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Felix Guattari
GUATTARI, Félix. O Divã do Pobre. In: Psicanálise e Cinema. Coletânea do nº 23 da Revista
Communications. Comunicação/2. Lisboa : Relógio d' Água, 1984.
Está profundamente relacionada com o facto da psicanálise nada poder compreender dos
processos inconscientes desencadeados pelo cinema. A psicanálise já tentou compreender as
analogias formais entre o sonho e o filme - para René Laforgue tratar-se-ia de uma espécie de
sonho colectivo, para Lebovici de um sonho para fazer sonhar. A psicanálise tentou mesmo
assimilar a sintagmática fílmica ao processo primário, mas nunca se aproximou, e não foi por
acaso, daquilo que faz a especificidade do cinema: uma atitude de modelação do imaginário
social irredutível aos
deliberadamente modelos
ao seu familiaristas
serviço. e edipianos,
Por mais que, mesmo
actualmente, quando se pôs
a psicanálise se encha de
linguística e de matemática, continua a repisar as mesmas generalidades sobre o indivíduo e a
família, enquanto o cinema está ligado ao conjunto do campo social e à história. Qualquer
coisa de importante se está a passar no cinema. Ele é o local de investimento de cargas
libidinais fantásticas, por exemplo, daquelas que se estabelecem ao redor dessa espécie de
complexos que constituem o western racista, o nazismo e a resistência, ao american way life ,
etc. E é preciso concordar que em tudo isto Sófocles já não desempenha nenhum papel. O
cinema transformou-se numa gigantesca máquina de modelar a libido social, enquanto a
psicanálise nunca passou de um pequeno artesanato reservado a elites seleccionadas.
Vamos ao cinema para suspender por algum tempo os modos de comunicação habituais. O
conjunto de elementos que constituem essa situação concorre, ao que parece, para que esta
suspensão seja possível. Independentemente do carácter alienante do conteúdo de um filme
ou da sua forma de expressão, o que ele visa fundamentalmente é a produção de um certo tipo
de comportamento que designarei por performance cinematográfica ( 1 ). E é precisamente
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Em certos sentido talvez tenham razão, já que de facto não tem realmente domínio sobre os
processos de modulação de que são agentes. A grelha de leitura psicanalítica pertence hoje
tanto ao analista como ao analisado. Ela cola-se à pele de qualquer um - «cometeste um
lapso» - e integra-se nas estratégias intersubjectivas o mesmo nos códigos perceptivos
(proferem-se interpretações simbólicas como ameaças, vêem-se «falos», retornos ao seio
materno, etc.). A interpretação funciona agora tão naturalmente que para um psicanalista
prevenido a melhor e mais segura é o silêncio. Um silêncio sistematicamente baptizado de
escuta analítica. Sobre o écran do meu silêncio os teus enunciados assumirão o seu próprio
relevo. Cada qual com seu cinema... Na verdade o vazio da escuta responde a um desejo
esvaziado de qualquer conteúdo, a um desejo de nada, a uma impotência radical e nestas
condições não é de espantar que o complexo de castração tenha sido transformado no
objectivo último de cura, mesmo na sua referência constante, na pontuação de cada uma das
suas sequências, no cursor que remete perpetuamente o desejo para o grau zero. O
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psicanalista, assim como o cineasta é conduzido pelo seu sujeito. O que se espera tanto de um
como de outro é a confecção de um certo tipo de droga que, apesar de ser tecnologicamente
mais sofisticado que o «haxe» tradicional, não deixa de ter como função a transformação do
modo de subjectivação dos que a consomem. Capta-se a energia do desejo para a voltar
contra
ameaçarsi própria, para a eanestesiar
a organização os valorese do
separar do social
sistema mundodominante.
exterior deMas
modo que pretendíamos
o que deixe de
demonstrar é que estas drogas não são da mesma natureza; globalmente visam os mesmos
objectivos, mas a micro-política do desejo que põem em acção, as combinações semióticas
nas quais se apoiam, são totalmente diferentes. Imagina-se talvez que estas críticas visam
apenas certo tipo de análise e não abrangem a corrente estruturalista na medida em que esta
já não considera a interpretação deva depender de paradigmas de conteúdo - como era o caso
da teoria clássica dos complexos parentais - mas sim de um jogo de universais significantes
independentes das significações que possam engendrar. Mas poderemos realmente acreditar
na psicanálise estruturalista quando ela diz que renunciou a modelar e tornar traduzíveis as
produções do desejo? Oa inconsciente
complexo cristalizando dos freudiamos
libido numa espécie ortodoxos
de elementos organizava-se
hecterogéneos: como um
biológicos, sociais,
familiares, éticos, etc. O complexo de Édipo, por exemplo, abstraindo dos seus complementos
traumáticos real: ou imaginários, baseava-se na divisão de sexos ou dos grupos etários.
Considerava-se serem essas as bases objectiva a partir das quais a libido deveria exprimir-se e
finalizar-se. Ainda hoje uma interrogação política sobre estas evidências poderá parecer a
muitos despropositada. No entanto, toda gente conhece inúmeras situações em que a libido
recusa estas evidências, contorna a divisão de sexos, ignora as interdições ligadas à
separação dos grupos etários, confunde as pessoas como que por prazer, compõe a se
bel-prazer as constelações de traços faciais a que se fixa. Existem mesmo situações em que
sistematicamente tende de
o Ego e o outro. Temos a passar ao largo
considerar, por das oposições
definição, que exclusivas entre o situações
estas são apenas sujeito e o objecto,
perversas, marginais ou patológicas, que precisam de ser adaptadas e interpretadas como
referência às «boas normas»? É verdade que, na sua origem, o estruturalismo lacaniano se
ergue contra um certo realismo ingênuo, em particular nas questões centradas no narcisismo e
na psicose e que pretendia romper radicalmente com uma prática de cura centrada sobro a
revelação do Ego. Mas apesar de desneutralizar o inconsciente, libertando os seus objectos de
uma psicogênese muito restrita, e escriturando-os como uma «linguagem» (
3
), não conseguiu romper as suas amarras personológicas e abrir-se ao campo social aos
fluxos, cósmicos e semióticos de variada natureza. Já se deixou de remeter as produções do
desejo para um conjunto de complexos em que tudo encaixa, mas continua a interpretar-se
cada uma das suas conexões a partir de uma e mesma lógica do significante cujas chaves
seriam o falo e a castração. Renunciou-se à mecânica sumária das interpretações do conteúdo
(«o guarda-chuva quer dizer...») e das fases do desenvolvimento (os famosos «retornos à fase
anal...»), etc. Já não se trata mais do pai e da mãe; fala-se agora do nome do pai, do palos e
do grande Outro mas continua-se distante, afastado da micro-política do desejo, na qual se
baseia, por exemplo, a diferenciação social dos sexos ou a alienação da criança nos ghetos do
familiarismo. As lutas do desejo não poderiam ser circunscritas apenas ao campo do
significante - mesmo no caso da pura neurose significante como a neurose obsessiva - porque
elas extravasam sempre os campos somáticos, sociais e econômicos, etc. E, a menos que se
considere que o significante se encontra em toda e qualquer coisa, temos que admitir que
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manifesta da mesma forma que no divã: escapa parcialmente à ditadura do significante, não é
redutível a um facto de língua, não respeita (como continua a fazê-lo a transferência
psicanalítica) a dicotomia clássica da comunicação entre o locutor o auditor. Aliás, seria
necessário colocarmos a questão de saber se esta é simplesmente posta entre parêntesis ou
se se torna
talvez, necessário
no fim de contas,reexaminar o conjunto
a comunicação das relações
discernível entre
entre um o discurso
locutor e a comunicação;
e o auditor não seja mais
que um caso particular, um caso limite, do exercício do discurso; talvez o efeito de
desubjectivação e de desinvidualização da enunciação que são produzidos pelo cinema ou por
situações similares (drogas, sonhos, paixões, criações, delírios, etc.) representem apenas
casos excepcionais do caso mais geral que se supõe ser o da comunicação intersubjectiva
«normal» e da consciência «racional» das relações sujeito-objecto? Aqui é a própria idéia de
um sujeito transcendental da enunciação que deveria ser posta em questão e correlativamente
a separação entre o discurso e a língua e a dependência dos diversos modos de performances
semióticas em relação a uma pretensa competência semiológica universal. O sujeito
consciente
simples casodeparticular
si mesmo,- como
«donouma
de siespécie
e do universo», deveria
de loucura serA então
normal. ilusãoconsiderado
consiste em como um
crer que
existe um sujeito único, autônomo, correspondente ao indivíduo, quando o que está em jogo é
sempre uma multidão de modos de subjectivização e de semiotização. É claro que não é por
isso que o cinema escapa da contaminação pelas significações do poder, longe disso! Mas as
coisas não se passam com ele do mesmo modo do que com a psicanálise ou com as técnicas
artísticas bem policiadas. O inconsciente no cinema manifesta-se a partir de combinações
semióticas irredutíveis a uma concatenação sintagmática que o disciplinaria mecanicamente,
que o estruturaria segundo planos (de expressão e de conteúdo) rigorosamente formalizados.
O cinema é feito de elos semióticos assignificantes, de intensidades, de movimentos, de
multiplicidades,
se rodeiam apenasquenum
tendem fundamentalmente
segundo momento pelaasintagmática
escapar ao enquadramento significante
fílmica que lhe fixa gêneros,e que
cristaliza sobre eles personagens estereótipos comportamentais de maneira a
homogeneizá-los com os campos semânticos dominantes ( 4 ). Este excesso
de expressão sobre o conteúdo marca certamente o limite de uma comparação possível entre
a repressão do inconsciente no cinema e na psicanálise. Um e outro seguem
fundamentalmente a mesma política mas é diferente, tanto que o que está em jogo, como os
meios utilizados. A clientela do psicanalista presta-se por si própria à acção de reduzir o
significante, enquanto o cinema deverá por seu lado, manter-se em permanente escuta das
mutações do imaginário social e, por outro, mobilizar toda uma série de poderes e de censuras
para vencer a proliferação inconsciente que ele próprio ameaça desencadear. A linguagem em
cinema não funciona da mesma maneira que na psicanálise; não faz a lei, é apenas mais um
entre outros meios, um instrumento dentro de uma orquestração semiótica complexa. Os
componentes semióticos no filme resvalam uns pelos outros sem nunca se fixarem e se
estabilizarem, por exemplo, numa sintaxe profunda dos conteúdos latentes e dos sistemas
transformacionais que chegariam à superfície como conteúdos manifestos. Significações
racionais, emotivas, sexuais - eu preferiria dizer intensidades - são constantemente veiculadas
no cinema por «traços de matéria de expressão heterogênea» (retomando de Christian Metz
uma fórmula de que ele próprio forjou a partir de Hjelmslev). Os códigos emaranham-se sem
que nenhum deles consiga dominar os outros, sem constituir «substância» significante.
Passa-se num vaivém contínuo de códigos perceptivos a códigos de denotativos, musicais,
conotativos, retóricos, tecnológicos, econômicos, sociológicos, etc. (
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Mas não estará precisamente a vantagem de uma cura psicanalítica na possibilidade de evitar
uma tal promiscuidade? A interpretação e a transferência não têm precisamente por função
filtrar e selecionar o bom inconsciente do mau inconsciente? Não somos dirigidos, não
trabalhamos em tais circunstâncias com uma rede? Infelizmente essa rede é talvez ainda mais
alienante que qualquer psicanálise selvagem! À saída do filme somos obrigados a acordar e a
parar, em maior ou menor medida, o nosso próprio cinema - toda a realidade social se ocupa
disso. Mas a sessão de psicanálise torna-se interminável e transborda para toda a nossa vida.
Geralmente a performance cinematográfica é apenas vivida como uma simples distracção,
enquanto que a cura psicanalítica - e isso vale mesmo para os atingidos por neuroses - se
tornou uma espécie de promoção social. É geralmente acompanhada pelo sentimento e que
nos estamos a tornar qualquer coisa de semelhante a um especialista do inconsciente,
especialista muitas vezes tão envenenado pelo que o rodeia como os outros especialistas do
que quer que seja (por exemplo os do cinema). A alienação pela psicanálise advém do modo
particular de subjectivação que produz e que se organiza em torno de um sujeito - para um -
outro, um sujeito personológico, sobreadaptado, sobre-ligado às práticas significantes do
sistema. A projecção cinematográfica, pelo contrário, desterritorializa as coordenadas
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3 Com a sua teoria do objecto pequeno, Lacan tratou os objectos parciais como entidades
lógico-matemáticas.(«Há uma mátema da psicanálise»).
4 Seria necessário retomar aqui a análise de Betetini e de Casetti que distingue a noção de
iconicidade e a de analogismos. A sintagmática fílmica procede de certo modo à analogização
dos ícones que são veiculados pelo inconsciente. Ver «A semiologia dos meios de
comunicação audio-vísuais e o problema da analogia», Cinema: Teorias, Leituras. in
Klincksieck, 1963.
4 Seria necessário retomar aqui a análise de Betetini e de Casetti que distingue a noção
de iconicidadedos
analogização e aícones
de analogismos. A sintagmática
que são veiculados fílmica procede
pelo inconsciente. Verde
«Acerto modo àdos meios
semiologia
de comunicação audio-vísuais e o problema da analogia», Cinema: Teorias, Leituras. in
Klincksieck, 1963.
- o tecido fônico da expressão, que remete para a linguagem falada (e que se poderia
classificar nas semiologias significantes);
- o tecido sonoro mas não fônico que reenvia para a música instrumental (semiologia
assignificante);
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- o tecido visual mas não colorido que remete para a fotografia a negro e branco (semiótica
mista simbólica e assignificante);
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