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O gesto que fala e cala

A partir da proposição de Hubert Godard, de uma diferenciação na origem dos esforços


que imprimem o movimento e o gesto na dança, apontando o movimento como o
resultado do esforço mecânico do corpo para se deslocar no espaço e o gesto contendo a
carga expressiva, uma espécie de mitologia corporal que impede a existência de um
movimento expressivo idêntico ao outro, trago aqui uma reflexão acerca da ação do gesto
e sua carga expressiva como comentário social. Esse foi o conteúdo desenvolvido na
oficina “Construção gestual”, realizada no dia 29 de Setembro durante as atividades do
projeto “'Jimmy, The Jungle Beast' – Residência”, no Centro Coreográfico do Rio de
Janeiro (Cco).

Sempre se apresenta de forma profundamente estimulante, para mim, o trabalho de


investigação em dança realizado em coletivos marcados pela heterogeneidade, o que
novamente aconteceu nesse encontro, onde cerca de 30 artistas, entre praticantes e
observadores de diferentes linguagens estéticas, pensamentos e operações em dança
“ocuparam” e “forjaram” o espaço do Estúdio 3 do Cco. O trabalho proposto, apesar de ter
incentivado a manutenção (no sentido mais literal da palavra) – o sustentamento – das
escolhas estéticas, das técnicas e até mesmo dos códigos existentes em cada uma das
inúmeras linguagens de movimento que se atravessaram no encontro dos indivíduos,
instigou também ao estabelecimento de um domínio de destruição criativa¹. É neste
universo que pretendo abordar o enunciado e seus desdobramentos.

“O gesto que fala e cala” traz ao campo da reflexão – e, posteriormente, ao campo da


proposição de aplicação prática, a questão da construção dos repertórios gestuais,
coreografias e dos terrenos da experimentação e do desenvolvimento técnico, em suas
inúmeras possibilidades de operação. Como se apresenta, no imaginário e na ação
efetiva dos indivíduos que experienciam certa “mudança de perspectivas” entre a
reprodução de movimentos e a arquitetura gestual, o contexto que visa o atravessamento
contingente e, ao mesmo tempo, plausível de diferentes modos e planos de composição
em dança?

A pontualidade da proposta da oficina se deu na questão do espaço como lugar de


ocupação, mas também como produto de criação, a partir do ato artístico. Os espaços e
tempos consumidos pela dança que se move através de, que trata de e o espaço-tempo
forjado pela dança que consiste, que é. Nesse aspecto, puderam ser experimentados e
postos à discussão importantes constituintes da ação da dança como operações efetivas
de comentário social. As discussões que subseguiam cada “atividade prática” focaram-se
nas considerações das potencialidades comunicativas da “gestografia” e na importância
de se compreender o lugar de cada ação, cada imagem, cada intenção projetada na
arena de contato entre o artista e o observador.

Muito se falou sobre “leituras”, “significações” e “entendimentos” no que concerne à


questão da efetividade, na instauração de um conceito comunicador no ato corporal. Um
problema relevante colocado durante as discussões foi o do controle - ou melhor, da falta
de controle - que o artista teria sobre essa relação com o observador, a partir do que foi
proposto como “requisito” para tal instauração: o artista precisa fazer um convite ao
observador; e este convite deve ser aceito, quando o observador quererá entrar no
universo que o artista “criou”; mas não apenas o convite aceito é garantia de efetividade
na comunicação e, neste caso, o convite deve instigar o observador a querer fazer parte
deste universo e, conseqüentemente, investigá-lo juntamente com o artista, no
desdobramento das ações desenvolvidas no encontro. Esse convidar-e-instigar deve ser
renovado e mantido, como um contrato subjetivo entre artista e público.

A partir da manutenção desse contrato, acredito não existir, de fato, relação de


entendimento ou não, controle ou não, uma vez que estamos adentrando no campo das
afetações que, por sua vez, dispensam o entender e o controlar do entendimento. O
artista não necessita mais “controlar” – ou ter a ilusão de controle - as sensações do
observador com suas narrativas e enredos, figurações e literações que exigem, do
segundo ente, posicionar-se como um tradutor entre a representação do objeto ou do
signo e a intenção de compreensão, que seria o “resultado positivo” do encontro; tal
choque precisa apenas provocar e, no seguimento desta provocação estabelecida através
do contrato de instauração conceitual, a fruição pode acontecer efetivamente,
independente de um jogo de perguntas e respostas certas.

Neste ponto, retornamos à discussão das escolhas estéticas, linguagens técnicas e


códigos. Observa-se que, geralmente – trazendo as questões levantadas anteriormente -,
esse gesto que tanto fala (comunica) e possibilita a abertura de “novas portas” de
construção e percepção do movimento de dança, também cala (encerra) uma série de
escolhas e pré-construções que o indivíduo poderia fazer uso para potencializar as
“novas” ações. Não afirmo que tais escolhas e construções são simplesmente deletadas
da corporeidade e do pensamento, entretanto, um profundo processo de recalques
acontece e uma espécie de auto-amputação se dá em cada indivíduo.
A fim de concluir essa proposição que se apresenta apenas como uma parte muito
pequena da ampla discussão que envolve o assunto tratado, lanço a interrogação sobre
as possibilidades de, para além de compreendermos as “dualidades” movimento/gesto e
matéria/pensamento, construirmos uma dança que não necessita calar para poder falar. A
efetividade de um encontro que comunica não demanda a mutilação das materialidades e
preferências estéticas do artista e a até mesmo a virtuosidade da dança com suas
especificidades técnica, por sua vez, não necessita flutuar em um abismo de reproduções
mecânicas do movimento.

¹ O termo destruição criativa, como proposto por David Harvey em sua célebre obra da teoria social
“Condição pós-moderna”, aponta para um dilema prático do projeto modernista, com a questão de “como
poderia um novo mundo ser criado sem se destruir boa parte do que viera antes?“.

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