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O lúdico na educação infantil

e o trabalho docente

Playfulness in childhood education


and the teacher’s work

Resumo Este artigo discute a dimensão lúdica na educação infan-


til e as demandas relacionadas a ela na configuração do trabalho
docente. Considerando os parcos investimentos na implementa-
ção de uma prática educativa perpassada pelo lúdico na educa-
ção infantil, este texto busca elementos teóricos para aprofundar
a discussão em estudos de Johan Huizinga, Gilles Brougère, Eni
Pulcinelli Orlandi e Heloísa Dantas sobre o lúdico e de Dermeval Ivone Martins de Oliveira
Saviani e Acácia Zeneida Kuenzer sobre a educação e a escola na Universidade Federal do
sociedade capitalista, ressaltando suas contribuições para anali- Espírito Santo (UFES)
sar o lugar da dimensão lúdica na prática educativa e no próprio ivone.mo@terra.com.br
trabalho docente na educação infantil. Uma reflexão mais apro-
fundada sobre essa questão implica enfocar aspectos referentes
à relação entre educação e trabalho, bem como as possibilidades
de emergência e manutenção do lúdico em práticas sociais dis-
tintas na sociedade capitalista, especialmente no que concerne à
educação infantil.
Palavras-chave Lúdico; Trabalho docente; educação infantil.

Abstract This paper addresses the playful dimension in early chil-


dhood education and its demands on the teachers’ work setting.
Considering the meager investments in the implementation of an
educational practice pervaded by playfulness in early childhood
education, this paper seeks its theoretical elements on playful-
ness and on education and school within the Capitalist society on
studies by Johan Huizinga, Gilles Brougère, Eni Orlandi Pulcinelli,
and Heloise Dantas and by Dermeval Saviani and Acacia Zeneida
Kuenzer, respectivelly, highlighting their contributions to the
examination of the playful dimension’s place within the educatio-
nal practice and the teacher’s work in early childhood education.
Further reflection on this question involves focusing the rela-
tionship between education and work, as well as the possibilities
for the emergence and maintenance of playfulness in different
social practices within the Capitalist society, especially with re-
gard to early childhood education.
Keywords Playfulness; Teaching work; Childhood education.
Introdução as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

E
ste texto visa analisar as possibilidades Educação Infantil (2009).
de configuração de uma prática educati- Nessas orientações curriculares, a brin-
va na educação infantil perpassada pela cadeira destaca-se como um componente
dimensão lúdica. Para tanto, será feita uma essencial a ser valorizado pelos educadores,
discussão acerca do lúdico como um dos prin- tendo em vista as características da faixa etá-
cipais componentes do trabalho pedagógico ria das crianças atendidas e seu potencial para
na educação infantil, de algumas possibilida- a prática educativa.
des de compreensão do termo lúdico e sua Mesmo estudos produzidos a partir de
abordagem na prática educativa, bem como diferentes perspectivas teóricas destacam a
de sua relação com o trabalho docente na brincadeira como um aspecto central na in-
educação infantil. fância e um componente curricular importan-
Estudos desenvolvidos na área da edu- te da prática educativa na educação infantil.
cação infantil têm chamado a atenção para Estudos produzidos pela Sociologia da
os desafios colocados aos sistemas de ensi- Infância (SARMENTO, 2010), que têm contri-
no a partir da Constituição Federal de 1988 buído para a configuração de uma nova forma
– que estabelece que esta é um dever do de olhar para a criança, a infância e a educação
Estado, um direito da criança e uma opção de crianças pequenas, ressaltam a dimensão
da família – e da Lei de Diretrizes e Bases da lúdica no delineamento das culturas da infân-
Educação Nacional (LDBEN) de 1996 (BRA- cia. No esforço de construção de outro modo
SIL, 1996), que define a educação infantil de olhar a infância, delimitando-a como uma
como a primeira etapa da educação básica categoria geracional, a Sociologia da Infância
(CAMPOS, 2008; SILVA, 2011; CAMPOS, 2011). busca no conceito de alteridade elementos
Esses estudos apontam desafios que dizem para compreendê-la para além das noções de
respeito, sobretudo, a aspectos como: o fi- incompletude, de incompetência e imperfei-
nanciamento, o modo de organização e a ção que têm caracterizado sua abordagem, so-
função dessa etapa da educação básica; as bretudo no âmbito da Psicologia. Nessa pers-
diretrizes curriculares que melhor se ajustam pectiva, desenvolve o conceito de culturas da
ao objetivo maior da educação infantil, esta- infância, “[um conjunto estável de actividades
belecido pela LDBEN; as formas de estrutura- ou rotinas, artecfatos, valores, e ideias que as
ção das propostas pedagógicas das unidades crianças produzem e partilham em interação
de educação infantil, bem como o perfil de com seus pares” (CORSARO; ELDER, apud
professor demandado para atuar com crian- SARMENTO, 2005, p. 373), as quais têm como
ças de zero a cinco anos. Esses desafios têm eixos estruturadores a interatividade, a ludici-
desencadeado uma série de ações governa- dade, a fantasia do real e a reiteração.
mentais e mobilizado educadores compro- Alguns autores têm buscado na ma-
metidos com as questões da educação das triz histórico-cultural, sobretudo na obra de
crianças pequenas. Vygotsky e Elkonin, um suporte para aprofun-
A LDBEN determina que a educação in- dar a discussão acerca do papel do jogo no de-
fantil tem como função promover o “desen- senvolvimento infantil, bem como do lugar da
volvimento integral da criança até os 6 anos brincadeira na prática educativa na educação
de idade, em seus aspectos físico, psicoló- infantil (RAUPP; NEIVERTH, 2011; IZA, 2008;
gico, intelectual e social, complementando PEREIRA, 2008).
a ação da família e da sociedade” (BRASIL, Entretanto, a implementação, nas uni-
1996). Para isso, o trabalho pedagógico deve dades de educação infantil, de práticas edu-
voltar-se para a educação e cuidado das cativas que tomem a dimensão lúdica como
crianças, e seguir orientações gerais estabe- um elemento importante do trabalho não
lecidas pela legislação em vigor, sobretudo tem se mostrado tarefa fácil. De forma seme-

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lhante a outros autores, Iza (2008) e Pereira educativa. Sendo o lúdico uma dimensão for-
(2008) apontam que, embora os educadores temente marcada no desenvolvimento das
afirmem que a dimensão lúdica é importante crianças e potente no que se refere ao seu
no desenvolvimento infantil, não planejam aprendizado, quais as causas das dificuldades
atividades lúdicas para serem realizadas com de implementação de uma prática pedagógica
as crianças, não participam das brincadeiras perpassada pelo lúdico na educação infantil?
e jogos implementados por elas e não costu- Para tratar dessas questões, discorrere-
mam intervir nas brincadeiras das crianças, a mos, neste trabalho, sobre o próprio conceito
não ser em casos de conflitos entre elas; en- de lúdico, suas possibilidades de configuração
fim, investem pouco na construção de uma na escola e no trabalho docente, consideran-
prática educativa que tenha o lúdico como um do o contexto histórico e político mais amplo.
componente significativo do trabalho.
Campos (2008) retoma dados do Insti- Algumas possibilidades de
tuto Nacional de Estudos e Pesquisas Educa- compreensão do lúdico
cionais Anísio Teixeira do Ministério da Edu-
cação (MEC/Inep) a respeito do Censo Escolar A educadora apresenta às crianças
de 2006, indicando que, dos professores que uma gravura do livro de literatura
atuam em pré-escolas brasileiras, 52,3% têm infantil Chapeuzinho vermelho e
formação de ensino médio e 45,6% têm curso pergunta: “Que história é essa?”.
superior; quanto às creches, 60,8% dos pro- Várias vozes respondem: “É do
fissionais cursaram o ensino médio, enquan- Lobo-Mau!”. A educadora comenta
to apenas 34,0% possuem curso superior. A sobre a gravura: “Ele tá na cama da
autora destaca um nível de formação mais vovozinha fingindo que é a vovo-
precário entre os profissionais que atuam nas zinha. E quem é que tá chegando
creches. Permeada pela visão de que o atendi- perto da cama?”. Luana (4 anos)
mento às crianças nesses espaços tem como responde: “A Chapeuzinho Verme-
especificidade o cuidado, a creche, como es- lho!”. Simulando uma expressão
paço educativo, é marcada ainda por outro de medo, a educadora pergunta:
fator que dificulta a realização de um trabalho “Gente, o que será que tá acon-
pedagógico rico em oportunidades para o de- tecendo? Será que ela sabe que é
senvolvimento das crianças em suas múltiplas o Lobo-Mau?”. Karina (4 anos e 5
possibilidades: a formação inicial para essas meses) afirma: “Não sabe”, seguida
profissionais também não atende às especifi- por Ana Carla (3 anos e 2 meses),
cidades exigidas no ambiente de trabalho da que diz: “Ele tá perguntando, aí
creche, na medida em que boa parte dos cur- ele tá perguntando: ‘Vovó que …
sos atém-se ainda a um modelo tradicional de bocão…’”. A educadora a auxilia:
professor. Este fato dificulta, entre outros as- “É!!! Vovó, que boca enorme que
pectos, a preparação de um profissional para você tem!!! – e quando ela pergunta
atuar na perspectiva da proteção, do cuidado por que essa boca enorme, o que
e da educação das crianças. Dificulta também é que o Lobo-Mau fala?”. Karina
a implementação de uma prática educativa logo responde: “É pra te comer!!!”,
que considere a dimensão lúdica no desenvol- acompanhada pela educadora que
vimento dessas crianças e valorize essa mes- fala com entonação, simulando um
ma dimensão no trabalho pedagógico. Lobo-Mau: “É pra te comer!”. Esti-
Diante disso, para aprofundar essa dis- mulada pelo jogo e gesticulando,
cussão, parece-nos pertinente indagar a res- Ana Carla diz: “Vovó, vovó, por que
peito do que é o lúdico e que relação ele tem você tá com esse olhão grande?
com o desenvolvimento infantil e a prática Aí ela…”. Karina continua: “Vovó,

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pra que esse narizão grande? Pra qual, ao mesmo tempo em que é produto da
te cheirar melhor! Vovó, pra que cultura, participa ativamente das produções
esse bocão grande? É pra te comer da vida cultural, desde seus primórdios. Em sua
melhor!!!” Faz gestos representan- compreensão ampla do jogo, o autor busca
do o Lobo-Mau atacando Chapeu- elementos nos cultos religiosos, no direito, na
zinho Vermelho. Samanta esboça guerra, no conhecimento e na poesia para au-
uma expressão de medo ao ouvir xiliar na identificação das peças do quebra-ca-
Karina falar e, em seguida, dá uma beça e na montagem, ainda que provisória, da
gargalhada.1 figura que essa montagem permite entrever. O
autor conta ainda com as contribuições da re-
A cena relatada poderia ser observada flexão referente ao lúdico na filosofia e na arte.
em contextos diversos envolvendo adultos e Muitas vezes Huizinga utiliza os termos
crianças em situações de atividades lúdicas. “jogo” e “lúdico” para referir-se ao mesmo
No relato apresentado, por meio da lingua- fenômeno, não se detendo em estabelecer
gem, a educadora estabelece uma dinâmica distinções entre eles. Para o autor, o jogo
interativa que estimula a curiosidade e a ima- pode ser definido como:
ginação das crianças, as quais, excitadas com
o jogo de contar histórias, utilizam gestos, uma atividade ou ocupação volun-
expressões faciais e palavras para (re)criar ce- tária, exercida dentro de certos e
nas da história conhecida e visivelmente apre- determinados limites de tempo e
ciada por elas. de espaço, segundo regras livre-
Na área educacional, diversos autores mente consentidas, mas absoluta-
têm chamado a atenção para a relevância de mente obrigatórias, dotada de um
desenvolver práticas educativas na educação fim em si mesma, acompanhada
infantil que potencializem o desenvolvimen- de um sentimento de tensão e de
to da imaginação, da fantasia, do pensamen- alegria e de uma consciência de
to, da linguagem e da constituição do eu da ser diferente da “vida quotidiana”.
criança. Tomando como referência o evento (HUIZINGA, 1996, p. 33).
descrito, podemos indagar: em quê consiste,
afinal, a dimensão lúdica? Entre as características que delimitam
O verbete “lúdico” tem sua origem na o jogo, para Huizinga, encontram-se: a não
palavra latina ludus, que quer dizer jogo; na seriedade; a liberdade que o atravessa; cer-
atualidade, o verbete tem sido utilizado ora to distanciamento da vida real, caracterizado
como sinônimo de jogo, ora com um significa- pelo domínio da fantasia; o situar-se em uma
do que extrapola o universo do jogo, abarcan- esfera exterior àquela da satisfação imediata
do outros domínios da vida cultural. Estudos das necessidades e dos desejos, gerando um
desenvolvidos por Huizinga (1996), Brougère tipo de satisfação, de prazer, que se configura
(2002) e Orlandi (1983) trazem elementos in- no próprio exercício da atividade lúdica; sua
teressantes para a retomada da discussão so- delimitação no tempo e no espaço e o estabe-
bre o lúdico e seu lugar na prática educativa. lecimento de regras que são livremente acata-
Em Homo ludens, Huizinga (1996) aborda das pelos agentes envolvidos.
o jogo em uma perspectiva histórica, percor- Reportando-nos à cena descrita ante-
rendo diferentes domínios da cultura em mo- riormente, identificamos aspectos que ca-
mentos históricos distintos. Interessa-se em racterizam sua dimensão lúdica na atividade
tratar o jogo como um fenômeno cultural, o pedagógica desenvolvida: educadora e crian-
ças transitam entre o real e o imaginário,
Evento registrado durante a realização do projeto de
1 motivadas pela gravura do livro Chapeuzinho
pesquisa concluído “Afeto, emoção e linguagem na vermelho. Um ambiente de liberdade para
brincadeira da criança”, coordenado pela autora.

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fantasiar e estabelecer relações com o outro, terlocução com e entre as crianças permite
perpassadas por um distanciamento dos pa- a elas atuar no plano imaginário, explorando
râmetros do real, estabelece-se, sobretudo diferentes possibilidades de colocarem-se no
entre as crianças: Samanta pode manifes- jogo e de participarem de vivências afetivas,
tar ou simular medo e, em seguida, dar uma ampliando suas experiências e elaborações
gargalhada diante da encenação de Karina. acerca de práticas lúdicas construídas histori-
Em meio à fantasia, as crianças demonstram camente.
certo contentamento, ao mesmo tempo em Em uma direção um pouco distinta, Or-
que se colocam no lugar ora do Lobo-Mau, landi (1983) trata do discurso lúdico ao apre-
que quer comer a Chapeuzinho, ora desta sentar uma proposta de tipologia do discurso.
personagem, que não sabe dos perigos que a Embora a autora tematize o lúdico no âmbi-
espreitam. O jogo é possível porque as crian- to da linguagem, e mais especificamente do
ças aderem a ele espontaneamente, porque o discurso, suas considerações são relevantes
prazer que gera está atrelado à própria vivên- de forma a ampliar a compreensão sobre a
cia da atividade lúdica e por se estruturar de temática. Como critérios para construção da
forma descomprometida com os parâmetros tipologia, a autora elege: o modo como os in-
de seriedade que caracterizam outras esferas terlocutores “se consideram” na situação dis-
da prática educativa. cursiva; o grau de reversibilidade, que orienta
A configuração do jogo é possível ainda a troca de papéis entre locutor e ouvinte, e
porque educadora e crianças dominam certo a “carga de polissemia” presente na relação
“repertório lúdico”, historicamente construí- que os interlocutores estabelecem com o ob-
do, que permite à primeira criar as condições jeto do discurso.
para a emergência do jogo e às crianças iden- A partir desses critérios, a autora iden-
tificar a dimensão lúdica da atividade pedagó- tifica três tipos de discurso, que, segundo
gica, aderir a ela e atuar de maneira apropria- ela, podem não se apresentar de uma forma
da às características do jogo. pura no texto, havendo, entretanto, certa
De forma até certo ponto semelhante dominância de um deles na prática discursiva
a Huizinga, Brougère (2002) também conce- em questão: os discursos lúdico, polêmico e
be o jogo como uma produção cultural, que autoritário. O discurso lúdico, marcado pelo
se organiza de maneira diferenciada em con- prazer na tomada e uso da palavra, é “aque-
textos distintos, sendo, portanto, perpassado le em que a reversibilidade entre os locutores
por múltiplos significados. Nesse contexto, é total, sendo que o objeto do discurso se
o autor chama atenção para a existência de mantém como tal na interlocução, resultando
uma cultura lúdica – um conjunto de regras e disso a polissemia aberta” (ORLANDI, 1983, p.
de significações – de que os agentes devem 142). O que caracteriza esse tipo de discurso é
se apropriar para poder jogar. Estando o jogo a predominância da polissemia. Afirma Orlan-
sujeito às determinações da vida social, a cul- di que, no jogo de dominância, entre os senti-
tura lúdica também está, comportando certo dos possíveis
caráter dinâmico e diverso e, ao mesmo tem-
po, com certas especificidades, conforme o em um discurso lúdico, a relação de
contexto em que se configura. Essa noção dominância de um sentido com os
de cultura lúdica é interessante para pensar outros, enquanto seus ecos, se faz
as possibilidades e formas de atuação dos de tal maneira que se preserve o má-
profissionais da educação infantil na direção ximo de ecos; no discurso polêmico
de uma prática educativa perpassada pelo lú- se disputa algum sentido procuran-
dico. Na cena descrita, a educadora propõe do-se privilegiar um ou outro; no
uma atividade propícia à configuração da di- discurso autoritário se procura abso-
mensão lúdica; a maneira como conduz a in- lutizar um só sentido, de tal maneira

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que aquele não se torne apenas o tâneo, ao prazeroso, ao universo do imaginá-
dominante, mas o único. (ORLANDI, rio e, em alguns casos, à dimensão estética. A
1983, p. 151. Grifos da autora). maior parte da literatura que trata do lúdico
nesse espaço associa-o ao jogo infantil, abor-
Diante disso, o discurso lúdico coloca-se dando formas de configuração desse jogo
como uma possibilidade de ruptura, de emer- (KISHIMOTO, 1998, 2000), sua participação
gência, sempre, de outros sentidos. no desenvolvimento infantil e sua articulação
É essa possibilidade de emergência de com a prática educativa (RAUPP; NEIVERTH,
outros sentidos que vai delineando-se no 2011; PEREIRA, 2008).
transcorrer da dinâmica interativa e da alter- Na literatura específica da área educa-
nância da palavra entre educadora e crianças cional, pode-se acrescentar ainda que uma ca-
diante da gravura e das perguntas: “Que his- racterística marcante atribuída ao lúdico é o
tória é essa?” “Ele tá na cama da vovozinha potencial de aprendizado e desenvolvimento
fingindo que é a vovozinha. E quem é que que ele encerra. Nessa perspectiva, ao anali-
tá chegando perto da cama?”. Na interlocu- sar a situação lúdica descrita anteriormente,
ção que segue entre educadora e crianças, podemos destacar seu forte potencial para o
as fronteiras do real são ultrapassadas: um desenvolvimento da linguagem e da imagina-
lobo pode falar e ser confundido com a vo- ção das crianças envolvidas, tendo em vista o
vozinha; as crianças podem se colocar no lu- contexto de maior liberdade para a expressão
gar do Lobo e podem encenar um ataque a e a criação.
Chapeuzinho Vermelho. No jogo de sentidos Entretanto, ao analisar aspectos da
configurado, o que provoca medo transmuta, prática educativa nas unidades de educação
produz outro(s) sentido(s), transgride, fazen- infantil, alguns dos estudos mencionados in-
do emergir uma gargalhada. dicam que esse potencial do lúdico não tem
Na abordagem do lúdico pelos autores sido explorado pelos profissionais. Uma situ-
citados, é possível perceber alguns elemen- ação observada durante uma supervisão de
tos que se repetem: a não delimitação de estágio de alunas do curso de Pedagogia em
um objetivo exterior à própria realização da um centro municipal de educação infantil é
atividade, que se manifesta movida pelo inte- ilustrativa do que se tem constatado nos re-
resse de realização da atividade em si e não sultados de diversas pesquisas.
propriamente do que possa decorrer dela;
um distanciamento da realidade objetiva, o É hora do parquinho das crianças
que lhe confere certa liberdade de expressão do grupo IV e duas turmas estão no
e de criação a partir de parâmetros desvincu- pátio. Aproximadamente quarenta
lados do real, e o prazer que a atividade lúdica crianças, duas professoras e duas
provoca. Orlandi contribui com a discussão auxiliares de educação infantil estão
ao destacar o que chamaríamos de potencial no pátio. Algumas crianças correm
criador e “transgressor” do jogo. aparentemente sem um objetivo
Considerando esses apontamentos, re- previamente definido, outras
tomaremos, a seguir, a discussão do lúdico na disputam espaço no escorregador
prática educativa na educação infantil, situan- e em uma casinha instalada em
do o trabalho docente nesse contexto. um canto do pátio; outras, ainda,
configurando um jogo imaginário,
O lúdico e a prática educativa brincam de salão de beleza e, sen-
Na área educacional, o lúdico tem sido tadas na areia e com um baldinho
abordado frequentemente para referir-se a nas mãos, fazem de conta que es-
um conjunto de características da prática pe- tão lavando a cabeça uma da outra.
dagógica, que, via de regra, remete ao espon- As profissionais observam as crian-

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ças sentadas em diferentes bancos desenvolvimento infantil e das contribuições
espalhados no pátio, uma prática, da educação escolar para esse desenvolvi-
aliás, comum nessa instituição. Um mento (VYGOTSKY, 1984; ELKONIN, 1998).
menino aproxima-se de duas pro- O que alguns dos estudos indicam é que
fessoras que estão conversando; muitos professores da educação infantil não
diz a elas que o parquinho está cha- veem necessidade de planejar situações que
to porque não tem como brincar envolvam a brincadeira, pois consideram que
e pede a elas uma bola. Uma das essa é uma atividade que não necessita de
professoras diz que as bolas estão ensino – as crianças aprenderiam umas com
sendo usadas por outro professor as outras ou sozinhas –, ou que o professor
e recomenda à criança que brinque não deve intervir na brincadeira das crianças,
de pega-pega com os coleguinhas. a não ser quando pretende “ensinar” algum
conteúdo com essa atividade.
No evento relatado, constatamos que Há, porém, outro aspecto a ser destaca-
as profissionais não se envolvem com as brin- do, que remete à maneira como as profissio-
cadeiras das crianças, apenas observam-nas. nais relacionam-se com a dimensão lúdica. Co-
Mesmo quando um menino aproxima-se de- mentando acerca da forma como educadoras
las e diz que “não tem como brincar”, não há frequentemente reagem diante da dimensão
uma iniciativa em disponibilizar brinquedos e lúdica da motricidade infantil em momentos
materiais lúdicos, propor formas de brincar e de alimentação, Dantas (2002, p. 114) destaca:
efetivamente participar de brincadeiras com
as crianças. Basta observar cenas filmadas de
Uma breve retomada de estudos e pro- refeição em creche para se consta-
postas educativas para a educação infantil tar a diferença entre o estilo motor
evidencia que há, ainda, um longo caminho adulto e o da criança de dois anos:
a ser percorrido para que os profissionais te- uma boa parte dos seus gestos
nham uma compreensão mais aprofundada é pura expressão emocional, de
do próprio conceito de lúdico, de seu papel alegria, animação ou tristeza, exci-
no desenvolvimento infantil e das repercus- tação contagiante. Quanto às edu-
sões dessas concepções em uma proposta cadoras, são essencialmente instru-
educativa que tenha o lúdico como compo- mentais: ajudam a comer, cortam a
nente privilegiado. carne, empurram a comida para o
Discorrendo sobre o trabalho de for- meio do prato, aproximam-no da
mação continuada desenvolvido com edu- criança, limpam-na etc.
cadoras de crianças pequenas cujo foco era
sua participação nas brincadeiras de “faz de Essa tendência de comportamento das
conta”, Cerisara (2002, p. 134) deparou com educadoras manifesta-se em outras situações
uma resposta bastante comum entre essas em que o movimento da criança está em foco,
profissionais: “Como assim, brincar com as gerando, por vezes, tensão em momentos em
crianças? Brincar de mamãe e filhinho?”. que elas esperam contenção de movimentos
Estudos realizados por Pereira (2008), e silêncio, e as crianças, movidas pela ludici-
Iza (2008) e Andrade (2004) também ressal- dade, movimentam-se, correm, falam, gritam
tam o não envolvimento das educadoras nas ou dão gargalhadas. Há certo descompasso
atividades lúdicas desenvolvidas pelas crian- entre as ações das educadoras e as necessi-
ças, bem como a restrição na proposição de dades de livre expressão das crianças peque-
ações educativas perpassadas pela dimensão nas. O trabalho pedagógico não acompanha o
lúdica, o que contrasta com os achados de es- movimento das crianças e as educadoras não
tudos a respeito do papel dessa dimensão no se percebem como profissionais que, tam-

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bém por meio da atividade lúdica, podem (re) Tais considerações levam-nos a identi-
organizar o trabalho pedagógico de forma a ficar um possível desdobramento da aborda-
atender ao caráter lúdico das primeiras explo- gem do lúdico na escola: um eixo de reflexão
rações dessas crianças em relação ao próprio que se refere às formas de manifestação e de
corpo, ao movimento e à linguagem. estímulo ao jogo infantil e outro, mais amplo,
Por outro lado, quando as professoras que envolve o trabalho educativo como um
planejam atividades consideradas, por elas, todo, o que nos remete à segunda questão a
lúdicas, muitas vezes o que se percebe é uma ser debatida: o lugar do professor em relação
tendência a uma abordagem instrumental às manifestações lúdicas na escola e suas pos-
do lúdico nesse universo: usa-se o jogo para sibilidades de atuação nessa perspectiva.
ensinar um determinado conteúdo, como as Tomando como foco o trabalho pedagó-
cores, ou noções de quantidade. gico, podemos nos perguntar quais as deman-
Nesse momento, parece relevante per- das colocadas ao professor que se propõe a
guntarmo-nos acerca das demandas que o atuar em uma perspectiva lúdica, bem como
desenvolvimento de uma prática que tenha o as implicações que podem emergir de um tra-
lúdico como um componente importante co- balho realizado nessa direção.
loca à Pedagogia e ao próprio professor. Se Chamando a atenção para a ausência de
uma das principais características da atividade uma prática educativa perpassada pelo lúdico
lúdica é a não seriedade e o não compromisso nas instituições de educação infantil, Andrade
com um produto específico, para atuar nessa (2004) e Cerisara (2002) indicam, entre ou-
perspectiva deve-se desconsiderar o aspecto tros aspectos, a necessidade de investimen-
teleológico que perpassa a ação educativa e to na formação desses profissionais por uma
organizar o trabalho pedagógico na educação via que enfoque a dimensão lúdica. Andrade
infantil sem uma preocupação com as finali- (2004, p. 97) afirma que “é fundamental que
dades desse trabalho? Certamente que não. se recupere o lúdico no universo adulto, tare-
Um primeiro ponto a ser destacado no enca- fa muito mais difícil do que recuperá-lo junto
minhamento dessa discussão deve ser, então, às crianças”.
o de situar o lúdico no espaço escolar e iden- Ao tratar da dimensão lúdica no traba-
tificar as possibilidades de vivências lúdicas. lho educativo, Andrade coloca em foco o lúdi-
O trabalho pedagógico implica um con- co na própria vida das educadoras e convida-
junto de ações fundamentadas em certas -nos a pensar de que maneira essa dimensão
concepções, princípios e valores, com finali- participa de sua constituição como professo-
dades específicas; é um trabalho intencional ras e de seu trabalho.
e planejado que busca desenvolver no edu-
cando modos de ser, de pensar e de agir em O trabalho docente na educação in-
consonância com os padrões definidos por fantil e o lúdico
uma determinada sociedade, considerando- Abordar questões referentes ao traba-
-se as contradições que a constituem em lho docente e ao lúdico na educação infantil
termos de estrutura e organização social. leva-nos a inserir essa questão no contexto
Por outro lado, a dimensão lúdica faz-se pre- mais amplo das relações entre trabalho e
sente na vida do ser humano, independente- educação – tendo em vista que o trabalho do
mente da escola e do trabalho pedagógico, professor não se processa de forma desligada
embora este tenha um papel relevante na va- das questões que afetam os trabalhadores no
lorização do lúdico na vida da criança. Como modo de produção capitalista, ainda que se
ressalta Brougère (2002), no transcorrer da considerem certas especificidades das condi-
história, paulatinamente, tem-se gestado ções de trabalho desses profissionais. É pre-
uma cultura lúdica perpassada pela influên- ciso ainda problematizar o modo de esse pro-
cia de múltiplos fatores. fissional ver-se como professor que, por sua

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vez, se configura no âmago dessas relações, seus produtos, seja em sua ativida-
perpassado por formas específicas de com- de, seja, ainda, nos outros homens:
preender e exercer o trabalho pedagógico. a) os produtos de seu próprio traba-
Discorrendo sobre os fundamentos on- lho são vistos como objetos estra-
tológicos e históricos da relação entre educa- nhos, alheios; b) o trabalho, apesar
ção e trabalho, Saviani (2007) retoma postula- de ser sua própria atividade, é con-
dos elaborados por Marx e Engels a respeito siderado como algo externo no qual
da relação entre o homem e a natureza e da ele encontra não a sua realização,
produção de sua humanidade. Ao mesmo mas a sua perdição, um fator de so-
tempo em que atua sobre a natureza, o ho- frimento, e não de satisfação; c) em
mem transforma-a e transforma a si próprio: relação aos outros homens, o traba-
é por meio do trabalho que ele modifica suas lho alienado torna cada homem alie-
condições de existência e a si próprio: “Como nado por outros os quais, por sua
exprimem sua vida, assim os indivíduos são. vez, são alienados da vida humana.
Aquilo que eles sã, coincide, portanto, com
sua produção, com o que produzem e tam- Do ponto de vista objetivo, ao analisar a
bém com o como produzem. Aquilo que os alienação, o autor menciona o processo de pau-
indivíduos são depende, portanto, das condi- perização material e espiritual do trabalhador.
ções materiais da sua produção” (MARX; EN- Diante dessa relação alienada com o
GELS, 1984, p. 15). próprio trabalho, reiterados estudos indicam
Essa passagem da obra de Marx e En- que muitos profissionais da educação infan-
gels, também referenciada por Saviani, é til não se reconhecem em seu trabalho, não
bastante frutífera para a análise de aspectos acreditam nas potencialidades das crianças e
do trabalho docente na educação infantil. De- em suas próprias potencialidades para produ-
corre desse postulado que a maneira como zir uma prática educativa emancipatória; não
desenvolvem a prática educativa tem uma re- encontram alternativas e/ou não se colocam
lação estreita com a forma como se reconhe- a possibilidade de produzir outro modo de re-
cem nesse trabalho, com as expectativas que lação com seu trabalho. Alguns sofrem, adoe-
apresentam em relação a ele e com os investi- cem, não encontram sentido para o trabalho
mentos que fazem, nos âmbitos individual e/ a não ser como um meio (às vezes indeseja-
ou coletivo, para sua manutenção e aperfei- do) de subsistência.
çoamento. Na situação observada no pátio de um
Porém, a divisão social do trabalho, a centro municipal de educação infantil, em que
emergência da propriedade privada e as de- professoras e assistentes observam as crian-
mais formas de divisão que delas se originam ças, mas não se envolvem com suas brinca-
levam, no modo de produção capitalista, a deiras, mesmo quando são solicitadas a isso,
uma alteração radical na relação entre o ho- podem-se destacar características de uma re-
mem e o trabalho, modificando também a lação de alienação entre as profissionais e seu
maneira como ele se vê em relação ao próprio trabalho. As educadoras não costumam envol-
trabalho e a seu produto: cria-se uma relação ver-se com as atividades lúdicas das crianças;
de alienação entre o homem e o trabalho. permanecem sentadas enquanto as crianças
Chamando atenção para os aspectos subjeti- brincam, ainda que nem sempre tenham um
vos e objetivos pelos quais se pode analisar repertório de experiências que lhes permitam
essa alienação, Saviani (2005, p. 226) afirma: iniciar ou desenvolver uma brincadeira explo-
rando diversos recursos e possibilidades. As
pelo aspecto subjetivo, a alienação educadoras demonstram não reconhecer a ex-
consiste no não reconhecimento, ploração da brincadeira com as crianças como
pelo homem, de si mesmo, seja em parte de seu trabalho. A hora do pátio é um

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momento em que aproveitam para conversar justificativa para seu processo de alienação e
umas com as outras sobre assuntos que nem que necessitam ser apropriados por esse tra-
sempre estão diretamente relacionados com a balhador. E, diante disso, a escola desempe-
atividade executada no momento. nha um papel crucial.
Como profissionais da educação infantil, No tipo de relação que se estabelece
sua função é cuidar e educar as crianças, de- entre educação e trabalho no modo de pro-
senvolvendo uma prática educativa perpassa- dução capitalista, a escola termina por incor-
da também pelo lúdico, mas elas parecem não porar o caráter fragmentário que atravessa
se reconhecer na dimensão lúdica dessa tare- o trabalho nesse modo de produção, tanto
fa; parecem alheias à atividade lúdica desen- em seu currículo como nas formas de organi-
cadeada pelas crianças que brincam de salão zação e de gestão escolar. Um dos principais
de beleza, no canto da casinha ou que correm traços dessa fragmentação é a dissociação
pelo pátio aparentemente sem objetivo defi- entre o conhecimento teórico e a práxis,2 que
nido. Parecem, enfim, não compartilhar da di- inviabiliza a emergência de práticas educati-
mensão lúdica que o pátio inspira no próprio vas emancipatórias.
desenvolvimento de seu trabalho. Kuenzer (2005, p. 81) aponta que: “a su-
Uma perspectiva alienante na relação peração, portanto, da fragmentação no traba-
com o próprio trabalho é observada também lho pedagógico só será possível se vencida a
entre as educadoras da cena descrita por Ce- contradição entre a propriedade dos meios de
risara (2002). Os gestos instrumentais, me- produção e a força de trabalho”, se a formação
cânicos, das educadoras que alimentam as dos profissionais da educação ocorrer em uma
crianças podem ser observados ainda em ou- perspectiva alinhada com aquela da pedagogia
tros estudos já mencionados neste texto, nos emancipatória e se essa formação se concreti-
momentos em elas são cuidadas e educadas. zar articulada a outras ações que visem ao des-
Além dos aspectos referentes à formação des- mantelamento das condições materiais que
sas educadoras, é importante mencionar tam- produzem aquela fragmentação.
bém a interferência das condições de trabalho, Kuenzer afirma ainda que:
principalmente no modo como muitas delas
alimentam e higienizam as crianças: a rotina Enquanto não for historicamente
estressante de cuidar de muitos bebês e crian- superada a divisão entre capital e
ças pequenas em um curto intervalo de tempo trabalho – o que produz relações
termina por produzir, na atuação das profis- sociais e produtivas que têm a fina-
sionais, gestos mecânicos realizados apressa- lidade precípua de valorização do
damente, muitas vezes desconsiderando os capital –, não há a possibilidade de
desejos e as necessidades das crianças. existência de práticas pedagógicas
Discorrendo sobre as competências autônomas: apenas contraditórias,
para a vida social e produtiva na sociedade
capitalista, expressão da necessidade de criar 2 Tecendo comentários sobre a origem da escola,
Saviani (2007) destaca que esta surge a partir do
formas de disciplinamento dos trabalhadores lento e gradual processo de divisão do trabalho, do
de maneira a atender às demandas colocadas surgimento da propriedade privada, da divisão dos
pelo processo produtivo, Kuenzer (2005) res- homens em classes sociais e da consequente divisão
salta o papel dos processos pedagógicos. Se- da educação em dois eixos: um destinado aos que
trabalhavam e o outro destinado àqueles que, tendo
gundo a autora, a determinadas relações de tempo livre, poderiam ter sua educação organizada
produção e modos de organização do traba- em outras bases. Assim, Saviani destaca que “a
lho correspondem certos modos de vida, de educação dos membros da classe que dispõem de
valores, crenças, atitudes e comportamentos, ócio, de lazer, de tempo livre passa a organizar-se
na forma escolar, contrapondo-se à educação da
que, em certa medida, constituem uma visão maioria, que continua a coincidir com o processo de
de mundo que apresenta ao trabalhador uma trabalho” (2007, p. 156).

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cuja direção depende das opções po- (o lúdico) em relação às práticas so-
líticas da escola e dos profissionais da ciais em geral, no tipo de sociedade
educação no processo de materiali- em que vivemos, contrasta forte-
zação do projeto político-pedagógi- mente com o uso eficiente da lin-
co. (2005, p. 90-91; grifos da autora) guagem voltado para fins imediatos,
práticos etc. […] eu diria que não há
lugar para o lúdico em nossa forma-
Em suas considerações acerca das rela- ção social. O lúdico é o que “vaza”, é
ções entre educação e trabalho em socieda- ruptura. (ORLANDI, 1983, p. 143).
des caracterizadas pelo modo de produção
capitalista, Kuenzer chama atenção para a Tomando como base as considerações
impossibilidade da existência de práticas pe- de Saviani, Kuenzer e Orlandi, bem como o
dagógicas autônomas, que se constituam – e caráter teleológico da educação escolar, po-
se mantenham – para além dos interesses vol- demos concluir que não haveria espaço para
tados para a acumulação de capital, embora a consolidação de uma prática educativa
possam emergir, no bojo dessas práticas, con- propriamente lúdica na escola de socieda-
tradições que, em algum momento, contri- des capitalistas, uma vez que isto implicaria o
buiriam para a emergência de processos sig- confronto e o desmantelamento dos pilares
nificativos de desmoronamento das bases do do modo de produção baseado no acúmulo
modo de produção capitalista. Para a autora, de capital. O lúdico apresenta um potencial
a pedagogia emancipatória “só existe como de contestação, de ruptura e de criação que
possibilidade, a se objetivar em outro modo pode fugir ao controle dos interesses da acu-
de produção, em que se estabeleçam as con- mulação do capital.
dições de igualdade, unitariedade e justiça so- O fato, porém, de os estudos de Savia-
cial” (KUENZER, 2005, p. 94). ni e Kuenzer destacarem o que chamaríamos
De que maneira essas considerações de uma incompatibilidade entre a função da
sobre trabalho, educação e pedagogia con- escola na sociedade capitalista e o desenvol-
tribuem para aprofundar a reflexão sobre a vimento de uma prática educativa emancipa-
dimensão lúdica na educação infantil e o tra- dora que tenha o lúdico como uma dimensão
balho docente? importante não significa que não seja possível
As considerações apresentadas por encontrar certas práticas nas escolas caracte-
Saviani (2007) e Kuenzer (2005) apontam in- rizadas pela dimensão lúdica, ainda que pon-
compatibilidades entre uma prática educativa tuais e não consolidadas. Como diz Kuenzer,
que tenha como eixo a dimensão lúdica e o há possibilidades de “práticas contraditórias”
trabalho pedagógico na sociedade capitalista, e Orlandi complementa: o lúdico é “o que
sobretudo pelo descompromisso do lúdico vaza”, é “ruptura”. No contexto atual, é no
em relação à produção de resultados. Ainda espaço das contradições e das possíveis rup-
que a atividade lúdica possa ter repercussões turas que consideramos a possibilidade de
interessantes no desenvolvimento infantil, o configuração de práticas educativas perpas-
caráter produtivo, pragmático, não é o que sadas pelo lúdico na educação infantil.
caracteriza essa atividade. É importante ressaltar que, independen-
Em uma direção semelhante à dos estu- temente da intencionalidade do trabalho pe-
dos de Saviani e Kuenzer, as considerações de dagógico, nas margens, naquilo que escapa à
Orlandi, ao reportar-se ao discurso lúdico, tam- ação pedagógica, práticas culturais perpassa-
bém apontam a impossibilidade de sua consoli- das pela dimensão lúdica sempre podem se
dação no atual contexto histórico e social: delinear na escola, em diferentes espaços, en-
volvendo sujeitos distintos. O que problemati-
Em uma formação social como a
zamos aqui é a possibilidade de consolidação
nossa, o lúdico representa o desejá-
vel. O uso da linguagem pelo prazer
do lúdico no trabalho pedagógico, constituído

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por um conjunto de ações planejadas e imple- para os educadores. Constatamos que uma
mentadas pelo professor, em uma perspectiva reflexão mais aprofundada sobre essa ques-
de relação com o próprio trabalho, perpassa- tão implica enfocar também questões refe-
da, ela também, pela dimensão lúdica. rentes à relação entre educação e trabalho e
Consideramos, como ressaltam Saviani às possibilidades de emergência e manuten-
e Kuenzer, que é possível atuar nas contradi- ção do lúdico em práticas sociais distintas na
ções e nas brechas que o próprio sistema pro- sociedade capitalista.
duz e, assim, lutar pela implementação de uma Concordando com Kuenzer acerca das
prática educativa atravessada pelo lúdico, tan- possibilidades de existência de práticas peda-
to no que se refere ao trabalho desenvolvido gógicas autônomas contraditórias na socie-
com as crianças como na própria prática pro- dade capitalista, consideramos que, na área
fissional dos educadores. Ou seja, é possível educacional, ter como projeto o desenvolvi-
perseguir a construção de uma prática educa- mento de uma prática educativa perpassada
tiva em uma perspectiva lúdica – e de relação por uma dimensão lúdica implica investir nas
dos educadores com o próprio trabalho – no contradições que se delineiam no espaço es-
quotidiano da prática educativa em meio às colar e que podem contribuir para a emergên-
contradições que atravessam a dinâmica das cia de novos modos de relações sociais e de
relações entre a escola e a sociedade. produção, bem como para a configuração de
Nesse contexto, colocar em foco o tra- uma pedagogia emancipatória.
balho docente em sua relação com o lúdi- Nesse contexto, é relevante que os edu-
co leva à discussão sobre a formação, tanto cadores tenham compreensão de seu papel
inicial como continuada, de professores e no desenvolvimento infantil e, mais que isso,
também à relação desses educadores com o invistam na configuração de uma prática edu-
próprio trabalho, que emerge em uma pers- cativa que tenha o lúdico como um aspecto
pectiva alienante no seio da sociedade capita- importante; uma prática que se destaque por
lista. Entendemos que a luta pela superação conceber a criança como um sujeito histórico,
dessa condição alienante demanda, além de completo em suas possibilidades de existir e
políticas de formação e valorização profissio- com direito ao pleno desenvolvimento de suas
nal, uma percepção mais ampla por parte dos potencialidades, por meio do acesso às amplas
educadores de sua condição como parte de possibilidades oferecidas pelo contexto cultu-
uma categoria profissional e da necessidade ral e histórico no qual está inserida; uma prá-
de fortalecer formas de organização e articu- tica assentada em um modo de relação entre
lação com outros movimentos sociais, de ma- o professor e seu trabalho, caracterizada tam-
neira a alterar as bases que produzem a con- bém por uma perspectiva lúdica que o motive
dição alienante do trabalho na educação e em a conhecer as crianças, a perceber suas neces-
outros setores. Nesse percurso, pensar o tra- sidades, a interagir e brincar com elas; enfim,
balho docente permeado por uma dimensão que lhe possibilite o desenvolvimento de uma
lúdica delineia-se como uma possibilidade. prática educativa emancipatória.
A construção de um modo de relação do
Considerações finais professor com seu trabalho nessa direção de-
Embora muitos estudos tenham sido manda um investimento que é pessoal, mas,
produzidos nas últimas décadas a respeito do sobretudo, radicalmente social e político –
jogo na área educacional, há ainda questões que envolve a ação organizada dos professo-
extremamente relevantes a serem debatidas, res como categoria profissional, articulada a
sobretudo quando se enfocam a dimensão lú- outros setores da sociedade civil – no sentido
dica e a atividade docente. Este trabalho bus- de produzir uma prática educativa emancipa-
cou problematizar a dimensão lúdica como tória, em que o lúdico emirja inexoravelmente
eixo da prática educativa na educação infantil como parte da práxis e, consequentemente,
e as consequentes demandas, especialmente da constituição daqueles que dela participam.

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Dados da Autora:

Ivone Martins de Oliveira


Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Graduada em
Pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas
(1985), mestrado em Educação pela Universidade Estadual de
Campinas (1994) e doutorado em Educação pela mesma
Universidade (2001). É professor associado II da Universidade
Federal do Espírito Santo, Centro de Educação.

Recebido: 04/04/2012
Aprovado: 11/02/2014

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