantelamento das políticas públicas de Hip Hop enquanto o governo segue com seus
interesses de desarticulação do movimento. Os artistas procuram se conectar às pessoas também

63
por meio de reações somáticas: o riso, a melodia de perseguição, a batida marcante e os
elementos dissonantes. A música ganha, dessa forma, um conteúdo político não só pelas
relações que faz entre problemas sociopolíticos e a falta de percepção dos “verdadeiros”
culpados pela desunião do Hip Hop mas também pela forma que afeta o ouvinte. A música
caracteriza-se pela tentativa de unir forma e conteúdo e articular as relações entre cultura e
política, características próprias do rap (D’Andrea, 2013).
Autores como Gessa (2010) defendem que, embora o rap possua sua dimensão poética,
não deve nem ser considerado exclusivamente sob essa perspectiva nem ter a poesia separada
dos seus elementos sonoros. O rap é um gênero que congrega essas duas dimensões da música
popular e mantém seu aspecto híbrido.

O rap evidencia como as palavras tornam-se um entre outros elementos em


jogo no momento da criação e da performance poéticas – todos cruciais para
a sua realização e recepção literárias –, o que implica em considerar que a
poeticidade do rap, como um gênero oral (e multimodal), não reside apenas
em sua realidade verbal, mas na atualização em performance de música, texto
e voz (Gessa, 2010, p. 6).

O Fórum usa, nesse sentido, o rap como expressão subjetiva e forma de atuação política,
mas também como forma de conscientização sobre as situações em que vive o movimento Hip
Hop paulistano. Quando a política não é vinculada à pressão de grupos de interesses, fora ou
dentro do que é visto como Estado, o Hip Hop, como expressa a música do Fórum, produz
cultura com o objetivo de comunicar e traduzir os conflitos, problemas e angústias de seus(suas)
ouvintes. O Fórum, como já mencionado, participa de ações reivindicativas, tem presença em
instituições vinculadas à instância municipal, produz eventos que se comprometem com a ideia
de união dos elementos da cultura Hip Hop, relaciona-se com o campo da educação e também
produz conhecimento por meio do rap. O Fórum transita, portanto, entre práticas que seriam
vistas como propriamente políticas e práticas de produção cultural, como produção artística e
de conhecimento.
Há um cuidado, entretanto, de separação entre o que é feito em prol do movimento e o
que é feito em prol dos artistas do Fórum, principalmente em relação às políticas públicas
custeadas pela rubrica específica no orçamento público e que visam ao maior acesso possível
do movimento Hip Hop de São Paulo. Com a conquista de editais, porém, os artistas e outros
coletivos que integram o Fórum e desempenham atividades de produção musical e, de forma
mais ampla, cultural são beneficiados com as verbas adquiridas. Os editais dão maior autonomia

64
para a produção de atividades de coletivos de cultura, e, na mesma dinâmica, estão inseridos os
seus beneficiados: os artistas que possuem relação com os coletivos que compõem o Fórum e
dão sustentação a ele com a preocupação de estabelecer uma relação construtiva com a
população dos territórios nos quais os eventos são sediados. Dessa forma, os beneficiados são
os artistas mais próximos do Fórum, pois há uma relação de confiança de uns com os outros
para que os eventos sejam efetivamente feitos conforme o previsto.
Como diz R.P., nas ações do Fórum que envolvem editais, oficinas e outros tipos de
formação, “muita gente mais trabalha do que recebe pelo seu trabalho [...]. Boa parte do Fórum,
todos são desempregados. Essa é a parte mais bruta, realidade latente toda hora” (R.P. - C -
rapper, entrevista concedida). Apesar de desenvolverem atividades com financiamento público
parcial, a b-girl N. defende que:

Para a gente conseguir fazer o pobre circular dentro do Estado tem que ser via
edital. Quem tem a grana é eles e a gente tirar do próprio bolso, é válido, mas
a gente não consegue atingir todas as zonas [...]. Então é equipamento, você
tem que valorizar o trampo do artista que tá colando com você. Tirar do
próprio bolso é falho (N. - ZL - b-girl, entrevista concedida).

As remunerações desses artistas podem ser vistas, por um lado, como oportunidades de
um tipo de trabalho menos espoliativo, se comparado ao trabalho assalariado, e, por outro lado,
como abertura para mercantilização da cultura e cooptação da política pelo poder. Porém o
discurso do Fórum é enfático para contestar a segunda assertiva: o Estado lida com a receita
dos impostos do povo e deve garantir, em retorno, o que é de direito para quem produz cultura.
O discurso refere-se à luta política no ponto em que ela é, para o Fórum, disputada: a política
de repartição, sempre desigual, do orçamento público da cidade.
Na segunda audiência para o orçamento de 2018, que ocorreu em 21 de novembro de
2017, muitas modalidades culturais estavam presentes e cada uma possuía uma demanda, uma
história, uma pressão, uma colocação e, quase sempre, uma ou mais verdades a serem ditas e
transmitidas aos vereadores e aos presentes. Entre essas modalidades, estavam os representantes
de circo, teatro, dança, cultura dos idosos, Hip Hop (majoritariamente representado pelo
Fórum), cultura de periferia (pensada de forma mais global pelo coletivo Movimento Cultural
das Periferias – o Movimento Ermelino Matarazzo estava em peso), forró e orquestra. As falas
direcionavam-se para a resistência ao desmonte da cultura e, como já mencionado, ao destino
da arrecadação. Importou menos o que cada representante disse no palanque – dezenas falaram

65
e defenderam os gastos. O discurso que foi assumido e a visão geral e talvez mais concreta que
estava em debate foi esta: a PL686/2017 previa orçamento de R$ 56,28 bilhões, ao passo que,
para a cultura, estavam previstos R$ 437 milhões.
A Orquestra Sinfônica Municipal, que se apresenta no Theatro Municipal, recebeu R$
140 milhões, aumento de 14% em comparação com o ano anterior. No momento de sua fala, o
maestro Roberto Minczuk mencionou o quão importante é a música em nossa vida, contou um
pouco de sua história e disse que as apresentações da orquestra já estavam iniciadas. Cantaram
e tocaram Aleluia, de Friedrich Handel. Enquanto tocavam, os membros do Fórum ficaram
irritados. Na fala seguinte, um representante do teatro da cidade disse aos músicos e à orquestra:
“eu me emociono muito quando vocês tocam, mas eu gostaria que estivéssemos juntos; não
quero o orçamento de R$ 140 milhões destinados à música, mas venham dialogar conosco”.
Se, por um lado, é possível atuar nas brechas do Estado e conquistar políticas públicas de
forma contínua com os políticos que estão momentaneamente nas gestões em que essas
conquistas são estabelecidas, como citado acima, por outro lado, as instabilidades criadas pela
gestão Dória demonstram a fragilidade e o campo movediço que esse tipo de atuação política
proporciona para a área da cultura. A aparente continuidade, demonstrada pelo poder público,
de diálogo com o movimento Hip Hop, presente de forma mais ou menos autônoma na
sociedade civil, reduz-se à descontinuidade; a perspectiva para trabalho na área da cultura é
dissolvida rapidamente em determinadas gestões. Tal atuação política expressa uma série de
inseguranças, não só dentro do Fórum, mas nas possibilidades de um campo, o da cultura, e que
se apresenta nas dificuldades de batalhar com as hegemonias e lutar contra sua manutenção.
No início de 2019, o Prefeito Bruno Covas, que assumiu a prefeitura após João Dória
deixar o cargo de Prefeito para fazer campanha para Governador, nomeou Alexandre Youssef
para substituir André Sturm. Youssef, produtor cultural do Baixa Augusta, mestre em Filosofia
Política pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), representou, supostamente, uma
importante curva progressista do governo municipal. O novo secretário indicou Xis, conhecido
rapper e MC da geração do final dos anos 80, para ocupar a “cadeira Hip Hop” na Secretaria
de Cultura. Para seguir em diante com os andamentos do Mês do Hip Hop, Xis convocou uma
reunião com o movimento Hip Hop. A reunião dividiu-se em duas, nos dias 1 e 4 de fevereiro
de 2019: uma para os elementos breaking e graffiti; outra para DJs e MCs. A expectativa fez
lotar o teatro da Galeria Olido, numa reunião, que durou cerca de quatro horas, com

66
pronunciamentos e desabafos de muitos(as) hiphoppers sobre a situação das políticas públicas
de Hip Hop e, mais especificamente, sobre o Mês.
Xis propôs-se a escutar todos(as), ampliar o diálogo, tanto com hiphoppers
“estabelecidos” quanto com mulheres e membros da comunidade LGBT, e solucionar alguns
problemas que foram levantados sobre a gestão anterior da Secretaria, como os vinculados à
produção de eventos, a empresas e privilégios. Sharylaine, uma das primeiras mulheres a surgir
na cena do Hip Hop, lugar, a princípio, quase exclusivo aos homens, compareceu e falou da
importância das políticas públicas e da lei da Semana do Hip Hop – que se transformou em Mês
– para o movimento de São Paulo. A MC, entretanto, disse que já realizavam a Semana desde
2000, por meio da ONG Ação Educativa. Fez questão de ressaltar: “tá faltando as minas do Hip
Hop” e “a união dos homens e das mulheres só podem fortalecer ainda mais o Hip Hop”. Foi
aplaudida de pé por todas as mulheres. Em sua resposta a Sharylaine, Xis reiterou que a
diversidade e a igualdade seriam valores da gestão da cultura. Xis pretendia inserir as mulheres
e a população LGBT no Hip Hop da cidade de forma majoritária.
O novo assessor do Hip Hop convocou várias reuniões a serem realizadas nas diferentes
regiões. Em meio às reuniões, a Secretaria lançou um chamamento, na sua plataforma on-line,
convidando os hiphoppers a se inscreverem e participarem de uma concorrência, que
determinaria a escolha da Secretaria sobre quem seriam os participantes do evento. O
movimento, em geral, e o Fórum Hip Hop criticaram, de forma veemente, Xis e a Secretaria.
Nas redes sociais, foram contra o “edital”. Esse convite recebeu o nome de “edital” e “cadastro”
pelo movimento, em vez de “chamamento”, como queria a Secretaria, pela semelhança com um
processo da seleção dos(as) participantes, com critérios desconhecidos. A Secretaria foi acusada
de reproduzir as desigualdades entre as fronteiras conhecido(a)/ desconhecido(a) ou melhor/
pior artista.
A revolta também se deu pela história de organização do Mês do Hip Hop, que sempre
foi realizada pelo movimento. A organização do Mês do Hip Hop é outro canal de participação
do Hip Hop e de demais organizações da sociedade civil, cabendo ao poder público apenas
auxiliar e executar35 a sua produção. No entanto, a gestão do Núcleo passou de uma gestão com

35
O texto da lei municipal nº 14.485/2007, que inclui a Semana do Hip Hop na segunda quinzena de março no
calendário de eventos de São Paulo, diz o seguinte sobre a Semana, no inciso LIX do artigo 7º: “a Semana do Hip
Hop, incluindo obrigatoriamente o dia 21 de março, quando se comemora o Dia Internacional de Luta Contra a
Discriminação Racial, devendo as comemorações referidas neste inciso contar com representantes do movimento
Hip Hop, em suas quatro manifestações: o Break, o Graffiti, o DJ e o Bboys; ativistas de organizações não-
governamentais que desenvolvam trabalhos sociais voltados para o combate ao racismo; e alunos da rede

67
conflitos internos do movimento para uma gestão que negou a participação e a gestão autônoma
dos antagonismos e impôs uma forma de política pública à organização do evento. A prefeitura
exerceu seu poder e o Mês do Hip Hop seguiu com essa forma imposta pelo poder público. Os
eventos aconteceram, mesmo que abaixo da expectativa criada pelo movimento.

1.3.2. Institucionalização e autonomia

As concepções de política do Fórum, conforme visto no item anterior, passam pelas


relações entre institucionalidades e cotidiano dos seus principais membros e participantes. A
institucionalidade é relevante para a trajetória do coletivo por se definir, também, pela pauta
das políticas públicas de Hip Hop. O acesso às políticas públicas, com fonte exclusiva do
Estado, é um dos objetivos do Fórum, e sua atuação nesse sentido confere ao movimento Hip
Hop, como um todo, canais de participação e de geração de trabalho, oportunidades de
expressão cultural, de lazer e de produção de conhecimento. Todos os procedimentos e energias
despendidas nas reuniões com políticos dos poderes legislativo e executivo, audiências
públicas, reuniões para organizar o Mês do Hip Hop, pressão nas redes sociais, enfim, todas as
ações dentro das institucionalidades visam à garantia do acesso à cultura por meio das políticas
públicas.
As ações do Fórum, no entanto, não estão somente nos lugares institucionais, mas
encontram-se também nos “territórios abrigos”, possibilidades presentes nos territórios
periféricos e nos quais as revanches dos excluídos do processo de globalização se configuram
(Santos, 2000). Essas ações, vistas como fruto das reflexões desses sujeitos com base em seus
cotidianos e as relações comunitárias que estabelecem em seus lugares de pertença, são
possibilidades vistas por esta pesquisa como mais autônomas em relação às que ocorrem nos
lugares institucionalizados. Segundo com Mouffe (2015), nas autonomias, está presente a
dimensão do político, na qual se encontram os antagonismos, os afetos e os processos de
constituição das identidades políticas. Em rede, os sujeitos produzem relações com associações

municipal de ensino, podendo ser estendidas aos demais munícipes, compreendendo, entre outras, atividades
culturais que divulguem o Hip Hop e que desenvolvam a compreensão sobre o papel da juventude afro-brasileira
e da periferia, rompendo preconceitos e ideias estereotipadas, e os Poderes Executivo e Legislativo deverão envidar
esforços no sentido de colaborar com os representantes do Movimento Hip Hop e organizações não-
governamentais que tratam da luta anti-racismo, na organização e realização das atividades que compõem o
evento”. Disponível em: < http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/lei-20000-de-19-de-julho-de-2007>. Acesso
em 06 jun. 2019.

68
de bairro, com outros coletivos de Hip Hop e de outras modalidades culturais e usam os espaços
culturais e outros espaços urbanos para realização de atividades, rodas de conversa/ debates,
oficinas, pocket shows, competições de breaking e graffiti.
Essa relação é tênue e repleta de conflitos. Entre a institucionalização e a autonomia,
existem diversos campos movediços, em que se encontram armadilhas com as quais se deve
tomar cuidado. Os movimentos sociais da década de 80, por exemplo, passaram por um
processo de institucionalização, principalmente no período posterior à Constituição de 1988,
que buscou trazer as pautas e as estruturas de reprodução dos movimentos para dentro do
orçamento, ou seja, do financiamento público, o que só seria possível com a aproximação do
Estado (Feltran, 2004). Essa armadilha provocou um processo de desmobilização das pautas
reivindicativas, principalmente daquelas relacionadas ao acesso aos direitos sociais, como o de
moradia, saúde, educação, cultura, etc.
A inserção de um coletivo de Hip Hop nesse contexto – apesar dos aprendizados dos
sujeitos envolvidos e da história desse movimento, que chegou a se reunir com o ex-presidente
Lula em 2004 (Buzo, 2013) para tratar da relevância do Hip Hop para a juventude e para a
mobilização política – significa mexer em um vespeiro. Ao adentrar nos espaços institucionais
e frequentá-los, não obstante a legitimidade da luta por direitos, pode-se aderir a práticas que
antes eram combatidas. Por outro lado, é somente com a institucionalização que se ocupa
lugares hegemônicos e se disputa a hegemonia, no caso, das políticas públicas na área da
cultura. Mais uma vez, por mais que o acesso à cultura seja uma luta legítima, por vezes, as
práticas adotadas podem servir justamente ao seu contrário: a luta pelo acesso às políticas
públicas pode levar exatamente à falta de acesso a elas. A busca por grandezas hegemônicas
faz esquecer as miudezas e as lutas orgânicas de um movimento como o Hip Hop.
Para Macedo (2016, p. 24), o Hip Hop foi reconhecido, durante sua história da década de
80 até os anos 2010, de três formas distintas: cultura de rua, na qual a prática cultural se dava
literalmente nas ruas e a dimensão lúdica era mais presente; cultura negra, com hegemonia da
temática racial e do cunho crítico na estética do rap; e cultura periférica, representação da
mudança do estigma36 para identificação explícita com as realidades periféricas e um

36
Nesta dissertação, entende-se estigma conforme Elias (2000). Para o autor estigma vai além de um preconceito
individual e se baseia em uma caracterização figuracional de um objeto. Esse objeto possui marcas identificáveis,
normalmente impressas no corpo, como cor da pele e vestimentas, ou alguma marca meramente física, que se
conecta com um suposto comportamento inato. Essa figuração é produzida por um grupo em detrimento de um
outro, por meio de relações desiguais de poder, o que visa a exclusão do grupo estigmatizado. A autoimagem,
resultado do processo de estigmatização, pode ser reproduzida internamente pelo grupo estigmatizado. O que

69
denominador comum para todos seus moradores. No meio da década de 90, o elemento rap
tornou-se hegemônico na representação do Hip Hop e a ideia de “cultura de periferia” começou
a surgir. Nos anos 2000, o Hip Hop aproximou-se efetivamente do Estado e de outras
organizações sociais, como ONGs, movimentos sociais, por meio de projetos, editais e ações
políticas. Nesse cenário de reconhecimento, institucionalização e mudança nas relações que o
Hip Hop estabeleceu com a política, insere-se o Fórum Hip Hop.
Esta pesquisa não considerou as demarcações temporais trazidas pelo autor como rupturas
bruscas: são rupturas na maneira de sentir e interpretar o Hip Hop, nas quais todos esses
elementos estão presentes; as demarcações constituem uma linha condutora da predominância
temporal desses sentimentos e interpretações. Atualmente o Hip Hop pode ser considerado
como cultura de rua por alguns, como cultura negra por outros, e até por cultura periférica: o
Hip Hop contém todas essas interpretações, mas, seguindo a demarcação, é visto hoje como
cultura periférica hegemônica na relação com o Estado e na relação com as políticas públicas e
na produção acadêmica. A “rua”, a negritude e a predominância de seu elemento territorial são
potencialidades que os sujeitos do Hip Hop podem enxergar da cultura que produzem e que são
produzidos por ela.
O Hip Hop é uma cultura de rua, negra e periférica, mas também movimento. No
momento em que são discutidas questões políticas ligadas ao Hip Hop, ou que se referem a
mobilização de pautas coletivas, o Hip Hop é visto como “movimento”, mas produz uma
cultura. A diferença de um movimento social para a cultura Hip Hop é usar a cultura e o fazer
artístico como elemento visceral:

Ele [o Hip Hop] gera as novas linguagens [...] é um grande antropofágico das
culturas, ele usa todas as culturas para criar a si [...]. [ao ser perguntado se Hip
Hop é cultura ou movimento] O importante também é que a gente mobiliza o
movimento em si para trocar ideia. Tem outras situações para discutir a
política, tem que mobilizar todo o movimento Hip Hop [...] um movimento
são ações de seres humanos; essas ações de seres humanos geram uma cultura.
Eu sou um artista que pego nesse movimento e nessa cultura e crio o meu
mundo, certo?! Mas eu bebo dessa fonte. Um movimento faz uma cultura,
(R.P. - C - rapper, entrevista concedida)

É importante trazer a discussão sobre institucionalização e autonomia de uma forma a


relacionar outros processos coletivos populares que viram na institucionalidade um caminho –

explica a estigmatização, portanto, não são as características corporais, mas os diferenciais de poder entre esses
grupos, o que cria o estigma. No capítulo 3 o conceito de estigma estará relacionado ao racismo e a ação policial.

70
se não por vezes o único – de encaminhar suas demandas sociais. Uma das questões levantadas
por Macedo é o consequente engessamento do movimento Hip Hop. Sua institucionalização em
políticas públicas e políticas de reconhecimento social é acompanhada por um engessamento
do discurso estético e político. O fenômeno de institucionalização é difícil de ser resolvido:
aderir ou não às práticas hegemônicas para “lutar pelos seus”? Qual o limite que não se deve
ultrapassar para não “trair o movimento”? Lutar pela hegemonia pode apresentar resultados
contra-hegemônicos? Participar e se aproveitar das institucionalidades é sinônimo direto de se
engessar? Talvez seja essa preocupação excessiva com grandezas, dentro da cultura, que
descola as pautas das percepções dos(as) jovens, que estão, por sua vez, mais ligados à estética
do funk, e não mais do rap, mas que continua a se constituir como lugar de participação dessas
juventudes.
Feltran (2004) analisa esse processo mais amplo de institucionalização, porém do ponto
de vista dos movimentos sociais, que tinham a força de mobilização das demandas por direitos
nos anos 80, e passaram por um processo de desmobilização posteriormente à
institucionalização representada pela Constituição de 1988. A luta movimentista por moradia,
terra e melhorias dos serviços públicos e a potencialidade dos “novos personagens que entram
na cena” (Sader, 1988) – novo sindicalismo, as comunidades eclesiais de base e os movimentos
revolucionários de esquerda – transformaram-se com a lógica de ampliação e consolidação dos
direitos não só pela via legal-jurídica mas também pelo reconhecimento do direito do outro.
A Constituição, ao ampliar os direitos para exercício da cidadania, foi um avanço. Mas,
dentro das condições em que estavam inseridos, os direitos ficaram longe de produzir uma
efetiva cidadania. A lógica dos direitos entra em contradição com a transformação institucional,
principalmente a partir dos anos 90, que levou as “novas democracias”, como a brasileira, a
adotarem o que Feltran (2004, p. 41-4) chama de poliarquia: sistema em que restringe o jogo
político na lógica consensual e dentro de certos limites do político, definidos a priori, e se
marcam as fronteiras entre o que é legítimo e o que é ilegítimo na política. Na leitura de Mouffe
(2015), é a exclusão do conflito e o pensamento de um demos (o povo) homogêneo.
Seguindo nessa interpretação, rica para compreender a inserção do Hip Hop nas políticas
públicas, um dos motivos que levaram o Hip Hop a ser inserido nas pautas legítimas da Câmara
Municipal de São Paulo foi seu ganho de legitimidade na opinião pública, que começou a
enxergá-lo como um ator legítimo. O Hip Hop passou por uma reprodução da
institucionalização dos movimentos sociais, que possuíam lutas legítimas nos anos 80, as quais

71
foram desmobilizadas no período pós-88. A política institucional também percebeu que o Hip
Hop possuía capilaridade nas periferias e em certas parcelas da juventude periférica. Em um
determinado momento, essa realidade, apreendida pela “grande” política, não pôde mais ser
desprezada pelos políticos.
Não se trata de enxergar somente o lado destrutivo do reconhecimento conquistado pelo
Hip Hop; suas lutas foram importantes para produzir diferentes formas de mobilização,
principalmente no refluxo dos movimentos sociais, que perderam justamente essa força
comunicacional com as gerações seguintes. Essa inserção explica os motivos pelos quais o
Fórum Hip Hop consegue inserir políticas públicas relevantes, que podem gerar renda,
produções culturais e reflexão sobre o cotidiano das juventudes. Nesse sentido, também não se
trata de pensar em um governo ou outro; no processo de institucionalização, há uma dimensão
estruturante de fragilidade: a falta de uma democracia efetiva e ampla, vista como possibilidade
de quebrar a lógica consensual da política (Rancière, 1996), que acaba por representar
potenciais cooptações dessas iniciativas.
A proposta política representada pelo Fórum situa-se em linhas tênues que se cruzam e
traduz-se em posições ambíguas entre cooptação e ressignificação, entre resistência e
negociação, entre a institucionalização e a adoção de táticas ao mesmo tempo autônomas. Esta
última fronteira – entre a institucionalização e a autonomia –, que se expressa tanto no discurso
contra o genocídio e o racismo e a favor das políticas públicas e demais ações políticas para o
Hip Hop quanto nas ações do próprio coletivo nos territórios de pertença dos seus principais
membros e articuladores, requer o distanciamento estratégico do Estado.
O Fórum Hip Hop partiu dessa cultura comum para produzir a cultura Hip Hop de uma
forma própria. Entre as questões discutidas pelo Fórum está a visão de que o Hip Hop não é um
movimento somente artístico; ao produzir uma cultura vinda da periferia, os problemas do
cotidiano e as aproximações com a política institucional são movimentos que visam ir além de
um movimento puramente artístico. O Hip Hop possui uma organicidade em suas ações
(Gomes, 2005), e sua política não pode estar descolada dessas realidades. Diante de uma
pergunta sobre os limites de ação do Fórum, R.P. respondeu:

[...] é porque o Hip Hop é um agente político no País; ele conscientiza as


pessoas politicamente. Mas ele não é um agente político para direcionamento
coletivo, etc. E todos os MCs, caras do break, que fazem o Hip Hop são todos
engajados na sua arte. É uma arte politizada por estar inserido na periferia. Só
que, às vezes, ela morre só no artístico, é só uma representação. Passar dessa

72
representação é o mais difícil [...] porque as pessoas começam a fazer rap,
etc., mas o cara quer galgar coisa na vida dele. Ele pratica sua arte e ela é
individual, só que ela é tirada dos valores do coletivo, que é o movimento
(R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

A questão da institucionalização no movimento Hip Hop é delicada nesse sentido; seu


surgimento não condiz com o engessamento de suas práticas. Por meio da politização de seus
elementos, das consciências e subjetividades e também das formas como se problematiza o
cotidiano, essas juventudes pensaram em alçar outros ares na busca pelas institucionalidades.
Utilizando táticas de ocupar os espaços e lugares antes exclusivos para alguns indivíduos e de
“ir no corre” pelo que é também das quebradas, esses sujeitos formaram-se em coletividades
capazes de dialogar e ampliar os horizontes políticos por meio do Estado. Essa aproximação e
o reconhecimento social e político - como levantado nesta pesquisa e também por outros
autores, como Macedo - produziu relevantes controvérsias.
Apesar do cuidado na separação entre o que é feito para o movimento e o que é feito para
o Fórum Hip Hop, separação no nível do discurso, essa fronteira fica confusa na prática. O
Fórum não busca reivindicações próprias no momento da articulação que visa às políticas
públicas de Hip Hop do município. Sua imagem, no entanto, confunde-se quando usa, em
editais para produção cultural e com representação de determinados sujeitos e hiphoppers, um
coletivo com participação rotativa de pessoas e que seria um espaço aberto – um fórum. Como
se observou nesta pesquisa, a participação de outros sujeitos nessas ações não é uma prática
velada; participar das ações do Fórum é estar junto nas reuniões e demais relações que são
possíveis de serem estabelecidas com seus principais frequentadores(as). Sua imagem, porém,
é confundida com a de um coletivo que está ligado exclusivamente ao Estado. Para B.S., o
Fórum nem deveria ser um coletivo, ou realizar ações próprias como as financiadas por editais,
por se propor a ser, desde o início, um “espaço aberto”, de que diversos coletivos participariam:

[...] porque o Fórum é um espaço, não é um coletivo, é um espaço aberto e a


ideia é que outros coletivos participassem. Porém, diante muito [...] da forma
como tem sido discutido o Hip Hop dentro do Fórum tem afastado algumas
pessoas. É uma crítica, só que é difícil absorver [...], mas tem representantes
como o Gile, o Markinhos [do Pânico Brutal], o Wellington Sonora, que é um
cara que mexe com produção, que tá na quebrada da zona norte, tem a rádio.
Tem uma galera fazendo coisas, mas nessa representação mais política, na
Câmara Municipal, fazendo esse debate mais político, acaba se complicando,
porque ele mora próximo [...]. Então essas pessoas confundem muito essa
relação de amizade. Então assim, lá no Força Ativa tem uma parte que
concorda ser do Fórum e outra parte não concorda ser mais do Fórum, da

73
forma como tá organizado, porque um Fórum é um fórum aberto. (B.S. - ZL -
DJ, entrevista concedida).

Por outro lado, por se constituir como uma rede de produção cultural, as ações do Fórum
que seriam “próprias” e que levam seu nome, como por meio de um edital por exemplo, geram
uma circulação de artistas que se situam nessa rede. Não são exatamente coletivos e sujeitos
presentes no sentido de “representação política”, como B.S. coloca, mas sujeitos que se
relacionam de alguma forma com a conquista de um edital. Esse edital, apesar das prestações
de contas – sempre um processo maçante que pode travar as criações e autonomias –, pode ser
usado também como fonte de circulação de afetos e pessoas, produções culturais, troca
subjetiva de experiências e renda nos territórios.

Ele [R.P.] tá como uma pseudo linha de frente, mas tem todo o pessoal por
dentro; tem o Gile que tá sempre com ele, tem o Pec Jay que tá sempre com
ele. Então acho que eu vejo como uma gestão compartilhada [...]. E a
articulação do Fórum do Estado, eu sempre tive essa visão, é em prol de
conseguir algo [...] Para mim, é um coletivo muito independente, faz seus
corres, faz suas ações quando consegue. Quando não consegue, vai entrar de
conseguir outra coisa (N. - ZL - b-girl, entrevista concedida).

Outra controvérsia está na aproximação dos partidos políticos e os políticos


“profissionais” com o movimento Hip Hop. Segundo Gomes (2012), principalmente a partir
dos anos 2000, membros do Hip Hop aliaram-se a partidos políticos e foram não só assessores
de deputados estaduais mas também candidatos aos cargos de vereador e deputado. Gomes
(2012, 107-113) realizou entrevistas com dois membros do movimento Hip Hop que ocuparam
cargos no que o autor denomina de “política formal”, Mano Oxi e Aliado G. O autor revela que
a aproximação entre os partidos políticos e o movimento Hip Hop é vista por alguns de seus
membros como algo “natural” ou como uma esperança de o Hip Hop “renovar” os partidos com
novas ideias. Gomes (2012, p. 111) também traz uma entrevista concedida por GOG à Revista
rap, em 2012, em que este defende a participação de membros do Hip Hop na política
institucional, mas para dialogar em vez de lançar candidaturas; as candidaturas poderiam
provocar perda tanto de autonomia do movimento quanto de sua força política.
A proposta do Fórum para o Hip Hop de São Paulo é justamente essa; apesar de possuir
afinidades ideológicas com partidos vistos mais à esquerda (PCdoB, PT, PSOL), seus principais
membros não são filiados(as) a nenhum deles.

74
A gente não é um partido político, apesar de agir politicamente. Isso a gente
não abre mão, porque isso é uma característica original do Fórum de Hip Hop
MSP. A gente age como um coletivo, porque a gente realiza coisas culturais e
artísticas (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

Os próprios partidos, no entanto, procuram explorar a relação do Hip Hop com os


territórios. Na continuação de uma fala anterior de G., o rapper cita justamente a aproximação
“dos políticos” quando estes enxergam certa produtividade nas ações realizadas na comunidade.
A política institucional passa a reconhecer que o Hip Hop pode ser usado nesse sentido.

E o que acontece é que a pessoa tá fazendo política onde ela mora, tá fazendo
ali e quem se aproxima são os políticos institucionais, porque a pessoa já tá
fazendo. Então rola essa aproximação. Isso acontece, rola essa aproximação.
Naturalmente a pessoa tá fazendo ali, a pessoa quer fazer mais, “mas tô
pensando em fazer outra coisa, como que eu consigo? Eu vou em tal lugar, ai
encontra com outras pessoas, que são mais próximas de política, de vereadores
(G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

O reconhecimento do Hip Hop não é algo exclusivo à essa cultura. Desde meados dos
anos 90, com a perda da capacidade do Estado de investir nos serviços básicos (saúde, educação,
moradia, segurança, transportes, etc.), governos, instituições financeiras voltadas para o
desenvolvimento dos países do “Terceiro Mundo” e outras organizações, como as do terceiro
setor (Yúdice, 2004), compreenderam que existe uma “centralidade da cultura”, como apontado
por Hall (1995), e que, na virada do século, essa centralidade “indica [...] a forma como a cultura
penetra em cada recanto da vida social contemporânea, fazendo proliferar ambientes
secundários, mediando tudo” (Hall, 1997, p. 5).
A cultura deixa de ser enxergada, não só para os governos e instituições, mas até pelos
intelectuais, como algo que é subordinado, ou constituído por alguma outra instância social. A
cultura é também constituinte de processos e produtora de significados, pois “todas as práticas
sociais, na medida em que sejam relevantes para o significado, ou requeiram significado para
funcionarem, têm uma dimensão ‘cultural’” (Hall, 1997, p. 13). O político, desde que novos
movimentos redefiniram suas fronteiras, entre eles o feminismo, que trouxe outros significados
para o “pessoal” e a forma como as famílias são organizadas, argumenta Hall, também passa a
depender de seus significados; portanto, possui uma dimensão cultural.
A questão é que a cultura se tornou conveniente (Yúdice, 2004) para a economia política
do Estado e de outras organizações. Cultura também representa a terceirização da obrigação do
Estado investir nos setores que mais foram degastados pelo neoliberalismo. A cultura passou a

75
ser reconhecida apenas como um mecanismo para sanar os problemas sociais e a cultura “em
si”, como produção de um modo de vida de povos e agrupamentos determinados, é deixada de
lado. Os(as) produtores(as) culturais, que estão na ponta da lança, nas periferias, dialogando
com os(as) jovens, também podem ser “usados” para solucionar problemas urbanos decorrentes
das políticas neoliberais. Yúdice coloca o paradoxo: “Mas a tática de reduzir as despesas
estatais, que pode parecer a sentença de morte das atividades artísticas e culturais sem fins
lucrativos é, na verdade, sua condição de possibilidade continuada” (Ibidem, p. 29), de forma
que “um modo de cognição, de organização social e até mesmo tentativas de emancipação
social, parecem retroalimentar o sistema a que resistem ou se opõem” (Ibidem, p. 49).
As culturas, nesse sentido, podem ser governadas e admitidas como um recurso utilizável.
No entanto, a própria cultura é reguladora das práticas sociais e cria, por si mesma, um sistema
de regulação; talvez não exista momentos em que a vida social deixe de ser regulada de alguma
forma: “o ponto chave [...] é que não se trata de uma opção entre liberdade e restrição, mas
entre modos diferentes de regulação, cada qual representa uma combinação de liberdades e
restrições” (Hall, 1997, p. 16). A implicação política se dá pelos modos de governar as culturas:

[...] uma vez que a cultura regula as práticas e condutas sociais, neste sentido,
então, é profundamente importante quem regula a cultura. A regulação da
cultura e a regulação através da cultura são, desta forma, íntima e
profundamente interligadas (Ibidem, p. 19).

O papel dos movimentos culturais, entre eles o Hip Hop, conforme analisado no Fórum,
é encontrar as brechas no jogo entre liberdades e restrições e se afastar das práticas que são
reprodutivas desse cenário. O Mês do Hip Hop, como mencionado no item anterior, é produzido
pelo movimento Hip Hop de São Paulo e apenas financiado pela prefeitura da cidade. Todas as
articulações – tirando os constantes conflitos durante essa organização – são de
responsabilidade do movimento. Essa foi uma garantia, conquistada por lei e possibilita uma
autonomia relativa, ao menos na instância da produção da série de eventos ligados ao Mês.
A armadilha, introduzida pelo governo à época, foi a introdução da contratação de artistas
somente por meio de microempresas e não por pessoas físicas. Apesar de muitos(as) artistas
possuírem empresas, até para abaixar a tributação de serviços prestados, a representação
empresarial resulta na concentração em poucas dessas empresas, tidas como “mais legítimas”
junto ao poder público, como ocorrido na organização do ano de 2018. Mesmo que as

76
ilegalidades foram denunciadas pelo movimento como um todo, os ganhos proporcionados para
os artistas se autorrepresentarem são capturados pelo Estado.
Embora em meio às ambiguidades e às armadilhas estruturais, levantadas nesta seção, o
movimento contribui para dar novos significados para as lutas e resistir à essas tendências.
Conforme defendido aqui, se considerados os movimentos sociais como uma herança política
e cultural, o Hip Hop é uma nova forma de mobilização das juventudes e uma nova forma de
quebrar as formas consensuais da política, ao mesmo tempo em que se apresentam outras
concepções de mundo. Abre-se um maior potencial de abrangência do político – que não se
baseia nos mesmos significados que teve até então – ao mesmo tempo em que se agregam as
pautas dos “novos movimentos sociais” (movimento feminista, ambientalista, LGBTQ) e a
crescente politização da vida social (Laclau, 1986), mas dentro de uma estética específica, com
a presença fundamental do corpo na ocupação dos espaços públicos.
Para transitar entre essas diferentes possibilidades político-culturais apresentadas pelo
movimento Hip Hop, também surgiram diferentes formas de esses sujeitos se organizarem e
formarem coletivos de pessoas.

77
Capítulo 2. Culturas e redes de sociabilidade

No capítulo anterior, o Fórum Hip Hop apresentou – se, no decorrer do texto, com suas
ambiguidades e os conflitos pelos quais passam os sujeitos do Fórum Hip Hop em sua forma
de se articular – política e culturalmente – em rede. A cultura Hip Hop também se apresentou
densamente política. A intenção foi demonstrar as possibilidades de agenciamento desses
sujeitos ao entrar em contato com a prática política. Procurou-se discutir a política mediada
pelo Hip Hop, ou o Hip Hop mediado pela discussão política. Como defendido, as duas
perspectivas são inseparáveis.
A atuação dos sujeitos do Fórum é também inseparável do lugar em que produzem a
cultura Hip Hop e de outras práticas de engajamento, conscientização e reflexão sobre os
entornos onde vivem. As relações entre Hip Hop e a globalização estão presentes, de forma
expressiva, na literatura voltada para o Hip Hop37 e, nesse sentido, a formação das
subjetividades políticas no Fórum se dá de forma conjunta com os vetores da globalização, que
transmitiram e reterritorializaram a cultura Hip Hop em territórios brasileiros e, mais
especificamente, paulistanos.
Mas o que se entende por Hip Hop? As práticas do Fórum correspondem a quais
significados, valores, práticas e subjetividades? Com quais outras práticas políticas e culturais
este movimento cultural se relaciona? Para esta dissertação, admite-se que o desenvolvimento
cultural do Hip Hop foi possível por meio dos deslocamentos e das migrações forçadas de povos
ditos africanos para serem escravizados nas colônias europeias do “novo mundo” – a América.
Esse processo ficou conhecido como diáspora africana38. Esse movimento cultural traz consigo
matrizes culturais e políticas de culturas de origem africana, como será mostrado no item a
seguir. No entanto, esse processo, que se iniciou no século XVI, teve os rumos de sua história
alterados por muitos acontecimentos históricos, principalmente com o fenômeno da
globalização das últimas décadas do século XX.

37
Ver a coletânea, usada nesta dissertação, “O Hip Hop a as Diásporas Africanas na Modernidade” (Amaral, Carril,
2015). Essa ideia é trabalhada, senão com todos os elementos Hip Hop, mas com a perspectiva de uma cultura
diaspórica.
38
Para Lopes (2011, p. 416-7), na diáspora africana situam-se dois movimentos históricos: o primeiro causado
pelo tráfico de escravos, na dispersão pelo Atlântico, pelo Índico e pelo Mar Vermelho, caracterizando um
genocídio do povo negro a partir do século XV; o segundo ocorre no século XX, com a emigração, sobretudo para
a Europa, em direção às antigas metrópoles coloniais. E, além disso, diáspora também designa os descendentes de
africanos na América e na Europa, e o rico patrimônio cultural que constituíram através das vivências desses
descendentes nos países que possuem traços propriamente europeus, devido a séculos de colonização.

78
Santos (2000) conceitua o processo de globalização em que se vive, principalmente a
partir da década de 80, como fábula que se implementa como perversão mas que, ao mesmo
tempo, contém uma outra potencialidade de união entre os povos e entre os seres humanos. Hip
Hop, por meio da política e do questionamento político do cotidiano em que se situa e se
materializa, critica a globalização perversa e se propõe a desmascarar a narrativa fabulosa criada
e construída na globalização. Isso dialoga com o que Santos chama de “uma outra
globalização”. Nesse sentido, pode-se pensar que o Hip Hop, ao questionar os arredores de sua
materialização, ou seja, as realidades vivenciadas pelas populações periféricas, traduz suas
práticas como uso desses territórios urbanos. Abre-se, ainda, a possibilidade de se pensar os
corpos como uso, como materialidade de uso das práticas e produções culturais e políticas.
As movimentações diaspóricas são reproduzidas entre esses povos de forma translocal
(Gilroy, 2001). De acordo com o autor, o mar e o navio como metáforas para deslocamento e
intercâmbio cultural, que ultrapassam as configurações das culturas antes vistas como
nacionais. Os processos de identificação e formação de subjetividades, presentes na trajetória
dos sujeitos do Fórum, se constituem por meio da articulação entre as translocalidades presentes
no globo, por se tratar de uma – dentre às diversas – cultura negra, que se forma com resíduos
de matrizes culturais africanas, inovações tecnológicas e diversos usos, intercâmbios e
apropriações de culturas juvenis presentes nos territórios das grandes cidades.
Os contatos interculturais, considerados contribuição da experiência das diásporas
africanas e do “atlântico negro”, também foram possíveis, segundo Osumare (2015), devido às
marginalidades conectivas. As marginalidades conectivas são consequência desses processos
históricos e permitem compreender os significados do reconhecimento do Hip Hop como uma
cultura negra. A autora também cita a importância dos meios de comunicação que surgiram no
período de globalização para a disseminação dos valores, significados, códigos e estéticas. Mas
o estudo exclusivo desses meios não é o suficiente para entender as conectividades propostas
por Osumare, que consistem em camadas justapostas (juventude, opressão histórica, classe,
cultura, culturas afro-americanas & latina, cultura Hip Hop e estética africanista) – existentes
tanto em localidades em contato com populações negras quanto em países que possuem
marginalidades relacionadas à classe, como Japão e Polônia – que se articulam para
compreender o aparecimento do Hip Hop.
Osumare concorda com Gilroy ao considerar que o Hip Hop é uma dessas culturas que
atuam pelo intercâmbio entre o local e o global e, embora esse processo não exclua as fronteiras

79
nacionais e continue a moldar interdições e deslocamentos forçados nos aspectos físicos e
imaginários, essa troca entre marginalidades não acontece necessariamente entre
nacionalidades. Não é por outro motivo que as experiências cruciais para o surgimento do Hip
Hop aconteceram em ex-colônias britânicas, como Barbados e Jamaica, nacionalidades
compostas por migrações que contribuíram para enriquecer as culturas já presentes nas
periferias dos Estados Unidos. Os fluxos migratórios da globalização, impulsionados pelos
países ricos, contribuíram para esse surgimento. Para Hall (2006):

O movimento para fora (de mercadorias, de imagens, de estilos ocidentais e


de identidades consumistas) tem uma correspondência num enorme
movimento de pessoas das periferias para o centro [...] as pessoas mais pobres
do globo, em grande número, acabam por acreditar na “mensagem” do
consumismo global e se mudam para os locais de onde vêm os “bens” e onde
as chances de sobrevivência são maiores (Hall, 2006, p. 81).

Três dos mais conhecidos hiphoppers mudaram com suas famílias da bacia caribenha
para Nova Iorque: os DJs Kool Herc, Grandmaster Flash e Afrika Bambaataa. Nesses fluxos,
que abriram oportunidades de contato para a constituição de novas identificações, o Hip Hop
foi criado como uma invenção juvenil para canalizar a violência reproduzida pelas gangues e
como um instrumento para lutar (ou, no mínimo, quatro instrumentos integrados em um
movimento cultural) contra a exclusão do acesso à cidade; os baixos horizontes de
oportunidades no mercado de trabalho; a pobreza e o racismo, que se expressava tanto na
segregação socioespacial, quanto nas violências do tráfico, policial e simbólica ou até, de forma
inseparável, na questão de classe.
Analisar o Hip Hop também significa transmitir o surgimento de uma “visão de mundo”39,
possibilitada pelas contradições da globalização: “periferia é periferia em qualquer lugar”,
como cantou o rapper brasiliense GOG (1994) e (re)produzido pelo Racionais MC’s (1997).
O surgimento do Hip Hop e o compartilhamento translocal de seus significados, valores e

39
Essa ideia está em Ortiz (2007). Para o autor, as transformações recentes no mundo moderno possuem uma forte
influência na dimensão cultural e que só pode ser entendido por meio do fenômeno da “mundialização”, que agrega
tanto a visão econômica e técnica da “globalização”, e incrementa com a “mundialização” de um universo
simbólico. Esse universo exprime essas transformações, ao mesmo tempo que convive com diferentes visões de
mundo. Nessa convivência, são estabelecidos conflitos, hierarquias e acomodações. Já que, no entanto, o objetivo
aqui é contextualizar as ações do Fórum por meio dos traços históricos e globais do movimento cultural Hip Hop,
esse debate não será incluído. Osumare (2015) já trata dessa questão, de uma expansão de uma visão de mundo,
mas por meio de marginalidades conectivas. A autora, porém, usa o conceito de globalização.

80
práticas se relaciona com o que Appadurai (1994) chamou de “mundos imaginários”. Mundos
imaginados não como fantasia, mas imaginado por se tratar de seu caráter projetivo:

um palco para a ação. A prática permite a construção de todas essas esferas


em qualquer lugar do mundo em que os sujeitos estejam, dá sentido às novas
intersecções geradas com o Estado, com a política e com os sentimentos de
pertença e exclusão (Paiva, 2018, p. 104).

Nesse sentido, dificilmente se consegue escrever, falar sobre e representar o Hip Hop sem
tratar de suas técnicas corporais, articuladas aos seu surgimento na história cultural, e também
dos usos que esses corpos fizeram dos territórios em que habitavam e habitam. A escrita da
história do Hip Hop é necessária para a compreensão do surgimento de seus elementos culturais.
Com ela, será possível entender não só as formas de pensar o Hip Hop enquanto resultado da
desterritorialização e de recombinações residuais entre culturas negras e demais povos latino-
americanos na globalização como também a recepção e reformulação desse movimento em
territórios translocais, como o da cidade de São Paulo e dos bairros periféricos em que os
sujeitos do Fórum Hip Hop atuam.
Hiphoppers articulam cultura e política de forma a trazer questionamentos, denúncias e
protestos sobre problemas enfrentados no cotidiano de territórios periféricos da vida na cidade,
como desemprego, pobreza, mundo do crime, baixa qualidade e escassez de serviços públicos
básicos, distanciamento na participação política, falta de acesso a bens culturais e à educação
pública básica e universitária, racismo, violência policial e encarceramento em massa. No
entanto, as vidas dessas pessoas não se resumem apenas aos problemas que elas enfrentam, mas
também estão em diálogo com as possibilidades de vida que são propostas pelo Hip Hop.
Os jovens que constituem suas subjetividades políticas por meio do Hip Hop participam
de um processo de reelaboração dessas experiências do passado, e também do presente. Resistir
e re-existir são maneiras inseparáveis de se constituir como sujeito. Por se comunicar e se
conectar, além de ser produzido majoritariamente por pessoas negras e/ ou as que habitam as
periferias urbanas, o Hip Hop, como de fluxos históricos e recentes de globalização, migração
e transmissão cultural, permite que os e as jovens possam se reencontrar com seus corpos e suas
matrizes culturais, após a cisão enfrentada nos processos de colonização e escravização (Fanon,
2008), e criar uma cultura que, ao mesmo tempo, não possui tanta relação com um suposto
“resgate das raízes”, mas sim com um tornar-se (Hall, 2003).

81
2.1. Elementos do Hip Hop no Fórum: resíduos, dominâncias e emergências

Neste item, serão tratados os elementos e as estéticas de rua que foram reterritorializados
em São Paulo e usados pelo Fórum Hip Hop. Os elementos serão definidos no presente, mas
em mistura com as mudanças, práticas residuais de culturas negras e os diálogos com as formas
culturais dominantes e emergentes (Williams, 2000). A escolha da ordem de apresentação dos
elementos no texto deu-se considerando os momentos históricos em que cada elemento
predominou na cultura Hip Hop. Desde o(a) DJ até o(a) MC, o Hip Hop passou por
desenvolvimentos históricos que justificam essa predominância.
A separação dos elementos em itens tem a intenção de resguardar as particularidades de
cada um. A experiência como b-boy ou b-girl é distinta da experiência como DJ ou MC. As
ferramentas e as diferenças estéticas são constantemente mencionadas nas falas dos sujeitos
com que esta pesquisa dialoga. Fora da cultura Hip Hop, tratar da diferença entre o teatro e a
pintura, por exemplo, é uma tarefa, talvez, mais prática, já que essas duas modalidades culturais
não constituem, necessariamente, um movimento. A escrita sobre os elementos e linguagens do
Hip Hop, por outro lado, possui a característica de movimento cultural e as intencionalidades
históricas e políticas devem ser consideradas.
No decorrer do texto, tende-se a transpassar as supostas fronteiras entre as práticas
estéticas e culturais desse movimento que tem, em sua história, um entrelaçado de experiências
– o Hip Hop. A tentativa de separação em itens considera as experiências particulares desses
sujeitos, que, mesmo dentro de um movimento, tendem a se identificar com determinadas
práticas e não com outras. A identificação é um processo que considera o exterior (Hall, 2000),
marcado por fronteiras, mesmo que por vezes porosas, entre as linguagens. Por essa razão, a
união política entre os elementos do Hip Hop é uma questão constante, que vem ocorrendo
desde as experiências em campo no interior do estado de São Paulo. A união do Hip Hop é um
desafio prático do movimento.
Vale ressaltar que este trabalho não se propõe a aprofundar as histórias de cada elemento
e do Hip Hop como um todo; é possível encontrar uma historiografia do Hip Hop em todos os
trabalhos (dissertações, teses, artigos científicos e livros) citados anteriormente e que serão
citados a seguir. Essa constituição já foi realizada em exaustão pela literatura e quase todos os
trabalhos mencionados nesta dissertação passaram por essa questão. O objetivo deste capítulo

82
é contextualizar os elementos do Hip Hop como mecanismos de mediação40 e forma, em si
mesma, de ação política por parte do Fórum Hip Hop na sua resistência e negociação com o
Estado. Em diálogo com as entrevistas em profundidade, a formação dos sujeitos dessa cultura
envolve, porém, a mobilização de conceitos que possuem uma história cultural.

2.1.1. DJing41

É nos eventos de produção cultural do Fórum Hip Hop que se encontram, com mais
frequência, as técnicas dos(as) DJs (disk jockeys). Nessas oportunidades, o(a) DJ faz
discotecagens e participa das oficinas de DJ, nas quais passa os conhecimentos das técnicas das
pick-ups como arte-educadores(as). Os(as) DJs atuam em rádios comunitárias, como a rádio
Instituto Hip Hop Político42, comandada por Sonora, e participam de eventos de outros
movimentos com os quais os membros do Fórum possuem parceria e amizade. Em uma oficina
de MC, o(a) próprio(a) MC pode realizar alguma atividade musical nas pick-ups para
direcionar, da melhor forma, sua oficina. Este pesquisador já foi auxiliar de som de Pirata em
uma oficina no CEDESP (Centro de Desenvolvimento Social e Produtivo)43 do Jaçanã.
As formas de discotecar realizadas pelos (as) DJs podem variar. Podem, por exemplo,
constituir-se de um solo, em que o (a) DJ mostra seu conhecimento técnico, sua pesquisa por
músicas em meios físicos e digitais e sua capacidade de afetar os ouvintes. A discotecagem,
também serve de base de fundo para as danças do Hip Hop, com sets específicos para suas

40
Aqui se entende por mediação a compreensão que Martín-Barbero (2015) possui sobre os processos culturais e
políticos, segundo a qual estes não podem ser estudados exclusivamente com base nos meios de comunicação de
massa, mas sim por meio das experiências, dos modos de percepção e das expressões culturais, todas dimensões
históricas que as classes populares possuem sobre suas vidas cotidianas. Ou seja, por meio da mediação que elas
fazem do cotidiano e que aparecem sob diferentes formas nos meios de comunicação.
41
O termo DJing, que dá título ao item 2.1, refere-se aos elementos e linguagens do Hip Hop e está escritos em
língua inglesa, pela história da cultura, no tempo verbal presente contínuo, pela referência à práticas artísticas,
conforme apontado por D’Alva (2014).
42
Ao ser perguntado sobre o Instituto e sobre o fato de ser uma ONG, ou uma empresa, R.P. responde que o Fórum
pensou em reunir seus principais membros para criar um CNPJ. Com isso, a contratação com o Estado para
responder a editais de Hip Hop seria mais fácil. Até o momento, esse instituto não foi formalizado judicialmente,
mas os membros do Fórum que querem atuar no Instituto usam esse nome para realizar divulgação de atividades
em geral.
43
Política pública de assistência social da Prefeitura de São Paulo, o CEDESP “tem como objetivo o
desenvolvimento de atividades com adolescentes, jovens e adultos, com idade a partir de 15 anos, com a finalidade
de investir na formação profissional, assegurar o conhecimento do mundo do trabalho e capacitar em diferentes
habilidades, na perspectiva de ampliar o repertório cultural e a participação na vida pública, preparando-o para
conquistar e manter a empregabilidade e a autonomia”. Disponível em:
<http://www.capital.sp.gov.br/cidadao/familia-e-assistencia-social/servicos-para-criancas-e-adolescentes/centro-
de-desenvolvimento-social-e-produtivo-cedesp>. Acesso em: 24 jun. 2019.

83
práticas, ou de base para o rap, ou, ainda, podem ser práticas que se situam nos interstícios entre
um acontecimento e outro no evento, no início e no fim dos eventos. No Festival Fórum Hip
Hop, que ocorreu na Casa de Hip Hop Leste em março de 2019, a DJ Priscila Groove
demonstrou tanto sua capacidade de afetar os ouvintes com raps femininos, que tinham um
flow44 e uma batida cativante, quanto tocou nos interstícios entre uma apresentação de rap e
outra, além de ser uma DJ de duas apresentações de rap. DJ Pec Jay participou do evento C.T.
Sitiada como oficineiro e técnico de som e ensinou algumas técnicas para crianças da Cidade
Tiradentes. Pec Jay toca também em outros eventos comerciais como trabalhador da cultura
Hip Hop.
A DJ B. S., entrevistada para esta pesquisa, foi mais uma DJ no Festival Fórum Hip Hop
a fortalecer o rap feminino. Indicada por B.S., como forma de inserir as mulheres do Hip Hop
em eventos da cultura, Priscila também participou da discotecagem, porém com menor
participação. Ao comentar o que a levou a discotecar – abandonando sua trajetória como rapper
do grupo Sankofa –, B.S. relatou que procura dar continuidade, em suas práticas, à sua principal
força mobilizadora:

Eu comecei a discotecar por conta dessas coisas do machismo. Porque


primeiro eu comecei cantando rap. Cantei rap por dez anos [...] Tinha parado
já de cantar e eu falei, meu, faço parte do Hip Hop, mas só fazer parte... Eu
quero também desenvolver uma arte. Eu falei que poderia DJ e não vejo
muitas mulheres. Onde estão as mulheres DJs? Nunca vi mulher tocando,
nada. Não conheci nenhuma. Falei: "não vejo nenhuma mulher, acho que eu
poderia tentar”. E eu fui caçar, procurar um curso para fazer. Fui fazer em
2011, um curso com o DJ RG, que é do Instituto Literal Dandara, ele é da zona
sul, mas ele tinha um trabalho no centro, ali na Ação Educativa. Por muitos
anos ele deu várias aulas. Desenvolveu um curso para DJs com um valor
acessível (B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).

B.S. percebeu a importância do elemento DJ para a cultura Hip Hop e da ocupação do


espaço dos DJs pelas mulheres como algo fundamental para a produção sonora da cultura, já
que as mulheres foram excluídas no surgimento da cultura Hip Hop. Embora um elemento sem
muita visibilidade, mas que possui, por vezes, uma onipresença ao se situar no fundo do palco
e realizar sua performance em frente às aparelhagens, os grupos de rap dependem das técnicas
controladas pelos(as) DJs. A falta de um DJ “residente” para esses grupos pode acarretar

44
Para Ramos (2016, p. 19), “a expressão flow, na língua inglesa, significa ‘fluxo’, ‘levada’, e é utilizada tanto por
funkeiras/os quanto por hiphoppers brasileiras/os para expressarem algo próximo de ‘levada’, ‘batida’, ‘ritmo’”.

84
dificuldades técnicas nas apresentações musicais. Pelos empecilhos de transporte de
equipamentos45, os grupos, geralmente, não são acompanhados por DJs, o que pode atrapalhar
as apresentações.

[...] eu via que não só eles [do Fantasmas Vermelhos, grupo de rap do Força
Ativa], mas vários grupos de rap quando iam se apresentar, os DJs residentes,
que são aqueles DJs que estão desde o começo até o fim, como ele não é DJ
daquele grupo, ele larga aquele grupo lá. Você vai cantar, pega o pen drive e
[ele] sai andando, fica no celular. Dá pau, para, os caras ficam tudo nervoso
[...]. Não tem um suporte. E a melhor coisa que eu percebo dos grupos de rap,
quando vão se apresentar, quando tem o DJ, eles ficam tranquilos (B.S. - ZL
- DJ, entrevista concedida).

Nas pick-ups (os toca-discos), os(as) DJs (re)produzem as técnicas específicas criadas
pelo Hip Hop. Nesse sentido, eles(as) são a figura responsável pela produção musical
propriamente dita. O MC, figura que será definida mais adiante, compõe a letra, mas a produção
deve ser feita de forma conjunta com o DJ. A cadência poética das letras de rap possui
ressonâncias com as batidas e melodias que o DJ produz, e a letra do rap não pode ser
desvinculada dos elementos sonoros. Da mesma forma, o(a) DJ produz o break beat e constituiu
as bases para que dançarinos e dançarinas “quebrem” os movimentos das danças convencionais
nas festas. Os break beat praticados nas festas contribuíram para o nascimento do Hip Hop.
De uma forma geral, sem a(o) DJ, a festa não acontece: a letra do rap é “apenas” poesia
cantada a cappella46, e a dança não tem a batida para realizar seus movimentos. E o(a) DJ sem
a(o) MC ou sem as danças identificadas como danças urbanas pode não ser considerado “do
Hip Hop” e pode estar mais vinculado às cenas de música eletrônica47. Sem os elementos que
caracterizam o Hip Hop, o(a) DJ é descaracterizado(a) como membro do Hip Hop. Muitos(as)

45
No Mês do Hip Hop o movimento decidiu que os(as) DJs tinham que receber um cachê adicional para arcar com
esses custos de transporte.
46
Música vocal sem acompanhamento de instrumentos. No caso, sem acompanhamento dos sons produzidos pelas
pick-ups.
47
Fontanari (2008) aponta para as marcações de classe e geográficas nas diferenciações de estilos de música
eletrônica. A música eletrônica, tal como se denomina atualmente, abrange vários gêneros e, entre eles, está a
house music, o techno, o drum & bass e o próprio rap. Embora Fontanari (2008, p. 237-8) aponte que o que se
chama de “música eletrônica” atualmente tenha origens afro-diaspóricas, pois eram tocadas nas festas de bairros
da década de 80, em que a maioria da população era negra, como em Detroit, Chicago e Nova Iorque, nos Estados
Unidos, o drum & bass e o rap são as que mais possuem essa diferenciação estética. Drum & bass, por exemplo,
possui influências do reggae jamaicano e foi tido como música eletrônica “das periferias” de Londres e São Paulo.
Os e as jovens da classe média paulistana, frequentadores(as) das boates e baladas nas regiões tidas como mais
centrais da cidade, ao menos na data de sua pesquisa (2008), preferiam escutar house e techno, em vez dos outros
dois estilos.

85
DJs considerados(as) do Hip Hop transitam por entre as cenas, que vão desde rap e música
eletrônica até soul, funk estadunidense e música negra brasileira. Mas em eventos específicos
do Hip Hop, a(o) DJ tende a se alinhar com o rap. Nos eventos com hiphoppers “das antigas”
ou até, a depender do público, em geral, as tendências ainda podem se deslocar para o soul e
funk. Essas tendências acompanham as influências mais presentes na sonoridade do Hip Hop.
No rap brasileiro, por exemplo,

[...] principalmente da década de 90, era também comum encontrar ritmos


brasileiros tradicionais da música brasileira apropriadas como base sonora
pelos rappers, a exemplo da música Afro-Brasileiro da dupla Thaíde e DJ
Hum, onde se presencia toques de berimbau (Azevedo, Silva, 2014, p. 216).

O primeiro sound system, invenção tecnológica e sonora de grande influência para a


música do Hip Hop, foi desenvolvido na Jamaica, com autofalantes e toca-discos comprados
nos Estados Unidos. Os sound systems eram instalados em carros ou em cima de uma mesa, as
pick ups, para tocar músicas nos bairros pobres e marginalizados das cidades jamaicanas, como
em sua capital, Kingston. Nos bairros pobres, tocavam os ritmos jamaicanos dos anos 60 e 70,
como ska, reggae e rock-steady e criou-se, naquele momento, uma cultura de festas, que,
posteriormente, influenciou a cultura Hip Hop nos Estados Unidos. Talvez, por isso, é comum
ler e ouvir que o surgimento do Hip Hop se deu na Jamaica.
O DJ Kool Herc, de origem jamaicana, foi morar no Bronx, bairro periférico de Nova
Iorque, no final da década de 60 e carregou consigo a inspiração dos ritmos de sua terra natal,
mas também do funk e do soul estadunidenses. No início dos anos 70, Kool Herc já era
conhecido por possuir um sound system poderoso, instalado no seu carro, conhecido como The
Herculoids. Herc é tido como o primeiro DJ de Hip Hop da história a colocar em prática a break
beat misturado com outras técnicas do DJ, como o scratching. A b-girl Cristiane Dias (2018)
defende que:

[...] o DJ Kool Herc foi responsável por dar ênfase ao break beat – um trecho
de uma música normalmente perto do refrão ou o próprio refrão, momento em
que ela fica instrumental sendo introduzidos elementos rítmicos percussivos.
Algumas músicas permitiam o uso desses trechos e no cut’n back (voltar ao
trecho exato do início da música e repeti-la várias vezes normalmente num
compasso de 4 ou 8 tempos) cuja técnica era usada para estendê-las usando
[sic] os dois toca-discos e um mixer, e isso dependia da habilidade de cortar e
soltar a música no trecho exato parecendo que ela era mais longa do que a
versão original, alternando com o scratching. [...] Herc contribuiu para o

86
alargamento do break beat e também criou o termo b-boy48, referindo-se aos
dançarinos que dançavam no break da música (Dias, 2018, p. 88-9).

Teperman (2015), autor do livro Se liga no som, diz que era difícil conseguir acertar em
cheio o momento exato do groove. Herc não acertava todas as vezes. Foi outro DJ, Grandmaster
Flash, também de origem caribenha, que desenvolveu uma técnica que permitia o disco voltar
exatamente para o mesmo ponto. Flash também foi conhecido como o aperfeiçoador da técnica
de scratching, mencionada por Dias na citação acima. Scratching é a técnica de criar sons com
o movimento de trás para frente com as mãos diretamente nos discos. O resultado aparece como
um arranhão, em inglês: scratch. Flash, no documentário exibido pela Netflix Hip-Hop
Evolution (HIP-HOP, 2016), diz que, no início de sua prática como DJ, por volta dos anos 70,
não se podia colocar as mãos no disco. Ele transgrediu a regra e conseguiu desenvolver uma
técnica inicialmente atribuída a Grand Wizard Theodore, um adolescente naquela época, que
esbarrou no toca-discos do seu quarto e ouviu, sem querer, um som que achou interessante49. O
scratching tornou-se marca registrada do Hip Hop (Teperman, 2015, p. 18).
Os(as) DJs de Hip Hop, após as técnicas que ficaram famosas com as festas de Kool Herc,
passaram a produzir novas técnicas e aperfeiçoar as anteriores. As inovações tecnológicas e a
introdução de grupos de Hip Hop nas grandes gravadoras influenciaram o som posterior do rap.
A partir do fim dos anos 1980 e começo dos 1990, com a inserção do rap paulistano, por
exemplo, e dos valores e significados do Hip Hop nas grandes gravadoras, houve divergências
a respeito das concepções sonoras. Os e as produtores(as) de Hip Hop buscavam a introdução
dos graves e subgraves para dar espaço para o discurso político.
Além do conteúdo político nas letras de rap, os conflitos com os donos e técnicos das
gravadoras foi sintomático de um conflito mais amplo, no qual entrava em discussão a própria
concepção estética sobre o que é música (Botelho, 2018, p. 50-3). As novas batidas – mais

48
Dias (2018, p. 89) faz uma nota de rodapé para justificar o uso exclusivo do termo b-boy, ao escrever sobre a
história do Hip Hop: “Até meados dos anos de 1970, não há relatos de mulheres dançando breaking por esse
motivo [sic] foi criado a simbologia dos elementos referentes ao b-boy, anos depois que surgiram as b-girls [...]”.
49
O pesquisador português de culturas juvenis, José Machado Paes, afirmou que, em palestra inaugural da III
Bienal Latinoamericana y Caribeña de Infancias y Juventudes (jul./ago., 2018), ocorrida em Manizales, Colômbia,
o scratching surgiu acidentalmente durante um churrasco em um bairro de periferia de uma grande cidade do
Estados Unidos. O churrasco acontecia enquanto o sound system tocava, e o churrasqueiro, de alguma maneira,
fez pular uma linguiça da grelha. A linguiça caiu diretamente no toca-discos e produziu o famoso scratch pela
primeira vez. Atribui-se, portanto, duas origens à mesma invenção, pois Grandmaster Flash, no mesmo
documentário exibido pela Netflix, atribuir à “sua ciência” como DJ a invenção do scratching. De qualquer forma,
o Hip Hop fez surgir novas técnicas em cima de possibilidades abertas pelas novas tecnologias sonoras, os sound
systems. Foi por meio da transgressão das técnicas estabelecidas para tocar nos sound systems que o Hip Hop criou
suas sonoridades particulares, com influências de matrizes musicais africanas.

87
conectadas aos ritmos da cultura negra e vinculadas às danças de produtores e consumidores de
música com uma determinada estética e prazer sonoro – eram sinais de uma mudança sensível,
na qual a negociação estética, dentro do estúdio, teve que acontecer: “os técnicos tinham acesso
às tecnologias de produção e sabiam manusear os aparelhos e os DJs tinham a concepção
sonora” (Botelho, 2018, p. 52). Os produtores de rap foram “em busca da batida perfeita”, como
enfatiza Botelho.
Nesses diferentes modos de concepção musical, que se traduziam também por relações
de poder, o Hip Hop dialogou de forma mais efetiva com a produção musical hegemônica.
Além dos usos de equipamentos desenvolvidos por meio das inovações tecnológicas
estrangeiras e importados pelas gravadoras de médio e grande porte, o uso desses espaços de
gravação foi um dos trampolins para consolidar o rap como gênero. Entre outras contribuições,
“os grupos de rap também beneficiaram-se da estruturação das antigas equipes de baile, que
produziram os primeiros discos desse estilo, com orçamentos modestos” (Azevedo, Silva, 1999,
p. 74).
Mas foi só a partir da criação de gravadoras e selos independentes, associados a membros
da cultura Hip Hop ou a moradores das periferias de forma geral, que o rap ganhou os contornos
sonoros que se disseminaram de forma hegemônica nas periferias de São Paulo da década de
90. Dois exemplos são as gravadoras Zimbábwe Records e Star Records, administradas por
jovens empresários negros que já vinham das experiências com os bailes black e exploraram o
mercado não só de São Paulo mas também de outras cidades do estado, como Campinas,
Sorocaba e Jundiaí (Azevedo, Silva, 2014). A Zimbábwe lançou a famosa coletânea
Consciência Black, em 1988, e os três primeiros discos do Racionais MCs, que tiveram altas
vendagens: Holocausto Urbano (1990), Escolha seu Caminho (1992) e Raio X do Brasil (1993).
Talvez a grande inovação dos DJs de Hip Hop na produção musical foi a prática intensiva
do sampling. Por meio de um aparelho, o sampler, que permite manipular músicas que saem
dos toca-discos, as(os) DJs utilizam partes de músicas antigas de outros ritmos musicais e
introduzem essas partes e os sons armazenados no sampler. Esses sons e ritmos podem ser
misturados com as batidas e outras sonoridades – como o bumbo (kick), a caixa (snare) e o
chimbal (hi hat closed/ open) (Botelho, 2018, p. 11) – e sintetizadas pelo sampler, o mixer e
pelo próprio toca-discos.

88
A prática do(a) DJ transformou-se em uma linguagem sonora, na qual se desenvolveram
as habilidades dos complexos arranjos musicais que são vistos no rap de hoje, num verdadeiro
processo de materialização da bricolagem do cotidiano (Certeau, 2014) das periferias.
Outro aparelho conhecido na cena é o MPC, que é usado para criar novas batidas e
remixá-las para produção musical. Embora também usado no Brasil, o MPC, no entanto, foi
mais utilizado nos Estados Unidos. No Brasil, o que transformou a produção musical foi o uso
de softwares que podiam desde criar novas batidas até armazenar diversos sons, como faz o
sampler. Estando de posse de um computador, o uso de softwares possui um custo menor se
comparado com o do próprio MPC ou com o de um sintetizador, como o teclado: “o que
revolucionou a produção musical nos Estados Unidos foi o MPC; no Brasil foi o [software] FL
Studio” (R.P., no seminário “Das posses aos coletivos”, mar. 2019). O Hip Hop aproveitou a
brecha deixada pela globalização, como aponta Santos (2000):

Sob condições políticas favoráveis, a materialidade simbolizada pelo


computador é capaz não só de assegurar a liberação da inventividade como
torná-la efetiva [...]. E a ideia de distância cultural, subjacente à teoria e à
prática do imperialismo, atinge, também, seu limite. As técnicas
contemporâneas são mais fáceis de inventar, imitar ou reproduzir que os
modos de fazer que as precederam (Santos, 2000, p. 164-5).

Foi possível utilizar técnicas computadorizadas também com o uso da internet e das redes
sociais, para criar e disseminar uma música política por meio da subversão da técnica antes tida
como fonte exclusiva de rigidez e aprisionamento. Os usos dessas técnicas e de suas subversões,
como visto, foram importantes para criar a cultura Hip Hop. As possibilidades de sua produção
expandiram-se por meio não só da produção artística mas também da produção de oficinas e de
demais métodos educacionais encontrados pelo Hip Hop para dialogar com as juventudes que
sucederam os e as hiphoppers das gerações anteriores.

2.1.2. Breaking

O b-boy e a b-girl (dançarino ou dançarina de break; nas siglas, referência a breaking-


boy ou breaking-girl) são os(as) responsáveis pela produção e reprodução das danças
vinculadas à cultura Hip Hop. O breaking e o graffiting são os elementos do Hip Hop menos
praticados pelo Fórum Hip Hop, no entanto isso não quer dizer que os eventos e as demais
ações não articulem os outros elementos. Essa questão já foi tratada no capítulo 1 desta

89
dissertação: o Fórum articula, em rede, diversos artistas do Hip Hop dos quatro elementos, os
quais participam ativamente, ou não, das principais decisões envolvendo os rumos da rede. Uma
preocupação do Fórum é articular os quatro elementos, algo raro de ser feito na cultura Hip
Hop. É mais comum encontrar, na cena do Hip Hop paulistano, eventos com os elementos
separados: b-boys e b-girl fazem sua batalha de dança; os e as MCs fazem sua batalha de rima;
DJs fazem seu campeonato; e graffiteiros(as) realizam seu live paint50.
A b-girl N., membro do Força Ativa e participante eventual das ações do Fórum,
concedeu uma entrevista para esta pesquisa e mencionou essa disparidade entre os elementos
dentro do Fórum. Essa disparidade foi, por outro lado, uma realidade que proporcionou sua
participação mais efetiva:

O Djalma [também conhecido como Nando Comunista], do Força Ativa,


acabou me indicando para uma oficina e eu comecei a participar tanto nas
reuniões quanto nas ações. E como as ações de b-boys e b-girls dentro do
Fórum era bem difícil de se ver, eu acabei participando constante. E aí eu
acabei dando algumas sugestões, tentando inserir [...] mais pessoas do
breaking dentro do Fórum. Porque assim, a gente tem graffiteiro, tem DJ, tem
MC muito ativo dentro do Fórum, mas b-boy e b-girl não (N. - ZL - b-girl,
entrevista concedida).

O financiamento e a execução de eventos pela Secretaria e o financiamento via edital, a


participação em eventos de outros coletivos e o financiamento de eventos em parte via edital e
em parte via meios mais autônomos (por vezes, pagando parte do evento com recursos do
“próprio bolso”) possibilitam realizar eventos que articulem os quatro elementos já que isso
envolve o custo mais elevado da contratação de diversos trabalhadores da cultura. Construir a
união dos elementos é difícil e é uma possibilidade que se torna mais efetiva nos eventos em
que circulam verba pública.
O breaking, em específico, é um elemento que necessita mais da união dos quatro
elementos do que qualquer outro para ser não só praticado mas também reconhecido e definido
como Hip Hop. Em uma batalha de breaking, por exemplo, a música tem que estar presente,
mas não qualquer set de músicas; deve ser uma sequência que dialogue com os movimentos do
breaking. Os raps mais pesados, com largo espaço musical entre uma batida e outra e que
introduzem as narrativas densas de conteúdo, não são tão dançáveis.

50
Como o próprio termo em língua inglesa sugere, trata-se da prática de pintar os graffiti em tempo real.

90
Além da música, a arte plástica está presente em algum lugar: nos escritos dos flyers, em
jaquetas e roupas, em um equipamento cultural repleto de paredes grafitadas e nos próprios
bairros e demais localidades da cidade. O(a) MC desempenha a mediação das fases da
competição, anuncia outras atrações e as entradas dos(as) dançarinos(as). Apesar de não ser
unanimidade, por se tratar de um movimento diverso e polifônico, b-boys e b-girls parecem
mais preocupados com a “união” dos elementos, enquanto os(as) DJs são figuras sempre
marcadas nos eventos de Hip Hop. Vistos como “menos politizados”, b-boys e b-girls são as
pessoas que, geralmente, promovem a união do Hip Hop e que recriam significados políticos
relevantes para a história dessa cultura51. Para a b-girl N., o breaking “é um elemento que junta
quatro coisas que são diferentes, mas que conversam, tem um mesmo diálogo enquanto cultura.
Isso é uma coisa que me fascinou desde o começo”. Sobre a união dos elementos, na visão da
b-girl:

[...] tem pessoas que levam isso [a união dos elementos] bem ao pé da letra.
Por exemplo, o Fórum, todas as pessoas que tem, é um role que sempre tenta
juntar os quatro elementos. Tem pessoas, b-boys, que acreditam que tem que
ter a junção dos quatro elementos sempre. Tem pessoas que não: "a gente
dança breaking e é isso, não vai vir um graffiteiro se inserir no nosso rolê".
Por mais que, por exemplo, tem a junção do breaking com o DJ. Teve uma
batalha, a Batalha SP, que teve DJ, breaking e batalha de MC. Faltou o graffiti.
Alguns tentam, as vezes é falho, as vezes vai. Mas não é o movimento ao todo
[...] são trilhares de pessoas com visões totalmente diferentes (N. - ZL - b-girl,
entrevista concedida).

As batalhas, ou duelos, hoje produzidas para unir os elementos do Hip Hop, tornando-se
uma das criações mais lúdicas dessa cultura, antes eram usadas também como forma de
pacificação da violência nas periferias. As batalhas foram meios criados, com influência das
danças já praticadas na época, para deslocar as energias voltadas para a batalha entre as
gangues, na qual a mediação era a violência, e dirigi-las para a batalha de breaking, na qual as
mediações passam a ser a cultura e a política. As demais batalhas (de MC e DJ) também são
definidas nesse sentido, dando ao Hip Hop essa marca de consciência da juventude dos anos
1970 e 1980 dos Estados Unidos e, posteriormente, em várias localidades do mundo,
valorizando a preservação da vida frente à violência, reproduzida nos bairros periféricos das

51
Essa visão também é influenciada pelo contato com o Hip Hop de Rio Claro, conhecido pela cena do interior
paulista como um polo importante de Hip Hop. Esse contato se dá de forma mais ativa com b-boys e b-girls e os
eventos realizados possuem essa preocupação.

91
grandes cidades, e criando uma sociabilidade particular por meio do Hip Hop. No breaking, é
comum a formação de grupos chamados de crews.
As danças vinculadas à cultura Hip Hop tiveram forte influência de danças de matriz
africana. O break e seus desenvolvimentos ulteriores eram dotados de influências de um
mosaico cultural de matriz africana, como a capoeira, a salsa e outras danças latino-americanas
que, no contato intercultural do “atlântico negro” (Gilroy, 2012), fizeram surgir uma dança
praticamente freestyle na sua emergência (Dias, 2018). Mas o breaking também surgiu no
diálogo com as danças dominantes da época, como o funk e o soul, vinculados ao movimento
Black. A presença do soul e do funk estadunidenses, este último representado por James Brown,
incentivou a juventude a dançar e afirmar sua negritude, como na famosa frase do próprio James
Brown: “say it out loud, I’m black and I’m proud”. Esse movimento foi traduzido no Brasil por
meio dos bailes black, que agitaram a cena de parcela da juventude negra nas década de 60 e
70.
Atribui-se a origem dos principais movimentos do breaking aos passos que os soldados
negros que estavam no Vietnã faziam em forma de protesto (Andrade, 1999; Teperman, 2015).
Um dos principais passos do breaking é o giro de cabeça. De ponta cabeça, os dançarinos fazem
movimentos com as pernas que imitam as hélices dos helicópteros. O interesse do pensar as
danças de Hip Hop está também em refletir sobre como essas danças irrompem como formas
políticas de expressão corporal. Documentários e filmes como Style Wars (1983) e Beat Street
(1984) mostram como era o breaking nos Estados Unidos e como os jovens se organizavam em
competições ou formas lúdicas, como a cypher, nas quais os b-boys – a princípio, e depois as
b-girls quando entraram em cena – se reúnem em círculo para dançar no meio de uma roda.
Essas danças foram reterritorializadas em diálogo com as demais práticas dançantes da cultura
negra paulistana.
A cypher não é exatamente uma competição, mas é o momento em que dançarinas e
dançarinos se reúnem simplesmente para dançar break misturado com outros estilos de dança,
conhecidos pelos códigos e significados corporais próprios do Hip Hop. Apesar de não ser uma
competição, movimentos estão ali em disputa: se a disputa ficar acirrada, os b-boys e b-girls
tentam mostrar seus movimentos de difícil execução ou uma combinação única de movimentos.
Com a roda formada, entra cada um(a) por vez e as entradas e saídas devem ser respeitadas.
Muitas vezes, aquele(a) que entra praticamente invade o espaço de dança do(a) que sai, de
forma a evidenciar um conflito momentâneo. A plateia ali formada reage com os movimentos

92
e disputas mais potentes. Para Azevedo e Silva (1999), essa prática possui referência nas rodas
de capoeira e nas rodas de pernada52. O breaking também se relaciona com as danças nas rodas
de samba de partido alto.
O DJ Kool Herc foi o primeiro DJ a dar uma festa, em 1973, na qual as habilidades
incipientes do DJ de Hip Hop surgiram, assim como as break beats, que abriram caminho para
a emergência de novas danças urbanas relacionadas à ideia de “quebra” dos movimentos. O
som criado pelos(as) DJs da cultura Hip Hop está inseparavelmente conectado com o breaking
e seus desenvolvimentos posteriores. Outros movimentos conhecidos, como o footwork, o top
rock e o power moves, também influenciaram e proporcionaram o prazer lúdico que
acompanhou o surgimento do break. O breaking, por sua vez, contribuiu para a produção de
novos sentidos musicais e deu sustentação à ideia da break beat e às demais criações sonoras.
Além do break e seus movimentos tradicionais, as danças urbanas seguiram rumos
entrelaçados por meio dos contatos interculturais e da experiência conjunta das gerações
seguintes do Hip Hop, e fizeram surgir outras formas de dança ligadas à cultura Hip Hop, como
o popping, o locking, o dancehall53 e o krump, além de outras danças que não param de ser
misturadas a esses outros estilos. Desde que o breaking surgiu como forma de dançar as músicas
tocadas nas festas, a velocidade de criação de movimentos de dança é incontrolável e
incatalogável, por suas próprias características “selvagens” em constante mutação (D’Alva,
2014, p. 14-5).
Vale ressaltar que, em São Paulo, Nelson Triunfo é tido como o pioneiro do breaking,
como mostra o documentário biográfico do artista (Nelson, 2014), e até mesmo como o “pai do
Hip Hop nacional” (Buzo, 2011). Sua vida é um exemplo de como as marginalidades
conectivas, propostas por Osumare (2015) e baseadas nas experiências do “atlântico negro”,
produzem, no caso, um sujeito de Hip Hop. Ao sair de Pernambuco para São Paulo, para tentar

52
As rodas de pernada, ou jogo de tiririca, era um jogo de rasteiras praticado pelos engraxates paulistanos nos
momentos de folga de seu trabalho. Santos (2013, p. 3-4) descreve o jogo: “o jogo/dança acontecia em roda.
Formando o círculo ficavam os tocadores e cantadores, enquanto no centro um par de garotos dançava o samba,
fazendo gingas e ameaças, tentando derrubar um ao outro com rasteiras. O fim último da dança era levar o oponente
ao chão. Ao ser derrubado, o perdedor dava lugar a um novo desafiante. Diferentemente das descrições da pernada
carioca ou do batuque baiano, em que um jogador fica ‘plantado’ – parado - à espera da pernada do oponente,
neste jogo da tiririca os dois participantes dançam e desferem rasteiras ao mesmo tempo”. A diferença é que, na
roda de breaking, não existe impacto físico entre um(a) dançarino(a) e outro(a).
53
Dança mais ligada à cultura de danças jamaicanas, mas que possui praticantes vinculados também à cultura Hip
Hop.

93
uma carreira como dançarino, Nelson passou a frequentar os bailes black de São Paulo e
misturar as danças nordestinas com as danças do soul e do funk.
Nos anos 1983 e 1984, por entre os bailes blacks, apresentações com outros grupos, a
mudança do nome de seu grupo principal para Funk e Cia e as transformações no seu estilo de
dança, Nelson e a Funk Cia tiveram a ideia de sair dos bailes para dançar nas ruas centrais de
São Paulo. Nelson passou a ser atração na esquina da rua 24 de Maio com a rua Dom José de
Barros e na frente ao Theatro Municipal como líder da Funk Cia e seu principal dançarino. Suas
coreografias e o jeito irreverente de Nelson chamaram multidões para assisti-los. Logo chamou
também a atenção da polícia militar, que passou a reprimir as rodas de dança sob acusação de
vadiagem e de provocar impedimento na circulação de pedestres.
Conforme Nelson se informava sobre o que acontecia nos Estados Unidos e enxergava
similaridade ao que experienciava como dançarino, passava a incorporar aquilo que via. Até
então, não sabia que o que copiava e rearticulava por meio de suas experiências próprias, como
brasileiro e nordestino, era um movimento cultural chamado Hip Hop: “Quando saiu o filme
Beat Street [...] acho que vi umas dez vezes naquela época. Foi importante porque a partir dali
é que começamos a entender o que é a cultura hip-hop”, disse Nelson em entrevista concedida
a Buzo (2011, p. 26). Os deslocamentos e transformações de Nelson são representativos do
surgimento e dos caminhos que o Hip Hop tomou em São Paulo.
O, atualmente, b-boy foi um dos pioneiros a levar as oficinas de breaking para as
periferias de São Paulo e um dos principais participantes da criação da Casa de Cultura Hip
Hop de Diadema, tida como referência para o movimento. Os(as) arte-educadores(as) de
breaking e de outros elementos do Hip Hop apresentaram outras propostas pedagógicas não só
em escolas, mas em ONGs, coletivos e outras organizações da sociedade civil. Essas propostas
procuravam valorizar a história sob a perspectiva africana e os conhecimentos culturais do Hip
Hop, além de apresentar questionamentos sobre a realidade da vida de crianças, adolescentes e
jovens. Essa formação foi fundamental para que sujeitos, como alguns, se não todos, membros
e participantes do Fórum Hip Hop, pudessem se autodenominar “artistas” e se integrar, em suas
respectivas práticas, à arte-educação.
Diversos artistas como Nelson influenciaram as gerações seguintes e formaram artistas e
membros do movimento Hip Hop. A história da b-girl N. não é diferente; uma oficina que
ocorria no extinto Centro de Juventude (CJ) da Cidade Tiradentes, quando tinha quinze anos,
mudou sua trajetória de vida. Após o CJ fechar, N. continuou a treinar breaking no CEU Água

94
Azul e iniciou uma troca de experiências culturais com outros(as) b-boys e b-girls do seu bairro.
Por meio dessa troca e da politização posterior no coletivo Força Ativa, a b-girl começou a
frequentar as reuniões e a participar das ações do Fórum Hip Hop. Atualmente N. não é somente
dançarina, mas oficineira de breaking para adolescentes, dentro e fora do Fórum. Nas trocas de
experiências, valoriza-se a comunidade criada pela cultura Hip Hop:

[...] tem muito isso da troca. Então eu sei e vou te ensinar. Você aprender e
depois você pode me ensinar [...]. Quando eu dei a minha primeira oficina, eu
falei: "é isso!", saca?! Vai ser por meio do breaking que eu vou levar
informações da dança e para a comunidade. Isso foi o principal ponto que fez
eu ir mais a fundo. Eu treinava para ficar melhor para eu conseguir dar uma
oficina melhor para meus alunos. Não foi só por mim. Foi por mim, mas em
contra partida foi pelos outros (N. - ZL - b-girl, entrevista concedida).

Embora as contradições e ambiguidades sejam visíveis e, por vezes, latentes, como as


citadas no capítulo anterior, o Fórum mantém esses valores e significados. Os membros do
Fórum pensam que, dessa forma, o Hip Hop se constrói na coletividade e no compartilhamento
de experiência, tanto dentro do movimento Hip Hop quanto na relação com outros movimentos,
grupos, coletivos e redes.

2.1.3. Graffiting

O graffiti54 é o elemento do Hip Hop que se define como uma prática de pintura urbana.
Sua prática realiza-se, desde seu início, nas ruas. Atualmente está presente em múltiplos lugares
territórios da cidade de São Paulo: paredes externas e internas de casas em diversos bairros,
túneis, por baixo de viadutos, estabelecimentos comerciais – até em plantas industriais – casas
de cultura de Hip Hop ou não. Enfim, graffiti é, atualmente, um fazer artístico reconhecido.
Além disso, assim como os b-boys e as b-girls, atualmente é comum ver graffiteiros(as)
reconhecidos na cultura Hip Hop em todo o globo e que transitam por países da América Latina,
América do Norte e Europa.
Em alguns casos, a fronteira que marcava a diferença entre artista plástico e graffiteiro(a),
no surgimento do Hip Hop como um movimento cultural, deixou de ser uma referência nítida
para a definição de quem faz ou não graffiti. Um(a) artista plástico pode produzir graffiti, mas

54
Ao ser perguntada sobre a grafia correta do nome desse elemento do Hip Hop, A.S., a graffiteira entrevistada,
respondeu que: “graffiti é lápis”.

95
não estar associado à cultura Hip Hop. No discurso hegemônico, essa distinção é mais nítida
entre pixação e graffiti. Na visão do Estado, o graffiti foi usado para substituir pixações nas
paisagens urbanas (Felix, 2005). Além de serem ou não reconhecidas como expressão cultural
urbana, a diferença entre as duas práticas é situada por Gitahy (1999):

Tanto o graffiti como a pixação usam o mesmo suporte – a cidade – e o mesmo


material (tintas). Assim como o graffiti, a pixação interfere no espaço,
subverte os valores, é espontânea, gratuita e efêmera. Uma das diferenças
entre o graffiti e a pixação é que o primeiro advém das artes plásticas e o
segundo da escrita, ou seja, o graffiti privilegia a imagem; a pixação, a palavra
e/ ou a letra (Gitahy, 1999, p. 19).

Na cultura Hip Hop, o graffiting mistura imagem e palavra ao mesmo tempo que subverte
os valores por meio das artes plásticas. A produção desse elemento pode ser realizada em
diversos contextos: em eventos, produzidos ou não por coletivos exclusivos de graffiteiros(as),
com foco para oficinas e live paint; em protestos e atos, nos quais o graffiti produzido possui
uma temática ligada ao que se protesta e resiste; em exposições, em que o graffiti pode ser
reproduzido em telas, de forma a enquadrar diversas obras em um mesmo espaço – o que é
possível também por meio de registro fotográfico; em estampa de camisetas, blusas e jaquetas
jeans; em ações de graffiteiros(as) reconhecidos(as) para realizar obras públicas,
contratados(as) pelo poder público, com semelhança aos murais, de forma a criar um patrimônio
cultural para a cidade em questão; como meio de transformação da estética de um bairro,
mediante uma ação coordenada, seja entre graffiteiros(as) e moradores(as), seja entre
graffiteiros(as), moradores(as) e poder público; e até como prática autônoma de se fazer um
graffiti em uma rua pública sem a necessidade de qualquer permissão ou chancela do Estado.
O graffiting possui uma íntima relação com a própria constituição dos espaços e lugares
(Certeau, 2014) em que “habita” na metrópole:

Existem ainda os lugares históricos da pixação e do graffiti; são espaços não


exatamente de fluxo ou de permanência juvenil, mas que aos poucos, com o
passar dos anos e com as práticas juvenis foram transformando-se em
territórios reconhecidos e apropriados pelos jovens para as suas intervenções.
Escadarias, becos e paredes de algumas fábricas transformam-se em suportes
de intensos diálogos gráficos que atravessam os anos, resistindo às rápidas
transformações da metrópole que marcam a efemeridade das intervenções
(Borelli, Oliveira, 2008, p. 12-3).

96
Na cultura Hip Hop, no entanto, não é unanimidade que o graffiti faça parte da cultura.
A.S. é uma graffiteira que faz parte dos coletivos Arte e Cultura na Kebrada e Eletro Tintas,
participou do projeto “Mulheres de ArTitude”, contemplado pelo VAI 2018, e também de dois
eventos do Fórum, além de ter participado da coordenação do Mês do Hip Hop na zona leste,
onde mora. Ela concedeu uma entrevista para esta pesquisa e relatou que, durante a organização
do Mês do Hip Hop 2018, ouviu, de um hiphopper ligado ao Núcleo do Hip Hop, à época
liderado por Eazy Jay, a afirmação de que “o graffiti não faz parte da cultura”, desqualificando-
o como elemento do Hip Hop:

Em uma das reuniões eu escutei de um cara, quando eu questionei as coisas


que estavam acontecendo [...]. Uma pessoa virou para mim e falou que graffiti
nem deveria estar no Hip Hop, porque o graffiti só trazia problema para o Hip
Hop. Na realidade eu não sei que problema que o graffiti traz que... enfim né.
Mas algumas pessoas, na realidade, não consideram o graffiti como Hip Hop.
É como se fosse a cota do Hip Hop: "vamos colocar alguma coisa, vamos
colocar graffiti". Não tem graffiti nas apresentações de Hip Hop. Breaking
ainda aparece um pouco mais, mas graffiti você não vê em todas as
apresentações. Eles falam que é Hip Hop, mas eles colocam três elementos e
pulam o graffiti (A.S. - ZL - graffiteira, entrevista concedida).

O Fórum Hip Hop é visto como uma referência na produção de eventos com articulação
dos quatro elementos. É consenso, entre os entrevistados para esta pesquisa, que esse é um dos
esforços da rede cultural: “o Fórum, todas as pessoas que tem, é um role que sempre tenta juntar
os quatro elementos”, diz a b-girl N. na entrevista concedida à esta pesquisa. Além disso, muitas
vezes, esse esforço acompanha uma ampliação das relações já estabelecidas mediante novas
relações com novos(as) artistas. A.S. é um exemplo dessa nova relação: ficou conhecida pelos
membros do Fórum – Pirata, em especial – durante as reuniões de organização do Mês do Hip
Hop e passou a participar, também por sua forma de pensar a cultura e a política, de eventos
realizados pelo Fórum. O trabalho de A.S. está associado a uma proposta pedagógica que
resolveu adotar desde que iniciou sua trajetória como graffiteira – em 2013 – e que consiste em
mostrar e transmitir a arte do graffiti para crianças, principalmente para as meninas.
Sua relação com o Fórum não se reduz, nesse sentido, à participação contínua das
reuniões semanais e das outras voltadas para organização das políticas públicas de Hip Hop de
um modo geral. A.S. e o Fórum relacionam-se por meio da mobilidade em rede e da conexão
com sujeitos da cultura, que, por sua vez, ativam outros coletivos e proporcionam uma troca
diversa de experiências. Por outro lado, a valorização do graffiti nos eventos de Hip Hop entra

97
em contradição com o fato de nenhum(a) graffiteiro(a) participar ativamente das principais
decisões do Fórum. A rede, nesse sentido, mantém a proposta de articular outros coletivos de
Hip Hop, mas a baixa participação do graffiti na cultura Hip Hop é reproduzida.

[...] eu percebo que o Fórum não tem ligação com pessoas do graffiti, nem do
breaking. A grande maioria dos eventos que eles fizeram, eles chamaram as
mesmas pessoas, porque eles não têm contato com pessoas assim. Eu encaro
isso de uma forma meio negativa, porque o Fórum, por ser um Fórum do Hip
Hop, ele deveria procurar incluir mais os outros elementos, porque o Hip Hop
não é feito só de MC. E grande parte dos eventos de São Paulo, eles colocam
50 MCs, 2 b-boys, quando colocam graffiteiro colocam um [...]. Nas reuniões
é falado isso. Nas reuniões, principalmente as de construção do Mês do Hip
Hop, é falado bastante sobre isso, que não tem espaço para graffiti e breaking.
A gente tem que lutar pelo espaço que já deveria ser uma coisa nossa. (A.S. -
ZL - graffiteira, entrevista concedida).

A.S. não nega que faça parte da cultura Hip Hop, embora o graffiti, uma das linguagens
culturais que formam a cultura Hip Hop desde a década de 70, nos Estados Unidos, e década
de 80, no Brasil, ainda necessite “lutar” pelo seu reconhecimento na prática. Mesmo dentro da
cena do graffiti de São Paulo, com coletivos constituídos basicamente por graffiteiros(as), é
preciso lutar, ainda, contra a desigualdade de gênero, uma problemática presente nas três
entrevistas realizadas com hiphoppers mulheres. A b-girl N., ao criticar o machismo no Hip
Hop, contou experiências pelas quais já passou em eventos de Hip Hop em geral: “ a gente teve
mina que tava no maior corre, maior corre e ainda assim a gente tem cara ainda fazendo gestos
obscenos em batalhas, ou desmerecendo o graffiti de uma mina”. A.S. falou do seu projeto
“Mulheres...” e contou como essa luta é feita dentro do graffiti paulistano:

Nosso projeto serve para mostrar as mulheres que fazem graffiti na cidade de
São Paulo, dar visibilidade para essas mulheres. Porém aqui no extremo leste.
Nós chamamos três graffiteiras por vez. Elas fazem murais na zona leste, elas
definem o tema entre elas. Nós criamos os grupos e elas decidem o tema. Elas
fazem murais aqui no extremo leste de São Paulo e depois as graffiteiras que
participam dos murais trazem uma tela e depois nós fazemos exposições em
locais públicos [...] Chamamos 90% das mulheres e 10% de homens, porque
a gente também não gosta de: "ah, só vai mulher". Não, tem que ter o convívio
de todo mundo junto, porque eles também precisam entender que o que nós
sentimos quando vamos para um evento masculino, que às vezes eles tratam
mulher como cotas (A.S. - ZL - graffiteira, entrevista concedida).

Mas o que explica esse distanciamento, de um lado, e a permanência do graffiti na


constituição ideal de Hip Hop, do outro? O graffiteiro Bonga, em entrevista concedida para

98
Buzo (2010), ao ser perguntado sobre o graffiti “caminhar paralelo ao Hip Hop”, fez uma crítica
ao movimento Hip Hop como um todo:

O graffiti sempre trilhou seu caminho sozinho, buscou seus próprios espaços,
criou seus próprios conceitos, porque, de todos os elementos, ele nunca pode
esquecer a rua, pois, se isso acontecer, ele não existe, não tem por que... Coisa
que tem acontecido com o resto da cultura que, em muitos casos, esqueceu sua
maior referência: a rua (Bonga apud Buzo, 2010, p. 244-5).

Bonga, ao falar de sua participação na cultura Hip Hop, disse que o graffiti buscou seus
próprios espaços e conceitos. Corrobora o argumento de Bonga o fato de que o uso das ruas
como suporte de intervenção, que mexe com os sentidos e significados estabelecidos dos
territórios urbanos, não é restrito à cultura Hip Hop. Para autores como Medeiros (2013), a
prática do graffiti, como intervenção artística nas ruas – sprayação –, remonta aos
acontecimentos que marcaram a década de 60 tanto no Brasil quanto no mundo: resistência
contra a ditadura civil-militar, com a formação de coletivos que buscavam criticar os conceitos
de arte, a repressão e o mercado da arte, e diversas outras manifestações que protestavam contra
o regime, assim como fizeram, simultaneamente, os(as) estudantes franceses(as) de maio de 68.
Essas intervenções invadiram a vida cotidiana de grandes cidades como São Paulo.
Por meio dessas tendências, ficaram conhecidas duas gerações de artistas vinculados à
arte do graffiti. A primeira, entre 1970 e 1980, ficou conhecida pela atuação dos coletivos
Tupinãodá, 3 Nós 3 e Manga Rosa e de outros artistas, como Waldemar Zaidler, Carlos Delfino
e, principalmente, Alex Vallauri. Estes estavam vinculados a múltiplas formas de intervenção
urbana no cotidiano, como performances teatrais, aplicação de máscaras, diversidade de cores
nas imagens e o uso, também, de diversificados materiais além do spray de tinta. A segunda
geração, de meados dos anos 80, apresentou novas variações visuais e plásticas em seus
trabalhos, como o stencil art55. Ficaram conhecidos artistas como Marcelo Bassarani, Ivan
Taba, Marcia & Carmen e Celso Gitahy – citado acima.
A principal força que movia essas duas gerações era a intenção de libertar as obras de arte
dos museus e demais instituições para colocá-las em contato com as pessoas. O graffiti tinha o
objetivo de criticar a institucionalização da arte e a negação a seu acesso (Medeiros, 2013). A

55
O stencil é a pintura feita com base em um papel recortado com um desenho. O graffiti é realizado com a
aplicação da tinta em spray nos recortes. Essa forma de graffiti é utilizada, entre outros(as) artistas, por Banksy,
conhecido graffiteiro britânico.

99
vida desses(as) artistas era marcada, no entanto, por desigualdades relacionadas à classe e pelo
acesso a outros bens que os(às) artistas que praticavam o graffiti vinculado ao movimento Hip
Hop não acessavam: “As primeiras escolas do graffiti paulistano foram formadas por estudantes
de arte, artistas plásticos, poetas e atores em sua maioria pertencentes às classes média e alta”
(Medeiros, 2013, p. 40).
O movimento Hip Hop transformou a prática do graffiti na década de 80 tanto na
expansão dos espaços e lugares, nas suas organicidades, quanto em seu conteúdo: expansão da
quantidade de praticantes e de intervenções; a mistura de cores; o surgimento de formas
diversificadas de escritas, com traços largos e cruzados; a criação de personagens e
experimentação surrealista; representações periféricas, tanto de seus(as) moradores(as), quanto
urbana; o uso de temáticas ligadas ao cotidiano, de forma a estabelecer diálogo com os
territórios onde transitava; denúncias e protestos, trazendo a contribuição plástica do rap; e a
ultrapassagem das fronteiras que separam pixação, socialmente condenável, e graffiti,
socialmente aceito. Nesta última, graffiteiros(as) podem misturar pixação com graffiti e
graffiteiros(as) podem também praticar a pixação de forma separada ao graffiti56.
Refletir sobre essas semelhanças e descontinuidades pode contribuir para compreender
os conflitos internos do movimento Hip Hop, como um todo, e do Fórum, como expressão do
Hip Hop paulistano. Graffiteiros(as) antes ligados ao movimento Hip Hop tornaram-se artistas
de grandes murais e contratados por grandes empresas, abandonando as antigas relações com a
comunidade do Hip Hop. Outros aderiram ao movimento mesmo sem morar geograficamente
nas periferias.
Nessas misturas, há uma reação do mercado para desvincular os atributos políticos do
movimento Hip Hop e absorvê-lo:

[...] Embora a arte dos graffiteiros [sic] permaneça nas ruas e continue
parcialmente fora do circuito de mercadorias, os graffiteiros também
começam a se coadunar aos sistemas de valorização e discursos estéticos
dominantes. Assim, alguns graffiteiros que chegam às galerias de arte e fotos

56
Essas relações de misturas entre a arte do graffiti e a pixação foram indicadas pela amiga e pesquisadora Bianca
Fasano. Em sua pesquisa e por seu interesse e curiosidade por essa fronteira, que torna as duas práticas ora
separadas e ora conjuntas, mas em diferentes momentos, espaços e lugares da cidade, Bianca sempre compartilhou
suas percepções e alguns “dados”. Esse foi um deles: graffiteiros(as) em geral discordam da condenação social à
pixação por se sentirem, de alguma forma, “participantes”, senão ativamente, da prática pixo, mas, ao menos, por
meio do reconhecimento dos “gritos da metrópole”, representados pelas tags, sinais e linguagens, desconhecidas
do grande público que critica a pixação. A pixação é uma linguagem urbana partilhada entre sujeitos que produzem
um deslocamento subversivo dos lugares de sua expressão.

100
de graffites de São Paulo já aparecem nas páginas de elegantes livros de artes
(Caldeira apud Gomes, 2008, p. 101).

Por ser o graffiti um movimento que não está associado, necessariamente, aos elementos
do Hip Hop e que compartilha os meios e os ideais com a cultura – cidade como suporte e crítica
à institucionalização da arte –, diversos sujeitos passaram a se identificar como graffiteiros(as).
Essa identificação não corresponde a um pertencimento à cultura Hip Hop: seriam artistas que
produzem arte urbana e que pode receber a denominação de graffiti, mas sem o
compartilhamento cultural. Por outro lado, a definição do Hip Hop como cultura de rua, como
defendido por Macedo (2016) – apesar da historiografia em blocos – é justamente uma das
possibilidades de conexão de graffiteiros(as) com o movimento Hip Hop.
As desigualdades não só de classe mas também de gênero, que estão presentes nos ramos
artísticos mais diversos – entre elas, a que é marcada pelo machismo, criticado tanto pelas
entrevistadas como por outras hiphoppers que este pesquisador encontrou durante a pesquisa
de campo –, confundem-se com as desigualdades dos próprios elementos dentro da cultura.

2.1.4. MCing

O(a) MC é a figura que possui maior visibilidade na cultura Hip Hop. O Mestre de
Cerimônias chama, para si, a atenção nas festas, batalhas e outros eventos e dita o ritmo de cada
acontecimento. O(a) MC também é o(a) dono(a) dos palcos; enquanto canta, produz uma
performance específica, com movimentos corporais específicos e que buscam produzir
comunicação com a plateia, as pessoas de uma festa e ouvintes em geral. Apresenta os(as)
principais envolvidos(as) nos eventos, os(as) DJs, outros(as) MCs, b-boys e b-girls e chama a
atenção para os graffiti, tanto para aqueles que foram realizados em outros momentos e em
outros lugares, diferentes de onde o evento está acontecendo, quanto para os graffiti feitos no
mesmo dia desse evento. As apresentações misturam-se com o que está se desenrolando no
momento.
A função do MC também deve considerar o improviso. As contingências de cada
acontecimento são contornadas com destreza: um atraso de alguma atividade; um(a) artista que
não pôde comparecer; no caso de espaços públicos, a articulação pública com a hierarquia de
um lugar, feita pelo microfone, entre o tempo das atividades e o tempo do local; provocações e
demais reações da plateia, etc. Por vezes, o(a) MC introduz doses de humor durante os eventos

101
para conduzir os trabalhos com leveza e descontração. A performance mistura humor,
visibilidade, organização de acontecimentos em tempo e espaço determinados e a relação entre
esses acontecimentos e a plateia. Uma pessoa que pratique breaking, DJing ou graffiting pode
também assumir a função de MC, desde que seja conectado com os valores, significados e
subjetividades compartilhados pela cultura Hip Hop.
Como apontado por D’Alva (2014, p. 21), ao escrever sobre o surgimento do Mestre de
Cerimônias, o MC é uma figura presente em diversas culturas, da Grécia antiga até Rússia e
China, e sua história confunde-se com as histórias dos rituais e cerimoniais. A função do Mestre
de Cerimônia, ou qualquer outro nome dado a essa função social, em geral, consiste em assumir
as atribuições, como já visto, de “ordenar, conduzir, anunciar e organizar”, e o sujeito que a
exerce constitui-se como figura de autoridade em determinados eventos. Não uma figura
autoritária, que direciona ou impõe andamentos; na cultura Hip Hop, essa condução é por vezes
questionada e pode ser, dadas as circunstâncias de natureza de um espaço ou lugar e a
disponibilidade de tempo, alterada. O MC pode ser uma figura reconhecida, que assume funções
esperadas de poder. Uma função não despótica, mas de um lugar de poder a ser ocupado por
alguém57.
No caso do movimento Hip Hop paulistano, a aproximação com o Estado intensifica a
necessidade dessa função, pois alguém precisa, caso parte do movimento concorde em
participar das políticas públicas, lidar com a relação, desconfortável do ponto de vista subjetivo,
com os espaços de estatalidade (Ocampo, 2012). Essa função, no entanto, está longe de ser
unívoca. A escolha de um ou uma MC é um conflito. Diversos sujeitos que comparecem às
reuniões gerais para as políticas públicas – entre elas, as que ocorrem na Galeria Olido –
voltadas para a organização do Mês do Hip Hop assumem esse papel. O Fórum Hip Hop
costuma estar mais presente nessas reuniões do que outros coletivos e grupos, mas isso não
significa que as “lideranças momentâneas” não possam ser questionadas; o Fórum possui uma
certa sistemática de andamento, devido à sua experiência no processo, e tal questionamento faz
com que os conflitos se acirrem.
Apesar de essa função social não ser específica das culturas negras, as performances do
MC possuem as mesmas conexões presentes nas práticas vistas anteriormente: esses elementos

57
Essa ideia está em Clastres (2013, p. 46-67). O autor refere-se a uma antropologia política específica, voltada
apenas para as sociedades indígenas, ou, ainda mais especificamente, para as sociedades indígenas sul-americanas.
A título de comparação, essa leitura pode apresentar uma forma de interpretar o conceito de poder: sua natureza e
como as diferentes sociedades puderam manejá-lo por meio de suas organizações e instituições políticas.

102
foram influenciados, direta ou indiretamente, pelos resíduos deixados pelas culturas negras. Ao
analisar a performance conjunta entre MC e DJ, Smith (2015) cita alguns elementos que são
centrais para a produção de significados do Hip Hop e que estão presentes, principalmente, nos
rearranjos residuais: tradução eletrônica de resíduos musicais provenientes das experiências
históricas da população negra, como os spirituals58; as músicas de chamada e resposta; o
signifying59; improvisação; o suingue; o sampling e a prática de citação; e a conexão com outros
ritmos, como o funk estadunidense e o soul (Smith, 2015). Além dos componentes musicais
propostos por Smith (2015), outras formas culturais, como o toast60, das Américas (Silva,
1998), o repente e o partido alto, do Brasil (Teperman, 2015), marcam os resíduos presentes na
oralidade rimada da figura do MC61 e nas batalhas de freestyle.
Muitos desses componentes fazem parte tanto da performance do MC, como um
condutor, quanto do rap e das batalhas de rima. O ritmo e a poesia são articulados às tradições
orais das culturas de origem afro, com a maior sensibilidade ao ritmo, mas tornam-se
componentes também de diferenciação musical em relação à tradição da música ocidental
(Silva, 1998), mais sensível à preponderância da harmonia. Esses significados são constituintes
da estética africanista, conforme pensado por Osumare (2015). Andrade (1999) cita essa mesma

58
Os spirituals são os cantos religiosos compartilhados na população negra do Estados Unidos. Esses cantos
também foram usados de forma codificada na época da escravidão, com o objetivo de informar a comunidade
sobre planos de resistência. O grupo Racionais MCs talvez seja o maior exemplo de grupo de rap nacional que
usou os spirituals com significados distintos dos comumente usados pela igreja católica, como uma tentativa de
se comunicar com seguidores de grupos religiosos ligados às periferias, como as religiões de matriz africana e as
diversas igrejas pentecostais. O CD “Sobrevivendo no Inferno” (Racionais MCs, 1997), por exemplo, é repleto de
signos religiosos que aparecem na Bíblia. A faixa “Capítulo 4, Versículo 3” é uma das músicas mais pesadas já
feitas na história do rap nacional, tanto em termos sonoros (os graves e o uso de componentes sonoros que abrem
espaço para as mensagens) quanto pela força da representação de diversas realidades periféricas. Outro grupo que
marca, senão pelas referências à signos religiosos, mas pelo som próximo aos spiritual, é o Facção Central. O
grupo UGK também é uma referência estadunidense nesse sentido.
59
“Signifying pode ser compreendido como a utilização de palavras, signos, símbolos ou gestos para produzir
significado [...] de insinuação sexual, metáfora e analogia para explicitar uma ideia ou recontar um evento” (Smith,
2015, p. 97).
60
“O toast caracteriza-se pelo uso da linguagem das ruas e pela construção de narrativas de experiências que
remetem à história de vida dos excluídos, atividades ilegais e semi-legais, como o jogo e a droga” (Silva, 1988, p.
38).
61
O partido alto é uma roda de samba em que os sambistas produzem um discurso versado e espontâneo, que pode
conter ou não rimas. Essa performance é mostrada no curta-documentário de Leon Hirszman, “Partido Alto”
(1976), com protagonismo de Mestre Candeia, este que, em meio a uma roda de samba, diz às câmeras: “samba
de partido alto, em algumas fórmulas, existe uma grande semelhança com a música nordestina, com o repente
nordestino, porque o samba de partido também tem aquela fórmula da improvisação. A improvisação que vai
nascendo não só sobre o tema e refrão, mas também sobre o ambiente, sobre um clima que vai se criando aos
poucos. Na Mangueira têm um partido que diz assim [...]”. O refrão tem início e, em seguida, passa-se para uma
pessoa da roda, a qual diz um verso; canta-se o refrão novamente e repassa-se para uma outra pessoa da roda. Nas
batalhas de rap freestyle, não existe refrão, mas o tema e a improvisação com base no “ambiente que se cria” em
meio à batalha são características marcantes dessa expressão do Hip Hop.

103
relação, mas como presença residual de uma figura bem presente nas culturas de origem
africana – os griots. A figura dos griots é frequentemente citada na literatura de Hip Hop:

As raízes do rap podem ser encontradas entre a população historicamente


escravizada tanto do Brasil quanto dos EUA. No Brasil, os ganhadores de pau,
que vendiam água nas ruas de Salvador, utilizam-se do canto-falado em que o
MC (mestre-de-cerimônia) conduzia o grupo. Nos EUA, houve os escravos
das fazendas de algodão no sul do país, os gritos, que também utilizavam
desse estilo de cantar. É um exemplo básico da transcendência negra: não
importa onde esteja seus descendentes, há referências a culturas de origem
africana que permanecem por gerações (Andrade, 1999, p. 87).

Para outros autores, como Silva (1998, p. 185), os griots africanos, especialmente da costa
ocidental da África, são “conhecidos pela forma como narram as epopeias das famílias
tradicionais tendo como apoio um instrumento melódico conhecido como kora”. Lopes (2011,
p. 236), por outro lado, aponta a armadilha do uso dessa designação, por ser um conceito criado
pela colonização: “termo do vocabulário franco-africano, criado na época colonial para
designar o narrador, cantor, cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história
de personagens e famílias importantes das quais, em geral, está a serviço”.
O rap pode ser visto, da mesma forma, na continuidade africanista de outros ritmos
musicais presentes nas periferias de São Paulo, que articulam comunidade, oralidade e ritmo
como elementos marcantes na construção musical, como é o caso do samba:

O rap é música e chama mais atenção normalmente do que as outras coisas,


que é a coisa do falar, do som, da festa, dos raps nas festas, nos bailes, festa
em casa, na rua; é uma coisa que chama mais atenção por causa da
musicalidade [...] porque a gente é meio que criado em meio a tudo isso.
Samba principalmente (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

O que emerge junto com o rap, à diferença de outros ritmos presentes na história da
música brasileira, é a sua forma de comunicação com os “seus” – com as comunidades em que
o(a) rapper mora ou com as quais ele se relaciona de alguma forma – e com os “outros” –
aqueles que estão, de certa maneira, distantes da realidade em que aquele ritmo ou aquela poesia
se baseia ou, ainda, do fazer artístico que contém denúncia, protesto e rebelião. A comunicação
por meio do canto falado, com os graves e elementos musicais dissonantes, faz com que o rap
consiga transmitir sua mensagem. Os outros ritmos que mais inspiraram o surgimento do rap e
do MC no Brasil, como o samba, o funk e o soul, continham denúncias e algum chamado à

104
percepção de questões políticas presentes no cotidiano e na política institucional, mas a
presença marcante dessas denúncias tornou-se a própria definição do que é rap.
A crítica à política institucional é evidente nas músicas; o que é menos evidente e, no rap,
torna-se fruto de reflexão, passível de outras mediações, é a vida cotidiana dos sujeitos que,
majoritariamente, produzem o rap considerado mais orgânico. Produzir música com base na
vida cotidiana é uma definição possível para rap.

Acaba sendo natural [...]. O rap normalmente escreve de coisas cotidianas,


desde o início normalmente acontece assim. Você pode inventar histórias, que
são jeitos de fazer rap, por exemplo. E o político acaba sendo tudo, porque de
repente o cara tá lá na quebrada e tem dois cômodos, barraco de madeira, ele,
a mãe e um irmão, não tem pai, e o cara começa a escrever da treta com o
outro, o outro deu tiro no outro, aí no que o cara escreve, o cara tá raciocinando
a respeito daquilo. O que gerou aquilo? A gente mora num lugar, dá um
rolezinho e a gente vê umas casas melhores ali, por que aquele pessoal tem
uma casa melhor? Isso no processo de criação da própria letra de rap, vai
gerando reflexões. Você pode falar que você quer ter um carro na mesma letra,
você pode falar que quer ter um carro, mas como faço para ter um carro? Eu
não tenho dinheiro, mas por que não tenho dinheiro? E isso você escrevendo
e pensando a respeito (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

Sendo um MC, eu consegui refletir meu cotidiano. Ainda tô na luta de um


monte de coisa, mas sendo MC. A coisa que eu mais curto... tudo que eu faço
também é porque eu quis pegar o microfone e fazer rima. E é o que eu mais
curto. Minha liberdade é fazer rima [...] para mim isso deu uma liberdade de
entender um monte de coisa. Eu sou MC, é isso (R.P. - C - rapper, entrevista
concedida).

Ser MC, condutor de um público e comunicador/ improvisador de situações que ligam os


pontos desconexos em cerimônias, rituais e eventos em geral, e ser rapper não significa,
necessariamente, ser a mesma figura, assim como acontece na relação entre os(as) praticantes
do graffiti e a cultura Hip Hop, à qual aquele pode ou não pertencer. Essa questão, também
levantada por D’Alva (2014), é identificar se MC é sinônimo de rapper. Segundo a autora,
rapper é quem faz e canta rap, mas nem todo(a) rapper é, necessariamente, MC, ou seja, nem
todo(a) rapper performa em público como condutor de eventos, shows e cerimônias; pode
somente cantar rap.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que o MC, em relação ao contexto do hip-


hop, nasce dentro dessa cultura e é parte constitutiva dela [...]. O rapper,
embora tenha as mesmas raízes que o MC quanto ao seu surgimento, não
necessariamente tem ligação com a cultura hip-hop e essa seria a principal

105
diferença entre os dois. Nesse caso, pode-se dizer que todo MC é um rapper,
mas nem todo rapper é um MC (D’Alva, 2014, p. 41).

Essa desvinculação criada, entre outras razões, pela indústria fonográfica e pela
veiculação massiva do rap, causa certa confusão nas definições dessas fronteiras. Rappers
famosos(as) e conhecidos(as) da grande mídia, “bem-sucedidos(as)” nessa indústria, não estão
conectados(as) diretamente à cultura Hip Hop e à sua comunidade, embora o próprio rap
marque suas raízes. A figura do rapper, por outro lado, não precisa desempenhar as mesmas
funções do MC para ser “do Hip Hop”; depende do compartilhamento de experiências e do
caminhar junto.

O Hip Hop representa a classe pobre, por enquanto. Por mais que tenha os
caras “do predinho” [...] Os caras do predinho são os rappers que não têm
coisa com nada. É óbvio que ele não vai falar sobre favela, porque ele nunca
viu a favela. Nós temos rapper, caras do break, que falam que não vão na
favela porque é perigosa [...] O cara nem entende o que ele tá participando
(R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

MC e DJ são os elementos mais presentes no Fórum. A maioria dos rappers é MC, como
Pirata, Gile e Sonora, mas existem membros que atuam somente como rappers, como Tito,
Abrantes e Bener Zil. Cada um segue como artista solo ou se vincula a algum grupo de rap.
Nos eventos de formação com oficinas – como no caso do Festival Hip Hop que ocorreu na
Casa de Cultura Hip Hop Leste, durante o qual aconteceram somente apresentações de rap,
rodas de breaking improvisadas, discotecagem e um graffiti –, os membros do Fórum que
assumem o papel de MC se misturam. Rappers e MCs apresentam-se e abrem espaço para
outros grupos parceiros que também participam da organização dos eventos nos bastidores se
apresentarem.

2.2. Articulações e heranças nas formas de atuação do Fórum

O Fórum é atravessado pelo diálogo com diversas formas de organização, e suas ações
percorrem os territórios institucionais e autônomos em que o político, em sua dimensão
conflituosa, surge e pode ser expressado na política institucional. O Fórum permite o
antagonismo ao mesmo tempo em que considera um demos heterogêneo, conforme interpretado
com o conceito de agonismo de Mouffe. Com o uso das práticas do Hip Hop, os sujeitos do

106
Fórum agem politicamente, seja como MCs, DJs, b-boys e b-girls, e graffiteiros(as); no
cotidiano de territórios periféricos e nas institucionalidades, criam outros valores e significados
políticos por meio das ações culturais e estão envolvidos em uma série de controvérsias e
ambiguidades.
O Fórum possui uma dinâmica mais ou menos própria no seu cotidiano62. Faz reuniões
semanais e abertas das quais qualquer hiphopper do movimento pode participar; incentiva as
reuniões institucionais; promove eventos financiados integral ou parcialmente por meio de
editais públicos; realiza pressão política em forma de protestos e atos recheados de palavras de
ordem e também batalhas de rima em frente a Secretaria de Cultura, por exemplo 63; e está em
escolas e demais instituições para intervir no cotidiano de adolescentes e jovens. Nesse sentido,
defende-se, aqui, que o Fórum, apesar de pressionar o Estado por financiamento cultural e
circular pelos demais lugares institucionalizados, foge das lógicas institucionais por se
constituir como uma rede de sociabilidade, e fazer um uso astucioso do que seria uma lógica de
dominação (Certeau, 2014).
A cultura Hip Hop revela-se como resistência, e a prática política presente em toda a sua
produção. Por esse motivo, esta dissertação também defende que Hip Hop articula cultura e
política de forma inseparável e conjunta. Os sujeitos do Hip Hop, historicamente, organizam
suas ações político-culturais com um objetivo bem presente em muitas delas: a mudança da
realidade das “quebradas” tanto simbólica quanto materialmente.
A forma de agir, no entanto, é fundamental. Os objetivos que se pretende atingir – realizar
uma oficina, uma competição de breaking, um show de rap, uma discotecagem, um live paint,
ou oficina de graffiti, um curso ou palestra que aborde um tema presente no cotidiano juvenil
ou até assumir certa posição de reconhecimento político e social –, mesmo que momentâneos,
efêmeros e discordantes entre si, são pensados em sua forma de realização: uma forma mais,
ou menos, engessada; institucional e/ou autônoma; experimental e/ou informal; no caso da
música, uma gravadora independente ou subordinada à indústria cultural. As formas de
articulação estão em constante transformação e se caracterizam por constantes conflitos entre
uma e outra. As novas formas, protagonizadas por coletivos e redes, surgiram não como ruptura
e negação às tradições, mas por contatos conflituosos, tensos e simbióticos (Borelli; Oliveira;
Rocha, 2008).

62
Como já explicitada no capítulo 1 desta dissertação.
63
Algumas dessas ações estão descritas e relacionadas com a ocupação dos territórios no capítulo 3.

107
Essas formas – tradicionais, antigas e as novas e emergentes – e as modalidades culturais
– teatro, circo, sarau, danças em geral, ritmos musicais, etc. – possuem sua especificidade
histórica, mas em constante relação com outras modalidades e com heranças nos modos de
articular cultura e política. O Hip Hop não é diferente; possui uma história específica, que foi
descrita, no item anterior, como uma cultura que reconstitui resíduos de culturas negras na vida
cotidiana dos sujeitos que habitam – como também afirmam – a periferia, e está em contato
com elementos culturais dominantes e emergentes. Não só os elementos artísticos e
comunicacionais que o constituem, mas também suas formas de articulação. Essas formas
adquirem uma relação histórica com heranças anteriores, importantes para entender a proposta
do Fórum Hip Hop: ser uma rede de sociabilidade, reformular e participar das lutas passadas e
presentes, dando novos sentidos às práticas dos movimentos sociais.
As tensões entre modos de articulação estão presentes no cotidiano do Fórum tanto na
formulação de políticas públicas, com a exacerbação de conflitos entre coletivos, redes, sujeitos
e outros conflitos específicos do movimento Hip Hop, quanto nos eventos que se relaciona com
“posses”, movimentos sociais, coletivos e redes nos territórios periféricos e mais centrais de
São Paulo. O evento “Das posses aos coletivos” 64, organizado pelo Fórum Hip Hop do Ipiranga,
do qual Gile também faz parte, que ocorreu no CEU Heliópolis, tinha a intenção de debater as
formas criadas pelo Hip Hop – ou outras experiências que o Hip Hop se espelhou, criados por
outros movimentos e organizações presentes nas periferias – para atuar nos cenários políticos
apresentados pela vida cotidiana dos territórios e nas possíveis articulações com políticas
públicas. Com a presença de uma “posse”, um grupo de rap, um coletivo e uma rede – o Fórum
–, esses diálogos, caracterizados por diversas tensões, ficaram evidentes.
Nesta pesquisa, concorda-se com Maia (2014, p. 116) quando diz que os coletivos e as
redes de produção cultural podem se situar entre a constituição dos movimentos sociais e as
“formações” (Williams, 2000). Williams refere-se a tendências e movimentos. Por esse motivo,
as formações culturais estão mais relacionadas às emergências e autonomias relativas, enquanto
o Fórum, embora apresente relações renovadas com membros mais jovens do movimento Hip
Hop e se relacione em diversas frentes políticas, já é constituído como uma rede reconhecida

64
Esse evento fez com que a proposta inicial deste capítulo se alterasse. As formas de agrupamentos políticos do
Hip Hop são essenciais para que seus elementos consigam fluir e dialogar, de uma mais efetiva, com a população
periférica. Nesses agrupamentos, o Hip Hop, como um todo, procura resistir ao racismo, ao genocídio e à
precarização por meio de alternativas políticas, que fogem das lógicas institucionais, apesar de se confundir com
elas, e não apenas reproduzir e reproduzir uma dependência da política institucional para promover suas ações
coletivas. Será aprofundado a seguir, no próximo item do capítulo.

108
tanto pelo poder público quanto pela cena cultural e pelo Hip Hop paulistano. O Fórum, nesse
sentido, não é uma formação emergente. Isso não significa, necessariamente, engessamento ou
formulação institucional; procura escapar das lógicas que aprisionam suas práticas por meio
das organicidades do Hip Hop com os territórios periféricos.
O próprio surgimento do Hip Hop está em consonância com essas manifestações
históricas, que possuem particularidades, quanto a valores e significados, relacionadas tanto às
posições sociais dos sujeitos quanto ao que há de diferente nas práticas artísticas – os elementos
do Hip Hop. O Hip Hop expressou uma nova estrutura de sentimento (Williams, 2000) presente
na sociedade brasileira, ou seja, o sentimento de que novos valores, significados e práticas
estavam em surgimento. A cultura Hip Hop contribuiu para a formação subjetividades políticas
nas periferias. Esse sentimento também se expressava na espontaneidade dos agrupamentos
compostos por sujeitos que colocavam em prática um fazer artístico ainda não denominado,
como na fala anterior de Nelson Triunfo65, nos encontros na rua 24 de maio e na estação de
metrô São Bento.
O Hip Hop adquiriu a “consciência política” dos anos 90 e ganhou outras características,
objetivos e patamares. Segundo Williams (2000), é possível compreender uma estrutura de
sentimento após seu estabelecimento, quando uma nova tendência cultural e uma outra
emergência está em curso; identificar uma estrutura de sentimento é, nesse sentido, uma
hipótese cultural. As entrevistas realizadas mostraram que os sujeitos entrevistados reiteram
que participam de uma cultura ativa, a qual ainda não possui o tal reconhecimento que se diz e
apresenta consideráveis desigualdades de gênero e sexualidade, apesar de essas vozes serem
novas expressões dos conflitos internos do movimento. De qualquer forma, nos diálogos que
estabelece com movimentos sociais e com outros coletivos o Fórum procura atuar politicamente
por meio da cultura, algo ainda visto como uma saída às lógicas “clássicas” da política.

2.2.1. Diálogos com movimentos sociais e organizações da sociedade civil

65
Ver página 94. Essa espontaneidade também foi registrada nos relatos do documentário Nos Tempos da São
Bento (2010). Um desses relatos é o do DJ Roger Dee, de Belo Horizonte. Ele conta, com animação, o contato de
sua crew Break Crazy com a São Bento em 1987. Lá encontraram os “break” – como, naquele tempo, se referiam
uns aos outros – Thaíde e Cicinho, ambos da crew Back Spin. Antes de entrarem em contato com as produções
culturais dos Estados Unidos e de se especializarem nos outros elementos do Hip Hop, todos eram b-boys. Roger
Dee diz que esse encontro foi importante para dar o ânimo necessário para o desenvolvimento da cultura em Belo
Horizonte. Ao ser perguntado se sentia saudades da São Bento, seus olhos encheram de lágrimas ao relatar: “o que
mais sinto saudade é da amizade que a gente construiu [...] foi como a gente tivesse descoberto vida em outro
planeta”.

109
Para compreender esses diálogos políticos, conforme analisado pelas experiências do
Fórum e nas articulações presente no movimento Hip Hop paulistano, pretende-se rastrear as
heranças específicas e os diálogos recentes com os modos de produzir Hip Hop. As “posses”
são os espaços em que, desde a década de 90, se discutem as questões de organização política
do Hip Hop; são, nesse sentido, organizações políticas que discutem formação individual por
meio de produção de conhecimento e incentivam a expressão cultural do Hip Hop.
Já os movimentos sociais são vistos como representantes de pautas legítimas e alvos de
potenciais parcerias, que podem criar laços de solidariedade com os movimentos e suas diversas
reivindicações. Nos anos 1990, época em que a violência urbana apresentava altas taxas de
homicídio, problemática anunciada pelo famoso disco do Racionais MC’s, “Holocausto
Urbano” (1990), as parcerias com os movimentos sociais foram uma das táticas encontradas
naquele momento para superar essa realidade, laços que permanecem até hoje no cotidiano dos
coletivos e redes de Hip Hop.

É até chamado de Golden era, anos 90, porque os caras batiam muito forte.
Tinha uma ligação com os movimentos sociais muito forte também e a coisa
da criminalidade que era muito feia na época também. O rap falava muito
disso [...] tem a reunião semanal do Fórum, que é numa ocupação, já faz um
tempo que é numa ocupação no centro de São Paulo. A gente tenta manter
essa proximidade com os movimentos sociais, que a gente julga ser justos,
como forma de cidadania, de luta por direitos (G. - ZS - rapper, entrevista
concedida).

O Fórum insere-se, nesse sentido, numa luta já conhecida pelos movimentos sociais dos
décadas de 80, que é a luta por direitos e pela cidadania, mas relacionado ao movimento Hip
Hop. É por meio da luta ativa no cotidiano, com as parcerias com os demais coletivos, redes e
“posses” e com as pautas movimentistas, que o Hip Hop pode, na visão do Fórum, se constituir
politicamente. A luta por direitos, e de dentro do Estado, vista como resistência e na sua
ambiguidade, não presa somente ao “ganha ou perde” (Hall, 2003), é uma luta possível, pois
trata-se de aproveitar as brechas deixadas pelas lutas anteriores, principalmente dos
movimentos sociais dos anos 80, para inserir as culturas periféricas e a cultura Hip Hop no
orçamento estatal. Essa brecha permite a atuação por meio de uma cultura que dialogue com as
juventudes periféricas.

110
Essa relação é significativa para entender o passado político das periferias paulistanas. Os
movimentos sociais dos anos 1980 situavam-se entre o “novo sindicalismo”, as comunidades
eclesiais de base, os movimentos de esquerda revolucionários (Sader, 1988), os movimentos
vinculados a associações de bairro – que reivindicavam moradia digna e melhores condições
urbanas, como creche, saúde, transporte, educação – e vinculados às pautas do “direito a ter
direitos” e do direito à cidade. As matrizes discursivas rondavam basicamente a reivindicação
dos direitos dos trabalhadores que moravam nas periferias.
Ao se inserir nas lógicas institucionais, no momento pós-Constituição de 1988, os
movimentos sociais perderam sua representatividade e sua capacidade de efetivar suas
reivindicações. As transformações no mundo do trabalho também alteraram o foco dessa
representatividade. A flexibilização das relações de produção (Harvey, 1992) provocou uma
mudança estrutural nessa dimensão da vida cotidiana e as economias subdesenvolvidos, dentre
elas a brasileira, apresentaram altas taxas de desemprego. O trabalho, ao mesmo tempo, perdeu
o significado que antes possuía, o de ser um possível projeto de ascensão social (Feltran, 2011)
das famílias periféricas, principalmente para as gerações seguintes.
A perda da capacidade, pelos movimentos sociais, de representar os interesses das
periferias deveu-se a três fatores políticos principais, em parte apresentados por Yúdice (2004)
de forma mais ampla e deslocados para a cultura e a economia: (i) a sociedade civil, ao se
institucionalizar nos marcos regulatórios constitucionais, viu-se em meio a uma demanda por
profissionalização, ao mesmo tempo em que viu a emergência do terceiro setor (as ONGs, por
exemplo) como nova forma de gerir o social; (ii) os partidos de esquerda, que antes mediavam
as demandas dos movimentos sociais com o Estado, relegaram às associações de base um
espaço político subalterno; (iii) e os governos passaram a impor sua lógica de gestão às
organizações sociais, lógica distinta do caráter reivindicativo dos movimentos (Feltran, 2011,
p. 28)66. Nos anos 2000, os movimentos viram-se, do ponto de vista político, incapazes de
representar as demandas das periferias; suas formas de reivindicar tornaram-se estanques e a
comunicação com as juventudes que surgiam no período ganhou outras mediações históricas.

66
Para se aprofundar no debate, recomenda-se a consulta do livro de Feltran (2011). Além desse debate, o autor
escreveu sua pesquisa sobre as fronteiras entre violência e política nas periferias de São Paulo e apresentou essas
tensões, tanto as internas, em instituições de assistência às infâncias e ao adolescente, quanto as existentes entre
esses movimentos e o mundo do crime. Esse “mundo” é representado, em São Paulo, principalmente pelo Primeiro
Comando da Capital (PCC).

111
Além dos fatores citados, outros elementos presentes no cotidiano dessas juventudes,
como a violência urbana, a emergência das novas tecnologias de informação e os fluxos da
globalização (migrações, imagens, capital, mercadorias e consumo cultural) foram
fundamentais para moldar a percepção do(a) jovem. Os e as jovens criaram novas formas de
sociabilidade e diferentes maneiras de sentir e expressar as contradições da contemporaneidade
(Martin Barbero, 1998). Nesse descompasso geracional, os movimentos também patinaram
para estabelecer mediações com as juventudes que se identificaram com movimentos culturais
como o Hip Hop.
As subjetividades políticas dos sujeitos do Fórum ligados(as) à geração dos anos 90
seguiram essa transformação e formaram-se politicamente dentro do Hip Hop. Essa escolha é
sintomática das transformações nas formas de se fazer política antes mencionadas. Esses
sujeitos passaram a viver num lugar onde conviviam – e convivem – múltiplos mundos:
atravessados por diversas formas de trabalho; início da hegemonia das igrejas pentecostais;
expansão do crédito voltado para o consumo; “mundo do crime”; diversidade de modalidades
culturais, formas de lazer e diversão; e movimentos sociais antigos e contemporâneos.
Deparados com esse cenário, essas juventudes criaram novas sociabilidades:

As subjetividades que emergiram desde então, com a pluralidade da população


periférica, e a nova configuração política, demandavam representações
coletivas heterogêneas, nômades e que, ao mesmo tempo, expressassem as
individualidades e a existência de sujeitos autônomos (Maia, 2014, p. 114).

Os e as jovens da geração em que os grupos, coletivos e posses de Hip Hop ganharam


notoriedade nas periferias de São Paulo deixaram de se identificar com as formas que os
movimentos sociais adotavam e as questões que abordavam. Não se tratava de um conflito
quanto ao conteúdo: o movimento de moradia, de terra, de melhora da qualidade dos serviços
públicos sempre foram movimentos que apresentaram reivindicações legítimas das populações
que habitam os bairros periféricos. Outros movimentos, tidos como os “novos” movimentos
sociais (movimento ecológico, feminista, à época, homossexuais, etc.) (Gohn, 1997)
constituíram novas subjetividades e identidades por meio de transformações nos discursos e na
reivindicação de outras formas de vida. Mas as maneiras do fazer político estavam, no entanto,
ultrapassadas: os discursos, palavras de ordem, reuniões e as reivindicações relacionadas
exclusivamente às demandas estatais causaram um engessamento nas práticas (D’Andrea,

112
2013). Os movimentos culturais, dentre eles o Hip Hop, participaram da reformulação da luta
desses movimentos.
No entanto, uma questão se apresenta: haveria uma inclinação, um tipo de vontade que
fizesse com que os movimentos sociais “aceitassem” uma relação mais ou menos contínua com
o movimento Hip Hop? Como mencionado, os movimentos sociais não possuíam mediação
com as juventudes, como fazia o Hip Hop. Essa capacidade de dialogar com as gerações
seguintes pôde ser vista pelos movimentos sociais como uma potencialidade na articulação com
o Hip Hop.
Essa inclinação pode estar associada também ao potencial de criação de novos
significados, valores e subjetividades alternativos à ordem hegemônica por parte dos próprios
movimentos sociais. Autores como Alvarez (et al., 2000) defenderam que os movimentos
sociais latino-americanos, tanto os “velhos” – movimentos urbanos, camponeses, operários e
de bairro –, quanto os “novos” – os movimentos indígenas, étnicos, ecológicos, homossexuais,
entre outros – “põem em movimento forças culturais”, pois:

as políticas culturais são também postas em ação quando os movimentos


intervêm em debates políticos, tentam dar novo significado às interpretações
culturais dominantes da política, ou desafiam práticas políticas estabelecidas
(Alvarez et al., 2000, p. 23).

Nos movimentos sociais latino-americanos, também está presente a “centralidade da


cultura” (Hall, 1997), embora, neles, isso seja menos evidente se comparados a movimentos
“que fazem reivindicações com base na cultura [...], ou naqueles que utilizam a cultura como
meio de mobilizar ou engajar participantes” (Alvarez et al., 2000, p. 23). Os movimentos sociais
latino-americanos também estariam, no final do século XX, criando novos espaços políticos
para além dos espaços restritos à política institucional. Dentro dos bairros em que nasceram os
movimentos populares, espaços públicos foram ressignificados e transformados em espaços de
ações coletivas.
Laclau (1983), desde a década de 80, aponta a pluralidade do social para se pensar os
“novos movimentos sociais” da América Latina. Esses movimentos não podiam ser
compreendidos pelas determinações diretas das relações de produção ou como representação
da luta de classes. Para o autor, as sociedades latino-americanas dificilmente seriam
compreendidas com a exclusividade do conceito de luta de classes. Laclau não ignora o conceito
de classe social; pelo contrário, busca um uso menor do conceito, de forma a apresentar esses

113
novos movimentos como uma politização da vida social cotidiana e como determinantes da
desconstrução da ideia de um espaço político fechado, homogêneo e restrito.
As concepções de sujeito foram descentradas, o que provocou, para o autor, a
compreensão de um sujeito posicionado de forma plural em uma estrutura discursiva instável:

Não há nenhuma relação prévia necessária entre os discursos que formam o


trabalhador, por exemplo, enquanto militante ou agente técnico no local de
trabalho, e os discursos que determinam sua atitude com relação à política, à
violência racial, ao sexismo e outras esferas nas quais o agente seja ativo.
Torna-se, portanto, impossível falar-se do agente social como se estivéssemos
lidando com uma entidade unificada e homogênea. Ao invés, devemos
abordar o agente social como uma pluralidade, dependente das várias posições
de sujeito, através das quais o indivíduo é constituído, no âmbito de várias
formações discursivas (Laclau, 1983, p. 4-5).

Em meio às complexas articulações históricas, em que formas movimentistas baseadas


na reivindicação do “direito a ter direitos”, do direito à cidade, de representação dos direitos do
trabalhador e da população periférica, na década de 80, o Hip Hop surgiu como movimento
cultural juvenil que participava de heranças e brechas deixadas pelos movimentos sociais que
surgiram no período anterior. Os movimentos já sentiam, por um lado, a incerteza quanto ao
momento histórico e, por outro, a possibilidade de ressignificação da política. Aos poucos, o
Hip Hop, com papel fundamental das “posses” no caso de São Paulo, foi se formulando como
movimento cultural ativo na cena política nacional e passou a ampliar suas possibilidades de
articulação.
Um exemplo que marcou essa trajetória de aliança do movimento Hip Hop com
movimentos sociais, bem presente na literatura sobre Hip Hop, é a aproximação com o Instituto
Geledés, considerado uma das instituições mais ativas do movimento de feministas negras, em
funcionamento desde 1988. Em 1991, um grupo de jovens rappers procurou o Instituto, por
meio do serviço SOS Racismo, e denunciou que suas apresentações eram interditadas pela
polícia. Com esse contato, o Geledés criou o “Projeto Rappers Geledés” (Teperman, 2015). Os
artistas participaram dos Fóruns de Denúncia e Conscientização do programa de direitos
humanos do Geledés, e a revista Pode Crê! foi criada, hoje tida como o primeiro veículo criado
para comunicação com o jovem negro. Em 1993, o Geledés ajudou a organizar a 1ª Mostra
Nacional de Hip Hop na estação São Bento. O projeto foi considerado um divisor de águas
como contribuição não só para o debate racial mas também para o debate de gênero dentro do
movimento (Ramos, 2016).

114
O movimento Hip Hop dialogou com os movimentos sociais, no início da sua formação
como movimento cultural idealmente unificado com seus quatro elementos, por meio de uma
simbiose: ao mesmo tempo em que os movimentos sociais se regeneravam por meio das práticas
culturais e políticas de movimentos culturais, o Hip Hop reconhecia a legitimidade, embora
estremecida, das lutas movimentistas, e integrou-as em sua forma (formas de se organizar e
fazer política e cultura) e conteúdo (expressões das temáticas e problemas que envolvem o
cotidiano da vida nas periferias). O movimento Hip Hop ampliou os horizontes de suas próprias
lutas e reivindicações, mas sem perder as conexões com os territórios que fazem parte dessa
cultura.
De acordo com a investigação de Ocampo (2012):

[...] um elemento fundamental para os agrupamentos avancem nos interesses


políticos que dão vida a estas práticas de governança67 foi o resgate de
vínculos, alianças e lutas políticas de outras gerações e movimentos sociais,
das quais suas atuais práticas se alimentam (Ocampo, 2012, p. 152, tradução
nossa).

Os(as) hiphoppers que estão na rede do Fórum estabelecem relações com movimentos
sociais e veem, nessas relações, diferentes maneiras de atuar politicamente e fortalecer as
reivindicações dos movimentos sociais, que, apesar das mudanças nas suas capacidades de
representação e reivindicação, não deixam de existir. Terno, membro do grupo Pânico Brutal e
do coletivo Perifatividade, é um dos exemplos dessa relação. Os sujeitos preferem, em alguns
momentos de sua prática política, articularem-se com determinado movimento social que
conecte a comunidade de forma mais construtiva. Muitas vezes o próprio Hip Hop, como forma
de fazer política, é deixado de lado em prol de uma reivindicação legítima, que só pode ser
trabalhada e articulada na atuação com a comunidade e um movimento social. Esse exemplo
foi apontado por G.:

[...] [n]o caso do Terno, ele é muito ligado ao movimento de moradia e tal,
mas a gente tá sempre junto. E fica difícil para ele conciliar. Ele dá muita
prioridade à comunidade dele, que é o Bristol [zona sul], e ele é muito

67
Ocampo cita o cientista político Mark Bevir e entende que práticas de governança são “como um conjunto de
ações diversas e interdependentes, por meio das quais os grupos humanos criam, sustentam e modificam padrões
de regulação fundamentados na tensão conflitiva de suas crenças. Seguindo o autor, se assume que as práticas de
governança se constituem em territórios incorporados na tradição e multideterminados pelos conflituosos jogos de
poder entre diferentes atores” (Ibidem, p. 150. Tradução do autor).

115
envolvido com movimentos sociais de lá, de moradia. São coisas de escolha,
né? Às vezes a pessoa não consegue (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

Essas articulações fortalecem as redes de enfrentamento e resistência. Os movimentos


sociais podem participar de conflitos internos do Hip Hop e fortalecer as suas emergências
culturais, o que, muitas vezes, o próprio Hip Hop negligencia.

[...] tem umas DJs que não fortalecem outras mulheres. Na maioria, tive apoio
do movimento de mulheres, porque os eventos que eu mais toquei foram
eventos ligados a mulheres. Então, das Mães de Maio, das Mães da Leste [...].
Movimento social apoiou muito meu trabalho, porque é uma música ligado a
uma música engajada, dialogando com as realidades dos movimentos. Então,
quando um movimento faz uma festa, um evento me chama. "Olha B., vamos
lançar um livro falando disso e disso, contra o racismo, você pode vir tocar,
fazer um som?". Então eu vou. E está sempre muito ligado com essas lutas
(B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).

Lutas que são negligenciadas pelo Hip Hop são valorizadas pelo movimentos sociais, o
que contribui para a renovação da cultura Hip Hop. O Fórum procura relacionar com uma
diversidade de movimentos e organizações para catalisar suas atividades. Nas ações que esta
pesquisa acompanhou e observou desde seu início, no ano de 2017, o Fórum Hip Hop
estabeleceu parcerias com vários movimentos e outras instituições:
• movimentos de moradia, como a UNAM (União das Associações de Moradia
Paulista), o MDF (Movimento em Defesa do Favelado) e movimentos de população
em situação de rua, como o Movimento Estadual da População em Situação de Rua
(MEPR);
• sindicatos, como o Sindilex (Servidores da Câmara Municipal e do Tribunal de
Contas) e o Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de SP);
• parcelas do Movimento Negro Unificado (MNU), como o A Nossa Luta Unificada
(ANLU), que reflete e articula as ações de resistência do MNU;
• povo guarani Mbya do Jaraguá;
• representantes do movimento LGBTQ+;
• grupos de pesquisa (Grupo de Pesquisa em Psicanálise, Juventude e
Interdisciplinaridade e o Núcleo de Estudos da Violência);
• Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA), de Sapopemba, ligado ao
movimento de infâncias;
• Defensoria Pública de São Paulo;

116
• e movimentos ligados aos direitos humanos, como o Movimento Brasileiro de
Redução de Danos (MBRD), o Movimento das Mães em Luto da Zona Leste e o
Instituto Terra, Trabalho e Cidadania.
Após um extenso levantamento das relações estabelecidas, vale ainda mencionar que
muitas outras foram feitas na história do Fórum e em sua luta contra o genocídio da juventude
pobre, preta e periférica.
O Movimento das Mães em Luto da Zona Leste é um dos que mais estabeleceu relações
com o Fórum nas ações acompanhadas por esta pesquisa. As Mães, como são chamadas,
contribuíram e participaram de eventos de Hip Hop e de cursos populares. Esse movimento é
efeito direto do genocídio da juventude pobre, preta e periférica, principal pauta combatida pela
rede de cultura Hip Hop68: as Mães tiveram seus filhos assassinados pelas forças policiais. Ao
buscarem justiça pela violência praticada contra seus filhos, diversas mães da zona leste de São
Paulo reuniram-se para fazer do luto uma luta, não só pela justiça dos seus filhos mas pela
justiça dos outros filhos das famílias moradoras das periferias. Esses meninos são vistos pela
polícia, sob o estereótipo criado de meninos “suspeitos” (Feltran, 2011), como criminosos.
O contato com as mães é dolorido e repleto de admiração pela coragem com que
transmitem seus relatos e enfrentam o Estado. Na frieza de seus relatos, as mães transmitem
uma bruta realidade: contados com dor de quem perdeu um filho, esses relatos carregam, ao
mesmo tempo, uma realidade difícil de encontrar até mesmo em um rap. Contam suas
trajetórias de enfrentamento com os homens da lei, membros do poder judiciário (juízes e
promotores) e policiais.
Oliveira (2017) contribuiu com um texto sobre as “muitas mães” latino-americanas que
compartilham muitas dessas histórias. Na plataforma on-line “Necro Relatos”, o texto possui,
de entrada, um título que é representativo do desastre social que significa o genocídio para as
famílias que têm seus meninos assassinados pela polícia ou envolvidos com alguma outra forma
de violência, seja reproduzida pelo “crime”, seja por lgbtfobia e feminicídio: “Uma mãe nunca
deveria enterrar um filho, é contra a ordem natural das coisas”. As vítimas são, em sua maioria,
“homens jovens, negros, pobres e moradores da periferia”. As mães decidem lutar após
sofrimentos diversos e empurram e inspiram outras mães a irem à luta, como as mães de Osasco

68
É inviável, para a proposta desse capítulo, realizar as conexões com cada um desses movimentos, ONGs e
sindicatos. Para os enfoques desta pesquisa, escolheu-se trabalhar minimamente as relações com o Movimento das
Mães, tanto pela relevância dele para o debate e a proposta política do Fórum, quanto pelo número de vezes que o
movimento se relacionou com os membros mais ativos do Fórum no decorrer da pesquisa.

117
e de Mogi das Cruzes e de outros movimentos, coletivos e agrupamentos, por meio de redes de
solidariedade, resistência e afeto:

[...] num primeiro momento vem o baque, a sensação de que o mundo caiu;
depois a depressão e os meses na cama, sem trabalhar, sem ânimo de viver
[...] Mas, aos poucos, muitas delas vão se erguendo e se aproximando de outro
sentimento: a indignação. E daí vem a raiva, o ódio do estado inerte, dos
assassinos impunes, dos promotores surdos. Aos poucos levantam-se das
camas e juntam-se a outras mulheres e grupos que fazem do luto a força motriz
das lutas. “Eu vim pra luta depois da dor”, afirma Sol. Tatiana Lima Silva,
mãe do Peterson Silva de Oliveira (assassinado aos 18 anos), vai no mesmo
sentido: “o que aconteceu com meu filho foi há apenas 8 meses e é isso o que
me move e me sustenta, é essa luta” [...] É um luto-resistência, um luto que
induz à ação potente. E elas perdem o medo de transformarem-se em novas
vítimas dos grupos de extermínio, perdem a timidez diante de juízes e
promotores, falam à imprensa e à universidade, emocionam e ampliam suas
redes de apoio e proteção. Praticam afetos, formam redes e estendem as mãos
à outras mães na mesma situação. Ganham visibilidade, estão em muitos
lugares e eventos exibindo seu luto, sua luta e, por que não, também suas
alegrias das pequenas conquistas (Oliveira, 2017, on-line).

A conexão com a questão do genocídio juvenil, negro, pobre e periférico é evidente. As


mães trazem novos significados políticos para a resistência contra essas mortes, e a união com
o Hip Hop procura fortalecer essa luta. Durante esta pesquisa, foram feitos três contatos do
Fórum com as mães: um deles em uma roda de conversa sobre genocídio juvenil, que ocorreu
na PUC-SP, em agosto de 2017; outro em um evento produzido pelo Fórum em parceria com
as Mães em Luto da Zona Leste, chamado “Escuta – A Voz das Mães Contra o Genocídio”69 e
que ocorreu em agosto de 2018 no CEU Rosa da China, numa mistura de apresentações de rap
e discotecagem com as “escutas”; e mais um com a presença de Sol Oliveira, uma das Mães da
Leste, no “Seminário de políticas públicas para a juventude”, que ocorreu na Defensoria Pública
de São Paulo, em dezembro de 2018. Nesse seminário, Sol relatou a luta do movimento, sua
trajetória após o assassinato de seu filho Victor e preencheu os vazios deixados com memórias.
Segundo Sol, a luta é pela justiça a seu filho: “se ele fez algo errado, tinha que ser preso, não
assassinado”. Mas reconhece que “a luta é para todas as mães”.

69
Não foi produzida observação etnográfica sobre esse evento. Esta dissertação baseou-se em conversas
posteriores com membros do Fórum Hip Hop e na reportagem da Ponte Jornalismo, que preenche seu texto com
marcantes registros fotográficos. Ponte Jornalismo é um importante veículo de jornalismo investigativo que
procura denunciar a violência policial e violações aos direitos humanos. Disponível em: <https://ponte.org/rap-e-
luto-maes-compartilham-historias-de-violencia-do-estado-em-sp/>. Acesso em: 14 jun. 2019.

118
Essa articulação não deixa de apresentar conflitos até internos à atuação na rede. Há um
debate sobre a forma como a questão do genocídio é relacionada às ações do Fórum. Os
conflitos acontecem pela falta de representatividade das mulheres, principalmente das mulheres
negras. Sobre as Mães, B.S. apresenta sua visão e relaciona-a com a maneira como o Hip Hop
tem visto as mulheres. Muitas vezes, por mais que a união seja legítima e procure fortalecer,
numa simbiose, as lutas de movimento social, de um lado, e do Hip Hop (Fórum) do outro, essa
falta de representatividade relacionada à pouca experiência com as formas de lutar e à falta de
sensibilidade para o acolhimento são fatores que impedem que uma parcela significativa de
sujeitos se envolva estruturalmente nessa luta.

[...] é a luta que resta, mas as mulheres tem perdido a saúde, a vida. É câncer
no útero, é câncer de mama, é sempre doenças que, conforme a gente tem feito
essa leitura do Hip Hop, das mulheres do Hip Hop, como é que a gente tem
visto nossas mulheres, mães, amigas, companheiras, perderem a vida e a gente
não pensar em ações que a gente possa recuperar. Porque a gente tem um
momento de fazer luta, mas como é que você não põe toda a sua energia ali.
É difícil quando você perde um filho, como é que você fala para ela, "não faz
isso"? Porque é a luta, você pode refazer sua vida, você só foca naquilo e sua
vida vai se esvair ali. É uma luta pesada, é uma luta árdua. Então esse debate
é feito o tempo inteiro com o Fórum, mas é difícil você estar num espaço,
numa sociedade machista, a luta é constante, não é um processo fácil (B.S. -
ZL - DJ, entrevista concedida).

Nas ações e reuniões do Fórum, não foi identificado silenciamento da presença feminina
por parte dos hiphoppers que ali estavam. Todos os eventos são realizados de forma conjunta
com mulheres do Hip Hop, mas é notável a falta dessas mulheres nas reuniões em que se tomam
os rumos das ações da rede. Dentre as razões que envolvem essa “ausência”, já foram
apresentadas, pelos(as) entrevistados(as), algumas dificuldades de deslocamento, tanto entre
territórios centrais e periféricos, quanto entre temporalidades, o tempo da mãe solteira e o do
homem (pai) solteiro. Como tratar do genocídio e estabelecer parcerias com outros movimentos
para combatê-lo sem a presença das mulheres que também estão implicadas? Embora seja um
conflito não resolvido, “é um debate que está posto” no Fórum, como diz B.S..
A cultura torna-se política também quando busca selecionar, de forma mais abrangente,
significados, valores, práticas e subjetividades em uma formação cultural, por meio não só das
alianças e ações solidárias que diversos sujeitos culturais realizam na política, mas também do
“acolhimento” das subjetividades envolvidas. Esse acolhimento deve levar em conta,
principalmente, uma cultura resistente e repleta de potencial, como é a cultura Hip Hop, em

119
contraposição às hegemonias culturais mais amplas: as culturas machistas, homofóbicas,
racistas e classistas.

2.2.2. Possiblidades de agrupamento e organização no Hip Hop de São Paulo: posses,


coletivos e redes

Neste item serão tratados os diálogos do Fórum com outras “posses”, coletivos e redes.
O Fórum participou da onda emergente de novas institucionalidades e autonomias dos anos 90
e 2000, tal como pensado e criado pelas juventudes paulistanas. Esses laços criados, mais ou
menos apertados, manifestam suas forças, fraquezas e potencialidades.

Posses

O surgimento das posses se deu na década de 90, com a “conscientização” a respeito do


Hip Hop, que passou de uma cultura de rua, na qual os valores e significados estavam mais
associados à diversão e à festa – mas já com seu caráter crítico e transgressor –, para uma cultura
negra, na qual a questão da negritude estava posta e discutida criticamente dentro do movimento
Hip Hop.
A busca de equilíbrio entre o aperfeiçoamento artístico dos elementos e práticas de lazer
e diversão e a atuação política e produção de conhecimento sobre as realidades das periferias
(Silva, 1998, p. 162-4) foram base para o surgimento das posses em São Paulo, acontecimento
que levou os sujeitos a refletir sobre o cotidiano e seus entornos. Foi esse ambiente que
propiciou a criação dos agrupamentos talvez mais expressivos da cultura Hip Hop e estimulou
a relação do Hip Hop com os movimentos sociais. As posses deram nova energia aos
movimentos sociais, mas, ao mesmo tempo em que influenciou os coletivos, foram
influenciadas pelas experiências compartilhadas com movimentos sociais.
O Movimento Negro Unificado (MNU), uma das expressões de luta da população negra
brasileira, que possui mais de quarenta anos de história, procura organizar as lutas, desde as
mais diversas, como as que têm em vista nutrição, ecologia, movimento sem-terra e religião,
até as que unificam o movimento, como as do racismo, violência policial, abusos sexuais de
mulheres negras, etc. Em seminários e reuniões – como o seminário da ANLU, que aconteceu
no dia 14 de junho de 2019 e contou com a participação do Fórum Hip Hop –, o MNU procura

120
refletir sobre a conjuntura e encontrar saídas para a atuação da população negra. No seminário
citado, por exemplo, apresentou-se uma multiplicidade de visões sobre a negritude no Brasil.
Na ANLU também se discutem as formas de organização do MNU. Os membros do movimento
Hip Hop, em geral, “beberam dessa fonte”, como disse Pirata no seminário.
Nas posses mais conhecidas, como Sindicato Negro (tida como a primeira posse, a que
contou com a presença de Mano Brown), Aliança Negra, Força Ativa, Poder e Revolução e
Conceitos de Rua, a troca de informações foi fundamental para a formação da juventude dessa
época. Essa troca foi o elemento comunicativo e de politização do rap dos anos 90. Felix (2005)
estudou as relações entre cultura e política em três dessas posses citadas (Aliança Negra,
Conceitos de Rua e Força Ativa) e apresentou uma definição complementar à de Silva (1998):

Embora importantes para o Hip Hop, as posses [...] não são elementos que o
compõem. No entanto, elas constituem espaços, por excelência, em que as
discussões políticas de interesse do Hip Hop ocorrem. Isso quer dizer que é
nas posses que o Hip Hop tem a sua experiência vivenciada plena e
criticamente. É na posse que os praticantes de quaisquer dos quatro elementos
definidores do Hip Hop fazem as suas reflexões políticas e ideológicas. Neste
sentido, as posses chamaram a atenção da maioria dos pesquisadores do Hip
Hop, pois é nelas que se encontram os “intelectuais”, os pensadores dessa
expressão sociocultural (Felix, 2005, p. 80).

O Força Ativa, que hoje recebe a denominação de Coletivo de Esquerda Força Ativa, foi
a “posse” que possuiu, talvez, a relação mais próxima com os principais membros do Fórum
Hip Hop. Nando e Tito, que iniciaram sua trajetória no Hip Hop dentro do Força Ativa, são
hiphoppers ativos nas articulações políticas em rede. Nando é referência intelectual dentro do
Fórum e um de seus porta-vozes. Nos eventos realizados na Cidade Tiradentes, coletivos e
outros sujeitos são contatados para participar, mas o Força Ativa não realiza a articulação no
bairro de forma isolada; Bener Zil, um dos membros da posse Elementos de Atitude, é um
rapper e professor de capoeira conhecido na região. Bener participou da gestão da Casa de Hip
Hop Leste e contribui para as relações do Fórum no território.
O Força Ativa foi uma referência, no sentido de uma posse, para o movimento Hip Hop
paulistano e ainda é como coletivo; surgiu na zona norte na década de 90 e, em meados dos
anos 2000, se mudou para a Cidade Tiradentes. Na zona leste, atraíram novos integrantes para
a posse e, por fazerem suas reuniões já nas escolas em que estudavam, ganharam interesse pelos
livros, não só a oferecida pela escola, que representaria a “cultura nacional”, mas também por
outra literatura, como as poesias de Solano Trindade e os livros que pertenciam a uma literatura

121
que resgatava a história de Zumbi e Dandara, e biografias, livros e textos escritos por
intelectuais negros(as) ligados ao movimento dos direitos civis estadunidense e ao Partido dos
Panteras Negras, como Malcolm X, Martin Luther King Jr., Angela Davis e Huey Newton.
Em 2001 o Força Ativa conseguiu montar sua biblioteca comunitária. B.S. relata que,
alguns anos depois, entre 2002 e 2003, seu interesse pelo rap transformou-se em prática cultural
e política por meio da sua aproximação com o coletivo.

Sempre tive vontade de cantar rap, tinha vontade de ler, mas não tinha uma
leitura direcionada. Então, eu gostava de ler, não sabia que na Tiradentes tem
esse problema, sempre que a gente precisava de biblioteca a gente ia no bairro
vizinho, porque na Tiradentes nunca teve biblioteca, até ter a Solano Trindade.
Foi assim que eu fui... Foi através do Hip Hop que eu conheci o Força Ativa,
porque organizava eventos na rua, não tinha casa de cultura, tinha nada. Ainda
organiza, né, mas ainda tem alguns espaços culturais que você pode também
se envolver, mas antes fazia muito na rua. Teatro, a música, as atividades. E
foi assim que eu conheci. Eles fazendo uns eventos na rua, falando de Che
Guevara, falando da biblioteca, e foi aí que começou o espaço da biblioteca
(B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).

Os motivos que levaram B.S. a se inserir no movimento Hip Hop, produzidos pelo Força
Ativa com as mediações periféricas e militantes, são próprios dos trabalhos das posses de Hip
Hop. A produção de conhecimento foi um fator crucial para que diversos sujeitos do Hip Hop
se conscientizassem de sua inserção no mundo, enquanto negros(as) e periféricos(as). Essa
experiência é, nesse sentido, representativa do papel da posse para o movimento Hip Hop; se é
nas posses que “o Hip Hop tem a sua experiência vivenciada plena e criticamente”, como coloca
Felix (2005), a sua criação como uma forma de articulação política também participa da
reformulação das lutas dos movimentos sociais e das “maneiras de fazer” (Certeau, 2014) das
associações de bairro.
A expansão da Praça Roosevelt, onde foram criadas as primeiras posses, para as periferias
alterou a ação do movimento Hip Hop e das lutas já presentes nos bairros. Sposito (2000)
argumenta que essas reformulações, proporcionadas pelas posses, deram significados
alternativos às organizações que já estavam presentes nas periferias:

As formas mais organizadas de articulação dos pequenos grupos e as posses


— crew70 — impulsionam a ação de seus membros em novas direções,

70
Teperman (2015) reproduz essa definição de posse como sinônimo de crew. No entanto, para esta pesquisa,
entende-se posse como criação distinta das crews. As crews são, conforme observado, as denominações usuais de
grupos de breaking.

122
sobretudo aquelas configuradas como comunitárias e de apoio a outras
iniciativas de grupos organizados dos bairros [...] a diversidade de
experiências que propiciam geram ritmos e possibilidades diferençados;
constituem, de modo tenso e conflitivo, um campo inovador da cultura,
especialmente da música e da dança, com consequências diversas no âmbito
do fortalecimento de novas identidades individuais e coletivas [...]. Podem
decorrer desse tipo de mobilização cultural, mesmo que de forma fragmentada
e incipiente, um outro modo de interação com as instituições socializadoras,
como a escola, e nova atribuição de significados ao trabalho ligada à ideia de
autonomia, cooperação e de solidariedade não predominante nas condições
atuais do emprego (Sposito, 2000, p. 85).

A posse Poder e Revolução é um outro exemplo de posse que estabelece relações com o
Fórum Hip Hop. A Poder e Revolução estabeleceu-se no Parque Bristol, zona sul de São Paulo,
desde 1999. Essa relação ficou nítida no evento “Seminário de Hip Hop: das Posses aos
Coletivos”. O evento foi constituído por um debate entre três mesas: contexto das posses no
Hip Hop, com participação da posse Poder e Revolução; contribuição dos meios de
comunicação para o Hip Hop, com o Fórum de Hip Hop MSP; e organização do Hip Hop em
coletivos, com o coletivo Perifatividade.
Edu, que representava o Poder e Revolução, contou a trajetória da posse, que neste ano
de 2019, comemora vinte anos de existência, e transmitiu sua visão sobre o Hip Hop na
atualidade. Entre os diversos conflitos que vivenciou dentro do movimento Hip Hop, Edu
mencionou a relação do Hip Hop com as institucionalidades e, entre estas, com as ONGs que
acolheram o movimento. Para Edu, as ONGs absorveram e usaram as intervenções político-
culturais das posses.
No contato com as ONGs, segundo Edu, os membros do Hip Hop, em geral, mas
especificamente os do Poder e Revolução acreditaram que aqueles que trabalhavam em uma
delas buscavam ser revolucionários e estavam ajudando as posses a se organizarem
politicamente. Nessa relação, a organização ajudava as posses a “entender” o que era
organização política, inclusive, ensinando como fazer um ofício para fechar uma rua. Mas Edu,
em certo momento, se perguntou: “mas a rua não é nossa? Por que temos que fazer ofício?”.
Fazer ofício era um exemplo dessa cooptação.
A professora, doutora em letras pela USP e importante poeta do Parque Bristol, Dinha
Alves, também integrante do Poder e Revolução, relatou, em meio à fala de Edu, que a posse
caiu no “conto” das ONGs; já eram organizados à sua maneira e estavam encontrando sua
própria maneira de se organizar e foram cooptados antes de se encontrarem autonomamente.
Uma das ONGs com que se relacionaram, depois de um tempo que já recebia a posse, fez

123
menção ao grupo – segundo Edu – que seria cobrado um preço para que continuassem a se
reunir naquele espaço, que antes era aberto ao público. A posse foi obrigada a se retirar, mas
continuaram os trabalhos de formação popular, com cursos e reuniões que se concentram em
discutir não só o Hip Hop mas também questões raciais de forma crítica. A posse percebeu, aos
poucos, qual era o lugar reservado para as pessoas negras na cidade de São Paulo. Segundo
Edu, a polícia mostra a cada um qual seu lugar: as pessoas negras devem ficar na favela, não
andar nos bairros de classe alta.
Edu concluiu sua fala dizendo que a raiva pode ser um sentimento transformador. Foi
com a percepção de que as ONGs estavam ditando o que as posses deveriam fazer e com a
cobrança do uso do espaço que a posse Poder e Revolução sentiu a raiva libertadora. Edu até
agradeceu por “fazerem-nos perceber” que não precisavam da ajuda daqueles que tinham
intenção de castrá-los politicamente e que as posses podem criar atividades por conta própria.
Segundo ele, talvez fosse melhor que tivessem sido sinceros logo no início, esclarecendo que
os projetos eram financiados pelo banco Itaú, que eles não estavam querendo ajudar, mas sim
se beneficiarem do Hip Hop e das posses, e, ainda, que a ONG não queria as pessoas negras no
seu espaço “de graça”. Pirata também relatou um conflito parecido, de cobrança de um preço
para o Fórum Hip Hop se organizar no espaço. Da mesma forma, foram obrigados a buscar
outro lugar para se organizarem e manterem sua agenda de reuniões semanais.
Diante desse cenário, os diversos conflitos existentes nas relações entre as posses,
centralidades e institucionalidades foram um dos motivos que as levaram para as periferias,
territórios em que é possível realizar ações com as suas próprias comunidades. Na geração
seguinte às posses, porém, foram raras as experiências com produtores(as) culturais que
constituíram seus lugares nas regiões tidas como mais centrais da cidade. As barreiras para a
circulação nos centros, como os problemas relacionados às diversas formas de racismo, a
dificuldade de mobilidade urbana e a falta de uma relação mais orgânica com as propostas
político-culturais que surgiram nesse processo, são razões que levaram esses(as) jovens, entre
eles diversos membros e demais artistas do Hip Hop que estabelecem relações com o Fórum, a
desenvolver ações em seus próprios bairros.
A circulação por diversos lugares tornou-se uma ocupação política tanto pelos convites
para participar de atividades no centro quanto pela afirmação das periferias como subjetivação,
sendo o Hip Hop uma das formas de se tornar sujeito. As juventudes passaram a ocupar e
transformar os espaços públicos, “mesmo que efemeramente, em ‘lugares seus’” (Borelli;

124
Rocha; Oliveira, 2009, p. 43). Essa subjetivação periférica, como mostrado no capítulo 1,
produziu uma mobilização cultural, e emergiu, nesses territórios, uma multiplicidade de
coletivos e “coletivos de coletivos” que se articulam em redes e promovem ações coletivas.
Esse fenômeno subjaz o surgimento das redes culturais criadas com objetivos similares ao
Fórum Hip Hop, mas que se propõem a responder aos desejos e anseios de outras modalidades
culturais, além do movimento Hip Hop: o “movimento cultural das periferias”.

Coletivos e redes

No evento “Das posses aos coletivos”, após a fala de Edu, falaram Pirata e representantes
do coletivo Perifatividade. Entre a primeira e a segunda mesa, o grupo de jovens rappers Clã
Raça Forte cantou três músicas. Raça Forte é um grupo que acompanha, de perto, as reuniões
do Poder e Revolução. Dois membros do grupo foram alunas de Dinha e, hoje, cantam rap –
mais um exemplo de como o Hip Hop atua nas institucionalidades. Jovens que moram “no
fundão” e decidiram encontrar alternativas de vida por meio do Hip Hop.
Pirata levou uma contribuição voltada para os usos dos meios de comunicação. Para ele,
por meio de coletivos, o Hip Hop foi o primeiro movimento cultural a usar largamente a internet
e as redes sociais. Com a concentração dos grandes meios, o Hip Hop encontrou alternativas e
disseminou-as por todas as periferias e, atualmente, o Hip Hop tem que encontrar suas próprias
armas de ação política para combater o genocídio. Essa discussão já foi passada para o coletivo
Perifatividade, representado pelo rapper Diego, do Pânico Brutal, pela educadora Ana Fonseca
e pelo poeta e historiador Paulo Rams, que ocuparam a terceira mesa do evento.
Volta-se, aqui, para a descrição do evento com o objetivo de demonstrar como se deu a
passagem, reconhecida pelo movimento Hip Hop, da predominância das posses na ação
político-cultural para os coletivos. Isso não significa, como a própria Poder e Revolução mostra,
que as posses tenham sido extintas, mas que ambos são organizações de Hip Hop que coexistem
no território e transformam as periferias nos lugares (Santos, 2000). Como referência até
intelectual dos coletivos de Hip Hop, pode-se dizer que a posse estaria entre o movimento negro
e os coletivos: preocupada principalmente com as questões racial e de classe e possuindo menor
mobilidade que um coletivo de produção cultural.
O coletivo Perifatividade participou de um outro evento produzido pelo Fórum – que foi
acompanhado por esta pesquisa – no mesmo CEU Heliópolis, e pode, neste item do capítulo 2,

125
proporcionar uma comparação com o que se relatou até aqui. O próprio Diego iniciou sua fala
com elogios à posse Poder e Revolução e como é reconhecida como uma inspiração de luta.
Para o rapper, a posse foi referência não só para ele mas também para o coletivo Perifatividade,
principalmente na constituição de sua vida cotidiana. O cotidiano também se organizou por
meio das especificidades do seu bairro de origem, o “Fundão do Ipiranga”, como diz o logotipo
do coletivo. No mesmo logo, estão os escritos: “Sarau-Música-Opinião-Leitura”. Perifatividade
dialoga com várias linguagens artísticas e culturais e a relação do rap com a literatura é
constituinte do coletivo. Entre suas principais produções, oferecem oficina de construção de
poesia em escolas, participam dos cursos de formação de professores e oferecem cursos
gratuitos, como os de MC, graffiti, audiovisual, direitos humanos e aulas de inglês e espanhol.
Segundo as falas da terceira mesa, para alguns coletivos deve haver um equilíbrio entre o
“micro” – o território – e o “macro” – a política institucional, no entanto, para este coletivo, o
micro pode ser o macro e é algo que muitos coletivos esquecem.
O Fórum também já compreendeu a potencialidade dos saraus como outra forma de
diálogo com as juventudes e com a população periférica de uma forma geral. O Fórum
relaciona-se com o Slam Letra Preta, que mistura sarau com competição de poesias de autoria
própria e que nega a mesma competividade dos outros slams, de forma a contemplar outras
modalidades culturais e experimentar outras maneiras de produzir eventos de Hip Hop.
Atualmente é comum rappers e MCs participarem tanto de saraus da cena paulistana quanto de
um grupo ou de um coletivo de Hip Hop, em que participam como hiphoppers. O Perifatividade,
no entanto, guarda diferenças tanto de escala – não hierárquica – quanto de proposta. O Fórum
atua em múltiplas frentes e procura se relacionar com muitos outros coletivos, e, entre suas
frentes, está realizar atividades nos diversos territórios, enquanto o Perifatividade se preocupa
com a sua comunidade sendo esta a definidora de suas ações coletivas.
Uma similaridade entre o Fórum Hip Hop e o Perifatividade é a atuação em escolas. Nesse
sentido, com o financiamento a ambas as sedes fornecido por meio do Fomento à Cultura de
Periferia, a rede e o coletivo possuem atuação similar. A atuação nesses institutos, lugar tanto
de disciplina quanto de criatividade, pode proporcionar uma transformação nos(as) alunos(as);
sem essencialismos, a instituição de ensino continua a existir e devem-se aproveitar as brechas
e os usos possíveis do cotidiano para fugir das práticas disciplinares, como argumentou Certeau
(2014). Como disse a poetisa do Perifatividade, a cultura Hip Hop pode colocar em prática uma
pedagogia escolar que atue não somente pelo ensino dos elementos, mas também pela fala, pela

126
construção poética e pelo modo de agir em geral, que repercute em outra maneira de construir
conhecimento. Os valores, significados e práticas do Hip Hop podem dialogar mais com os(as)
estudantes.
A poetisa argumenta que não existiria literatura periférica se não houvesse o Hip Hop.
Esse argumento é corroborado por D’Andrea (2013), principalmente em termos de rupturas
históricas – representadas pelos coletivos de cultura na década de 1990 – com as organizações
políticas clássicas. Com essa mudança, houve um deslocamento do próprio significado de
periferia:

Os pressupostos dos movimentos sociais populares da década de 1980, com


suas mobilizações políticas e sua presença nas periferias, acabou permeando
a formação dos jovens que passaram a fazer uso do termo periferia na década
de 1990. Estes jovens, ao não mais se sentirem representados por organizações
políticas clássicas, como partidos, sindicatos e movimentos sociais, passam a
fazer críticas sociais e a se organizarem politicamente por meio de coletivo de
produção artística, do qual aqueles ligados ao movimento hip-hop foram os
pioneiros, mas não os únicos. O cerne da crítica naqueles 1990 era apresentar
a “realidade”, que poderia ser observada em um local com pouca visibilidade
para o todo da sociedade: a periferia (D’Andrea, 2013, p. 136).

Os coletivos também perceberam que um dos mecanismos para “mostrar essa realidade”
seria a criação de redes de produtores(as) culturais dispostos a promover articulação entre as
várias zonas da cidade ou entre os diversos coletivos presentes em uma só região. Existem redes
em praticamente todo o território da cidade, mas, principalmente na zona leste de São Paulo.
As redes promovem ações conjuntas em toda a zona, em apenas uma região, ou até em âmbito
municipal, como foram o Fórum de Cultura da Zona Leste, o Movimento Cultural de
Guaianases e o Movimento Cultural das Periferias. A atuação dos sujeitos que produzem cultura
ativamente na cidade fortaleceu-se com essas organizações, pois passaram a pressionar o Estado
a voltar sua atenção para os problemas relacionados ao campo cultural e às demais demandas
dos bairros periféricos. As periferias foram inundadas por uma multiplicidade de coletivos e
“coletivos de coletivos” que produzem cultura e política em São Paulo e que são tão
heterogêneos quanto suas produções.
Durante a entrevista em profundidade, ao ser perguntado sobre as maneiras de se articular
coletivos e sujeitos de Hip Hop, G. respondeu que o Fórum também pode ser lido como um
coletivo: “a gente age como um coletivo, porque a gente realiza coisas culturais e artísticas”.
Os argumentos da DJ B.S., ao mencionar o fato de o Fórum agir como um coletivo, revelam

127
um conflito interno relacionado com a preocupação dos sujeitos mais atuantes em manter um
espaço político e cultural importante para o Hip Hop que seja mais aberto e democrático
possível. Nas ações do Fórum, relacionam-se diversos coletivos e outras redes de cultura Hip
Hop ou de cultura de periferia. No entanto, a rede possui uma abertura mais ou menos restrita
para localidades que estão mais distantes da cidade de São Paulo.

A gente tem essa intenção desde o início no Fórum. Tem a intenção, só que é
o lance do conflito de ideias, muitas vezes assim, e de mentalidade também.
O que é bem normal, só que é muito legal o lance da rede. O Fórum tem
contato com gente fora de São Paulo [...]. Tem no município de São Paulo,
mas tem contato para fora da cidade. Só que aí tem que ter as pessoas para a
gente dar conta e já tem muita coisa. O Fórum de Hip Hop do Ipiranga, ele
nasceu baseado no Fórum de Hip Hop MSP. Só que a gente não consegue
estar tão próximo, de tá tão ligado ainda, porque as vezes você cria um grupo,
seja um fórum, ou não, que é muito próximo de um outro grupo e que pelo
lugar que você tá, você cria característica, pelas próprias pessoas, pelo lugar e
tal, que as vezes impede uma aproximação maior. É uma coisa muito natural,
mas depende muito da boa vontade de cada um, porque do Fórum do Ipiranga
a gente é muito próximo do de Hip Hop (G. - ZS - rapper, entrevista
concedida).

Durante a pesquisa em campo, acompanhando as ações do Fórum Hip Hop, ao investigar


as relações deste com as outras redes, além das relações inevitáveis com o Fórum do Ipiranga,
como mencionado por G., só foi possível observar a relação com o Movimento Cultural das
Periferias e a Frente Nacional das Mulheres do Hip Hop. A ação conjunta do Fórum com o
Movimento Cultural das Periferias foi realizada com o objetivo de aprovar a Lei de Fomento à
Cultura de Periferia:

[...] o programa de Fomento à Cultura de Periferia tem dois anos, mas foi feito
um barulho de uma rapaziada que entendeu “oh, vamos fazer barulho”. Fez
manifesto e os caramba para aprovar. E aprovou relativamente rápido, assim,
porque o povo fez um barulho muito grande e se juntou muitos coletivos. O
Fórum tava dentro, o Fórum de Hip Hop MSP tava e outros coletivos culturais
se reuniram (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

Essa aproximação representa o reconhecimento, pelo Fórum Hip Hop, das diversas
culturas existentes nos territórios periféricos que necessitam desse financiamento para
impulsionar suas produções. Além disso, ainda nessa ação, o próprio Fórum conseguiu que um
projeto fosse aprovado para a manutenção de suas atividades enquanto fórum aberto do

128
movimento Hip Hop. O Fórum procura produzir uma circulação com coletivos das regiões e
zonas em que atua por meio dos editais que conquista.
As dificuldades existentes entre articulação ampla e local, macro e micro, institucional e
territorial podem ser interpretadas com Santos (2000), na sua proposta de diferenciar e
relacionar as ações realizadas nos territórios entre verticalidades e horizontalidades. As relações
internas nas redes constituídas por jovens ocorrem no sentido de horizontalidades, como
mencionado por Maia (2014). Para a b-girl N., no Fórum Hip Hop, há uma “pseudo linha de
frente” formada por alguns sujeitos, senão por apenas um, para que se possa discutir e distribuir
a abrangência dessas atuações. Nas ações, porém, quanto ao uso do território, há um movimento
complexo entre diferentes alcances e escalas, distinto, mas ao mesmo tempo relacionado ao
conflito entre institucionalização e autonomia.
Nas verticalidades constituem-se as redes, um sistema reticular criado nos espaços de
fluxo. As redes possuem uma solidariedade organizacional composta por macroagentes e atua
por meio da regulação do conjunto do espaço. Na busca pela integração desse espaço e pela
imposição da ordem hegemônica, as redes tornam-se dependentes e alienadas em relação aos
lugares. O território é visto como recurso e “o modelo econômico assim estabelecido tende a
reproduzir-se [...]. O modelo hegemônico é planejado para ser, em sua ação individual,
indiferente a seu entorno” (Santos, 2000, p. 107). As ações em rede procuram relacionar
distâncias e aderem a práticas verticais para a implementação de suas estratégias e táticas; toda
mobilidade, no capitalismo, possui um custo. As verticalidades são detentoras, nesse sentido,
de uma racionalização.
Mas os territórios podem apresentar zonas contíguas, nas quais se encontra o espaço de
todos. Nessas circunstâncias, segundo Santos, cria-se uma solidariedade orgânica. Enquanto as
grandes empresas e o Estado, na globalização, preocupam-se com as verticalidades, as
horizontalidades aprofundam-se e solidariedades internas são geradas nos lugares por meio de
um interesse comum. Nas horizontalidades, é possível admitir, ao contrário,

a presença de outras racionalidades (chamadas de irracionalidades pelos que


desejariam ver como única a racionalidade hegemônica). Na verdade, são
contrarracionalidades, isto é, formas de convivência e de regulação criadas a
partir do próprio território (Santos, 2000, p. 110).

129
A diferenciação proposta por Santos remonta aos argumentos do capítulo 1, de que o
Fórum Hip Hop apresenta tanto hegemonias quanto contra-hegemonias; na perspectiva e nas
palavras do autor, também verticalidades e horizontalidades.
É possível inverter essa ordem e admitir a convivência dessas duas lógicas. Nas
horizontalidades, o território é visto como abrigo, enquanto nas verticalidades, como recurso:
“a mesma fração do território pode ser recurso e abrigo, pode condicionar as ações mais
pragmáticas e, ao mesmo tempo, permitir vocações generosas” (Santos, 2000, p. 112).
Haesbaert (2002) é um geógrafo que trabalha com as ideias de Santos e propõe outra
conceituação para essa diferença: o conceito de território-rede, que congrega as duas
perspectivas. No território-rede, as redes confundem-se com os territórios e constituem-se em
uma multiterritorialidade, na qual existe uma ambivalência entre enraizamento e mobilidade.
As redes podem ser utilizadas ainda para fortalecer os territórios e ampliam as possibilidades
do contato do Hip Hop com suas translocalidades espalhadas pelo mundo. As redes possuem
potencialidade de produzir sociabilidades nos territórios e se constituírem como propostas de
solução para os problemas nas vidas das pessoas que habitam as periferias.
Uma ação intencional por parte do Fórum Hip Hop foi seu desdobramento e
descentralização para as outras zonas da cidade. Principalmente por conta das dificuldades de
gestão das políticas públicas do movimento, criou-se o Fórum Hip Hop Leste, Norte, e assim
por diante. No entanto, esse desmembramento aparece mais nos momentos relacionados com o
Mês de Hip Hop e não participa da gestão das conquistas de verba por meio de editais, por
exemplo. Outros, também, são mais localizados, como o Fórum Hip Hop do Ipiranga, que não
possui a abrangência municipal do Fórum MSP, mas possui a mesma organização de uma rede
que atua em uma das regiões da zona leste, por exemplo, embora seja voltado exclusivamente
para a cultura Hip Hop e frequentado por praticantes de seus elementos na zona sul.
Outro exemplo de grupo que atua na cena mais ampla da cultura de periferia por meio do
Hip Hop é a Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop. Agrupamento que visa fortalecer as
mulheres do movimento, a Frente possui uma abrangência ainda maior do que qualquer outra
rede mencionada. Algumas de suas principais integrantes fazem parte da primeira geração de
mulheres do Hip Hop brasileiro, como Sharylaine, e outras MCs, da geração seguinte, como
Lunna Rabetti, a maior incentivadora da Frente. Segundo Ramos (2016), em um de seus
projetos, o “Perifeminas II – Sem fronteiras”, participaram mulheres hiphoppers de onze países,

130
formando uma rede transnacional. A aproximação de mulheres do Hip Hop na Frente significa
a busca por espaço, reconhecimento e representatividade (Ramos, 2016).
Durante a entrevista com B.S., ao falar da relação das mulheres negras com o Hip Hop,
surgiu a referência à Frente Nacional. Para ela, nem em um espaço criado e ocupado
majoritariamente por mulheres, no qual, supostamente, a “‘periferia’ se cria e se constitui em
lugar de resistência, acolhimento e identificação” (Ramos, 2016, p. 60), as mulheres do Hip
Hop se sentem plenamente representadas.

Podia ser mais uma ferramenta para as mulheres se organizar num espaço que
elas também possam falar, se sentir acolhida, mas os espaços que estão
presente o Hip Hop, eles não são acolhedores. Isso é geral, nem nos espaços
onde tem só mulheres, não é acolhedor. Acolhedor no sentido de acolher sua
história, toda aquela carga que tem [...] A Frente [Nacional] é um espaço
importante, mas são aquelas mulheres que estão ali. E as outras? Porque tem
outras mulheres no Hip Hop (B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).

Pode-se ver que as desigualdades de gênero estão presentes também nas redes de Hip Hop
com considerável mobilidade nos territórios e uso de políticas públicas como forma de
financiamento e ação política. A Frente assim como o Fórum são espaços vistos em suas
potencialidades; enfrentam conflitos e contradições na forma de atuação e nas possibilidades
de troca realmente existentes entre os diversos sujeitos que constituem dinamicamente o
movimento Hip Hop. Para a b-girl N., “para uma coisa dentro da sociedade não ser machista, a
sociedade não tem que ser machista”. O Hip Hop, como um todo, deve lutar contra as estruturas
presentes historicamente no Brasil para que não se reproduzam práticas culturais
conservadoras.
Essas organizações, por outro lado, ao estarem presentes em várias frentes de luta e se
articularem de forma conjunta com os movimentos sociais, com os demais coletivos e redes e
posses, procuram lutar contra o genocídio, que, por sua vez, também atua em todos os territórios
por meio de relações de força desiguais. Redes como o Fórum Hip Hop procuram um
fortalecimento recíproco para seguir na luta contra o mesmo Estado que lhe pode proporcionar
oportunidades nas políticas públicas.

131
Capítulo 3 - Territórios: práticas de resistência e negociação

No capítulo anterior, principalmente por meio da conceituação das formas


contemporâneas de ação coletiva e cultural, nas quais predominam coletivos e redes,
demonstrou-se que o Fórum Hip Hop atua por meio da mobilidade de seus fluxos reticulares
nos territórios paulistanos. No território-rede, o Fórum atua na relação entre ações verticais e
horizontais e age no uso dos territórios em que o Hip Hop está presente. O Hip Hop pode ser
visto como sedimentação e reformulação de experiências dos movimentos sociais; contribui
para formação de novos agrupamentos e convive, por vezes numa convivência conflituosa, com
diferentes subjetividades e modalidades culturais. Neste capítulo será analisado os usos desses
territórios pelo Fórum, que se situam na fronteira entre práticas de resistência e de negociação.
O caráter disjuntivo (Appadurai, 1996) dos fluxos da globalização produz diversas
contradições e ambivalências nos territórios. A mobilidade, proporcionada pela globalização
das técnicas, gera novas experiências e encontros entre as pessoas que habitam os grandes
centros urbanos, mas é acessada de forma desigual: a mobilidade é luxo para alguns e fatalidade
para outros. Esse fenômeno, próprio da globalização, resulta na produção de contraexemplos à
suposta mobilidade irrestrita: o surgimento de sedentarismos forçados e territorialidades
reivindicadas (Augé, 2010, p. 16). As “territorialidades reivindicadas” expressa-se na formação
dos sujeitos periféricos, que afirmam sua identitária por meio dos usos de seus territórios de
pertencimento.
Santos (2005) compreende que houve um retorno ao conceito de território para se analisar
os processos criados e revitalizados pela globalização. O território é transnacional, mas nem
todos os elementos presentes no território são transnacionais; para o autor, ainda se vive sob o
conceito de Estado Territorial. Esse retorno significa que, para se compreender a formação dos
lugares e as ações hegemônicas e contra-hegemônicas nos territórios, é preciso analisar os usos
desse território para compreendê-lo como “território usado” (Santos, 2005), não delimitado
somente pelas fronteiras do Estado-nação. Os vetores da globalização que são impostos aos
territórios acabam por produzir potencialidades de transformação, novas sinergias e uma
revanche à eficiência do que Santos chama de “globalização perversa”. A perversidade da
globalização visa à unificação de todas as lógicas em uma lógica única, a da democracia de
mercado. Daí seu “retorno” para a análise social: é por meio das horizontalidades e novas

132
solidariedades criadas pelos usos do território que se torna possível a libertação desse projeto
perverso em rumo a um outro caminho para uma “outra globalização” (Santos, 2000).
A atuação em rede do Fórum pode apresentar verticalidades, o que reproduz a
racionalidade global por meio de seu uso – já que são os mercados universais que impõem uma
racionalidade às redes –, mas articulado com horizontalidades. Nessa articulação, é possível
relacionar as diversas zonas territoriais de São Paulo com os sujeitos do Hip Hop, que
estabelecem relações culturais com suas localidades de pertencimento. O território pode ser
formado por lugares contíguos e lugares em rede:

[...] são, todavia, os mesmos lugares que formam redes e que formam o espaço
banal [formado por horizontalidades e contiguidades]. São os mesmos lugares,
os mesmos pontos, mas contendo simultaneamente funcionalidades
diferentes, quiçá divergentes ou opostas (Santos, 2005, p. 256).

As relações entre os membros do Fórum e as pessoas ligadas à rede assim como os usos
dos territórios também geram conflitos entre formas de ação. Uma situação em que se pôde
observar a existência desses conflitos aconteceu durante uma das reuniões semanais do Fórum
para discutir táticas para as políticas públicas de Hip Hop, em que ocorreu uma discussão entre
dois militantes sobre a necessidade de usar o Hip Hop de forma política e não só cultural. Um
deles, usando um boné do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), argumentou que
aquela discussão “era uma perda de tempo e Hip Hop é cultura e não movimento político; eu
sou movimento político, sou do MTST”. O outro era Nando, que respondeu da seguinte
maneira: “agir politicamente nas culturas é uma alternativa encontrada pelos povos negros na
diáspora”. O contexto de reterritorialização de práticas político-culturais de culturas negras,
representado pelo Hip Hop, permite uma compreensão das formas como o Fórum se situa nos
usos do território: resistir ao racismo e ao genocídio por meio de uma cultura com marcantes
resíduos de culturas negras.
No decorrer da pesquisa de campo, além do debate descrito acima, outras observações
etnográficas facilitaram essa leitura conceitual do Hip Hop e das ações do Fórum. No já
mencionado curso de formação popular “Da eugenia ao genocídio”, a Prof.ª Maria Adélia, do
Departamento de Geografia da USP, dedicou um dia para a análise dos usos dos territórios que
abrigam essas duas práticas de violência (eugenia e genocídio): a primeira, pseudocientífica; e
a segunda, um extermínio, reproduzido historicamente em larga escala de assassinatos e
também por estruturas econômicas, culturais e políticas. A professora pretendeu, com essa

133
abordagem, realizar uma crítica à democracia racial brasileira. No dia anterior, Nando, em sua
fala durante o curso, teve a mesma intenção, mas sob o viés da educação étnico-racial. Além
dessas abordagens realizadas no curso, também facilitou essa leitura a política pública voltada
para a realização contínua de oficinas de Hip Hop, o Vocacional do Hip Hop, que se chama
“Território Hip Hop”. O “Território...” visa articular os entornos dos equipamentos em lugares
periféricos mediante práticas culturais e comunicacionais do Hip Hop.
As ações do Fórum evidenciam diferentes maneiras de usar os territórios. Usando táticas
que constituem as práticas político-culturais, os membros do Fórum e os(as) participantes de
suas principais ações relacionam-se com a população dos seus bairros, de forma a produzir
conscientização política das realidades periféricas e suas possibilidades de resistência. Nos
shows de rap, discotecagens, cyphers, live paints, oficinas dos elementos do Hip Hop, debates,
rodas de conversa, seminários e cursos de formação popular, o Fórum, em contato com a
população dos bairros periféricos, procura demonstrar outras saídas para uma diversidade de
sujeitos. A ação, muitas vezes, é conformada pelas próprias necessidades e possibilidades
presentes nas periferias da cidade.
O território usado, visto como uma categoria de análise relevante para interpretar os
fenômenos culturais que surgem e se reproduzem por meio da globalização (Santos, 2000),
serão analisados com maior profundidade por meio de ações político-culturais em rede,
acompanhadas nesta pesquisa, e da produção de conhecimento sobre as resistências, à
contrapelo do racismo estrutural nos territórios.

3.1. Ocupação dos territórios: ações político-culturais em rede

Durante a pesquisa, o Fórum organizou eventos com a verba conquistada com a Lei de
Fomento à Cultura da Periferia. Foram organizadas diversas iniciativas com o Fomento, que
visavam à difusão e produção de conhecimento, produção cultural, discussão sobre políticas
públicas e formação política e cultural nos territórios. Quatro eventos foram escolhidos para a
análise deste capítulo. Esses eventos foram: o “Hip Hop Politicamente”, o “C.T. Sitiada”,
Prêmio Sabotage e o curso de formação popular “Da eugenia ao genocídio: perspectiva da
democracia racial brasileira” (este último será analisado no item a seguir). O acompanhamento
dessas iniciativas foi importante não só para analisar justamente a presença do Fórum nos
territórios, mas também para conhecê-lo em contato com outros atores mais institucionais e

134
com outros coletivos. Nesses eventos, o Fórum buscou a apresentação dos trabalhos dos grupos
de Hip Hop da região em que ocorreram, bem como a formação de novos praticantes da cultura.
Além das reuniões, essas ações fazem parte do cotidiano do coletivo/ rede:

A relação dos procedimentos com os campos de força onde intervêm deve,


portanto, introduzir uma análise polemológica71 da cultura. [...] a cultura
articula conflitos e volta e meia legitima, desloca ou controla a razão do mais
forte. Ela se desenvolve no elemento de tensões, e muitas vezes de violências,
a quem fornece equilíbrios simbólicos, contratos de compatibilidade e
compromissos mais ou menos temporários. As táticas do consumo,
engenhosidades do fraco para tirar partido do mais forte, vai desembocar então
em uma politização das práticas cotidianas (Certeau, 2014, p. 44).

As ações acompanhadas expressam essa politização das práticas cotidianas apontada por
Certeau. Ao intervir no cotidiano, o Fórum faz o uso político desses territórios por meio das
quatro linguagens/ elementos que constituem o Hip Hop na sua história cultural; com isso,
resiste ao genocídio e dialoga e negocia com uma diversidade de lugares, espaços,
agrupamentos e sujeitos. Essas ações residem na fronteira entre resistência e negociação, ao
mesmo tempo em que combinam, mediante diferentes equilíbrios momentâneos, essas duas
formas de atuação para encontrar brechas “de tirar partido do mais forte”, o que pode resultar
em (re)produções culturais e políticas.

3.1.1. Hip Hop Politicamente, sociabilidade e uso dos espaços públicos

O evento “Hip Hop Politicamente” ocorreu no CEU (Centro de Artes e Esportes


Unificados) de Heliópolis, zona sul da cidade. O CEU está localizado nas costas da favela de
Heliópolis e próximo do movimentado centro comercial da região. O rapper Gile, morador da
região do Ipiranga, próximo a Heliópolis, foi encarregado da articulação entre os responsáveis
pela gestão do lugar e os coletivos e grupos que participariam do evento, e também de cuidar
do andamento das atividades – como um MC. O cronograma do evento constava de oficinas
dos quatro elementos do Hip Hop, um Slam com o coletivo Letra Preta e um debate sobre
políticas públicas. O debate e a oficina de DJ não ocorreram, pois alguns artistas demoraram

71
O termo empregado por Certeau refere-se à adjetivação de polemologia. Segundo o dicionário Aurélio (Ferreira,
2009, p. 1588), polemologia significa “estudo da guerra como fenômeno social autônomo”. Independente de um
debate a respeito de tratar-se ou não de um fenômeno social autônomo, polemologia significa, para a discussão
aqui apresentada, apenas o estudo da guerra por meio das práticas do cotidiano. Em outras palavras, as práticas do
cotidiano como manifestações de uma guerra.

135
para chegar e o tempo para a realização das atividades, que era, desde o início, estabelecido
pela administração do CEU, esgotou. Dos momentos artísticos do evento, participaram os
grupos de rap, da zona sul, Pânico Brutal e Alma Sobrevivente; o rapper Keshada; a dançarina
Anna Barbugian, que demonstrou o que é o dancehall, dança de origem jamaicana e que possui
semelhanças com o breaking; a b-girl N. (que também realizou a oficina de breaking); e o
graffiti e a oficina de Angélica Sena.
As regras para restrição dos horários assim como para a punição pelo atraso de oficinas e
apresentações tinham de ser rigidamente cumpridas. O ritmo de evolução dos trabalhos do
próprio espaço que estava sendo utilizado era fixo, devido ao horário de funcionários, à
segurança, luz, utilização de banheiros, controle das pessoas no local, etc. O DJ Markinhos, do
Hip Hop Coletivamente e do Pânico Brutal, foi contratado para dar a oficina para crianças e
adolescentes ali presentes, mas, por conta do trânsito em seu caminho de Diadema até o local
do evento, chegou com uma hora de atraso e a oficina foi cancelada: contingências de se
deslocar em grandes distâncias na cidade de São Paulo. Pirata sugeriu o corte na sua
apresentação, o que provocou uma pequena discussão. As regras do lugar provocam ações e
decisões que visam ao seu cumprimento. Os lugares devem ser ocupados, no entanto os agentes
que os ocupam podem seguir essas regras na forma de uma negociação.
A utilização dos espaços públicos possui uma dinâmica variada. Espaços bem
demarcados pela administração estatal preocupam-se com a distribuição dos corpos, levando-
os a se organizarem de uma determinada forma e a agirem guiados por certas regras e punindo
aqueles que não as cumprem; outros, como praças públicas, que não possuem demarcação mais
rígida, contam com a pressão de moradores contrários ao que se faz nesses espaços e com a
repressão do Estado. A política pública dos CEUs, por exemplo, estabelecida no governo de
Marta Suplicy, na sua gestão como prefeita de São Paulo, foi pensada para garantir um espaço
de lazer, cultura, educação e esporte para a população, principalmente de bairros periféricos e
marcados pela falta de equipamentos como esse. Nesse sentido, os CEUs disponibilizam
infraestrutura material e atividades diversas que antes não existiam e ações culturais e
educacionais são incentivadas, desde que sua realização seja acordada com a administração da
unidade em questão.
O CEU Heliópolis Prof.ª Arlete Persoli possui, no entanto, uma especificidade. Esse CEU
é uma conquista dos moradores do bairro por meio da UNAS (União de Núcleos, Associações
dos Moradores de Heliópolis e Região), uma ONG que procura organizar as demandas dos

136
moradores por infraestrutura e serviços públicos que possam atender a comunidade. A UNAS
compartilha a gestão do CEU com a Prefeitura de São Paulo. Além da estrutura esportiva e
cultural comum aos CEUs (piscina, quadra, biblioteca, teatro, playground, espaços para oficinas
e ateliês, como a Torre da Cidadania, no caso de Heliópolis), o CEU Heliópolis é formado por
uma creche, FabLab (política pública do município de São Paulo, que oferece cursos de
formação técnica e artística), escola infantil, escola técnica estadual, escola municipal de ensino
fundamental Campos Salles – inspirada em um projeto que visa incentivar autonomia nos(as)
educandos(as) – e UniCEU (polo da Universidade Aberta do Brasil, com aulas semipresenciais
e a distância de graduação e pós-graduação)72. A comunidade de Heliópolis se orgulha de ser
um “Bairro Educador”.
Existe uma conquista comunitária materializada, entre outras formas, pelo CEU e a
produção de atividades em prol dessa comunidade é facilitada. A própria gestão, por ser
compartilhada com o poder público, também contribui para encontrar as brechas. Na
negociação com os lugares, os usuários procuram transformá-lo em espaço, de forma a garantir
a circulação de uma exterioridade inesperada; em outras palavras, em lugar praticado, como
afirma Certeau (2014, p. 184). Porém, nessa negociação, a gestão do CEU busca, pela natureza
própria dessa relação, o estabelecimento de regras claras para a utilização. Como um lugar
estabelecido,

[...] impera a lei do “próprio”: os elementos considerados se acham uns ao


lado dos outros, cada um situado num “lugar” próprio e distinto que define.
Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma
indicação de estabilidade (Certeau, 2014, p. 184).

Essa negociação possui seus problemas – os membros do Fórum, durante o evento,


mencionaram como é difícil conseguir um muro do CEU para oficina de graffiti e também
referiram-se ao estreitamento da agenda devido a contingências –, mas é possível subverter essa
ordem ao produzir uma cultura crítica para os mais jovens. O Hip Hop pode adquirir força nesse
sentido e subverter os lugares estabelecidos e alterá-los a seu favor. Ao estabelecer essa
comparação entre espaço e lugar, Certeau refere-se aos “relatos” que moradores das cidades
fazem sobre um percurso (um espaço) e a existência de um lugar. O interesse, aqui, é relacionar

72
Disponível em: < https://www.facebook.com/pg/ceuheliopolis/about/?ref=page_internal>. Acesso em: 02 set.
2019.

137
essa distinção proposta pelo autor para interpretar as práticas de ocupar os espaços públicos.
Para tanto, Certeau estabelece a seguinte distinção:

Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidade


de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de
certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram.
Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam,
o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas
conflituais ou de proximidades contratuais [...]. Diversamente do lugar, não
tem portanto nem a univocidade nem a estabilidade de um “próprio” [...]. Os
relatos efetuam portanto um trabalho que, incessantemente, transforma
lugares em espaços ou espaços em lugares (Certeau, 2014, p. 184-5).

Embora existam as limitações do lugar e as confusões temporais devido a problemas de


mobilidade de artistas e eventual falta de flexibilidade por parte dos CEUs, o Fórum fez um uso
improvisado do tempo nessa ocupação, transformando efemeramente em “lugar seu”. Na
garantia da circulação de diversas crianças, adolescentes e jovens, principalmente nas oficinas,
os membros do Fórum procuram ocupar os lugares com diferentes espacialidades nos seus
esquemas táticos de operação. Com a improvisação própria de MCs, as atividades se
estabeleceram em outra ordem temporal e o resultado foi a criação de momentos de
sociabilidade lúdica para quem estava ali: nas batalhas de rimas com as crianças durante a
oficina de MC, as intervenções das crianças no meio da oficina de breaking, arrancando risadas
de todos(as), e os pocket shows de rap, nos quais Pânico Brutal e Alma Sobrevivente puderam
mostrar os respectivos trabalhos para “os seus”.
O Slam Letra Preta participou do evento e a b-girl N. foi uma das organizadoras junto
com as poetisas Suilan e Gabriela. Para aquecer as poetisas, antes do acontecimento do Slam
propriamente dito, ocorreu um sarau em que o protagonismo foi das mulheres – no sarau,
costuma haver também uma atividade mais lúdica, com escolhas diversificadas de poesias a
serem declamadas no microfone. Nesse sarau, algumas poetisas apresentaram performances
mais profissionais, outras estavam em suas primeiras apresentações, mas todas leram poesias
dos livros de “literatura marginal” que estavam ali expostos. Primeiro liam poesias umas às
outras para, depois, iniciar a leitura nos microfones. A seguir, as(os) slammers começaram a
sentar para esperar Gabriela apresentar as regras e anunciar os encaminhamentos.
O Letra Preta possui um formato comum aos outros slams: três jurados; notas de 0 a 10;
performance e poesia como critérios de avaliação; eliminatórias até chegar à etapa final;
eliminação pela somatória das notas; e prêmio para o vencedor. Porém, nessa edição, foi

138
permitida a escolha de poesias de outros(as) poetas e poetisas e o critério de avaliação
considerou exclusivamente a performance. N. relatou que o Slam:

[...] tem uma proposta diferenciada dos outros. A gente não prioriza de fato a
batalha. Então a gente não tem umas regras tão rígidas [...] [para] deixar o
poeta bem livre. A intenção é que ele participe (N. - ZL - b-girl, entrevista
concedida).

Durante o Slam, as meninas recitavam poesias que falavam de amor, sexualidade,


feminilidade, feminismo negro e racismo. A experiência do Slam nesses espaços possui
ressonância com o conceito de biorresistência, conforme trazido por Valenzuela Arce (2014).
A biorresistência é uma das quatro dimensões do que o autor denomina de biocultura, como
resposta à outra dimensão desse mesmo conceito, a biopolítica:

[...] a biopolítica como conjunto de estratégias e regimes de veridicção que


participam da definição de políticas populacionais, assim como os
dispositivos de controle do corpo (particularmente das/dos jovens) que
funcionam como expressão e exercício do poder inscrito no corpo [...] as
biorresistências que referem a práticas significantes que desafiam os sentidos
e estratégias da biopolítica, atuando como dispositivos políticos [...] sugerem
a mediação do corpo como elemento central na construção das referências de
distinção de culturas, estilos e identidades (Valenzuela Arce, 2014, p. 27,
tradução nossa).

Essa biorresistência mencionada por Valenzuela, enquanto desafio à biopolítica, não


constitui uma prática contemporânea. Ao escrever sobre práticas residuais da população negra
presentes na cultura Hip Hop, Azevedo e Silva (1999) relatam que a ocupação dos espaços
públicos está presente na história da população negra paulistana desde antes da abolição da
escravidão, realizada pelo Estado brasileiro, que, por sua vez, deixou essa população sem
qualquer amparo ou reparação para sobreviver nas cidades. O ato de ocupar é lido como
manifestação cultural, com ênfase para as manifestações musicais, e pode ser interpretado como
prática longínqua de resistência na qual a população negra produz sociabilidade:

Tanto antes, como depois de maio de 1888, a população negra em São Paulo
tem utilizado muitos dos espaços ditos públicos, como ruas, praças e galerias,
para criar e recriar musicalidades, e como as práticas musicais para os afro-
descendentes fazem parte da própria vida ela esteve presente nos momentos
mais ordinários, bem como naqueles em que se projetaram movimentos,
organizaram-se grupos, partidos, cooperativas, associações e irmandades
(Azevedo, Silva, 1999, p. 68).

139
Uma outra manifestação do Fórum em espaço público, prática recorrente em ruas e
avenidas de considerável fluxo de pessoas e veículos, consiste no ato de pressionar os poderes
públicos, do lado de fora dos prédios que sediam órgãos do Estado, mas principalmente os do
poder executivo, dentre eles a Secretaria de Cultura da cidade, para efetivação das políticas
públicas de Hip Hop. Ao ato convocado pelo Fórum no dia 8 de fevereiro de 2018, a se realizar
em frente à Galeria Olido e sede da Secretaria de Cultura, diversos(as) hiphoppers
compareceram para enunciar palavras de ordem, que acabavam preferencialmente com: “Ei,
André Estrume73, cadê a grana do Hip Hop?”. Para não depender da energia elétrica da Galeria,
o som e o aparelho de Pec Jay foram ligados com ajuda de um pequeno gerador movido à
gasolina: uma brecha proporcionada pelo Estado, mediante investimento em políticas públicas,
para pressionar o poder público.
O graffiteiro Modenez produziu live paint em uma tela com a temática voltada para o ato.
Aos poucos, a roda de protesto transformou-se numa batalha de freestyle. A roda aumentou, e
muitas pessoas que passavam pela calçada da Av. São João pararam por um momento e saíram,
outras ficaram durante horas ou até o final do ato. Diversos pedestres foram enunciar sua
criatividade por meio da rima improvisada. Um menino morador de rua parou na roda, observou
e pediu para fazer algumas rimas. Após várias rodadas, ele foi chamado, por um outro jovem,
de “novo Sabotage” por causa de sua irreverência e do grande talento que demonstrou nas suas
intervenções. Pirata, Gile, Pec Jay e outros nem precisaram mais ditar os rumos do ato; a partir
do momento em que a roda tomou vida própria, Pirata só voltava, às vezes, para mandar
algumas rimas, já que não necessitava de mediação: um exemplo da criação efemeramente
autônoma da sociabilidade (Simmel, 2006).
A roda foi se tornando cada vez mais heterogênea: um trabalhador dos Correios
demonstrou sua criatividade nas rimas ainda com o uniforme; mulheres entraram na roda e
falaram sobre ser mãe e mulher negra; outros moradores de rua intervieram; homens mais
velhos pararam e perguntaram: “o que está acontecendo aqui?”; e, após a chegada de um grupo
de jovens, uma menina começou a tocar músicas de sua própria autoria em seu violão alternando
com um MC, que a acompanhou. Um MC “das antigas” – como ele mesmo se apresentou –
disse: “isso que é música, não vai tocar Pablo Vittar” e, em resposta, outra jovem retrucou:

73
Sátira em referência ao nome do criticado ex-secretário de cultura do município de São Paulo (2017-2019),
André Sturm.

140
“vamos tocar Pablo Vittar sim!” e, na sequência, recitou uma poesia também de autoria própria.
A localização do evento e o motivo pelo qual estavam todos ali transformaram a rua e a entrada
da Galeria Olido em espaço de produção cultural e de resistência.
O ato não durou muito tempo até a polícia militar encostar na Galeria: “olha os homens
aí, nossos amigos”, alguns ironizaram. Resistência, mas também negociação: Pirata, Pec Jay e
Wellington Sonora foram negociar com os policiais e tudo foi explicado. Conseguiram manter
o ato, já que os policias estavam ali para proteger a Galeria (com portas fechadas) e o secretário,
e nada “corria perigo”. A manutenção do ato não produziu diálogo com qualquer funcionário
público da secretaria, mas atraiu observadores nas janelas dos andares de cima da Galeria.
Apesar das palavras de ordem enunciadas e rimadas pela roda formada por dezenas de pessoas,
não só relacionadas diretamente ao Hip Hop, a polícia negociou com os sujeitos do Fórum e a
manifestação continuou.

3.1.2. C.T Sitiada, experiência de união dos elementos e violência policial

No evento “C.T. Sitiada”, que ocorreu em maio de 2018, o Fórum assumiu mais a
característica de ocupação dos espaços públicos mencionado acima, mas uma motivação
política específica obteve centralidade: as ações policiais na Cidade Tiradentes – distrito-sede
do Força Ativa, logo do Sarau Letra Preta –, incentivadas pelo subprefeito Oziel, têm
contribuído para a repressão na região, o que provocou o desejo de realizar uma denúncia
pública por parte do Fórum e dos membros de outros coletivos da Cidade Tiradentes. Para o
Fórum, na Cidade Tiradentes acontecem ações policiais “às escuras”; como disse Tito, membro
do Fantasmas Vermelhos e do Força Ativa: “só quem mora na Cidade Tiradentes tá ligado”. Na
página do Facebook do Força Ativa, foi feita uma publicação: “Amanhã vamos ocupar a praça
do lado terminal Cidade Tiradentes e pautar as questões referentes ao nosso bairro”74. É possível
pensar o conceito de biorresistência considerando esse evento do Fórum Hip Hop, tal como
citado acima.
O Fórum, em parceria mais efetiva com os membros do Força Ativa, preocupou-se em
indicar artistas que vivem nos arredores da Cidade Tiradentes, mas outros artistas próximos aos
Fóruns de outras regiões também participaram, como o DJ Velaskes. O b-boy Welmom foi

74
Disponível em: <https://www.facebook.com/coletivoforcaativa/posts/2519215808302940/>. Acesso em: 02 jul.
2019.

141
indicado para fazer a apresentação de breaking e o b-boy Eddie, para realizar a oficina. O evento
contou novamente com a oficina de graffiti da Angélica e com a participação do Slam Letra
Preta, com a oficina do MC Hugo, também membro do Força Ativa, e com as intervenções do
coletivo OTM Graffiti. Dos shows de rap, participaram os grupos Fantasmas Vermelhos,
Embriões – ligado à posse Aliança Negra – e Bener Zil.
O evento ocorreu em uma praça multiuso, em frente ao terminal de ônibus da Cidade
Tiradentes. O espaço parecia estratégico devido ao fluxo de pessoas de todas as idades que
poderiam comparecer, fosse para permanecer, aprender e participar por horas do Hip Hop, fosse
para observar por um momento e ver que o Hip Hop não está morto 75 76. No entanto, ou pela
própria localização do espaço ou pelas conquistas políticas do Hip Hop e, mais especificamente,
do Fórum – o que pode significar mais uma expressão do “reconhecimento social” do Hip Hop
–, aqueles que estavam presentes no evento não foram incomodados, diferente do que acontece
nos bailes funk que ocorrem no bairro e são vistos como perturbação da lei e da ordem. Nesse
espaço, as pessoas do Fórum e dos outros coletivos tiveram que improvisar a estrutura do evento
na praça.
Com os gazebos prontos e o som ligado no gerador, o evento pôde começar. Uma das
atrações era o documentário “Da São Bento ao Feminismo”, que seria transmitido por um
projetor. O documentário, disponível em redes sociais77, narra o Hip Hop e reconta a história
desse movimento cultural por meio de depoimentos das mulheres. Além de alterar as
concepções de emergência do Hip Hop no Brasil, o documentário traz um panorama atual sobre
a posição das mulheres no Hip Hop. Para que o documentário fosse transmitido, no entanto, o
telão teria que ser instalado no alambrado da quadra. Muitos se mobilizaram para instalar o
projetor nas grades – inclusive este pesquisador –, o que necessitava de cuidado para que a
imagem fosse transmitida com nitidez. Até as crianças e os adolescentes se juntaram para rir
dos improvisos. Com problemas de distanciamento entre projetor e telão e a posterior falha do
projetor, não houve outra opção para refletir a imagem, e o documentário não foi transmitido.

75
Nando mencionou duas vezes seu descontentamento com o Hip Hop. No evento “C.T. Sitiada”, em conversa,
relatou o seguinte: “ando meio desanimado com o Hip Hop. Ele tá meio pendenga, galera com muita rixa, pensando
muito em profissionalização, em dinheiro... ninguém pensa mais na parte política”. Muito se diz também sobre a
perda de espaço na música para o funk, como uma expressão cultural mais presente entre os adolescentes e jovens
nas periferias. Além de tudo, as culturas tendem a se mover para formações, muitas vezes, inesperadas; os conflitos
podem se acirrar quando algo impede esse movimento.
76
Trata-se de uma referência ao livro “O Hip Hop Está Morto!: a história do hip-hop no Brasil” (Toni C, 2012).
77
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ttQ5wUGKOpw>. Acesso em: 02 jul. 2019.

142
As oficinas aconteciam ao mesmo tempo. Somente as oficinas de DJ e de MC tiveram
que acontecer separadamente, pois os processos de aprendizagem e de utilização das batidas
são específicos de cada elemento. Para que as crianças pudessem aprender a batida usada por
Pec Jay e compreender, mesmo como principiantes, como é tocar nas pick-ups eram necessárias
pausas e interrupções, coisa que não pode acontecer na oficina de MC, a não ser a pedido do
próprio oficineiro(a) – que, no caso, foi Hugo, o MC do Fantasmas Vermelhos. A presença de
crianças alternava-se entre as diferentes oficinas: as crianças podiam passar por todos os
elementos, se quisessem, e assim fizeram. A mesma circulação se deu com o futebol78, que
acontecia na outra metade da quadra: as crianças que faziam oficina iam jogar bola por um
tempo e depois voltavam. Na oficina de graffiti, as crianças pegavam as latas de tintas e
escreviam, desenhavam, simbolizavam o que queriam, sob instrução de Angélica. Em seguida,
quando não havia mais espaço, pintavam os escritos e desenhos com tinta branca para reutilizar
os espaços.
Em mais um evento realizado pelo Fórum, os quatro elementos do Hip Hop estavam
presentes, com as oficinas para crianças, adolescentes e jovens e com os(as) artistas
convidados(as) que se apresentaram ora de forma simultânea, ora de forma separada. Entre uma
atividade e outra, palavras de ordem contra o genocídio da juventude preta, pobre e periférica,
representado naquele momento pelas ações truculentas da PM, eram proferidas. Sobre a
concepção do Fórum e da importância política dos eventos que produz, R.P. diz que “o Fórum
é isso... não tem alguém que faz isso aqui, da união dos elementos; o que as pessoas fazem são
só dos elementos separados. O Estado não faz, mas alguém tem que fazer, e somos nós que
fazemos” (R.P. - C - rapper, relato durante o evento C.T. Sitiada).
Várias rodas se formaram para compartilhar a produção do Hip Hop: rodas de crianças,
para participar das oficinas de todos os elementos; cyphers de breaking, que alternavam com
músicas de soul; e batalha de MC. Após os momentos de descontração e diversão criados pelas
pessoas que frequentavam o evento, por alguns instantes ou do começo ao fim, o Slam Letra
Preta reuniu outra roda com os(as) jovens, adolescentes e crianças que ali estavam. O ganhador
foi premiado com duas camisetas do Fórum, enquanto o segundo e o terceiro colocados foram
premiados, cada um, com uma camiseta. Após seguidas rodadas de poesias autorias e não
autorais – o que os diferencia dos slams “mais famosos”, como relatado por N. –, que eram

78
O coletivo de Sonora, o Hip Hop Coletivamente, possui um projeto em andamento, com financiamento do VAI,
que articula Hip Hop com street ball, a prática de basquete “de rua” com regras mais flexíveis.

143
sempre iniciadas com os gritos: “SLAM (Gabriela): LETRA PRETA (grito coletivo)”, o slam
terminou e abriu espaço para o rap.
Nos shows de rap cantaram os grupos Fantasmas Vermelhos e Embriões e Bener Zil.
Cada um cantou entre três e quatro músicas e todos mostraram suas obras como rappers para o
bairro em que vivem. Uma das principais intenções do Fantasmas Vermelhos, bem presente nas
suas letras, é colocar em prática o projeto marxista: articular a classe trabalhadora para realizar
a revolução. Com a formação marxista desde sua mudança para a Cidade Tiradentes, o Coletivo
de Esquerda Força Ativa alia o conceito de trabalhadores, enquanto categoria não homogênea,
ao conceito de raça, de forma a representar o(a) trabalhador(a) negro(a) e ampliar os potenciais
políticos do rap do grupo. Enquanto cantavam também denunciavam a violência policial
presente no cotidiano dos(as) moradores(as).
Antes de fazer seu show, Bener contou, reservadamente, que uma de suas músicas foi
homenageada pelo coletivo Família Stronger79, um grupo de ativistas LGBTQIA+. Nessa
música, Bener critica os “cídios”, entre eles, o genocídio, feminicídio, juvenicídio, e posiciona-
se contra homofobia e transfobia. Para ele, “preconceito” é uma palavra leve e deve ser
substituída por racismo, genocídio, feminicídio, etc., que são mais eficazes e profundos na
crítica. Chamar uma discriminação de preconceito é suavizá-la. No seu show, Bener fez questão
de cantar essa música para que pudesse compartilhar seus significados.
O Fórum é nesse sentido uma possibilidade de garantir a “união” dos elementos nos
territórios. Como já mencionado, nos Estados Unidos, Afrika Bambaataa é tido como o grande
responsável por essa união e pela instituição da nomenclatura. Portanto, o movimento cultural
só existe quando há a presença dos quatro elementos, pois não há como cantar Hip Hop, ou
dançar Hip Hop; é possível cantar rap e dançar breaking, dois de seus elementos. Nesse sentido,
o Hip Hop é legitimado como cultura e movimento e está presente com a articulação dos quatro

79
Na seção “Filme”, do site do coletivo, a Stronger explica o porquê de o coletivo fazer parte de um webdoc:
“Família Stronger é uma família LGBT formada por cerca de 250 membros. Sua história pode ser erroneamente
confundida com a de uma gangue ou de uma ONG, mas sua estrutura é ainda mais complexa. Pessoas trans e cis,
travestis, gays, lésbicas, bissexuais e mesmo heterossexuais organizam-se nessa rede afetiva e política submetidos
a uma única regra fundamental: não à discriminação, seja ela qual for. Criada por um adolescente de dezessete
anos, o coletivo já nasce em tempos de redes sociais numa comunidade do Orkut. No mundo off-line, encontram-
se em “PVTs” (festas privadas) em que diferentes corpos dançam até o chão ao som de música pop e funk. São
também a primeira família a produzir um cineclube mensal sobre diversidade, no Grajaú, bairro na Zona Sul
paulistana. Foi a partir dessas sessões de filmes com temática LGBT que o seu ativismo político ganhou forma
com conversas e debates coletivos. Passíveis de uma violência diária que o outro lado da cidade ignora, chegou o
dia em que uma de suas integrantes foi brutalmente assassinada. Com o movimento e outras famílias LGBT, a
Stronger mobilizou manifestações e passou a conquistar seu espaço na difícil luta contra a LGBTfobia”. Disponível
em: http://www.familiastronger.com/filme/.

144
elementos artísticos constituintes – com a possibilidade da associação simultânea com outras
modalidades culturais, como na presença dos Slams, saraus e mediações de leitura.
Embora se discuta a existência, ou não, do quinto elemento, em entrevista concedida a
esta pesquisa, G., rapper e MC, concordou com os princípios estipulados pela Zulu Nation –
um dos primeiros coletivos de Hip Hop, fundado por Afrika Bambaataa e por outros hiphoppers
– que consideram o divertimento e a festa:

[...] tem a coisa de você reforçar, nas festas, o senso comunitário das pessoas.
Não estabelecer uma indiferença com o que o outro passa, e aproximar as
pessoas para realizar coisas, fortalecer as associações de bairro. Tudo isso
inclui cultura também, invariavelmente inclui cultura de uma forma geral.
Tem o lema da Zulu Nation, que é “Peace, Love, Unity and Having Fun”. Paz,
Amor, Unidade e Divertimento. É um lema que eles cunharam [...] É um
negócio que já está dentro da própria realização do Hip Hop, seja dançando,
seja [...] (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

A polifonia pode ser construída por meio de seus valores e significados e que possuem
suas materialidades – os aparelhos eletrônicos do DJ e do MC, as latas de tinta, os conteúdos
específicos dos cartazes, os locais escolhidos, a vestimenta, as relações com o corpo –, assim
como por meio de suas maneiras de fazer e os saberes envolvidos nessa produção, como os
improvisos na dança, no graffiti, nas rimas e nas combinações musicais, a educação menos
formal das oficinas. Essas produção podem ser compartilhadas por princípios de identificação
e reconhecimento e, ao mesmo tempo, de diferença em relação a outras expressões culturais.
No entanto, na dinâmica existencial das pessoas que vivem determinada cultura, há sempre uma
“zona obscura” (Morin, 2002), a qual as pesquisas acadêmicas dificilmente são capazes de
acessar; ou, mesmo quando se consegue o acesso, ela é de difícil apreensão no texto acadêmico
e nas linguagens científicas artificiais (Certeau, 2014). Nas tentativas de pesquisa-las, no
entanto, foi possível escrever sobre os elementos no capítulo anterior e analisar como os
elementos funcionam em três eventos específicos, como os apresentados neste capítulo.
Em ambos os eventos – Hip Hop Politicamente e C.T Sitiada – houve criticidade afiada,
tanto para os artistas conhecidos, que procuram fortalecer os eventos e os trabalhos que os
principais membros do Fórum ou os coletivos ligados aos territórios realizam, quanto para as
crianças e os adolescentes, que começam a enxergar e a saber um pouco mais sobre o que é o
Hip Hop. Se um dos eixos temáticos do Fórum é o de inserir o Hip Hop como tema transversal
de educação e, nesse sentido, ampliar a compreensão de educação para além da escola, as

145
oficinas são fundamentais para a transmissão dos saberes específicos de cada elemento e para
mostrar o que é o Hip Hop enquanto movimento cultural. Nesses eventos, também fica visível
que o Hip Hop possui um caráter lúdico, próprio da criação dinâmica de sociabilidade.

3.1.3. Prêmio Sabotage e políticas públicas

O Prêmio Sabotage80 2018, assim como em todos os anos que foi produzido, ocorreu no
mês de março. O Prêmio é uma política pública da cidade de São Paulo, mais especificamente
da Câmara Municipal e por meio da Comissão de Defesa da Criança, do Adolescente e da
Juventude. Para decidir a premiação cinco jurados escolhem, desde 2015, quatro dos(as) artistas
mais atuantes no Hip Hop em cada ano (um prêmio para cada elemento). O Prêmio é uma
conquista do movimento Hip Hop, mas encabeçada pelo Fórum Hip Hop. O evento de entrega
do Prêmio de 2018 contou com a presença do filho e da filha de Sabotage: Wanderson (o
Sabotinha) e Tamires. Soninha, vereadora de São Paulo pelo PPS (Partido Popular Socialista)
que entrou com a Resolução que instituiu o Prêmio, entregou o prêmio para os vencedores: a
DJ Leona (DJ), b-boy Chileno (breaking), a Souto MC (MC) e Dinas Miguel (graffiti).
O Salão Nobre da Câmara, onde ocorrem as principais audiências públicas de orçamento,
ficou repleto de produtores(as) culturais, fosse do Hip Hop ou não. Pirata foi o “MC” do evento
e fez a mediação dos acontecimentos que se sucederam. O evento deveria ser mais sofisticado,
“tipo um Grammy”, segundo Nando, com apresentação dos(as) artistas nomeados para
concorrer aos prêmios de cada elemento. “Não tinha dinheiro”, respondeu Pirata. Soninha
iniciou e disse que seu desejo era trazer o Hip Hop “para dentro da casa”, mas tudo demorou,
pois os vereadores ainda viam o Hip Hop como novidade e não entendiam que ele era formado
por quatro elementos. Para Soninha, a “Casa” reconhecia a importância do movimento Hip Hop
“no processo de inclusão social, musical e cultural e a sua inserção junto aos jovens na cidade
de São Paulo”81.

80
O regulamento do Prêmio descreve-o da seguinte maneira: “Considerando a importância do Movimento Hip
Hop no processo de inclusão social, musical e cultural e a sua inserção junto aos jovens na cidade de São Paulo, a
Câmara Municipal instituiu, por meio da Resolução n° 02/2008, o Prêmio Sabotage, que visa reconhecer
publicamente o trabalho de artistas que se destacam no cenário do Hip Hop”. Disponível em:
<http://www.saopaulo.sp.leg.br/wp-content/uploads/2017/08/Regulamento-Sabotage_2018.pdf>. Acesso em: 29
out. 2018.
81
Disponível em: <http://www.camara.sp.gov.br/blog/premio-sabotage-2018-homenageia-artistas-do-hip-hop/>.
Acesso em 25 jun. 2019.

146
Pirata, como MC do evento, usou a oportunidade para falar sobre a desarticulação que a
Prefeitura promoveu com o Mês do Hip Hop e defendeu o Hip Hop no combate ao genocídio.
O vereador Eduardo Suplicy tomou a palavra no púlpito e homenageou o Hip Hop, sua inserção
na juventude e o Sabotage. Chamou Tamires e Sabotinha para homenageá-los e para mostrar a
gratidão por estar ali. Tamires cantou um trecho de uma música produzida com o RZO,
“Neural”, atendendo a pedidos do Suplicy. Sabotinha falou sobre o cotidiano na periferia, o
tratamento da polícia dado aos pobres, pretos e favelados e também fez referência à vereadora
do Rio de Janeiro Marielle Franco e seu motorista Anderson, executados uma semana antes do
evento82. Suplicy reproduziu as palavras de ordem “Marielle e Anderson, PRESENTE!”.
Tamires, em seguida, pediu um minuto de silencio para Marielle e Anderson.
O MC Pepeu, MC da “old school” e o primeiro jurado a falar na sessão do Prêmio, fez
uma fala pertinente sobre a situação atual do Hip Hop. Pepeu foi um dos rappers que
começaram com o Hip Hop em São Paulo, na rua 24 de Maio, e um dos primeiros a lançar uma
música de rap, “Nome de Meninas”, com letra mais lúdica. O MC relembrou que, no começo,
quando se reuniam na rua 24 de Maio para dançar e fazer um som, compartilhavam dinheiro
para comprar lanche, acessórios, transporte e outras coisas necessárias para praticar a arte. Após
alguns anos, passaram a se reunir na rua São Bento. De repente, as coisas começaram a ficar
caras; para ele, em vez de membros do movimento frequentarem os gabinetes para receber
migalhas ao Estado, o movimento deveria se organizar da mesma forma como era antigamente:
“O que vejo aí, membros do Hip Hop nos gabinetes, pedindo migalhas para os políticos. Não
precisamos de migalhas... quando o Hip Hop perceber a força que tem, não precisará de nada
disso” (Pepeu).
O mesmo Pepeu admite, no entanto, estar “poucos vinte anos” aposentado do Hip Hop e
que, agora, estaria “voltando a problematizar” essas questões. A fala de Pepeu traz, de outra

82
Marielle Franco foi assassinada no dia 14 de março de 2018, no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, após sair de
um evento sobre empoderamento de mulheres negras, que contou com sua participação. Até o momento em que
esta dissertação está em processo de finalização (03 set. 2019), o caso Marielle e Anderson, investigado pela polícia
e pela justiça do Rio, com participação ativa dos familiares, dos movimentos sociais e outras mobilizações e do
partido pelo qual foi eleita, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), produziu cinco prisões de policiais militares
(PM), que saíram da polícia, sob suspeita de envolvimento com os assassinatos. A investigação também aponta
para o envolvimento central de milícias constituídas em bairros da zona oeste do Rio de Janeiro, como Rio das
Pedras e Jacarepaguá, que se sentiram ameaçadas pelos avanços de ações comunitárias, com protagonismo da
vereadora. Marielle era da favela da Maré e afirmava-se como ativista dos direitos humanos, mulher negra e
lésbica. Tudo sobre o caso pode ser visto na tag “caso Marielle Franco”, do El País. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/tag/caso_marielle_franco>. Acesso em: 16 jul. 2019. Sobre o conceito de milícia, ver as
entrevistas feitas pelo Nexo Jornal com o sociólogo José Claudio Alves e a cientista social Thais Duarte.
Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/04/10/O-que-s%C3%A3o-e-como-atuam-as-
mil%C3%ADcias-do-Rio-de-Janeiro>. Acesso em: 16 jul. 2019.

147
forma, o conflito já enunciado: até que ponto a relação com o Estado deve ser interpretada
somente como reprodução do poder? As políticas públicas são “migalhas”, ou são essenciais
para a manutenção de grupos, coletivos e redes e de suas produções culturais na cidade de São
Paulo?
Ao ser perguntado sobre a fala de Pepeu no evento, R.P. defendeu a luta do Fórum, pois
não há vínculo com o Estado; apenas garantia de direitos socioculturais. Segundo ele, “o direito
tem a função da regularização da vida em sociedade, então não há vínculos com política
institucional e sim o direito a cultura a partir de sua perspectiva de livre manifestação”. A razão
de existência do Fórum é a necessidade de ação política por meio da cultura 83, e a criação de
novas institucionalidades e um uso subversivo, senão distinto, das políticas públicas na área da
cultura, que pudessem proporcionar maiores autonomias – mesmo que relativas e limitadas.
Essa necessidade também repercutia na desmobilização da política clássica (sindicalismo,
setores progressistas da igreja católica, partidos políticos e movimentos sociais que
reivindicavam pautas específicas) e na sua reformulação.
Vale ressaltar os diferentes usos do território paulistano pelo Fórum. Nos dois eventos
anteriores – Hip Hop Politicamente e C.T Sitiada –, a rede ocupou espaços públicos; em
Heliópolis, no entanto, a ocupação precisou de negociação com a gestão do CEU, diferente do
evento na praça multiuso, em frente ao Terminal Cidade Tiradentes. A ocupação na Câmara
Municipal é mediada por negociações mais extensas entre movimento Hip Hop e poder
legislativo da cidade de São Paulo, pois se trata de um território institucionalizado ocupado
eventualmente pelo Fórum quando há interesse do movimento Hip Hop discutir política
pública. O Prêmio pode ser visto também como um dos exemplos de reconhecimento social
adquirido pelo Hip Hop (Macedo, 2016). Por outro lado, é possível praticar esse lugar sob outro
registro (Certeau, 2014): enunciar a resistência contra o genocídio, premiar jovens hiphoppers
que lidam com essa realidade diariamente e produzir contato de vereadores(as) com outros
corpos que não costumam fazer parte do cotidiano desse lugar, a não ser com baixa
representatividade84.

83
Como trabalhado no capítulo 1.
84
Dos 55 vereadores eleitos em 2016, apenas dez se autodeclaram como negros (dois) e pardos (oito),
aproximadamente 18% do total. Disponível em: <
https://infograficos.estadao.com.br/politica/eleicoes/2016/graficos/vereadores/sao-paulo/>. Acesso em: 03 set.
2019. São Paulo possui 37% da sua população que se autodeclaram negros e pardos. Ver nota 21 na página 39
desta dissertação.

148
A fala de Pirata em favor das políticas públicas possui ressonância com os
pronunciamentos feitos nas audiências para discussão de orçamento da cidade. Nas audiências,
os membros do Fórum deixam claro publicamente que não se trata de ser “dono do Hip Hop,
porque isso não existe”; Hip Hop é cultura, mas também é movimento, e não é possível ser
dono de algo que está em constante movimento. As conquistas que são, na realidade, vontade
política do Fórum não são tratadas como tal: a arrecadação de impostos é um bem público e
que pode ser revertido como bem cultural para todos, com ênfase para a periferia. Por outro
lado, defende-se que a cultura também pode ser vista como trabalho, no qual muitos artistas –
nas listas de presença nas reuniões de cada região da cidade para realização do Mês do Hip
Hop, constavam cerca de 1100 artistas – são beneficiados. No Prêmio Sabotage 2019,
hiphoppers estenderam um pano branco com os escritos: “Sabotam o Mês do Hip Hop”, em
protesto contra os desmontes reproduzidos pela gestão do novo secretário de cultura Alê
Youssef.
O discurso dos membros do Fórum fundamenta-se em uma mistura de conhecimento da
política, do direito e das reais intenções dos políticos, que devem estar a serviço do povo que
os elege, principalmente na lógica partidária, mas que, na verdade, pertencem a partidos que
são similares. Os políticos que dizem “estar com o Hip Hop” causam, ainda, uma certa repulsa
e alerta, pois o fazem somente para manter suas imagens como apoiadores do que acontece na
periferia, principalmente dessa cultura “que tanto salva os jovens da criminalidade”. No entanto
há exceções, como vereadores do PSOL, do PT e de outros partidos que possuem afinidades
ideológicas à esquerda. Juliana Cardoso, do PT, é bem-vista, pois está aberta ao diálogo, e assim
também Soninha, do PPS, que encabeçou a Resolução nº 2/2008 para a criação do Prêmio
Sabotage.
A política de Estado também é tomada pelos interesses do capital, da cultura de elite e
também pela ideologia de direita que mais se identifica com o neoliberalismo. Quando não há
afinidade ideológica, o interesse é se aproximar de quem está aberto ao diálogo. Não há
distinção partidária nesse momento, pois o importante é a conquista de resoluções, leis, rubricas
e apoios diversos. Já que os partidos, grosso modo, nivelaram sua atuação a patamares similares,
as conquistas que se efetivam no diálogo com qualquer vereador são comemoradas. Quanto aos
membros do poder executivo do município, há uma certeza: na gestão Dória/ Bruno Covas não
há – e pela sua renúncia ao cargo de prefeito para participar da eleição de governador do estado,
não houve – diálogo e as brechas ficaram justas.

149
Essa dificuldade pode ser analisada, talvez, como falta de conhecimento das
especificidades de cada partido e, nesse sentido, de cada vereador ou de cada político. É possível
se adotar um tratamento, de certa forma hábil, para a política de Estado, uma vez que se saiba
com quem dialogar e em que momento. Nas reuniões semanais do Fórum são definidas a
frequência e a forma dessa aproximação, e também como entrar e sair pelas brechas deixadas
pelo sistema – de preferência, sair com alguma conquista, seja pelo apoio contínuo ao Mês do
Hip Hop ou da rubrica no orçamento para o Hip Hop, no qual estão inclusas a política pública
Território Hip Hop, a criação e gestão compartilhada das Casas de Cultura Hip Hop, a ocupação
dos espaços públicos e a audiência específica do Hip Hop com a Secretaria de Cultura de São
Paulo.
As ações dessa rede estão, portanto, situadas no embate que se inicia também dentro do
Estado. Como mencionado anteriormente, parte-se do pressuposto de que a sociedade e o
Estado são difíceis de serem vencidos, e a lógica da resistência à ordem logo se impõe. Como
se manter entre a lógica autônoma e a institucional, de forma a não cair na contradição de acusar
o institucional e estar integrado a ele? Como fugir de um sistema que cobra impostos de
qualquer mercadoria consumida e que privilegia o orçamento a um grupo ou classe ignorando
outros? Atuar na política institucional não seria, portanto, confrontar o âmago da política, pois
é no orçamento que se encontram os ganhos de capital por meio da arrecadação do Estado? O
acesso a políticas públicas é procurado para o movimento Hip Hop ou esse acesso visa apenas
ao Fórum? Essas questões influenciam diretamente a escolha de identidade política dos
membros do Fórum e fazem parte de suas práticas de negociação.
De um lado, resistência à ordem que dificilmente se consegue mudar e, do outro lado,
negociação para que se consiga atingir objetivos que sejam positivos para a juventude. Nesse
contexto, o Fórum procura se situar politicamente entre a resistência e a negociação. Na posição
“entre”, não apenas busca “levantar barreiras” mas também procura a política junto ao mais
forte para encontrar, como já mencionado, as brechas. Por não constituir uma dinâmica
excludente – ou resiste, ou negocia –, pode-se dizer que o Fórum procura resistir enquanto
negocia, ou seu inverso, negociar enquanto resiste. E é justamente nessa dinâmica complexa –
tecida de forma conjunta e interdependente (Morin, 2015) – que ocorrem as relações e as tramas
entre cultura e política, conforme observado na experiência com o Fórum Hip Hop.

3.2. Produção de conhecimento sobre as resistências

150
A produção de conhecimento no Hip Hop pode ser caracterizada como seu quinto
elemento (Buzo, 2011). O quinto elemento abrange a produção estética para além dos quatro
elementos do Hip Hop, como filmes, fotografias, livros, revistas e outros tipos de materiais que
são produzidos e usados como formas de memória e registro, e como meios de problematização
das questões sociais. Afrika Bambaataa, reconhecido como o idealizador da união dos quatro
elementos artísticos do Hip Hop – breaking, DJ, MC e graffiti – e lenda viva do Hip Hop
estadunidense e mundial, definiu o quinto elemento na entrevista que concedeu à jornalista
Luciana Macedo do jornal Folha de São Paulo em uma de suas vindas ao Brasil:

É disso que eu falo quando insisto na importância do quinto elemento do Hip


Hop, que é o conhecimento. É através do conhecimento que a pessoa
envolvida com o Hip Hop vai começar a se preocupar com os problemas
sociais do seu bairro, com o governo. As pessoas precisam reconhecer que a
cultura Hip Hop salvou vidas, fez com que pessoas de etnias e nacionalidades
diferentes se unissem. É preciso falar sobre a história do povo negro
(Bambaataa apud Macedo, 2002)85.

Afrika Bambaataa é legitimamente conhecido como um dos pioneiros do Hip Hop. Sua
concepção sobre a existência de mais um elemento do Hip Hop, o quinto elemento, que
consistiria na produção de conhecimento, no entanto, constitui uma controvérsia que tem
presença relevante entre as figuras conhecidas do Hip Hop e também entre os membros do
Fórum. Em reunião convocada pela Secretaria de Cultura para tratar da política pública do Mês
do Hip Hop, a qual ocorreu no dia 04 de fevereiro de 2019, após a mudança de gestão de André
Sturm para a de Alê Youssef – conhecido produtor cultural da Baixa Augusta, que nomeou o
MC Xis como coordenador do Núcleo de Hip Hop de São Paulo –, Nelson Triunfo deixou claro
que discorda da existência do quinto elemento como constituinte do Hip Hop: “não tem essa de
quinto elemento, Hip Hop tem quatro elementos, que podem ser ensinados como educação: o
MC, o DJ, o breaking e o graffiti” (Nelson Triunfo, 04 fev. 2019).
Em todas as entrevistas, diante da pergunta a respeito da existência do quinto elemento,
todos(as) responderam que ele não existe. Para citar alguns exemplos, G. reconheceu que esse
é um debate que existe, mas que é possível produzir conhecimento politizado servindo-se da
amplitude que os quatro elementos proporcionam:

85
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2708200206.htm>. Acesso em 27 out. 2018.

151
Faz muitos anos que a gente discute o quinto elemento, mas os quatro
elementos têm conhecimento. O rap fala de conhecimento; no break, você tem
a questão do conhecimento corporal, você fala de saúde, você pode falar de
esporte também. Já tá embutido em cada elemento do Hip Hop. É claro, de
repente, as pessoas têm uma ideia melhor do que... de melhores conceitos para
falar de Hip Hop do que eu tô te falando. Porque o graffiti é desenho, mas o
graffiti você pode fazer com uma lata de spray, em vários objetos, não só em
muros, mas no teto de uma casa, dentro de um quarto. Você pode fazer em
objetos diversos, em armário. Tem até uma disposição de vários objetos, o
cara faz a arte. Claro que tem uma certa evolução dentro disso, os tipos de
tinta, mas é um conceito e um traço do graffiti. O cara desenvolveu no graffiti,
e aí tem essas expansões. Tem o DJ, com a musicalidade total (G. - ZS -
rapper, entrevista concedida).

A b-girl N. e a graffiteira A.S. expressaram suas dúvidas sobre o quinto elemento. A.S.
considera que essa é uma questão controversa e que a produção de conhecimento se dá, como
afirmado por G., dentro dos quatro elementos do Hip Hop; suas(seus) praticantes são os(as)
próprios(as) produtores(as) de conhecimento desse movimento cultural.

Não precisa estar fora do movimento para isso. Não precisa ser um novo
elemento. É um elemento que já tá incluído dentro do Hip Hop [...] até num
debate, numa roda de conversa, se for necessário conversar sobre algo do Hip
Hop, eu consigo conversar sobre outras coisas, sobre o movimento Hip Hop.
Eu não preciso trazer alguém de fora, um pensador, para pensar sobre isso,
porque ele não vai ter a mesma vivência do que eu (A.S. - ZL - graffiteira,
entrevista concedida).

Para a b-girl N., algumas pessoas do Hip Hop nem chegam a interpretar o quinto elemento
como “produção de conhecimento”, mas como “estilo de vida”, “estilo da roupa” ou até a
prática do beat box86. Nesse sentido, o conceito de Hip Hop se ampliaria e abrangeria, talvez,
todas as práticas culturais periféricas, perdendo as fronteiras que definem o que é e o que não é
Hip Hop. Um sarau não precisa ser um outro elemento do Hip Hop, mas uma modalidade
cultural que também conversa com as realidades periféricas. Da mesma forma, não é preciso
haver um quinto elemento para pensar “os problemas sociais do seu bairro”, como afirmado
por Bambaataa:

86
Beat box é uma prática recorrente dentro do Hip Hop. Com sons orais e nasais, os(as) beatboxers produzem o
som que seria produzido eletronicamente pelo(as) DJs. Muitas vezes, serve de improviso enquanto o(a) DJ ainda
não “soltou” o som, ou como forma de superar a falta de um(a) DJ. No Encontro Paulista de Hip Hop, que acontece
anualmente no Memorial da América Latina e é organizado pela Assessoria de Cultura para Gêneros e Etnias da
Secretaria Estadual de Cultura, ocorre uma competição de beatboxers, na qual há premiação para o(a) primeiro(a)
colocado(a).

152
Por exemplo, a certeza que os elementos conversam com as problematizações
do bairro é que, vamos supor, quando uma pessoa quer treinar breaking e não
tem uma sala adequada, um piso adequado, você já tá em contato com a
realidade do seu bairro. Você já sabe que ali é um problema. Um jovem de
periferia não ter suporte de equipamento para fazer oficina de DJ, aquilo já é
um problema. Os próprios elementos dialogam e debatem com a realidade e
com as problematizações da sociedade (N. - ZL - b-girl, entrevista concedida).

A ideia do quinto elemento não é algo tão partilhado, como quiseram alguns dos membros
mais atuantes dentro do movimento Hip Hop. A abrangência dos elementos do Hip Hop é uma
questão também controversa, pois uma maior extensão descaracterizaria o que é Hip Hop, mas
essa delimitação, por outro lado, pode ser lida como uma prática de conservação. Williams
(1992) chamou esse tipo de delimitação de tradição seletiva: a seletividade ao escolher alguns
significados, valores e práticas, deixando outros do lado de fora da cultura, possui íntima
relação com os processos de dominância e de emergência, em que o primeiro tenta barrar a
emergência de novos significados, valores e práticas para que sua hegemonia se perpetue. Mas,
na fala de N., está presente a articulação do Hip Hop com a diferença: não é preciso que todas
as culturas periféricas sejam Hip Hop; importa reconhecer que essas outras modalidades
conversam com as mesmas realidades de uma outra maneira e podem se juntar a um evento que
seja produzido somente com as expressões do Hip Hop.
É possível, portanto, produzir conhecimento sobre e para a cultura Hip Hop por meio das
suas quatro linguagens. Nessa produção, o Fórum Hip Hop envolve-se com uma série de
seminários e cursos de formação popular, produzidos pela rede ou não, em que se discutem
essas dinâmicas: conhecimento do Hip Hop e para o uso do Hip Hop ou até conhecimento
produzido que extrapola o Hip Hop. “Extrapola” no sentido de inserir e garantir o acesso de
pessoas de fora do movimento às discussões e aos debates que possuem ressonância em seus
cotidianos.
Neste capítulo, além das já mencionadas participações no seminário “Das posses aos
coletivos” e no promovido pela ANLU, serão examinados a roda de conversa “Genocídio
Juvenil”, que aconteceu na PUC-SP, o curso “Da Eugenia ao Genocídio” e o “Seminário de
Políticas Públicas para a Juventude”. Nessas análises, importantes para se compreender a
produção de conhecimento sobre as resistências e os usos territoriais, o Fórum se insere nas
contradições entre centro e periferia e procura atuar à contrapelo do racismo estrutural.

153
3.2.1. Prática de (des)centramento: os centros e as periferias do Fórum

O primeiro encontro de Pirata com este pesquisador deu-se em um evento, que tinha como
tema o genocídio juvenil e que fora organizado pela Profa. Rita de Oliveira, professora do
Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais da instituição, em agosto de
2017. Por meio desse encontro, Pirata tornou-se interlocutor desta pesquisa, o que propiciou o
conhecimento da existência do Fórum Hip Hop e de sua participação e articulação política.
Desse evento, participou o movimento das Mães em Luto da Zona Leste, que estava ali para
discutir questões relacionadas ao genocídio e compartilhar suas histórias e experiências com
professores(as), alunos(as) e com o público mais amplo que frequenta, trabalha e estuda nessa
universidade. Também estava presente a pesquisadora mexicana Maritza Urteaga, de passagem
no Brasil para lançamento de um trabalho em parceria com pesquisadores brasileiros.
Pirata, por sua vez, ali estava representando o Fórum. Nessa ocasião o rapper fez o
convite para participar das reuniões semanais do Fórum Hip Hop MSP, nas quais seus membros
discutiam “o Hip Hop político de forma séria, um compromisso raro no Hip Hop”, segundo ele.
Pirata iniciou sua fala na roda de conversa de maneira irônica e direta. Parecia que estava
cantando um rap; estava no lugar em que parte considerável do sistema judiciário paulista –
principalmente paulistano – busca sua formação. E, por extensão, membros das famílias de
classe média e da elite paulistana. Sabia seu lugar e aquele era o momento para fazer críticas e
mexer, de certa maneira, com as estruturas contra as quais batalhava.
O rapper questionou a discussão sobre “genocídio juvenil”. O que está em jogo, para ele,
é o racismo institucional. A discussão é de um povo, no qual a intersecção entre os três 3 Ps
(Pobre, Preto, Periférico) produz as maiores vítimas, não necessariamente da juventude. Todos
fazem parte da mesma lógica, do mesmo sistema que reproduz o genocídio, embora uns sejam
vítimas e outros não. Não é algo à parte: o genocídio surge de uma história de múltiplas
violências com as vidas de uma parcela da população. O judiciário possui um papel fundamental
nessa lógica, pois, como já citado, é o juiz quem dá a sentença. E quem forma os juízes,
advogados, desembargadores e promotores que julgam casos como os que envolvem os filhos
das “Mães”?
Para Pirata, a PUC e as universidades em geral também são fundamentais: fundamental
para a reprodução, mas também para a produção de conhecimento. Ao mesmo tempo em que
enxerga a instituição que dá o respaldo ao judiciário, também admite o potencial de crítica

154
cultural nas brechas do sistema. Além disso, outra crítica foi feita: o fato da universidade não
deixar os três Ps falarem por si só, impedindo que tenham voz autônoma. Essas pessoas
possuem suas vozes, mas a academia tende a ocultá-las ao favor das pesquisas e das concessões
de títulos. Para que esse conhecimento circule, é preciso circular em outros territórios e de
ambos os lados: o Fórum e as Mães estão na PUC, um lugar que antes não era ocupado, mas
quem faz pesquisa na universidade precisa fazer circular esse conhecimento nas periferias.
O rapper atuou como um MC e procurou dialogar com as pessoas que estavam ali
presentes e que não eram, em sua maioria, das periferias. As Mães, em sua primeira fala,
concordaram com Pirata no plano ideológico: “o Pirata vai tirando as máscaras do que está na
cara e ninguém vê”, disse uma delas. Questionaram se haveria realmente direitos para a
população em uma sociedade que apenas se diz democrática. Segundo elas, se houvesse
democracia, ou seja, se esse discurso fosse além da formalidade, os serviços públicos seriam de
qualidade e seus filhos não estariam mortos. Não houve sequer investigação, muito menos
punição dos policiais envolvidos nos casos em que perderam seus filhos. Por isso elas lutam,
para que a justiça seja feita e para que nenhuma mãe (inclusive mães além da periferia) sofra o
que elas sofreram, pois não desejam tal sofrimento para ninguém. Lutam, no cotidiano, para
aceitar o que parece fruto da imaginação: a morte de seu filho87. As famílias mudam e sofrem
muito com a perda. A luta por justiça é o que incentiva suas vidas.
Conhecer a realidade das ruas, como apresentado por Pirata e pelas Mães, o(a)
acadêmico(a) também pode – e, em alguns casos, consegue. Mas a fala de Pirata está situada
em um conhecimento orgânico; parte de elementos culturais vivenciados por aquele que fala.
Para além da “sinceridade”, as relações sociais em que Pirata se situa – e cria – são mais
próximas da realidade dos territórios periféricos. Em consonância com a fala das Mães, essa
“realidade” periférica transmitida está longe de apresentar aproximação com a democracia
formal vigente no País.
R.P. mora no centro, mas também reivindica a afirmação de sua identidade periférica. Em
entrevista concedida para esta pesquisa diz que começou

[...] a fazer rap com 16 anos. Ficava zoando, não estava nem aí [sic]. Estava
do outro lado da cidade [R.P. também morou na zona norte], em outros
esquemas; eu trabalhava, mas estava fazendo outras coisas. Sou do centro,

87
O impactante banner que as Mães levam consigo em todo evento a que vão mostra as fotos de seus filhos. Havia,
no entanto, duas foto de mulheres jovens. As Mães deram ênfase às meninas, que também morrem pela mão da
PM e que fazem parte da mesma luta.

155
sempre cresci no centro de São Paulo [...] na região que hoje se chama a
Cracolândia, na região de Campos Elísios [...] (R.P. - C - rapper, entrevista
concedida).

A figuração urbana de São Paulo alterou-se a partir da década de 1990 e a cidade


vivenciou o fenômeno da “periferização do centro” (Moya, 2011). Esse fenômeno apresenta
cortiços e prédios abandonados nas regiões centrais – que também são moradias populares,
promovidas pelas ocupações dos movimentos de moradia urbana – e provocou o
descentramento do espaço urbano. A “periferização” redundou no aumento da população em
situação de rua e na existência de aluguéis mais baratos em imóveis considerados antigos e
abandonados pelas grandes empresas responsáveis pela especulação imobiliária. A contradição
de ser periférico ao morar no centro também denota a condição periférica, identidade que não
se limita à dimensão geográfica.
Como membro do movimento Hip Hop (dimensão política) e da cultura Hip Hop
(dimensão cultural), que podem ser ora opostas, ora complementares, o rapper afirma sua
identificação periférica tanto pela própria condição urbana quanto pelas relações sociais que
estabeleceu, e ainda estabelece, em sua vida: com membros do Hip Hop de São Paulo, agentes
culturais de várias linguagens, membros de movimentos, ONGs, sindicatos e outras
organizações e com os políticos – até acadêmicos – que participam de votação, legislação e
execução do orçamento e planejamento da área da cultura municipal.
A presença, por vezes escassa, de ações do Fórum nos territórios periféricos,
principalmente as voltadas para produção de conhecimento e articulação política, é questionada
com frequência tanto por sujeitos “de fora” da rede do Fórum quanto por sujeitos “de dentro”.
Há a periferização do centro, como mencionado acima, fenômeno que criou moradias precárias
nas regiões centrais da cidade, onde, aliás, o Fórum articula suas reuniões semanais e algumas
de suas outras ações. Essa localização continua a representar certas vantagens, como poder estar
próximo de lugares como a Câmara Municipal e a Galeria Olido, mas representa outras
dificuldades para hiphoppers, que não conseguem se deslocar nos horários de pico. As reuniões
do Fórum acontecem, geralmente, às 19h e as audiências nos lugares públicos, como na Câmara
Municipal, são em horários em que muitos(as) hiphoppers também trabalham ou que não
conseguem atender a tempo.
A adequação entre o tempo e o espaço das periferias e dos lugares institucionalizados não
é, nesse sentido, facilmente resolvida. No caso das mulheres, muitas são mães e diversas

156
responsabilidades são adicionadas às dificuldades mencionadas acima. Morar em bairros
afastados do centro é outro agravante; sair da Cidade Tiradentes, de Heliópolis e de Taipas –
bairros em que moram membros e participantes da rede e que são localizados em territórios
periféricos – e ainda ajustar todas as outras questões para comparecer à Câmara Municipal de
manhã, ou ao meio dia, torna-se quase uma impossibilidade. Essa é uma crítica que o Fórum
faz e reconhece, apesar da cobrança existente, por parte dos seus principais membros, para que
o movimento Hip Hop compareça em peso aos lugares da política institucional. Nas audiências
poucos(as) hiphoppers conseguem comparecer para fortalecer as pautas do movimento.
O fato de R.P. morar no Brás facilita sua presença – algo que o próprio reconhece –, mas
ele é, ao mesmo tempo, criticado por outras pessoas que se dizem “do Fórum”, como é o caso
de B.S.. Para a DJ entrevistada, as dificuldades cotidianas enfrentadas por mulheres negras
dentro do Hip Hop relacionam-se com o descompasso entre a “centralidade” da articulação
política e das demais ações relevantes para o movimento, de uma forma geral, e a presença do
Fórum nas localidades em que boa parte dos(as) praticantes do Hip Hop vivem.

Encontro com o Parlamento é meio-dia; já não vai ninguém, imagina você do


movimento chamar. Então as pessoas não vão, porque não é para ir. Porque,
no Brasil e no mundo, democracia é representação do povo. E os caras querem
ser o representante do povo, mas eles não querem o povo lá. É assim que
funciona (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

Você acha que eu não gostaria de estar na Câmara fazendo esse mesmo
debate? [...] O R.P. mesmo fala “pelo amor de Deus, você tinha que estar
aqui”. “R.P., como é que eu vou toda terça-feira na Comissão de Orçamento,
do Orçamento de Cultura?” [...]. Eu queria estar na Câmara toda semana, um
monte de coisa, ideia a gente tem, mas a gente tem limitações. Às vezes as
cobranças vêm pesadas, tem que ver as condições que a gente consegue
participar. Eu vejo não só eu, mas como muitas mulheres que gostariam de
estar discutindo Hip Hop de uma forma mais política, no sentido de pensar
política pública, como cultura, porque o Hip Hop tá colocado como uma
política de cultura, mas não consegue. Então você vê que majoritariamente,
nos espaços, que discutem são os homens. Até na forma de falar: “ah, porque
os caras”; “nós estamos aqui né, então vamos discutir entre nós, rapaziada”,
entendeu?! Isso já elimina. As palavras já podam (B.S. - ZL - DJ, entrevista
concedida).

Com a globalização do final do século XX, em uma economia cultural global multipolar
(Appadurai, 2004), o mundo passou por transformações em várias dimensões, entre as quais o
descentramento do sujeito (Hall, 2006) e a descentralização de fluxos culturais. Esse
descentramento acompanhou a dimensão geográfica tanto entre países quanto entre localidades

157
internas, com o “retorno” do conceito de território e de seus diferentes usos (Santos, 2005). A
ideia de descentramento das localidades nas quais se entrecruzam diversas formas de atividade
humana ganha novas interpretações políticas e culturais. Além disso, mistura as categorias em
sua pluralidade, que antes eram divididas por oposição binárias: os centros podem virar
periferias ao mesmo tempo que as periferias podem virar centros. Os “centros” urbanos, em
contraposição às “periferias” se tornam, nesse sentido, fruto de um mundo imaginário,
“fantasmaticamente desejado” (Augé, 2010, p. 33):

Periferia pode ser entendida em um sentido geográfico, mas também num


sentido político e social. Periferia não é subúrbio. Existem subúrbios chiques
e “periferia” nos antigos centros das cidades [...]. Nas cidades do terceiro
mundo, os bairros entregues à precariedade e à pobreza, favelas ou outros,
infiltram-se, constantemente, no coração da cidade; eles encostam nos bairros
ricos [...]. Mas essas formas “periféricas” não são o apanágio das cidades do
terceiro mundo. O problema do habitat e da pobreza urbana está agora
presente no centro das mais impressionantes megalópoles ocidentais (Augé,
2010, p. 34-5).

Na cidade de São Paulo, o modelo centro/ periferia, relevante para se compreender as


dinâmicas urbanas a partir da década de 40, torna-se incapaz de interpretar os fenômenos mais
recentes, como as novas segregações que surgiram, principalmente, a partir da década de 90, o
mundo do crime e, tal como defendido aqui, as articulações entre cultura e política realizadas
pelo Hip Hop e pelo Fórum. Caldeira (2000) faz uma comparação ainda atual para compreensão
da atualidade dessa relação:

A São Paulo do final dos anos 90 é mais diversa e fragmentada do que era nos
anos 70 [...]. São Paulo continua a ser altamente segregada, mas as
desigualdades sociais são agora produzidas e inscritas no espaço urbano de
modos diferentes. A oposição centro-periferia continua a marcar a cidade, mas
os processos que produziram esse padrão mudaram consideravelmente, e
novas forças já estão gerando outros tipos de espaços e uma distribuição
diferente das classes sociais e atividades econômicas. São Paulo hoje é uma
região metropolitana mais complexa, que não pode ser mapeada pela simples
oposição centro rico versus periferia pobre (Caldeira, 2000, p. 231).

As centralidades do território paulistano são, nesse sentido, redefinidas e criam-se


redefinições das relações de força. Embora esse “centro” ainda atraia as pessoas pelo número
de empregos, serviços públicos de maior qualidade, etc., nas últimas décadas as regiões vistas
tradicionalmente como centro coexistem com outras regiões – como, por exemplo, o eixo

158
sudoeste de São Paulo. Nessas outras regiões emergem polos de geração abundante de
empregos e transporte intenso de fluxos de pessoas, mercadorias e consumos diversos tanto
econômicos e tecnológicos quanto culturais; formam-se redes estatais e empresariais, que
funcionam por meio das verticalidades e procuram explorar todos os territórios urbanos como
recurso (Santos, 2000). Essas relações se misturam: por um lado criam-se novas periferias nas
centralidades antigas; por outro lado, a ideia de centro espalha-se para as periferias e são criadas
novas centralidades88.
A diferenciação entre centro e periferia, antes estável dos pontos de vista geográfico,
político e cultural, abriu-se para usos diversos por parte de outros atores. Se, por um lado, as
hierarquias de gênero, de raça e de classe, as debilidades na infraestrutura urbana e as
desigualdades de renda insistem em se manter, por outro, os coletivos formam ou participam
de redes e ocupam tanto os “centros” quanto as “periferias”, buscando negociar com e resistir
contra essas estruturas, como forma de produção de suas modalidades culturais.
B.S. faz a mediação com essa realidade: “a gente fala que mora na quebrada, como
autoafirmação, mas ninguém quer morar num lugar que não tem saneamento básico, não tem
emprego, leva duas horas e meia para chegar no centro” (B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).
Entretanto, como produtora cultural, também afirma, em conjunto com os demais membros do
Fórum, que a ocupação das periferias com manifestações político-culturais se tornou referência
de afirmação identitária e deve ser prioridade para que sejam transformadas em “centros”
próprios que possam abrigar as múltiplas manifestações culturais e as subjetividades que
existem nesses territórios, sem a necessidade de serem atraídas pelas centralidades
estabelecidas.
Nesse jogo político, o Fórum Hip Hop é criticado por pender mais para ações no “centro”
do que nas periferias. Embora a maioria de seus membros são moradores das periferias
paulistanas e possua relações comunitárias com seus territórios de pertença, as reuniões do
Fórum acontecem, majoritariamente, no centro da cidade e em um dia de semana. As reuniões
tornam-se espaços difíceis de serem acessados por hiphoppers que ou trabalham nos dias de
semana em lugares distantes da localidade das reuniões ou possuem outros problemas, como
no caso já citado de B.S., que, por ser mãe e, ao mesmo tempo, trabalhar e participar de outros

88
Como visto na p. 127, o termo periferia foi apropriado pelo coletivos juvenis. “Periferia” passou a ser usado
como um componente para afirmação identitária.

159
cursos de formação, em busca de aprimorar suas habilidades artísticas e políticas, não consegue
estar em todos os espaços em todos os dias da semana.
Mesmo que o Fórum seja visto como um grupo que constrói as ações coletivamente e que
procura ser “um coletivo bem democrático”, como dito pela b-girl N., A.S., ao ser questionada
sobre as dificuldades para frequentar as reuniões semanais, apontou problemas similares aos
levantados acima. O excesso de reuniões nas centralidades da cidade também pode significar
uma falta de experimentações com os diferentes territórios e sinalizar fraqueza democrática:

A ideia é de um grupo, por mais que sejam quase as mesmas pessoas que
frequentam as reuniões do Fórum – é difícil vir gente de fora para as reuniões
–, mas é um grupo que procura o bem de um movimento em geral. Eu acredito
que poderia ser um pouco mais aberto do que é, que, apesar das reuniões serem
abertas, nem todos conseguem ir, principalmente por dias de semana e locais
onde são realizados os fóruns. Nem todos conseguem estar presentes nas
reuniões [...] eu acho que para ser mais democrático teria que ser
descentralizado [...] é bom fazer parte dessa construção, porque às vezes você
tem uma forma de mentalidade que outra pessoa não tem. Às vezes é uma
ideia que faz a diferença. Mesmo que não seja eu, seja outra pessoa, mas às
vezes você tá ali no meio das mesmas pessoas e as ideias são tão iguais
sempre, que você não consegue pensar de uma forma diferente. Uma ideia
consegue mudar o panorama (A.S. - ZL - graffiteira, entrevista concedida).

Aboboreira (2014) afirma que a prática da exploração/ experimentação da cidade é um


processo que amplia, nos(as) jovens – para esta pesquisa, também naqueles(as) nem tão jovens
assim –, as possibilidades de usos, apropriações e práticas que podem ser (re)produzidos nos
diferentes espaços urbanos. Quem vive nos perímetros urbanos também pode usufruir do direito
à cidade e à ocupação e experimentação de todos seus espaços. As experimentações podem
acontecer, ainda, em uma via de mão dupla: um ir e vir entre as localidades mais centrais e as
mais periféricas. As práticas do cotidiano do Fórum possuem algumas contradições com esse
equilíbrio de mão dupla.
Além das ações que acontecem nos territórios periféricos, são realizadas atividades
fundamentais para a organização do cotidiano do Fórum, como as reuniões semanais, reuniões
para o Mês do Hip Hop e cursos populares e seminários – estes produzidos pelo próprio Fórum
–, que, em grande maioria, ocorrem nas regiões centrais de São Paulo. Fazendo uso das redes
sociais digitais, principalmente das lives do Facebook produzidas com auxílio de objetos
técnicos (celulares e câmeras de vídeo), o Fórum procura ultrapassar os limites impostos pela
distância em todas suas ações, divulgando desde as reuniões semanais até os eventos com os

160
quatro elementos e outros que fazem em parceria com coletivos, redes, movimentos sociais e
demais organizações: “[...] apesar de tudo, mesmo as pessoas que não conseguem participar,
eles tentam deixar, de uma forma ou de outra, público o que tá acontecendo. Por meio de
postagem, por meio de vídeo” (A.S. - ZL - graffiteira, entrevista concedida).
Esse equilíbrio foi colocado em tensão, durante o curso “Da eugenia ao genocídio” e o
“Seminário de Políticas Públicas para a Juventude”, pelas pessoas que compareceram em ambos
os eventos. A importância e a qualidade das discussões e dos debates foram reconhecidas, mas
o uso dos territórios centrais da cidade foi questionado. No primeiro dia do curso, cujo foco foi
a educação étnico-racial, duas mulheres negras, que estavam com suas crianças, tiraram
algumas dúvidas sobre os conteúdos passados por Nando e questionaram a localização do curso:
por que não fazer esse debate nas periferias, aos quais outras mulheres negras, como elas,
poderiam comparecer com mais tranquilidade e por todos os dias do curso? Como mães,
gostariam de que essa rica discussão fosse feita nas comunidades, possibilitando maior acesso
às pessoas mais afetadas pelos problemas que estavam sendo ali debatidos.
No “Seminário”, no dia dedicado à segurança pública, que contou com a participação das
Mães em Luto, um jovem fez o mesmo questionamento sobre a localização do evento, que
estava acontecendo na sede da Defensoria Pública, à rua São Bento, centro de São Paulo.
Reconheceu a importância de estar ali, mas destacou que, se o seminário acontecesse mais
próximo das periferias, faria toda a diferença. Para ele, os debates realizados – que trataram dos
seguintes temas: “saúde da mulher preta”, “segurança pública: violência policial, abuso de
poder e encarceramento da juventude” e “educação e trabalho: o lugar social da juventude” –
deveriam ter em vista aproximar as juventudes periféricas da discussão sobre políticas públicas
em relação às complexidades propostas. Em sua fala, esse jovem, morador do Capão Redondo,
perguntou: “com quem querem dialogar?”.
Pirata, ao responder ao questionamento do jovem, defendeu que estar na Defensoria
Pública não era fácil e que aquilo deveria ser considerado um marco: levar pessoas das
periferias, do Hip Hop ou não, para dentro dos lugares de poder e tidos como mais centrais. Um
ativista que se identificou como dos “movimentos sociais” também defendeu a presença do
Seminário na Defensoria. Disse que “quem é de movimento social” sabe que é preciso ocupar
os lugares e absorver os conhecimentos hegemônicos para usá-los a favor “dos nossos” e buscar
outras formas de produzir conhecimento sobre as periferias. O jovem manteve seu argumento

161
e continuou a criticar a falta de descentralização presente nesses tipos de ação. O defensor
público que participou da mesa saiu em defesa desse jovem.
Durante o curso “Da eugenia ao genocídio”, outro questionamento fez emergir mais uma
questão controversa presente na atuação do Fórum: a busca por representatividade. Nando, na
introdução de sua fala sobre pedagogia e racismo, declarou que havia sido identificada, pelos
membros do Fórum, a falta de representatividade, mas que procurariam sanar essa lacuna nas
próximas ações. Isso, realmente, foi feito no “Seminário de Políticas Públicas para a
Juventude”, embora ainda se mantenha a contradição da baixa representatividade na
participação das principais decisões do Fórum.
Esse compromisso é, sem dúvida, uma tarefa nada simples, que lida não só com entraves
internos mas também com a relação do Fórum com os conflitos existentes no próprio Hip Hop,
como o machismo, o risco de despolitização e a falta de união dos elementos e de outras
modalidades culturais. Esse movimento cultural, no entanto, foi criado por meio do contato
intercultural e da diferença; a transformação é seu catalizador fundamental, tanto a
transformação subjetiva de seus praticantes quanto a das formas e conteúdos que assumiu desde
seu surgimento. Se, nas últimas décadas, o mundo passou por um processo de descentramento
do sujeito (Hall, 2006) e as identificações constituem-se na diferença, processo esse
acompanhado pela globalização e mundialização cultural, a abertura para participação de outros
sujeitos deve ser objetivo central para manter o Hip Hop em constante mudança e em diálogo
com as próximas gerações.
Esses argumentos são relevantes para a interpretação dos conflitos que circundam as
ações do Fórum no que se refere às percepções e aos territórios em que se situam. Se a proposta
do Fórum é ser uma instância representativa do Hip Hop e essa cultura se sustenta e é
largamente produzida nas periferias, o debate sobre a descentralização produz sentido relevante
para interpretar as contradições das práticas da rede. De forma a ampliar o diálogo, as práticas
de resistência e negociação devem se situar numa via de mão dupla, no vai e vem da metrópole,
acompanhando a multiplicidade dos fluxos culturais e a relação com as diferentes
subjetividades e possibilidades de identificação.

162
3.2.2. A contrapelo do racismo estrutural

O racismo e os modos como ele funciona na formação das relações sociais são questões
transversais aos variados tipos de ação propostos pelo Fórum para a atuação do Hip Hop em
São Paulo. Sendo uma cultura de rua, negra e periférica – definições que precisam ser
consideradas como elementos que se entrecruzam e não como blocos históricos fixos, conforme
releitura do texto de Macedo (2016) – o Hip Hop tem como uma de suas preocupações e alvo
de resistência, na visão do Fórum, o genocídio89 da juventude negra, pobre e periférica. O
Fórum propõe compreender e combater, em suas produções culturais, esse processo histórico,
que, além da destruição das vidas desses jovens, produz outras consequências na vida de
diversas famílias que moram nas periferias.
O racismo funciona como um dos elementos de classificação social para que o Estado e
outros atores exerçam a violência sobre determinados corpos, que correspondem a estigmas90
construídos e reproduzidos. Nesse sentido, é relevante delinear significados que foram
debatidos no curso “Da eugenia ao genocídio” para compreender a construção do estigma e de
seu alvo preferencial. Em seguida, aponta-se para saídas e possibilidades de resistência do
Fórum à essa realidade.

Significados de racismo

O curso “Da eugenia ao genocídio: perspectivas da democracia racial brasileira” ocorreu


entre 16 e 20 de julho de 2018, às 19h, e foi sediado pelo Sindilex (Sindicato dos Servidores da
Câmara Municipal e do Tribunal de Contas do Município de São Paulo). A proposta foi
estabelecer uma relação entre a consolidação da eugenia – como pseudociência racista que
busca melhorar ou exterminar os “ruins” e os “supérfluos” – e o genocídio. Para isso, o Fórum
contratou membros da academia e intelectuais orgânicos do movimento Hip Hop – mais ligados
ao coletivo Força Ativa –, ou de outros movimentos sociais. Em cada dia, um tema foi debatido

89
O genocídio da população negra, pobre e periférica é um processo complexo e extenso demais para ser
aprofundado nesta dissertação. Embora se tenha optado pela abordagem do conceito durante o texto, por ser uma
pauta essencial para o Fórum, admite-se que ele não é, aqui, tratado em toda a sua complexidade. O racismo, outro
processo histórico complexo, tem uma maior abordagem, não por ser considerado um processo simples, mas por
estar dissolvido durante a dissertação e ser uma resistência histórica de associações do movimento negro, do
próprio Hip Hop e de outras modalidades culturais.
90
Ver o conceito de estigma na nota 36 da p. 69.

163
com o objetivo de compreender o que está em jogo quando se discute genocídio. Assim,
estabeleceu-se um diálogo entre diferentes áreas do conhecimento: Sociologia, História,
Geografia, Direito e Economia. O intervalo das atividades foi preenchido com apresentações
artísticas, das quais participaram, principalmente, o DJ Pec Jay e outros MC’s que estavam
presentes e que se sentiam à vontade para fazer um freestyle com microfone aberto.
Para as principais temáticas a serem discutidas, ficou estabelecida uma ordem diária de
palestras. Dessa forma, foram abordados os seguintes temas:
• “Pedagogia, eugenia e genocídio: apresentar as ações afirmativas e ação pedagógica na
educação: a aplicação da lei 10.639/03 em sala de aula, com ênfase no movimento Hip
Hop”, com Djalma Lopes Góes (o Nando Comunista), rapper, professor de Ensino
Médio da rede pública estadual, mestre em Educação, membro do Fórum e do Força
Ativa;
• “Território usado e existência: fundamentos e abrigo da eugenia e do genocídio. Limites
e perspectivas da democracia racial brasileira”, com Maria Adélia Aparecida de Souza,
professora aposentada de Geografia Humana, da Universidade São Paulo - USP;
• “História da eugenia no Brasil”, com Weber Lopes Góes, professor da Faculdade de
Mauá, doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC
- UFABC, ex-rapper e ex-membro do Força Ativa;
• “Racismo nas instituições do estado brasileiro. De que lado a lei está?”, com Júlio
Santos, doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie e
dirigente sindical do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e região, e Walber
Monteiro, sociólogo, especialista em educação e racismo pela Unifesp e professor de
Ensino Médio da rede pública municipal; e
• “A dívida pública e as políticas sociais”, com Carmen Bressane, advogada, especialista
em direito tributário e auditora fiscal aposentada da Receita Federal.
O curso foi frequentado por ativistas do Hip Hop e de ONGs de direitos humanos e de
movimentos sociais – como o Movimento Negro –, por professores da rede pública, estudantes
em geral, pesquisadores(as) e membros do Sindilex. Depois das palestras, o espaço foi aberto
para perguntas dos presentes, e os debates aconteceram até o horário-limite de fechamento do
sindicato, por volta das 22h. As discussões giraram em torno dos temas tratados em cada dia e
da temática mais geral; as falas incluíram também outras questões, como as experiências das
mulheres negras ali presentes – moradoras das periferias, com filhos e filhas para criar, e as

164
reexistências criadas em seus territórios – questões também relacionadas à política nacional,
entre outras, que acaloraram as discussões.
O racismo foi a problemática mais transversal. Mas, afinal, o que é racismo? Durante o
curso, essa questão foi discutida e, para esta dissertação, racismo foi pensado englobando a
reflexão presente em parte da literatura sobre o tema e as produções culturais do Fórum. Dessa
forma, pretendeu-se relacionar essas formas de produzir conhecimento, que, como mencionado,
não fogem necessariamente dos ambientes acadêmicos. Nesse sentido, é preciso definir alguns
aspectos principais desse conceito para avançar na análise da resistência a ele pensada e
praticada pelo Fórum Hip Hop.
Racismo deve ser compreendido não somente como uma prática que considera as
características físicas de pessoas historicamente racializadas mas também como um processo
que funciona “no interior de uma ideologia preexistente [...] e apenas por causa disso esses
traços funcionam como critérios e marcas classificatórios” (Guimarães, 1995, p. 34). Outra
forma mais geral de interpretar o racismo define-o como um mecanismo de poder que visa
hierarquizar, inferiorizar, excluir, desprivilegiar parcelas da população com base na categoria
“raça”. Essa categoria foi uma criação do início da modernidade, no século XVI, para classificar
determinados grupos de seres humanos (Almeida, 2018). Mas raça não é uma categoria fixa e
estática; pelo contrário, é dinâmica e seus usos mudam conforme as transformações históricas;
pode ser lida como um significante flutuante (Hall, 1994 apud Guimarães, 1995), que pode
assumir diferentes significados em diferentes épocas e lugares:

[...] por trás da raça sempre há contingência, conflito, poder e decisão, de tal
sorte que se trata de um conceito relacional e histórico. Assim, a história da
raça ou das raças é a história da constituição política e econômica das
sociedades contemporâneas (Almeida, 2018, p. 19).

Raça foi um mecanismo mobilizado fundamentalmente para estabelecer classificação de


povos vistos, pelo Ocidente, como inferiores/ superiores (Said, 2007) e, entre eles, os povos
que foram retirados do que hoje se conhece como África. No que se refere a esses povos, devido
às suas características físicas e culturais, como a cor de sua pele, esquemas corporais,
significados e formas de vida diferentes dos europeus, foram vistos como exóticos e
chamados(as) de negros(as). Essa classificação, que se traduziu em relações desiguais de poder,
foi reproduzida por diferentes áreas do conhecimento, como Criminologia, Eugenia e
Antropologia, e teve como objetivo controlar e usar esses povos para sustentar o colonialismo.

165
Conforme avançou o colonialismo da América, os(as) africanos(as) foram usados de forma
forçada e genocida como mão de obra escrava para garantir a expansão colonial durante séculos.
A Europa, ao invadir os continentes africano e americano, deu sustentação à ideia de raça
ao criar as distinções às quais, hoje, os movimentos sociais e culturais resistem e que deslocam
de seus significados racistas; a sociedade europeia branca, por meio da força, retirou os
princípios que podiam definir esses povos como “humanos” por entrarem em contradição com
a ideia de “homem universal” do ideário de civilização. A consequência foi o genocídio e a
escravidão. Esses sujeitos foram classificados, na visão binária de civilizado/ selvagem própria
do Iluminismo europeu, como povos selvagens. Nas sociedades contemporâneas, dentre elas a
brasileira, mesmo após o fim da escravidão formal, que, no Brasil, se deu em 1888, o racismo
tem sido reproduzido sob diversas formas complexas e ao mesmo tempo latentes.
Nesta dissertação, racismo será definido resumidamente em diálogo com as produções do
Fórum e examinado nas cinco formas possíveis que, historicamente, ele assume em diferentes
lugares. Levantar esses principais significados que o racismo pode assumir é também relacionar
as diversas frentes em que o Fórum atua. Em sua guerra de posições, segundo o conceito de
Gramsci (1978)91, a rede assume uma diversidade de táticas e as suas produções culturais
adquirem potencialidade. Não se pretende, aqui, aprofundar a abordagem desses diferentes
significados, mas, sim, para ater-se à proposta desta dissertação, analisar suas principais
práticas, que se situam entre as institucionalidades e autonomias políticas e que procuram
resistir e, ao mesmo tempo, negociar.
Um dos objetivos do curso “Da eugenia ao genocídio...” era desmascarar o mito da
democracia racial brasileira, um mito de origem que, supostamente, fundou a democracia neste
País. O mito da democracia racial torna-se evidente nos dias atuais na medida em que a
sociedade brasileira nega a existência das diversas desigualdades que a constituem e uma
parcela da população é desprestigiada historicamente por processos racistas, enquanto outra
parcela reproduz privilégios sob a mistificação de que todas as “raças” que “formaram” o Brasil
vivem em harmonia: “num certo sentido, o ideal de democracia racial é um mito fundador da
nacionalidade brasileira e deve ser denunciado justamente pelo seu caráter ‘mítico’ de promessa
não cumprida” (Guimarães, 1995, p. 43).
Almeida (2018) aponta que, dentre as variadas definições, existem três definições
possíveis para compreender o racismo, tanto aquele que é generalizado quanto o que ocorre no

91
Ver conceito de “guerra de posições” na p. 49.

166
Brasil: a individualista, relacionada à subjetividade; a institucional, que predominantemente se
relaciona com o Estado; e a estrutural, em sua relação com a economia.
Na concepção individualista, o racismo está mais próximo de um preconceito, passível
de ser punido pela lei: “sob este ângulo, não haveria sociedades ou instituições racistas, mas
indivíduos racistas, que agem isoladamente ou em grupo” (Almeida, 2018, p. 28), mas:

[...] quando se limita o olhar sobre o racismo a aspectos meramente


comportamentais, deixa-se de considerar o fato de que as maiores desgraças
produzidas pelo racismo foram feitas sob o abrigo da legalidade e com o apoio
moral de líderes políticos, líderes religiosos e dos considerados “homens de
bem” (Almeida, 2018, p. 29).

O racismo individualista ofusca o caráter mais estruturante que ele possui na formação
das relações sociais. Nessa concepção, o racismo seria identificado com um indivíduo x e um
grupo y e ligado a seus comportamentos irracionais. Conforme Mouffe (2015), essa é uma
concepção própria do liberalismo, a de que o racismo seria uma irracionalidade e uma prática
que ficaria apenas no campo da institucionalidade política.
A concepção institucional representa um avanço ao considerar que o racismo não se
resume a um comportamento, mas é o resultado do funcionamento das instituições públicas e
privadas (Almeida, 2018): o racismo cristaliza-se nas instituições, que discriminam pessoas
negras e reproduzem as estruturas de poder por meio de mecanismos que criam barreiras para
dificultar o ingresso e a ascensão dessas pessoas. As instituições trabalham, nesse sentido, para
manter pessoas negras fora delas. Além disso, outras instituições do Estado voltadas para a
violência e punição selecionam corpos com base na estigmatização criada contra os(as)
negros(as) para assassiná-los(as) e encarcerá-los(as).
Como visto, para alguns membros do Fórum, o racismo institucional reproduzido pelo
poder judiciário e pela polícia é a forma de racismo que sustenta o genocídio. Júlio Santos,
advogado e dirigente do Sindicato dos Bancários, apontou, na sua crítica ao racismo
institucional, que as instituições se articulam no inconsciente contra a população negra. Pessoas
negras podem exercer ocupações em grandes empresas, embora de forma minoritária, e também
em órgãos do Estado, como na própria polícia e em outros cargos públicos, selecionados por
concursos, mas não no poder judiciário. As instituições, nesse sentido, reproduzem as estruturas
de privilégios, criadas por e para pessoas brancas na formação econômica e política do Brasil.
No racismo institucional, em suma, “[...] o domínio se dá com o estabelecimento de parâmetros

167
discriminatórios baseados na raça, que servem para manter a hegemonia do grupo racial no
poder” (Almeida, 2018, p. 31). Mas toda hegemonia abre suas brechas para a produção de
contra-hegemonias.
Conforme defendido por Góes92, ao tratar da história da eugenia e do pensamento
conservador brasileiro relacionado à distinção racial, uma outra definição de racismo apoia-se
na concepção científica. Para dialogar com a discussão realizada no curso “Da eugenia ao
genocídio...”, o racismo científico pode estar contido em um movimento pseudocientífico com
propósitos claramente racistas, como o eugenista.
Em sua fala sobre a história da eugenia, Góes afirmou que, apesar de essa visão de mundo
perpassar parte significativa da história da filosofia ocidental, principalmente depois da
descoberta da África por parte dos europeus, essa teoria consiste em uma pseudociência criada
pelo criminalista Francis Galton no século XIX. O termo eugenia significa a “ciência dos bens
nascidos”, e a criação desse conceito fundamentou-se, principalmente, na ideia de
aprimoramento da humanidade por meio de procedimentos científicos, médicos, jurídicos e
punitivos. Os eugenistas acreditavam que podiam “melhorar” a raça negra com base na suposta
pureza da raça branca. No Brasil, esse conceito foi difundido principalmente pelo médico e
eugenista Renato Kehl, que fundou a Sociedade Eugênica de São Paulo, que contava, entre seus
principais associados, com Monteiro Lobato.
O conservador Sílvio Romero, já no século XIX e começo do XX, acreditava, com base
no evolucionismo social, que a miscigenação entre imigrantes brancos(as) e pessoas negras, ex-
escravos(as), podia embranquecer a população e levar o País a um avanço civilizatório. Por
outro lado, eugenistas brasileiros mais radicais, como Nina Rodrigues, julgavam que a
miscigenação não salvaria a população e negavam qualquer contato com pessoas negras.
Rodrigues defendia que pessoas negras deviam responder a uma legislação própria, como a
legislação segregacionista de Jim Crow, nos Estados Unidos. Segundo Góes, a seletividade da
violência, por parte da sociedade e do Estado, direcionada para atingir majoritariamente
negros(as), estava em formação nesse período.
Nesse sentido, muitas práticas contemporâneas podem ser lidas como reproduções da
violência eugenista, e uma de suas bases é a ideologia de “salvar” a população dos “bandidos”
e da “degeneração” por meio de algumas práticas: militarização dos espaços segregados, as

92
Góes possui uma pesquisa reconhecida sobre racismo e eugenia e teve um livro lançado a partir de sua
dissertação de mestrado (Góes, 2015) em Ciências Sociais, realizado na Universidade Estadual Paulista - Unesp,
intitulado “Racismo e eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl”.

168
periferias; racismo institucional; práticas educacionais que são fundamentadas no corpo
“normal”; e importação de espermas europeus. Essas foram algumas práticas contemporâneas
apontadas pelo professor e ex-MC do Força Ativa.
O racismo científico não possui relação direta com o racismo institucional, mas a polícia
age de forma seletiva com base no estigma da suspeição do bandido93. No imaginário
reproduzido pelo racismo científico, relacionado com a concepção institucional, o bandido é
um jovem negro, que possui uma vestimenta e um andar específicos e é morador de periferia –
ou um jovem que possui essas características e circula nas regiões mais centrais da cidade. Este
também está sujeito à revista policial. O jovem que possui essas características é, para a polícia,
um suspeito. Eventualmente, um jovem branco que também possui essas características,
acompanhado ou não de um jovem negro, pode ser visto como suspeito. O grupo Racionais
MC’s (1997), na música “Capítulo 4, Versículo 3”, canta esse estereótipo como uma
representação das experiências vividas pelo jovem morador das periferias de São Paulo; um
jovem de toca, moletom e ouvindo um som que pode ser lido como uma afronta às forças
policiais: “Eu tô na rua de bombeta e moletom/ Dim dim dom, rap é o som que emana do Opala
marrom”94 95.
Segundo Almeida (2018), é possível avançar um pouco mais na abrangência do processo
de racismo na sociedade como um todo. O racismo é, antes de tudo, uma prática estrutural, pois
trata-se de práticas sociais históricas e sistemáticas que sustentam as relações sociais. Racismo,
portanto, não constitui um desvio individual, visto como patologia ou irracionalidade, somente
passível de punição por lei, ou como disfunção ou reprodução no interior de uma instituição,
que pode ser corrigido no funcionamento institucional:

[...] o racismo, como processo histórico e político, cria as condições sociais


para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam

93
Ramos (2014) argumenta que os “negros são, no estado de São Paulo, uma maioria sobrerrepresentada quando
são abordados pela polícia (54,1%). Em São Paulo, um estado em que mais de 60% da população é branca, negros
são 61% das vítimas de mortes decorrentes da ação policial, bem como policias brancos são 79% dos autores
destas mortes” (Ramos, 2014, p. 84).
94
Opala não é um modelo de carro tão representativo de “carro de bandido”, ou “carro de mano”, como era na
década de 90. Nas classes médias, esse carro é, hoje, tido como um item de colecionadores de carros antigos. Mas
a ideia que interessa aqui é a caracterização da figura de um suposto “carro de bandido”.
95
A referência foi feita por Zilda Maria, mãe de Fernando Luiz de Paula, um dos assassinados por encapuzados
na chacina de Osasco em 2015. No evento “Genocídio Juvenil”, que ocorreu na PUC, no dia 25 de abril de 2019,
Zilda fez essa referência para argumentar que não se mata somente jovens negros, mas jovens periféricos em geral.
Sobre a chacina, ver: <https://outraspalavras.net/outrasmidias/na-chacina-de-osasco-mais-indicios-de-crime-
policial/>. Acesso em: 11 jul. 2019. Sobre o caso específico de Zilda e Fernando, ver: <
https://www.youtube.com/watch?v=tnQf7Sg0vYs>. Acesso em: 11 jul. 2019.

169
discriminados de forma sistemática [...]. A ênfase da análise estrutural do
racismo não exclui os sujeitos racializados, mas os concebe como parte
integrante e ativa de um sistema que, ao mesmo tempo que torna possíveis
suas ações, é por eles criado e recriado a todo momento (Almeida, 2018, p.
39).

Raça pressupõe conflito, contingência e um uso relacional e histórico. Nesse sentido,


torna-se possível atribuir um uso tático e estratégico a essa categoria para a afirmação
daqueles(as) que foram prejudicados na história: “a estrutura ‘é viabilizadora, não apenas
restritora’ o que torna possível que as ações repetidas de muitos indivíduos transformem as
estruturas sociais” (Almeida, 2018, p. 40). Esse uso tem sido realizado pelos movimentos
sociais, dentre os quais o movimento negro brasileiro, principalmente no século XX, e foi
readaptado pelo movimento Hip Hop nas últimas décadas do mesmo século. As migrações
forçadas de populações que saíam de suas localidades de origem espalhou o sofrimento desses
povos para diversas localidades, mas esses fluxos também foram acompanhados de
potencialidades de resistência política. As reformulações culturais do “atlântico negro” (Gilroy,
2001), que resultaram no movimento Hip Hop, foram criadas em contato com os fluxos de
informação, de pessoas, mercadorias e de formas e conteúdos culturais.
Admitindo-se que a concepção estrutural abrange a formação de muitas outras relações
sociais, combater o racismo significa estabelecer uma luta em todas as dinâmicas da vida
cotidiana, que envolve tanto pessoas brancas quanto pessoas negras. Não significa pensar em
algo como “racismo reverso”, pois o racismo mantém seus efeitos preferenciais em
determinados corpos e dificilmente se consegue reverter completamente uma posição de poder
tão assentada não só no Brasil como também em diversas partes do mundo.
A resistência e o combate ao racismo, porém, não parece ser um consenso em todas as
produções de Hip Hop. Como A.S. e B.S. apontam, o racismo, justamente por ser estrutural,
pode estar em ações cometidas, até mesmo, por pessoas que seriam vítimas de racismo, ou que
colocam seu combate em segundo plano:

[...] o racismo é uma coisa estrutural. É uma coisa que até uma pessoa negra
pode cometer contra uma pessoa negra, porque é uma coisa que vem de muitos
e muitos anos atrás; é uma coisa que já tá na sua mentalidade. Eu não sei se o
rap combate isso, porque eu vejo muito racismo de rappers, assim como eu
vejo muito racismo entre outras pessoas do próprio graffiti. Principalmente
nessa eleição do Bolsonaro [presidente da república eleito em 2018] agora, vi
muita coisa absurda (A.S. - ZL - graffiteira, entrevista concedida).

170
[...] eu acho [...] falta, essa posição do rap. Assim como os outros elementos.
O cara do graffiti, conheço alguns caras do graffiti que tão indo para fora do
país. Eu sinto até vergonha alheia. O cara faz um puta de graffiti foda. E aí
fala: "esses negócio de discutir racismo não tem nada a ver" (B.S. – ZL – DJ,
entrevista concedida).

O combate ao racismo deve ser vigilante para não reproduzir práticas racistas ou
quaisquer outras ações que possam excluir pessoas por um estigma baseado na cor da pele e
num suposto comportamento inato. Racismo deve estar também no combate ativo por meio de
práticas cotidianas.

Consequências dos racismos e possíveis resistências

Racismo também pode ser entendido em relação ao que produz enquanto categoria nos
campos simbólico e material. O racismo se torna estrutural por histórico, estruturante de
diversas relações sociais, políticas e culturais e por ser vivenciado no cotidiano de jovens
negros, pobres e periféricos – também pertencentes ao movimento Hip Hop. Esse cotidiano
também é expressado pela relação desigual presente nos dados de mortalidade juvenil. A
mortandade sistêmica de pessoas negras e os diferencias de faixa etária e de gênero estão
evidentes em dois dos principais estudos estatísticos e qualitativos sobre violência e suas
principais vítimas no Brasil: o Atlas da Violência (Cerqueira et al., 2019), em parceria com o
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2016).
O Atlas da Violência de 2019 mostrou que, em 2017, o número de homicídios chegou a
um total de 65.602 casos no Brasil. Desse total, morreram 35.783 jovens, dos quais “94,4%
(33.772) eram do sexo masculino [...] o grupo etário de 15 a 29 anos representou 54,5% do total
de vítimas de homicídio naquele ano, embora represente apenas 24,6% da população total do
país” (Cerqueira et al., 2019, p. 27, 29)96. Do número total de homicídios, 75,5% das vítimas
foram pessoas negras (Ibidem, p. 49) e, somente entre 2002 e 2010, por volta de 270 mil pessoas
negras foram assassinadas (Sinhoretto, Morais, 2018).

96
Segundo a metodologia do Atlas da Violência, “juventude” refere-se à faixa etária entre 15 e 29 anos. Para o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990), a adolescência abrange a faixa etária entre 12 e 18
anos, enquanto o Estatuto da Juventude (Brasil, 2013) considera juventude a faixa etária entre 18 e 29 anos. Ao
falar sobre “juventude”, nesta dissertação, é usada a diferenciação oficial proposta pelo ECA. A ampliação feita
pelo estudo, no entanto, é ilustrativa da gravidade desses dados, já que os homicídios começam desde o meio da
adolescência até o fim da juventude.

171
Para uma comparação histórica, de 1980 a 2014, morreu, aproximadamente, um milhão
de pessoas, vítimas de armas de fogo. Entre 2003 e 2014, o número de vitimização de pessoas
brancas caiu 27,1%, ao passo que o de pessoas negras aumentou 9,9% (Waiselfisz, 2016). O
número de homicídios de jovens negros chega a 40,2 vítimas para cada 100 mil habitantes,
enquanto o de jovens não negros é de 16 para cada 100 mil. Apesar da queda dos homicídios
em São Paulo nos últimos anos, o estado ainda possui altas taxas absolutas e está entre os seis
estados com maior taxa de homicídios da federação (Cerqueira et al., 2019). “Ser jovem e negro
no Brasil é o mesmo que morar em zona de guerra” (Mendes, 2018): essa comparação traduz a
atual situação dessa parcela da população que vive no País. Como essa prática deve ser
denominada? O Fórum escolheu pautar a resistência ao racismo e ao genocídio da juventude
negra, pobre e periférica.
Valenzuela (2015), porém, define o fenômeno de assassinatos sistemáticos da população
jovem da América Latina como “juvenicídio”, uma categoria que traduz, ao mesmo tempo,
outros fenômenos sociais, culturais e políticos. O autor enfatiza a criação de estereótipos que
estigmatizam certas identificações juvenis, tidas como desacreditadas pelas indústrias culturais,
forças policiais e a sociedade como um todo:

[...] na América Latina existiu uma relação histórica imbricada entre situação
étnica e de classe (e gênero), como eixos estruturantes das oportunidades e,
portanto, da pobreza, a desigualdade, a precarização e a vulnerabilidade social
[...]. O juvenicídio alude a algo mais significativo, pois faz referência a
processos de precarização, vulnerabilidade de estigmatização, criminalização
e morte. Refere-se à presença de processos de estigmatização e criminalização
das e dos jovens construída por quem detém o poder, com a ativa participação
das indústrias culturais que estereotipam e estigmatizam condutas e estilos
juvenis, criando predisposições que desqualificam sujeitos juvenis,
apresentando-os como revoltosos, preguiçosos, violentos, membros de
gangues, perigosos, anarquistas, criminosos (Valenzuela, 2015, p. 21,
tradução nossa).

[...] o juvenicídio refere-se ao assassinato amplo e impune de jovens


portadores de identidades desacreditadas (Valenzuela, 2015, p. 31, tradução
nossa).

O autor enfoca na questão geracional, mas também considera os diferenciais de classe,


gênero e raça. Por meio dos processos de estigmatização, jovens negros possuem maior chance
de serem assassinados e/ ou encarcerados. Para compreender a vitimização preferencial dos
assassinatos na América Latina, os processos históricos, delineados pelo autor, podem se

172
relacionar às estatísticas. Juvenicídio ganha, portanto, peso sistemático. A pauta do “genocídio
da juventude negra, pobre e periférica”, por outro lado, procura enfatizar a construção da vítima
de outra perspectiva: a escolha social daqueles que se enquadram no estereótipo de jovem
negro, pobre e periférico.
Juvenicídio proporciona a reflexão sobre as “identidades desacreditadas” – a criação de
impossibilidades objetivas para interditar a existência de diferentes subjetividades juvenis. A
especificidade do “genocídio”, que o movimento negro e o Hip Hop procuram, pode se
confundir com a abrangência da categoria juvenicídio. Com juvenicídio consegue-se
compreender o estereótipo que se refere a uma concepção imaginada – mas que também produz
efeitos no mundo “real” – de que o jovem negro e morador das periferias é potencialmente um
suspeito de estar envolvido com atividades reconhecidas como criminosas. Mas o uso de
“genocídio” possui íntima relação com um processo histórico que estrutura diversas relações
sociais no Brasil: o racismo. O racismo é um mecanismo conceitual que permite compreender,
ao menos em parte considerável, o genocídio.
Para os membros do Fórum, discutir genocídio é mais profundo do que discutir
“extermínio”. Bener Zil, no evento “C.T Sitiada”97, destacou que falar em “preconceito” torna-
se superficial diante da discussão sobre “racismo”. O Hip Hop conquistou essa radicalidade ao
introduzir o conceito de genocídio no debate público sobre a violência histórica contra a
população jovem, negra e periférica e ao apontá-lo como causa do racismo que ainda permeia
a sociedade brasileira. R.P. reconhece que o Fórum possui um papel importante nesse debate.
G., por outro lado, menciona que o Hip Hop, de uma forma geral, conseguiu que esse conceito
se expandisse.

A gente, do Fórum, discute genocídio, mas falamos “não, vamos ampliar”. A


gente usou o rap, que é uma comunicação nossa. E hoje o Brasil fala de
genocídio. Isso foi uma estrutura nossa, criação nossa, para quem quiser. Isso
que a gente criou (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

E o genocídio que a gente diz, juridicamente é bem difícil. É um conceito que


mata o bem estar da população pobre, preta e periférica. E isso já expandiu.
Muito político usa, mas às vezes nem entende, porque é uma realidade que
não é muito difícil de você perceber. É um conceito que não é difícil de você
conceber, de você apreender (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

97
Evento analisado como uso do território no item 3.1.2.

173
Ramos (2014) demonstra como o conflito entre os usos dos termos “extermínio” e
“genocídio” acontecem no discurso da juventude militante do movimento negro, que considera
o Hip Hop como uma de suas referências culturais e políticas. Conforme levantado pelo autor,
o movimento negro usa o conceito de genocídio para facilitar a comunicação e a
conscientização das pessoas. Genocídio refere-se a uma prática tanto direta, que visa ao
assassinato sistemático de um povo, quanto indireta, que atua pelos processos de precarização
(falta de moradia, ausência de saneamento e de condições dignas de vida, eliminação cultural),
como defendido por Valenzuela (2015), mas com foco na população negra.
O conceito de extermínio não atinge a radicalidade de genocídio; extermínio estaria
relacionado às mortes, enquanto genocídio pode se referir não somente ao corpo matável mas
também ao rebaixamento dos horizontes e das possibilidades, ao assassinato de culturas e às
feridas que se espalham nas famílias e nas vizinhanças periféricas, nas quais se criam laços e
sociabilidades específicas
Ao falar sobre genocídio, G. afirma que esse processo também causa traumas que
impedem a população negra e periférica de se reconhecer como tais, quando em confronto com
a violência:

A realidade periférica, dos pobres, porque pobre é um fato, não é algo que eu
quero ser, pobre é um fato. E dos negros no país, que é o genocídio, que não
é só matança. A matança já é um negócio bem estrondoso, bem escandaloso
em números [...]. O genocídio é algo que afeta o indivíduo, homem, mulher,
criança e idoso, como negro. Ou como preto. É porque para mim tanto faz; em
alguns locais as pessoas estranham [...]. Mas são os traumas causados pelo
próprio genocídio, que é o racismo. São as confusões e os traumas que você
causa (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

Fanon (2008) analisa a racialização e a criação do sujeito “negro”, que, segundo o autor,
existe estruturalmente diante do sujeito branco racista. Além do afeto diretamente físico, a
relação da pessoa negra com seu corpo é uma atividade constante de negação, que parte de si
própria e dos outros. O racismo, que surgiu com a colonização, desenvolve-se também como
negação do outro como sujeito. O(a) negro(a) se vê preso(a) a uma concepção de mundo ao
qual não pertence: “os pretos tiveram [...] seus costumes e instâncias de referência [...] abolidos
porque estavam em contradição com uma civilização que não conheciam e que lhes foi imposta”
(Fanon, 2008, p. 104). Há, no entanto, algumas saídas para produzir a conscientização e o
conhecimento sobre os problemas que afetam negativamente a população negra, pobre e

174
periférica. Com suas ações, o Fórum procura a afirmação desses afetos para produzir, mesmo
que por vezes de forma difusa, descontínua e repleta de conflitos, a resistência contra o racismo
e o genocídio.

A gente fala muito do bem estar. Tanto em música quanto a gente faz os
debates e quando a gente fala de criminalidades e mortes. Na verdade, uma
pessoa que morre numa família média, você desequilibra totalmente aquela
família, economicamente, emocionalmente. O genocídio é isso; você adoece,
você mata sonhos, você mata oportunidades, você mata possibilidades do
próprio bem estar. Tem o lance na saúde também, tem umas coisas curiosas
para a gente tentar ver de forma bem factual o racismo, nos vários campos de
atividade humana [...] [ao ser perguntado sobre a transversalidade que a pauta
do genocídio possui para o Fórum] A gente tem essas ambições aí, de fazer
nossa arte e não ignorar outras coisas, porque essas outras coisas fazem parte
da vida de todo mundo que faz Hip Hop (G. - ZS - rapper, entrevista
concedida).

O “bem estar” foi discutido no “Seminário de Políticas Públicas para a Juventude”, que
ocorreu na Defensoria Pública, no dia 13 de dezembro de 2018, com o tema “Direitos Humanos:
Redução de Danos, Gênero e População LGBTQ+”. Myro Rolim, especialista em políticas
públicas de redução de danos e riscos, defendeu a adoção dessas políticas junto às juventudes,
que são atingidas de formas distintas pelo consumo excessivo de drogas. A juventude negra,
pobre e periférica pode se tornar mais fragilizada em meio ao consumo de drogas, mas redução
de danos e riscos prevê, para ele, cuidado com os usuários, vistos também como sujeitos
políticos. Esse argumento é seguido pela feminista negra, Matilde Oliveira. Para a feminista
existem também distinções quando se relacionam gênero e raça para se compreender as
desigualdades no acesso à saúde e à oportunidades de trabalho. A violência sofrida por mulheres
negras deve ser incluída, nesse sentido, como “política de cuidado”.
A categoria “raça” foi uma designação criada por grupos estabelecidos – população
branca de origem ou ascendência europeia – para excluir e cerrar fileiras (Elias, 2000) de
diversos tipos contra a participação econômica, política e cultural da população negra. É
possível, no entanto, jogar com essas categorias, nos seus significados duplos. Segundo Soares
(2010), porém, o uso de conceitos como “negritude”, “periferia” e “mulher negra” pode afirmar,
resistir e transgredir estigmas. Nas últimas décadas de produção de cultura de periferia em São
Paulo, o Hip Hop foi uma das brechas que permitiu, historicamente, à juventude negra deslocar
esses estigmas. O Fórum trabalha com essa resistência para seguir a contrapelo do estigma

175
ligado à juventude, à racialização, à moradia e à condição econômica, mesmo que “juventude”
seja usado de forma tática.
Muitas palavras estão no orçamento da cidade e conectam-se com alguns discursos que
são defesas “legítimas” para determinados lugares de disputa de poder, dentre eles os poderes
estatais de instância municipal. Se genocídio é historicamente de povos, o que inclui não só o
corpo, mas a saúde, as histórias e subjetividades dos(as) que ficam e que continuam resistindo
a essa realidade, defender a “juventude negra, pobre e periférica” visa trazer visibilidade para
uma questão evidente, mas que possui causas latentes. Para o Fórum, considerar, no campo do
discurso, “juventude” em vez de “povo” é uma das formas de inserir a discussão do genocídio
no debate público. Por outro lado, não significa que sujeitos juvenis não façam parte do Fórum
e, ao mesmo tempo, não acessem políticas públicas. Esse debate deve não só ser feito
internamente ao Hip Hop mas também transbordar as fronteiras que delimitam a cultura. Com
essa tática, o Fórum usa a pauta “contra o genocídio da juventude negra, pobre e periférica” nos
diferentes e desiguais territórios da cidade.
Umas das formas de resistir e de responder ao genocídio, além dos eventos que procuram
articular os quatro elementos do Hip Hop, é o uso do território para produção de conhecimento,
como exemplificado com o curso “Da eugenia ao genocídio...”. O objetivo principal é levar a
discussão sobre essas práticas para as pessoas que mais são afetadas por elas. O Fórum produz
conhecimento de forma conjunta com intelectuais acadêmicos e também com intelectuais
orgânicos (Gramsci, 2000): intelectuais negros(as) e periféricos(as) com formação mista de
resistência negra (movimento Black Power, Panteras Negras e movimento negro), articulação
cultural com o movimento Hip Hop e também com a academia. Com a conquista de efetivação
de políticas de ação afirmativa, vistas como reparação à escravidão, conforme definido no
seminário na ANLU, essas junções aumentaram nos últimos anos.
O Fórum, por meio dessa pauta política principal, procura trazer essa juventude, que é
vítima do genocídio e também da dependência química, do encarceramento e da falta de
moradia, para o debate público e para a negociação com o Estado em busca de políticas públicas
seja por intermédio da própria produção cultural do Hip Hop, seja por meio das discussões e
rodas de conversas organizadas nos eventos que a rede produz. Surgido da necessidade de tratar
de políticas públicas para essa juventude, o Fórum procura mediar esse tipo de acesso para os
jovens assim como garantir a extensão do conceito de educação. Para além das apresentações
artísticas, os eventos também despertam especial atenção aos novos acessos.

176
Outra saída encontrada pelo Fórum é a adesão a práticas antirracistas. Nando é um dos
membros da rede que procura praticar uma pedagogia antirracista. Não se trata de uma correção
– como a indicada pela concepção individualista de racismo, que enxerga o racismo como um
problema irracional de uma pessoa que poderia ser corrigido com a punição ou com educação
formal –, mas de uma forma de praticar o diálogo, também por meio do Hip Hop, e, ao mesmo
tempo, de reconhecer a diversidade étnico-racial da constituição da sociedade brasileira e a
contribuição cultural que a população negra tem neste País.
Em sua fala no curso “Da eugenia ao genocídio...”, Nando deixou claro que a produção
de conhecimento sobre o racismo é uma das primeiras abordagens para adotar práticas
antirracistas. Essas práticas passam pelo reconhecimento do outro em sua diferença e em sua
igualdade. É preciso discutir a branquitude e suas posições de privilégio político e pensar a
cultura criticamente: admitir e compreender as teorias e práticas racistas para se pensar a
pedagogia interétnica. Essa condição, próxima a uma pedagogia voltada para a autonomia, não
é garantida pelas instituições; estas não são capazes de captar todas as práticas de liberdade.
Segundo Certeau (2014), sempre existem astúcias na vida cotidiana que fogem das disciplinas
e das práticas planejadas pelo poder. Por isso, Nando afirma que atua por meio do Força Ativa
e do Fórum Hip Hop.
Ser antirracista continua a ser um desafio primordial para pessoas brancas, que se veem
conectadas a laços sociais profundamente formados pela história institucional, familiar,
amistosa e amorosa das gerações passadas e atuais. Embora esses laços não precisam ser
rompidos completamente, abrir mão de privilégios, combater qualquer atitude de discriminação
na vida cotidiana, por menor que seja, admitir e conhecer outros “mundos” e considerá-los
como possíveis e não distantes de uma suposta noção largamente compartilhada de realidade
são algumas saídas para a luta antirracista. Essa luta, porém, deve ser iniciada,
fundamentalmente, por aqueles(as) que contribuíram para esse estado de coisas, dele se
beneficiaram e acharam confortável viver numa sociedade racista até então.

177
Considerações finais

A investigação que norteou esta dissertação acompanhou as práticas e as ações político-


culturais do Fórum Hip Hop MSP, uma rede de produção cultural de periferia. Durante a
pesquisa, as ações trouxeram diversos questionamentos sobre o movimento Hip Hop paulistano,
mas o foco esteve nos três capítulos desta dissertação e nas questões que, neles, se desdobraram:
o Fórum, a vida cotidiana de membros e sujeitos que se relacionam com a rede e sua relação
com o Estado; a relação do Hip Hop e do Fórum com resíduos de culturas negras, e as heranças
de outras formas de organização que também o constituem; e as apropriações e os usos do
território por meio dos quais os sujeitos, ao mesmo tempo, negociam e resistem nas periferias
e centralidades, questionam a produção de conhecimento e se posicionam à contrapelo do
racismo na resistência ao genocídio.
O Fórum é definido como uma rede de produção cultural e é formado por sujeitos
periféricos, que pertencem a coletivos e outras redes e se relacionam, articulam ações e residem
em territórios periféricos nos considerados “centros” e “periferias”. Na vida cotidiana de seus
principais membros e demais hiphoppers que se relacionam de alguma forma com o Fórum, o
Hip Hop é uma cultura que transforma os modos de percepção do cotidiano e é fundamental
para a formação de subjetividades políticas. Essa subjetivação acompanha concepções de
política que conectam a institucionalidade com a pluralidade e antagonismos políticos presentes
no cotidiano dos territórios periféricos da cidade. O movimento Hip Hop pode negociar com a
política institucional para se sustentar na resistência ao racismo e ao genocídio. Essa rede possui
uma história com vínculo institucional e, aos poucos, amplia sua atuação para múltiplas frentes
políticas.
Com a participação hegemônica do movimento Hip Hop no orçamento municipal, na área
de cultura da periferia – com a rubrica do Hip Hop no orçamento – e com a criação do Núcleo
do Hip Hop dentro da Secretaria de Cultura de São Paulo, o Fórum passou a ser a ponta de lança
em processos de reconhecimento e de luta hegemônica do Hip Hop paulistano nas políticas
públicas. No campo movediço entre as institucionalidades e as autonomias, o Fórum lida com
as forças hegemônicas da política e pode cair em contradições. A rubrica e o Núcleo são táticas
que podem ampliar e potencializar os horizontes do Hip Hop, mas apresentam armadilhas,
como a desarticulação realizada pelos governos. O conflito nas políticas públicas mostra que
existe uma luta a ser realizada, herdada dos movimentos sociais, que é a luta por direitos. No

178
entanto, frente às estruturas econômicas, políticas e culturais e aos acontecimentos das décadas
de 80 e 90, os movimentos sociais são exemplos do processo de institucionalização que retirou
poder de mobilização e de diálogo com as gerações seguintes.
Com a contribuição de Ocampo (2012), é possível estabelecer ligação entre as concepções
subjetivas dos membros do Fórum sobre o Estado e a astúcia empregada no uso deste em seu
cotidiano (Certeau, 2014). Por sua centralidade (Hall, 1995), a cultura é usada pelo Estado e
por empresas e ONGs para “resolver” as disfunções do neoliberalismo (Yúdice, 2004), mas isso
não significa que os sujeitos estejam presos às lógicas institucionais de aprisionamento e
controle da autonomia: é possível fazer outros usos das políticas públicas, mesclando práticas
de resistência e de negociação.
Os fluxos da globalização dão sentido às produções do Hip Hop e relacionam-se com
resíduos de culturas negras, dominâncias presentes em outras modalidades culturais que
precederam e/ ou foram contemporâneas ao Hip Hop e as emergências que se manifestam de
forma conflituosa: o Fórum atua na política institucional e negocia com a Câmara e Prefeitura
para inserir o Hip Hop no orçamento da cultura; usa as inovações tecnológicas para produção
musical alternativa às gravadoras; produz práticas residuais de culturas negras e periféricas –
os elementos do Hip Hop; e apresenta contradições na relação com outros sujeitos que surgiram
recentemente no Hip Hop e com outras modalidades culturais, como os saraus.
Com o uso dos elementos do Hip Hop, essas relações dão potencialidade à guerra de
posições (Gramsci, 1978), travada em diversas frentes para produzir Hip Hop de forma
resistente e crítica, mas negociada – por vezes reproduzindo algumas práticas constituídas da
política. O Fórum Hip Hop relaciona-se com diversos coletivos, redes, movimentos sociais e
demais organizações da sociedade civil, “novos” e “velhos”, e produz sociabilidade de forma
expansiva tanto por meio de alianças e laços de solidariedade quanto pelo reconhecimento da
legitimidade das lutas anteriores e atuais, que também envolvem as vidas de hiphoppers ligados
à rede. O Fórum contribui para a reformulação das lutas dos movimentos sociais, com
participação dos coletivos de produção cultural e do movimento Hip Hop como um todo. Os
coletivos e redes representam formas alternativas de organização, com característica mais
autônoma e dinâmica. Movimentos sociais e Hip Hop participam do que foi denominado de
“simbiose”, interação em que as conexões produzem fortalecimento mútuo.
Esta pesquisa acompanhou diversas ações do Fórum Hip Hop nos diferentes territórios
da metrópole paulistana para analisar seus usos (Santos, 2005). Principalmente com a

179
contribuição do programa Fomento à Cultura da Periferia, algumas ações político-culturais
foram selecionadas para analisar a ocupação dos territórios paulistanos pelo Fórum. Nessas
ações, o Fórum procurou articular Hip Hop com outras questões do cotidiano da população
periférica, como violência policial, políticas públicas, diversão, relação entre centros e
periferias, racismo e genocídio da juventude negra. Essas ações foram realizadas em diferentes
territórios da cidade: CEUs, praças públicas, Câmara Municipal e sindicatos, territórios que o
Fórum procurou ocupar para transgredir as regras e disciplinas estabelecidas, mesmo que de
forma efêmera.
Na negociação existente em suas práticas, o Fórum busca fugir da disciplina imposta pela
política institucional e pelo regramento fixo de determinados lugares (Certeau, 2014), como a
Câmara Municipal, Galeria Olido, as escolas e os CEUs. Assim, a rede encontra-se numa linha
tênue que, por vezes, é ultrapassada para reproduzir algumas práticas da política institucional,
como a promoção de cursos de formação popular nos centros e não nas periferias, além da já
menciona reprodução da baixa participação feminina na política “liderada” por homens. O
Fórum, por outro lado, procura romper com a exclusão baseada em gênero por meio da
participação de mulheres do Hip Hop e de movimentos sociais e de demais coletivos em outras
ações político-culturais.
A principal pauta política do Fórum Hip Hop MSP é a luta contra o genocídio da
juventude negra, pobre e periférica. Como mencionado no capítulo 3, a discussão do genocídio
é extensa e complexa para a proposta desta dissertação. Dessa forma, optou-se, aqui, pela
análise do racismo enquanto significante flutuante: em suas diferentes definições ao longo do
tempo e do espaço. A luta contra o racismo é uma luta histórica do movimento Hip Hop. Nesta
dissertação, o racismo foi analisado também como um mecanismo que possibilita o genocídio
que está em marcha na sociedade brasileira. Para embasar a discussão sobre racismo, foram
utilizadas as narrativas do curso “Da eugenia ao genocídio ...”, além de parte da produção
acadêmica sobre o tema. Buscou-se articular o pensamento e os conceitos de autores da
academia com os de intelectuais orgânicos do movimento negro, do Hip Hop e de outros
coletivos.
Ao se depararem com a realidade das vidas perdidas pelo Estado ou por dimensões
estruturais da vida cotidiana, o Fórum procura saídas e possibilidades de resistência ao racismo
e suas consequências, que podem mexer, mesmo que de forma efêmera, com as estruturas. O
Fórum procura transformar o estigma dessas juventudes em brecha para atuar na política

180
institucional e inserir “juventude negra, pobre e periférica” no orçamento público. Além das
práticas de produção de conhecimento, a rede também propõe em debates e seminários práticas
de “bem estar” de pessoas negras de uma forma geral. A adoção de práticas antirracistas no
cotidiano também é uma proposta do Fórum como resistência ao racismo e ao genocídio.
A relação entre cultura e política, que fundamenta e atravessa transversalmente toda a
dissertação, é um campo frutífero para analisar como as produções culturais – realizadas ou não
por coletivos, com ou sem protagonismo juvenil e/ ou periférico – podem clarear as concepções
atuais de política, seus limites e potencialidades. Cultura, dimensão ativa no uso das práticas
cotidianas e como (re)criação de formas de vida, pode trazer outros significados e sentidos para
a política. Deve-se destacar que as questões analisadas são complexas e estão sujeitas às
alterações do tempo, podendo, ainda, ser trabalhadas durante todo um percurso acadêmico.
Nesta dissertação, mostram-se as possibilidades que podem ser articuladas no momento
presente.
Outras questões ficaram de fora da argumentação central, mas não porque sejam
despossuídas de centralidade. A escolha na interpretação é limitada e, com isso, tentou-se
costurar uma representação das práticas com as ferramentas obtidas por meio de leituras,
observações etnográficas, entrevistas em profundidade e as narrativas dos sujeitos. Além disso,
o tempo que o pesquisador possui é também restrito. Essa representação não condiz com uma
“realidade” imediata dos conflitos, tensões, controvérsias e potencialidades que foram
articulados e transmitidos nesta dissertação. Ela é mediada pelas percepções e experiências do
pesquisador e das escolhas teórico-metodológicas. Nesse sentido, a escolha de analisar um
coletivo ou, no caso, uma rede é científica, mas não deixa de ser uma das possíveis
interpretações (Geertz, 2008) da cultura Hip Hop.
A problemática de gênero foi uma dessas questões que não foram aprofundadas. As três
mulheres do Hip Hop (B.S., N. e A.S) entrevistadas foram escolhidas pela atuação no Fórum
Hip Hop e pelas diferentes visões que apresentavam sobre a rede. Suas críticas sobre a presença
privilegiada dos homens no movimento Hip Hop não podiam ser deixadas de lado. A DJ B.S.
atentou para esse fato ao questionar a presença das mulheres do Hip Hop no Fórum e o modo
como esta dissertação visibilizaria essas mulheres:

Com o viés da questão das mulheres é mais agravante ainda, porque as críticas
que são feitas... nos espaços em que está o Hip Hop é muito machista. E o
Fórum não vai ser diferente. Não tem uma diferenciação; por mais que no
discurso é feito, é falado, mas não é praticado. Isso afastou muito as mulheres

181
e inclusive a mim, desse lugar. Não pode ser um lugar onde a gente se sinta
desconfortável [...]. Não sei como você tá pautando politicamente, mas uma
das coisas que não aparece, essa discussão das mulheres (B.S. - ZL - DJ,
entrevista concedida).

Por essas razões, o conflito de gênero foi mencionado como uma das controvérsias
presentes no Fórum Hip Hop. Não ganhou a mesma centralidade de outras questões, mas esse
conflito apareceu, mesmo que de forma latente, quando se tratou das Mães que sofrem com
seus filhos vítimas do genocídio, do machismo existente no Hip Hop e da sub-representação
das mulheres no Fórum. A questão de gênero esteve articulada com os demais conflitos e
tensões apresentados no decorrer da dissertação.
Ao falar sobre políticas de drogas, no Seminário de Políticas Públicas para a Juventude,
o especialista em políticas de drogas e articulador do Fórum Estadual de Redução de Danos,
Myro Rolim, mencionou as políticas de morte adotadas pelo Estado brasileiro para identificar
e eliminar os “inimigos” internos. O conceito de necropolítica (Mbembe, 2016) é outro exemplo
que merece maior atenção e, por isso, não foi desdobrado em conjunto com racismo e/ ou
genocídio. Para Mbembe, a definição de política como guerra, adotada por parte dos Estados
nacionais, pressupõe a eliminação do inimigo como busca pela soberania. Nessa busca, o poder,
não somente o estatal, adota práticas de um estado de exceção permanente e o inimigo é
eliminado por meio da necropolítica.
Esse conceito é formado por outros, como o do biopoder (Foucault apud Mbembe, 2016),
que se baseia na divisão entre vivos e mortos e se define em relação a um campo biológico. O
biopoder aproxima-se de eugenia, por considerar certos aspectos biológicos na criação da noção
ficcional de inimigo. Com o racismo, cria-se a aceitabilidade do “fazer morrer”. Nesse sentido,
não é possível considerar a diversidade dos sujeitos no “uso da razão na esfera pública”, como
pensado pela política liberal e como concepção herdada da modernidade. Para o Estado
brasileiro – de acordo com as estatísticas, experiências e definições históricas –, o inimigo
interno é o jovem negro, pobre e periférico, e esse sujeito não deve participar da esfera pública.
Mbembe indica que as políticas de terror são derivadas de um longo processo de
desumanização, que se iniciou com o colonialismo, passou pelo terror da Revolução Francesa,
pela Revolução Industrial, as guerras mundiais e o fascismo. Parece estar em curso, porém, uma
nova fase dessa política, que pode abalar muitos dos conflitos apontados na dissertação. Embora
as políticas públicas se mantenham na área da cultura, os horizontes relacionados ao acesso a

182
elas, por exemplo, não parecem promissores, talvez pelos indícios apontados por Yúdice (2004)
ou pelas lutas históricas e resistências dos movimentos sociais e culturais.
Como combater essas pautas tão orquestradas, tão violentas e abrangentes? Será que é
possível uma união entre os mais diversos coletivos, redes, grupos, movimentos culturais,
sociais e políticos e demais agrupamentos para combate-las? Até onde um coletivo ou rede
consegue chegar na luta contra o racismo e o genocídio? O Hip Hop conseguirá se reinventar?
De qualquer forma, as resistências e as buscas por alianças nas diversas frentes da política,
como interpretado nas ações e práticas do Fórum Hip Hop, ainda podem ser vistas como
alternativas, embora repleta de conflitos, para as juventudes negras e periféricas de São Paulo
mexerem – ao menos sob uma forma menor e temporária – com o estado inerte das coisas.

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Filmografia

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DA SÃO BENTO ao feminismo. Direção: Fuga. Produção: Take UAM, 2018. Duração: 12
min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ttQ5wUGKOpw. Acesso em: 05 set.
2019.

NOS TEMPOS DA SÃO BENTO. Direção: Guilherme Botelho. SUATITUDE, 2010. Duração:
90 min.

STYLE WARS. Direção: Tony Silver. EUA: Public Arts Film, 1983. Duração: 70 min.

TRIUNFO. Direção: Caue Angeli. Canal Aberto, 2014. Duração: 84 min.

191
Anexo I – Roteiro semiestruturado de entrevista em profundidade.

Este roteiro é uma adaptação do roteiro estipulado pelo grupo de pesquisa “Jovens
Urbanos...” para pesquisar coletivos de produção cultural. Cabe ressaltar que se trata de um
modelo amplo e geral, a ser readaptado de acordo com o perfil do entrevistado(a).

Dados gerais e movimento em direção a participação ao coletivo

a. Identificação (Nome, idade, zona de São Paulo, elemento do Hip Hop)


b. Trajetória de vida e pertença/ relação com coletivo(s)
2. Fale de você, de sua trajetória de vida, das coisas importantes que gostaria de nos contar
3. Você se relaciona com algum outro coletivo/grupo; qual?
4. Quanto tempo você está junto com o Fórum? Quais os planos e interesses?
5. Delimitar o objetivo que mobilizou a inserção e o interesse pela rede
a. Informações sobre o Fórum / estrutura e ações
6. O que é o Fórum Hip Hop? Qual sua história? O que significa para você?
7. Em que momento compreendeu que era possível (ou necessário) atuar coletivamente?
8. O Fórum é uma rede?
9. O que o Fórum está propondo?
10. Quais são os principais integrantes? Quantas moram no bairro / mesma região?
11. De que forma vocês se organizam coletivamente? Como se dá a organização/preparação
no cotidiano?
12. Como se dá a rotatividade de pessoas no coletivo, pensando na inserção de novas
pessoas e razões para eventuais saídas?
13. Quais as maiores dificuldades que o grupo enfrentou?
14. Como optam por atuarem em ocasiões que são por parceria e militância? Como realizam
este filtro?
15. Como é o processo de criação das atividades do coletivo?
16. Como é o processo de divulgação?
17. Existem manifestações ou mobilizações sociais que sejam referência para o trabalho
que desenvolvem?
18. Qual a importância de realizar ações junto com outros coletivos?

192
19. Quais são os limites e possibilidades que o Fórum apresenta para o Hip Hop de São
Paulo?
20. Quais os problemas na relação com o Estado?
21. O Fórum possui ações autônomas ou existe somente perante o Estado?
22. Quais são as táticas, estratégias e procedimentos que adotam na relação com o Estado?
23. Quais são as principais conquistas?
24. O que representa o Hip Hop para o Fórum?
25. O Fórum dialoga com as juventudes?
26. Como viabilizam suas ações?
a. Vínculos Institucionais (políticas públicas / terceiro setor / financiamento
privado... ou ausência de)
27. Tem agora algum financiamento?
28. Como pretende dar continuidade às ações? Pretende entrar com alguma solicitação de
apoio?
29. Dados referentes às formas de sustentabilidade

Relações cultura e política

30. Houve desdobramentos a partir das ações do coletivo na comunidade?


31. (Exemplo: novos grupos, novos eventos, alguma nova movimentação aconteceu na
comunidade? Se sim, quais foram?)
32. O que é política, para você?
33. Onde estaria o político na sua proposta cultural?
34. Qual o espaço que o grupo utiliza para as atividades e reuniões? Como foi o processo
de autorização para o uso do espaço? Qual o motivo da escolha daquele espaço?
35. Quais expressões, manifestações, atuações, iniciativas e práticas culturais e artísticas
que considera relevantes na cidade; quais que você participa, colabora, apoia; em quais
você enxerga esse caráter político e cultural?
36. Você ou alguém do grupo milita em algum partido político e atua pelos canais
institucionais da política?
37. Acontece em São Paulo um movimento cultural das periferias?

193
Relações com os territórios

38. O que a rua e o bairro significam para você?


39. Quais são os pontos positivos e negativos no seu bairro?
40. O que você acha de morar na zona onde mora?
41. O que significa a periferia para você?
42. Você se sente integrado à sua comunidade?
43. Você participa de associações de bairro?
44. Como você enxerga o movimento de apropriação de espaços urbanos que não foram
ocupados/ vivenciados historicamente por determinados grupos sociais?
45. Quais são os efeitos que você enxerga das ações do Fórum nos bairros em que atua?
46. Gostaria que suas ações fossem mais concentradas em seus territórios/ bairros?

Sobre o Hip Hop

47. O que é o Hip Hop?


48. Considera um movimento ou uma cultura? Ou os dois? Por que?
49. Quais são os principais conflitos e dificuldades enfrentadas na ação política por meio
do Hip Hop? E no Hip Hop como um todo?
50. A profissionalização do Hip Hop é importante?
51. Quais os problemas e as vantagens de ser um artista do Hip Hop?
52. O que você pensa sobre a união dos elementos do Hip Hop? Ela existe?
53. O quinto elemento existe?
54. O que é ser um(a) artista do Hip Hop [MC, DJ, grafiteiro(a), b-boy (girl)]?
55. Como você enxerga a relação entre Hip Hop e questão racial?
56. E a relação entre Hip Hop e gênero? Qual a diferença do começo do Hip Hop para hoje?

Considerações Finais

57. Qual sua avaliação sobre essa entrevista?


58. O que você gostaria de acrescentar a esse roteiro?
59. Alguma sugestão de alteração?

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