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Nhô Guimarães

ROMANCE

Aleilton Fonseca

BB
BERTRAND BRASIL
Ah, eu estou vivido, repassado. Eu lembro das coisas antes
delas acontecerem... Com isso minha fama clareia? Remei
vida solta. Sertão: estes vazios. O senhor vá. Alguma coisa
ainda encontra.

Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas.

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SUMÁRIO

1. Nhô Guimarães por aqui?


2. O sertão vem a mim
3. O vingador e o inocente
4. Manu e Nhô Guimarães
5 Chica Homem
6. Zé das Vacas, o digno teimoso
7. Quem proseia precisa imaginar
8. Nossa vizinha, Raquelina Dindão
9. O boi vingativo
10. Um sopro na luz
11. Dona Sancha
12. A cidade encanta e prende as pessoas
13. A sorte nas mãos
14. A fé na frente de tudo
15. Nhô Guimarães era pra lá das excelências
16. Uma assombração
17. O sertão é de todos
18. Juvenal Setesprito
19. Essa tal comadre
20. Nhô Guimarães pelos Gerais
21. O menino do mato
22. O santo de barro
23. A história de Vivaldo
24. Os milagres de Tiana
25. A vingança de Nenzinho
26. Um trato trágico
27. A fatalidade dos Fontes
28. Nhô Guimarães, homem de Vista Alegre
29. O senhor é boa gente
30. Um pai desnaturado
31. Simeão, homem do cão!
32. Afinal, quem é o senhor?
33. O desmantelo dos brabos
34. Nhô Guimarães pelo mundo
35. Manu se foi...
36. A história acaba e começa

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Nhô Guimarães por aqui?

— Nhô Guimarães por aqui? Há quanto tempo! Ah, não. Nsh, nsh! Não é
ele, não. Mas, quem é o senhor? Apeie, chegue à frente, a casa é nossa. Entre,
que lhe dou uns goles de água fresca. Venha ver que a melhor é essa do pote de
barro, dos antigos, que ainda tenho. Aprecie. Estes caminhos andam numa poeira
danada, essa secura, sem chuvas. Isto é o sertão.
Eu, de primeira, assim, confundi o senhor com outra pessoa. Mas não tem
cabimento. Releve. De perto, se vê que é bem mais moço. E já faz tanto tempo!
A vontade faz a gente ver é coisa! Era muito nosso amigo. Ele vinha a cavalo,
como o senhor, levantando poeira na estrada. Eu e meu marido Manuel
Adeodato, a gente vivia esperando ele voltar para uma visita. Mas cadê que veio?
Que nada. O tempo foi indo, Manu ficou velhinho, lá se foi dessa pra melhor. Eu
fiquei sozinha, neste pé de serra. É verdade: ninguém fica pra semente, pois não?
Nhô Guimarães nunca mais que veio. Eu segui na espera, de tocaia, que
ele havia prometido nos visitar. E promessa não é trato? Manu tinha esse desejo,
viveu no aguardo. Estou na minha vez de cumprir. Eu ainda espero, por cisma e
vontade.
Mas, quem é o senhor, assim tão moço, por estas bandas? Pela poeira do
chapéu, a viagem foi comprida; seu cavalo tão suado. Não se avexe, descanse. Eu
vi o senhor chegando, pensei: é ele. Parecia, mas logo caí em mim que não era.
Até sua montaria se parece; aliás, nem sei direito, que meus olhos arruinaram
muito. A vida passa, vai levando a gente aos poucos. Cada qual seu dia, que
vamos todos para a eternidade. E tem jeito?
Agora, pronto: tenho precisão de lhe contar a história mais comprida.
Venha, se acomode. Quer mais um gole? Olhe, vou coar um café novo. O senhor
é tão moderno, que benza Deus! Enquanto a água ferve, vá me escutando. Não

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custa nada; só uns dedos de prosa. Como se fosse com ele, nos tempos bons. A-
hã?...
Hoje o senhor me vê assim sozinha, cumpri meu percurso. Vivi muitos
anos casada; cuidei de casa, filho e marido, plantios e criações. Eu tratava de
tudo, assumi os cuidados; uma trabalheira pela vida afora. Sou feliz de saber
muitas coisas: conheci muita gente, aprendi a vida. Agora, estou a descanso e
prosa. Pois, não mereço? Cuido de meus trens, meus bichos em derredor, das
pessoas que merecem. Eu garanto ao senhor: gostava muito de meu Manu, pra lá
das contas. Eu vivia quase calada, ouvinte e obediente, sem arrelias. Só às vezes
eu arengava, quando sentia em mim as razões certas. Ele ora atendia, ora ficava o
escrito teimoso. Mais tarde, se o tempo dizia que eu estava certa, ele aceitava.
Mas ele era difícil de errar as idéias; tinha boa intuição e preparo: sabia como ler
os sinais das coisas. Foi um tempo longo, de observar de um tudo, aprendendo e
ensinando pelos modos de fazer e perguntar.
Se Manu fosse vivo, o senhor ia se entender bem com ele. O homem faz as
honras da casa, a mulher ajuda nos cuidados. Um trata dos negócios, o outro dos
haveres e do enxoval. São leis do sertão, vale a pena saber. Ainda que não acate,
é bom assuntar por onde pisa, pra não se meter em barulhos. São costumes que
vêm de tempos, quem firmou não sei, mas há muitos que ainda cumprem e
confirmam. De minha parte, sempre fiz bons acertos. Quem tem o juízo certo não
inventa dor de dente em beija-flor.
O senhor é atencioso. Repara na minha prosa, fica um pouco admirado.
Sou daqui, guardo meu sotaque com gosto. Manu era um bom baiano, muito
chegado à prosa mineira. Eu, filha da terra, tenho o meu jeito de prosear. A gente
pega as influências, que o mundo é uma grande mistura. Nos modos de falar, sou
assim: meio de lá, meio de cá, de maneira bem apurada. Faço frases bem
feitinhas, assim, nas boas falas. Pois eu lhe digo: tive certo estudo, cultivei
minhas leituras, uso a voz da experiência. Veja lá, ao fundo, na peça velha, uns
quantos livros que guardo. Aqueles, todos já li, reli, tresli. Se o senhor me ouve,
merece uns conselhos. Se por acaso desses viveres não leu muitos livros, comece
assim que puder. Não precisa ler por fé, mas pelo simples dom das histórias.

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Ler, escrever e contar é a riqueza que se deve a um filho neste mundo.
Ainda menina, estudei; graças à enfuca de minha mãe. Ela apreciava a leitura
alheia e fazia questão de ver um filho ler. Todo dia, bem cedinho, eu caminhava
até a escola da vila. Estudava com dona Arlinda, professora sem diploma, mas
muito excelente para os daqui. Meu pai arreliava que não: pra que estudo nessas
brenhas perdidas, a lavoura precisada de gente? Meu pai precisava de mais
braços para semear e colher. E minha mãe insistia firme; eles até brigavam. Meus
irmãos foram para o eito. Eu resisti. Fugia da roça e corria pra escola.
Mãe tinha coragem, e alma firme. Estimo, agradeço. Dona Arlinda era
esforçada, fazia de tudo para ensinar. Mas perdia os alunos para a lavoura. Em
tempo de colheita, então, era uma grande debandada. Ela sofria. Por vezes vi a
professora chorando, quando os alunos saíam tristinhos da sala e nunca mais
retornavam. Em cada despedida havia uma promessa de voltar. Mas eles viravam
peões de roça, sumindo nas moitas da vida rude, no meio do gado e das
plantações.
O que aprendi nos livros, quis ensinar. Ensinei Manu a assinar o nome.
Ensinei as letras e os algarismos. Ele aprendeu a soletrar as palavras e a fazer
conta no lápis. Eu mesma ainda leio de tudo: bula de remédio, folha de missa,
folhetos de cordel e livros de história. O senhor sabe, o que se lê traz bom ensino.

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O sertão vem a mim

O sertão é o meu terreiro; e tudo que o vento traz. Certas coisas a gente
aprende pelo viver, não carece de ensino. O sertão dos homens é vasto nas
lonjuras, mas, em andar e desandar, eles enxergam de menos, que as coisas
envultam. De tudo sabem contar nas prosas os traços de suas pelejas, porém
destraçando só os rastros deles, pelas passagens por aí, de si aos demais. Verdade
é coisa que depende. Cada cabeça um conto. Eu fico presciente pelas diferenças
e, quase de tudo eu sei. Viagens compridas não fiz. Não corri os Gerais. Quando
muito, bispei pelos arredores, sem pressa e sem receios. A andanças longas os
homens é que são chegados. Eu cá permaneço na escuta de todas as trilhas, nos
rastros de uns e outros, confiro os possíveis de ser. Ouvi tropel de muitas
boiadas. Sei dizer o sertão que lhe digo: sem viajar do meu terreiro.
O senhor sabe por quê?
O sertão vem a mim. Acredite: o sertão vem a mim, todo dia mais. As
histórias vêm: aqui se arrancham, almoçam e jantam, bem fartas, tiram madorna
na rede, de prosa comigo. O senhor compreende o meu dizer? Elas vêm a mim,
guardo os fatos, aceito: protejo, velo, resguardo, no meu firmar. Tomo conta de
um tesouro.
O que se narra são águas passadas que movem moinho, no sonhar sem
dormir. Pois, e não é? A vida acontece: os pontos se combinam nos jeitos de se
ver e confirmar. Contar é dificultoso; requer inventar a verdade, mas porém com
fé. O senhor sabe que isso é uma arte de viver? A gente recebe a herança, revive
os atos e as palavras. A gente escuta de tudo desde os cueiros, na hora de dormir.
As histórias da carochinha o senhor lembra? Pois elas viram sonhos, se alastram
como capim santo na imaginação da pessoa. Adubam o juízo e o coração. Aí
ficam de valor para toda a vida. É certo contar bons exemplos: nina os mais
novos, amansa os mais velhos: de pequeno, se torce o pepino; ao grande se puxa
a orelha. Daí procede: o que hoje se prosa vem de léguas do tempo mais antigo.

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Tempo de reis e rainhas, tempo de fadas e bruxas, tempo em que os bichos
falavam. A gente recorda o tempo dos milagres, quando todos os viventes eram
irmãos. Mas, no fundo, esse tempo passado ainda nem existiu: é um sonho que
ainda vai chegar. Já reparou como vivem as abelhas? Se gente tivesse capricho, o
mundo era de todos. O senhor me diga a razão: por acaso existe uma abelha
pobre e outra rica? Este sertão podia ser uma grande colméia, um vasto campo de
flor e mel.

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O vingador e o inocente

Certas coisas acontecem nestes ermos perdidos. Romualdo seguia seu


rumo, montado em sua mula, nem ligeiro nem lerdo, ia à feira do povoado. Dava
para chegar cedo, sem cansaço, no máximo sossego. De repente, ouviu um tropel,
olhou para trás: vinha um cavaleiro afoito. Estranhou o porquê daquela poeira
que levantava. Que urgência! Aquilo era um encalço: passou por ele na carreira,
de reluz. Pareceu que ia prosseguir sem ao menos um gesto, um cumprimento.
Por seus costumes, ele estranhou. Fez um sinal de amizade, mas nem foi visto. O
cavaleiro seguia desabalado. Mas, de repente, não: deu meia volta, quase
torcendo o pescoço do cavalo. E vindo, arrojou-se para cima da mula, cabeça
contra cabeça; fez parar, arrebitando-se no freio das ferraduras na poeira. O que
era? Estava pronto para dizer o que o estranho pedisse, se soubesse informar.
Mas era um dia de sobressaltos. O homem estranho, ele nunca tinha visto aqueles
olhos em nenhum caminho, nenhuma feira, nenhures de são-nunca. Conforme
fosse, um salteador: os jeitos eram ameaçadores. Guardou silêncio, olhando o
homem, em seu animal suado. O estranho, só calado, também olhando com
atenção. Fosse o que fosse, era certa a ameaça: o estranho sacou uma arma de
fogo, grande, brilhava de nova. No susto, Romualdo estava prestes a entregar os
embornais, assim que o estranho ordenasse. Ele andava limpo de armas, sem
valentia: desde que se vira, fazia anos, em refregas perigosas, havia deixado de
cuidar de tais ferramentas.
O estranho revelou sua voz, perguntando: “Romualdo?” Era seu nome
correto, ele confirmou: “eu mesmo”. O outro conferiu, conforme parecia trazer
anotações na mente: foi examinando Romualdo: o bigode, sobrancelhas largas, o
rosto avermelhado, nariz daquele jeito traçado, e disse:
— Ora, pois não é o senhor que achei?!
Na hora, abordado, não teve idéia sobre qual o motivo, quem anunciava
seu nome para prosa tão urgente, nas estradas, debaixo de tamanho sol, de arma

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em punho. Romualdo sentiu que o homem estava mais armado de corpo e alma,
que isso lhe diziam os olhos. Ele estava em seu encalço, em estranha precatória.
Já ciente de seu nome e de suas feições, sem pressa, relaxado, nesse domínio, a
arma quieta e atenta em sua mão esquerda. Pronta para cuspir. Romualdo tremia;
estava à beira de um abismo, sem saber um nada de causas e porquês. Atordoado,
procurou jeito de se recompor sereno. Então atinou que a forma de se salvar era
puxar conversa.
— Ao seu dispor — ele disse — vamos tratar o assunto, calmos, sem
sustos, o senhor me explique a pendenga.
O estranho sustentou com ele um perigoso entreolhar. Reexaminava seus
traços, conferindo as feições, com os olhos se apertando, o rosto se avermelhava.
Como se crescesse nele um ódio por Romualdo, achado, seu alvo para más
conseqüências. O agressor disse, aborrecido:
— Como me informaram, o senhor confere: é quem procuro, autor de um
crime contra gente minha. Agora é sua vez de morrer.
Ele disse tudo isso, calmo e empinado, como um juiz soberbo. Romualdo
teve um grande abalo, sobressaltado, no sem saber por que motivo sua morte
estava assim decretada. E prosseguiu o executor:
— Apeie, ou morre agora o animal inocente no mesmo ato que seja, se o
senhor usar as esporas. Vim cobrar seu crime.
Ciente de sua má sentença, ele obedeceu: apeou, sempre ao alcance da
arma engatilhada. E, conforme urgente, puxou o assunto, a seu favor, quis saber:
— Mas, qual o motivo, que malfeito lhe fiz?
O estranho franziu a testa, respondendo:
— Não se lembra? Perdeu o juízo?
Ordenou que andasse. Com a arma apontava a trilha até a beira do
caminho, onde havia uma árvore. Aí mandou parar.
— Se vire, se encoste na árvore, que vou lhe amarrar para cortar seu
couro.
Era tudo isso? Acuado, ele não se ofereceu a resistir, por um triz de nada
estava. O vingador, rápido e cuidadoso, sempre vigiando, amarrou as mãos e as

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pernas para trás, ao redor da árvore. A arma presa ao queixo. Romualdo não
esboçou nenhuma reação. O homem atou a corda, num piscar, como se tivesse
treinado para isso. Continuava a palestra:
— Já sabe que vou matar o senhor aos poucos, com os maltratos que
merece. Vai pagar caro pela dor dos meus parentes.
Era bem de ver: ele trazia uns instrumentos. Eram ferros bem amolados,
de toda versidade e tamanho; outros com gomos cegos, dentados, bons de
proceder lanhos na carne. Trazia aguardente num cantil para provar e borrifar as
carnes vivas. Mostrou tudo ao condenado com a mesma voz desassustada, sem
um se coçar, sequer um pigarro.
Romualdo se via perdido, diante do sujeito estranho, a vingança brilhando
nos olhos. Sentiu forte tremura, não só de medo, mas de embargo. Ele não podia
saber se estava nas mãos de um doido, desses que parecem mansos, de repente
mostram o ato fatal de sua loucura. Preso à árvore, via que o estranho se
preparava para lhe dar os piores tratos. Escolhia ferros, punhal, caco de garrafa,
lâminas dentadas, que foi devagar espalhando no chão, com jeito de fazer
banquete. Tão sem pressa que deixava o réu numa grande agonia.
Romualdo estava com um medo tão fundo, que se sentiu amarelar, com
um nó cego nas tripas, o suor empapava a roupa. Daí ele se entornava quieto, só
amparado pela árvore, parecendo calmo. Queria achar um jeito de se salvar. Teve
idéia de entreter o homem com umas prosas mais, rezando para que alguém
apontasse na estrada. Então arriscou um jogo:
— Se vai me retalhar vivo, me diga: que mal lhe fiz? O senhor, pelo visto,
homem de bem, sabe ser sensato.
— Ah, o senhor não assume seus atos? Esqueceu, ou se faz de abestado?
A prosa tricoteada já rendia a Romualdo mais uns respiros. Valia a pena
dialogar. Então, mais o entreteve, encompridando a palestra:
— Meu bom amigo; nunca vi o senhor antes, nunca lhe fiz mal.
O outro avermelhou o olhar, medonho, daí cuspindo forte:
— Não me chame de amigo. Confesse seu crime, para o seu próprio bem
de morrer mais ligeiro. Senão perco o resto da pressa, lhe mato mais devagar.

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— Mas, por que tão fino serviço?
— Isso eu prometi, desde que soube do seu crime. O senhor foi bem
traquinas. Amolou as facas sem piedade, cortando o homem em pedaços. Isso
corre a fama, desde que eu era menino. Todos os detalhes o povo conta nas
lendas de minha terra. Cresci para vingar o nosso sangue. Vou cortar seu couro,
seus bofes, suas tripas, seus ossos.
O ódio percorre muitas palavras, como um rio pestilento. Romualdo atinou
que aquilo não podia ser, não sabia do que o outro relatava, protestando justiça,
com palavras doloridas:
— Não fui eu, sou outro, de nome igual. Sou inocente, meu amigo.
O estranho examinou o homem, de olhar franzido: daí se aborreceu mais
ainda. Calado, começou a ferir o corpo de Romualdo com a ponta do punhal.
Dava a espetada e retorcia, ia contando — de furo em furo, no leve da pele,
fazendo o sangue escorrer.
Se Romualdo gemia, outro golpe vinha mais rápido e mais fundo. O
estranho tinha gosto e perícia de tratar carne de gente. Com método estudado,
pegou uma lâmina velha, afiada numa parte e dentada noutra, e passava de leve,
aumentando a dor e a agonia, em lento passear da lâmina nas carnes do réu. O
preso retesava o corpo, gemia; e o vingador encalcava mais forte, dizendo:
— Tome, sinta a dor de minha família; pague por seu crime.
Entretanto, Romualdo não desistia de palestrar, entre arrepios de dor e
medo, o coração aos solavancos; repuxava a conversa:
— Por Deus, me solte: sou inocente!
O estranho fez uma pausa; respondeu, sempre calmo, sem se melindrar:
— Não peça piedade, senão é pior, arranco sua língua antes da hora.
Aquele homem conhecia os jeitos de ferir. Romualdo se dava por morto,
açoitado de dores. Meditou: reviu sua vida de uma olhada. Vasculhava seu
passado, puxava pela memória. Não se lembrava de nenhum malefício cometido.
E mais gemia, a cada estocada de ponta de canivete, de faca, de punhal, de espeto
ou de chuço nas suas carnes. Nada de mal fizera para merecer tal castigo. Engolia
goles de dor, retorcia-se em silêncio, perdia as forças. Os ferimentos, pequenos

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mas dolorosos, iam matando o homem aos pouquinhos. Ele disse, entre dois
gemidos:
— Meu nome é Romualdo, mas não sou quem o senhor procura. Nada fiz
de mal a ninguém.
Mas o estranho estava preparado contra qualquer observação:
— Estou bem informado. Seu nome é Romualdo Ferreira.
E era este, sim, o nome por completo, assentado em batismo e cartório.
Romualdo se sentiu perdido, era a coincidência que a sina confirmava. O
estranho lhe deu um golpe mais fundo, murmurando:
— Tudo isso confere, nome e sobrenome do criminoso que é o senhor.
Aceite minha vingança sem tremer, seja macho, morra calado. Sua morte será
lenta, mas antes que esmoreça de vez, sem perder os sentidos. O senhor vai
morrer sabendo que morre, com esse chuço varando seu coração no fim. Não foi
desse jeito que procedeu contra gente minha?
E então ele revelou o requinte de sua enorme malvadeza:
— Agora vou cortar seu sinal de nascença no ombro esquerdo.
Romualdo esmoreceu, enquanto o outro forçava seu corpo nas amarras,
procurando o ponto certo do golpe. Forçou, quase entortando a espinha do
penitente. O réu apertava os olhos, gemendo de dor, à espera do novo ataque.
De repente, o homem parou. Esperou ali um bom tempo, só calado.
Romualdo se refez aos poucos, espiou a figura do agressor. O rapaz havia
mudado do olhar ruim para o duvidoso. Verificou o corpo de Romualdo de um
lado e do outro, agora, porém, sem violência. Com cuidado de padre. Parou,
olhou, refletiu. Examinou de novo, de lado a lado. Parecia terrivelmente
desapontado por não achar o que procurava. Daí ficou paralisado, deixou arriar o
canivete na mão esquerda, olhou para longe, indagando:
— O senhor conhece o povoado de Veredas?
— Não, senhor; nunca fui lá.
— O senhor conheceu Lucas de Lourenço?
— Não, senhor; nunca ouvi falar.
O agressor fez silêncio, depois exclamou:

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— Mas que coisa!
E suspirou fundo, piscando demais os olhos, pois se achava nervoso.
Olhou para as estradas longes, daí se preparava para revelar.
— Lucas de Lourenço era meu pai. Contam que o senhor matou ele.
— Sou inocente — protestou, em cima da palavra.
Romualdo era mesmo inocente? Quem pode julgar os procedimentos
alheios, sem as testemunhas certas dos acontecimentos? Ele podia ser mesmo
inocente, mas não, por certo, no total da palavra. Por último, durante a agonia, ele
teve um grande estalo na mente. E se lembrou de um fato demais antigo.
Recordou-se de um ato que tinha feito por esquecer como acidente da juventude.
Ele havia conhecido, de passagem, o dito povoado de Veredas, havia muitos
anos. E lá chegando, era tempo de festa na pracinha. Por ali, soube de um valente
e brabo homem, chefe de um bando, que desmanchava bailes, acabava com as
feiras, botava o povo para correr. Agora, diante da morte, na aflição do medo, ele
se recordava de fatos mais antigos. Então se lembrava que havia estado no meio
do repente de uma enorme briga, na noite da festa do padroeiro, quando foi morto
o valentão de Veredas, no breu da noite.
Houve a briga. E muitos foram os homens que trataram Lucas de
Lourenço a ferros. No meio disso Romualdo estava e... não estava. Pelo sim, pelo
não, a verdade ficou nas trevas. Então ele preferiu se valer de calado, depois de
negar o crime com sinceridade. Muito jovem, esteve em arruaças; ajuizado,
aprendeu a ter cautela. Quem foi o criminoso? Quem foi, ou se foi ele ou se não
foi... talvez. Agora, em apuros, não ia se arriscar, se a dúvida passava a proteger
sua vida. O certo é que, no escuro, o tal facínora restou ferido de faca, facão e
canivete. Por fim, o coração foi varado por um chuço. E o terrível homem caiu
morto. Isso foi o fato, conforme o povo registrou. Mas, quem acertou o golpe
final? Romualdo, por crédito que teve, sem inquérito? Como saber, no meio do
barulho, qual dos malfeitores era o chefe? Como saber, na hora da briga, quem
era Lucas ou Chico? Naquele breu, em noite de lua nova, eram golpes a esmo em
qualquer gente que aparecesse nas sombras.

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Só sei narrar o que Romualdo me afirmou por certo e minha imaginação
corrige: que ele, sendo de fora, de muito longe, dali mesmo fugiu na hora,
deixando apenas a breve informação de seu nome e suas feições. Quem viu o
fato, ou soube, atestou sua façanha, juntando fortunas à verdade. De certo,
porém, o que fez e em quem fez, isso não ficou escrito.
Naquelas bandas, os homens brabos brigavam por devoção. Por um nada,
pegavam em armas e faziam grande arruaça. Romualdo, ali passando, em
viagem, foi só espiar a festa e acabou no meio dos trovões. Houve a morte do
dito homem. Daí correram notícias, boatos, diz-que-diz, desenredos. Por amor
próprio, Romualdo não ia se acovardar. Ele, por ausente, foi declarado matador.
Na dúvida, se recolheu na vantagem das notícias. Mas foi sabido de arribar pelas
estradas, cada vez mais longe da fama que se alastrava no lugar. Depois,
experiente, ajuizado, inverteu os possíveis; escondeu-se dos fatos. Mas sua
história já percorria outros rumos. De ponto em ponto, os seus feitos e a sua
valentia aumentavam.
Agora comprovo como Romualdo escapou da morte. Retomo o passo,
prossigo. Diante do vingador, ele sustentava que era inocente. E por certo, sim,
nos meio-termos do júri humano. Eu considerei que sim, ainda que houvesse
obrado aquele ato de paz. Ele apalavrou sem remorso: não era a pessoa certa para
sofrer vingança. O rapaz ouviu a história, com paciência, permaneceu calado.
Levou tempo assim, fumou um cigarro. E, nisso, ia trocando a desconfiança por
uma estranha piedade. Romualdo ainda gemia, as aflições já se acalmando nas
carnes vivas. O estranho indagou por último, antes da sentença final.
— Mas, será possível que me enganei?
Romualdo se viu entre a dor e o alívio, conforme o julgamento prosseguia
nas feições do homem. O vingador franziu a testa, que se via em apuros. Com o
destino traçado, pensava finalizar a busca e ir cuidar de outros afazeres.
Aqui, por certo, a honra passa na frente dos viveres. A dúvida também
salva. Mas o estranho logo recaía na idéia, com vontade de encerrar a pendenga e
mudar de atividade. Ora, matava este mesmo, e ficava livre para tomar outro
rumo. O vingador, entre sim e não, ao desafeto indagou de chofre:

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— O senhor é mesmo inocente?
Por força de si, sem gaguejar, Romualdo jurava que sim. Dava a palavra,
pelo fio da voz, de homem para homem. Então, foi um enorme silêncio: tudo
mudo e suspenso. Escutavam piados longes das aves. O rapaz apertou os olhos,
suspendeu a cabeça, marejava, clemente. Daí se voltou, pesaroso, quase em
prece, olhos úmidos levantados para o céu, clamando:
— Não posso matar um inocente. O senhor tem nome igual, mas não tem
o sinal de nascença do criminoso.
Romualdo se sentiu quase salvo, se as feridas tivessem cura. O rapaz passou a
recolher os ferros aos embornais. Demudou o semblante, trocou de jeitos. Prestativo,
pegou o cantil, derramou o líquido em panos que trazia; começou a limpar as feridas e
o sangue com aguardente. Romualdo se retorcia, trespassado de dor, sentia o líquido
correr nos talhos, daí vinha a brisa morna, dando-lhe tonturas. O homem desatou a
corda, libertou o flagelado. Ajudou-o a se erguer de pé e a andar uns passos. Sem
pedir desculpas. Estendeu sua mão calosa, sem réstia de raiva, a cara fechada de
remorso, sem palavras. Montou a cavalo e levantou a poeira sem olhar para trás.
Romualdo ficou paralisado. As antigas imagens replantavam-se em sua
mente. Eram os fatos daquela noite que, de tão esquecida, parecia não haver
existido. Cada vez mais, clareavam-se os detalhes da grande briga. Ele estava
fraco, mas conseguiu montar a mula e retomar o caminho devagar. Seguiu em
frente, com a alegria e a dor de estar vivo e poder contar a sua história.

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Manu e Nhô Guimarães

Nhô Guimarães sempre sumia no mundo, mas retornava. Ele comparecia


aqui, por umas quantas vezes; foi naqueles tempos. Era um homem bem
aprumado que vinha a essas partes de cá, mas só a certas vizinhanças. Montava
bem que era uma beleza, esquipando, pracatá pracatá, no vem-que-vindo. Eta
diá! Se era! Eu, de sempre, ficava na espia, só que quieta, assuntando ele e Manu
nas prosas, dessas de homem, aqui em casa. Hoje eu mando em tudo, estou sobre
mim, no meu direito. Naquele tempo, não: só mesmo escutava. Conto a vida do
meu jeito, gosto de causos compridos. Manu e Nhô Guimarães trocavam nesta
mesminha sala umas quantas prosas. Ele só se ria das conversas, eu mesma
gostava era das mais lorotas. Ele também, com uns olhos de muita atenção. Manu
se estendia, pespontando os causos, fosse o que fosse. E eu ali, olhe, só
assuntando. Eles proseavam, num gosto que só o senhor vendo. Nosso filho, bem
pequeno ainda, ficava de butuca, apreciando. Havia, às vezes, o perigo de ser
exemplado:
— Atimbora pra dentro, esse menino! Onde já se viu gente miúda assuntar
conversa dos mais velhos? — Manu falava devagar, com deferência àquele
homem de tantos tratos.
— Deixa ele — Nhô intercedia, mas nem olhando, só no compreender das
coisas. Pois então Manu deixava. E era bom.
Noutras vezes, de tarde, o Sol baixando, Nhô ficava de cócoras no terreiro.
Manu de lado, fumavam juntos aqueles cigarros. Sabia fazer um, de mesmo,
picando fumo, linguando a palha. Eles faziam um trato, iam enrolando na ponta
dos dedos, os dois bem concentrados. No que acesos, com tição vivo que eu
trazia, aí cometiam os melhores pitos. Tinham gosto em ver a fumaça
desenrolando no ar, que eles até sopravam. Antes tomavam café do pilão, torrado
em casa, com cravo, que eu coava com muito mais gosto nesse dia. Que esse dia
era um não-qualquer, se decorria tão boa prosa. Eles se entretinham a trocar

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causos, dos mais acontecidos aos mais inventados, sem a gente distinguir os
quais. Eles sabiam ser bons amigos.
Nhô Guimarães pisou neste chão, assuntou as paredes, debruçou-se nesta
janela. Olhava na direção dos Gerais e pegava a imaginar histórias. Para mim,
isso é uma riqueza que não tem preço. Tantas histórias principiaram aqui e agora
estão lavradas nos livros. Nhô Guimarães e Manu convivem aqui comigo, nas
minhas melhores lembranças. O senhor entende?

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5
Chica Homem

Os grandes feitos pertencem somente aos homens? Não, senhor. Os homens


levam e trazem suas histórias, gozando de seus proveitos. De um aos outros, eles se
exaltam nos mínimos gestos de seus costumes e afazeres. E as mulheres? Saiba o
senhor: sempre houve mulheres de altas grandezas; como é preciso também narrar.
Nas guerras, nas labutas, nos surtos das piores mazelas; lá estavam as senhoras com
coragem e astúcia, agindo nas precisões.
O povo conta que existiu por aqui uma mulher e tanto, muito falada em lendas
e folhetos. Dona de bons feitos, de falas maiores, coragem certa e muita fé. Era
chamada Chica Homem, por fiel batismo e correta fama. Morava sozinha, na
ribanceira de um rio, onde viveram índios valentes, lá pelos idos de muitos anos.
Há, por certo, o que apurar nos causos de outros tempos, dos fatos incertos, em
quase lendas e causos inventados. Ou então recolher suas feições das sombras e
inventar os efeitos possíveis, traçando palavras para inteirar os termos. Chica, para os
próximos, provinha de ser Francisca, como ficou provado. Já por Homem
sobrenomeada, talvez por herança de família, com jeitos de fidalguia. Entretanto, não:
era filha de uma índia com um pai português. Assim restou em boa soma de muitas
qualidades. Por não haver outros sinais, fio os recortes e arremato os alinhavos. Ela se
afamava pelos modos de ser forte, corajosa, de gestos rijos, desassustada. Certeira em
armas, sabia dormir e acordar na pontaria. Juntava nas mãos muitos calos por uso de
ferros, e marcas nos dedos por manejo de fogo.
Chica foi criada nas larguras dos terreiros, nas águas dos rios, na sombra das
matas. Só por existir aos seus olhos, a mãe índia lhe dava lições de como pertencer ao
chão. O pai, quase só entrevisto, sempre em viagem, se embrenhava pelo sertão,

18
abrindo novas trilhas. Desde pequena, era arisca e malina, crescia à solta, sem sustos,
destemerosa. Era mantida em vestes de menino, por cuidados de assim parecer e agir
diante dos perigos. Sem saber, ela se preparava para ser natural, adquirindo as
melhores destrezas. Corpo feito, era a descrita cabocla, com vantagem de ser valente e
farejar aventuras. Então, caiu em si, no seu desejo: queria se embrenhar nos matos
pelos longes do sertão afora.
Aos testes se dispôs, diante dos homens, e para o assombro de todos. Chica
correu ao cavalo e montou de um pulo, daí esporeou em galope pela campina. Rápida,
ajeitava, no controle, fazia o animal deslizar sobre os matos rasteiros, a saltar
obstáculos, sem meneios, atravessando o braço de rio. Parou rente aos homens,
desmontou num pulo, puxou o facão da cintura e, com golpes certeiros, derrubou no
chão uns galhos de bom calibre. Não só: ainda tomou uma arma e, sem esforço,
apontou para uma ave em alto vôo. Após o estampido, houve a queda de bico ao chão,
as penas avermelhando no capim.
Os homens, admirados, se viam diante de uma pessoa igual. Conheciam que a
cabocla tinha seu valor. Ela, ainda mais ousada, sem receio de cometer abuso, fez uma
petição:
— Nhô Vicente, considere: conheço as ervas e a serventia de cura pros males e
aflições. Também sei cuidar do gado, e toco a boiada sem susto.
Diante das provas, Nhô Vicente houve por bem pensar consigo, daí cedeu ao
pedido:
— Se é assim, pelos seus traquejos, consinto. Pode arribar ao sertão com a
gente, às minhas ordens.
Chica Homem se preparou, como se já fosse acostumada. Só de olhar, já sabia
apertar as vestes, usar os apetrechos, pelo dom de observar e pela intuição. No dia da
partida, estava por si, seguiu pelo sertão adentro, como se rastreasse o passado.
Na longa travessia, granjeou respeito. Sempre prestativa, de arma na cinta,
facão em punho, sabia às vezes opinar de oitiva sobre os ruídos íntimos dos lugares
ermos. Pressentia os perigos, sabia o cheiro dos bichos e a direção das águas, como
legítima herdeira do chão. Era os ensinos da mãe e o tino dos avós que nela se
apresentavam, somados ao trato e à sina dos homens com quem labutava. Pelos matos,

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entre os peões, sua coragem se encorpava. Cobra, ela pegava de mão, quebrava a
espinha junto à cabeça, soltava como um cipó torto, arrebentado. Sabia a hora certa de
acuar e matar uma onça, com cuidado no proveito do couro. E sabia olhar feroz nos
olhos de um qualquer que viesse a ela com certas intenções.
No seu terreiro, praticava a arte de amansar potros, com exatas doses de golpes
e bons tratos. Não havia quem fizesse igual. Os animais se afinavam com ela, logo
sabendo, por certo, o instinto de obedecer. Aos muito brabos domava o rompante dos
gestos bruscos, pondo os bichos nas rédeas certas de obedecer e servir. Aos mansos
demais, trazia à rédea curta, botando no ritmo dos usos e serviços de campo.
Sua coragem se alardeava pelas vizinhanças como guardiã da fé nas mulheres,
pois ela somava às forças para manter e defender o território. Certa vez, em feroz
disputa de terras, uns homens terríveis atacaram com coragem de matar e morrer. Na
bruta refrega, Chica entrou de arma em punho e, numa cena, se viu de frente com dois
jagunços enfurecidos que brigavam sem piedade. Sua arma estava descarregada. Foi
então que, de reluz, ela correu ao terreiro, onde costumava cortar lenha. Ali apanhou o
ferro e voltou ao ataque. Usou a arma com tal força e fúria que matou os dois homens
a golpes ferozes, derramando sangue, em defesa de seus domínios.
De posse da maior fama, pelas cercanias e vizinhanças, ela se mantinha nos
rigores de viver sozinha, conhecida por ser pacata, atenta aos sinais do mato. Fosse
bicho feroz, bicho de corte, bicho de ceva, Chica Homem atendia com os tratos certos,
matava ou prendia, que nada lhe sobrava a temer. Meio índia, era cabocla: misturava
em si as feições dos avós. Pitava seu cachimbo, penso à boca o dia inteiro,
enfumaçando folhas de tabaco, que ela mesma semeava, colhia e preparava.
Quando havia viagens pelo o sertão, Chica Homem não podia faltar.
Acompanhava os homens, e se ocupava de diversos afazeres. Pois, além de perfeita
desbravadora, também sabia tratar os feridos com ervas e ungüentos, na risca dos
costumes da mata e das crenças caboclas.
Chica Homem viveu muitos anos. E só um dia, quando os seus cabelos
branqueavam e suas forças minguavam, foi que ela conheceu a derrota. No terreiro, à
beira do rio, um touro bravo recusou seus tratos e suas ordens. Não se deixava domar.
Numa investida perigosa, o bicho testou os reflexos da mulher. E nela encontrou uma

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frincha entre a força e a fraqueza. O animal negaceou ao ritmo da domadora, e, ao
sofrer um golpe, desembestou na campina. Daí se aprumou, riscou o casco no chão,
investiu com fúria de vingança. Num lance de azar e sorte, cravou os chifres no ventre
da mulher, que ali estrebuchou, sofrendo as dores que castigam o corpo e a alma. E
Chica Homem morreu.

21
6
Zé das Vacas, o digno teimoso

Nhô Guimarães sabia escutar com gosto e cautela. Certa vez, Manu lhe
contou o caso de um vaqueiro, nosso antigo vizinho. Essa, eu ali ouvindo, me
deu a ciência de certos cuidados com os pés. Zé das Vacas, o digno teimoso,
andava descalço pelos terreiros. Pisava em todo tipo de chão sujo, não se
repugnava de nenhuma imundície. Em quantas, alimpava valetas, atufava os pés
no estrume das vacas, sem o menor cuidado. O senhor vá vendo, como
principiam os desmantelos. A gente, sem sentir, dá de cara com os espinhos. O
homem pegou uma coceira braba nos dedos, daí se espalhando pelo pé direito.
Como o pé esquerdo escapou, não sei, continuou sarado. Mas o pé doente, cada
vez mais roído pela coceira infame, atormentava. Ele experimentou os piores
sofrimentos. Cravava as unhas na pele podre, arregaçava até espirrar um sangue
ruim e pus fedendo. Um desespero, que ele até chorava, com a aquela ziquizira.
Começava com uma coceira estupenda, nasciam umas bolhas esbranquiçadas que
pocavam com uma água no mais triste fedor. Daí não inchava mais: era uma
bieira aberta, aquelas chagas, porém com as beiras secas, esfarelando. E se
renovava, de vezes, em novas bolhas se espalhando. A doença comia o pé do
homem. Aquilo só podia ser coisa feita, diziam; ele caçasse uma boa rezadeira.
Dona Brisda, já de cabelos brancos pelos anos vividos, traçou as palavras
quietas para expulsar os males, surrando com folhas milagrosas e rezas contritas.
Nessa luta, as folhas murchavam vencidas. Parece que ali, na horinha mesmo, a
coceira aliviava. Mas, daí a pouco, pegava de novo ainda mais insuportável, de

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quase o penitente enfiar as unhas nas feridas a arrancar os dedos. O homem
lazarento, nesse sofrer demais, saía doido pelas estradas, atirava-se em lagoa, rio
ou chiqueiro, querendo encontrar um alívio entre os porcos, na lama, no maior
desespero. Todos pelas vizinhanças, uns sofriam e outros se vangloriavam,
curiosos de saber que males são esses que andam no mundo. São as teimas de
não se saber pisar no chão com o pé direito, fazer o pelo-sinal ao se levantar,
pagar suas promessas, zelar do corpo e da alma. Isso diziam. De quais origens tão
malvadas? Haveria cura para tamanha comichão feroz? O senhor reze, que o
dianho disgro rabudo anda solto, com suas más estripulias.
Zé das Vacas, tiritando da coceira maligna, até procurou um oficial de
farmácia, no povoado. Untou-se de pomadas e ungüentos, bebeu preparos
amargos, nada serviu de nada. Até tomou injeção, arranjando coragem para
enfrentar a agulha da seringa. Mas, pra quê? Sem fazer os efeitos, só mais que
piorava. Diziam que estava quase maluco, até violento, nas crises piores.
De primeiro solidária, sua mulher dona Deja tratava dele e socorria as
dores com panos frios e outros cuidados. Tinha uma paciência que se notava,
numa vontade grande de ver o marido sarado. Mas, com o tempo, a piedade foi
vazando, uma irritação tomou conta de seu sossego, não dava mais. Acabou
arribando de casa, foi morar com uma tia viúva, disse que por enquanto, pois se
sentia esgotada. Ela até teve um surto de nervos, com vontade de matar o homem
de uma vez. Partiu para cima do marido com o facão levantado, queria tosar o pé
doente. O povo acudiu, num deixa disso, “tenha fé em Deus, minha senhora!”
Era um desequilíbrio, um desassossego. Então ela chorou muito, sempre quieta,
daí foi morar com a tia por uns tempos. Marcava o dia de voltar para casa e
adiava, procurava saber se o marido já estava curado. A resposta era não, e ela
seguia amoitada na casa da tia; lá mesmo estava, ia lá ficando. Fazia isso, de ficar
por longe, de pura bondade, o senhor entende?
O pobre do Zé, assim acometido, se aperreava de forma pior. Tinha ele
cometido algum crime encoberto, capaz de gerar remorso e abrir o corpo a tal
enfermidade? Quem sabe os senões dos segredos alheios? Uns aconselhavam que
apelasse para um milagre. Fizeram até novena. Foram mais de trinta terços e

23
quantas orações. Um conluio de santos e nenhum dava jeito naquelas chagas
brabas. Aquilo até já doía no povo.
Às vezes a doença melhorava. A creca se aquietava um bom pedaço do
dia. Oh, alívio! Quando chovia, o ar temperava de tal forma que ele ficava mais
calmo, a coceira dava uma trégua ao pé chagado. Mas aqui é lugar de sol forte, o
senhor calcule: logo as frieiras voltavam a atenazar o coitado. Quando pocavam
novas bolhas, aquela água de pus escorria; isso fedia demais. Depois ia até que
secava. Ah, era uma coisa triste de se ver, aqueles couros se soltando do pé
aberto de feridas, todo esfolado. Aquilo dava dó e nojo.
Num desses dias de melhora, Zé das Vacas parecia estar em boas
condições. Sentiu saudade dos afazeres, que era muito trabalhador. Aí voltou ao
rojão, foi cortar lenha. Assim fosse, ele seria um feliz sempre. Mas qual! De
repente a doença atacou com tudo. Ele largou o machado de lado, enfrentou a
coceira com as unhas. A ferida latejava forte, dava bicadas na carne viva. Ele,
procurando um alívio, grosou nas bieiras umas folhas, daí gravetos, um pedaço
de pau seco. E nada. Passou a coçar com o machado amolado. E foi que indo, no
coçar mais violento, a comichão malvada em maior se alargava nos dedos,
acometia o pé inteiro, subindo pelo calcanhar. Então, daí descabelado, no
desespero ele urrava:
— Socorro, me acode, gente! Não agüento mais! — esperneava no chão,
com o pé enfermo para cima, coçando mais forte com o fio de corte do machado.
Aquilo enternecia. Zé das Vacas perdeu o tino. Naquele sofrer, se arrojou
de pé, com gritos horríveis. Assombrava. O fio do machado entrava mais e mais
na ferida, melando-se em pus e sangue fresco. O homem, alucinado, de repente
se empertigou, arregalando os olhos tresdoídos. Levantou o machado, fez mira no
próprio pé. E acertou.
Foi um golpe certeiro: ele mediu e mandou contra si. Lá se foi o pé
jorrando sangue na poeira do terreiro. O homem tombou de vertigem, desmaiado.
Havia ali uns vizinhos olhando, ficaram pasmos, horrorizados. O senhor imagine!
Gritaram por socorro, foi um valei-me, gente! O ferido voltou a si, e urrava de
uma outra dor. Já sentia no corte um alívio do sofrimento maior das coceiras

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malignas. O povo correu aflito para acudir o vizinho. Providenciaram amarrar
tiras de pano, com cuidado, apertando as veias. O sangue, que borbulhava, foi
indo assim, estancou. Ele, desfalecido, descorava já anêmico.
O moço Altino foi voando a cavalo buscar o farmacêutico. E ele veio
atender o caso grave. No improviso, mas era experiente, costurou na carne aquele
corte sem jeito. O senhor veja: me dá arrepios só de contar essa trama.
Os dias passando, Zé das Vacas sofria com febre, todo inchado. Mas o
povo ia aviando chás e passando os remédios. O farmacêutico vinha, dava
injeções, passava iôdo e pomada, com muita paciência. Os amigos faziam figa
que o vaqueiro prosperasse na cura, com os bons sinais da sorte. Ninguém teve
coragem de puxar assunto nem indagar por que ele tinha feito aquilo.
Daí a uns meses, melhorando, o homem levantou da cama. Pulava num pé
só; estava sacizado. Foi sarando, sarando, com o tratamento: sumo de algodoeiro
para lavar a ferida e cicatrizar o cotoco. Não desejo o mal ao senhor, mas se um
dia precisar, experimente esse sumo, um santo remédio para curar feridas.
Zé das Vacas, coitado, entanguido, sem cor na cara, de tão pálido. Pelo
menos, para os gaiatos, o homem havia cortado o mal pelo pé. Estava manco,
porém salvo da coceira malvada. Ora, o senhor anote: para tudo na vida é preciso
merecimento. A sorte é pouca para tanta gente. O homem mancava, com a ferida
sarada, uma pele novinha recobria o lugar de onde principiava o pé decepado.
Mas gente não é gente: os trocistas já chamavam o paciente, às boquinhas,
de Zé do Cotoco. Já outros davam o apelido de Zé Saci. A contragosto os amigos
até riam, mesmo maldizendo as piadas. Mas, com gente quem pode, porém?
Apesar, ele fosse feliz. O senhor aqui não estava, ia saber o resultado? Nem eu.
Todos esperavam um tempo normal. A esposa, dona Deja, voltou para casa com
o coração acalmado. Aquilo foi virando assunto de prosas e causos, de uns aos
demais.
Teve bom termo? Não, senhor. Houve um porém, o homem continuou
sofrendo. De vez em quando, a lua cheia chegava, ele se via em maus lençóis. A
maldita doença retornava. Zé das Vacas se atracava com o cotoco de pé,

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esperneava pelo chão com a coceira renitente. Agora era um mal invisível. O
qual pior! Ele ensandecia, endiabrado:
— Acode, gente! Meu pé arrancado está coçando no meu juízo!
De tão alucinado, quebrava as coisas, rasgava as roupas, mastigava o
chapéu de palha. Eram as malditas frieiras que roíam o homem, como uma
cicatriz aberta na alma de seu pé falecido. Alguém podia acreditar, ao menos por
dó e piedade? Um pé ausente coçava terrível, só por força da lembrança. Foi essa
a novidade pior. Dona Brisda vinha rezar. Diziam que aquilo era coisa do trem-
ruim, o rabudo, o zarolho, o dianho. Que nada, gente: era coisa da cabeça dele.
Bastava raiar a lua cheia, a coceira atacava em grande aflição, no pé fantasma
além, lá nele, do cotoco. Eram vezes que a vizinhança não dormia, e os gritos
assustavam os cachorros que latiam a noite toda.
Uma ocasião, numa rara noite em que a lua se esconde por um tempinho, e
se torna um anel de prata, a coceira veio a pique. E foi tanta, mais tanta, tanta,
que o paciente mudou as feições de muito urrar. Desesperado, caçava onde coçar
nas frieiras fantasmas, mas cadê o pé, já arrancado pelo ferro amolado? E eram
assim esses gritos:
— Socorro, minha gente! Meu pé está coçando! Dê cá o machado!
Ele só mais que urrava. No truvo total, o homem saiu pelos matos
gritando, correndo, alucinado, numa corrida manca. E soverteu para sempre, se
esgoelando pela capoeira afora, sumiu.

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7
Quem proseia precisa imaginar

Nhô Guimarães sabia o segredo: muita história que se conta nasceu de


coisa acontecida, mas fica por si, sem jeito de obedecer à verdade. Uma coisa
acontece, mesmo a gente vendo na hora, os olhos já enganam. Depois, eu lhe
conto, o senhor conta a outro que conta aos demais. Às vezes, uma simples
pendenga vira uma guerra sacudida. Quem proseia precisa imaginar, palavrear,
distrair o parceiro. Isso é o certo, as novidades boas e compridas. A verdade é só
um começo. O melhor mesmo da história é o capricho da prosa.
Quando Manu contava um caso, Nhô Guimarães se retorcia em caretas,
aprovando os jeitos. Ele pensava, refazia as frases, inventava mais uns detalhes.
Na mesma hora, ele contava a história de volta, de formas tais que parecia outra,
mas era a mesma. Era um homem de sobejas importâncias. Um distinto doutor,
do sertão e da cidade, duas vezes lugareiro, muito conhecedor das estradas gerais.
Vinha aos arredores, daqui mesmo do lugar, nestes distritos de onde o vento e as
estradas desviam. De depois em depois, foi arribando cada vez mais longe,
cidades bem grandes. Retornava em tempos, com as novidades. Depois ele fazia
lá uns livros, todo aquilo bem bonito, com figuras e as palavras todas. Aqui, ele
lia uns trechos pra gente apreciar; era bonito de se ouvir.
Ah, meu senhor, a vida é cheia de espanto. A gente pisca, uma coisa
acontece! Já lhe aconteceu de sua natureza amarrar, empatando fazer uma coisa?
Isso tem gente que repele. Eu não insisto se dentro de mim uma voz me fala.
Desmanchar viagem, desistir de negócio, mudar de caminho, descobrir a intenção
de certos amigos. É uma voz da gente, lá dentro, tentando dizer o futuro. Eu digo

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e repito ao senhor: escute seu pressentimento. É um conselho que a gente dá de si
para si mesmo, ou revela aos outros, para prevenir certos fatos.
Manu era mestre nestes assuntos. Se Nhô Guimarães vinha na estrada, ele
tinha logo um pressentimento. “Ele vem por aí, vem nos ver”, dizia satisfeito. Era
Deus no céu, Nhô Guimarães nos Gerais. Isso Manu relatava todo contente, de
sempre a sempre. O doutor tinha um quê e outros, uns porquês de gente de
distintas sabedorias. Largas prosas, ele anotava, de repente, uns traços nos papéis
que trazia na algibeira, no gibão de couro fornido, essas outras coisas. Ah, o
senhor me deixe! O que eu queria mesmo era um chapéu daquele de lembrança.
Eu colocava ali no alto, na minha parede. Não ficava nos jeitos? Tive vontade,
mas não quis lhe pedir, até hoje me arrependo. Queria essa marca de suas visitas
em meu rancho caiado. Quando eu dissesse: Nhô Guimarães passou por aqui,
logo ia mostrar a prova certa. Mas...
Se o senhor me ouve, sem pressa, eu lhe conto os entretantos. Nhô
Guimarães vinha, ia embora por um largo tempo, sem mandar notícias. Mas, se
ele sempre voltava... Hoje, se voltasse, como até parecia ser, mas era o senhor,
era muito bom, eu fazia muito gosto. Eu estou como Manu naquele tempo, nos
jeitos dele, mesmando na idade. Já o senhor, aí de frente, faz as vezes, já que Nhô
não vem mais. Deve de estar um velhinho bem empinado. Isso é de tal e qual que
por demais é até interessante. O tempo foi passando, repassando, traspassou. O
passarinho lá fora ainda canta, mas é outro. Que Nhô, ele, ele mesmo, se foi para
muito longe, eu sei. As gentes somos uns tristes, até os matos, olhe... Diferente
de tempos bons, nós e nosso filho bruguelo, Manu aqui bem vivinho — Deus que
chame lá! Certas mudanças são obras do tempo. Tenho saudades de Manu, hoje
morador de uma cova florida, que eu cuido sempre. Dia de finados, faço gosto da
visita, bato papo com ele, conto as novidades. Eu cá, enquanto não vou pra junto
dele, na mais certa morada, conservo um desejo. Eu queria saber de nosso filho
que sumiu no mundo. A vida é um perigo, mas ainda tenho um tisco de
esperança. Quem sabe do amanhã? Quem tem fé faz bom proveito.

28
8
Nossa vizinha, Raquelina Dindão

Nossa vizinha, Raquelina Dindão, estava pra lá de ruinzinha, de saúde


bem abalada. Estava nas últimas, entretanto não se finava. Entre os desenganos, o
doutor nem vinha mais assistir; só deixou os remédios certos, e todos cientes do
pior. Mas ela se conservava numa vontade enorme, calma como uma ovelha.
Tomava os remédios nos conformes, sempre achava alegria entre os sofreres de
sua dor. Era doença sem cura.
De pioras a melhoras, Raquelina se revezava. Às vezes, no quase que ia se
apagando, adquiria feições de já finada. Mas, quando seu rosto se alumiava de
novo, ela vinha a si, muito querendo viver. E se anunciava quase boa, pronta para
continuar as costuras, seu ganha-pão pela vida afora. A gente, ao redor, apoiava
com atenções e cuidados. Ela, com olhos pedintes, ansiava por uma boa resposta.
Então nos chamava à esperança:
— Estou quase boa, pois não estou?
— Sim, está quasezinha curada — a gente entrava a fingir.
— Amanhã me levanto, vou costurar.
Quem ia revelar o certo contrário? Para que ia servir a verdade àquela
alma às portas do além? Cientes do seu estado grave, mas sem coragem para o
real, a gente viajava com a amiga no seu sonho de ficar sã.
Raquelina Dindão era uma costureira de mão cheia, de bom corte, ótimo
alinhavo, excelente arremate. Ela costurava para toda a gente, que sua fama
viajava aos lugares. Agora, acamada, estava por um fio, no fim-da-linha.

29
Assistida à cabeceira, a vela ali escondida, sempre à espera da hora final. Mas ela
não tomava conhecimento da situação, assim perigando de se apagar de um
sopro. Só falava do vestido novo que estava fazendo para usar na noite de Natal.
Fazia tempo, desde que a doença tinha se mostrado grave, que tinha cortado o
tecido, nas justas partes de juntar e costurar o vestido novo.
O tempo passava, e a vizinha ia na mesma, entre os termos e as melhoras.
O dia da festa ia-se aproximando, e seu estado de fraqueza piorava. O corte de
vestido, as partes alinhavadas, tudo em espera vã junto à máquina de costura. A
gente, sem jeito a dar, só na angústia da vigília pela hora derradeira. Mas, sem
comentar nada, atentas ao silêncio.
Cada qual sabia a verdade, mas fingia um teatro piedoso. Era forma de
trazer amparo à pobre amiga desenganada. Ela se estendia no enredo, que a gente
esticava a linha e atava os nós. Se o doutor não vinha mais, ela interpretava o
sentido contrário. Que ele não vinha porque não precisava, pois já estava quase
sarada. Numa crise, veio o padre e cumpriu sua parte. Mas ela quis entender que
aquilo era um agradecimento aos céus. E assim nos fez rezar com ela, pagando
promessa pela saúde recuperada. Mas, como se finge alegria?
A situação cada vez mais doía na gente até às lágrimas. Raquelina, no
correr de uma tarde alegre, em que festejava a cura, caiu numa ausência
desfalecida durante toda a noite. A gente, ali firme, vigiava.
— Dessa noite não passa — umas pensavam, à voz miúda, dando meia-luz
à verdade.
Entretanto, para alegria triste de todos, de manhã a doente achava-se de
volta a si. E até mais animada. Sempre fraquinha, coitada, sem forças para
levantar da cama, sequer bulir a cabeça.
— Eu já estou boa, não estou? — ela gemia.
— Sim, quase. Isso não é nada — a gente confirmava.
Uma tarde, entre gemidos disfarçados em sorrisos, Raquelina anunciou
que queria costurar. A gente se entreolhava, abismadas. Ela pediu que levasse o
corte de vestido até a cama. Ia costurar à mão, pois a festa estava batendo à porta.
Decerto, não era bom contrariar. Tudo foi aviado, nos conformes do pedido, por

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puro desencargo de consciência. A cama virou uma mesa de costura, cheiro de
pano e linha misturado com cheiro de remédios. A gente só observava, com dó de
assistir a uma luta sem resultado.
A enferma sequer tinha força para sustentar o tecido e segurar a agulha no
lugar certo do corte. Com os panos na mão, ela desfalecia, no cansaço das dores,
até se sumir, ausente de si, em profundo sofrimento. Mas permanecia com os
tecidos presos à mão, a agulha em riste, numa vontade imensa de continuar o
trabalho.
A gente, sem crer no melhor, decidia favorecer a vizinha, em tamanha má
sorte. Quando ela perdia os sentidos, as amigas assumiam a tarefa. E
alinhavavam o vestido, ali mesmo, junto ao corpo da moribunda. Quando
Raquelina voltava a si, via o vestido adiantado em suas mãos, sua cabeça fraca de
sofrer não sabia distinguir a verdade. E ela mostrava, com dificuldade, o estado
da costura:
— Vejam o que já fiz. Não está bonito?
Todas se entreolhavam, com gestos aflitos. Quem ia desfingir o acerto?
Sim, estava muito bonito, alguém confirmava. E foi assim, uns dias, avançamos
na costura do vestido. Ela, cada vez mais feliz, cada vez mais fraquinha. Passava
mais tempo desmaiada, só tomava os remédios injetados na veia por Rosália, que
tinha uns quês de enfermeira e ajudava a cumprir as ordens que o doutor havia
deixado.
A noite de Natal estava próxima. Faltavam três dias e o vestido estava
quase pronto. Era só retirar os pontos alinhavados e pregar os botões. Era coisa
para se fazer numa só hora de desmaio de Raquelina, no acende-apaga de sua
vida se acabando. Mas, pelo visto, com as forças sumindo demais, Raquelina não
ia alcançar o dia de trajar o vestido novo.
Então, a gente teve uma idéia. Era melhor remediar o sofrimento da
espera. Ela podia morrer a qualquer momento, sem ter tempo de usar o vestido
novo. Seria uma pena, depois de tanta esperança e esforço. Com as melhores
intenções, resolvemos adiantar o dia da festa. Foi só ela perguntar, num sopro de
voz sumindo, e a gente logo fingir:

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— A noite de Natal é amanhã.
— Que bom! Eu já vou aprontar o meu vestido.
Então, foi um espanto. Ela se aprumou na cama, de fraca a melhorzinha,
retomou o vestido e, pelas próprias mãos, desmanchou uma parte do que já
estava feito. A gente se surpreendia, caladas, sem entender. Ela foi mais e mais
desmanchando, e daí pegou a refazer o corte e o modelo. Dava outra feição aos
enfeites e babados, e às partes do vestido.
A gente, de queixo caído, avaliava aquela façanha. Era tardinha, a
costureira entrou noite adentro. Como uma luz fraca, mas sempre acesa, ia
desfazendo e recosturando, com outros alinhavos e arremates.
Nessa noite, dali não arredamos. Até parecia um milagre, um pouquinho
de saúde apontando num corpo já tão castigado. Ela estava muito melhor.
Escapava, será? Ela seguia, só quieta, trabalhando bem devagar, sempre atenta,
demudava a roupa.
De madrugada, umas amigas ali cochilando, outras aos bocejos, de repente
ouvimos uma zoada lá fora, sobre o telhado. Era aquele horrível “rrrrááááááá”,
um som de rasga-pano, que dizem acontecer sobre o telhado do enfermo, na
véspera de sua morte. Era um pássaro da noite, talvez um agouro.
— Que... aviso... foi... este? — Raquelina mal balbuciou.
— Nada, só um barulho do vento no telhado — a gente fingia.
Depois, alta madrugada, adormecemos por ali mesmo, naquele treino de
velar finados. Quando amanheceu, no fingido dia da festa, a gente via sobre o
corpo de Raquelina o resultado de sua última costura. Sem alarde, conhecemos
que ela estava fria e pálida, em corretas feições falecidas.
O fato se consumava. Justo no dia inventado da festa, em que ela ia usar o
vestido novo. Então, com calma, afeto e respeito, cuidamos do corpo. Ali
terminava o nosso ato de fingir. Contritas, banhamos o corpo. Daí, começamos a
vestir a morta. E o vestido novo, uma vez colocado nela, se revelava nos traços
mais claros que a gente via. O vestido, conforme desmanchado e refeito, tinha
outro talhe, agora grave, correto e apropriado: era uma mortalha.

32
9
O boi vingativo

Nhô Guimarães e Manu, em suas tamanhas prosas, os dois se


combinavam. Pois escute: Manu lhe disse uma história, depois Nhô Guimarães
contou a mesma com palavras outras, umas muito difíceis da gente saber, porém
bonitas. Um contava, outro emendava, eles riam, eu só olhando, sem vontade de
escutar outra coisa que fosse um latido de cachorro, um miado de gato, um
mugido de vaca, ou cantoria de passarinhos. Um nada. Era só prestar atenção
num causo que eles saboreavam com café e pitadas. Eles inventavam uns bichos
sabidos, uns bons e outros maus, que pensavam e faziam coisas como gente.
O senhor já teve bicho ensinado, de estimação? Há exemplos. Cachorro é
apegado ao dono, fiel e cuidadoso, capaz de defender a pessoa na hora da
precisão. Mas gato, o dito bichano, é manhoso, dissimulado, se apega mesmo é
ao terreiro e ao canto da casa onde se enrosca para dormir e assuntar os calungas.
Passarinho, alegre ou triste, só faz mesmo é cantar. A pessoa pega carinho aos
bichos, cuida, abraça, beija, dá de comer e de beber. Se um dia morrem, a gente
só falta é botar luto: eles ficam como se gente da família. No terreiro é diferente:
aqui mesmo vivem as galinhas com seus pintinhos, e tem galo, pato, cocá, peru,
tudo aí por perto, mais além a vaquinha. Esses a gente cria, cuida, até se afeiçoa,
mas... um dia agarra o bicho pelo pescoço e passa a faca amolada. Não será isso
uma traição? Vá que seja, mas é costume que vem de tempos. Isso me dói, e se
posso evito.
O animal sente a traição do dono. Tem boi que chora quando entra no
matadouro, conhecendo que vai morrer. Eu mesma nunca vi, será? Mas, o senhor

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sabe? Também existe bicho de má natureza, cachorro que ataca o dono, gata que
come os filhotes, galinha que rejeita os pintos. Aqui mesmo se contam as treitas
de um boi vingativo. Antes, era estimado, dono do pasto e das vacas, com os
cuidados do dono, Nhô Bastião. Mas, sua vez chegada, acabou trocado por um
macho mais novo, de raça mais apurada. Nhô Bastião virou a cara, deixou de lhe
dar atenção, só se achegava ao touro novo.
De canto, desfeiteado, o boi velho foi ficando furioso, pelos aceiros da
manga, de olhos ruins. Nhô Bastião notou a brabeza do bicho, ai, ai, ai, resolveu
se desfazer dele. Foi aí, achou negócio, então vendeu. Nem notou que o boi,
arrastado à força para o caminhão do comprador, seguiu viagem olhando para
trás, botando mau olhado no pasto perdido. Ah, quem disse que ficou por isso?
Passou um tempo, foi passando, se deu um fato.
Um dia, de manhãzinha, Nhô Bastião corria os arredores a pé, percebeu
um barulho atrás da moita de capim colonião. O que era aquilo ele quis saber,
mas nem tempo teve de escapar. O boi velho enfurecido atacou, jogou o homem
no chão, e dando marradas bem em cima dos peitos, com raiva. O bicho tinha
fugido, voltou no faro para se vingar. E Nhô Bastião morria mesmo, se não
tivesse a idéia de fingir. Desfaleceu, ficou quieto, como se morto. O bicho
marrou nele mais um pouco, reparou que não se bulia. Depois saiu
desembestado, pelo rombo da cerca, descambou pela estrada. Nhô Bastião ali
caído, mal respirava. Por sorte, foi encontrado pelo irmão, e levado para a casa da
fazenda. E foi direto para a cama: sofreu, tomou remédios até sarar. Ele ficou
quase bom, só que de vez em quando sofria de dor na espinha. Coisas que
acontecem, a gente nem sabe explicar direito.

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10
Um sopro na luz

O senhor veja: estou na casa dos oitenta. Nessa idade, vou vivendo, sem
passar precisão. Nas terras ao redor, pouquinhas, porém dadivosas, planto e colho
de um tudo o pouco que preciso para o meu sustento. Crio meus bichos, as
galinhas aqui ciscando, de manhã chamo: ti... ti... ti..., elas vêm na carreira, cevo
com milho que eu mesmo debulho e piso no pilão. Tenho ovos fresquinhos de
quintal, o povo vem da cidade aqui aviar. Forneço mudas de planta de horta,
folhas para chás e remédios, coisas que Manu plantou e até hoje eu cultivo.
Cuido das roseiras, gosto de variar as cores. Comecei com um galho que plantei
em homenagem a um amigo. Adivinhe. Des’daí do compromisso, pegou bem, me
apeguei ao cultivo. Até hoje gosto, veja essa touceira no oitão de casa, adoro o
perfume e as cores, essa versidade de ramas, flores e espinhos. A terra sabe ser
boa para os que têm paciência nos seus tratos miúdos.
O senhor veja: sou uma velha aprumada, vivo em paz no meu sossego. Sei
me cuidar. Está ouvindo o chocalho nos fundos? É minha vaquinha de leite;
quando preciso faço trocas com os amigos mais chegados. Coisas que quero,
encomendo: os vizinhos me trazem da feira. De quando em vez, compareço lá,
faço minhas comprinhas. Hoje em dia, fazer feira é coisa sem graça, tudo vem
pronto, nos pacotes, com preço anotado. Eu mesma não gosto. Na feira, naquele
tempo, ora, não tinha isso de peso nem medida, era mesmo à bestunta, no olho de
oferta e aceite, na pechinchada. “Custa tanto”. “Dou tanto, vai?” A gente ficava
freguês, amigo, conhecedor das famílias.
Todo mês vou à cidade. Retiro meu dinheiro na Caixa. Ah, eu sou
aposentada, o senhor sabe? O valor é uma sem-vergonhice de tão pouco, a gente

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precisa exigir mais respeito. De mês em mês vou à missa, cumpro minhas
obrigações. Todo dia de finados visito Manu, lá na serra, no cemitério, vou lhe
contar as novidades, lembrar de nossas aventuras. Aqui em casa não fico sozinha.
Amigos, afilhados, compadres e comadres me visitam, vêm prosear e me pôr a
par das novidades. A cidade mesmo é tão perto, daqui de meu terreiro até
avistava uns telhados, o cocuruto dos postes de iluminação e da torrezinha da
igreja. Agora já não enxergo longe, só de óculos quando uso. Não se preocupe,
que já marquei hora com um doutor oculista que vem à cidade todo mês. Tenho o
valor guardadinho para essas providências. Gosto de prevenir, pra não ter de
remediar.
O senhor vê essa toalha branca aí fora estendida na janela? Isso é um sinal,
quer dizer que estou suficiente. Quem passa lá na estrada, olha pra cá, vê a
toalha, diz: “ela está bem de saúde”. Se não tem o sinal, já vêm correndo me
acudir, se estou doente ou mesmo, um dia, se passar dessa pra melhor. Isso são
cuidados. Coisa ruim não acontece só aos outros, pois não? Tome nota, que viver
merece cautela. O senhor tenha cuidado. Eu mesma quero é morrer de velhice,
apagada como um sopro na luz do candeeiro.
Vivo assim, humilde; conservo meus princípios. Certas palavras eu não
pratico, o senhor me entenda. Mulher tem mais cuidado com o que quer dizer,
não descuida das boas frases. Não afianço por todas, me reservo. Nisso dou fé,
por acreditar no certo e botar reparo nas que procedem diferente. Que isso há,
mas não devia. Assunte as diferenças, como observo lhe passo.
Conversa de homem gosta de ser chistosa, com certos dizeres que coram o
rosto da gente; de não se falar sem antes olhar ao arredor. Prosa de homem às
vezes é perto de muitas risadas, não sisuda, para destratar uns aos outros por
agravo, maldade ou mau divertimento. Daí que se atacam e se mordem com
facilidade, com a honra sempre perigando. Palavra de mulher é fineza, coisa para
os bons tratos. Eu sei o certo como medir o que falo, com quem proso, onde me
declaro. Falar é como tecer, mas nem toda roupa que se costura é vistosa. É
preciso apurar o juízo que as histórias têm sentidos escondidos nos interesses da
pessoa.

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11
Dona Sancha

Não sei se devia lhe contar esse causo, pois toca em assunto de certa
intimidade dos outros, até com palavras feias. Ah, o senhor consente? Está então
avisado. Dona Sancha era uma mulher desmazelada, de má índole, má vizinha,
má esposa, amachorrada, sem a menor bondade de sequer se cuidar. Vivia se
maldizendo da vida e se desfazendo do marido, coitado, trabalhador dos eitos,
que nunca se aprumava em melhoras de vida. Também, aperreado como se via,
toda noite, com a mulher! A pobreza deles espantava. Uma noite, tudo que lhes
restava para enganar o estômago eram três ovos de galinha. Pois avalie que ela
obrigou o marido, descangotado de tanto trabalhar, a cozinhar os ovos e servir à
mesa, onde ela esperava com soberba. Ele, a fim de paz, se sujeitou às ordens.
Assim feito, cozinhou os ovos e dispôs à mesa.
Do que foi posto, ela se apoderou de dois ovos, deixando apenas um para
o marido. Antes ele aceitasse a injusta divisão. Mas, não: protestou que o certo
seria um e meio para cada pessoa. Então ela se enfureceu demais da conta. Deu
murros na mesa, que os ovos até pularam. De pura pirraça, encrespou de vez.
Soltou um grito que se ouviu nas redondezas:
— Vou comer dois!
— Só lhe cabe um e meio — protestou o marido.
Mas a mulher enfezou de vez, vermelha de raiva:
— Vou comer os ovos todos!
E assim, possessa de uma fúria das piores, a mulher deu um troço muito
feio, desabou no chão como um fardo. O marido acudiu na hora, mas ela já
estava como que extinta.

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— Pronto, morreu! — disse o marido, desde aí aliviado.
Ela sofria de uma triste doença do coração, de quando em quando se
apagava. Dessa vez, foi logo ficando dura, mortinha da silva. Pois, por mais
endiabrada que fosse, era gente cristã. Merecia os tratos que a fé concede. Os
vizinhos ajuntaram, arrumaram a falecida no caixão. Ficou amortalhada, na sala,
em cima da mesma mesa da briga pelos ovos. Daí fizeram a sentinela, com
orações e murmúrios. Lá se ia a madrugada, o povo rezando benditos, trocando
prosas, uns contavam piadas, tomavam café, bebiam cachaça, assim, assim.
Lá pelas tantas, alguém comentou que a morta tinha dado um suspiro. Uns
logo se impressionaram, arregalando os olhos e se benzendo. Eta povo medroso!
Ora, mas como podia ser, se a distinta estava ali bem morta, dura-dura e
enregelada? Isso de beber cachaça em velório, se vê é coisa! Ah, não; fosse
embora pra casa dormir, deixasse de lorotas.
— Estou bêbado, mas não sou burro; que vi, eu vi. — insistiu o sujeito
antes de ser despachado porta afora.
— Vá procurar sua turma! Ora, mas que graça! — escorraçaram.
Alta madrugada, prosseguia a sentinela da vizinha, com causos, gracejos e
bebidas. As mulheres rezavam, os homens só que prosavam. Foi aí que a coisa
aconteceu. De repente a falecida deu um ronco medonho, sentou-se no meio do
caixão, ergueu os braços ameaçadores, gritando furiosa:
— Vou comer os ovos!
Os homens sofreram uma frouxidão medonha. Saíram correndo, pulando a
janela, pedindo misericórdia. Corriam doidos pelos caminhos escuros, segurando
as calças. As mulheres, atarantadas, corriam atrás dos maridos, numa grande
confusão.
O senhor ri, porque não estava lá, no meio daquela aflição.
Dona Sancha sobreviveu, mas ficou quase demente, em cima da cama.
Coisa de um ano e pouco, sofreu de novo o estranho achaque. E foi a última vez.
Finou-se de verdade. Mas teve um velório muito triste, quase sozinha, só ela, o
marido e o padre.

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12
A cidade encanta e prende as pessoas

Houve uma fase boa, de muitas prosas. Depois Nhô Guimarães viajou para
longe demais. A gente ficava só na espera de outras viagens suas pelo interior.
Ele batesse por aqui. Mas não vinha. Às vezes Nhô Manuelzão passava tocando
boiada, outra hora era Jão Nhenhéu viajando, a gente indagava. Eles davam
ciência de que Nhô Guimarães estava cada vez mais preso às famas, cada vez
mais importante, na cidade grande, sem tempo de vir prosear com a gente.
Cidade grande é assim, encanta e prende as pessoas. Filhos da gente pra lá
se vão, nunca mais voltam; uns às vezes, só nas festas. Viram outro tipo de
pessoa. Muitos vivem e se acabam por lá mesmo, a gente se conforma só com as
lembranças. Os filhos deles desconhecem a gente, tiram os parentes da memória,
não nos dão lugar em suas amizades. O senhor é de lá? Ou foi desses? O que traz
o senhor a essas bandas de fim de mundo?
A cidade arrebatou nosso único filho. Em menino era traquino, buliçoso,
um pouco avoado. Mas cumpridor, sempre às ordens, ajudando o pai nas labutas.
Pelos terreiros, assuntava as criações, tratava dos filhotes; nas safras, ajudava a
colher e a beneficiar, assuntando as coisas miúdas. Um dia, bateu machado,
arrastou lenha, pegou novilho à unha. Benza Deus, que tinha crescido! Manu
festejou com um abraço e deu tapas nas costas: “Meu filho você está homem-
feito!” De corpo pronto, com vontade de adquirir melhoras, ele deu ouvidos a
conversas soltas. Diziam que na cidade grande havia trabalho leve e corria

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dinheiro farto. O menino pegou uma cisma de arribar pra longe de nossas terras,
pra fazer um melhor futuro.
Eu, de logo, cismei: “Meu filho, não se vá da gente; você fique.” Ele
permaneceu firme na vontade, calado diante de minha aflição. Manu consentiu
que ele refletisse qual fosse o seu melhor parecer. Fincasse o seu juízo na fé,
perguntasse aos seus botões se a aventura ia lhe trazer fortuna e felicidade. Dias e
dias ele cismou por aí, andeiro, todo calado, ciscando pelos arredores. Parecia
sentir saudade antes mesmo de partir. Isso me contradizia; bem que ele já
planejava a hora da partida.
Um dia levantou decidido, que tinha sonhado com uma viagem excelente.
No sonho, ele chegava à cidade grande, achava uma botija enterrada, ficava
muito bem de vida. Desconfiei; onde cidade ia ter botija? Era só a imaginação
dele desejando melhoras. Ele pegou fé na sorte, e partiu, com os embornais
cheios de esperança e ilusão. Manu abençoou; lhe deu um abraço demorado. Eu
abençoei, aflita, com o coração apertado, e os olhos chuviscando de emoção.
Nosso filho se foi. Nunca mais voltou. E eu guardo até hoje essa tristeza à flor
dos meus olhos.
É verdade! A cidade grande enreda e prende a pessoa em suas entranhas.
Nosso filho sumiu por lá, virou poeira no meio de tanta gente. Um lugar que
diziam de grande riqueza, onde o dinheiro se ganhava fácil. Oh, desengano! Para
ir até lá eram três dias de viagem num caminhão coberto de lona. Mas, que
viagem sem jeito! Desgostamos da idéia, nunca saímos daqui para longe. Lá vive
um povo avexado, é ver um formigueiro; e ninguém tem tempo de dar bom-dia
ao próximo.
De vez em quando, nosso filho nos mandava notícias. Depois foi rareando,
daí se calou de vez. Ficamos com o coração na mão, sem saber o paradeiro. Um
dia soubemos, por um recado que veio mandado aqui na porta. Ele, um homem
feito, já agrisalhando, tinha sumido sem deixar notícias. Com esse aviso, tive um
sopro de rio nos olhos. Meu velho Manu se empertigou em prece, aprumando a
espinha, no total acalmado de sua derradeira tristeza. E também chorou de
saudade.

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Era duro saber. Um filho que a gente perdia e, por isso mesmo, ganhava
para sempre na lembrança. Eu continuei a esperar, safras e safras, que ele
retornasse. Onde andava? Casou? Teve filhos? Não veio mais, até que nossa
esperança secou, assim que a notícia. Eu ainda hoje estranho. Um filho, se morto,
a gente precisa ter a sepultura perto para visitar, acender uma vela, ajeitar umas
flores, cochichar uma prece. O senhor concorda, ou já perdeu essas crenças mais
antigas? O senhor ainda é muito moderno, vai ver é desses não acreditam nas
coisas do além.
Mas há uns mistérios, acredite. Eu mesma conheci um homem
desenganado, estava à beira da morte sem recursos. Era tão feio o caso, que um
remédio que tomava para um mal, ofendia o corpo com outros malefícios. Estava
para ser finado, assistido a velas próximas. Por desespero e ato de fé, a mulher
dele passou a lhe dar água do pote de hora em hora, que tirava no poço das
pedras. E mentia que era remédio da fonte santa de Pirapora, colhida pelos
romeiros na hora das contrições.
E, pois, foi nesse fingir, virou verdade. O homem teve melhoras, de gole
em gole, mais ainda melhorava. Escapou da foice, e se firmando, tomando sopa e
canja, até recuperar umas carninhas nos ossos. Um dia se pôs de pé, com ajuda de
muleta, continuou matando a sede e a doença, por fim terminou sarado. Terá
vindo de Pirapora, por debaixo do chão até o poço próximo, a água milagrosa?
Isso sim ou não, foi a fé, ou não foi? Sim, pois da água do poço muitos doentes
também beberam e, com tudo isso, estão debaixo de sete palmos de terra. E
então?

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A sorte nas mãos

O senhor acredita em vidente? No bom dizer, isso é intuição. Feito um


aviso para se saber as coisas que podem acontecer. Eu me lembro de certa vez,
era bem moça, estava na praça com minha comadre Davina. Naquele tempo a
gente se dava bem. Era a festa de Reis, havia uma quermesse da paróquia,
barracas de comidas e doces, divertimentos, até um parque de diversões, com
uma pequena roda gigante. A gente se esbaldava nesses dias, que ia de quarta até
o domingo. Havia novena, missa, e cá fora a festa que era o melhor de tudo. Eta,
diá! Lá vinham os zabumbas, uns tamborilando, outros gaitando, no zum-zum da
dança. Ah, o senhor visse que alegria.
Uma cigana vidente quis ler minha mão. Os ciganos, gente rara por ali,
estavam de passagem. Eles não demoraram quase um nada por aqui, foram
mesmo escorraçados pelo delegado e os policiais. O povo falava mal dos ciganos.
Diziam que roubavam galinhas, cavalos e as roupas no varal. Uns falavam que
eles faziam negócios, trocas ruins para a pessoa, vendiam jóias de ouro de besta,
não sabe? Não sei se era verdade, eu mesma não vi nada de mais. Esses ciganos
eram bem tranqüilos, pessoas mansas. Deixaram o acampamento, numa
madrugada, por cima dos rastros. Eu não ouvi ninguém se queixar deles. Diziam
que houve gente enganada, mas que, por vergonha, não deu parte a ninguém.
Quando eles foram embora, também sumiu uma moça de família. E o povo
cochichava que ela tinha fugido com um bonito rapaz cigano. O pai mandou um
cabra caçar a moça e o cigano, mas ele nunca voltou para dar notícia.

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Pois: como ia dizendo, naquela praça, no dia da festa, tive essa prosa com
a cigana. Ela ia passando por nós, agarrou minha mão, virou rápido e foi dizendo,
numa fala mansa, bem cantada:
— Deixa eu ler sua mão para saber sua sorte, seu destino, moça bonita.
No susto, puxei o braço; e ela segurou mais forte.
— Não bata a porta na cara da sorte, deixa eu ler seu futuro, boa menina.
Comadre Davina e eu nos olhamos, com ares de quase rir. Era o jogo da
sorte. Então, sim, eu deixei a mão e consenti. Ela então falou:
— Mas, primeiro, preciso de um dom, do seu coração bondoso, de boa
filha e boa amiga. Ponha em minha mão o dinheiro maior que tem na bolsa, do
tamanho de sua sorte e futura riqueza.
Não pensei que fosse um truque da cigana. Peguei na bolsa a nota de
maior valor e lhe dei. Ela apertou o dinheiro na mão e recolheu ao bolso da saia
rodada, era rosa de renda branca. Então, abriu minha mão e se concentrou nas
linhas com a ponta da unha, como se lendo uma escrita:
— Você é boa pessoa, tem sorte, mas confia muito nos outros. Vai passar
uma decepção grande, que vai lhe trazer um abalo no coração. Mas você vai
vencer, porque tem muita força de vontade. Vejo quatro homens em seu destino,
mas um só casamento. Sua linha da vida é longa, e você traz o traço da viuvez.
Você é constante; sua linha da riqueza é curta, mas sem passar privações. Será
mãe, mas sua mão tem as marcas do sofrimento. Ah, meu Deus... Aqui há coisas
que nem lhe falo. Se você fosse mais velha, eu lhe revelava. Mas você é tão
nova... Tadinha. Mas Deus proverá, minha filha. No fim de sua vida, terá uma
surpresa, não sei se boa ou má, depende de você saber decifrar a revelação no
momento certo.
A cigana segurava meus dedos, virou e fez que dava um beijo nas costas
de minha mão, com um sorriso triste, me olhando nos olhos. Eu fiquei assim
entre incrédula, atordoada e divertida. Davina só fazia era se pocar de rir. A
cigana quis pegar a mão dela, mas ela recolheu para trás das costas:
— Não, não acredito nisso, não.

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Dizem que a pessoa traz a sorte nas mãos. O senhor, o que acha? De
minha parte, vivi muitas coisas. Eu mesma tracei meus caminhos. Se algumas
coisas aconteceram como disse a cigana, quem sabe lá dessas coincidências! O
cigano é um povo cheio de sabedorias, vive correndo mundo, fazendo astúcias
para sobreviver. Isso é um meio de vida deles, muito diferente da gente. A cigana
disse adeus, levando meu dinheiro no bolso. Nunca me fez falta. Deixe lá, que
cada qual sabe de si.

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A fé na frente de tudo

A fé remove montanhas, como está nas Escrituras. Meu filho só se tornou


homem pela força da fé empenhada, conforme escapou curado. Ainda criança de
colo, pegou um sarampo, dos piores, empedernido, sarampão que pega como
gripe e mata como veneno. Aqui se espalhou como capim, levando ou cegando
quase muitas crianças. Em tempos bem antes, os filhos de um homem descrente
todos cegaram, como se fosse um castigo pelos malfeitos e defeitos do pai.
Aquele homem, só depois da cegueira dos filhos, foi aí que sentiu o sopro da fé
no juízo. Demudou completo, virou gente de missa, contrito nas rezas e nos bons
procedimentos.
Eu, com a doença de meu filho, pus a fé na frente de tudo. Esgotei muita
sorte de chás e orações, e meu menino só piorava. Ninguém dava um tostão de
mel coado por sua vida. Manu não estava aqui para providenciar a cura, pois se
achava nas estradas, lá para as bandas da Bahia, em negócio de compra de bodes
e cabras. Tomara voltasse logo que nosso menino a cada noite só piorava. Fiz as
simpatias antigas: milho debaixo da cama, chá de aça-flor, ramos de sabugueira
nos lençóis, chá de torrão de taipa. E nada.
O certo de um cristão falecer é com vela acesa na mão, para alumiar os
caminhos. Minha comadre Santinha me advertiu do perigo do menino morrer
sem vela. Eu tomei um choque. Meu filho morrer... era possível? O que fiz foi
chorar, no total desconsolo. Mas depois consenti. Era preciso revezar de noite, eu
e ela ficamos nesse serviço. Vela e fósforo ameaçando, ali na cabeceira; a gente
ensaiava uma sentinela.

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Uma noite, altas horas, comadre se retirou; foi dormir, que era sua vez. Eu
permaneci entre o sono e a aflição, acariciando os cabelos de meu filho,
encarecido de meus cuidados. Eu vigiasse a porta para a morte não entrar com
sua foice amolada. Uma vez, senti que ele ressonava fraco, enfraquecendo,
fraquinho. O corpo deslembrado nos lençóis, a vela com pavio de cordão
esgarçado, o fósforo com as marcas dos riscos. Era sua hora? Ia só que ia mesmo
esmorecendo.
Eu senti uma aragem fria me percorrer, arrepiei-me de pensar no pior que
vinha se aproximando de nós. Meu menino suspirava nas últimas, uns suspiros de
primeiro termo. São tristes os termos da morte, conforme tem histórias que
contam. Eu mesma sei, que reconheci muitos casos. Mas ali, na minha hora de
provar a dor, era o mais duro saber. Os termos da morte são de arrepiar a pessoa.
Eu quis chamar comadre Santinha que me acudisse, com preces e lágrimas. Daí,
num estalo, tomei outra decisão. Em vez, arrisquei implorar pela piedade de
Maria Imaculada, ainda hoje presente ali no nicho. Olhe: o senhor pode ver
daqui, lá está minha santa, bem perfeitinha. Pois examine, na verdade: as feições
da imagem se acham desgastadas, as cores esbranquiçadas; isso foi coisa dos
banhos de água do poço que dei na santa, por força de crer no milagre.
Nas horas mortas da noite, senti que meu filho se finava. Eram os termos
da morte, conforme já lhe contei. Contrita, eu dominei o desespero, não movi um
dedo; me concentrei no pedido à santa. Que Maria Imaculada cobrisse o menino
com seu manto de mãe. Sim senhor, fiz a promessa. Eu dava sete banhos na
imagem da santa, com água do poço, colhidas de manhã cedo, com o frescor do
sereno da noite. E dava de beber ao menino sete vezes por dia, banhava seu corpo
na hora da febre mais alta, lavava sua roupa e seus lençóis.
Não sei se foi por isso, ou se por força própria, nessa noite o menino
resistiu. Eu segui cumprindo a promessa, sempre calada, sem dizer o segredo à
minha comadre. Cumpria este zelo às escondidas, de segredo com a santa e a fé.
E foi assim que com sete dias procedidos, vi o menino se sentir melhorzinho, ir
ficando livre dos malefícios. Mesmo magrinho, esmirrado, um graveto, ele foi
sarando. Meu filho se salvou.

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Quando Manu chegou de viagem, relatei o caso. Ele havia sonhado com as
aflições e de lá enviou seus bons pensamentos. Foi a soma de querer o milagre,
os tratos com a água bem intencionada, a força de vida do menino; isso tudo se
juntou à fé, e a cura foi alcançada. Por isso eu digo ao senhor que cultive.
Conforme seja o possível, acredite, trabalhe, persevere que as coisas se realizam.

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Nhô Guimarães era pra lá das excelências

Nhô Guimarães nos dava muita alegria com suas chegadas. Assim, assim,
se ouço um tropel, pracatá, pracatá, às vezes penso que é ele vindo, como nos
velhos tempos. A gente guarda a memória de certos barulhos. Por isso, o senhor
chegando, eu quase que vi o próprio. Mas qual! Ele não vem, vem não,
nunquíssimo. Deve estar muito velhinho para montar. Será que falecido? Manu
afiançava que sim, pelos avisos. Eu nunca quis acreditar no pior. Pois, se não vi?!
Mas pode ser verdade. Isto são os viveres, o senhor acate. Um amigo parte, nos
deixa saudades. Às vezes não volta mais.
Assim oitentando os anos de vida, eu ainda estou que me lembro. De vez,
Manu ficava a pastorear os caminhos. Era onde uns capins queriam acompanhar
o vento, mas o chão não deixava. Por ali, bem calado, de cócoras, enrolava os
dois cigarros. Fumava um, o outro guardado. Se ele viesse? Eu, como quem não
queria nada, observava as falas mudas, como as prosas de antes. Sempre, assim,
numa espera por sorte, por enquanto. Ele vinha no pensamento? A estrada
sossegada, os ventos calmos. Outra vez, levantava-se uma poeira com saudade
dos caminhos desertos. De repente, um trote, pracatá, pracatá, era? Dei’stá que
vinha dos dias já passados. Era só na lembrança. Mas: espiando, na espia: onde
há mato, não tem passarinho? Pois sim. Mas não vinha não: era só uma poeira,
um vento surdo, num redemoinho estranho. Manu se benzia — Creio-em-Deus-
Pai! — Nhô Guimarães, se vinha, era só no desejo da gente, no nada.
O senhor tome tenência; e, se quiser, escreva: Nhô Guimarães veio, de
primeira vez, bem moço, em busca de anotar os dizeres de Manu. Sim, que Nhô
era já um doutor noviço de curas e saberes que só se aprende na cidade longe.
Mas ele, antigo menino daqui, então queria aprender a serventia de nossos
cultivos. Procedia no certo, pois há muitos saberes nas ervas de quintal. Pois,

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antes, observe: Manu curava um povo todo nas redondezas, do jeito lá dele,
aprendendo com os próprios fazeres. A gente toda sarava com as garrafadas de
losna, arruda e quitoco, outras plantas mais, de quais aromas. Huummm! Ele
ensinava os banhos de folhas pisadas: colhesse os ramos de manhã cedo, antes do
Sol nascer, deixasse de infusão no escuro, de noite se banhasse, ao luar, fosse
escoar o corpo, sem precisão de enxugar com panos. Isso curava; era tiro e
queda. Se não curasse, ah, então não havia merecimento.
Manu, segundo as prosas restantes, tinha umas artes de vida que deixava a
pessoa abismada. O povo, sabendo, e sem recursos, arribava em busca. Que ele
olhava nos olhos do penitente, esticava-lhe os braços, de um a outro, assuntando:
— Deus te livre! Isso é mau-olhado.
E lá se ia, colhendo as plantas certas, combinando cheiros e jeitos. Vinha
de lá, todo contrito, a colheita aprumada na mão. E cometia essa parte, banhando
em seco, com os ramos escolhidos:
— Com Cristo eu te benzo, com Cristo te abençôo...
Daí sua voz diminuía, ia calando, sumindo. Só os lábios permaneciam
rezando, os galhos festejavam no corpo do enfermo, até se restarem murchos. O
senhor calcule: as folhas atraíam os males para si, pela força daquelas palavras
invisíveis. As quizilas e quebrantos se agarravam nos ramos, e eles se
escabreavam dos tais carregos. O senhor querendo, eu rezo o senhor; aprendi
com Manu um benzimento com sete galhos de arruda. Mal não lhe faz, eu lhe
garanto.
Nhô Guimarães soube da fama de Manu. E veio assuntar uma explicação
de um dos feitos que corriam à boca pequena, de certo a incerto, nos entremais
das prosas. É, são essas coisas, sim senhor, acredite. Por essa luz que me alumia,
eu lhe digo e dou fiança: se for por firmar, assino. Faz tanto tempo! Nhô queria
era o conhecer. Como Manu sabia se a enfermidade era passageira? Ou se era de
longas datas? Ou o sem-jeito? Manu, de seus modos, que eu saiba, sem dar
confiança a estranhos, primeiro pegou uma conversa de entardear. Avalie que era
já às cigarras. Mas Nhô Guimarães, bem estado, fez por rir e deu risadas calmas,
granjeando confiança nos tratos, de pouco em pouco, até Manu se sentir nos

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modos da confiança. Pegaram amizade, de olhos em brilho nas boas prosas.
Desd’aí, foi sempre aquelas tardes. E Nhô lá vinha pracatá, pracatá no vem-que-
vindo, conforme já lhe pus ciente. Ah, um dia eu tivesse um cavalo daquele. As
visitas... Manu, no trato aprazado, recebia o amigo no terreiro:
— Apeie, Nhô Guimarães! Vamos provar um café coado de agorinha!
Então entravam, era uma festa. Eles reatavam, nas conversas todas, uns
causos cada vez mais compridos. Nosso menino, por si, ali ouvindo. Só que
desobedecendo os olhares do pai mandando arredar. Ele ficava importante só de
ver aquele homem sorrir e ajeitar os óculos. O tamborete até se rangendo nas
pernas bambas, quase que fazendo mossa no chão batido de nossa casa. Bem ali,
olhe. Nhô Guimarães era pra lá das excelências. Eu fiava meus desejos. Meu
menino fosse assim, de sua iguala, quando que crescesse. Um homem demais
apessoado, de passo a passo semeava umas frases, frutificando a conversa. De
mais a menos chegava, por força da voz, ao fundo de suas indagações:
— Como o senhor sabe se a enfermidade é aguda ou grave?
— Nhô, o quê? — disse Manu.
— Como sabe se a doença é passageira ou é demorada?
— Ah, deixe... Por quê?
— É que estou assim, meio quebrantado, com uns bocejos.
— Ah, então...
Manu pegou as mãos do homem, esticou uma e outra, estalou os dedos de
um por um, irregulares. Perquiriu bem nos olhos. Daí pediu que eu aviasse água
do pote, no caneco, eu trouxe. Pois colocou no meio da sala, pôs a mão
espalmada sobre, daí fechou os olhos, todo calado. Devia de estar rezando uma
reza curta. Eu, já ciente das práticas, logo lhe trouxe uma baga de brasa acesa,
colhida do fogo com o pegador de arame. Manu me tomou da mão, agora
aproximou a brasa da água, curvou o homem sobre a coisa. Levou a brasa até a
beirinha d’água, ali soltou, num borbulhar nervoso. O vapor subiu se espalhando,
uns bafejos no rosto do consulente. Nhô Guimarães suspirou, estava por si muito
satisfeito nessa aprendizagem. Manu esperou a fervura, com pouco, se acalmar. E
leu os dizeres do vapor, revelando a resposta:

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— O senhor fique tranqüilo, isso é um nada passageiro, sem truz de
ofensa. Tome um chá de artemísia, a erva-de-São João. Eu lhe arrumo as folhas,
que sequei na sombra. O senhor leve uma boa dose quando for hora de arribar.
— Mas como se faz para saber?
Nhô Guimarães insistiu. Manu então respondeu:
— Ah, o senhor faz a intenção de saber o caso, cá dentro de si, num querer
firme, com força. Daí, pergunta à água, nas borbulhas, no ar. Ela responde.
— E o que diz?
Nhô estava um aceso curioso. Manu completou o ensino:
— Se a brasa afunda, o caso é grave; até de preparar as lágrimas. Se a
brasa bóia, é um trisco de nada, coisa sem importância.
—Ah! — isso Nhô se admirando. Esse ah, ele fazia uns mais, depois
seguia quieto ou falante, entrava noutros causos, sempre curioso. Nhô Guimarães
coisava tudo tim-tim no caderno, viajado e sisudo, a fala mais mansa que o
chuvisco das tardes. Eu aprendia esse gosto de ser como ele, em minhas
vontades. Mas, tinha graça! Nhô Guimarães naquelas temporadas, agora só
lembranças. Quanto foi o tempo? E eu sei?! Não me arrisco. Sei que os janeiros
passaram, caíram chuvas, capins cresceram, rios encheram e secaram. A gente no
trote de plantar, colher e criar, nosso jeito de existir. Ele se foi de vez para
cidades de vastos comércios e gentes boas e más. Até no estrangeiro. Ficou um
raro. Levou consigo o modo desses causos que sabia ouvir e inventar. Deu-se que
pegou fama, por segundas histórias que escrevia, com sua voz refinada. Ele
contava essas coisas-sem-importância da gente; aí, pois, é que ficavam de-valor!
De quando em dia, vez ou outra, ele passava por aqui, então maduro, já não
muito risonho. Ou era eu que sonhava?
— Nhô Guimarães está muito bem — Manu comentava.
— Como que você sabe, homem?
— Tive uma intuição.

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Uma assombração

O senhor imagine: toda vontade de crer é pouca para tantos mistérios. A


gente morre, para onde vai? Cada fé uma resposta. Nessas coisas do outro mundo
o senhor acredita? Eu nem sim nem não, só às vezes. Isso depende. Mas que há,
isso há, umas coisas misteriosas. O senhor não acredita em causos do além? Já
viu assombração? É um morto que vem prosear com a gente de noite, se falecer
nos devendo um assunto.
Eu e Davina, a gente era comadre de fogueira, o senhor sabe como é? É
uma tradição muito alegre que vem de longas datas. A pessoa, sendo muito
amiga da outra, na noite de São João convida para saltar a fogueira. Se aceitar, é
uma prova de amizade para sempre. Ela me chamou: — vamos pular fogueira?
Vamos, eu disse: aí pulamos, uma até baixa, sem labaredas, mas viva. Que tem
de ser viva; se pular sobre cinzas, dá azar na certa. Quanto mais vivo o fogo,
mais forte a jura de amizade. Nós pulamos a fogueira em frente à casa dela,
ficamos comadres para o que desse e viesse. Só que Davina traiu esse juramento.
Ela me levantou um falso, me magoou para sempre.
Certa vez, ela inventou que eu tinha dado trelas a um sujeito ousado que
vivia me chiqueirando. Isso me custou o querer-bem de Balbino, que era quase
meu noivo. Ele ficou muito cismado, deixou de ir lá em casa me ver. Um dia
procurou meu pai e desfez os acertos, dizendo que era difícil prosperar intenções
com uma moça mal falada. Pois sim, era Manu que vinha no caminho da sorte.
Há males que trazem o bem na algibeira. A gente perde um grão, ganha um
milhão.

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Comadre Davina caiu doente, com aquela tosse que mata arrancando
sangue das entranhas. Doença do peito, tísica ou tutu, para não pronunciar o
nome terrível. Coisa muito feia mesmo: a cada tossida, ela golfava sangue pela
boca. As amigas me contavam. Eu nem fui acudir. Estava zangada demais com
ela. Depois, meu coração abrandou, e eu fui visitar a enferma. Mas eu estava ali
por um esforço de boas ações, ainda injuriada pelo falso que ela havia me
levantado.
Comadre Davina, atacada de febre e de tosse, ela morreu como numa
quarta-feira. Chamada às pressas, estive em sua casa, ajudei a cuidar do corpo,
cortei e costurei a mortalha, arrumei a morta no caixão. Mas não fui ao enterro.
Os dias seguiram, e eu sentia uma angústia apertada no peito. Não derramei
sequer uma lágrima, pois a grande mágoa endurecia o meu coração. No sábado,
já na frieza da sepultura, sete palmos de terra abençoada cobriam os pecados de
Davina. E eu não conseguia esquecer seu rosto de morta.
Naquela noite, foi um assombro como nunca. Ah, nem queira o senhor
saber. Tive um pressentimento, fiquei com a imagem da falecida atentando o meu
juízo. Fiquei mofina de ir me deitar, mas o sono me agarrava. Fui dormir muito
tarde, era uma noite de uma lua bem pouca, no alto de mais do céu. Eu estava
inquieta, tremia aperreada.
Com muito custo, mal peguei na madorna, deslembrei. Daí, não sei
quando, entre dormindo e mal-acordada, senti uma frieza entrando por ali, como
uma aragem de vento, só que frio e mais frio ainda. Então fui vendo um clareio
que vinha da sala. Veio vindo com uns passos pesados: tum! tum! Senti uma luz
fraca, estranha, como se a lua tivesse baixado. Eu havia apagado a luz da candeia.
Quando ouvi os passos aflitos, me arrepiei, senti o gelo que vem do chão frio dos
sete palmos de terra. Tentei me bulir, fiquei enregelada, sem força nas pernas
nem nos braços. A visagem entrou no quarto. Eu, muda de espanto, não
conseguia balbuciar nada de fala. Ela estava de pé, mas em feições de morta,
trajada com a mortalha que costurei e lhe vesti. As mãos cruzadas sobre o peito,

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os olhos fechados. Morta, mas em pé, pavorosa. Uma assombração. Eu não sabia
de onde vinha a sua voz terrível.
Ela disse: “Comadre?” Eu quis dizer “o que é”. E minha voz não saía, de
tão recolhida. Ela continuou: “Sou eu, Davina, lembra de mim?” “Sim”, eu disse,
só no pensamento, a voz sumida, sem se pronunciar. “Eu vim lhe pedir perdão”,
ela gemeu. “Perdão de quê?” “Do falso que lhe levantei”. “Que falso?” “A
senhora sabe... me perdoe, que estou vagando sem rumo, preciso seguir minha
viagem...”
Um silêncio horrível. Eu e a morta, numa eternidade de tempo, num
encontro estranho, impossível. Balbuciei, num fiapo de voz, com muito esforço:
“Sim... está perdoada...” Ela se inclinou para mim, gemendo: “Amém. Minha
estrada agora se ilumina.” Seus olhos arroxeados se abriram, mas o olhar era um
vazio longe, paralisado, sem existir. Ela disse, bem baixinho: “Adeus”. O vulto
deu as costas, pronunciou um gemido profundo, tenebroso, que fez o chão
tremer, e as coisas em derredor, a minha cama, tudo estremeceu... A assombração
seguiu para a sala, ali gemeu de novo, como se sofresse a dor de um punhal
desencravado do coração.
A luz estranha foi sumindo, e eu fiquei ali no escuro, paralisada, suando
frio, o corpo gelado, o coração pulando, a boca seca de angústia e um medo
terrível da morte. Depois de muito custo, achei o fósforo, acendi o candeeiro.
Usei um gole de água fria e esperei o dia raiar, com o alívio da pior noite de
minha vida.

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O sertão é de todos

O senhor, assustado? Relaxe, que o além não faz mal a ninguém. Os


mortos são de paz. O senhor... parece que se sente cansado. Eu, em seu lugar,
dava um pouco de descanso ao corpo. O que é que custa ficar uns dias quentando
sol, ou então esparramado na rede, só apreciando passarinho cantar? Isso é que é
ser mesmo sabido: o corpo, a gente usando demais, ele se desgasta. O senhor
veio de muito longe, isso se nota: chegou de viagem, qual mascate no sertão,
após paragens e prosas. O senhor traz algum trem pra vender? Não? Ora, o que é
que custa um descanso? Fique um tempo por aqui só vadiando os olhos, espiando
os acontecimentos.
O senhor aparece por aqui, sem lambança, bem discreto, um bom ouvidor.
É mesmo hora boa de aparecer gente nova nessas bandas. Não desgosto de
forasteiros como certas pessoas tapadas. Tenho exemplo. Manu veio de fora, das
divisas da Bahia, nas fronteiras dos Gerais. Aqui se tornou um filho da terra,
mais querido que muitos do lugar. A pessoa prospera nas bem-querências de ato
em ato, pelo procedimento; as boas obras. O senhor tem jeito pra isso, eu garanto.
Uns daqui, como se diz, de famílias antigas, às vezes são as ruínas, os
atrasos, os do contra. Gostavam de dominar o povo. Bem verdade que ainda há
uns que pensam que o tempo antigo não acabou. Querem herdar o mando de seus
piores parentes. Isso a gente conhece, mas tem jeito de evoluir. Aqui anda numa
precisão de gente de tino novo, conversa mansa, boas intenções. O tempo de
homens brabos, esse já passou, agora é tempo de acertos, pelo melhor considerar

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de todos. Porque antes havia chefe de mando, com seus capangas, suas brabezas.
Isso não tem mais cabimento, que o mundo já deu muitas voltas. O sertão vai
junto, demudando os seus velhos tratos.
Tantos perigos, tantas misérias. Houve um homem santo, certa vez, que
fundou uma cidade de gente humilde, de fé e trabalho, lá pras bandas do sertão
da Bahia. Isso faz muito tempo. Pois destruíram sua obra, por desamor ao
próximo, pelo ódio dos poderosos. Fizeram uma guerra, de tiro e metralha,
tocaram fogo na cidadela. Mataram, degolaram, queimaram o povo todo, meu
senhor. Isso se escreve e muito se narra: essas tragédias.
Houve um tempo de valentia e ignorância. Mas, ora, que isso não fazia
chover no sertão. Agora a gente pode ouvir as conversas, imaginar o certo, dar
um voto. Isso pode ainda ser bom, mesmo por melhorar, nas escolhas cada vez
mais certas. Eu, o que queria mesmo, um dia desses, era ser candidata. Isso se
tivesse idade menos. Mas qual, estou de pilhéria com o senhor! Até hoje voto,
escolho, recomendo. O tempo que passa só traz melhoras. Com paciência e
trabalho as coisas mudam. Mesmo devagar, vai tudo de mudança. Nhô Pompilo
mandava e desmandava nestas bandas, desde rapaz até a velhice. Os filhos dele
mandavam menos. Os netos não mandam mais. Essa gente mandante foge do
certo, destrambelha o sentimento, causa as piores arruaças. Espalha medo e morte
nos derredores. Eles defendiam a lei do mando e da vingança, dando tiro até em
vaga-lume. Naquele tempo a injustiça andava solta. Isso precisa acabar de vez.
Quem gosta de viver mandado? Agora o lugar virou cidade, coisa ainda pequena,
o senhor observa, mas considerada. Quem governa é gente escolhida, tem juiz e
polícia para serenar os ânimos, botar cobro nos valentes. Quem trastejar, tem de
responder pelos malfeitos. O mundo vai pra frente, o sertão vai melhorando.
O senhor, eu conheço que é pessoa de juízo, saberes e finuras. Bem se vê
que tem estudo, pois sabe recolher o ensino da experiência. Vai ver aqui se
estabelece, vem ajudar nas melhorias. Essa terra precisa de olhos novos, de gente
sabida, sem medo de mudar as coisas, alargar os horizontes. Ninguém mora ao
relento, se souber levantar um abrigo; ninguém dorme na pedra, se souber tratar a
madeira; ninguém vive mal por gosto. É preciso abrir os caminhos, deixar o povo

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seguir as trilhas, derrubar as cercas, abrir as porteiras, repartir a terra. O sertão é
de todos, meu senhor!

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18
Juvenal Setesprito

O senhor anda ansioso, fatigado das viagens? Considere a valia de um


conselho. A vida resulta no tempo certo, se a pessoa consente sua parte e
descansa seu tanto. Pois, então: se avexe não, descanse um pouco! Se lhe
aprouver, tire uma madorna, cochile um pouquinho, ali na rede. Pode crer: isso
não tem risco de ser preguiça nem faz vergonha. Eu aconselho, mas o senhor é
quem sabe. Vá tomando ciência dos desarranjos que vêm vindo quando o fulano
não cuida de seus repousos. Muito sol na moleira arrisca tostar o toitiço. Pode até
amalucar. As doidices sempre têm uma parte certa. Tem gente doida que sabe
render histórias. A gente se compadece, aprende muito com elas. No fundo,
ninguém é doido, ou todos são. Existe um jeito de ver o mundo de cabeça pra
baixo. Daí, tantas histórias. Tem doido que deixa a gente de queixo arriado.
A vida é esse risco sempre, pelo certo de um dia a pessoa desexistir. Pois
olhe o que aconteceu com um penitente, apelidado de Setesprito. Antes, era
Juvenal, um moço bom e certo. A mulher dele teve um filho, mas morreu de
parto, esse mal que fazia muito estrago nestas bandas. Uma tristeza. A criança
chorando atrás de peito, e a mãe mortinha no caixão. Era de se ver que grande
pena. Juvenal se apegou ao menino, criando, fazendo de tudo como uma mãe que
fosse. O pai criava esse filho, levava para todo canto, nos eitos, na roça, no colo,
nele agarrado.
Um tempo desses, apareceu por cá um bicho estradeiro e feroz. O povo
alarmava que era uma cria do cão. O bicho atacava, de dentes arreganhados,
sangrava filhotes de todo animal de terreiro e curral, novilhos, até cachorros

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valentes, e mesmo animal grande também matava. Dois caçadores de fama, do
tempo das onças, saíram em buscas, com azagaias e boas armas. Mas cadê que
voltaram? Acharam deles uns pedaços comidos, bem estragados, na entrada das
matas. Uns pensavam que o bicho era uma onça braba, outros diziam que
estavam extintas, só muito longe podia haver. Então, o que seria a fera
matadeira? A besta-fera, uns lá falavam, deitando rezas e anunciando o fim do
mundo.
O medo espantou o povo; ninguém se arriscava de noite pelas estradas.
Acabou que um sujeito viu o bicho e restou pra contar, pois se safou por pouco.
Ele abriu na carreira, enquanto a fera desgramada agarrava e comia o seu
companheiro, rosnando com uma fúria infernal. Escapou por milagre, embora
muito ferido, todo unhado e mordido, esmolambado. Sujo das babas, tinha uma
inhaca de podre fedor. Disse que o bicho era muito brabo, medonho, atacava no
escuro. Era retinto, cheio de treitas, ficava de pé, com olhos de fogo. Era coisa do
ranheta! Morto de medo, será que o homem exagerava? Era o próprio demo
encarnado? O dito-cujo não digo: era como um monstro de histórias antigas.
Uma noitinha, Juvenal voltava do roçado com o filho no colo, e, já escuro,
de repente se viu atacado pelo bruto animal. O senhor observe que sapeco! A fera
avançou, se atracaram numa luta braba, num corre-segura-solta, com o facão em
riste, lutando, e o filho no outro braço. O homem nem viu direito, só sentiu o
filho ser arrancado de seu colo pela patada da fera. Oh, pena, o pai sentiu a dor
terrível de mal ver, naquele breu, o filhinho inocente ser mastigado e comido
num minuto, sem sobrar um só fiapo. O barulho dos ossinhos se partindo nos
dentes da fera, isso Juvenal ficou ouvindo para sempre. E daí pela vida toda,
sempre dizendo a mesma frase, num suspiro doído, assim:
— Acode, gente: a fera está mastigando os ossos de meu filho!
Juvenal passou a vagar por aí, com esses dizeres e esse gemido. Da
extrema mudez, de repente dava um grito medonho: — Acode, gente! —
Endoidou, passou a viver só por conta e prazo de se vingar do bicho. Ele quase
não aparecia mais à luz do sol, pois sempre saía à noite em busca do animal
diabento.

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O senhor quer saber porque Juvenal virou Setesprito, esse apelido? Foi
porque, nas refregas com a fera bruta, ele quase morria, mas sempre escapava,
passava dias alquebrado, exposto na cama. De quase morto, ia assim que se
recuperava, todo emendado, quase disforme, um mondrongo de gente. Mas nunca
esmorecia.
Sete vezes ele escapou da fera. Era sempre achado pelas estradas em
farrapos de carnes e sangues, remordido, amunhegado. Quem podia entender?
Havia nisso um mistério: o bicho não devorava suas carnes, estraçalhava com
unhas e dentes, mas não matava. O povo pegou a dizer que Juvenal tinha feito
magia num terreiro de macumba, lá pras bandas de Curvelo: “— Setesprito tem o
corpo fechado”.
Mas se a vingança de gente contra gente é uma loucura, imagine duas
vezes a doidice de se vingar de um bicho daquela iguala. Ele ia sozinho, sem
ajuda nenhuma, que não queria. Vivia para vingar o filho. Nessa doideira, ele se
transformava, passou a farejar e grunhir; sabia onde estava a fera, só por sentir
seu cheiro no vento. Ele se desenvolveu melhor que cachorro de caça, tal fosse
um bom perdigueiro.
E foi num dia de lua cheia que Juvenal Setesprito se bateu com a fera em
campo aberto. Ah, que briga, que desmantelo! Levou tanta patada, mais tanta
mordida, que se atracou corpo a corpo, ferrando a diaba com os próprios dentes.
E dali não mais largou. Era estrada afora o bicho correndo, ele ali, agarrando os
dentes na jugular, até a fera perder as forças na correria perdendo sangue. E foi
assim até o animal cair no estertor, estrebuchando, dando patadas no ar, com
urros terríveis. Era aquilo demais da conta: o bicho já morrendo. Juvenal
Setesprito não largou a jugular da besta, continuou sugando, ia engolindo,
bebendo o sangue. E foi indo, foi indo, até que sentiu o fim das forças, desmaiou
sobre o corpo da besta fera sangrada.
O pobre homem foi encontrado por uns viajantes, como morto. Acabou
recolhido ao posto médico, em petição de miséria. Em choque, desacordado, caiu
muito doente, e cada vez mais, acamado com as febres mais cruentas. Aquele
sangue ia vingando em seu corpo como um veneno. E ele se acabava sem

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remédio que desse jeito. Logo estava assistido, desenganado, pronto para o
extremo, de vela acesa na mão. Mas o tempo passava e ele não morria,
contrariando a palavra de todos. Até que um dia melhorou um pouco, passou ao
delírio. Numa pouca aragem, lhe veio de volta o entendimento. Ele abriu os
olhos, e depois de uns dias indagou pela fera. Queria saber o paradeiro da inimiga
mortal.
— O bicho está morto, você matou com uma dentada na jugular, e bebeu o
sangue — narraram a sua façanha.
Juvenal Setesprito arregalou os olhos, de não crer em si, daí suspirou.
Depois se houve que sim. Gemeu um riso fundo, de ferida satisfação. Será que
escapava para contar a história? Bem que podia. Entretanto, de sorte contra,
venceu seu prazo. Merecia ter oito vidas, mas não teve o alcance. Na mesma hora
derreou a cabeça, descansando. Deu um suspiro demorado, com um sorriso torto,
satisfeito, que se achava vingado. E disse, com um fio de voz sumida:
— Agora vou ver meu filho, já vou, adeus.
Dito e feito, sem quê nem pra quê, de novo fechou os olhos, não mais
abriu por longos dias. Até que morreu mesmo, de corpo estirado, fielmente
falecido.

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19
Essa tal comadre

O senhor fique sempre de aguardo: de vez em quanto, o tempo dá um


suspiro. Essa hora é um perigo de a gente se descobrir, uma caixa que cai no
chão, espatifa, se esparrama e se arregaça, revelando os segredos. Ah, pois não é?
De certas experiências, cabelo da gente já nasce branco. O bem e o mal, esses
amigos, andam de abraços: todo cuidado é pouco!
Estou suficiente para lhe contar, pois nunca me abri tanto numa prosa, em
todos esses anos em que já vou e já vão. Se não me revelei antes, não foi por
ruindades mansas, com essas não convivo. Desde que Manu se foi, muita coisa
ficou trancada cá dentro, num canto escondido de mim. Agora, ao senhor eu
conto um causo que aconteceu comigo. Foi numa tarde que nem devia, mas fui
tentada pelas lembranças. Resolvi armar mundéo pra pegar tatu. Manu às vezes
me chamava para essa caçada, quando o compadre Antão não vinha acompanhar.
Sem Manu, já falecido, os mundéos e as arapucas ficaram por aí pelo quintal,
sem serventia. Compadre Antão esfriou com a caça, deixou pra lá. Naquele dia,
eu estava quieta, só lembrando coisas, nada demais. Me deu vontade de caçar.
Peguei os mundéos, preparei, botei as iscas e ganhei o rumo dos matos.
Lá pras tantas, no faro da caça próxima, conforme o perdigueiro sentia, fui
indo para dentro da capoeira, esqueci de marcar as trilhas. Ah, meu senhor, e não
me vi perdida, sem saber pra onde era o rumo? Andava, andava, num aflituoso,
dava por fim na mesma área, o cachorro latindo sem faro. Eu pensei: ai, que é
ela, a danada. E existe? — o senhor pergunta: eu concedo, existe e não existe. A
gente sabe, mas não vê. Que essa comadre é invisível, a gente só toma assunto
dos seus feitos. Ela ia, com um grito seco: Ê-cô!, parecendo voz de vento nos
ocos de árvore morta. E se? Será se a natureza mesma falasse, para nos deixar
atarantados, perdidos, sem dar fé de armar arapuca pra pegar os bichos do mato?

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Foi uma tarde inteira de aperreio e agrura. Veio a boca da noite engolindo
tudo a grandes bocados, vinha em vez, ia indo. Olhe, lá uma hora foi: é bem
verdade que a lua se escondeu nas nuvens, caiu sobre os matos um pretume geral.
Mas isso mesmo é a arte dela, nossa comadre arreliada. Ela não consentia era
baixa no bando de seus afilhados. Tem dia, ela acolhe os bichos, não consente a
caçada. Sim, mas o costume põe torto o cachimbo: eu passei por isso. E-cô!, ela
se assanhava. Parecia ser voz de bicho, um qualquerzinho, mas não havia de ser
outra coisa: era ela, se disfarçando pra me atarantar. Eu acreditei. Ai, para que fui
esquecer os agrados que Manu ensinava? Agradar a comadre, é bem de crer, para
quem carece de melhor resultado na caça. Tem de deixar nacos de fumo-de-rolo
nos tocos de pau! E, porventura, melhor levar dente de alho nos bolsos. Que
mais? Só rezas e olhos fixos na estrada, marcando a trilha pelas touceiras de
capim e cipó.
Essa tal comadre, a dita sestrosa, ela faz estrepolias medonhas. Acua e
assusta os caçadores pelos matos. Ela entrança a crina e o rabo dos cavalos, eles
vêm por aí numa agonia braba, esquipando com grandes sustos. Cada trança é
bem feitinha, difícil de desatar. Só achei o caminho de volta com ajuda de um
roceiro que ia por ali picando a mula. No que ele apareceu, dei graças. Perguntei
pra que lado estava o caminho. Ele disse: “uai, é aqui, olhe”. E era, ali mesmo tão
perto, diante de meus olhos, e eu não via, tão atarantada que estava. Voltei pra
casa, com o perdigueiro amedrontado, que ficou meses sem sair do terreiro pra
nada. É assim, quem acredita já sabe como é.
Doutra feita providenciei, conforme os ensinos, os agrados: pedaço de
fumo, deixando uns nacos nos tocos. Ela se vale disso, no seu gostar. Assim feito
a gente não se perde: ela fica de bem com a pessoa. O caminho fica fácil, que
ninguém se perde da trilha. Tudo tem duas regras de entender: nisso a gente
diverge. Eu falo, o senhor tem direito de não fiar. Mas cá me diga, se já não teve
às vezes umas explicações incertas das coisas?

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Nhô Guimarães pelos Gerais

Nhô Guimarães sabia tirar proveito dos olhos nas estradas. Viajar pelo
sertão é uma aventura que data dos velhos tempos. A estrada é boa companheira
para quem sabe trilhar seus atalhos e veredas. Para andar bem, é preciso saber as
horas certas: partir, parar, pernoitar, espiar as paragens — conhecer os sinais.
Para todo afazer há ciência e jeito. Para uns, a viagem é busca ou serviço, para
outros é só aventura. Para Nhô Guimarães era um assunto, que ele apreciava
aprender o sertão.
De tanto viajar, se conhece de onde vêm os ventos. O senhor medite:
mestre é aquele que sabe aprender. Ele fez uma travessia longa, de muita
importância para seus escritos. Se aventurou nas poeiras, passagens das mais
supimpas, com os demais. Depois, ele mais falava, contando os causos de fora a
fora. Estive ciente por atender os vaqueiros aqui chegados. No terreiro todo aí
fora se arrancharam para o descanso e o de-comer, os animais espalhados
convivendo amigos. Eles – uns deitaram na grama, outros fizeram fogo em
gravetos, mexeram farinha e carne seca de seus embornais. E eu fiz questão, servi
água, chá e café. Quem chega até minha porta é pra ser servido. Isso, o certo, a
gente faz: as honras da casa no sertão.
Por aqui mesmo não passava a trilha certa, era pelos arredores, como o
costume de sempre. De longe se avistava a boiada, como rio se arrastando na
terra. De cá a gente via poeira, chifraria do gado, uns peões a cavalo, tocando.
Era por lá a passagem. Vez por outra um aboio vinha, no meio dos berros, para a
boiada não despistar. Mas quiseram, aqui estavam: dei boas-vindas.
Eu fiz fé que Nhô Guimarães desviou do caminho certo, por um pouco
bocado de chão, só para se arranchar em nosso terreiro, trazendo os abraços
suados, cheiro de vacas e histórias para matar a saudade. Fez o certo. Ora, qual:
foi o bem melhor que mais fosse, uma idéia muito excelente. Ele nos apresentou
aos homens. Manu estava perto, cuidando da plantação de ervas, atentou para

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aquilo lá tudo vindo, daí reconheceu o amigo. Nhô, ele vinha, o escrito boiadeiro,
de gibão, chapéu, com os óculos, bem do seu, sossegado, a cavalo. Eta diá! Nhô
chegando, na surpresa! Eu botasse água no fogo para um café ligeiro. O coração
se alegrava. Foi: vinham os outros peões, homens quase calados, alguns eram
conhecidos da gente, e até se via um meninozinho no meio deles. Esse terreiro
todo, daqui por lá tudo, nas redondezas, tudo coalhado de gado, adubando a terra
com estrume fresco. Era bom avistar aquela fartura de gado em viagem. Eh,
sertão!
Ele vinha, e se aproximando, chegou à frente, no pinote, bem faceiro, com
dois homens grisalhos, dizendo a salva:
— Ó, de casa, aqui se acha abrigo para uns pobres? — pilheriou.
— Cheguem à frente, a casa é vossa — foi Manu sorrindo.
Aquela tamanha alegria. Foi um tirar chapéu, apertos de mão, abraços. Dei
de beber a eles, uns espantavam o calor com o chapéu. Daí a mais, só os ajeitos e
as conversas. Os homens prestavam atenção no companheiro, pouco sabendo de
suas importâncias, mas com cara de satisfeitos. Os caminhos eram trilhas de
muitas perguntas. Nhô Guimarães por tudo a saber e anotar, no sempre, os seus
riscos e debuxos no papel. Os aconteceres do mais sertão, lhe dissessem de tudo.
Eles ensinavam, com as palavras certas, sobre bichos e matos e tratos. Ou no
gaguejo de saber, sem falar claro e preciso de se entender melhor. Nhô
reperguntava no quente, dizia o mesmo, para saber se era aquilo o certo que tinha
imaginado. Eles se entendiam, mesmo o algum que fizesse menos cara boa, por
vezes de não querer lhe dar trelas. Uns outros, sem tomar parte em conversas, só
espiando de olhar atravessado. Principalmente Nhô Zito, de olhos só mesmo
passarinhando em derredor. Nhô Manuelzão era quem mais sabia ensinar, sempre
bom de prosa e de aventura. Os demais, estes cismavam: onde já se viu boiadeiro
assim fanfando, todo lorde, bem do seu, de finos óculos? Ora! Essa viagem era
para retratos e anotações, que vinha junto um moço com ordens bastantes. Isso
pra quê, não perguntei. Mas, de certo, para estampar a travessia em papel, para
outra gente saber de tudo e conhecer as aventuras de Nhô Guimarães pelos
Gerais.

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O menino do mato

Histórias não me faltam, o senhor anote. Tive um filho, duas alegrias, três
sofrimentos. Já chorei minhas lágrimas, meus olhos têm a sede de muitos choros
derramados. É o sal de minha alma que nasce deles. Por vez a boca me amargava,
ou me dava um azinhavre na garganta. Esse único filho eu perdi. Lá se foi pra
cidade grande, até hoje sem notícias, sabe-se lá se vivo ou morto, que certeza
mesmo não tenho. São os viveres. Com o tempo, dei vencida no sal, sobrou a
parte boa das lembranças.
O tempo é poderoso. Um dia a gente até sorri das lágrimas do passado, ao
compreender que a vida é só essa passagem de todos. O desespero é fruto dos
desacertos, mas no fundo traz uma semente que, se for bem plantada, floresce
uma flor melhor. Às vezes digo coisas soltas, o senhor não repare.
Eu aguardo. Meu filho se foi, onde anda não sei. Mas espero: se vivo ou
morto, um dia ele volta. Promessa é coisa que vale muito. Com fé a gente tem o
alcance de pelo menos saber as certezas. Espero um dia a revelação da verdade.
Se morto mesmo, preciso rezar. Já me deram essa notícia, chorei. Mas ele nunca
se apresentou a mim, nem mesmo do além. Se comadre Davina me apareceu, por
que meu filho não me vem, em sonho ou mesmo em pesadelo, me trazer a
notícia? Eu espero. Vou saber? Nem todo recado é verdadeiro. Se for vivo, tenho
precisão de abraçar. Se for morto, quero encomendar sua alma. Depois, há muitos
jeitos de retornar, através de notícia, lembrança, presságio ou descendente. Eu
sei: ele volta, de algum jeito que possa ser, mesmo não sendo ele mesmo em
pessoa. Um dia ele há de voltar, de algum jeito que seja. Eu espero um sinal.

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Ah, meu senhor, filho é um tesouro que a gente às vezes perde. Minha
irmã Maria passou uma provação das piores. Um só filho ela teve, um único, por
bastante sorte, tantas rezas que fez, com esperança de ter um menino. Um para
remédio, esse um ela pariu, por grande graça e enorme infelicidade. Para o que
foi, ela ia muito bem no começo, toda feliz. Bordou sete pares de sapato, mais
fraldas e camisolões e outras vestes, um enxoval bem sortido. No entanto caiu de
cama, sofreu um adoecimento, com febres altas e calafrios, quando pegou
barriga. Daí o filho se bulia muito em seu ventre, ela sentia muitas dores. Certa
vez aconselharam que fosse consultar um doutor. Seu marido João, que era vivo
e forte naquela época, reprovou na primeira e na segunda prosa. Mas, por vias
das dúvidas, que ela piorava mesmo, por derradeiro ele consentiu.
E foram os dois, de légua a légua, em lombo de burro, até a cidade mais
próxima. Era custoso se prestar a exames de um homem desconhecido, mesmo
aquele de altos saberes, muito sério e grisalho. O doutor fez perguntas
embaraçosas, eu soube, mas o pior foi depois: o que ele concluiu. Uma semana
depois deu o resultado: mandou o marido esperar lá fora, encarou bem a grávida
e falou, com pausa e serenidade. O filho podia nascer sem tino. Por isso, se
consentisse, tirava esse filho de dentro de lá ela. Isso podia, por direito, ele disse.
Mas, por certo, talvez castigo, jamais teria outra chance de parir.
Ah, não, meu senhor: não dava, pois calcule: como desrealizar o que Deus
promete? Maria nem discutiu o despropósito com João, que de esquentado logo
passava à fervura. Ele podia ir tirar satisfações ao doutor, de forma feia, e sair
perdido da lambança, devido à desimportância do casal. Saíram sem
cumprimentar o dito doutor, com seus olhos pesarosos.
Mas, será: houve engano? Pois foi que o menino nasceu em bons modos
de vir à luz, sem trabalho maior que umas dores e uns gemidos. Eu aparei, nesse
tempo era parteira, ajudei a vir ao mundo o meu sobrinho.
Mas eu, aparando a criança, notei: foi o total diferente. O menino nasceu
calado, quase roxinho, muito ofegante. Uma palmada, nem duas, na terceira
desisti: estava vivo, porém sem cometer o santo choro de nascer nesse mundo de

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lágrimas. Não sei se o senhor sabe, mas é muito mau sinal, isso de não chorar no
parto.
O menino nasceu, mamou, teve bem esse leite farto de sua mãe, desde o
colostro, que Maria lhe deu, é verdade, os santos alimentos que minam dos seios
da mulher. Era criança de nenhum choro, pouco ruído, só dormindo, mamando
sem destratos, só carinhos, cantigas de ninar, e planos de futuro feliz. E foi assim,
esse pequeno varão, no que crescendo, foi vivendo difícil. Pois era um
mirradinho de Jó, tardava de engatinhar e de falar. Num custo, que se esperava, e
nada. O menino mudo, sem força nas pernas, só de berço e de colo. A cada dia, a
gente testava, pegando pelos braços, as pernas arrastando no chão, dandar,
neném; dandar, meu bem... E nada, meu senhor.
Então a mãe entregou o menino aos cuidados de Santo Expedito, com toda
a devoção necessária. Maria se animava, fazia cânticos de louvor e orações. Ela
prometeu que dava o menino de afilhado ao santo, conforme cumpriu mesmo, e
lhe vestia as roupas sacras de anjo, nas novenas de todo mês, que a gente ia
fazendo.
Discorrida a promessa, um dia o menino se pôs de pé. Foi um espanto! E
diante da mãe pasma num assombro de lágrimas, foi um salve Santo Expedito,
pela graça alcançada. Zeinho andou e tresandou bem mais que ligeiro. E mais
que andar, ele de repente rápido corria pela casa, numa alegria de gritos fortes e
altos. A voz e as pernas desatavam de uma só vez.
E logo daí, veio o mais estranho de tudo. Ele pronunciava uns grunhidos.
E saindo, na carreira de um raio, atravessou o terreiro. O senhor veja aquela trilha
ali, subindo o aceiro da mata, daqui a gente vê bem, olhe. Ele quebrou para
aquelas moitas lá, numa correria desembestada. Maria seguiu atrás, gritando:
Meu filho! Meu filho!, Volte! Olhe mamãe aqui! Eu te dou de mamar! E ele, sem
parar, se distanciando. Veja o senhor que o menino ganhou a capoeira, foi se
embrenhar naquelas matas longes que até hoje restam, montes acima e abaixo. Eu
podia falar alguma palavra, como? Segui atrás, arribamos juntas na procura, mas
não achamos, que sumiu mesmo no mato. Maria só chorava, com aflição,
revirando as moitas. Foi quando, já anoitecendo, eu tive de voltar. Então eu

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chamava minha irmã, vamos, Maria, a gente volta amanhã. Ela não disse uma
palavra, só as lágrimas, e prosseguiu na busca, noite e dia, pelos matos,
suplicando: Zeinho! Zeinho!
Maria mudou de jeitos, quase nem mais morava em casa, de lua a lua,
procurando o filho o tempo inteiro. Vivia nos matos. No princípio, o marido João
ajudava, ia com ela, embora calado. Mas ele perdeu a fé. Havia o trabalho da
roça, de sol a sol, precisava aviar os alimentos que a vida continuava difícil. Ele
ficava assim, quieto, imaginando, o cachimbo preso nos beiços, sem fumaça nem
esperança. Se encontrava a mulher, olhava seu rosto triste com um olhar
dolorido, desesperançado. E aconselhava que se conformasse, o filho estava
perdido.
Maria continuou a procura sozinha. Eu às vezes avistava ao longe sua
figura trilhando os caminhos, vasculhando as moitas, chamando o menino. O
vento trazia sua voz de longe, como parte de seu zumbido nas folhas: Zeinho!
Maria estranhava. Se a gente chegava perto, ela nem encarava, como se só
enxergasse mesmo a ausência do filho. Mas eu ia sempre lá, deixava comida nas
passagens, ela se abastecesse, prosseguindo em sua sina.
Foram meses, um tempo sem jeito. Até que minha irmã voltou para casa
contrita, sem ânimo, tristinha. Seu rosto estava envelhecido uns dez anos, em tão
pouco. A gente via as marcas fundas do seu sofrimento. Os cabelos ficaram
branquinhos que só o senhor vendo que coisa. Nunca mais ouvi de seus lábios
um só fiapo de sorriso. Ela, sempre pensativa, os olhares se arrastavam no chão.
Todo dia se resignava diante do santo, e mais rezava. Às vezes sentia ódio,
blasfemava. Outras vezes pedia clemência por toda vida. Pela janela, seus olhos
se estendiam o dia inteiro pelas serras, sempre buscando um sinal.
Maria ficou como que presa, em sua própria casa. Não saía nunca, ficava
à espera de seu menino. Às vezes cismava que Zeinho rondava por perto, que ele
lhe reparava às escondidas, sem se mostrar. Então só aí ela sorria entre as
lágrimas, me dizendo: Zeinho veio me ver. Eu perguntava como e ela dizia que
de longe, lá no aceiro, no pasto, perto do riacho. E tinha visto? Não, ela apenas
pressentia sua presença, quase mesmo os cheiros de gente sua, de um suor

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acostumado. Eu ajudava a prestar atenção, mas nunca que ele vinha perto, se
fosse isso. A mãe havia de ver esse menino, na força da esperança. Eu fazia
minhas orações.
Começou a fama. O povo, sim, eles diziam coisas:
— O menino da senhora anda vagando por aí, faz visagem à noite, ataca
pessoas e bichos pequenos.
Como podia ser? Ah, eram intrigas de más pessoas. E isso só piorava.
Com a fama e os maus dizeres, organizaram uma caçada atrás dele, que então
fugiu bons tempos para longe, conforme disseram. Essas lendas. Segundo diziam,
ele se manifestava com latidos e rosnados ao luar, o que muitos cochichavam
pelas bandas. Mas, não acreditei: devia ser um bom menino, no jeito lá dele,
mesmo se quase diferente, era uma boa criatura, meu sobrinho.
A mãe desfazia os boatos, tinha muito amor ao bem dito, como sempre
desde que ele mamava em seus peitos. Com essas lendas, João pegou uma
tristeza muda, foi esmorecendo até que um dia desmaiou para sempre, com o
coração arrebentado. Nesse pesar, o povo respeitou uns tempos. Foi um enterro
concorrido, devido à fama do filho. A gente ouvia os murmúrios.
Nessa época a zoada acalmou, uns diziam que o menino-do-mato tinha ido
embora, sentido com a morte do pai. Outros garantiam que uns caçadores de fora
tinham matado um bicho estranho, bem que seria ele. Por tudo que fuxicavam,
minha irmã chorava, pois não podia escutar ofensas a seu único filho e ficar
calada. Ela amaldiçoava o povo cruel, falto de dó e piedade.
Tempos depois, Maria voltou a criar fé em achar o menino. De novo se
embrenhava nos matos, numa procura dolorida. Eu não tinha nenhuma esperança,
mas não podia deixar que vagasse sozinha pelas paisagens. Ia com ela, mesmo
sem ouvir uma palavra sequer de sua boca. Ela sabia que eu já não tinha fé, e por
isso parecia magoada, sozinha em sua esperança. Pois foi, um dia, de noite, ela ia
indo, de estrada a estrada procurando, e chamava num apelo de mãe:
— Zeinho! Venha cá, meu filho, meu amor! Não tenha medo. É mamãe!
Olhe o peito cheio de leite: venha mamar, meu menino!

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Quando foi, eu atrás, já quase sem fôlego, logo percebi um vulto, que
chegava assim pelas costas, perto de mim. Eu parei, de logo, tomada de tanto
medo, que quase tive um troço. Não vi bem, mas sentia a respiração, que parecia
de gente, mas também rosnava ofegante. E o que era aquilo?
Quando a lua escapava das nuvens umas tantas, eu via mesmo que parecia
um humano, mesmo estranho, ele era. Por trás daquelas feições medonhas, havia
o jeito de ser, até com umas parecenças comigo e com a mãe; era ele sim, o nosso
amado menino. Era Zeinho!
Maria ficou ali parada, lhe dando um carinho de mãe com o olhar, um
sorriso de toda ternura acumulada. Ela se ofertou para o abraço de mãe zelosa, o
rosto rebrilhando. Como tinha crescido, o seu menino. Deus fosse louvado,
apesar de tudo. Então ela lhe estendeu os braços, ele vindo, aninhou-se com
rosnado de criança nova. Maria abriu a blusa e lhe ofereceu os seios fartos de
alimento.
Ele aí, com uns dentes medonhos, mas sequer lhe arranhou nem um
lanhinho que fosse, foi sugando o peito, o leite espirrava em sua boca, de golfada
em golfada. Maria se sentia no céu, amamentando. Era seu filho, em seu colo
outra vez, ela chorava nesse desespero feliz. Eu permaneci ali do lado deles, sem
encarar os olhos do menino.
Depois, já saciado, Zeinho dormiu em seu colo. Ela acariciava o filho e
esperou que arrotasse, para não se engasgar, se desse uma golfada. A lua
alumiava tudo, com um reflexo esquisito no rosto de mãe e filho, meus parentes.
Maria aninhou o menino, começou a cantar baixinho, ninando o filho. E dizia
assim na canção de ninar:

Meus olhos estão felizes.


Meu peito não sente dor.
O meu amor estava longe,
mas agora ele voltou.

O senhor me desculpe: eu digo os versos, mas a cantiga eu não posso


cantar. Fico sem forças, e minha voz embarga, sinto uma agonia no peito. Apenas
ouço o canto de uma mãe amorosa, no fundo de minha memória. Ela parou, com

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um suspiro demorado. Ali, na presença da lua, convivemos no maior silêncio de
nossas vidas. A mãe ninava o filho, acariciava sua pele áspera. E assim, fechando
os olhos, Zeinho ia dormindo, dormindo.
Quando Zeinho despertou, era tarde da madrugada. Maria abraçou o
menino com força, dali não arredava. Ele procurava se soltar, que precisava
seguir. Seus olhos perquiriam ao redor, pareciam pressentir um perigo de longe
se aproximando. Mas bem manso, tão mansinho, que só o senhor vendo... ele deu
um rosnado suave e se soltou do colo de Maria. Sempre olhando os braços
estendidos de sua mãe, foi se distanciando e se embrenhando pelos matos. De lá
olhou, uns olhos fundos que eram duas brasas mais fortes que olhos de cães no
escuro. Os seus olhos estribrilhavam, contentes de nos ver. Ele se afastou de
costas, eu fiquei pasma, numa alegria comovida de ver seu estado de natureza.
Um ser de Deus ele era, isso eu lhe garanto.
Toda lua cheia Maria vinha se encontrar com o filho, para lhe dar de
mamar o leite que lhe pertencia. Eu acompanhava minha irmã naquela sina
acertada. Zeinho parecia cada vez mais robusto, um pêlo luzido que a mãe
acariciava com gosto.
Noutros dias, sem o aceno da lua cheia, às vezes a gente não encontrava
logo o nosso menino. Maria ficava andando a esmo chamando Zeinho! Zeinho! e
nada. Insistia nessa procura, até que os galos cantavam e minha irmã, cansada, as
pernas já doendo, voltava para casa, se desaguando em pesadas lágrimas.
Na vila, os rumores continuavam, cochichavam de buscas, facões bentos e
espingardas carregadas de chumbo. Mas para quê? Queriam pegar o inocente.
Perversos. Escondiam de nós as más intenções, porém minha intuição me
assinalava. Tal pecado, em nome de Deus, era possível?
Preveni Maria, que tomasse muito cuidado, não deixasse rastros. Numa
noite, a lua cheia se derramava por detrás das árvores mais altas, coando-se
prateada pelas frinchas das ramagens. Era noite de uma alegria única que eu
prezava, pois a mãe ia amamentar o seu pequeno. Mas não encontrava sua trilha,
nem seu cheiro se aproximava. Será que não vinha? Uma aflição foi crescendo
em Maria. Ouvi uns passos fortes, e não eram dele. Quem fosse, algum outro

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animal? Confesso o medo que me agarrou naquele descampado, próximo de
umas árvores baixas.
No outro lado, me pareceu ver o vulto de Zeinho, porém sem aquele jeito
de outras noites. Ele estava inquieto, parecia acuado por uma fera que lhe
quisesse fazer mal. De repente seus olhos me encontraram. Ai, meu senhor, o
desespero que me deu, um pressentimento tão ruim. Maria esperava de braços
abertos. A pobre criança veio correndo, atravessando o descampado, direto para
os seus braços, vinha em nossa direção. Maria correu ao seu encontro, e, Zeinho,
seus olhos brilhavam de medo. Mas ele estava com muita fome. Então viesse.
Maria foi tirando os seios para fora, para alimentar e defender filho, sem saber
que bicho era que vinha perseguindo ele com tanta fúria. Eu, estatelada, meu
coração aos pulos, só assistia a estes gestos. Zeinho vinha aos abraços e carinhos
de sua mãe. Mas, no justo momento, ele foi atingido pelo inimigo. No embalo da
corrida, vinha já em queda e Maria aparou o filho ferido no colo. Ele grudou em
seu corpo e grunhia seus ruídos de fala, de uma dor atroz, que saía de seu
ferimento profundo, borbulhando de sangue quente e viscoso. Era o nosso
próprio sangue, ali se derramando.
Eram três feras bravas que atacavam Zeinho, eu vi, que a luz da lua
alumiava: três homens da vila. E foi um tiro certeiro de espingarda nas costas de
nosso bom menino. Maria, em desespero, acolheu o filho sobre seu peito, ele
ainda queria mamar, arquejando em gemidos, que então estava sofrendo. Ela
gemeu, com o coração partido:
— Oh, meu Deus! Por que fizeram mal ao meu filho inocente?! — gritou,
abalando as folhagens em volta.
Daí foi um silêncio enorme. O menino revirava os olhinhos vesgos, com
tanto medo. Corri e abracei mãe e filho. Eu segurei Zeinho, junto ao corpo da
mãe esvaída de dor. O sangue empapava seu pêlo e vinha de seu corpo para
minhas mãos, como se de novo estivesse nascendo. Maria se retorcia das dores
de um parto às avessas. O menino arquejava, tinha frio e sentia muita aflição. E
ele então chorou, como se nascesse mesmo; era o choro que devia ao mundo ao
nascer. E seus olhos brilharam como os de gente humana. Maria aninhou o

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recém-nascido sobre seu corpo, lhe ofereceu o seio, pôs o mamilo trêmulo em
sua boca. Ele sugou com força, aí ferindo forte, seus dentes lanhavam os peitos
da mãe, um e outro revezando, agora os dois sagravam. Ele se fornia desse misto
alimento, leite e sangue, nas suas últimas forças. Mas seu corpo se extinguia,
tremendo de dor, apesar de meu apelo aos céus para que resistisse. Eu queria
alcançar só um milagre, por nossas vidas, daí por diante. Seus gemidos
agonizavam, seu coração enfraquecia, ele sugava o alimento cada vez mais
devagar, ia perdendo as forças. Maria tinha dado à luz, e eu aparado para a vida.
E agora a gente só podia lhe ofertar o silêncio que nos assistia, nessa hora de
lágrimas. A mãe aninhava o filho, acariciava seu pêlo áspero. E assim, fechando
os olhos, Zeinho, ia morrendo, morrendo.

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22
O santo de barro

Nem toda história que se conta é para apurar tristeza. Há umas passagens
boas para semear e colher risadas. Quem me contou como sucedeu foi o próprio
Pedro Chico, pesaroso, ciente de que se o Padre Inocêncio tivesse dado ouvidos,
a desgraça tinha sido evitada. Mas se deu o fato que abalou os devotos, e nunca
vai cair no esquecimento. Dos que contam o caso com pesar, Pedro Chico é o que
mais sente. Ele não era adivinho nem encrenqueiro, mas tinha uma coisa
aporrinhando o seu juízo, cochichando que ia chover na hora da procissão.
De primeiro, Pedro não quis dar trela ao mau presságio. Tentou entreter o
juízo, de jeito e maneira, cantarolando benditos, puxando prosa com os romeiros.
Mas, nada! A idéia martelava, como um sino tinindo na sua cabeça. Então rezou
preces aos pés do altar, saiu da igreja, fumou um cigarro e mais outro, foi ao
boteco tomar uns goles. Tanto fez e refez, mas não conseguiu espantar o aviso.
De tanto inquieto, se alarmou; resolveu confessar ao Padre Inocêncio. Chegou à
sacristia como quem não quer nada, chamou o padre ao canto e debulhou a
espiga:
— Seu vigário, parece que vai chover.
O padre ficou abobado, com cara de zé-joão, depois foi à janela, olhou pra
cima, para um lado, para o outro, investigou. As nuvens claras iam altas no céu.
Aí ele riu como se apreciasse a anedota. E bem assim, rebateu:
— Uai, com este sol todo? Deixa de lorota, Chico!
Os olhos de Pedro desabaram no chão e ele corou de tão escabreado.
Fugiu da sacristia, com os olhos do padre pregados em suas costas. E o vigário

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olhava para ele como quem examina um sujeito sem juízo certo. Com um sol
daquele, como que podia chover?
A igrejinha era pobre como a vila. Santo de gesso ali não tinha nenhum.
Não havia recursos para adquirir. Nhô Sinésio, dono de vastas posses, chegou a
prometer um, mas nunca passou das intenções.
Havia uma imagem de santo. Era obra de Natalino, oleiro de primeira que
sabia fazer de um tudo de barro. Depois de pintado ficou até mais bonito do que
certos santos de gesso que são feitos só pra vender. Esse de barro tinha sido feito
com muita fé e devoção.
Durante anos a procissão aconteceu em paz, debaixo de sol e calor, o
padre feliz e orgulhoso. Da vila mais próxima, vinham caminhões de romeiros e
devotos. Era um sucesso. O santo saía da igreja, sempre no fim da tarde, dava um
passeio pela vila e voltava para o mesmo cantinho, todo enfeitado.
Pedro Chico estava sempre presente. Teve até vontade de virar devoto e
pedir uma sorte grande na loteria. Só não deu certo porque não podia abandonar
o jogo e a cachaça. Ele participava. De onde estivesse, da mais distante fazenda,
ele vinha como sem falta acompanhar a procissão.
Agora, em vez de feliz ficou foi aperreado. Sentiu alguma coisa
cochichando no seu pé-de-ouvido que ia chover. O padre não quis ouvir, mandou
deixar de lorota e ainda espiou de viés, como se ele fosse um destrambelhado.
Quando a procissão ia que ia, vagarosa, pela rua afora, o pressentimento
de Pedro Chico ficou mais forte ainda. De repente, ele percebeu umas nuvens
quem vinham devagar, cinzentas e encorpadas. Alarmado, adiantou o passo e, lá
na frente, junto ao andor, cochichou ao padre:
— Seu vigário, espie aquelas nuvens se arredando para o lado de cá.
O padre Inocêncio estava concentrado nos hinos, não prestou atenção às
palavras de Pedro. Até se aborreceu e lhe passou um pito:
— Deixe de me aperrear, criatura!
De novo escabreado, Pedro se aquietou de uma vez. Não gostava de levar
descompostura, mesmo que fosse de padre. Entregou tudo a Deus, que sua
consciência estava tranqüila. Voltou a acompanhar a procissão de lá de trás.

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Ora, pois, de repente, foi aquela coisa espantosa. Um aguaceiro sacudido
se despejou sobre a multidão. Não deu tempo de ninguém correr com o andor. A
chuva caía forte sem devoção nem piedade. O jeito foi dar meia-volta, todos
completamente encharcados, cabisbaixos e friorentos que nem para o andor
tinham coragem de olhar. Desse jeito a procissão voltou para a igreja. Quando
arriaram o andor sobre o altar... minha nossa! Foi aquilo que não se via! Um
horror! Os devotos começavam a chorar diante da tragédia. Porque, avalie o
senhor, cadê o santo? Que santo o quê! Adeus! Naquele andor encharcado só
restava uma lama.
Até hoje Pedro Chico se mostra ressentido com o Padre Inocêncio. Numa
prosa ligeira, me confirmou:
— Ele tem culpa, sim. Eu avisei que ia chover e ele nem thum!
E ao mestre Natalino, que fez o santo de barro, Pedro também distribui
uma parte da culpa, embora mais leve.
— Eu falei ao mestre Natalino que botasse o santo no forno, junto com as
moringas e as panelas de barro, para que caldeasse e ficasse resistente com o
barro cozido. Eu falei, insisti e aperreei. Mas ele em vez de ouvir o meu
conselho, não. Disse que não botava no forno não, que era pecado botar santo no
fogo. Ora, minha gente: pecado brabo é botar santo cru na chuva.
O senhor avalie que desconserto. Pedro Chico não sei por onde se vale,
nas brenhas adentro do sertão desporteirado. Sei que carrega essa mágoa. Certos
fatos dão aviso, mas alguns não ouvem os sinais.

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23
A história de Vivaldo

O senhor saiba: uma lei eu ensino a quem quiser aprender. Não se fie em
conversinhas de enquanto se descansa se prosa. Boato e fuxico são coisas
venenosas. Ferem mais fundo do que bala. Uns há que falam bem demais da
pessoa, somente para colher os frutos de sua satisfação. Esse amigo planta para
colher ligeiro, com semente fácil, cheio de salve-salves. Outros, nos contrários,
só sabem falar mal da pessoa para cultivar má fama, e daí tirar proveito. Duas
plantas perigosas: uma oferece flor, a outra espinho; mas as duas são venenosas.
Nada neste mundo escapa à língua ferina dos invejosos, maledicentes e
despeitados. O senhor aqui me ouve, vai tomando nota, colhendo minhas idéias.
Pois, se o senhor reunir os causos, escolher as palavras e contar as histórias, saiba
que muita gente vai se agradar do senhor. Mas outros vão se agastar, torcer o
nariz e dizer bobagens. O senhor obra os melhores atos, aparece alguém pra botar
defeito. Se prepare que vida tem muitas curvas. Se há o que faz a fama, há
também o que difama.
Ora, vá o senhor acreditar em tudo que disserem de sua pessoa! Bestice.
Exemplos são tantos quanto os tipo de capim, como a história de Vivaldo. Uns
amigos desmiolados, cochichando de invés, semearam potocas sobre os cabelos
de Vivaldo. Que eram ver os do porco-espinho mateiro. Esse Vivaldo, em vez de
encarar sereno, sem asneiras, foi sentindo os espinhos crescerem na moleira,
espetando mais por dentro. Foi largando o jeito de existir quieto e sem conflitos.
Enterrou a cabeça num chapelão de couro cru, debaixo de sol e chuva revezando,
não tirava nem para dormir. Só mal se via a cara engrupida do homem, ali
debaixo vivendo, acumulando suor, caspa e poeira.

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Era dizer lá vem Vivaldo, corresse, ou preparasse o lenço, apertasse o
nariz. De lá do debaixo do chapéu, os cabelos amoitados, enramando para fora,
vinham os seus fedores. Porque aquilo fedia mesmo, de tanto não tirar o chapéu
nem para dormir, nem tomar banho, nem comer, nem rezar. O medo era que ele,
de repente, tirasse a tralha, ou o vento conseguisse arrancar o castigo, e aí quem
não corresse desmaiava na certa.
Foi o azedume que matou Vivaldo? Ele um dia morreu. Dizem que foi
enterrado de chapéu e tudo. Ainda que os parentes, com esforço e caridade,
tivessem preparado o defunto, ninguém se arriscou a retirar o chapéu da cabeça,
ali bem grudado, dele fazendo parte.

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24
Os milagres de Tiana

Há histórias de passar o tempo, sem causar vexame. Coisas porém


acontecidas. Houve aqui, faz muitas festas, uma mulher faceira, porém logo
casada. Ela deixou os homens tristes, quando foi embora pra muito longe, com o
marido e suas finas fazendas. Eles brigaram feio, mas romperam juntos na
viagem.
Tudo obra de um acaso. Antes, quando aqui, um dia, mesmo sem querer,
ela descobriu em si os dons curativos. Se havia um sujeito adoentado, em más
maneiras, era ela tratar e o doente ficar curado e, mais ainda, contente de dar
gosto.
No começo, nem foi o tanto, que desse logo a boa fama. Não. Precisou de
meses e outros atos de prova. E vieram, um a um, quais casos, os mais variados.
Daí foi a fama subindo e descendo serras, de povoado em povoado. Eles vinham
procurar melhoras.
O marido, de primeiro, não queria consentir. Qual! Aquela homaria nos
arredores de seu terreiro? Não estava pra tanto, até já faziam uma fila. Um dia,
zangado, proibiu: riscou o facão no batente, desocupassem o terreiro, arredassem
num minuto. Não estava ali pra ser besta. Sem rezingas nem ofensas, foram se
retirando com seus males de homens solitários, por essas bandas de mundo solto.
Tiana se tornou escabreada. Sentia falta de seu ofício, que precisava muito ofertar
esses tratamentos. Ficou numa tristeza por conta de tudo, demais contrariada.
Depois, mudou a forma do plantio: voltou a dar sorrisos cativantes, pois
ela cobria esse marido de encantos. Agora ela suplicava que deixasse, pois era
um dom do corpo que precisava ser exercido. Ela mesma tinha toda essa

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necessidade, se sentia muito bem exercendo as curas. E sentia uma enorme falta.
E o bem que fazia lhe retornava. Deixava o seu corpo serenado, ela mais contente
e mais bonita.
Ela prometia: de agora em diante, ia cobrar uma oferta, da qual ele podia
tirar proveito, em parte. Outra parte ela guardava pra fazer benfeitorias. Daí uns
dias, ela continuava triste, ele pensativo: e por fim combinaram o acerto.
Era de novo a romaria dos varões precisados. Os fiéis vinham, mesmo nos
dias sem consulta, voltavam agora mais cedo. Tiana atendia a todos, deixando os
homens em melhores estados de saúde. Vinham até de certas lonjuras, uns
lugarejos por lá, onde falavam de suas mãos de fada, capazes de fazer milagres,
de suas palavras benfazejas. Ela falava baixinho, no pé do ouvido do consulente,
e curava qualquer desânimo. Boas rezas, mas não eram com ramos de folha. Não.
Ela tocava no corpo da pessoa, como se desse passes, passava os fluidos de suas
mãos sedosas. Era verdade, pois se viam os efeitos da cura que os homens
sentiam. Fosse valente ficava mofino, se nervoso restava calmo, tivesse tristeza
se alegrava. Dos feitos ao assunto, muitos já comentavam.
Tiana foi ficando rica graças ao valor das ofertas. Juntava muito dinheiro.
De sua parte, ajudava os pobres, distribuía alimentos, leite, pão e tecidos. João de
Val, o dito marido, tomava conta de sua parte, conforme o trato. Contava,
separava o das despesas, guardava o outro, ajuntando fortuna. Deixou de lado as
plantações para o gosto do mato. Pra quê, se pouco dava das sementes que se
plantavam, sem preço bom que compensasse? Ali, não: era dinheiro vivo e
apurado. Sentia-se felizardo por possuir uma mulher milagrosa.
Mas, de tempos adiante, eram tantos necessitados, que muitos velhos
fregueses das curas já perdiam o lugar na fila. Tiana não dava vencimento à
procura dos homens. Muitos vinham, não havia vagas, ficavam aborrecidos. Foi
daí que pegaram a espalhar boatos, iam uns falando e dando indiretas, do que
seria a bendita reza. Com isso quebravam o trato de dizer o santo, mas não contar
o milagre. O particular jamais devia ser revelado. A reza era segredo, como Tiana
explicava, cada qual guardasse, para manter os poderes e as curas. Do contrário,
ela fechava a casa, ia-se embora para bem longe, onde ninguém conhecesse sua

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fama. Se alguém revelasse, perdia-se o encanto de tudo. Ela não ia curar mais
ninguém.
E como era a cura? Era um segredo guardado a sete chaves. As mulheres,
sempre curiosas, insistiam em saber, mas os maridos desconversavam. E elas,
embora curiosas, gostavam de ver seus homens serenados. Os brutos ficavam
bons esposos, cuidadosos e prazenteiros. Voltavam das consultas alegres,
bonançosos, davam presentes à mulher e aos filhos.
Toda procura demais aumenta o valor da paga. João de Val se revelava
bom pra negócios: aumentou o preço das consultas. Tiana não queria aumentar,
até se aborreceu. O marido, cioso dos cálculos, ignorou sua queixa e escreveu a
nova tabela, somando os valores dos lucros do mês. Ah, mas houve desagrado,
que uns clientes não podiam mais pagar. Sem alcançar novas graças, o paciente
caía em desespero. E logo pioravam, só de verem outros mais abastados pagando
o preço caro e terem direito a melhor atendimento. Então se arriscaram a cometer
o pecado. Cochichavam de um a outro, nas mesas de tomar cachaça. Revelavam
os jeitos da reza, os poderes da cura, os milagres de Tiana. E sofriam sem os
tratos de suas mãos milagrosas. De detalhe em detalhe, folha por folha, pedra por
pedra, caímos em nós, de cara com a verdade. As mulheres se revoltaram. Um
grupo furioso resolveu expulsar Tiana do povoado.
O que correu, de invento ou verdade, pela boca do povo, foi o enredo
seguinte. Tiana, com suas mãos de fada, passava ao corpo dos homens os seus
calores, os bons remédios das carícias fêmeas. Nesses modos de tratar os desejos,
o corpo e a alma dos pacientes se elevavam. Ela sabia se deitar por cima deles e
depois por debaixo, ali se desatavam, os dois, no segredo do quarto. Ela
transmitia jeitos e tratos de toda intimidade entre homem e mulher. Tiana dava
muitos diversos prazeres ao consulente, que se regalava feliz com o tratamento. E
assim pegava mesmo boa saúde. Tomava gosto pelo remédio, nunca mais sarava.
Os tratos mais desejados eram obtidos, com a sabedoria de longas datas, que ela
estudava num livro antigo e desenhado.

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25
A vingança de Nenzinho

Nhô Guimarães dizia: são tantas as histórias que correm o mundo que a
gente nem pode contar. O senhor veja que umas ensinam o bom viver, como
usufruir o que a vida tem de melhor. Outras são casos de coisas más, que também
ensinam, pois mostram quais são os maus procedimentos. Uns maus, outros bons,
assim são as criaturas. Outras, mais ou menos, ora uma coisa, ora outra. Quando
a história avança, com as boas e as más ações, o castigo, o perdão e a fortuna
comparecem no final. Tudo o que se conta traz bom ensino.
Nhô Guimarães conhecia o fundo das histórias. Recolhia as palavras
certas, inventava uns modos de prosear com a gente. Ele sabia ensinamentos de
toda versidade. Disso vem que muitas histórias que a gente imagina, na verdade
são conselhos de gente mais vivida, de tempos antigos para os mais modernos.
Nhô sabia dar conselhos, pelo tanto andado pelo sertão, acumulando o saber das
prosas que há no mundo.
Uma coisa eu lhe digo. Nunca humilhe pessoa alguma, qual seja inimigo
derrotado na afronta, na briga, no braço ou na palavra. Evite esticar rezingas,
cometer destratos que deixam o sujeito quieto, abatido, cabisbaixo, com gosto e
sina de se vingar. Desavença recolhida é coisa muito perigosa. Quer ver, assunte.
Aconteceu na feira; não vi, me contaram: vendo o peixe conforme pesco. Zé de
Zabé sofreu um esbarrão, no meio do povo, basculhou o culpado para tirar
satisfação. Era apenas um moço, Nenzinho, nem homem feito era ainda. Zé de
Zabé, braçudo, tripudiou, sem aceitar desculpa. E disse tantas lérias ao rapaz,
passou o braço no pescoço, torceu o corpo, deixou de cara rente à poeira.
Mandou beijar o chão, diante de testemunhas. Obrigou o pobre a dizer de si
mesmo tudo coisa quanto não prestasse, só assim soltava. O outro, dominado, fez
força de resistir até quando pôde. Estava entortado, provando a poeira suja, a

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espinha empenada de dor. Acabou espremendo as palavras que Zé de Zabé
mandava, vermelho que nem pimenta madura. Humilhado, chorou de vergonha e
rancor. Já solto, ficou embatucado, sem saber dizer um dichote na hora, só assim,
todo zaranza e injuriado. O moço estava espinhado, com vontade de revidar a
afronta no quente. Mas mediu sua desvantagem, se segurou, avermelhando, a
cara tremia de ódio. Engoliu a desfeita, duas lágrimas acenderam os seus olhos
de faísca. Só cuspiu:
— Dei’stá, que um dia você vai ver — ele prometeu, e dali arredou
ligeiro.
Ora, passou o tempo. Zé de Zabé, ciente de sua valentia, não tomou
conhecimento do outro. Mas Nenzinho, por motivos certos, cresceu mais, tornou-
se forte, fornido de braços largos. De tanto se preparar, comia por três, troncudo,
estava um bruto homem de briga. E dizia para quem quisesse ouvir, a respeito:
— As batatas dele estão assando.
Enquanto esse tempo, o outro compôs família, já então havia mulher e
dois filhos pequenos. Foi aí, começou a notar coincidências. Onde Zé estava, por
onde passava, aparecia Nenzinho, conforme olhando enviesado para ele, mulher
e filhos. Só de longe, sem palavra, chispando pelos olhos. “Dei’stá, você vai
ver”. A lembrança agora arreliava Zé de Zabé. Ele tomava todo cuidado pra não
dar motivos ao outro. Ajuizado, pai de família, andava bem longe de arruaças.
Esperava que o tempo trouxesse a paz. Mas, que nada: Nenzinho estava sempre
por perto, com olhos cada vez mais vingativos.
Zé de Zabé resolveu fazer uma viagem. Arribou-se lá para os lados da
divisa do rio São Francisco. Pelo jeito, fugia às escondidas. Madrugou, trancou a
meiágua e viajou, com mulher e filhos, bem cedo, sem avisar os vizinhos. Eles
sumiram nas estradas.
Em viagem, Zé de Zabé se sentia muito mais tranqüilo, à beira do rio, a
salvo do medo de vingança que tanto atormentava sua vida. Mas alegria também
tem pernas curtas. Ele estava com a mulher e os filhos, abeirando o rio, de
repente reconheceu as feições de Nenzinho, que se aproximava. Zé de Zabé,
assustado, ficou três vezes cuidadoso com os meninos e a mulher. Sem alarme,

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mandou que ficassem perto dele, não arredassem para aqueles lados. Sim, era
Nenzinho que, de lá de longe, não dava sinais de nada; talvez só bispando
amoitado. Os meninos estavam na beirada, só no raso, açoitando água um no
outro, com a mãe perto, ali brincando. Nervoso, Zé de Zabé vigiava as intenções
do inimigo e media seus passos. Depois, com o coração apertado, viu que
Nenzinho caminhava em direção ao rio. E veio vindo para o seu lado. Mas que
diacho era aquilo, a velha briga já ia por anos, pra que aquela agonia? Pra que
aquela perseguição, aquela ameaça sempre, atentando o juízo, açulando os
nervos? Pois era assim que Nenzinho aguardava, sempre de visagem,
infernizando o inimigo.
Primeiro abeirou o rio, cuidadoso, assuntando como que sem querer.
Depois, apenas entrou na água, daí nadando, mergulhando, pra lá e pra cá, ia no
fundo e voltava, com muita facilidade. Era ver fosse um peixe de água doce. Zé
de Zabé chamou os meninos e a mulher para fora d’água, pra que ficassem longe
daquele terrível nadador. Era melhor se prevenir, pois quem ia saber o que outro
tramava?
Nenzinho, corpudo e pingando, saiu da água sem nem olhar para eles.
Subiu até o alto da beira do rio, ficou se escoando, quentando sol, bem do seu.
Olhava de viés, com intenção duvidosa. Mas Zé de Zabé ficou de olho, não se
descuidou de vigiar o outro lado, onde estava o inimigo. Por isso não viu que os
meninos, distraídos, estavam indo cada vez mais pro fundo. A mãe, quando
percebeu, chamou os filhos de volta. Acenou e gritou, mas a correnteza já levava
os bruguelos mais pra lá, ia puxando, traiçoeira. A mãe enfrentou a água, em
busca, já gritando pelo marido:
— Zé, venha cá, a água está puxando os meninos!
Ele se virou, sentiu o princípio da agonia:
— Pai! Me acode, pai!
— Zé! Acode, oh meu Deus, acode, Zé!
A mulher ia junto, mal batendo pernas e braços, na correnteza com os
filhos, tentando pegar pela mão. Eles se afogavam mesmo, num grande
desespero. Zé ficou atarantado, correu para a água, foi entrando até sentir faltar

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pé, pois ele também não sabia nadar. Olhou para a beira, em cima, lá estava
Nenzinho, só apreciando, empertigado, sem se abalar.
E agora? Lá estava o inimigo, nadador como o quê, sem mover uma palha.
E só ele podia evitar a desgraça. Era humilhação pedir arrego nessa má hora? De
ser, era: mas que jeito? Com água pelo pescoço, sentindo os pés desfirmes, Zé de
Zabé se esgoelou, humilde e humilhado:
— Seu Nenzinho, socorro!
Era o apelo desesperado de um pai, de um marido, de um inimigo, ali na
hora da verdade, pedindo clemência.
— Por piedade, salve eles! — suplicava, agoniado.
Nenzinho virou pedra? De pé estava, ali ficou, sem mover um dedo, só
apreciando o desastre. Zé insistiu no grito, implorava ajuda, já chorando. Pedia
perdão pelo passado, prometia dar tudo que tinha em paga à boa ação.
— Seu Nenzinho, piedade!
E nada. Ele via as águas engolindo meninos e mulher, que estavam por um
nada, já iam afundando de vez. E Nenzinho, bem inimigo, de braços cruzados.
Zé de Zabé, com toda aflição da vida, compreendeu a situação. Desistiu de
suplicar e foi tateando a água, sem jeito, sem saber. No desespero, não via mais
os parentes, e também já se afogava. À flor d’água só ele restava. Afundou,
subiu, afundou, ia morrer também, na maior agonia.
De repente, Nenzinho ia chegando a grandes braçadas, deslizando na água
ao encontro do inimigo. Mas, por que só agora agia? Ele agarrou Zé de Zabé pelo
pescoço, e foi trazendo para fora. Deixou o afogado na beira, esfrangalhado,
encolhido, engasgado, em choque. Deu uma simples olhada e, com um riso de
satisfação, foi saindo com a maior rapidez. Zé de Zabé, ainda desfeito, desabou
no choro, diante do rio que corria calmo e perigoso. Ele chorava em desespero,
trespassado pela morte da mulher e dos filhos, e por uma dor profunda e cruel.

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26
Um trato trágico

Quando o senhor tiver um filho, conte a ele suas histórias, invente,


acrescente, dê a ele as boas lições do passado e do futuro. Minha avó me contava
histórias, certas lendas, numa canção tão suave que nos fazia adormecer sem
sentir.
Diziam os antigos que um velho viúvo tinha uma filha muito formosa.
Quando a ela ficou moça feita, era bonita, atraía a atenção de rapazes solteiros.
Alguns disputavam o plano de casar com ela. O pai, porém, carrancudo demais,
aceitava a promessa, mas botava uma condição. O pretendente devia trabalhar
pra ele durante um ano, em sua roça, plantando e colhendo, tomando conta dos
animais.
O primeiro pretendente aceitou o trato, e pegou firme no batente. Perto de
um ano, ele já começava a planejar o casamento. Um dia, o pai da moça chamou
o rapaz para irem caçar. Era de noite, tempo estiado, lua cheia, tudo favorável.
De lá o rapaz sumiu, e nunca mais foi visto em parte alguma. O velho disse à
filha que o noivo havia desistido da empreitada, recebeu a paga em dinheiro e
seguiu para outras terras. A moça estranhou muito a situação. Mas, como não
amava o noivo, acatou o relato em silêncio.
Apareceu outro pretendente à mão da moça, e o fazendeiro fez a mesma
proposta. Depois de muita labuta, o prazo do acerto estava prestes a se completar.
O rapaz indagou pelo ajuste final, pois desejava marcar a data do casamento.
Para celebrar o trato, o velho convidou o noivo para uma caçada. De noite, tempo
estiado, lua cheia, tudo conforme. E de lá o rapaz não retornou. O fazendeiro
explicou à filha que aquele homem também havia destratado, recebido a paga em
dinheiro e retornado para sua terra. A moça estranhou muito a semelhança do

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caso. Mas, como também não amava aquele rapaz, ouviu o relato do pai e deixou
o tempo passar.
Apareceu o terceiro noivo. E a história se repetiu igualzinha. Perto do
prazo, eles foram caçar e o rapaz não voltou. O pai da moça tornou a lhe dar a
mesma explicação. Ora, mas isso era muito estranho. Era uma moça tão bonita e
prendada. Por que os pretendentes desistiam de se casar com ela? A moça ficava
curiosa, mas não se incomodava tanto. Como não tinha gostado de nenhum dos
moços, deixava a história constar.
Foi então que apareceu o quarto pretendente. Era um rapaz de bons
modos, muito atencioso e bonito. E desse rapaz a moça logo conheceu que
gostava de verdade. Enfim, ela sentia os sopros da paixão. Assim, o noivo entrou
a prestar serviço na roça, conforme o acerto de sempre. E a moça, alertada pelo
sumiço dos pretendentes anteriores, tudo fazia para chamar a sua atenção. Não
queria que o rapaz desistisse e fosse embora no meio da noite como os outros.
Eles se ajustavam bem, tinham amor um ao outro; sonhavam juntos com uma
vida feliz. Namorados de verdade, eles se encontravam, às escondidas do velho.
Um ano justo se passou. Era hora de marcar a cerimônia. Então, foi
quando o fazendeiro chamou o rapaz para caçar à noite. A moça, conhecendo
aquela parte da trama, ficou muito preocupada. Combinou com o amado uma
forma de descobrir as intenções do velho.
Na noite da caçada, o céu estava encoberto, e o velho nada notou de
anormal. Calado, andando à frente, tramava seus planos. E, assim, lá adiante, os
dois iam andando, de repente, o fazendeiro se virou rápido. E mostrou, com isso,
qual era o mistério do sumiço dos noivos. Ele atirou. Um tiro medonho de
espingarda, useiro e vezeiro em matar. Sorriu satisfeito com o tiro fatal, e contou:
— Quatro! Foi daí, revirando o morto, para roubar suas coisas e rolar o corpo
para o buraco, ele enxergou a fúria do seu pior castigo. Era a sua própria filha.
Na véspera da caçada, a moça havia combinado com o amado que ela ia
no lugar dele para descobrir o segredo do pai. E assim, apareceu vestida com as
roupas do rapaz, trajando calças, camisa, chapéu, com a espingarda no ombro.

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Toda aprumada, nas vestes de homem, isso tinha enganado o velho, que
enxergava muito mal à noite.
Um trato trágico. Quando o fazendeiro reconheceu que tinha matado a
filha, começou a gritar, desesperado, enlouquecido. Saiu por ali, sem juízo,
descabelado. De certo acabou endoidando dos miolos. Até falecer, vagou pelos
lugares, fugindo, gritando que os mortos estavam vindo atrás dele:
— Olha lá, eles vêm se vingar de mim!
E saía correndo, olhando pra trás em desespero. O povo olhava e não via
nada. Era só a loucura, pelo remorso das más ações, que fazia o homem viver
sempre assombrado.

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A fatalidade dos Fontes

O senhor se cuide, que mal não faz. O azar é coisa que existe. Pois lá pra
mais adiante, morava um homem desabonado da sorte. Vivia cuidando de
plantios e criação, mas nunca que se aprumava. Pois se vinha uma peste, matava
três ou quatro reses nas cercanias, mas lá no curral dele, poucas eram as que se
salvavam. No plantio vinha uma seca. Os outros se safavam, colhendo uma
quarta parte; ele, coitado, perdia tudo de vez. Era terra desabençoada? Pois
contam que ali, nos tempos antigos, foi sesmaria de um senhor de escravos muito
feroz. A terra guarda as suas marcas.
Eu, por exemplo, não me fio em certas lógicas. Aprendi ouvindo as
histórias, vivendo os fatos. Na vida, de tudo acontece, também aos seus
contrários. Gente dada por morta, levanta da cama e vive muitos anos. Outra
pessoa, forte, alegre e bonita, de repente cai fulminada, vai direto para o além.
Um caroço sabe virar árvore, dar galho e sombra. Mas, se é gente, não se sabe o
dia de amanhã. O senhor espera uma coisa, outra acontece. Disso foi o desacerto
do povo, com o destino da família dos Fontes.
Eu conheci a família, bem pequena, de só uns, de gente muito arisca,
demais reservada. Por menos de um graveto se encalacravam de tristeza. Tinham
natureza fraca, por cá um trisco lá vinha o desmantelo dos rumos. De simples
faísca, criavam um incêndio. De longas datas, conforme diziam as pessoas de
idade, vinha essa fatalidade dos Fontes. Era um povo que gostava de se suicidar.
De criança já eram tristinhos pelos cantos, nem brincavam com outros
meninos. Com pouca diferença, os homens tinham coceira no pescoço, chegados

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aos nós bem atados, saltando de um banquinho. As mulheres preferiam veneno,
para dar fim a sofrimentos em que ninguém fiava juízo. Parecia gente de vidro,
todo mundo com cuidado. Tratava-se deles com respeito, sem discutir nada, em
tudo deviam de ter razão. Contrariar um Fontes era o mesmo que encomendar as
flores. Quem casasse com gente daquela família, escolhesse os trajes de luto. A
viuvez era questão de se ter um aborrecimento, uma tristurinha qualquer.
Nesse morre-que-morre, por próprio querer, iam-se enforcando, dando tiro
na cabeça, comendo chumbinho no jantar. Não é de admirar que fossem se
acabando, cada vez mais os Fontes secavam. Até que restaram três. Por pouco
tempo. O mais moço da sobra se engraçou de amores por uma moça vizinha. Mas
ela queria marido para longas jornadas, não quis se arriscar em contratos breves.
Desconheceu a oferta, resistindo às insistências do rapaz. Este, por certo tinha
amor, mas de um jeito sem entusiasmo para festas. Daí a moça não teve dúvidas.
Recusou de uma vez por todas; aceitando aliança de outro.
Foi o pingo na sentença: o rapaz anoiteceu e não viu a luz da manhã.
Pulou da cama com o pescoço preso ao cinto, bem amarrado no caibro mais forte
do telhado. De manhã resultou achado pelo pai, em estado fatal. O velho, sisudo
e calado, tomou a frente do fato; preparou sentinela e enterro, nos conformes
cristãos. Nem uma lágrima, nem uma frase; só a tristeza no fundo dos olhos. Na
mesma data, depois de tomar as providências e entregar o filho à terra seca, ele
sentiu a dor da perda. O velho Fontes não podia mesmo durar. Dispensou cordas
e cintos e se acertou com um tiro calibrado, assustando a madrugada da vila.
Sobrou Genaro Fontes, rapaz amuado, quieto e oculto como um fundo de
rio. Depois de cumprir o enterro do tio, Genaro se recolheu em grave estado.
Sobrava, assim jovem, tão sisudo quanto mais cismado. O povo sobrefalava o
assunto, pois todos notaram que no jazigo da família ainda existia uma vaga. E as
dobradiças da sepultura nunca emperravam, pois não demoravam fechadas. Ao
final dos tratos cristãos, as pessoas se despediam do rapaz, com gestos de um
pesar presente e futuro. Viam nele os olhos fechados, os braços cruzados sobre o
peito. Era só aguardar.

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Mas, no outro dia, nada não houve. Nem nos três seguintes. Nem um
sobressalto; nada que esperassem aconteceu. Pelas opiniões, arriscavam, como
aposta, o prazo de quando, e onde, e por que Genaro ia cometer o derradeiro ato.
De tanta expectativa, formou-se mesmo um desejo, uma corrente de fé que aquilo
mais cedo ou mais tarde havia de acontecer. O povo apostava e esperava o final.
Os dias, semanas, meses, fez um ano, todos os prazos decorreram. Genaro,
entretanto, era o mesminho; continuava prestes, pela sempre tristeza dos olhos,
pela sozinhez de seu viver. Como ia se agüentando? Faltava um trisco, por certo.
As pessoas se enredam nessas cismas, perdendo o compasso das coisas. Pareciam
esperar, como se festa de dia santo.
Aqueles que perdiam as apostas ficavam com raiva do rapaz. Os
fuxiqueiros se mostravam frustrados pelos prazos vencidos e reajustados. E
dobravam as apostas. Alguns arriscavam o palpite de que o sobrevivente era
capaz de ter o desejo de se finar, porém não reunia a coragem dos parentes. As
conversas eram cumpridas em procurar saber se esse Fontes se abastecia de
outras sortes e assim resistia ao destino traçado. Genaro nem tramava com as
próprias mãos, nem dava trelas às possibilidades de passar dessa para pior. Ele se
atirava ao trabalho como um doido, cuidando das plantações e dos animais da
rocinha herdada.
Certa vez, montou a cavalo em dia de chuva, sofreu uma perigosa queda.
Ficou acamado por mês e tanto. Apareceu quem lhe desse os cuidados. De
assistido, foi melhorando, até andar de novo com as próprias pernas. Dessa
passou ao largo. Noutra ótima oportunidade, quase morreu escoiceado por um
cavalo chucro. Dessa vez também escapou. Houve uma queda do telhado, porém
coisa menor, que uns dias bastaram à cura sem seqüelas. Esse Fontes ia vencendo
os prazos e as ocasiões. As dobradiças do jazigo provavam, enfim, o gosto da
ferrugem.
Um dia Genaro se engraçou por uma mulher. A moça, chamada Rosalinda,
estava prometida a outro homem, por ajuste de família. Ela soube sorrir aos
acenos de Genaro, mas não tinha forças pra desdizer as ordens do pai. Em pouco
tempo, cumpriu-se o casamento. O rapaz teve de encarar essa provação. Era

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chegada a sua hora, por força da desilusão? Ora, certa gente recriou esperanças
que sim; as apostas se multiplicaram. No entanto, de dia em dia, entraram em
anos; Genaro, sempre triste, de olhos em busca, na direção da moça casada, por
ela vivia de bem-querer. Disso ele ou morria ou se matava, conforme a sina, se
decorresse o tempo para a tristeza empedrar.
Rosalinda murchava de triste, sem gosto pela vida de casada, só pensava
no rapaz. Os dois sabiam disso, mas continuavam honestos. Por vezes se
avistavam na rua, na feira, na igreja, sempre atraídos. A moça se maldizia da
vida, desejava sumir, pedia coragem de se matar. Até que o marido, de um jeito
qualquer, desconfiou, descobriu o que se passava. Conheceu que os dois se
gostavam, mas que eram direitos. Entendeu que o sofrimento da esposa era amor
recolhido por outro homem. E se sentiu de péssimo a pior. Agora os três sofriam
da mesma desilusão amorosa. O marido teve uma reação que ninguém esperava.
Por falta de motivo para odiar a mulher e o rapaz, odiou a si mesmo, por se sentir
traído e ultrajado, mas sem poder reclamar por sua honra. Disso emagreceu,
contrariado, caiu de cama por profunda tristeza. Não havia doença no corpo, só
no olhar de desânimo. Um dia, levantou cedo, no normal, deu bom-dia a
Rosalinda e saiu para a roça. E sumiu.
Um vaqueiro achou o homem pendurado numa árvore. E foi o espanto de
todos, com as apostas despistadas. Recolheram o corpo, e houve todos os atos
corretos. O tempo seguiu viagem. Rosalinda cobriu-se de preto e, durante um
ano, respeitou os costumes. Depois desse prazo, a justa viúva foi, pelos próprios
passos, ao encontro do seu amado. E assim achou sua sorte. Pela primeira vez
Genaro Fontes sentia o sopro da felicidade. Acabaram-se as apostas. Somente
restou um gosto insosso de nada dizer nas bocas daquele povo.

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28
Nhô Guimarães, homem de Vista Alegre

Nhô Guimarães era de um olhar buliçoso como água de rio abeirando as


pedras. Se me lembro! Ele se foi, de perto a longe, que destino de rio é viajar.
Uma pessoa nasce nessas lonjuras de lugarejo, ganha os Gerais, levanta as
poeiras, abraça o mundo, em seus viajares. Toda estrada é começo e fim. Uns que
chegam, socam raízes; outros principiam o caminhar. Por aqui ele passava,
muitomente voltando; apreciava o valor dos retornos.
Nhô Guimarães, homem de Vista Alegre, lugar cidade de seu coração.
Nome antigo, onde aprendeu a andar pelos ermos, sabendo avistar as alegrias.
Seus olhos ficavam cheios de morros e vargens, fios d’água alisando pedras, de
noite pescavam estrelas. O senhor experimente: não só enxergue as moitas e pés
de pau; aprenda a ver com os olhos da alma: as bonitezas do mundo ficam para
sempre no olhar da pessoa. Ele falava com a voz de dentro de si, que deixava a
gente abismada de encanto.
Ele dizia como era a Gruta do Maquiné, nos seus olhos de antigo menino
olhador de tudo: que era um lugar de declarada boniteza, de muito se ver e
lembrar para sempre. A gruta era um lugar de estimação que ele visitava para
depois trazer as notícias de suas alegrias mais profundas. Ali havia um tesouro
guardado, um mundo de coisas e criaturas viradas em pedra, de tempos demais
antigos, que agora a gente que lá entrasse na fundura do chão podia ver e se
admirar. “A natureza sabe ser bonita”, ele confirmava, “olhem tudo isso ao redor,

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é de vocês, tudo pertence aos olhos”. A gente olhava, pronto: não era mais só
aquilo que se via antes; ficava mais formoso pelo falar que ele sabia.
E sua cidade? A gente queria ouvir mais belezas. Nhô Guimarães sorria de
leve, olhos iluminando, olhava lá pra fora, buscando seu lugar ali perto, para
além das colinas. Então em vez de encompridar a prosa, se restava caladamente,
mas satisfeito, naquele seu olhar longe da pergunta, parecia que viajando, como
era mesmo sua viagem.
A gente indagava: como se chega lá? Ele se concentrava, como se ia
contar um segredo: falava, com pausa, olhos sorridentes, daquele jeito manso,
como um gato na manha de agradar, dizendo. “Ah, é perto e longe, depende da
viagem. Vai de trem, vai a cavalo, como quiser se aventurar. Da Gruta do
Maquiné para lá, vai pra menos de algumas léguas, umas horas de boa
caminhada, abeirando montanhas, vales e colinas, cheirando o ar puro, com
aquele frescor de perfume dos matos, vai indo até que avista uma dobra do
morro, lá fica minha cidadezinha, um lugar que parece enfeitado, de poucas
moradas, ruazinhas quietas, gente hospitaleira. Nunca vi, como ali, chuvadas
mais fortes nem mais belas. De noite, o céu mostra milhões de estrelas, nunca vi
coisa igual em nenhum lugar”. Ele contava esses certos aos curiosos de saberem
suas origens. Nhô Guimarães tinha muito gosto de falar essas palavras,
observando a gente boquiaberta, só para saber e guardar.
Que menino tinha sido esse Nhô Guimarães, capaz de usar bodoques,
caçar preás, pegar passarinho? Ora, nem queira nisso pensar: Em menino fazia
brincadeiras ajuizadas, sem perigo de cometer bobagem. Armava alçapão para
pegar sanhaço, era bom. Depois soltava o bicho, apreciando o vôo renovado entre
os galhos das plantas. Era sabido em inventar brinquedos para meninos quietos.
Um fio d’água virava ribeirão, um chãozinho virava cidade. Assim inventava um
sertão.
Nhô Guimarães aprendia e ensinava coisas de espantar. O senhor avalie: a
gente avista a natureza ao derredor, o que ela nos diz? Os matos, os rios, os
pássaros, as colinas, os bichos... tudo isso é a natureza conversando com a gente.
Já observou a satisfação de um arvoredo carregado de frutos? Uma pé-de-flor

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sorri para quem passa, balançando os galhos no vento pra chamar atenção. Já
percebeu o desânimo dos arbustos nos tempos secos? O que custa prestar
atenção e prosear um pouco com as criaturas? Se o senhor conversa com a planta,
ela se sente mais viva, cria folhas bem verdes, bota flores perfumadas, deita boas
raízes. Ela pega viço e floresce mais formosa pelo bom trato e pela amizade. O
senhor faça um esforço para entender essa experiência. Não pense que são
doidices ou tratos de gente sem-o-que-fazer. Há coisas que, tendo vontade e
capricho, se aprende e depois se ensina.
Nhô Guimarães pedia silêncio, apurava os ouvidos, apontava o dedo para
cima: “escutem, sintam os barulhinhos lá fora; isso é a vida acontecendo a todo
instante desde que existe o mundo e daqui para os séculos sem fim. A gente faz
parte desse mistério mesmo sem saber os segredos. Tem coisa mais linda do que
o céu de noite? E as cores dos campos ao amanhecer?” Ele ensinava como
escutar a toada da chuva, perceber as mãos da água alisando as árvores, tateando
as casas. A zoada da água deslizando nas pedras era o rio cochichando uns
versos. E sentia o murmúrio da brisa, passeando pelas trilhas e pelos morros,
acarinhando as folhagens.
Era farto de saberes e bondades. Ele guardava essas conversas, nas
palavras lá dele, desde muito moço. O que lhe diziam as águas da serra? De olhos
atentos, perguntava e ouvia as águas soltas entre os dedos da montanha cantando
nas pedras... E era uma canção de só existir. Daí contava um segredo, quase num
cochicho de pé-de-ouvido só aos amigos mais chegados. Apertava os olhos,
puxava pela memória, e buscava de lá de longe nos anos, uns versos seus que
confirmavam: “Há uma hora certa, no meio da noite, uma hora morta, em que a
água dorme. Todas as águas dormem: no rio, na lagoa, no açude, no brejão, nos
olhos d’água, nos grotões fundos. E quem ficar acordado, na barranca, a noite
inteira, há de ouvir a cachoeira parar a queda e o choro, que a água foi dormir.”
A gente apreciava as explicações. Ele atiçava nossa curiosidade de testar
os saberes. E Iara existe? E caboclo d´água existe? E caipora existe? Ele então
explicava: “Tudo existe. Se está na imaginação da pessoa, é coisa existente,
existida, existindo a todo instante”. E por que às vezes o senhor parece triste?

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“Muitas vezes, por não saber o segredo de tanta coisa do que existe no mundo.
Dá tristeza de não saber; mas há o consolo de imaginar, inventando um
entendimento.” E de novo lembrava de uns versos: “O mato está cheio de
caminhos frescos, que eu não posso enxergar.”
Era bom observador da vida, porque amava as belezas do mundo. Gostava
de prosear, ora cabisbaixo, às vezes quase marejava os olhos, com seus próprios
pensamentos. Gostava de sentir emoção, mas às vezes era tão forte que sofria,
ficava meio aflito. Daí a pouco, serenava, voltava a sorrir, encabulado. Tinha
sempre um jeito escabreado, com receio de não ser apreciado, de ouvir dichotes
sobre sua pessoa. De repente, Manu revelava: “a gente lhe quer muito bem ao
senhor.” Ele então sorria, mais encabulado ainda, com uns fiapos de lágrima
escondidos atrás dos óculos.

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29
O senhor é boa gente

Eu fico observando o senhor, vou tomando ciência das coisas. O senhor


me parece que não veio a mim por acaso, porém muito bem ensinado. Que mal
lhe pergunte, o que procura?
O senhor fica assim calado, mas seus olhos conversam muito: está certo;
procure. Tomara! O senhor vai achar. Tenho a paciência que aprendi vivendo. Se
não for o que quero, que jeito? Seus modos de olhar me lembra muito alguém.
Ah, mas que curiosidade! Parece mesmo que procura um saber, uma
confirmação. Faço muito gosto.Vá, prossiga; eu aguardo.
Olhe, este quarto ao lado, deixo a porta sempre aberta para arejar. Pode
olhar sem cisma. Veja a cama de solteiro, lençol estampado de flor do campo,
travesseiro de algodão. Vem assim sem uso há anos e anos, mas sempre
renovado. Conservo arrumado este quarto de meu filho. Se um dia vier, terá boa
dormida, água fresca e alimento farto. Seus cabelos, ainda que bem branquinhos,
eu ia pentear como se fossem do mesmo garoto daqueles tempos.
Ah, meu filho, onde estará? Tenho medo que a notícia ruim seja verdade.
Por isso evito procurar o mais exato. Deixo o tempo cuidar. De esperança
também se vive, é o segredo de se ter saúde. A esperança, meu senhor, é um
santo remédio. Se ele voltar, mesmo não sendo ele, a festa será igual. Quem sabe,
será de alguém por direito que se prove. Cada pessoa, uma semente.
Engraçado: o senhor às vezes faz uns gestos. Parece que vai me dizer
alguma palavra, mas logo se recolhe calado. Será que caça certeza de alguma
coisa? Não forço, vamos prosando e nos conhecendo. A paciência é parente
próximo da sabedoria. Mais adiante, o que for verdade será revelado. Faço gosto
que ache aqui mesmo o que procura. Vá tomando notas das coisas.

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Já lhe aconteceu passar algum aperreio, desses de a gente até perder o
rumo? Isso ocorre com toda gente. Pois, saiba que de muitos séculos passados
vem a sabedoria que ajuda a curar os males presentes. Sou católica, e mais que
isso, tenho também outras crenças, como o povo todo do sertão. Não parece, sou
muito cismada. Ah, debaixo de escada é que não passo. E toda sexta-feira 13 fico
em casa contrita.
Estou aqui nestas prosas, porque sinto que o senhor é boa gente. Gostei de
seus modos calmos, sua paciência de me ouvir, esses agrados que vêm de seus
olhos. O senhor é fino, quieto, atencioso. Mas se passar um aperreio forte, uma
contrariedade, consulte seus botões, e faça sempre o bem. Por exemplo, se
alguém comete uma maledicência com sua pessoa, que fazer? Isso traz tristeza,
eu mesmo sofri a má ação de minha falecida comadre Davina, que me levantou
um falso horrível, conforme já lhe contei. Naquela época fui dura, não tinha o
entendimento de hoje. Hoje eu sei o procedimento mais certo. Se isso lhe
acontecer ao senhor, faça contrição. Primeiro de tudo, perdoe. Entregue os
injustos e maldizentes a Deus. Recite o Salmo 51 contra as maledicências dos
inimigos e quais ofensas do próximo.
Para si próprio, eu lhe recomendo os Salmos do rei Davi, que exaltam as
misericórdias divinas. Eu sempre recito o Salmo 103, Hino ao Criador. Ah, o
senhor quer ouvir? Aprecie um trecho que sei de cor e salteado:
“Bendize, ó minha alma, o senhor. Senhor, meu Deus, tu te engrandeceste,
revestido de majestade e esplendor, coberto num manto de luz. Tu estendes o céu
como um palácio; e constróis tua morada sobre as águas. Viajas sobre as nuvens,
e caminhas sobre as asas do vento. Tu tens os ventos por mensageiros e as
chamas de fogo por ministros. Fundaste a terra para existir pelo século dos
séculos. Bendize o senhor, minha alma!”
Este é o Salmo mais bonito que existe. O senhor vai ver que é um cântico
excelente. Pois, experimente essas leituras. São tesouros que os séculos
conservaram. Se pegar gosto, vá lendo mais, examine o que tem de sabedoria no
Livro dos Provérbios, no Eclesiastes. Não quero dizer com isso que apanhe fé em
religião. Isso cada qual decide, não se pode exigir.

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30
Um pai desnaturado

O senhor medite que a vida tem seus ensinos. Aqui houve um homem que
procedeu ao contrário, com suas más proezas. Prometeu mundos e fundos a uma
moça humilde, virtuosa, trabalhadeira. Tanto fez com juras e promessas que
deixou a pobre em estado interessante, e desvalida. Ela sustentou que o filho era
dele. Mas o sujeito desdisse, se desfez, amenizou que apenas lhe daria abrigo.
Um pai desnaturado. Mais adiante largou a pobre mãe na amargura do relento,
com o filho no colo. Desfez-se dela para se casar com outra mais ao seu gosto.
Daí deixou a desenganada na pior situação, a viver de favores, empenhando o dia
nas roças, fazendo mandados em troca de comida, sempre com a criança esticada
nas costas. Ela ia pro eito capinar a lavoura, colher feijão, descascar mandioca
em casa de farinha. Deixava o filho debaixo de uma sombra, correndo o risco de
cobra ofender, marimbondo picar, e outros males sucederem ao menino.
A criança cresceu, e se tornou um homem de bem. Dado ao trabalho,
desde cedo, empregou-se num pequeno curtume, labutava de sol a sol, não
conhecia paradeiro. Acabou aprendendo a profissão. Caprichoso, juntou dinheiro,
adquiriu uma meiágua para viver com a mãe. A casinha tinha uma nesga de
quintal, onde o rapaz abriu um negócio e daí foi prosperando. Sempre ao lado da
mãe, com trabalho e vontade, se tornou negociante com couro de boi, no curtume
que montou em casa. Vendia couro para outros comércios. Foi ficando bem de
vida. Desde menino sabia quem era o pai, pois a mãe lhe apontava, de passagem
pela rua. Certa vez, em plena feira de sábado, encontraram o pai ingrato, por
acaso. A mãe apresentou o rapazote ao velho, que o encarou bem, examinando

100
suas feições. Mas foi incapaz de dizer uma palavra, seguiu sem olhar para trás,
nem mesmo parecia envergonhado.
Enquanto o filho enjeitado prosperava, o pai renegante foi dando para trás
nos negócios. Aos poucos foi perdendo o que possuía, por necessidade de
tratamentos caros para a mulher e para si, que caíram muito enfermos. Tempos
depois, estava viúvo, idoso e sem filhos. E se viu doente, sem posses,
desprezado. Ele caiu na sarjeta da vila, passou a viver da sopa e do pão caridoso
do padre. A necessidade é irmã da mendicância; e ele passou a pedir esmolas.
Um dia estendeu a mão a um senhor, e pediu uma esmola pelo amor de Deus. E
quem era o homem? Era o próprio filho enjeitado que, num pesar, reconhecia a
triste figura do pai desnaturado. O esmoler ainda repetiu o pedido, antes de
apurar as vistas e reconhecer o próprio filho. No susto, recolheu a mão estendida,
caiu de joelhos, humilhado. Diante dos curiosos, caiu num choro desconsolado,
clamou por perdão, nada mais que isso: “Perdão, meu filho; perdoe este pai
miserável”. Alguns apreciavam a cena, torciam o nariz, que ele merecia passar
pela humilhação. Mas o filho enjeitado obrou boa ação; perdoou o pai, recolheu o
velho ao lar, amparou sua velhice.

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Simeão, homem do cão!

Nhô Guimarães sabia entender os causos da gente. Ele sabia imaginar o


que a pessoa era capaz de crer. Respeitava nossa fé antiga, nossos jeitos de sentir
a cor das coisas. Ele dizia, aceitando: “Aqui no sertão o diabo existe. Anda pelas
encruzilhadas onde passa gente, que sozinho não pode existir”. Isso, a charada: o
senhor entenda por si mesmo.
Para mim era difícil saber certos significados. Eu ficava muito curiosa,
porém calada. Ele, estendendo o caso, se ria com jeitos de bondoso. Pra que tanto
explicar, basta ir vendo os aconteceres e seus mistérios. O coração sente aquilo
que o corpo não vê. O diabo existe no pensamento do senhor? Isso é coisa que a
gente decide se sim, se não, para o próprio pensar, orar e viver. Mas, como
entender tudo aquilo que se conta sobre um incerto Simeão, dessas vizinhanças
passadas? Nhô Guimarães concordava. O diabo existe no sertão, dentro da gente
mesmo. Quer saber, escute.
Simeão? Eu conto a história ao senhor, conforme sei e ouvi falar. Até hoje
se narra o causo por estas redondezas. Alguns juram que já viram visagens em
noite de lua cheia. Antes dos maus enredos, era pessoa de uma conhecida
simpleza. Não era daqui; veio de fora, terminou apreciado pelos bons
procedimentos. Pobre de Jó, quase desvalido. Empenhava o dia nos eitos alheios,
para ganhar o de-comer de cada jornada. Nada tinha de seu que fosse juntado. O
mais saber que tivesse era ralar mandioca, em casa de farinha. Era bom de braço,
mas ganhava só uns minguados.

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Simeão era contrito na fé por melhoras. Comparecia à missa, comungava.
Ia assim conservado por toda a vida, não fosse um fogo que lhe nasceu por
dentro, por uma moça da região. E que faceira! Ele veio a gostar de Açucena,
filha de um proprietário de algumas posses, porém cobiçoso por outros aceiros.
Já nos olhares, sentiram muita satisfação um pelo outro. Do olhar à conversa,
bom-dia, boa-tarde, mais uns sorrisos, contraíram amizade. Eles se encontravam
toda semana na vila. Até piscavam, por se quererem, às escondidas. Foi aí,
Simeão criou esperança, deixou o sonho escapar do sono. De prontidão,
pensando o melhor, se apresentou ao pai, Nhô Ramiro. O velho lhe fez entrevista,
as perguntas como facas. Não escondeu sua má vontade. Tinha plano melhor para
a menina, de qual boniteza, prestes a um bom casamento. Ele queria um genro de
ajuntar posses e valores. Simeão, tadinho, parece que não quis entender os
recados, tomou o nem-sim-nem-não como aceite, quase um abilolado. Deitou
notícias sem validade nos ouvidos do povo.
Um mês depois, meteu os pés pelas mãos de uma vez. Foi até o velho
propor acerto de casamento, em nova prosa desacertada. Apresentou-se, no certo,
pois a moça até se confessava querendo. Mas Nhô Ramiro, necas; todo calado, ia
só assuntando. Depois desatou uma conversa entrecortada, sem encarar o moço,
baforando de mansinho pelo cachimbo roído. Só interrogava, apertando os dedos
encardidos. Como iam alimentar os filhos, sem um ganho que prestasse?
Porventura iam conviver debaixo das árvores e das nuvens? Por fim, disse o
veredito, três vezes repetindo. O senhor é bom moço, não nego, reconheço, mas
com minha filha: não, não, não.
O velho pediu licença, sem dar mais ouvidos. Simeão saiu de lá com a
mão na frente, outra atrás, prestes a se afogar no vento. Da cancela derradeira,
voltou em cima do rastro. Insistiu por tudo que fosse sagrado, fez jura de amor
verdadeiro. Nhô Ramiro fizesse o bem: ele trabalharia sete anos de graça em seu
roçado, em troca de abrigo e comida, para se afirmar um bom marido. Ele
confiasse na boa intenção. O rapaz se humilhava. O pai da moça deu uma
gargalhada de mangação. Ora, isso não tinha graça! Para se ver livre dos apelos,
fez uma prova de noves fora. Ele tinha condições? Nenhuma. Então a menina ia

103
se casar com um fazendeiro apessoado, Nhô Sinvaldo, homem maduro, viúvo,
seu amigo de longas datas. Mas dava sua palavra: enquanto não convencesse a
filha, havia esperança para Simeão, mas desde que reunisse condições. Embora
não visse como. A não ser: ele apresentasse posses, o que era de todo o
improvável nas circunstâncias. Pois, desistisse com honra. Para que se enganar?
Que fosse logo embora, arribasse dali.
Simeão saiu cabisbaixo, ficou zanzando sem saber como amealhar fortuna
com rapidez para salvar seus planos. Em cada mulher que divisava, via só os
olhos de Açucena lhe pedindo providências. Isso rendeu em prosas e cochichos,
pois o moço ficou um tonto azuretado com a recusa malfeita. De tanto pensar,
esquentou o juízo demais, como se, amalucado de uma vez por todas, estivesse
aluando. Sumiu pelos matos. Diziam que estava variado, de miolo amolecendo.
Passou a viver pelos ermos, mal-amanhado, a subir e descer ladeiras, sujo de se
ver e sentir o mau-cheiro, cabelo comprido e barba desgrenhada batendo na boca
do estômago.
Era pra tanto, esse mal de amor? Vá-se medir a tamanha paixão! Se
alguém encontrava o infeliz, dava conselhos, chamava ao certo, voltasse ao
mundo do Sol. Mulheres, tantas no mundo! Por que só servia aquela impossível?
Açucena era jeitosa, com sorriso manso e andar faceiro. Mulheres outras, de sua
iguala, havia tantas. Mas, nada; ele queria se alegrar com o jeito açuceno, contra
as teimosias do pai da moça. Tem gente que vive de ser infeliz, em busca da
fortuna que se promete e nunca se cumpre.
Pelo trato de seus afetos, Açucena caiu numa murcheza à vista, sinais de
paixão recolhida. Ela definhava mesmo, como se desejasse falecer. Nhô Ramiro
insistia na sua exigência. Queria casar a filha com um noivo de bolso farto. Ela se
engraçasse com Nhô Sinvaldo. Fazia tudo para convencer a filha, e por isso
também sofria, com seus achaques e fastios, cachimbando e tossindo. A coisa
andou muito falada, depois foi esfriando nas futricas do povo. Ninguém via
Açucena onde fosse, tampouco se sabia o paradeiro do rapaz. Correram os dias,
as festas, os feriados, algumas chuvas, duas estações.

104
Um dia Simeão apareceu de volta, e demudado estava. Parecia outro na
cara do mesmo. Disposto, bem vestido, cheirando à água. Obteve uma força mais
que bruta, inesgotável, para trabalhar dobrado. Queria colher a mão de Açucena.
Dava muita produção, exigia altas pagas, ia acumulando os cobres. Era um
desafio. Nhô Ramiro resolveu apressar a filha, passando por cima de sua recusa.
Ela tinha de casar com Nhô Sinvaldo e pronto.
Enquanto isso, Simeão e a moça se viam, sempre que podiam, embora de
longe. Nos olhares se abraçavam, se juravam, se queriam. Era um fogo inquieto,
um prazer no sofrimento. Eles se viam apenas na feira, pois à missa Simeão não
ia mais. Diziam que ele tinha feito uma promessa pela mão de Açucena e que o
santo não havia atendido. Tinha ido ao padre e dele não colheu apoio. Em vez de
interceder a favor, aconselhou que desistisse. Um pecado. Até humilhou o rapaz,
dizendo que ele não era homem para pretender uma moça daquela. Que injúria!
Daí, Simeão se roeu de raiva, perdeu a fé, esconjurou o padre e a igreja. Isso
diziam, como farpas e desculpas. Simeão ficou de mal com Deus.
A data do casamento de Açucena se aproximava. Nhô Sinvaldo, investido
noivo, de tão contente mandou preparar uma grande festa com farto banquete.
Tudo então acertado, mas a noiva contrariada. Simeão mandou recado: ficasse
tranqüila, que ele já sabia de outro jeito a acontecer. O casamento não ia ser, era
certo que não. Essas coincidências contam, se forem vontade de alguma força
que haja, sem o domínio humano. Certas coisas fogem ao entendimento. De onde
vinha tanta certeza?
Pois pasme: o casamento não houve. Na véspera, Nhô Sinvaldo se viu de
repente aperreado, uma tremura comichando o corpo, um nó cego na garganta. E
foi indo, foi indo, de tão avexado sentiu uma dor fina tomando o corpo, daí levou
a mão ao peito, e desabou no chão fulminado. Morreu. Era possível? Foi um
zum-zum-zum danado pelas vizinhanças, a festa se achava perdida para os tantos
comensais. Cada qual botasse seu feijão no fogo, que a comilança estava
suspensa. A igreja tinha sido preparada para a festa. Mas recebeu o caixão do
noivo para missa de corpo presente.

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Simeão sumiu por uns dias. Quem prestou atenção, captou uma tristeza
alegre nos olhos açucenos. Ora, o que se podia fazer? O tempo passasse. Quando
Simeão reapareceu, estava por si de alegre. A todos cumprimentava com mal
disfarçada satisfação. Salva por um triz. Açucena estava reservada para ele. Mas
que certeza!
No trato das coisas, o moço se avantajava. Com os dinheiros, os bem-
guardados, comprou um terreno muito ruim, barato, seco, esturricado, pedregoso,
a preço mesmo de porqueira, sem veio d’água nem esperança de se colher qual
fruto que fosse. Ninguém dava nada pelas terras, não se apostava naquilo um
tostão de mel coado. Um mau negócio, segundo afiançavam. Estava um completo
doido o rapaz?
Pois foi a enxada de Simeão bater na terra, e tudo foi se modificando. De
primeiro, tivemos uma boa chuva temporã que amaciou a terra esturricada.
Depois, no pé de um morro de pedras, aconteceu um milagre: surgiu ali um
minador. Daí se formou um veio de águas excelentes, sempre correntes,
beneficiando a fazenda de Simeão. Mas que sorte! O povo ficou abismado Em
pouco tempo se via grande prosperidade naquela terra antes sem jeito nem trato.
Mas é aqui que a história escurece, como noite sem lua, cheia de
presságios. Diziam, de boca em boca, que a grande prosperidade do homem tinha
origem misteriosa. Nessa nova feição, calado, olhos ariscos, Simeão mostrava
sinais de uma mudança de jeitos na vida. Jamais pisava no chão da igreja, nunca
mais se ouviu de sua boca uma palavra santa, nem o murmúrio de uma prece,
qual fosse ao menos o nome de Deus. Era só por birra com o padre? Sim ou não,
como se ia saber? Ele se mostrava esquisito mesmo, com tino e juízo só para os
negócios. O dinheiro vinha escorrendo para sua mão, como enxurrada. O moço
prosperava de um susto, enriquecendo.
O pequeno olho d’água cresceu, quase que por encanto, gerando uma
represa natural. Formou um grande açude, bem feito. As terras, agora férteis
como o quê, tudo ali nascia viçoso, onde se plantavam bons cultivos e se criavam
bons animais. As safras se multiplicavam do mesmo jeito enquanto a escassez
acabrunhava os outros roceiros. Se dava uma praga no milharal dos outros, o de

106
Simeão rendia em dobro. Ele ganhava os dinheiros que os outros perdiam de
arrecadar. Seu gado se reproduzia numa rapidez espantosa, comendo o capim
verdoso de seus pastos. Trazia da cidade longe gente estudada para trabalhar na
fazenda, cuidar de plantas e bichos, fazendo tudo render e se multiplicar. Ora,
isso incomodava os outros, causava inveja e más falações. Começaram a
cochichar bobagens sobre o rapaz.
Simeão andava distinto, bem arrumado em seu cavalo de raça, luxando
roupas caras que vinham de fora. Agora superior, espreitava a casa de Nhô
Ramiro, a fim de resgatar Açucena e desafiar a arrogância do velho. De inveja ou
sabedoria, pegaram a dizer coisas maliciosas. Que ele não gostava de santo e não
pronunciava nomes sagrados. Bem, ele conservava a birra com o padre. Mas, se a
raiva passasse, ele não faria as pazes com Deus? De tanta conversa, os
maledicentes chegaram a um ajuste, pelo sinal apresentado, que só podia ser isso:
a notícia se espalhou como um sarampo. Simeão tinha parte com o dito cujo.
O Buzebel estava metido nisto? Credo em cruz! E eu sei? Simeão tinha
feito um pacto com o trem-ruim, o dianho, o tinhoso? Isso os rumores por toda
parte, às boquinhas, que Simeão tinha contratado auxílio oculto, acertado na
encruzilhada. Tinha empenhado a alma? O mistério era saber quando e quais as
pagas pequenas. Talvez? Era certeza? Diziam coisas, na vontade que sim, para
render nos cochichos. Para provar, até falavam de um velho livro de São
Cipriano da Capa Preta, o dito verdadeiro. Era uma prova de grave heresia.
Simeão tinha esse livro, que muitos viram que sim. Era a tamanha novidade. Por
amor a Açucena, ele havia embarcado no engano da perdição, um pacto firmado
à meia-noite, conforme os ensinos malévolos, com o impróprio, o dito rapaz das
trevas. Não vi, não sei, não fio. Conto o mesminho tanto que me foi relatado, por
quais pessoas de fé e experiências. Ignoro estes saberes e de tudo isso me
conservo desconfiada. Meu senhor, entre o que o povo fala e a verdade consente
existem uns abismos. No entanto, da beira ao fundo, há sinais e detalhes: tudo se
encaixa de modos os mais estranhos. Viver é um ato suspeitoso, entre os enredos
da fé e da descrença. Deus e o diabo são vizinhos intrigados que às vezes
combatem em atos contrários, só por se firmarem mais poderosos. Essa briga

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porventura é nossa? Então me diga o certo. O diabo é capaz de fazer boas obras
só para enganar, por interesse de arrematar as almas. No fim, tudo se revela falso,
num estouro que só sobra o fedor de enxofre e as perdições confirmadas,
conforme as Escrituras.
Um dia, Simeão, no gozo de seus poderes, foi ter com Nhô Ramiro.
Chegou retinto, montado a cavalo de raça, bem arreado. Exigia a mão de
Açucena. O velho quis enfrentar, mas se amofinou diante da nova estampa do
rapaz. Nervoso, nem acertava levar o cachimbo à boca. Mas se sentia ferido na
honra, pelo rompante do pretendente, no passado e pior agora. Preparou a voz
para reafirmar três vezes que não. Mas não pôde pronunciar, pois, de repente,
bateu um pé de vento esquisito, dois quadros de santo que se achavam na parede
caíram no chão, espatifando os vidros e rasgando as imagens. Nhô Ramiro se
protegeu, caiu em si que isso era um mau sinal. Faltou coragem de se afirmar
contra o homem. Se tentava pronunciar que não, dava-lhe uma agonia, num
aperto por dentro. Teve medo de morrer. Ele acreditava no que diziam do moço
pelas fazendas e pelos caminhos. Sua voz saiu trêmula e rouca para declarar sim,
sim, sim, três vezes se desdizendo.
Açucena regalou-se toda feliz. Simeão na mesma hora lhe pôs aliança e
abraço. E disse que ia arranjar os papéis do casório civil. E na igreja, quando?
Açucena quis saber. A igreja devia ser antes. Simeão firmou-se em silêncio e
logo assumiu a vez de repetir as palavras: não e não e não. Ele desafirmou pela
noiva e pelo sogro. Por quê? Porque desgostava do padre, pronto! Mas como, se
era costume de geração a geração? Açucena não deu passagem a tristeza maior,
apenas guardou a questão para adiante. O seu sonho, no fundo das noites, era
casar de véu e grinalda na igreja da vila. Queria trocar alianças ao pé daquele
altar que admirava desde menina, quando ia à missa de mãos dadas com a mãe. O
noivo haveria de entender.
Mas Simeão se plantou na recusa, que odiava o padre e sua igreja velha.
Se alguém lembrava a lei de Deus, rebatia com raiva. “Que qual nem mané qual”.
Ele desfazia, sem pronunciar certas palavras. Açucena caiu em desgosto,
espremida entre o amor ao noivo e a vontade de casar-se diante do altar. Não

108
houve jeito de convencer o rapaz. E cada vez que Simeão se negava a atender o
apelo da noiva, ela se abatia na maior tristeza.
Mais adiante, em meio a essa provação, Açucena ficou sem pai. O velho
sofreu um estrupício e amanheceu amortalhado nos lençóis. A menina ficou seca
de chorar. Sumiu de ver o noivo por um bom tempo, recolhida ao luto fechado. O
pai havia pedido encarecidamente que não desposasse aquele homem. Seria uma
tragédia, ele insistia.
Mas Açucena se achava firme no amor que sentia por Simeão. Tempos
depois, ela reapareceu diante de todos. Simeão correu ao seu encontro, visto um
suplicante. Ela reafirmou ao noivo que só se casava na igreja. Mas Simeão
insistia negativo, firme e teimoso. Diante dele, a moça desatou a chorar de
amargura. E disse que desistia de tudo. Ia seguir numa viagem sem volta.
Açucena resolveu se acudir no convento da cidade mais próxima. Foi a
vez de Simeão provar o desgosto, em palpos de aranha. Todo o seu esforço ia se
perder. Ela ia ter coragem? Primeiro apostava que não. Mas, quando viu a moça
sustentar a palavra, com a viagem preparada e a hora chegando, se viu vencido e
obrigado a honrar o grave dever. Ele se apresentou aos braços da noiva, pediu
perdão e aceitou o trato, quebrando a lógica de sua teima.
O casamento foi uma festa do povo, que muitos acompanhavam o caso e
oravam por um bom termo. Entre os bem-falantes e os maledicentes, todos com
os dentes afiados para as comemorações, no terreiro da fazenda de Simeão. Na
data e hora aprazadas, lá ia o noivo para a igreja, ao encontro da mais bela flor do
lugar. Entretanto, parecia muito contrariado, de cara amarrada, como se
marchando para a forca. Não por falta de amor à noiva, que isso possuía demais.
Ele havia feito um juramento secreto: jamais pisar em igreja ou encarar um
padre. Agora se via na contradição que dava tudo para evitar. Menos perder sua
flor. E, só por isso, desafiava sua própria teima. Todavia, confirmava a si mesmo,
entre dentes, que era um azar, como se fosse amargar lágrimas de sangue.
Na festa, o povo se consumiu em dança, comida e bebida. Depois veio um
tempo calmo, sem novidade. Só o ritmo das estações, ora chuva, ora seca, a vida
ia se cumprindo. Simeão se achou mais rico, com nova propriedade para cuidar.

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E, já neste ano, Açucena deu à luz uma menina que chamou de Lucinda. Não
cheguei a conhecer, mas diziam que era um mimo.
Eu bem que gostava de encerrar aqui este causo com um fecho de ouro. O
senhor ficava satisfeito. Eu principiava a contar outras passagens. Mas, não. A
felicidade é um pássaro arredio. Basta a gente piscar e ela já bateu asas.
A vida de Simeão começou a se arruinar. Primeiro, descambou por aqui
uma longa estiagem, com grandes perdas e muito desespero. A seca parecia de
encomenda para acabar com o homem. Tanto que logo matou o olho d´água que
regava sua fazenda. A represa foi secando rápido, e, sem água, desandaram a
lavoura e as criações. As plantações ressecavam; o gado emagrecia e perdia as
forças, virava carniça pelo pasto seco. A fazenda voltava a ser de pedras e
torrões.
Quando a seca é terrível, quem mais tem, mais perde. Era aquele desastre
sem jeito. O céu azul e o sol tinindo. Até o único açude da região morria de sede.
Simeão via a ruína invadir as suas terras. Ele parecia resignado, como se já
esperasse ou tivesse aviso de todos os desmastreios que decaíam sobre seus
ombros. Foi se agüentando com o dinheiro que havia juntado. Mas sua riqueza
era a terra, o gado e a roça. As economias escassearam logo, até o último tostão.
Uma desgraça.
O povo ia orar na igreja, faziam procissões. Simeão não comparecia.
Ficava amoitado na fazenda, já sem empregados, quase que passando
necessidades. Açucena, coitada, ainda moça, mas envelhecida, aceitava a sina
sem reclamar. Ninguém conhecia uma seca daquelas. Os mais velhos sabiam que
seus avós falavam de uma estiagem terrível, fazia mais de cem anos. O pior o
povo falava: que aquilo era um castigo, por culpa de um morador endemoniado.
E gritavam: “Simeão, homem do cão!” toda vez que avistavam o coitado.
De tanto que falavam, havia fé que fosse verdade. Até Simeão, de tanto
ouvir os boatos, se sentiu nas trevas, em dúvida de seus acertos. O homem sofria
os piores pesadelos, em que o tal bedegüeba se apresentava a ele cobrando pelo
falso cometido ao pacto, por haver comparecido perante o altar. Dizem, não vi,
não sei, bato três vezes na madeira de lei, que a ira do cão é eterna como o fogo

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das profundas. O senhor se benza, que essa passagem é muito forte. Porque
dizem que o dianho não se contentava só de arrebatar a riqueza do parceiro infiel.
Fazia sofrer de dores terríveis, com doenças que nenhum doutor atestava, mas
existiam, porque feriam no fundo da alma. Simeão variava, zanzando pelas
estradas e encruzilhadas, nas horas mortas. E Açucena, de tão viçosa que era, só
secava, de aflição e achaques, era pele e osso, quem via tomava um susto e
passava a contar fuxico.
Mas, a filha deles, nada disso sofria. Veja o senhor, que coisa: a menina
ficava cada vez mais formosa, bem rosada, de olhos vivos, lindos cabelos. Era já
uma moça feita, única luz que restava na vida do casal infeliz. Como podia ser
uma coisa dessas, sem acerto? Segundo se conta, uma noite Simeão se viu
enredado pela voz dos infernos, num pior pesadelo. Era hora de pagar de novo
pelo pacto quebrado. Ele escolhesse uma oferenda em sacrifício, o seu ente mais
querido, em curto prazo dissesse, a quem o demo podia arrebatar: a mulher ou a
filha. O homem fez por morrer sem conseguir; uma consumição terrível. Por que
sofria esses pesadelos? Será que acreditava, por força das intrigas, pelo desvario
dos sofrimentos, que fizera mesmo um acerto com o demo? Ou tinha lá seus
maus segredos, jamais revelados? Às vezes, por pensamento ou palavras soltas a
pessoa comete um juízo falso e, por pensar que firmou mesmo o trato, até
acredita no pior, mesmo enganado. Cabeça de gente é imaginosa, pois com tudo
ficamos impressionados. Ser gente dá nisso: vive inventando coisas e padecendo
os seus efeitos. No fundo, o céu e o inferno estão dentro de cada pessoa. O
senhor o que acha?
Simeão evitava dormir, com medo de se encontrar com o sujeito-ruim.
Certas vezes, era visto correndo trecho, olhos arregalados como duas postas de
sangue, arrodeados de olheiras profundas, roxas e espantadas. De tanto não
dormir, desmaiou por um bom tempo, coisa como dois dias. Ele ficou apagado,
mas ressonando, vivo. Assim foi recolhido e levado para casa por uns poucos
corajosos e capazes de tal caridade. Neste sono a pulso, o homem se debatia,
dizia palavras incompreensíveis, como se lutasse contra uma força malfazeja. De
repente, arquejava: “Açucena! Leve Açucena!” E, depois de tais achaques, enfim

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acordou aos prantos, lágrimas doídas correndo no rosto disforme, ciente de sua
derrota. É que, neste sonho infame, o trem-ruim se apresentou, cobrando a
urgente resposta: a mulher ou a filha, o ente mais querido ele entregasse. E ele,
por muito sofrer, no pesadelo, acertou um trato. O diabo deixasse a filha, levasse
Açucena, a fiel companheira de sua vida.
Durante a noite, naquela casa amaldiçoada, ouviam-se os gemidos de uma
pessoa em sofrimento de um mal súbito, sem tempo para se acudir. Eram gritos
de mulher, numa grande agonia, gemidos e mais gemidos, descaindo até sumir.
Daí foi o silêncio da morte completa. De manhãzinha, rompia o choro de uma
mãe desconsolada. Lucinda, linda, embora com um olhar sofrido, cabelos soltos,
aveludados, estava inerte, entre os velhos lençóis que agora amortalhavam seu
corpo. Lucinda estava morta, para sempre falecida, formosa e virgem, uma
cordeira imolada. Triste sina daquela gente, porque, por certeza de todo coração,
o ente mais querido de todos era a finada filha. As pessoas encontraram ali dois
corpos, pois coração de mãe é fraco diante das tragédias. Açucena em boa hora
descansou de sua vida atribulada. Não se soube se de desgosto, dor na alma ou
mesmo de algum veneno bebido no desespero. Mãe e filha seguiram juntas na
última viagem.
Simeão correu doido mais uma vez, diante da grande cilada. Alheio a
tudo, somente voltou para casa sete dias depois do enterro. E lá dentro se trancou,
nunca mais saiu de casa para nada. Tanto que daqui o senhor, espichando bem os
olhos, ainda avista ao longe, na elevação deserta, uma tapera. Era o lar do dito
pactário. Dizem que Simeão ainda está lá dentro amoitado, vivo ou morto, não se
sabe. O lugar ficou maldito, mal-assombrado. Ninguém tem coragem de ir lá
saber o que se passa. Uns acham que Simeão já é finado, por certo uma caveira
caída nalgum canto da casa. Outros acham que ele continua vivo, porém sem
alma, e só não morre por sina de sofrer o que foi pactuado até o fim dos tempos.
O senhor admita: haja fé para tais histórias.

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Afinal, quem é o senhor?

Tenho saudade de ter uma família, como nos bons tempos. Manu, nosso
filho e eu, três pessoas e um destino. E sua família? O senhor tem essa alegria
certa? Ou será desgarrado, procurando por esse mundo um sinal dos parentes
perdidos? Será por isso que se acha em viagem? A palavra nos diz: crescei e
multiplicai. A gente vem ao mundo para cumprir. Nos entretantos, porém, certos
acertos nos desviam do rumo. Outra hora o acaso nos põe de cara com a verdade.
E o senhor? Acho que está em busca de um saber. Ora, pergunte o que quiser e
precisar. Eu lhe informo o que souber e sentir.
O senhor ia gostar de conhecer Manu. Quem sabe, se fosse o caso, ia lhe
tomar a benção, por respeito devido? Ele era baiano, das divisas, aqui de perto,
com seu jeito de muitas conversas. Disso eu gostava, pois de tudo eu apreciava
nele. Manu sabia cativar a pessoa, dava boas risadas, pilheriava com astúcia.
Sabia ser feliz. Aprendi com ele este jeito de falar, este palavreado, nome de
coisas, essas maneiras. E lhe ensinei meus modos, convivendo: a ler, a escrever o
nome e rabiscar recados.
Eu insisto, ainda que bem lhe pergunte: o senhor é gente daqui, ou
aparentado? Se for, sustente; se estiver em busca de saber, prossiga. De minha
parte, tenho esperança, porém com cautela. Vamos nos assuntando com calma.
Tenho uma idéia na cabeça e um presságio no coração. Mas careço de matutar
sobre o sim e o não. Estou confiante, mas sei que a gente se engana quando quer.
Mas, será? Só se, nessa idade pouca, o senhor é uma possível pessoa de meus
sonhos. Eu tenho de vez quando um sonho repetido, com um moço que não vejo

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o rosto, só vagos modos de ser, certas semelhanças. Isso a gente descobre, num
piscar de olhos ou no correr dos anos.
Afinal, quem é o senhor? Mas espere; não se apresse, não confirme nem
negue nada. Deixe eu colher mais uns traços de sua pessoa. Vamos prosando e
descobrindo os sinais. Eu mesma, no fundo me fio, confio na intuição, mas
desconfio das certezas. Quem não duvida de nada morre mais cedo. Mas, olhe o
vento lá fora: ele espalha sementes que a terra acolhe e reproduz bem longe,
pelos caminhos. A gente corre o mundo é no vento, vai e vem na vida, nas
entranhas dos parentes.
Família é sina que se herda, não se escolhe. Quando entramos no mundo,
choramos. E recebemos a sina de pertencer a certa gente. Atenção e trato são os
atos devidos aos parentes bons. Primeiro aos que geram, pai e mãe, para sempre
respeitados e, salvo os desenganos, também estimados. Pai e mãe a gente honra,
ouve e ampara, diante de tudo que se apresentar. Em segundo lugar vêm os
irmãos, aqueles de sangue ou de jura, companheiros das lutas, atentos às
necessidades, uns pelos outros. Mas é fora dos parentes que a gente prossegue a
família. Não é fácil achar a pessoa certa. Quando a família opina, às vezes
complica, porque a obediência tem seus limites, se o coração passa a dar as
ordens.

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O desmantelo dos brabos

Antigamente duas famílias obraram por essas terras, firmes na coragem e


na valentia. Ainda hoje os seus sinais prosperam, da mínima sobra de seus
conflitos. Ah, se as pedras falassem! No início eram bem chegados, até amigos.
Depois, por um caso escabroso, esses enganos, tornaram-se inimigos mortais. E
se enfrentaram nestas paragens, muitas vezes cobrindo a terra de sangue. Muitos
mataram, muitos morreram nas lutas abertas e nas traições. Os Oliveira e os
Barreto eram pessoas de coragem e de honra fechada.
Certa vez, antes de tudo, houve uma festa, na casa-grande dos Barreto. A
família Oliveira era convidada de honra. Era a festa de noivado da filha única de
Nhô Barreto, linda moça que ele dava em aliança ao único filho de seu melhor
amigo e compadre. Consta que os velhos labutaram juntos, cada qual
prosperando muito com roças e gados. Desde jovens, firmaram o acerto de casar
os filhos, juntando assim as famílias. Mas o destino julga e castiga os propósitos
com sua própria justiça. Na dita festa, a moça se mostrou contrafeita com o trato,
não parecia entusiasmada com o futuro esposo, que aliás mal conhecia. Ao
contrário, detestou o rapaz. Naquele tempo, vontade de pai era lei sagrada.
Desobedecer era um risco de ser mandada ao convento ou até mesmo sofrer coisa
pior. Um pai era um senhor.
Mas, quem pode obstar? Pois na justa festa, a moça se sentiu atraída pelo
filho mais velho dos Oliveira. Pelos olhos, os enamorados se acertam. Eles se
entenderam por estes sinais, daí aos sorrisos furtivos foi um logo. E passaram a
se encontrar na vila, na igreja em dia de missa, nas festas da praça, ocasiões em

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que se afinavam ainda mais. Oh, sina ruim dessa moça: noiva de um e gostando
de outro, em tempos tão duros como aqueles, quando palavra empenhada, honra
e poder constavam perigosos.
Nhô Barreto desconfiou da trama, ou foi aconselhado. Precavido, pôs a
moça presa em casa, sem direito a ir à vila. Por maior segurança, apressou a data
do casamento, remarcando as festividades. Acuada, a jovem confessou ao pai a
sua extrema situação. Esperava clemência, coitada? Nada, sua situação piorou
muito. Resultou presa no quarto, sem sequer direito à luz do dia. Dali só ia sair
para ser entregue ao noivo em cerimônia na igreja da vila. O namorado deu por
falta da moça na missa, nos festejos do padroeiro, e danou a sofrer. A moça,
presa em casa. A notícia veio sorrateira bater nos ouvidos dos Oliveira, deixando
o rapaz em pé de guerra. Então, no ímpeto da paixão, prometeu raptar a noiva a
todo custo.
Mas, antes, o pai aconselhou que falasse com Nhô Barreto, em nome da
amizade das famílias. De fato, o jovem foi recebido pelo pai da moça e proseou o
assunto, com palavras bem pronunciadas. Mas o ajuste não foi aceito.
Desculpasse; aquilo era trato antigo e sem jeito. Ele deu de insistir, e teve de
enfrentar a cara feia do fazendeiro. Ora, não via que o caso era assunto fechado,
sem discussão? Inconformado, continuou insistente, agora com frases mais
farpadas. O quê?! Terminou acusado de desrespeitar a família e a honra da moça.
Protestou alto, disse lá um palavreado, e aí a discussão azedou de vez. Ai de
quem provocasse a fúria do velho Nhô Barreto. O rapaz acabou enxotado como
um cachorro sem dono. O velho jogou na cara o seu desgosto:
— Você traiu minha confiança e minha amizade. Não é mais bem-vindo,
não é mais convidado, nem você nem qualquer pessoa de sua raça. Portanto se
retire de minhas terras, nunca mais me entre por aquela porteira onde principiam
meus domínios. Se vier aqui vai ser recebido a bala. Ponha-se daqui pra fora já!
Estava feita a injúria dos dois lados, nessa má hora. Uma desfeita que ia
valer por três gerações. Porque o rapaz, sisudo e valente, deu o silêncio por
resposta. Jurou em si que a afronta ia ser reparada com um gesto de ousadia.

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Não contou nada aos parentes. Mas planejou voltar à noite, com dois
homens na cobertura, para roubar a moça. E, assim, guiado pelos efeitos do
coração, fez o ato de coragem e atrevimento. E a moça já estava peitada para essa
arte, por obra de seus recados sorrateiros. Tanto que ela estava à sua espera, com
a janela do quarto desaferrolhada. Lá chegando, de modo estudado, ele assuntou
os arredores, ouviu o sinal da amada. E os dois romperam pela noite, dali se
afastando sem cautela. Pois aí é que foram descobertos pelos capangas dos
Barreto. Eles estavam de guarda e sobreaviso, barrando a porteira da sede.
Atalharam o casal na saída, de armas engatilhadas. Nhô Barreto e os filhos
vieram à frente para maior agravo do ato. O velho esbofeteou a filha ali mesmo,
diante do moço, que foi desembainhando o facão, quase ao ponto de desatinar o
angu. Mas se conteve. Rumaram para a casa-grande, tocados a pé pelos homens
montados, para maior efeito do castigo. Lá chegando, o pai arrastou a filha para
dentro, deu-lhe uma surra na frente do namorado. Depois mandou os homens
escoltarem os invasores até a saída, sob a mira de armas. Ordenou que nada lhes
fizessem de mal, apenas tangessem como cachorros vadios, no maior desaforo.
Ah, isso não era pra menos: virou caso de honra de família. O rapaz
contou o entrevero aos seus, e todos firmaram apoio ao seu plano, por desagravo
da família ultrajada. Durante meses, prepararam um ataque, com homens de
confiança e muita munição. Iam principiar uma guerra terrível.
O rapaz tinha mandado vigiar os preparativos do casamento. Todos
sabiam o dia que o ato ia ser celebrado na igreja. E era lá que o barulho ia
acontecer. Mas, por cautela, de última hora Nhô Barreto resolveu realizar o
casamento na capela da fazenda. A notícia secreta correu depressa nos cochichos
e deu tempo de os Oliveira prepararem uma invasão à casa-grande dos Barreto.
Na data, saíram em noite de lua cheia, entre as sombras prateando os matos.
Tocaram estrada afora, em busca das terras dos Barreto. Ficaram amoitados nas
cercanias, concentrados, esperando a ordem de atacar.
Na hora do casamento, o que se viu foi uma guerra de meter medo em
santo. O grupo invadiu a cerimônia, na maior arruaça, dando e recebendo tiros,
uma balbúrdia danada. Enquanto se dava o fuzuê, o rapaz passou a noiva sobre o

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lombo do cavalo e desembestou pela estrada. Pronto. A loucura estava plantada
para anos de briga sangrenta entre as duas famílias.
Os Barreto se calaram uns tempos, feridos pela humilhação de a moça
consentir no rapto. O pai caiu de cama, injuriado, quase nem comia, nem falava.
Mas, aos poucos, foram reagindo. Com ódio mortal, resolveram tomar a moça de
volta, por pura questão de honra.
— Eu mesmo vou matar a infeliz — dizia Nhô Barreto, entre os dentes,
cuspindo a baba de fumo mascado.
Eles formaram um grupo de homens bem armados, decididos a resolver a
questão. E tentaram várias vezes. Mas nunca conseguiram se aproximar das
terras dos Oliveira. Eram muito bem vigiadas, com homens brabos a serviço,
armados até os dentes. Quando chegavam perto, choviam balas sobre os
capangas, até que caíssem fora dali, caçando emprego noutras bandas. Muito
morriam, outros fugiam assombrados com a feiúra da briga.
Nhô Barreto, demais envelhecido e adoentado, na hora da morte, pediu ao
filho mais velho que buscasse e matasse a irmã em nome da família. Esse filho
guerreou durante muitos anos, enfrentando as estradas perigosas das terras dos
Oliveira, onde, de lado a lado, matavam e morriam. As cruzes das duas famílias
se espalhavam pelas estradas e alargavam o cemitério da vila. A guerra era
cruenta, sempre aumentando as juras de ódio e morte.
Um dia, na estrada da feira, dois grupos inimigos se encontraram. Isso era
suficiente para uma batalha, com tiros pra todo lado; os jagunços se digladiando.
Havia um rapaz, Antônio Oliveira, que ali se achava, meio perdido. Não era
mofino, mas desajeitado para tamanhas brigas.
Armou-se a batalha. E, nessa refrega de surpresa, Antônio levou um tiro,
caiu arquejante, debaixo do sol quente, lavado de poeira e suor. Os homens que
acompanhavam o rapaz logo debandaram, deixando o corpo para trás. Mas ele
estava vivo. Um jagunço inimigo se aproximou, com olhos assassinos, estirou o
braço, fez mira em sua cabeça. Com olhos terríveis, riu de mangação e disse:
“você vai morrer, seu miserável!” E já ia disparar. Mas ouviu uma ordem, de
repente: “Alto, deixa!” Houve esse grito, de uma voz dos Barreto. Era Jurassi, e

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todos olharam para ele. “Deixem comigo, este é meu.” Ora, matar um inimigo
era privilégio de sangue. Não podia mesmo ser encargo de um capanga, a não ser
no quente da luta. O jagunço recolheu a arma, e se afastou do homem ferido.
Jurassi se aproximou do inimigo caído na poeira. Antônio fechou os olhos,
e firmou o corpo ferido a fim de receber o golpe. Jurassi fez menção de golpear o
outro, mas seu punho fechado em torno do punhal parou no ar. Ele daí recuou.
Parecia que não tinha pressa de sangrar o inimigo. Antônio abriu os olhos
agoniados e esperou de novo a execução. Jurassi olhou o inimigo bem nos olhos.
Como se quisesse conhecer e guardar o rosto, pelo menos, do homem que ia
matar. Os jagunços esperavam já ansiosos. Jurassi riscou um fósforo nas folhas
secas e gravetos, surgiu ali uma chama. Ele então pôs a ponta do punhal para
esquentar. Os homens riram, divertidos com a cena. Era uma prova de grande
perversidade. Certamente Jurassi ia matar o rapaz, com requintes, estraçalhando
seu coração com a lâmina quente, com maior sofrimento.
Ah, o senhor está aflito? Ora, espere! Não concluí ainda o relato. Jurassi se
aproximou com o punhal e mirou bem na ferida do inimigo. Antônio estufou o
peito e esperou o golpe certo, com os olhos fechados, numa careta de horror. Mas
em vez de enterrar o ferro quente em sua carne, Jurassi fez de leve, inclinando,
sem forçar, em busca do rastro da bala. O outro, retorcido de dor, sequer entendia
esse gesto. Os homens ainda pensavam que aquilo era o requinte de matar o
inimigo aos pouquinhos.
No faro da bala, Jurassi prosseguia com cuidado, que a verdade era outra.
Ele operava o bem, extraindo o chumbo do corpo de Antônio. Em vez de
malefício, cometia a bondade de tratar o feio ferimento. Ora, quem entendia?
Salvava da morte um pior inimigo dos seus parentes. Como podia fazer isso? O
irmão mais novo, ali do lado, doido para ver o sangue do inimigo correr no chão,
não se conteve. “— Mate esse desgraçado de uma vez!”.
Jurassi repeliu o rapaz, dando-lhe uma lição. Não sabia que é covardia
matar um homem ferido e indefeso? Antes, que se cuidasse dele e deixasse ir em
paz. Outro dia, bem sarado, em posição de honra, podia matar com um balaço
correto.

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Os homens, desgostosos, obedeceram às ordens. De caras amarradas,
colocaram o moço ferido no lombo da montaria, e daí no rumo de seu quartel, lá
para as terras dos Oliveira. Seguia um Oliveira para tratar suas feridas, mas
levando a marca de um Barreto em seu corpo. Voltava para casa um Barreto,
levando no punhal a marca do sangue inimigo, não por morte, mas por bondade
de seus cuidados.
Jurassi, já na roda entre os seus, ouviu quais e tais impropérios de
desagrado, por não ter sangrado o inimigo. Seu pai, Nhô Firmino Barreto, tinha
uma grande atenção com esse filho. Mas dessa vez não deixou de perguntar o por
quê do seu gesto estranho. Os irmãos, inconformados, rezingavam, trincando os
dentes de revolta, pois sobre aquele Oliveira pesavam todos os crimes de sua
família. Faíscas de ódio saíam dos olhos do irmão mais novo, já arrependido de
haver acatado as ordens de Jurassi.
Nhô Firmino cultivava seu apreço a Jurassi, seu filho mais velho dentre os
que restavam vivos. Talvez por respeito aos seus estudos, em casa do tio, na
cidade, durante bom tempo. Quem sabe, no fundo apreciava sua calma e suas
atitudes. Isso desagradava aos meninos mais novos, os brabos, atirados, prontos
para meter bala até em sombra do que parecesse ser gente, agregada ou de
sangue, dos Oliveira. Mas o pai agora cobrava atitude.
Em defesa de seu gesto, Jurassi sustentou a história da desonra que seria
matar o moço ferido. Depois de muita peleja e pendenga, o pai se conformou.
Mas exigiu um juramento.
— Um dia você vai matar o miserável, por honra de seu pai e seus irmãos,
mesmo que seja ele o derradeiro vivente dos Oliveira.
Ele ordenou que o filho jurasse pela própria honra. Jurassi permaneceu em
silêncio, como que chocado com a situação. Ali, na roda, estava em julgamento,
diante de uma sentença. O pai e os irmãos, jagunços em derredor; fazer e cumprir
aquele juramento era uma ordem que não podia recusar. O rapaz levantou a
cabeça, constrangido, embora certeiro. Disse sim, por vingança e honra, estava
prometido. Um dia haveria de matar Antônio Oliveira, sem dó nem piedade.

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Aqueles tempos vão longe, mas estou aqui para lhe contar. Os fatos
passaram de prosa em prosa, noite após noite, precisam seguir adiante. Por aqui,
restam novas árvores sombreando, pássaros festejando, águas regando o chão das
lutas. As cercas de ódio os cupins comeram. Mas as pedras são as mesmas. A
terra é fértil, que sangue de gente é bom adubo. Já os antigos diziam que para
frutas doces essa terra perdeu a serventia. Nenhuma fruteira dá que preste,
porque, mesmo viçosa, produz um gosto muito esquisito. Mas dá de tudo que
seja amargo ou azedo, como se a terra fosse injuriada.
A guerra continuava cruel. Era o desmantelo dos brabos. Aquelas famílias
iam se acabando por força de balaços e punhaladas. Seus cavalos sabiam de cor o
caminho de casa para levar defuntos, e do cemitério para acompanhar enterros.
Então eles contrataram uma batalha final, para acabar com a cisma de uma
vez, matando e morrendo em campo aberto. Foi numa noite de lua cheia, um dia
de sábado. Por força de murmúrios e conversas miúdas, as autoridades do lugar
ficaram cientes e avisadas. No dia aprazado, rumaram para o campo de batalha.
O delegado, o juiz e o padre, e muitos curiosos, para ao menos testemunharem as
façanhas, já que não tinham força para embargar a desgraceira. Ora, precisava
mesmo ter gente para ver e contar, pois é assim que as histórias prosperam.
Meu senhor, honra é coisa boa, porém ruim. Ao demais, por conta da força
bruta, torna-se um veneno certo. Era a guerra fatal. De lado a lado, homens e
animais, munição farta, com desejo de morte e vingança. Uma campanha aberta e
fechada, num só ato de loucura, uma afronta à luz da noite.
Quem deu o primeiro tiro? Dizem que vararam a noite, buscando-se pelas
sombras, em duelos e assaltos, se estraçalhavam. Como podia essa crueza? Quem
pode domar a fera humana, senão o tempo e as tragédias? Eles se matavam
mesmo, com fúria e requinte, jagunços contra jagunços, família contra família,
rompendo os sinais da madrugada. As pessoas, ali escondidas no mato, sentiam e
ouviam, nos arrepios da alma, os estragos da terrível batalha.
Até que a aurora surgia, cismada. Foi quando nem mais tiro se ouvia, um
ruído que fosse. Era o fim da guerra medonha de tantos anos? Todos estavam
mortos, pelo visto. Sequer sobravam gemidos, a morte abraçava a todos os

121
caídos, ninguém mais restando vivo para contar vantagem. O ar padecia de cheiro
de sangue e defunto. Quanto mais silêncio, mais angústia dava nos homens da
vila que, por ali amoitados, assistiam aos últimos lances da batalha. Nenhum
sinal de vida, dentre as moitas e sombras daquele trágico raiar do dia. Vinha daí
um vento ficando forte, os pássaros se pronunciavam. Parecia, enfim, que haviam
morrido todos os membros das famílias inimigas. A vila, depois de tantos anos,
chegava à paz, da pior forma, sem a chance de um perdão?
Os homens saíram das moitas e se prontificavam a examinar e recolher os
defuntos. Daí, eles viram que, além do vento crescente, uns arbustos se buliam de
parte a parte, em lados contrários. Era nova cena, em que saíam a campo aberto,
à pouca distância, dois sobreviventes inimigos. Os homens ficaram pasmos,
recolhendo-se de volta às moitas. Os inimigos se miraram e se prepararam,
ajeitando o corpo e o chapéu de couro, calados, frente a frente. Um duelo final?
Ali se defrontavam, em hora maior de agonia, os derradeiros braços da enorme
chacina. Ferozes para se matar.
Quem eram eles? Justamente Jurassi Barreto e Antônio Oliveira. Os
menos inimigos por obra das circunstâncias. Eles tinham, fora da briga geral,
suas próprias histórias e desacertos; um desejo de outros rumos. E agora estavam
em vias de colherem os últimos espinhos de todas as refregas, respondendo por
todos os atos dos seus, no passado e no presente. Estavam sentenciados, frente a
frente no campo de batalha e honra. Iam se matar.
O senhor avalie. Os raios da manhã nasciam fortes, como se quisessem
revelar e esclarecer os acontecimentos. Os passarinhos apelavam lá nas árvores,
pediam o fim da guerra. O vento da alvorada, mais frio e mais volumoso, tomava
parte nos fatos. Soprava cada vez mais forte, atiçando as folhagens.
Meu senhor, o que foi aquilo? Quem sabe onde se traçam as
coincidências? Eu mesma não sei lhe explicar. Eu lhe conto coisas, sem saber ao
certo quais são os significados. O senhor, aí ouvindo, se compromete. Descubra
os fios dessa trama e me dê sua explicação. Não despiste seus olhos em atalhos,
que o senhor já faz parte dessa história.

122
Aconteceu o que me contaram e lhe dou certeza. Naquela hora, os
sobreviventes beiravam o precipício, de pés trêmulos na terra solta. Ali soprou
um pé de vento muito forte, que arrebatou os chapéus dos inimigos mortais,
desgrenhando suas vestes e seus cabelos. Eles se encararam, com olhos
irrequietos, como se ficassem de alma nua. Daí, o vento, por mistério, serenou.
Antônio, sem acreditar no que via, sentiu um arrepio nos seus cabelos curtos,
bem aparados. De frente, serenavam sobre os ombros: as madeixas soltas dos
cabelos de Jurassi. O vento havia ajustado as roupas contra seu corpo,
desenhando suas formas vistosas. Ele era mulher! Houve ali assombro e silêncio.
Os homens, nas moitas, chocados de espanto. Antônio baixou a guarda,
boquiaberto de susto.
Eles permaneceram em silêncio, se estudando. Os olhos percorreram os
matos em volta, confusos e inquietos. Decerto, a guerra, as mortes e as dores dos
parentes pesavam sobre eles. Havia uma história, um juramento e um destino a
cumprir. Cada qual, num repente, sacou sua arma. E ali, frente a frente, os seus
olhos brilhavam, de um para o outro, sem uma palavra sequer. Era o ódio maior
que tudo? Iam cumprir as juras e as honras das famílias? Nas moitas, os homens
espreitavam, suspensos e arrepiados, o rumo do ato final. A vida e a morte se
digladiavam, prestes a uma decisão.
A vida é uma estrada de curvas e encruzilhadas. Anote o que lhe digo:
entre o silêncio e a palavra existe o mistério humano. Os dois jovens deram dois
passos, daí pararam; ofegantes, com os nervos à flor dos gestos. Eles estudavam
as intenções, o próximo passo, no sobressalto. Não se soube quem, por primeiro,
agiu. O fato é que eles engatilharam as armas e se encresparam em prontidão.
Era o desastre? Ainda não. Houve outra pausa nos gestos, e o silêncio dos
olhares, que se achavam úmidos e angustiados. Eles recuaram alguns passos,
alargando o domínio dos olhos. Levantaram as armas, miraram-se, de um para o
outro, à beira de um sobressalto. Era o ato que os homens aflitos temiam,
irrequietos nas moitas. Aquilo era um descarrego das culpas, um desagravo das
juras. Eles apontaram as armas, de um para o outro, decididos. E os homens,
amparados nas moitas, esperaram duas quedas fatais.

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Mas eles não dispararam. Esperavam talvez um sinal oculto, uma voz de
longe que tardava. Uma réstia de sol se meteu entre as folhagens altas. De
repente, dois bem-te-vis revoaram ali perto; um cantou, o outro respondeu,
atraindo os dois jovens inimizados. Daí, neste entreato, eles sentiram o efeito do
orvalho das folhas arrefecendo seus olhos. As armas desfaleciam de suas mãos,
caindo sobre o mato úmido do amanhecer. Seus corpos serenaram, livrando-se de
um imenso fardo de adversidades. Ele e ela, cada qual vivia um papel estranho à
sua natureza. Agora, na flor da manhã, descobriam a verdade. Livres como os
pássaros, correram um para o outro, como se voassem juntos. Ali, abraçados,
Jurassi e Antônio sorriam e choravam.

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34
Nhô Guimarães pelo mundo

O senhor, seus olhos marejaram? Tantas histórias repassadas, nos certos


modos de rodear as palavras. Entre o acontecido e o imaginado, a gente faz
piruetas para agradar o ouvinte. É isso mesmo: rir e chorar são artes de gente.
Entre o fato e a imaginação discorre légua e meia de prosa. Nhô Guimarães era
esperto e jeitoso em tramar histórias. Todo isso é valioso, só pelo jeito de se
inventar aquilo que podia ter sido. Eis aí o dom de narrar.
Nhô Guimarães pelo mundo, a gente ficava numa espera sem jeito. Sim,
mas é certo que houve, ao menos um dia, esse ato. Ou não? De passagem
relâmpago, ele veio aos abraços de Manu, a lhe tomar uns conselhos. Era sobre
sua entrada nas honras de uma famosa casa, lá pras bandas da cidade grande, com
uma grande festa. Eu estava a caçar um galo perdido, quando voltei, sem saber o
exato, fiquei de posse somente dos detalhes. Veja o senhor as justas observações.
O mundo espanta: vivemos de queixo caindo. Assunte essa prosa e pronto, a
gente prova mais um café coado.
Eu queria ter ao menos um neto, ali no canto, escutando nossa conversa.
Ah, pois, a natureza é uma; e nós somos uns vários uns. Estamos aqui, os
reviventes do ato. Duvida? Não se atoleime, a vida é um rio corrente. Eu vi, com
estes olhos que a terra há de comer. Mas também duvido. Ou sonhei o certo?
Prosseguiu, dos dois amigos, Manu e Nhô Guimarães, a derradeira conversa. O
senhor, querendo, anote. De primeiro, foi Manu dizendo:
— Nhô não devia de entrar, acho, sei não...
— Mas por quê? — Nhô indagava.
— Conforme Nhô mesmo disse, já tentou uma vez, não foi servido.
— Todos da casa agora desejam que eu entre — ele explicava.
Então, Manu cismou um pouco, e prosseguiu:
— Isto é, o senhor, homem daqui, é pessoa verdadeira.
— O que me apalavra a respeito, em dizeres seguros?

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— Nhô, nada não. Isso de o senhor narrar mais certo o que a gente
convive, com seu modo de apalavrar, isso é um dom.
— Se entro, perco o dom? Ou será que morro?
— Não sei. Aliás, medite uns anos bastantemente. Às vezes, é depois de
uma festa que sobrevem o luto. Todos têm sua hora e vez.
Foi Manu dizer isso, os dois se calaram. Essa conversa era o trato mais
sério de todos. O café, já esquecido, desistia de soltar seus vapores no ar. Fiquei
por ali, eles nem me viam, acabrunhados que estavam. Eu, me plantando de
alheia, não sabia entender os nós que ali se desatavam. Então, Manu de vez se
derreou cabisbaixo, depois olhou com uma luz úmida nos olhos. E se impostou,
num ponto longe nos ermos, nos seus conformes, de uma vez por todas. Os dois
se encararam no sério. E cada qual usou a palavra, finalizando:
— Então, será que morro ?
— Nhô Guimarães, um homem de seu quilate não morre...
Ele reagiu suspirando fundo, enquanto Manu inteirava os termos:
— Fica encantado!
Daí foi um enorme silêncio. As vozes ficaram suspensas: cá dentro de
mim mesma, eu só ouvia as conversas do passado. Eu nunca tinha visto os dois
amigos assim tão tristes. Depois, Nhô Guimarães se despediu, parecia que
marejando os olhos. E foi embora, num cavalgar vagaroso, sumindo na tardinha
daquela estrada. Por muito tempo ficamos sem saber dele. Até que veio o recado,
tempo por tempo, tim-tim por tim-tim, os fatos. Eu espero, mas no fundo, sei a
verdade.
Nhô Guimarães nunca mais vem. Faço questão de esquecer, às vezes, o
fato certo, querendo outro parecer. A gente deve dar passagem aos apelos do
sentimento, o senhor não acha? Pois se sempre vi o dito homem, sempre vivo,
como até hoje em minha memória. Eu vi, vivi, convivi. Para mim está muito bem
vivo.

126
35
Manu se foi...

O senhor repare: tristeza é uma erva daninha que vai enramando sem a
gente atinar, daí a pouco põe a plantação a perder. Certa vez, Manu fez uma
viagem longa, por um caminho pedregoso, muito ruim de trilhar. Pra que essa
esticada? Pra visitar um parente distante que se achava nas últimas e queria se
despedir de todos. A viagem era penosa. A mula ia perdendo as forças, precisava
de pasto e descanso. Ele, tanto fatigado, parou à beira de uma lagoa, perto de um
povoado. Pra se livrar do calor, do suor e da poeira, Manu entendeu de tomar um
banho. Assim que se banhou e refrescou o corpo, conferiu as feições da água. E
aí pegou uma cisma; que aquela lagoa parecia empestada. Saiu dali urgente, se
enxugou e seguiu adiante.
Daí sobreveio o pior, no fim de algumas semanas. Ele sentia sinais de uma
fraqueza estranha, coisa que vinha de dentro do corpo, decerto ofendido das
águas suspeitas. A coisa foi avançando, o homem cada vez mais lerdo, sem
vontade pra nada. Era um malefício que agastava o corpo, desanimava a pessoa,
com uma canseira que não passava. Ora, isso fugia de nossos costumes de tratar
os enfermos. Ele aviou beberagens, os chás, simpatias, rezas... e nada dava cobro
na enfermidade.
Pela primeira vez na vida, Manu se viu no aperto de não saber como se
tratar. Eu fiquei azoada de preocupação; cacei opiniões e palpites de outras
pessoas entendidas. Muitas receitas me ensinaram, e nenhuma remediava a
situação. O jeito foi tocar para a vila, ir se aconselhar com Nhô Zezim da
farmácia. Ele espiou bem o caso, entre a dúvida e a vontade de ajudar; atestou
que aquilo era obra de uma verminose das brabas. E acabou receitando um frasco

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de uma beberagem amarga, daqueles que vem de fábrica, protegido na caixinha.
Pois bem, o senhor calcule: Manu não tinha costume de beber esses preparos.
Toda a nossa vida, de saúde forte e sacudida, eram as folhas do quintal, os
benzimentos e a fé-em-Deus que nos valiam.
Quando Manu tomou o remédio, franziu a cara de uma forma medonha.
Aquilo amargava de espremer a alma do sujeito, botando os bofes pra fora. Eu,
no sobressalto, tomei desconfiança do remédio. Aquilo era um veneno! Voei em
cima, arrebatei o copo de sua mão, e aconselhei: “Não tome mais isso não! Mas
homem é bicho teimoso. Manu, que era tão ajuizado, dessa feita não me deu
ouvidos. Ele queria sarar de uma vez. Então pegou o copo de volta e, de um só
trago, engoliu o remédio todo. Ah, meu senhor, pra quê? Ele se dobrou, na minha
frente, agoniado. Deu-lhe lá uma reviravolta na barriga, ele amarelou de tanto se
espremer, fazendo caretas. E vomitou, com espasmos terríveis. Daí, já fraco das
pernas, foi direto pra cama. Estava um completo enfermo, da doença e do
remédio.
Manu cada dia mais arruinava, sem saúde. Nhô Zezim veio acudir, ficou
atarantado ao ver o desacordo entre o remédio e o paciente. Ele afiançava que era
caso raro, mas às vezes sucedia, se o corpo da pessoa não tolerasse a dose; o
remédio virava um veneno horroroso. Mas cuidou, deu injeção; observou e fez as
recomendações. Manu melhorou uns dias, mas depois voltou a ficar ruinzinho.
Com febre, tinha uns calafrios, e dor de barriga. Sem vontade de comer, se
forçasse sentia enjôos, vomitava. E desregulava, sempre com uma tosse seca. Eu
caçava melhoras, com medo do pior resultado. E nada. Ninguém sabia dar um
jeito naquilo. Manu, sempre mais fraquinho, ficava quase mesmo só dormindo,
desmaiado. Quando melhorava, me chamava ao quarto e murmurava: “O que
tiver de ser, será. Se nosso filho voltar um dia, dê minha bênção a ele.” Eu,
calada, só sabia era chorar naquela hora, concordando, com um gesto calmo de
desespero.
Os amigos vinham visitar, saíam tristes do quarto. Eles me davam um
abraço, iam embora em silêncio. O que fazer, além de rezar e buscar o amparo da
fé? Isso eu fazia, todo santo dia, em busca de força e esperança. Depois veio o

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padre. Eu senti que Manu estava desenganado. No meio da noite, eu notei que ele
de uma vez amofinava. Seus olhos foram se deslembrando, e adormecendo, se
fecharam como se ele dormisse um sono justo, na hora mesmo de sua derradeira
viagem. Eu velei seus últimos suspiros, contrita, conformada. E lhe disse
baixinho:
— Deus te dê bom descanso, alma de minha alma, meu amor, minha
paixão. De onde estiver, me espere; um dia hei de te encontrar para sempre.
E tudo se consumou. Durante mais de um ano eu chorei pelos cantos,
minhas lágrimas banhavam meu rosto e se encontravam na boca, trazendo o sal
de minha dor. Manu se foi... E eu aceitei minha sina. Guardei sua imagem: um
homem vivo, trabalhador e companheiro. É como se ele estivesse sempre por
perto, ali na horta, na estrada; como se daqui a pouco fosse chegando para tomar
um café, beber uma água, contar um causo.

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A história acaba e começa

Ah, meu senhor, não precisa esconder suas lágrimas. Isso de homem
chorar é coisa que traz conforto. Manu era assim, se emocionava até com os
causos inventados, desviava o olhar para longe, se duas lágrimas teimavam nos
olhos. Isso a gente herda, que nosso filho era igual ao pai. O senhor tem esse dom
raro de lhe nascer um rio nos olhos.
Ah, meu Deus! Por derradeiro, confiro um detalhe. Aqui está: o senhor
tem o sinal de minha gente. Agora junto os demais: seu olhar, seus gestos, seu
modo de sorrir, seu sentimento. O senhor há de ser gente minha, conforme quero
e anseio. Me dou por ciente, satisfeita. Esperei, tive fé: alcancei? O senhor é a
revelação? Eu confiro com sua esperança? O que o senhor descobriu? Se for o
certo e exato, esse quarto arrumado então é seu. Venha a mim, me abrace. Tenho
sentido muitas saudades suas.
Mas, e se não for? Paciência. É tempo de mais umas lágrimas, daí de novo
esperar e sofrer. A vida levou meu filho para sempre. Eu aceito e me conformo.
Mas há outro jeito de voltar para casa. Quem retorna é o senhor, é você, o
menino, agora já moço, de meus sonhos. Você, sendo outro, é a mesma pessoa de
meu filho. Se for verdade, eu te abençôo e te acolho. Seja bem-vindo ao lar.
Mas... se não for quem eu sinto, tanto quero e há tanto tempo espero... por
caridade, não diga nada. Vá-se embora calado. Se o caso for de ficar, é cedo; se
for de partir, é tarde.
Aqui a história acaba e começa.

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NOTA DO AUTOR

Este livro é uma ficção em homenagem ao escritor João Guimarães Rosa. Nesta ficção,
algumas das afirmações atribuídas a Nhô Guimarães encontram-se no livro Ascendino Leite
entrevista Guimarães Rosa, organizado por Sônia Maria van Dijck Lima (João Pessoa: Editora
Universitária, 1997). Os versos citados pela narradora são de poemas de Guimarães Rosa,
publicados em Magma (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997). Outras informações foram
colhidas em “Remembranças de seu Zito. Entrevista de João Correia Filho com o vaqueiro
Zito”, publicado na revista Cult (São Paulo, nº 33, fev./2001). O capítulo “Um trato trágico” é
uma versão recontada de uma narrativa popular recolhida pelas pesquisadoras Maria Del
Rosário Soares Albán e Doralice Alcoforado, e publicada em seu livro Romanceiro Ibérico na
Bahia. (Salvador: Livraria Universitária, 1996). O causo “Chica Homem” foi inspirado em um
verbete do Dicionário de Mulheres do Brasil, (organizado por Shuma Schumaher e Erico Vital
Brasil (Rio de Janeiro: Zahar, 2000). Algumas informações provêm do livro Em memória de
João Guimarães Rosa (Rio de Janeiro: José Olympio, 1968), com textos de vários autores. Há
também algumas alusões indiretas a passagens da ficção do autor mineiro. As outras situações
foram concebidas ou inventadas a partir de vivências e inspiradas no imaginário popular
brasileiro.
Agradeço aos amigos que leram os originais e fizeram apreciações, críticas ou sugestões
valiosas: Rosana Ribeiro Patricio, Carlos Ribeiro, Maria Theresa Abelha Alves, Cid Seixas,
Cleberton Santos, Alana Freitas, Antonio Carlos Secchin, Rinaldo de Fernandes, Juraci Dórea,
Paulo Bentancur, Rosemary Alves e Antonio Torres. Agradeço especialmente a Maria Lúcia
Martins e a Jerusa Pires Ferreira, que leram e anotaram os originais com sugestões que
contribuíram decisivamente para algumas das soluções da versão final. Agradeço a minha avó
Anália de Lourdes Souza e a minha mãe Maria de Lourdes Santana, que me transmitiram o
gosto de inventar e contar histórias de gente simples, com leveza e sentimento.
A todas as pessoas acima citadas dedico este romance.

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TEXTOS PARA A QUARTA CAPA

Aleilton Fonseca consegue, de forma brilhante, especialmente na linguagem, recriar


Guimarães Rosa. Ele cria uma narradora sertaneja que integra inteiramente o universo
rosiano. A linguagem é muito trabalhada, com momentos de muita poesia, com vários
achados. O texto vai se tecendo com um acúmulo de saborosos causos, em passagens
magníficas que mostram o talento do autor.
Rinaldo de Fernandes

Este romance é a saga de uma mulher, personagem que bem sabe arrancar sua palavra
da própria carne para viver a lembrança do velho amigo mais que presente, Nhô
Guimarães. O resto é poeira sertã deste livro indômito, onde cada letra é sinal de rastro
rasgado entre brumas de solidão e o encarnado do sangue.
Maria Lúcia Martins

O que ocorre quando uma mulher é a narradora de contos do Sertão?


Esta Sherazade cabocla nos faz avançar por um texto, cuja densidade nos convida a
penetrar nos segredos e avançar nas descobertas de um mundo referente ao de
Guimarães Rosa mas que é também, e sobretudo, uma outra coisa. Nhô Guimarães
reúne e aproxima fábulas, relatos, ficções, cria e recria tipos, linguagens, personagens
que nos colocam diante da vida e da morte, que nos ligam tanto a um regional imediato
como a situações universais e eternas, tão vigorosas quanto a cultura que as criou.

Jerusa Pires Ferreira

Ilustrações: Juraci Dórea

Texto da Orelha: Antônio Torres

Dados do autor:

Aleilton Fonseca nasceu em Firmino Alves-Bahia (1959), viveu em Ilhéus, Vitória da


Conquista, João Pessoa, São Paulo, e atualmente reside em Salvador. Cursou Letras (UFBA),
fez mestrado (UFPB), doutorado em literatura (USP) e leciona na UEFS-Bahia. Foi professor na
Université d’Artois (França), em 2003. Publicou Jaú dos Bois e outros contos (1997), O
desterro dos mortos (2001) e O canto de Alvorada (2003). Co-organizou os livros: Oitenta:
poesia e prosa (1996), Rotas & imagens: literatura e outras viagens (2000) e O triunfo de
Sosígenes Costa (2004). Recebeu, entre outros, o Prêmio Nacional Herberto Sales (ALB-BA,
2001) e o Prêmio Marcos Almir Madeira (UBE-RJ, 2005). É co-editor de Iararana – revista de
arte, crítica e literatura; correspondente de Latitudes: cahiers lusophones (França), e membro da
Academia de Letras da Bahia. Acredita que “Literatura é uma sentença de vida; uma forma
eficaz de conhecer profundamente o ser humano”. (aleilton@terra.com.br)

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