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Sob uma perspectiva ampliada, a obsolescência programada em si constitui um

fenômeno que perpassa a redução da vida útil dos aparelhos, há um caráter


essencialmente psicológico nas dinâmicas construídas a partir da levada de
consumidores a hábitos irresponsáveis de consumo; ainda sob tal perspectiva,
podemos caracterizar mais de uma forma de obsolescência: a obsolescência
de qualidade, a obsolescência funcional, a obsolescência estilística (ou de
design), a obsolescência de desejabilidade e a obsolescência técnica. Ou seja,
há uma enorme capacidade de imbricamento nesse fenômeno, tornando-se
intrínseco ao modo de sociabilidade e produção capitalista. Como aponta a
socióloga Sabrina Fernandes:
A única função do lançamento de um celular menos avançado que aquele que
a empresa já é capaz de produzir é garantir o lucro. Assim, consumidores
verão seus novos aparelhos ficarem obsoletos mais depressa, isso quando não
são tentados a trocar de aparelhos todos os anos para não perder nenhum
lançamento. (FERNANDES, 2020)
De tal forma que a cultura, como um sistema de práticas e discursos do meio
social, é o grande instrumento usado para a propagação da alienação
necessária ao imperativo quase patológico do lucro. A mudança radical das
práticas de consumo da sociedade americana no fim da década de 1940 e
início da década de 1950 designaram aquilo que Packard chamou de "clamor
em prol do 'crescimento'", como o mesmo escreve:
A depressão de fins da década de 1950 serviu para muitos como aguda
advertência do dilema que  se desenvolvia devido à necessidade de produção
cada vez maior. […] Em toda a nação, industriais  e líderes governamentais de
todas as correntes advertiram os cidadãos de que precisavam continuar
comprando para seu próprio bem. (PACKARD, 1965)
Foi justamente nessa época que as chamadas obsolescências programadas de
desejabilidade e de qualidade passaram a ser aclamadas por muitos como a
solução para a economia americana; é nesse momento também que uma nova
ordem de relações entre consumidores-produtos-produtores se estabelece,
inclusive no âmbito das subjetividades, como demonstra Noam Chomsky em
"O lucro ou as pessoas?". 
Giles Slade entende a obsolescência programada como um termo útil para
descrever as  várias técnicas utilizadas para "limitar artificialmente a
durabilidade de um bem e  estimular o consumo repetitivo" (ASSUMPÇÃO
apud SLADE, 2017). Ainda segundo o autor, tratar desse fenômeno implica
discutir os desdobramentos do mesmo na sociabilidade e no comportamento
dos indivíduos, por isso Slade descreve o que ele chama de "obsolescência
psicológica", referindo-se "ao mecanismo de  mudanças no estilo dos produtos
como uma estratégia de manipulação dos consumidores para um consumo
repetitivo" (ASSUMPÇÃO, 2017); o autor ainda alerta para o caráter psicológico
de morte de um produto como a “estratégia que coloca o consumidor em  um
estado de ansiedade levando-o a crer que um produto velho é indesejável,
inútil  e vergonhoso, se comparado com algo que é novo”; ou seja, “um tipo
especializado de obsolescência psicológica” (SLADE, 2007).
Depreende-se, portanto, como os indivíduos relacionam-se de forma muito
mais profunda com o fenômeno da obsolescência programada (e suas
respectivas formas de existência). Devido a extensão do tema, pode-se,
inclusive, falar de um fenômeno ideológico e sociológico. Ideológico, pois
constitui sua efetividade no discurso e na prática da superestrutura;
sociológico, pois adquire materialidade nas trocas cotidianas entre os
indivíduos e gera implicações socialmente importantes.  
Publicamente, a ostentação e a autocomplacência assumem tal valor que a
crítica dirigida aos indivíduos se sobrepõe estridentemente a crítica dirigida ao
sistema. Essa visão cai no recorrente erro de reduzir as análises ao singular, a
obsolescência é uma ferramenta para a gestão das formas de produzir e gerir
tanto a mercadoria quanto a vida; autoras feministas e autores negros
denunciam a mercadorização dos corpos no capitalismo como uma maneira de
torná-lo obsoleto aos seus próprios donos, simbolicamente tão pouco
consistente que pode ser vendido. Por outro lado, as análises que olham
estritamente para o sistema se perdem na grandiosidade da estrutura e
esquecem como sujeitos (enquanto categoria política) são interpelados
individualmente. O método de análise mais interessante se dá na construção
de um suporte teórico-metodológico que informe simultaneamente como o
sistema afeta os indivíduos, e vice-versa. Para tanto, duas bases conceituais
são imprescindíveis, a saber, a base econômica e jurídica sobre a qual a
obsolescência programada se assenta.
O excesso se mostra como a mais estável das dimensões econômicas da
obsolescência, como escreve Assumpção:
Era preciso vender mais. As pessoas são convencidas, então, a comprarem 
pacotes com mais de uma unidade do produto que necessitam e também de
comprarem mais unidades do mesmo produto, pequenos ou grandes. Packard
(1965) descreve as estratégias de convencimento das pessoas de que
precisaria ter duas casas,  uma de campo e outra na cidade, uma de trabalho e
outra de recreação, o que as levaria, consequentemente, a ter duas cozinhas
equipadas, dois quartos, duas salas, dois  carros etc. (ASSUMPÇÃO apud
PACKARD, 2017)
Nas perspectivas filosóficas e psicanalíticas, o excesso exige uma quantidade
gigantesca de recursos simbólicos e materiais e atesta uma necessidade de
deslocar o próprio desejo para a externalidade; o excesso gera, em
contrapartida, uma exaustão psíquica que paradoxalmente requer mais da
natureza que a gerou para uma sensação de prazer. O movimento é cíclico, o
capital opera como sustentáculo/incentivador desses deslocamentos. A
subtração quase patológica de mais-valor e a formação social do "sujeito de
consumo" formam um par essencial para a concatenação dos interesses
capitalistas e o imperativo do lucro acima do bem-estar. 
O horizonte apontado como saída tem sido as limitadas, mas necessárias,
práticas conscientes/responsáveis de uso-desuso, consumo, produção e
distribuição, bem como as ferramentas de logística reversão, a sustentabilidade
e formas de produção menos intrusivas que respeitem o metabolismo entre
sociedade e natureza. 

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