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FICHAMENTO

FORTES, Gabriel Barroso; MORAES, Filomeno. Federalismo e democracia. Revista de


informação legislativa: RIL, v. 53, p. 199-226, jul./set. 2016, Disponível em:
<http://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/53/211/ril_v53_n211_p199>.

Nº DA
ANOTAÇÃO E TRECHOS E EXCERTOS COMENTÁRIOS
PÁGINA
Não obstante sejam instituições políticas de
Para os autores, existe, no
naturezas distintas, sua adoção simultânea no
mínimo, uma aproximação
cenário mundial revela alguma aproximação,
cronológica entre as ideias de
ao menos de ordem cronológica, que se
federalismo e democracia.
acentua, com maior destaque, após a Segunda
Identificam o pluralismo como
200 Guerra Mundial, a partir de quando
ideia central desenvolvida pelos
federalismo e democracia tomaram assento na
dois conceitos, sobretudo face a
maioria dos sistemas políticos. […] Assim, a
necessidade de superação dos
marca do pluralismo destacou-se como ideia
regimes totalitários vigentes no
central das tendências normativas de
período imediatamente anterior.
reformulação estatal.
Mas essa nova configuração sociopolítica
pressupunha – ou demandava – maior
aproximação entre povo e poder, numa
Em outras palavras, o modelo de
perspectiva de tentar evitar a centralização do
democracia representativa
espaço político, de modo a descentralizar,
encontra seus limites. Para superá-
200 democratizar, legitimar as decisões nacionais
los, demanda-se uma maior
– refreando os desvios inerentes às relações
participação do “povo” nas
representativas. Desse modo, a postulação por
decisões políticas.
um sistema democrático de participação – não
apenas de representação – passa a ganhar
maior destaque.
200 Acentuaram-se os movimentos em prol da Então, se para conferir maior
autonomia política das localidades e das legitimidade às decisões nacionais
diferentes regiões, principalmente em Estados é preciso descentralizar, os
que contemplam populações com identidades movimentos “localistas” têm a
históricas distintas […]. Ademais, sob esse importância de aumentar o relevo
influxo de localismo, a descentralização das manifestações políticas de
federativa do Estado ainda revelaria cada região, de modo que
supostamente alguma potencialidade para participem da formação da
acrescer condições de eficácia e adaptação de vontade do “todo” – fomentando a
ações e políticas públicas de natureza “diversidade na unidade”
socioeconômica e cultural. mencionada pelos autores.
Contudo, a expansão do federalismo também
se revelou adequada no contexto dessa nova
perspectiva sociocultural, devido à sua
capacidade estrutural de fomentar […] a

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diversidade na unidade.
Seria possível encontrar alguma relação
A questão que o artigo intenta
201 político-institucional direta entre democracia
responder.
e federalismo, além da coincidência moderna?
201 A democracia na contemporaneidade
Não se pode desprender da ideia-chave de que
a democracia costuma significar “identidade
entre governantes e governados, entre sujeito
e objeto do poder, governo do povo sobre o
povo” (KELSEN, 2000, p. 35).
Essa identidade vinha sendo traduzida como Por mais que a democracia se
representação política, por meio do exercício desenvolva em cada lugar sob as
do direito de voto, do processo eleitoral […]. particularidades locais, não se
Para muitos autores, essa modalidade de pode abandonar a ideia central
participação já não se apresenta suficiente que a caracteriza, a qual, segundo
para qualificar/consolidar o que se tem Kelsen, é a “identidade entre
exigido numa democracia (HERTEL, 2007, p. governantes e governados”. Neste
114-115). aspecto, a mera representação
201 A ideia mesmo de cidadania passou a política não seria suficiente para
enfeixar, na verdade, “um conjunto de direitos satisfazer esta condição. Seria
e deveres relacionais à liberdade, à igualdade necessário, para implementação
e à justiça, pressupondo exatamente a de uma democracia de fato, a
possibilidade de interferência, na geração de participação direta – ou a mais
normas jurídicas, dos seus próprios direta possível dentro do contexto
destinatários (MARTINS, 2007, p. 34). Por local – dos destinatários da norma
isso, tem-se reconhecido que o funcionamento na sua produção (mesmo como
do regime democrático deveria ser, cada vez uma concretização da cidadania).
mais direto, fundado na implantação dum
efetivo estado de “bem-estar social”, que
fomentasse a difusão de virtudes públicas, e a
instituição de instrumentos de participação
(AGRA, 2005, p. 77).
Do que foi exposto até aqui, a
democracia demanda uma
[…] o acesso aos mecanismos públicos de participação dos cidadãos de
tomada de decisão e de mediação/negociação forma cada vez mais direta na
sempre foi – principalmente, nos países construção da ordem jurídica de
201 “subdesenvolvidos” – privilégio de elites. uma sociedade. Diante do fato que
[…] Parece mesmo irrefreável, então, a busca o acesso aos canais de discussão e
de abertura política por meio da inclusão, se é criação normativa é “privilégio
em democracia que se pensa. das elites”, essa demanda é, antes
de mais nada, demanda por
inclusão no processo político.
202 Juarez Freitas (2011) resume três razões – O autor ressalta as razões
“principais” – que explicariam a tendência ou apresentadas por Juarez Freitas
preferência pela consolidação dum regime para defesa de um regime
participativo. […] a democracia participativo:
representativa não é prejudicada por essa 1) A democracia representativa
proposta, nem sequer enfraquecida, mas, ao não sairia enfraquecida, senão o
contrário, tende a ser arejada e fortalecida contrário, seria fortalecida pela

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pela atuação popular. […] o sistema
representativo, ao que tudo indica, sozinho
não levará a termo qualquer reforma política atuação popular;
séria – tarefa que demanda a pressão vigorosa 2) o sistema representativo não é
da população. […] todo poder político precisa capaz de produzir a reforma
ser reequacionado de maneira responsável, e a necessária para aprofundamento
responsabilidade mostrar-se-ia inversamente da democracia por meio da maior
proporcional à delegação de poderes. participação popular na tomada de
Parece certo, então, que a tendência dos decisões;
preceitos da democracia e do 3) quanto mais poderes são
desenvolvimento social aponta para a delegados aos representes, menos
participação popular, ao menos pela estes se tornam responsáveis por
“combinação entre a democracia seus atos.
representativa e as várias expressões de
democracia direta” (BENEVIDES, 2009, p.
726).
Ademais, os mecanismos do poder
democrático permitiriam a necessária
Além do valor “participação”, há
compreensão de outro fenômeno sociopolítico
também o valor “pluralismo”, o
atual: o pluralismo, que traduziria uma força
qual se refere ao respeito às
202 motriz ideológica capaz de edificar o
particularidades e singularidades
equilíbrio entre as varias tensões, conciliar a
dos cidadãos e dos respectivos
sociabilidade e o individualismo, e
grupos sociais.
administrar os antagonismos (ROBERT,
2006, p. 228).
[…] os novos paradigmas para o sistema
político democrático sinalizariam, antes de
A síntese entre os dois trechos
tudo, a imbricação entre pluralismo e
acima destacados e o
202 participação.
desenvolvimento da questão
[…] O que se busca, então, é averiguar se
inicial proposta pelos autores.
esses dois preceitos podem ter relação direta
com a doutrina ou teoria do federalismo.
203 Norberto Bobbio (1994, p. 28) lembra que a Os autores dão relevo à ideia de
configuração do regime democrático implica Bobbio, segundo a qual “o regime
duas contenções: tanto a negação do poder democrático implica duas
autocrático quanto a negação do poder contenções” (do poder autocrático
monocrático […]. e do poder monocrático).
A negação do poder autocrático, certamente, Para impedir o primeiro, deve-se
pressupõe que “governantes e governados” estimular a participação dos
compartilhem a prerrogativa de confabular as cidadãos; para impedir o segundo,
decisões sobre a “coisa pública”, o que seria necessário distribuir poder,
envolveria, numa renovada perspectiva socio descentralizar o espaço decisório.
´política, a participação efetiva dos cidadãos,
que deveria ser substancial e inclusiva – não
meramente retórica. […] Para a segunda
negação (da monocracia), seria possível
encontrar alguma resposta na ideia de
distribuição do poder, que é característica
dum sistema pluralista, ou seja, na noção de
pluralismo político. A concentração do espaço

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decisório, afinal, retiraria a legitimidade de
decisões mais abrangentes.
203 Federalismo, unidade e diversidade
É comum que estudiosos do tema afirmem
haver ligação (estreita, até) entre federalismo,
203 pluralismo e participação. […] Ainda assim -
parece imprescindível delimitar as relações
entre tais conceitos.
O advento do constitucionalismo – na
experiência norte-americana, destacadamente
– foi estabilizado pela adoção de três
parâmetros fundamentais de controle do
poder político-estatal: o federalismo, a
O federalismo, relembram os
separação de poderes e os direitos
autores, foi um dos elementos
fundamentais (BONAVIDES, 2007, p. 183-
utilizados pelos constituintes
184). […] essas três marcas serviriam […]
norte-americanos para assegurar
como limitação à concentração de poder e,
que o governo central não se
assim, como resguardo contra o autoritarismo
convertesse em um governo
[…].
204 autoritário. Destaca que a
Madison (HAMILTON, 1984, p. 419) […]
descentralização territorial do
destacava que da distribuição de poderes por
poder teria função similar à
meio da organização dum sistema federativo
distribuição orgânica do poder
decorria uma “dupla segurança” para os
(separação de poderes), limitando
“direitos do povo”, visto que, assim como
o poder central e possibilitando o
ocorreria pela separação orgânica de poderes
controle de uns entes pelos outros,
(Executivo, Legislativo, Judiciário), as duas
esferas de governo que comporiam o Estado
federal poderiam se controlar mutuamente, ao
mesmo tempo em que cada uma seria
controlada “por si mesma”.
Juristas e cientistas políticos parecem, assim,
identificar na distribuição de poder que
decorre do federalismo “o freio mais eficaz Retorno da ideia de que o
contra o abuso de poderes por parte do federalismo é um instrumento de
Governo central e a mais sólida garantia controle do poder e,
204 contra os perigos da ditadura” (BOBBIO; consequentemente, possui
MATTEUCCI; PASQUINO, 2009, p. 481), e potencial de evitar a conversão do
o mecanismo institucional capaz de tornar o poder político em um poder
processo político “mais transparente, mais autoritário.
balanceado e mais controlável” (BARACHO,
2000, p. 44).
É assim, afinal, que conclui Dircêo Torrecillas
Ramos (2010, p. 722):
Com a descentralização do poder
A descentralização divide territorialmente o
político, os governados possuem
poder e, ao lado da divisão funcional e dos
maior proximidade (física,
205 direitos e garantias, constitui-se como
inclusive) com os governantes, o
limitação do poder. É, ainda, um dos critérios
que pode ser um forte instrumento
de divisão do poder, geograficamente. Como
de controle.
corolário, temos uma aproximação entre
governo e governados.

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Com efeito, quando decisões são tomadas
numa instância deliberativo-executória que se
encontra próxima da realidade daqueles que a
elas estarão sujeitos, parece existir maior
probabilidade de que o “poder” seja exercido
de modo “democrático” (BASTOS, 1998, p. Os autores ressaltam que
285). […] não parece equívoco aduzir, nesse governos autoritários/autocráticos
panorama, que a construção dum governo não prescindem de uma estrutura
autoritário passaria, sem dúvida, pela política centralizadora. Sendo
205 centralização de poder (BASTOS, 1998, p. assim, seria natural que a
286). […] como observa Jorge Miranda descentralização política e/ou o
(2007, p. 314): ‘Um poder autocrático é um federalismo sejam mecanismos de
poder fortemente centralizado: daí a proteção do sistema político
subsistência apenas no Estado unitário ou a contra o autoritarismo.
redução do federalismo a mera fachada. Um
poder democrático e liberal propenderá a
acolher a descentralização ou o federalismo
[…] uma espécie de separação de poderes de
âmbito territorial.
205-206 No âmbito estatal, quando ocorre a A descentralização dos centros de
centralização política, o poder tende a ostentar decisão política é, para além de
caráter nacional (“homogêneo”). Por outro um postulado básico do
lado, a opção pela multiplicação dos centros federalismo, um mecanismo para
de decisão, inerente ao federalismo, permitiria concretizar o ideal democrático,
que o processo político fosse realizado uma vez que divisões sociais no
dalguma maneira mais dinâmica interior do território do Estado
(“heterogênea”). podem gerar um descompasso
[Citando KELSEN]: […] Para diminuir a entre a vontade dos integrantes
possível contradição entre o conteúdo da deste segmento em relação à
ordem jurídica e a vontade dos indivíduos a vontade geral. Se a democracia
ela sujeitos, para que se chegue o mais pressupõe que a ordem jurídico-
próximo possível do ideal de democracia, política derivará da vontade do
pode ser necessário que, sob certas “povo”, admitir a produção de
circunstâncias, certas normas da ordem ordens jurídicas parciais,
jurídica sejam válidas apenas para certos aplicáveis somente a um território
territórios parciais e sejam criadas pelo voto menor dentro do território estatal,
majoritário dos indivíduos que vivem nesses poderá corresponder à
territórios. Com a condição de que a concretização de um postulado
população do Estado não possua uma democrático.
estrutura social uniforme, a divisão territorial
do Estado em províncias mais ou menos
autônomas […] pode ser um postulado
democrático.
O federalismo, ou melhor, a descentralização
federativa, assim, surgiria como potencial
mecanismo para promoção das adaptações
normativas à diversidade social, de modo a
tornar adequada e legítima a figura e a
atividade estatais. Por sua vez, a autonomia
das unidades políticas regionais – conceito-

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base do Estado-federal – constituiria um
mecanismo institucional de limitação ao
centralismo nacional e permitiria, ao mesmo
tempo, essa vinculação da ordem geral ao
particularismo local. […] permite, por
exemplo, a eleição de políticas públicas
adequadas às demandas de cada realidade
social (BERNARDES, 2010, p. 70-71).
É possível notar, portanto, que o federalismo O constitucionalismo moderno
acaba retomando o objeto e o objetivo do nasce com a ideia de limitar o
constitucionalismo moderno, ao trabalhar as poder do Estado. O federalismo,
ideais de limitação do poder político e de por si só, é uma ferramenta para
206
participação na construção e execução desse consecução deste objetivo – e
poder, numa tendência de realce da pode propiciar maior legitimação
legitimação democrática e da integração democrática no que diz respeito às
social (BERNARDES, 2010, p. 45). políticas implementadas.
206 Federalismo como democratização do poder
[…] a descentralização territorial apresentaria
justificações de ordem prática e política. […]
o contato mais estrito com as “autoridades”
locais – e não com os “representantes” do
poder central – proporcionaria maior
compreensão do campo de atuação das esferas Daqui para frente, os autores vão
públicas, “além de facilitar o atendimento das trabalhar com a ideia de que a
demandas sociais reprimidas” proximidade espacial entre os
(ZIMMERMANN, 2005, p. 15). Além disso, governantes e governados é um
o contrapeso que a autonomia local impinge à mecanismo de aperfeiçoamento da
tendência homogeneizante da “maioria democracia. Além disso, um
207 política” nacional permitira que as populações elevado grau de autonomia local
de distintas regiões recebessem o tratamento permitiria que regiões específicas
jurídico-político mais adequado, decidissem seus próprios destinos,
principalmente se lhes é resguardado o direito de modo que as políticas que
de participar das formulações políticas que desenvolvam esteja menos sujeita
lhes dizem respeito […]. à vontade de indivíduos que não
Nesse sentido, seria imprescindível que a integram a comunidade local.
autonomia reconhecida às comunidades
pudesse protegê-las da imposição ou
neutralização institucional, conferindo-se à
sociedade local a prerrogativa de ditar o seu
próprio destino.
[…] ao grau de autonomia local para decisão
Por “práticas homogeneizantes”
e execução de matérias políticas sensíveis
deve-se entender a imposição de
corresponderia, proporcionalmente, maior
uma só política para todo o
controle sobre práticas homogeneizantes, até
território liderado pelo poder
mesmo porque os atores políticos que se
208 central, o que passaria “por cima”
encontram mais próximos da realidade local
das perspectivas locais. Por outro
dos cidadãos é que poderão melhor
lado, os atores políticos locais
desenvolver as engrenagens estatais para
estariam mais aptos a refletir as
atender ao interesse popular (REVERBEL,
demandas da população.
2012, p. 38).

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[…] parece impraticável não se enxergar na
autonomia política pertinente ao federalismo
alguma resposta adequada para as demandas Se, contemporaneamente, como
contemporâneas. […] Como resposta, então, visto, existe a demanda pela maior
emerge essa ideia de autonomia local, para participação popular nas decisões
208 legislar sobre matérias de importância para políticas, a fim de conferir maior
aquela sociedade em particular, o que também legitimidade a essas decisões, o
corresponderia a “um maior controle sobre o federalismo seria um instrumento
centralismo e arbítrio estatal” (MORAES, A. para concretizar essa demanda.
2010, p. 160). Nesse sentido, caminhar-se-ia
para um sistema de democracia local.
[citação] Entendemos que o federalismo deve
ser compreendido a partir da noção de
pluralismo defendida por Habermas, que se
apresenta tanto como defesa das concepções
individuais de vida digna, como defesa das
Aqui, repete-se a ideia da
várias formas de identidades sociais e
importância da proximidade
coletivas. Também entendemos que o
geográfica entre governantes e
federalismo é concretizado quando da
governados. A proximidade do
organização dessa nova sociedade e vai
aparelho burocrático estatal dos
melhor permitir dar vazão à concepção de
cidadãos tende a oportunizar a
democracia procedimental da sua Teoria do
eles maior participação nas
209 Discurso (BERNARDES, 2010, p. 17).
decisões políticas (“programas e
De fato, porque se encontra “mais próximo”
atividades governamentais”) –
dos cidadãos, é factível que o aparato
isso, ao mesmo tempo que poderia
burocrático local possa oportunizar maior
fortalecer a ideia de democracia
participação popular nos programas e
deliberativa de Habermas, seria
atividades governamentais (SANTIN, 2010,
uma decorrência da própria
p. 425), o que configuraria uma das principais
estrutura do federalismo.
“vantagens” – figurando, aliás, como uma
decorrência – do processo de descentralização
federativa (ZIMMERMANN, 2005, p. 152).
A deliberação política, assim, encontraria no
espaço local, autônomo, sua factividade.
[…] essa cidadania democrática, pluralista e Aqui, já se demonstra que a
participativa, que emerge na institucionalização formal do
contemporaneidade, poderia retirar da federalismo não bastará para a
sistemática federativa alguma “vantagem aproximação do sistema com o
instrumental” para sua efetivação. E isso ideal democrático: é necessária a
ocorrerá, destaca Wilba Bernardes (2010, p. criação de canais que permitam a
209
81), se a descentralização democrática do participação da população na
federalismo for aquela que permite chamar a formulação das decisões políticas,
sociedade para participar das decisões de modo a fazer com que os
políticas, criando o espaço público em que os cidadãos sintam-se, também,
cidadãos conseguem fazer-se destinatários e autores dos destinos
autores de suas próprias decisões. governamentais.
209 Inegavelmente, o regime democrático Sim, pois, em tese, o sistema
funciona de acordo ccom duas funções federativo permite maior
estritamente conexas: legitimação e controle participação popular nas decisões
(PEREIRA, 2010, p. 32-33). E o sistema políticas (legitimação) e a

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proximidade com o aparelho
estatal (do qual a população
federativo parece oferecer bases adequadas
participa ativamente) permitiria
para tais finalidades […].
uma fiscalização de melhor
qualidade (controle).
[…] o autogoverno local aparece como a
esfera pública com condições para
participação e empoderamento sociais, na
qual podem ter lugar os instrumentos
institucionais de captação e solução das
demandas públicas – como no exemplo de
Conselhos municipais, no Brasil – cuja
natureza passaria a ser “democrática”, visto
que em seu campo de atuação formam-se
Exemplo que concretiza o que foi
209-210 fóruns adequados ao debate popular e, nesse
dito acima.
sentido, permitiriam a instauração de
procedimentos de gestão participativa
(FEITEN et al, 2010, p. 284). […] Nesse
diapasão, a descentralização do federalismo,
por “aproximar” cidadãos e poder estatal,
facilitaria a participação e fiscalização social,
de modo a “dificultar” decisões desviadas ou
autoritárias (ZIMMERMANN, 2005, p. 158-
159).
[citando BOBBIO, 1997, p. 88): Ao lado e
acima do tema da representação, a teoria do
governo democrático desenvolveu um outro
tema estritamente ligado ao poder visível: o
tema da descentralização entendida como
revalorização da relevância política da
Retoma-se a ideia da proximidade
periferia com respeito ao centro. Pode-se
“espacial”, como mencionado por
interpretar o ideal do governo local como um
Bobbio. Vê-se a importância da
ideal inspirado no princípio segundo o qual o
“revalorização da relevância
poder é tanto mais visível quanto mais
política da periferia com respeito
próximo está. De fato, a visibilidade não
210 ao centro”, porquanto permita
depende apenas da apresentação em público
maior controle, como j´visto
de quem está investido do poder, mas também
acima, e legitimidade (que, na
da proximidade espacial entre o governante e
perspectiva de Kelsen, estaria
o governado.
diretamente ligada à liberdade dos
[…] Assim, ao se afirmar – retomando Kelsen
cidadãos).
(1992, p. 278) – que a liberdade dos cidadãos
é diretamente proporcional à sua participação
na construção das decisões a que se sujeitam,
vê-se que o federalismo, na perspectiva de
autonomia local, ofereceria bases para
execução desse postulado.
210 Participação popular e pluralismo político
211 [citação] Pluralismo evoca positivamente o Por pluralismo, portanto, deve-se
estado de coisas no qual não existe um poder entender a contraposição a um
monolítico e no qual, pelo contrário, havendo estado de poder “monolítico”,

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muitos centros de poder distribuídos territorial
e funcionalmente, o indivíduo tem a máxima
possibilidade de participar na formação das
deliberações que lhe dizem respeito, o que é a
quintessência da democracia (BOBBIO, 1994,
p. 22).
Nesse diapasão, essa autonomia política das
comunidades, que é da essência do sistema
federativo, representaria o espaço,
constitucionalmente delimitado, em que
como descrito por Bobbio. A
ocorre primordialmente o autogoverno
descentralização política contribui
(AGRA, 2008, p. 28) […].
sobremaneira para este ponto,
Um exemplo disso estaria no estudo realizado
porquanto permita que as
por John Dinan (2012) acerca dos avanços
unidades infranacionais tenham
que a autonomia local pode lograr, no âmbito
autonomia e possam, assim,
do constitucionalismo “infranacional”, para
controlar o poder central a partir
contemplar mecanismos de participação
do exercício do poder local. Para
popular. Segundo o autor, a tendência
tanto, critica-se a implementação
majoritária em Federações que não se pautam
de um “paralelismo rígido” entre
pelo paralelismo rígido entre as Constituições
as constituições locais e a
regionais e a federal – o que não é o caso do
nacional, porquanto isso abra
Brasil, por exemplo, onde as primeiras são
pouco espaço para a autonomia
praticamente réplicas da segunda – é permitir,
regional.
em âmbito local, que os cidadãos
desempenhem papel mais direto no governo,
prevalecendo maior conjunto de mecanismos
democráticos do que em nível nacional
(DINAN, 2012, p. 13).
[…] Por isso, afirma Zimmermann (2005, p.
76) que constitucionalismo e federalismo
identificam-se, porquanto desenvolvidos
como teorias ou instituições políticas voltadas
para a delimitação do poder.
Pode-se, então, reconhecer que o federalismo
211 oferece “vantagens” instrumentais à
democracia?
[…] Na verdade, a construção de regras, para Para os autores, então, a própria
que seja legítima, deveria ser operada por um concretização da democracia
processo democrático no qual haja o deliberativa não vai prescindir de
tratamento racionalizado e deliberado dos que o debate seja realizado em
problemas reais da sociedade (HABERMAS, âmbito local. Tanto o aspecto da
1997, p. 47). eficácia quanto da legitimação do
212 Assim, a democracia deliberativa, orientada direito estariam ligados à
principalmente pelo pensamento de Jürgen autonomia regional e à
Habermas, seria aquela que emerge na busca proximidade dos cidadãos com o
por eficácia e legitimação do direito, no aparelho estatal, conforme visto
panorama atual. […] como visto, não parece acima.
concebível a efetivação duma democracia
deliberativa que não aconteça no espaço local.
212 Como se pode ver, então, o federalismo

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parece conter uma chave para abertura dos
caminhos da participação popular exequível,
que permita ao povo atuar de maneira direta e
deliberar juntamente com os agentes
representativos sobre as decisões públicas, no
mesmo espaço social onde todos convivem e
onde os resultados poderão ser vivenciados.
Primeiramente, é necessário compreender a
diversidade política dentro da Federação
como complemento inerente ao policentrismo,
no sentido de que, se existem dois ou mais
Ou seja: o policentrismo
governos com poderes próprios, é porque se
representa a existência de centros
entende que poderão exercer políticas
de poder distintos, cada um deles
distintas (CAMINAL, 2002, p. 169). Assim, a
com competências distintas para
essência desse federalismo democrático
executar suas políticas. Além de
estaria na possibilidade de contrariedade ao
213 elevar o grau de autonomia do
sentido majoritariamente dominante numa
ente federado, possibilita que este
sociedade nacional (BERNARDES, 2010, p.
tenha uma postura de oposição em
51), também aí aparecendo a ideia de
relação ao ente nacional,
oposição política como função decorrente do
concretizando assim a ideia de
pluralismo, da qual deriva o direito de
pluralismo.
discordar, fiscalizar e buscar a alternância
governativa, condições ínsitas à democracia e
imprescindível à consolidação da cidadania
(MORAES, F., 2010, p. 150).
Ora, se maior pluralismo deverá
[…] se a relação entre pluralismo e
corresponder a maior qualidade da
democracia é mesmo inata, qualquer
democracia, e se o federalismo
tratamento jurídico-político que interfira –
permite um “pluralismo
positiva ou negativamente – em um desses
214 institucional” entre os entes
preceitos, consequentemente, afetará o outro.
federados, conclui-se que o
Seria justamente nesse contexto, todavia, que
federalismo seria, de fato, um
a teoria do federalismo revelaria sua
instrumento apropriado para a
pertinência.
realização democrática.
214 Federalismo democrático
214 De acordo com o que apontam Bobbio, O federalismo seria uma maneira
Matteucci e Pasquino (2009, p. 476), as de se contrapor à tendência
transformações pelas quais passou o Estado, homogeneizante da centralização
com as reformas democráticas e sociais [se e do nacionalismo. Ressalve-se,
referindo ao século XIX e ao início do XX], todavia, que o federalismo não se
levaram governos a basearam suas ações na contrapõe radicalmente ao
“participação popular” e a estenderem suas nacionalismo; é possível que
competências à intervenção na vida ambos convivam, como ocorreu
econômica e social”, o que, todavia, por outro nos EUA (e ocorre até hoje).
lado, favoreceu a concentração de poderes nas
mãos do “Estado burocrático”. Dessa
tendência resultaram movimentos de
centralização, integração nacional e, de certa
forma, de retomada do nacionalismo. […] É
possível reconhecer que, em certo sentido, o

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federalismo “apareceu” nas comunidades
políticas modernas como uma forma de
“negação” do nacionalismo e seu centralismo
homogeneizante.
[…] a expansão territorial da Federação
estadunidense e a própria difusão mundial da
ideia federativa já revelariam alguma
capacidade que o federalismo possuía para
congregar, numa só unidade, a diversidade
Relação entre federalismo e
necessária para o desenvolvimento autônomo
pluralismo (o que, como já visto,
214-215 das comunidades locais […].
impacta na relação entre
Observa-se, desde então, que o federalismo
federalismo e democracia).
acabaria mesmo se aproximando da ideia de
pluralismo, ou seja, de uma concepção de
mundo que respeitasse as diferenças e, por
isso mesmo, admitisse a premissa de
igualdade (BERNARDES, 2010, p. 47).
[…] federalismo pluralista, como propõe Sim, porque se as minorias terão
Miquel Caminal (2002, p. 41): um Estado voz e canais de participação,
federal que contemple as necessidades da aproximar-se-ia do ideal
sociedade como um todo, mas sem democrático. A síntese dos
homogeneizá-la, respeitando a diversidade de diferentes posicionamentos a nível
215 tradições e culturas. nacional nem sempre seria
Na relação entre federalismo e pluralismo, imposta a todos os entes
então, parece que a ressonância das minorias indistintamente – seria o “Estado
nacionais poderia ser resguardada federal que contemple as
institucionalmente. E isso geraria alguma necessidades da sociedade, mas
interconexão democrática. sem homogeneizá-la”.
[…] a estrutura “de princípio” do federalismo
parece propensa a abrigar, reciprocamente,
diversidade na unidade, igualdade e diferença,
216 centralismo e descentralização, autonomia e -
coordenação, poderes centrais e periféricos,
numa verdadeira distribuição especial de
poder ((BERNARDES, 2010, p. 47).
216 [citação] […] os anseios da maioria não Ora, é impossível falar em
podem presumir um consenso sobre a decisão democracia sem falar em
a ser tomada. […] mesmo nos momentos em diversidade. A existência de
que a ampla maioria deseja, de acordo com pontos de vista plúrimos é
determinada perspectiva política, alguns condição da existência da
valores devem ser resguardados em nome da democracia e da necessidade de
diversidade e da defesa da minoria, a qual tem participação dos diversos
o direito, independente do cenário, de ser indivíduos; do contrário, não
ouvida e respeitada (MARINS, 2009, p. 696). haveria sentido sequer falar em
Decerto, quão maior a diversidade num deliberação. Sendo assim, é
Estado, maior a necessidade de que os também certo que a opinião de
interesses sejam politizados de maneira uma eventual maioria não poderá
descentralizada, fundamentada no preceito do ser levada em consideração como
pluralismo político. um dogma; as visões das minorias
[…] O respeito à diversidade, pois, seria não devem ser levadas em conta.

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apenas um postulado da democracia, mas
também condição substancial de sua
praticidade, o que remete para a percepção de
que uma das principais tendências políticas no
final do século passado foi o desenvolvimento
de novos escalões de governo, de cunho local
e regional, conformando as mudanças
estruturais nos tradicionais Estados unitários,
conforme observa Yves Mény (2001, p. 279-
280) […].
O federalismo, assim, “aparece” no
constitucionalismo contemporâneo numa
perspectiva de superar deficits de legitimidade
política, com base num pluralismo
É sabido que muitas das alegadas
democrático, regionalista […].
“crises” que vivem os aparatos
A solução federativa, assim, despontaria
estatais e mesmo a democracia
como resposta na consolidação da unidade do
liberal derivam de uma cerca
Estado que, doutra maneira, poderia perder
carência de legitimidade daqueles
sua “eficiência”, sua “legitimidade” ou
que exercem o controle sobre a
217 mesmo sua “autoridade”. É o caso de países
máquina pública. O federalismo
que se caracterizam por dimensões territoriais
permitiria que houvesse maior
continentais, multinacionalidade, pluralidade
legitimidade, sobretudo em países
linguística, grandes concentrações
como o Brasil, que conta com
populacionais etc. (HORTA, 2001, p. 714).
população extremamente diversa
[…]
distribuída em imenso território.
O federalismo, com essa conotação,
resguardaria a criatividade, o particularismo e
o desenvolvimento autônomo das
comunidades políticas locais.
A característica democrática do federalismo
pluralista estaria intimamente ligada ao fato
1ª relação apontada: autonomia
de que a autonomia constitucional que decorre
legislativa das unidades
do sistema federativo traduziria para as
subnacionais, permitindo a
localidades o “direito” de criar estruturas
criação de ordenamentos mais
normativas próprias e, talvez, mais adequadas
relacionados à própria realidade.
218 à sua realidade (BERNARDES, 2010, p. 71-
2ª relação apontada: essa
72) […].
possibilidade somada à
A distribuição territorial do poder, ademais,
participação da sociedade nas
montada numa base social participativa,
decisões “tenderia a vocalizar
tenderia a vocalizar demandas plurais,
demandas plurais”.
evidenciando, outra vez, sua relação com
democracia.
219 […] se o respeito às liberdades públicas e à O federalismo pressupõe a
autonomia individual configura preceito existência de ordens jurídicas
essencial do pluralismo, o federalismo, por diversas incidentes sobre um
sua natureza diversificante, não poderia mesmo território, sobre uma
dissociar-se do pensamento pluralista. Aliás, mesma população, sem que haja
os próprios conceitos, em si, promoveriam uma hierarquia entre elas, mas
essa aproximação, que pode ser evidenciada apenas uma distribuição de
com a observação duma característica competências.

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essencial do pluralismo: a ideia dum sistema
no qual “o direito se pode encontrar em vários
ordenamentos, de vários níveis, sem que entre
eles exista um que determine a validade dos
outros ou estabeleça a hierarquia entre eles”
(HESPANHA, 2010, p. 151).
Caso se reconheça que a acentuação do
pluralismo democrático demanda formas de
democracia inclusiva, de participação, que
transportem as discussões políticas para o
Não é que o federalismo serviria,
plano local (TEIXEIRA, 2011, p. 133), isso
por si só, para “resolver”
evidenciaria a relação entre pluralismo,
problemas de legitimidade e
participação e federalismo, cujo
eficiência do Estado; porém, é um
219-220 entrelaçamento seria reciprocamente
instrumento que, combinado com
potencializador para todos.
o desenvolvimento institucional
[…]
adequado, permite desenvolver as
Diante disso, seria possível verificar, então,
ideias de pluralismo e democracia.
que o federalismo funciona, dalguma forma,
como instrumento potencializador das
possibilidades de vazão dos valores pluralistas
que orientam a democracia contemporânea.
Talvez por isso tudo, não soe “irrazoável”
cogitar que, se os alicerces das constituições
democráticas residem na ideia de soberania
popular, na proclamação de liberdades, na
220-221 separação de poderes (ARDANT, 2001, p.
219), “a federação constitui, portanto, a
realização mais alta dos princípios do
constitucionalismo” (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 2009, p. 482).
221
Considerações finais
221 […] os postulados da democracia parecem
apontar para revisão dos conceitos
“tradicionais” de que antes se ocupou a
ciência política, de modo a indicar as
tendências de superação de antigos
paradigmas, de valorização da participação
popular e do pluralismo. Como novas marcas
da política, tais tendências, por certo,
demandam a revisitação do espaço público, de
modo a promover a aproximação entre povo e
poder de decisão.
A democracia contemporânea exigira a
participação substancial do sujeito, ou seja,
não apenas aquela limitada a ratificar as
decisões do parlamento, mas uma sistemática
que lhe permita deliberação sobre as questões
que o afetam, num espaço político em que a
pluralidade de demandas e a diversidade

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cultural dos atores possam ser catalisadas num
processo racional e inclusivo, do qual possa
resultar o maior número de benefícios e o
maior grau de satisfação para todos os setores.
E esse espaço público, como se viu, parece ser
o da esfera local.
Nesse contexto, a autonomia que o
federalismo reserva às comunidades locais
criaria espaço político para efetivação duma
democracia de participação, deliberativa e
inclusiva, que torne factível à população ter
vez e voz na decisão das questões que lhe
dizem respeito.
[…]
Além disso, o sistema federativo, comumente
visto como forma de “separação de poderes”,
multiplicaria os centros de decisão, daí
decorrendo alguma noção de limitação ao
autoritarismo – que costuma fazer-se presente
em Estados de forte centralização.

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