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ICONSUlTA NO LOCAL/

R E VISTA PORTUGUESA
DE

CIÊNCIA CRIMINAL

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Instituto de Direito Pcn~1J Eco•lómico c t~'u'<>pcu
Faculdade de i)irc ito dll Universidade de C'cllmbrt\

118345
MUU
JOSt SOUTO DE MOURA

nio. O que tem sido feito ao nível legislativo e da cooperação inter-


nacional, o que falta fazer ao nível do aumento de quadros, da forma-
ção, da especialização de polícias e magistrados.
Falaria, por exemplo, dos Departamentos de Investigação e Acção
Penal, do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, do
Núcleo de Assessoria Técnica da Procu radoria-Geral da República, da
Secção Central de Investigação das Infracções Económicas e Finan-
ceiras ou do Gabi nete de Perícia Contabilística da Polícia Judiciária. O MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Mas isso não caberia propriamente numa intervenção de encerra- - NA VIA DA CONSTRUÇÃO
mento do vosso curso. Reclamaria, talvez, a abettura de outro curso. DE UM SISTEMA PENAL EUROPEU:
UM PASSO OU UM SALTO?
A justiça, em geral, e o Ministério Público, em particular, con-
frontados com a delinquência económica de hoje, procuram respostas que
a contenham em níveis aceitáveis. Anabela Miranda Rodrigues
Professora da Faculdade de Direito
Creio ser perceptíve l que alguma coisa está a mudar. Empe- da Universidade de Coimbra
nhemo-nos em evitar que seja para tudo ficar na mesma.
I

A construção de um espaço penal europeu é hoje marcada pela


aceleração (1) .
É inegável o impulso que os atentados, em Nova Iorque, de li de
Setembro de 2001, deram aos trabalhos conduzidos no âmbito do "ter-
ceiro pilar" do Tratado da União Europeia, colocando o tema da luta con·
tra o tenorismo no centro dos debates travados neste forum (2).
Não é que não se viesse progredindo nessa via (l), tendo Maastricht

(') Assim, M. LutSA CI)SONf, "Droit pénal européeo: une harmonisation péri-
lleuse", L'espace pénal europétm: enjeux e/ perspecth,es, Editions de J'Université de
Bruxcllcs, 2002, p. t53; vide. também, SERGE DE BtOLLEY. " Libcrté et sééurité dans ta
consu·oction de !'espace eot·opéen de justice pénale: cristallisation de la tension sous
présidence belge", f-'espace pénal, cit., p. 173.
1 (2) Sobre isto, cfr. ANNE \VEYEMBERGH, "Vimpact du J I septembrc sur l'équi-
libre sécuritéAiberté dans !"espace pénal e-uropéen", Luue contre le Jerrorisme es droits
fondamemaux. Bruytant, Bruxelles, 2002, p. 153 s.
(') Neste sentido. ANNE W EYEMDERGH. op. cit.. toe. cit.; lo., "La coopératiou
pénale européenne face au ten·orisme: rupture ou conúnuité", L.e 1/roit intern(l{ional face

26 RPCC 13 (200.1) RPCC 13 (2003) 27


_ _ _ __ __ ___..:::
O_...:::::
MANDAOO IJE DE:I'ENÇÃO t'UROP/iU
ANABEV. MIRANDA,;.....;R:.;
O:.::D::.:R:..:
IG:.;Uo.;;liS
":::.- - - - -- -- -- --------

e Amesterdão corno pontos de referência: em Maasu-icht, integrando a de um caminho feito no cumprimento de uma injunção contida no próprio
cooperação em matéria de justiça e assuntos internos entre os Esta- Tratado de Amesterdão (onde pela primei ra vez se fula na crmção de um
dos-Membros da.~ Comunidades Europeias no quadro da União Europeia; espaço europeu) e nas Conclusões do Cons~lho Europeu de Tan~pere.
em Amesterdão. aprofundando a construção europeia, fazendo da coo- o que se vem dizer (9) é que, se os ma1s recentes desenvolvimen-
peração, designadameme cm matéria penal, um meio para realizar o tos demonstram que se está perante a emergência de um novo paradigma
obj ectivo claramente identificado de c1·iação de um "espaço de liberdade, a~ nfvel da justiça penal europeia - pela via do reconhecimento mútuo
de segurança e de justiça". Nem se pode dizer que os instrumentos e da harmonização - , falta, mesmo depois de Amesterdão: um "pen-
adoptados depois do 11 de Setembro têm todos a ver directamente com samento" sobre o penal. Falta, dito de ouu-o modo, o traveJamento de
o terrorismo: se este é o caso da decisão-quadro relativa à luta contra uma política criminal europeia. .
o terrorismo (4 ), o mesmo já não pode dizer-se da decisão relativa à cria- o que é inquietante, já que, desta forma, as d1versas ll11C13ll_vas
ção da Eurojust (') e da decisão-quadro relativa ao mandado de detenção surgem isoladas, sem enquadramento em um qualquer modelo de JUS-
europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros (6)_ tiça penal europeia racionalmente concebido. . _ .,
O que não pode deixar de admitir-se e deve ser destacado é que, para O espaço de liberdade, de segurança e de JUStiça é JU, à luz d?
além de criar um consenso (1) sobre a importância da luta contr-.1 o ter- Tratado de Amesterdão, um "espaço comum"- Que, entretanto, ali-
rorismo no âmbito da União Europeia, o "dia seguinte" aos atentados menta uma tensão muito viva entre abordagens por obj ectivos (abor-
potenciou nos Estados-Membros a vontade de modernizar (ou dever-se-á dagens isoladas) e uma abordagem global, tendo sido dada, a té ago~a.
dizer " ultrapassar"?) os meios tradicionais de cooperação e progredir na prioridade à cooperaçcio em detrimento de uma polít1ca cnrrunal (mats)
consu-ução de um espaço penal europeu. Quer isto dizer que, apesar da integrada. . . _
coincidência cronológica com os acontecimentos do I I de Setembro, a o que se salienta é que, pela v ~a ela harn1omzaçao e do. reconhe-
aprovação pelo Conselho das decisões-quadro já referidas relativas ao cimento mútuo deu-se o sinal ele uma vontade polít1ca de elumnar as
terrorismo e ao mandado de detenção europeu, na base de propostas da fronteiras naci~nais em matéria penal; e, assim, porventura, um "salto"
Comissão, n.'\o deve deixar de ser vista como o ponto de chegada lógico (8) qualitativo (10), de uma cooperação intcr-estadua_l para u_ma in~egração
supra-estadual. Qualquer dos dois sistemas refen dos estao muno perto
de pôr em prática, como teremos ocasião de ver cspec~~c~m~~te a pro-
a11 urrorisme, Pedone. 2002. p. 289 s. Também, SERGG DE BIOU.EY, L/espace t>lna/, pósito do mandado de detenção europeu, um espaço umco europeu ,
11
cit., p. 171 e t72. designadamente, o pri ncípio do território único ( ) .
(') Decisão do Conse lho . ele 13 de J unho de 2002. relativa à lula contra o te r-
rorismo (JOCE, n.• L 164. de 22 de Junho de 2002. p. 3).
(') Decisão do Conselho. de 28 de Fevereiro de 2002. relativa à eriaçilo da (') Salienlando e•te a•peclo das coisas, que aqui se põe em dc•taque. cfr..
Euroj ust o fim de reforç ar a lula contra as formas graves de crimina lidade (JOCE, dcsignada 111eme. OANIP.L FtORE. "Une j uslice pénnle europécnnc ap1·Cs Amsterdnm.
n.• L 63. de 6 de Março de 2002. p. 1)- Joumal des ITibunaux. Droit Européen, 1' année, n.• 60. juin 199~, p. _121 s._; n~
(6) Dccisã<r<juadro do Conselho. de 13 de Junho de 2002. rcl>liva ao mandado mesmo sentido, a propósiiO da criaçllo da Eurojust, cfr., do au10<, --~ un reseau JU,dt·
de detcnç3o europeu c aos processos de emrega entre os Es1ados-Mcmbros (JOCE. cinire européen à une juridiction ptnale européenne: Eui'OJUSI e1 I emc~cncc d. un
n.• L 190, de 18 de .Julho de 2002, p. 1). sys1ê!i1e <le j ustice pé nal", L'espace pénal, cil., p. 9 s.; e MMIA LUISA CBSONI, 1- QS•
1
( ) A ssi m, ANNe WEVEMOURGH, Ú dTIJil intemalional. cit .. p. 28ó . pace pénal. cit., p. 153 s.
(') Assim, DANIEL FLORE. "le mandai d'arrêt europécn: premierc mise en <ruvre ("') Assim. 0AI<1EI. FLoRE, Dmit •uropün. ci1.. p. 12A. .
d'un nouvcaux parndigmc de la jus1ice ptnale europécnne", Jo11mal des Triburraux. (") Sobre 0 principio do "tenilório único" e das conscqu~nc•as doi decorrentes.
12l•année, n.• 6050, 13 avril 2002, p. 273. D ANIEL f-LORE, op. ult. cit. , Joc. cit.

28 29
RPCC ll t200J) RPCC 13 (1003)

I
I
IINMJF.IA MIRANDII RODRIGUES O MANDAI)() DF; DETENÇÃO EUHOPF;U

Es1e processo de construção do espaço penal europeu desenvolve-se, Considerada a inaplidilo da cooperação judiciária clássica ( 1S) rela-
contudo, na base de um consenso suposto e na ausência de um debate tivamenle à realidade europeia actual, é sem dúvida um factor posi-
público e democrático em 1orno dos valores e dos meios adequados livo o avanço que representa a adopção dos dois instrumenlos, relati-
para os proteger, bem como sobre as competências e práticas de deci- v;~mente ao terrorismo e no mandado de detenção europeu, claramente
são. As peças de um puzzle são dispostas e tendem a tornar-se um pro pfcios ao revigoramenlo ela construção do espaço penal europeu.
sistema. É grande, pois, o risco de se ter como resultado um sistema Mas, ao mes mo te mpo, e les "cristal izam" ( 16) a lcnsão que já era
penal que não se escolheu conscicme e deliberadamcme ( '2). E cm "la1en1e" (' 7) entre "progressos em termos de transfcr6ncia de sobem-
relação ao qual a principal queslão que se coloca é a de saber se resolve nia", em nome da segurança. e "perigo para os dircilos fundamentais",
de maneira equilibrada a tensão entre "liberdade" e "segurança" ('l). do ponto de vista da liberdade.
Tensão que, de resto, é imanente ao sislema penal e que hoje só é mais Vem-se denunciando ao projecto da União Europeia, no domínio da
premente ou visível, dado o "clima" securitário ligado à actual socie- jusliça penal, o carácter "prioritariamente repressivo" (' 8), que faz "pri-
dade "globalizada" e "de risco" ( '4). ma r o objectivo da segumnça sobre o da liberdade" ( 19). Exactamente
porque falia uma " ideia" que dê coerência às diversas inic iati vas, arti-
culadas sobre a realização do princípio do reconhecimento m~ltlo e na
( 12 ) Neste.\ termos, MARIA LUISA Ct:SONt, L'espace pénal. cit., p. 154. perspectiva da harmonização.
( 13 ) Chamnm á atenção, de form:a parcicular, pára o connilo libcrd~adc-segurança A análise do mandado de dclenção europeu que de seguida se faz
no espaço pen•l europeu. SEROE oç l3tOLEY, L'esJ)(lce pénal. cit., p. 169 s.. c ANNF. é o prelexto para mostrar como certas opções escondem tendências
WEYEM~ll. Lutte. cít., p. 151 s.; lo.. "IA1 ooopération européennc cn INliêre de jus-
securitárias e repressivas de uma via de construção do espaço penal
tice ct d'affaires imérieurcs: vers un rééquilibroge du couplc liberté-*uritéT'. Rfi'fle
!Hig• d• droit intunaiian(l/, l3ruyl•nt, l3ruxellcs, vol. XXX.IU, 2000-2, p. 612 s. Em europeu: a do reconhecimento nnítuo. Os aspectos do regime do man-
gera1, sobre o equilíbrio entre liberdade e segurança sob o impac1o da rccenre lUla con- dado de detenção europeu que vamos referir colocam em evidência os
Lra o 1errorismo. cfr. os artigos de KALUOPI KOUI;A, "Lc tcrrori~me ct Jes droits
de l'hon>~ne", e de BARRARA DELCOUilT, "De quclques paradoxes li~s à l'i1wocntion de
I' Ewt et du droit''. Le droit interuatimwl. cit., respectivamente, p. 189 s. c 203 s.; e
os artigos de MAURICI! W~:.YE.MDERCII, ''l..c tcrrorisme et les droits rondnmencoux. de la trial" e a "sociedade de risco", f..uutlos em home1wgem ao Prof. Drmtor Rogério SO<.t -
pe1·sonnc. Le problCmc", de D IDIER BICO, "L'irnpact de.o;;: mesures anti-tcrrorisres sur res, Boletim do Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Stvdia lvridica, 6 1,
l'équilibrc entre liberté et sécurité et sur la cohésion socialc cn Fronce", c de FRAN- CoiJl'lbra Editora, 200 1, p. 283 s.
ÇOISE CRéi'I!Au e EsTIRA!.rrz JtMI!NE7- "L'imp:oct de la luue contrc lc tcrrorisme sur lcs (") Sobre esta clas.•ificaç5o, crr. Al<ABELA MtRAJ<DA ROORIGUllS e JOSÉ Luis
libertés ron<~amentalcs au Canada". Llllte, cit .. respectivamente. p. li <.. 219 s. e LOPEs DA MOTA. Para uma polftica criminal tttff'JtH!iO. Qutulrv ~ ill$/flmu!IUQS jurf.
249 s. loltl•. ainda. SoPHIE Boov-Ga.'DROI', IA socibé américail>~ fl/Jrb I• 11 ~pwnbre, dicos da C()()ptração ja~dit:idritl ~~~~ matéria ptmal 110 t.SfUIÇO da União Europeia,
Presscs de Sciences Politiques. Paris, 2002, JXISSim. Coimbra Editora, 2002. p. 52 s.
14
( ) Afloramentos da crescente demanda de segurança na sociedade actual assi- (") Assim. SERGE Dll BtOWlY, L'tsJ)(lce pénal. cit.. p. 170.
nalam-se ao nfvel do direito penitenciário (cfr. ANABELA MIRANDA RODRtOUllS, Novo (") Mostrando que esta tcnsno sempre existiu, ANNil WeYt!MBERGH, Revue belge.
ollwr sobre a questão pcnUeucüíria. Estatuto jur/tlico do recluso e .focinUwçilo. cit., p. 624 s.
Jurlstliciontllit.tiÇân. Conseusualismo a prl.\·t1o. Projecto de Proposta de lei de E.:re. ( li') Assim, D ANIF.t FLORH. IJroit européen. cit., 126
cuçllo das Penas e Medid(ts PrivoOvt1s de Liberdade, 2."' ediçflo. Coimbra Gditora. •( •9) Assim, M. LutsA Cr:soon. L'es,xtce pé11(d, cit.. p. 154; também, ANN ~ W cYEM-
2002, fJliSSim) ou cio direito processual penal (cfr. ANABFl.A MlllANDA ROORIC.Uf.S, "A OERCli, Revue belge. CÍI., p. 627; lO.. Lulle, p. 155 s. e ntreta nto. nilo deve deixar de
defc,sn do arguido: uma garantia cOil.~titucional e m perigo no •admirável mundo novo": salientar-se alguma abcrtum relarivnmente a políticas de prcvcnçfio e de protecção ele
Revis1t1 Porrugueso de Ci2ncittS Criminais, em curso de publicação). Sobtc o tema da vrtimo.s (sobre isto. crç. ANAUELA MIRANDA RODRIOI.JtiS e Jose Luis LoPEs DA MorA.
"sociedade de risco" vide FtGUEJktOO DIAS, "O direito penal entre a "sociedade indus- Para 11ma política crimiuol europeia, eit .• p. 41 s.).

JO RJ'CC 13 (2003) RJ'CC ll (.2003) 31


ANABI!J.A MIRANI>A ROI>IIIG_:<U::::ES::_ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ __ _ _ __ O MANOAT)() 1)1! mmiNÇÃO EIJROP~·u

desequi I!brios entre a necessidade de eficácia na luta contra o crime na bro de onde ela procede, em conformidade com o direito desse &lado, essa
União Europeia e as exigências de protecção dos direitos e liberdades decis.~odeve ter um efeito pleno e direc1o sobre o conjunto do território
fundamentais do cidadão europeu. da União. Isto significa que as autoridades competentes do Estado-Mem-
bro no território do qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua
colaboração à el\ecução dessa decisão como se se tratussc de uma decisão
II tomada por uma autoridade competente deste Estado" (22).
A noção de espaço consagrada cm Amcstcrd5o modificou radical-
I. O mandado de detenção europeu: prirneira concretização do prin- mente a concepção de a uxílio judiciário que os Estados-Membros se
cfpio do reconhecimento mtituo prestam mutua me nte, baseada na ideia de que a sobera ni a pe nal te rmina
nos limites do seu territ6rio. Esta a bordagem tradicio nal (ou clássica)
O ma ndado de detençao e uro pe u constitu i a primeira concre tização do auxflio mútuo, baseada em relações de cooperação entre Estados
do princípio do reconhecimento mútuo (20). Introduzido pelo Conselho soberanos, foi substituída por "relações de parceiros entre Estados-Mem-
Europeu de Tamperc, em 1999, c elevado à categoria de "pedra de bros de uma União" (23). A temlinologia uti li.alda nos instrumentos mais
toque" da cooperação nas Conclusões daí resultantes, foi adoptado pelo recentes ilustra bem esta mudança de perspectiva. Não se fala mais de
Conselho, em Novembro de 2000, um progr.:tma de medidas destinado "Estado-requerente" e de "Estado-requerido", mas de Estado "inter-
a dar execução ao princípio (2 1). ceptor" e de Estado "notificado" (2") ou de E.~tado de "emissão" e de
Em qualquer dos casos, no entanto, este não foi objecto de uma defi- Estado de "execução" (25). Nem se fala mais de recusa de execução
nição. lndiscuúvel é que está intimamente ligado à noção de espaço - o que implica a exigência de uma decisão de agir-, mas de "moti-
comum de justiça, onde se visaria realizar a ambição de livre circulação vos de não execução" (26) - o que sugere que se "acaba com o pro-
das decisões judiciálias. Nesta perspectiva, o núcleo essencial do reconhe- cesso tradicional de validação", o "cxcquator" (27).
cimento mútuo reside em que "desde q ue uma decisão é tomada por uma
a utoridade judiciária compete nte, e m virtude do direito do Estado-Mem-
(22) Cfr. o,\NII~t f·'l..ORU. LA reconnaissance mutuellt, cit., p. 15; ro., Journal
dcs TrlbunWM\ cil., p. 274. No sentido de que o princfpio do rcconhcéimcnto mútuo
(20) ConvcJ'gcm nesta afirmação a generalidade dos mUOI'CS. Vide. a t(tulo exem* visfi n.ssegunw a execução "o mais au1omá1ica e o mnis dil·ecta possfvel" das deci-
plificmivo, ANNI! \ VEYEMBERGH, LutJe, ciL. p. 173 s.; lo., Lc droil lmcmatlmral, cit., sões j udiciárin~ cstr::mgeiras, o que significa •·acnbnr com o processo lr.tdicional de vali·
p. 29 1 s.; DANIEL FLOR~. Joumal des Tribu11aux. cit, p. 274. doç~o". O "cxcquutor", AN~E WEYE"BERGH. u<llc, cit.. p. 173 c 174. Cfr.. ainda,
(") Sobre o programa de medidas relativas à apli<:açAo do J>rinc(pio do reconhe- CoLnunicaçilo da Comissão. de 26 de Julho de 2000. sobre o t'eConhecimento mútuo
eimcnlo mú1uo. odop1ado em conjun1o pelo Conselho c t>ela Comissão, em 30 de das decisões finais em matéria penal (COM (2000) 495 final, p. 8), onde se pode ler
No..embro de 2000 (JOCE, n.• C 12, de 15 de Janeiro de 2001), e. mais cm geral, sobre que "é 1'37-0IIvcl supor que, na medida do pos.<ível. o objectivo gemi do reconhecimento
o principio do reconhecimen1o mútuo. cfr. ANABELA MLRAI<OA ROOIUGVt:s e JOSÉ Luís mútuo seria dar a uma decisão (final) um efeito pleno e threclo em toda a União".
10
LoPES OA MOTA. Para uma polftica criminal europeia. cit, p. 54 s. Sobre o objectivo ( ) Assim. DANIEL FLORE. LiJ recom10issanu '"'"'""~- cit, p. 118.
do reconhecimen10 múluo, que "não é novo", cfr. ANN~ Wo,vEMBERCH, "La recon- (") Cfr. an. 20.•, n.• 2, Convenção rela1i••a ao Auxilio Judiciário Múluo em
naissance mutuclle dcs dééisions judiciaires en matiCre pénalc entre lcs Etats membrcs Mméria Penal cnln: os E.<Lados-Membros da Uniao Europeia (mlificada pelo DPR
de l'Union européenne: mise en perspective", Lt1 reconnaisstmct mutue/Je des déâ- n.• 5312001 e aprovada para ralificação pela RAR n.• 6312001. de 16-10-2001).
siolfs judicinirrts pinafes dans I'Union européem1e, Editions de I'Univen;ité de Bruxelles, (2$) Cfr.. designadameme, a1'IS. 2.•, n.• 2, e 3.0, dccisiio·<tuadro, de j 3 de Julho
200 1. p. 25 s.; também DANIEL FLORE, ..RcconnaisMncc muU,ICile, doublc incrirnina- de 2002.
tion ct tc,·ritoriulicé", U1 reconnaissauce mut1telle, cic.. p. 65 c 66: lo .. Journal <les Tri- ('•) Cfr. nrts. 3.• e 4.•, decisão-quadro, de 13 de Julho de 2002.
bun(w x, <:it., p. 274. (") Cfr., .mpm . nola 22.

32 RPCC 13 (2003) RPÇÇ 13 (2003) 33


ANABEU. MIIIJINOA HOIJHIGUES 0 MANOAOO m; D~'U:JI(,'ÃO EUROPeU

Quer isto dizer que o reconhecirncmo mútuo acaba com a distin- bros (33), sem prc_juízo da sua 3plicação nas relações entre Esla-
ção entre coopernç~o judiciária primária (um Estado executa ele pró- dos-Membros e Estados terceiros (art. 3 1.", o.• l) e dos ~cordos ou
prio a decisão de urna autoridade estrangeira) e secundária (um Estado convénios bi lateruis ou multilaterais concluídos entre Estados-Mem-
torna uma decisão a pedido de uma autoridade estrangeira) (2 8), sendo bros, "na medida em que estes perm itam aprofundar ou alargar os
o reconhecimento uma alternativa ao auxílio penal secundário (29). objeçtivos" da decisão-quadro c "contribuam para simplificar ou faci-
A decisão-quadro relativa ao mandado de detenção europeu aplica litar ainda mais os pi'OCCSsos de entrega das pessoas sobre as quais
o princípio do reconhecimento mútuo ao "mandado de detenção euro- recaia um mandado de detenção eumpeu" (art. 3 I .•. n.• 2, I .• período).
peu", definido (art. 1.". n." I) como "a decisão judiciária emitida por um Desta forma, o elemento chave do processo de "entrega" deixa de
Estado-Mcmbm" ("o Estado de emissão") com v ista "à detenção e ser o "pedido" para passar a ser o próprio "rnam.lado" de detenção emi-
entrega por outro estado-Membro" ("o Estado da execução") "de uma tido pela autoridade judiciária competente. A consequência aqui implí-
pessoa procurada". A decisão-quadro sufraga as Conclusões de Tam- cita de judíciariz.ação do processo de detenção c de entrega encerra
pere e o programa de medidas já referido destinado a pôr em execução uma "simplificação do controlo" que é acompanhada de um "aligeira-
o princípio do reconhecimento mútuo das deçisões penais, ultrapas- mento" das condições de entrega (34 ).
sando-as, num ponto (30). Enquanto ali se tratava apenas de abolir o pm- Compreende-se, pois, que à lu7. de um reconhecimento mútuo a'sim
cesso formal de extrad ição para as pessoas que tentavam escapar à jus- concebido, a noçllo de confiança 1111ítua ganhe p leno relevo e surja
tiça depois de terem sido objecto de uma condenação definitiva (3 1), o como um pressuposto indispensável da realização daquele princípio (35).
âmbito de apl icação da decisão-quadro não se limita à "extradição" Ele não é pens:ível nem pode f uncionar senão a parti r do momento em
para efeitos de execução de uma condenação, mas tem em vista tam-
bém o procedimento penal.
Por força da aplicação do principio do reconhecimento mútuo, (") A prop6si10 do ãmbi1o de aplicaçilo do mandado de dclenção europeu
a decisão-quadi'O acaba, assim, com o processo de extradição entre s;alicnte-se a diferença em relação ao sistema dn Convenção reltuiva à extr:ldição entre
os Estados-Membros da União (32). Substi tui as convenções apli- os Estados-Membros dn União EUI·opeía de 1996. Decorre do di>pOSIO no n.• I do
cil vcis em matéria de extradição nas I'Ciações entre os Estados-Mem- ort. 2.0 , desta Convenção que. cm virtude dos I'C<.JUÍSitos quanto i'1.'\ penns c medidas de
segurança privativa)) de liberdade previstns parn os factos suscep((vcis de extmdiçi'io
serem cumulatlvo.v. o fucto determinante da extradição mmca podia .'Wr punível. no
Estado requcrcn1c. com (aquelas) sanções "de duração m~xima nno inferior a 12
('") Assim. EMMANUEL BARBE. "l.c mondai d'anil européen: cn lirern+on lou- meses". Ora. nos tcnnos do n.• t do an. 2! da decis.'io--quadro, corno os requisi1os são
ICS lcs conséqucnccsT'. t.·~SJIOCe pbral. cil. p. 116 (que falo das noções de ouxflio judi· alttnrativos, pode ser pedida a entrega de uma pessoa, quando tiver havido uma con~
ciário '·primário" c "secundário" como sendo. agora, "obsoletas"). dcnaçâo c aplicada um~t pena ou uma mcdidn de segurança pr'hr:uiva de liberdade ..de
(2!1") Assim, DANI!l:l. FLORE, La recomUJissrmce mutueUe. ciL., p. 118. duração não inferior n quatro meses". O que significa que. ne~te cnso. é in·elevante
('~J Assim, ANNil WliYEMBERGH, L1111a, c il., p. 174. que a penn ou 111edidn de segurança privativas de liberdade prcvisws sejnm de dura~
( 31 ) Cfr. § 35 dus Conc lusões de Tarnpcrc. ção máxima não inCcrior a 12 mc.'>C.'>. Nc:-,tc sentido. cfr. JUAN oe MtOUEL ZARAGOZA.
(") Pode dizer-se que o mandado de dc1c nção europeu põe um "pomo final" no "Alguma.~ con.<iidcracioncs sobre la Ot..'Cisión Marco relativa a la ordcn de detención
processo de .timplificm;t1o da extradição (assim, ANNE \VEYE.MBEMOII, Lullt, cit.. europca y a los prucedímemos de enttegn cn la perspecüva de la extrndición". Acuw·
p. 158); prOCesso que. aliás, era coo1r.><li16rio com o oprofundamenlo do construção do lidad l'enat. n! 4, 2003, p. 147.
espaço de 1iberd.,de, de segurança e de jus1iça, que se deveria fazer no senli<lo da (") Assim. DANIEL fLoRE. Jo11mal dts Trib11na11x. cit .. p. 274.
subsidiarização da exlmdiçllo rcla1ivamen1e a ou1ros mecanismos de cooperação (vid• (») Cfr. DANIU. r.:tORt:., lA ~cmmaü:sa,ct mutuellt. cit., p. 7.5: também ANA•
ANAfU!I.A MJ.RANDA ROI) IUOUF.S e JOSÉ Luis LOPP.S DA MOTA, Paro uma JXJiftica cdminat OB.A MIRANDA Ror>rUCHIE.<i c José Lufs LoPI~S DA MOT.>\, Pnra uma pof(flca criminal
<•urvpeitr. c it., p. 65 s.). europeia. cil., p. 54.

34 RPCC 13 (2003) RPCC tl t200l) 15


ANAIIM.A MIHANIJA RODRIGUES - - - - - - -- - - - - - - ' 0'-""
MANDM)O Oo mSToNÇÃO EUROPEU

que os Estados-Membros confiam que os seus sistemas jurídicos c res- 0 direito nacional do Estado-Membro da execução, na condição de a
pectivos processos garantem a qualidade suficiente às decisões, toma- autoridade competente deste Es!ado-Membro tomar todas as medida.~ que
das por autoridades competentes, que dão lugar à execução nos seus ter- considerar necessárias a fim de evitar a fuga da pessoa procurada
ritórios. (art. 12."). Neste sentido, e no decurso do processo. o Estado-Membro
É, assim, com recurso a elementos ligados à confiança mútua que de execução deve assegurar que as "condições materiais necessárias
foi definido o regime do mandado de detenção europeu. para uma entrega efectiva da pessoa" estilo reunidas (art. 11.•, n.• 5).
A este regime assinala-se, pois, a característica de inscrever a
2. Simplificação do processo de entrega entrega no âmbito do processo penal, com todas as garantias que lhe são
inerentes (38).
Um dos aspectos mais importantes do conjunto do dispositivo é, sem À protecção da posição jurídica tia pessoa procurada que esta judi-
dúvida, o que diz respeito à simplificação do processo de entrega, com ciarização significa acrescenta-se, além disso, a que é assegurada atra-
vista à ocelemção do processo, ligado à sua judiciarização. O que vés da garantia de direitos conferidos à pessoa quando for detida: direito
tudo contribui para melhorar significativamente a posição jurídica da pes- de infonnação sobre a ex.istência e o conteúdo do mandado, sobre a pos-
soa que é objecto do mandado, em relaç:ío ao tradicional processo de sibilidade de consentir na sua entrega, direito de beneficiar dos servi-
extradição (36). ços de um defensor e de um intérprete (art. 11.", n."' 1 e 2). Por sua
Com o novo mecanismo, estabelece-se o comacto directo entre a vez, e como consequência jurídica da entrega, assinale-se a consagra-
autoridade judiciária competente para emitir um mandado de detenção ção. na decisão-quadro, do instituto do descamo que, como é sabido (39),
e a autoridade judiciária competente do outro Eswdo, com vista à exe- obedece a imperativos de justiça material (cfr. art. 26.").
cução do mandado. No plano da decisão de entrega, está-se perante uma A judiciarização total do processo, entretanto, não assegura, por si
completa alteração ela natureza elo processo. Deixa de intervir o exe- só, a celeridade e a eficácia da execução. Esta alteração das coisas é
cutivo, como acontece na extradição, e o recurso à autoridade central ainda acompanhada pela fixação ele regras quanto a prazos para a deci-
é pummente facultativo, situando-se a sua intervenção ao nível admi- são e para a entfega da pessoa (cfr. arts. 17.•, 18.• e 23."). As pessoas
nismnivo e não decisional (cfr. arL 7.•. n.o' L e 2). Em sede de dec i- procuradas são. na verdade, "as primeiras 'vítimas' " ela lentidão do
são, a palavra é da autoridade judiciária (competente) (31). tradicional processo de extradição. Como se salienta (4 0), quanto mais
A judiciarização do processo implica, ainda, que a manutenção de este se "etemiza", mais longa é a duração da detenção das pessoas no
uma pessoa em detenção obedece às mesmas condiÇ<1es que valem para país requerido, com visla à sua eventua l extradição; o que é parti-
qualquer pessoa detida, previstas no direito processual penal interno. cu larmente problemático, se o processo está ainda na fase de investi-
A libertação provisória é possível a qualquer momento, de acordo com gação, ou seja, num momento em que a pessoa não foi julgada nem con-
denada. Toma-se evidente que, quanto mais rápido for o processo de
extradição, mais depressa estará cm condições de exercer os seus direi-
(><) Procede à análise do mandado de de1enç!lo europeu a partir dcs1e pon10 de
vi.oa DAJ>IIU f'l.ORE. Joumal des Tribunat<r, p. 274; v.. ainda. p. 275 e 276. Nesle sen-
tido. lnmbém, ANNB W~YEMOERGH, L1111e, ci t. p. t75 S. (") Assinala es1e aspec1o das coisas DANIE~ I"L.ORE. Joumal de.r Tribu11au.t. 276.
(~1 ) O tcKIO da dccisãowqundro nada diz sobre ns cor:tcleríslicas desta autori- (") Cfr., sobre o instituto do dcsconlo, no di1·cico nacional, FIGUELREDO DrAS,
dade judicidrin, nem sobre se ela decide cm primeira ou cm última instância. Cabe. Din~ito penal português. As consequêucin.t jurltlictiS do crime, Editorial Noticias.
pois, no legislador no plano interno definir (Juttl é n ;lutol'idadc judiciária competente 1993. p. 297 s.
c se hd H'<.'W'J'O da sua decisão. ("') Assim, ANNE WEYEMDERGfl, Lu/te, cit .. p. 176.

J6 RPCC 13 (2003) llPCC 13 (100.1) )7


,\NAIItl-' MIRANDA ROORIGUES O MANOADU l)f. f)Hf:NÇÃO f."UROPliU
----------------~----~

to~ de defesa quanto à imputação criminosa e de eventualmente ser não·descriminação, relativurnente ao direito clássico da extradição.
lihenada. Vamos apreciar estes dois pontos, relativameme aos quais o novo
A redução significativa da duração do processo de entrega que este instrumento pode revelar um pendor ~ecuritário.
novo instrumento permite alcnnçar é, reconhecidamenre, um ganho em
termos de liberdade das pessoas. a) A questão da dupla incriminaçcio (e a rerritorialidade)
Significmivo é o facto de a jud iciarização do processo de entrega
tr:t:t.er ninda a marca do "espaço comum de justiça pena l", onde as A solução consagrado ( 41 ) a propósito da questão de a dupla incri-
dcci~ões penais judiciárias circulam tão livremente quanto a.~ pessoas e minação dever ou não ser uma condição de eltecução da entrega tenta
as mercadorias: onde deixa de se falar em "recusa de execução" para conciliar a preocupação da constituição de um espaço penal europeu
~ passar a falar em " motivos de nã<rexecução". baseado na confiança mútua com o reconhecimento da~ diferenças entre
os sistemas jurídicos desse espaço.
J. Condições de em rega Entre a abolição geral da dupla incrim inação (42) e a ideia de que
a exigência de dupla incriminação é uma gamntia fundíii11Cntal a que não
Intimamente ligados ao postulado da confiança mútun, na base do se pode renunciar, a opçuo pelo método da lista de "i nfracções" relati-
qu:1 l se const rói o regime do mandado de detenção europeu, estão cer- vamente às quais, "caso seja m puníveis no Estaclo-Mcmbm de emissão
tos aspectos que se prendem com as condições de entrega. Em aplicação com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração
do princípio do reconhecimento mútuo, revelam um "aligeiramento" máxima não inferior a três anos", não há controlo da dupla incrimina-
destn~ condições que, ao traduàrem um grau elevado de confiança recí- ção (an. 2.", n.• 2) representa uma solução de compromi!I.W entre as dua~
proca dos &tados nos respectivos ordenamentos jurídicos, podem repre- posições extrema~.
scmar um endurecimento penal no espaço europeu. Com efeito, se o abandono da dupla incriminação aparece ligado à
A decisão-quadro reúne um conjunto de condições de entrega, pre- lógica da confiança e do reconhecimento mútuo, esta l igação nüo é
vendo três causas de não-execução ol>rigat6ria - umnisl'ia, ne bis in n ecessária (43). Há diferenças que relevam de opções de p{)lítica cri·
idr111 (decisão de um Estado-Membro) e idade - e sete causas de minai e do sistema de valores dos Estados·Mcmbros que nada têm a ver
não -execução facultativa - dupla incriminação, duplo proced imento com a confiança mútua. Sem controlo da duplo incriminação para as
penal, prescrição, ne bis in idem (decisão de um Estado terceiro), nacio-
nalid;~de, residência ou a pessoa encontrar-se no Estado-Membro da
execução (se se proceder à execução no Estado-Membro da execução) (") Sobre o que se segue. crr. DANIEL FLORE. Joumat des Tribu11aux. p. 276
e territorialidade. c 277.
A confiança mútua que devem demonstrar os Estados-Membros
c••) A proposta npreselllod~ pela Comissão (COM, 2001, 0522 final, JOCE,
n.• C 332 e, de 27 de Novembro de 2001, p. 0305-0319) partia deste pre.suposto. con-
revela-se problemática, desde logo, quando se coloca o problema de sidcmndo que a manutenção du exigência da dupJa incriminaçilo in contra o princípio
ela se dever impôr, apesar das divergências, por vezes muito profundas, do reconhecimento mútuo. A que11no foi muito discutida nos Conselhos de J6 de Outu-
entre os sistemas jurídicos pena is dos diferentes Estüdos. Neste caso, bro. ele 16 de Novembro c de 6 e 7 de Dez.embro. BntretmiiO. o Conselho Europeu
ligada à abolição da dupla iucriminaçüo, pode trnduzir uma tendência de Cinnd. de 19 de Outubro de 200 1. linha já ind icado o seu desejo de ver abolida a
paru privilegiar um direito peual sccuritário. exigêncin da dupla incriminnç!'lo p:wn uma larga gama de SllU~tÇt1es.
("') Desde sempre. desenvolvendo a ideia de que não cxl5tc uma ·'relação de cau-
Outro aspecto eru que a con fiança múma aparenta um perigo para salidade necessária'" entre abolição dn dupla incriminação c: rccouhccimenlO rnúluo.
:1 I i bcr<lade das pessoas prende-se com a supressclo da cláusula de DANIEL fLORE. IA ret·Omi(IÍISlllll't Jmlluêlle, cir., p. 6.') s.

38 RPCC IJ (1003) 39
ANA IIF.ú\ M/Ni\NIJA NO.~IJ:::H.:.:IG.:.:•U::.:f.;::.'S'---------
-- _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __..:O MANIJJI/>0 DE: OET'f.'NÇÃO li:URON:u

"infmcções" da lista c com a manutençlío, para as "outras" (44) infrac- não noutros e de que o aborto, a eutanásia c o consumo de estupefa-
ções, de uma condição de dupla incriminação facultativa (45), o princípio cientes constituem os exemplos típicos (47).
da dupla incriminação conserva toda a pertinência - fala-se aqui de Quamo li lista de ·'infracções" relativamente às quais a exigência
alcance "simbólico" (46) - , na medida em que o espaço penal de j us- de dupla incri mi nação é abolida (48), não corresponde a um enunciado
tiça que se constitui se articula sobre ordenamentos jurídicos que tra- de tipos legais de ctimes que já tenham sido objecto de um trabalho de
duzem sistemas de va lores distintos. hannoni?..ação ou que, sendo esse o caso, não apresentem ainda diver-
A vantagem do método consagrado - da lista - reside em não gências importantes. T udo o que existe é um "consenso" no âmbito da
estender a abol ição da dupla incriminação a condutas que re levam de Uni ão sobre o próprio "princípio da incriminação" dos tri nta e dois
urna certa Weltanschawmg e, por isso, incri minadas nuns Estados e cOI1'lllOMmcntos enumerados. Aliás, neste sentido. o n.• 2 do art. 2.• não
fala de abolição da dupla incriminação, mas de ausência de controlo de
dupla incriminação: refere-se a infracções. da lista, " tal como definidas
pela legis lação do Estado -Membro de em issão", que determinam a
(...•) Cl'r. ar1. 2.•, n.• 4. Incluem-se nestas infracçõc.~ :ts que não são abrangidas
entret:a "sem comrolo de dupla incriminação".
na lista e a~ flue. ~cndo abromgidas na lista. sejam punlvcis com pena ou medida de
seguronç:o privativas de liberdade de duração máxima inferior a lrCs anos. e exactamente no facto de a lista se referir a tipos legais de crimes
('') Cfr.. de novo. n.• 4 do art. 2.• Adivinha-se nqui um• "dificuldade" na divergentes de Estado-Membro para Estado-Membro que reside o inte-
lr.msposiç!lo dn decisão-quadro. A questão reside cm saber a que entidade se quis resse da ausência de controlo da dupla incriminação consagrada na
conferir o "poder" de de<:idir sobre a exigência de dupla incrirniMçlio: ao legislador decisão-quadro: logicamente, se a definição típica das "infracções" a que
ou à autoridade judiciária cornpecerue? Somos a favor da primeira hipótese, já que se refere fosse idêntica , a condição da dupla incriminação não consti-
a segunda ~luç..'lo sig.nificaria conferir à autoridade judici:\ria competente uma mar..
gem dt; oporwnid::tde na sua ac1uaç~o dificilmente ju~tHicJ1vel. Já se encende. entre- tuiria um obstáculo à cooperação (49).
tan1o. que a exigênci:J de dupla incriminação o estabelecer pelo legislador nacional Desta forma, ganha contornos, ao mesmo tempo, o tipo de controlo
não tem c1ue se 1·eferir a toflas as infracçf>e.~: isto é, ncn'l a todas, não abrangida na que cabe à autoridade judiciária do Estado de execução (50): em primeiro
lista. nem n Jod<ts, no sentido de as não ab•·angid<IS na listn e ns nbrnngidAs na lista
c pu nrvci~ com pena ou medida de segurançn pl'ivcuivas de liberdade de duração
máx imo inrcrior a I I'~S anos: neste aspecto, a decisão·qundro permi te ao legislador ( 4 '' ) O mecani~m o ela ••lista negativa•· p1·cvisto pcln Comissno na proposta de

"cscoJhcl'·~ as infracções, não abnmgidas pelo n.0 2 do on. 4.~. cm que exige a dupla dccisüo·c(uadro que apresentou (ne~la propo~ta, o princfpio do dllpln incriminação era
incri minaçllo. No sentido de que é ao legislador nacionnl que cabe decidir pela obolido) salvaguardava também estas proocupaçôe.«. Cfr. Expo.<ição de Motivos da refe-
exigência de du1>ln incriminação. JUAl'1 DE MIGIIf.l. ZAKACOZA, Acltlalidad Penal. rid:o protlOSin, o propósilo do art. 27.• ("lista de excepções").
cit, p. t49. Cfr. a ..primeira versão" do Projecto de Lei de cmnsposiçõo da deci- (") Cfr., n propósito do q11e se segue. ANNE WUYI>.\tBURGII, L1111e, Cil.. p. 186 s.;
são-quadro. no ordcnamcnro espanhol. onde se exigia n dupla incriminação para e DANIEL FloRE. Jn11mal des Tribtmau:c, cit, p. 276. Note-se o terminologia utilizada
I<J<ICIY as infmcções não abrangidas pelo n.• 2 do arl. 4.• (a "hipótese menos avan- no an. 2.•. n.• 2. na ,·crsão portuguesa da decisão-quadro: ' infrxçõe.~·· e não ""crimes..
1

çada". nas JX!Iavms de MIGUEL ZARAooZA, op. ci1., lo<:. cil.); na solução consagrada ou "lipo< legais de crimes".
no Projecto de Lei aprovado, em 12 de De<embro de 2002 (Proyecco de Ley Orgá- (") M051rn que se trata de "infracções" em retaçllo lls quais n!lo há uma defi.
nica complcmemaria de la Lcy sobre la Orden Europea de Dccenci6n y Entrega), já niçftO harrnoni1.ada c lão~só um "consenso.. sobre a su~ mcriminação o facto de. em
se consngm a possibilh/ade de a entrega. rel:.uivamente a todas as infrncçõcs, ficar rclaçno • cr.!s infracções da lisla (racismo c xenofobia, extorsão de protecção c excor-
sujeita a dupla incriminação (are. 9.•, n.• 2). Defendendo (sem explicações) que a slio e sabo1agern), a Irlanda ter levanlado d(•vidos quonco à sua definiç~o (!rata-se,
nplicaç5o dl• condiçio de dupla incriminação facultati vo deve ser deixada na deci- a<rui. dn sun dctinição "genérica"- cfr. ;nfro, cexlo). f>nra obvb1· a es1a dificuldade.
são da autoridndc judiciária de execução. DANII!I. J=t.ORI!, Joumal 1/es Tribrmaux, o Conselho acordou em propor. relativamente a elas. "dcJinições operacionais... numa
Cil.. p. 276. d~larução (cita na ocasião da adOJ>Ção do instnuneniO.
(•"') Assim, DANIEL FLORE. op. u/1. cit .. loc. cil. (><I) Sobre CSIC COntrolo, DANIEL PI.OIIE, op. u/1. Cii. , loc. ci1.

RPCC 13 (200J) RPCC 13(2003) 41


ANA/l/SUo AIIIIANIJ
;;A.:...;R:.:O:.:IJ:.:II:.::IG:::U:::t::~S:.._ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ __ _ _ ___:O::._::M:::.A::.:.:.NIJA/>0 OE D_EI'E:NÇÀO EU/IOPEU
-----
1~rritório do E.swdo de emissão (an. 2.•. n.• 2. e an. 4. , n.• 7, alí-
0
lugar, um controlo genérico, ou seja, verificar se o facto ou factos que
dão origem ao mandado fazem parte da lista, referindo-se a um "domí- neas a)) (53). Em todos os outros casos, a dupla cláusula de territo-
nio de criminalidade" aí previsto; depois. um controlo jurfdico, que se rialidade pode ser aplicada (art 2.", n.• 4, e art. 4.0, n.O 7, alíneas a) e b)).
analisa num controlo da incriminação do facto ou factos no Estado de Pelo que pode antecipar-se que o mandado de detenção terá sobre-
em issão. Nesta segunda fase do controlo, a autoridade judiciária fica mdo por efeito facil itar a entrega de pessoas que cometam os factos no
subordinada à definição dos factos pelo direito do Estado de emissão, ccn·it6rio do ~stado que as reclama (54).
isto é, tem de se ater aos elemelllos constitutivos do tipo legal de crime Quanto à alínea b) do n." 7 do art. 4. 0 , cm e~peciul - o motivo de
tal como eles estão previstos na lei do Estado de emissão e não aos ele- não execução facultativa que diz respeito ao f;tct<> de a infracção ter sido
mentos constitutivos na lei do seu Estado (51). praticnda fora do território do Estado-Membro de emissão e o direito do
Neste contex to, chama-se a atenção para q ue a autoridade judiciá- Eswdo-Mcmbro de execução não autorizar o proced imento penal por
ria pmcederá ao controlo da inc riminação do fncto ou factos no Estado uma infracção idêntica praticada fora uo seu território - . deve notar-se
de emissão, mos não ao controlo da "d,,pla" incriminação do facto. que, na medida em que ela só se aplica q uando um critério de compe-
Questão que, a nível doutrinal, vale a pena colocar, desde já, é a tência extraterritorial idêntico ao do Estado de emissão existe no direi!O
de saber se, do sistema instituído resulta uma derrogação mais ou menos do Estado de execução face à infracção, a sua aplicação reintroduz
ampla do princípio da dupla incriminação. A resposta não pode ser necessariamente a dupla incriminação (SS), já que os critérios de com-
dada sem se combinar a condição da dupla incriminação com a dupla petência extraterritorial definem-se relativamente a tipos legais de cri-
cláusula tia territorialidade (art. 4.•. n.• 7) (52). mes (o facto tem de ser cóme à luz do direito do Estado de execução).
Embora referindo-se a todas as infracções - isto é, às que conti- Toma-se manifesto, neste passo das nossas considerações, que a
nuam ~ ser objecto de um controlo de dupla incriminação e àquelas ausência de controlo da dupla incriminação representa (56) a "limitação
em relação às quais este controlo foi abolido - , a cláusula da territo- do alcance da soberania" e a aceitação da "vai idade do sistema de valo-
rialidade assu111c o seu maior relevo no caso em que 11 exigência da dupla res dos outros Estados-Membros p11ra a perseguição de factos que rele-
incrimiMçilo foi abolida. Com e feito, na hipótese de o mandado de vam ela soberania destes": a passagem de um " imperialismo de sobe-
dctençno d izer respeito a u111a infracção contida na lista e não consti- ranias" para u m "reconhec imento mútuo de sobera nias limitadas".
tuir crime face ao direito do Estado de execução, a autoridade judiciá- 1:::, assim, corresponde a um "processo de integração no espaço de
ria de execução pode recusar a entrega, salvo por jactos cometidos 110 justiça comum" que, como começámos por lembrar, Amesterdão teve em
vista criar.

(' 1)Chama a a1cnção para o facoo de este oipo de conlrolo nio ser isen1o de difi-
culd3des, "mns que é incluoável", a panir do momenoo em que se opoou por uma
"solução hlbrida", D.vua FLORE. op. ult. cit.. /oc. cit. De qualquer focma. quanoo ao <'·') Evt6encie-se que. desta forma. a ausência de conlrolo de dupla incrimi-
conlrolo jurfdico, dcver..se-á Iratar de uma apreciação in obJtrocto. nação ''n.OO viola em nada'' (assim. DANIEL FLORI~. OJJ. 11/t. cit.. loc. cil.; no mesmo
(S~) Nesla via, DANIEL fLORE, op. ult. cit., p. 2TI (que se segue); At<NE WEYE.\1- $Cnoido. cnmbém AI<NE WEYEMBERG». Luue, cic., p. t92) o princfpio da legalidade
BERGii, IJI rt(.'QtlliOis.scm<·e mmue/1~. cir., p. 46 e 47: lo.. l..utlt. cit., p. 192; e E.M~tA­ ~ tia ~'iegurcmça Jllrítlicc,, já que o facro pralicado é crime no local onde a pessoa
NUEL BARD~. "Une tripte étape pour te 1roisiême pilier de I'Union Européenne. Man- o cometeu.
dat d'nrrêt curop6cn. lcrrOii!'ime et Eurojost... Revele du March4 Commun et de l'Union ($·•) Assim, nu conclusão. EMMANU!;L 13Mwe. Revut tlu J\tfarcluf Commcm, cit.,
Eumpéemrt. n.* 4S4. ,ianvier 2002. p. 7. Desde sempre alcrrundo para a complexidade f). 7; tumbélll. DMIIIUL. I::LORI~. Jnurnnl tles Tribunaux, cit .• p. 277.
de que se pode revestir. em ce110s casos. a dctcnninaçno do local da infracção, DANIEL ('·~) Assi 111, na conclusão, DANIEL FLORI~. op. ult. til., toe. L'Íf.
F t.OIU!, /,(1 t'tii;Qnucu'ssmlfe mutuei/e. cit., p. 73 e 74. ('•) No que se segue. l>AN181. FI.OilP., op. ulr. cir.. /oc. clt.

42 I<PCC I 3 (201))) llP('(; ll (200)1 43


ANAIJeUI M/1/ANDII RODRIGUES

O que se quer salientar é que o princípio da abolição da dupla


-- 0 M1INOA/JO 1)1!; JJETf::NÇÀO EUROPEU
------------------~~

nios prioritários da harmonização. Já se disse que podem mesmo inte-


incriminação, sobre o qual se faz assentar o reconhecimento do mandado grar um "es~o de harmonização prog~ssiva ~ e~~re_ender"~ Para
de detenção, pode ocultar uma tendência para privilegiar um "espaço além disso, é ureahsta pensar que as autondades JUdtctánas darao exe-
penal" europeu repressivo: não intere.ssa "que crime é ", interessa que cução ao princípio do reconhecimento mútuo sem que se verifique,
"é crime"! ao mesmo tempo, uma redução das divergências entre legislações
A abolição da dupla incriminação pode ser, ussim, um "salto" no penais. A propósito do mandado de detenção europeu, é, pois, de
caminho da construção do "direito pena l europeu", c não um "passo", aplaudir a Declaração adoptada pelo Conselho (60), aquando da apro-
que pressupõe uma reflexão coerente, global e democrática sobre "o vação da decisão-quadro, de acordo com a qual se confi rma a vontade
direito penal europeu que queremos". de prossegu ir os trabalhos de harmonização das infracções enumeradas
É por isso que a harmonização é tão importante: é ela que verda- no n.• 2 do a1·t. 2.", de acordo com o mt. 31.0 , alínea e), do Tratado da
deiramente pode contribuir para a definição progressiva de uma política União Europeia.
crimi nal europeia (>7). O repensar dos progressos na construção do espaço penal comum
Amesterdão veio, neste sentido, reconhecer- lhe um estatuto de europeu - que devem realizar-se pelas duas vias - deve partir, em
autonomia, ao lado da cooperação, policial e judiciária, penal (art. 29.0 , segundo lugar, da verificação de que os avanços ao nível do reconhe-
n.• 2), de que manifestamente não gozava em Maastricht E se, à pri- cimento mútuo ligados à abolição da dupla incriminação se justificam
meira vista, pode parecer que a tendência manifestada no sentido da abo- devido às insuficiências da harmonização (6 1). Quando, logicamente,
lição do princípio da dupla incriminação faz do reconhecimento mútuo quanto mais avançarem os trabalhos de harmoni7.ação, mais frágil se
uma alternativa à harmonização, a verdade é que, aquela tendência toma a justificação para prosseguir na via do reconhecimento mútuo
demonstra antes como é "urgente" repensar a relação (S&) entre as duas ligado à abolição da dupla incriminação.
vias de constmção do espaço penal europeu, que s~o o reconhecimento Acentue-se: a compreensão do reco nhec imento mútuo passa pela
mlítuo e a harmonização. própria existência de espaço penal comum europeu, a que Amester-
Em primeiro lugar (59), reafirma-se a complementaridade dos dois dão (e os desenvolvimentos pos teriores à ass in atura do Tratado)
processos. acentuando que o reconhecimento tmítuo não é (não deve ser) qu is(crarn) dar consistência, fazendo da harmonização um fim em si
real izável sem harmonização. A confiança no terreno não se decreta. mesmo - autó nomo - da construção europeia.
Pode razoavelmente supor-se que os Estados-Membros aceitaram a Os avanços na via do reconhecimento mútuo não elevem fazer esque-
abolição da d upla incriminação na perspectiva de um aprofundamento cer a função a11tónoma da harmonização. Destaca-se (62 ), de.~de logo, o
dos trabalhos de harmonização - não é nada problemático que as seu papel essencial de "sinal" da concretização de uma política criminal
"infracções" previstas na lista do n.• 2 do art. 2.• se refiram a domí- europeia. Depois, permite evitar que alguns Estados-Membros, porque
menos severos na incriminação e punição de certas condutas, possam
aparecer como "santuários" para os criminosos. Finalmente, a harmo-
(") Acemuando este papel da hannonização, cfr., designadamente. GILLES DE KER- nização é primordial ·'para dar aos cidadãos um semimento comum de
cuove. "La rcconnaissnnce tnutuelle des décisions pré-semencietles en général", La
rf!connaissam:tr mwu~Jie, cil., p. 117, e ANNE \VEYEMBERGH, .. l..e rnppi'OChement des
tégislntions pénnles nu sein de I' Union européenne: tes difficullés ct leurs consé-
quences", 1..'<.</>liCC pé1wl. cil., p. 141 (vide. ltunbém. p. 139 e 140). (60) Referência extraída de DANIEl. FLORE. Joumal dl'.1' 'fril.mnnux, cit.. p. 276.
(") Assim, ANNE WEYEMBEROii, l.uue, cit .. J). 187. (6') Ncs1n linhn, ANNU Wevt;MO~;RGI I, Llllte, c i1., p. 187 s.
(") No que SC segue, ANNE WEYEMBERGH, L'esptiCe pd1Wi, Cil., p. 141. ("') Assim, ANNE WBYEMBERGH, L'espace p411(1/, eh .. p. 141.

44 RP(.'Ç 13 (2003) RI'CC IJ ll:tlOJ)


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ANABEU. Mil/ANDA RODRIGUES O MANDADO DE DE:TENÇÍÍO EUROPEU
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justiça", uma das condições - expressamente referidas no Plano de ç.'ío Europeia de Salvaguarda dos Direito do Homem e Liberdades Fun-
Viena (63) - da cons1rução do espaço de liberdade, de segurança e de damentais não constitui uma garantia absoluta de que, em casos con-
justiça. cretos, não se verifiquem violações dos direitos e liberdades funda-
Isto pennite-nos, ao mesmo tempo, destacar o que é essencial ao mentais.
reconhecimento mútuo, inserido no espaço penal comum europeu: que O serviço jurídico do Conselho considerou que, do ponto de vista
não é, como começámos por afirmar, aquela ligação entre reconheci- jurídico, a manutenção da cláusula não se justificava e, com base neste
mento múwo e abolição da dupla incriminação - a dupla incrimina- parecer, o Consel ho decidi u não a consagrar no articulado ela deci-
ção pode mesmo ser uma condição de reconhccimemo mútuo, enquanto são-quadro.
se prossegue na via da harmonização; essencial é o efeito pleno c O aspecto para que se quer chamar a atenção é para o carácter
directo (a aceitação da validade), em toda a Un i5o, de uma decisão "artificial" (65) de que se pode revestir a confiança, invocada para
proferida num Estado-Membro, com as conscquBncias inerentes. Den- justificur o reconhecimento mútuo das decisões judiciárias. E, assim.
tre as quais, a integral judiciarização do processo, aliás acolhida no para o lado "cri ticável " do "brevet de boa conduta" passado aos Esta-
mandado de detenção europeu, que imprime cunho ao reconhecimento dos-Membros (66): quando se trata de direitos fundamentais, a con-
mútuo. fiança não pode ser dada como assente, antes deve prevalecer uma
lógica de "controlo" do respeito desses direitos. O que implica defen-
b) A supressão da cláusula de não-descriminação der a possibilidade de as autoridades competentes dos Estados-Membros
não executarem uma decisão estrangeira, quando e.~ta não é tomada no
O outro aspecto ligado à confiança recíproca entre os Estados-Mem- respeito dos direitos e liberdades fundamentais. E. assim, não ceder,
bros, que justifica os avanços em sede de reconhecimento mútuo, é o neste domínio, a uma espécie de "optimismo balofo" (67) e antes asse-
postulado do respeito efectivo pelos direitos fundamentais em toda a gurar que "as garantias garantem realmente" (~).
União Europeia. Aplicado ao mandado de detenção europeu, levou a Pelo que respeita ao mandado de detenção europeu, não se consa-
que a cláusula de não-descriminação, causa de recusa da extradição, grou, entre os motivos de não execução enumerndos - quer obrigató-
desaparecesse como motivo de não execução da entrega (M). ria quer facultativa - , qualquer cláusula geral de não execução de um
Esta abolição não foi pacífica. Por um lado, a cláusu la é contra- mandado por não respeito dos direitos fundamentais. Para além de
ditória com o fundo comum de princípios cm que assenta a Uni ão, não ter deixado rasto no articulado, como já se referiu, a cláusula
reflect ido no :u1. 6.• elo Tratado da União Europeia, e que justifica a con- "humanitária" de não-descriminação.
fiança recíproca entre os Estados-Membros. Mas, por outro lado, a
jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem põe em
evidência que o facto de um Estado aderir aos princípios da Conven- (" ) Assim, SERGE DE BIOU.EY. L'upau pénol, ci1.. p. 196.
(") Assim, ANNE WEYEMBERGH. /..ui/e, cit., p. 179.
(61) Assim. Gou.t;S OE I<ERCIIOVE. IA recomwissance mutuei/e, cit.• p. t20.
( 61) JOCE, n.• C t9. de 23 de Janeiro de t999, p. I s. O autor ndvcne mesmo para o facto de ..se remer que o reconhecimento múruo per-
(64) SObre o tema, no que se segue. cfr. DANitlt. FtOR~, Journal des Tribtmaux. miln tis autoridndc:s de polícia de um Estado.. Mcmbro obter peJo canal de um outro
cit., p. 277 s.; e ANNê WuvuMDURGH, úme, cit., p. 179 s. A cldusulo de n~o-discri­ EstodC>-Membro a execução de uma medidn de investignçno <tue lhes seria recusada no
minoçlio foi mnntida na Convenção de 1996 (ar1. 5.0 , n,0 3). Para nl6m disso, o Rela- direito nncionul".
tório cxplicmivo dn Convenção sublinhava a importnncia d:t cláusuhl cm lCI'Inos de direi- (óll) Assim, f'RAN(:Oosu TULK~Ns. "Ln reconnnissnnce muluelle dcs décisions sen-
tos fund:lmcntuis c a necessidade de lemb•'M e'q>ressnlllcntc n su:) vnlidade. tencielle....;. Enjcux ct perspectives··. La reconnnissancc muttwlltt, cit.. p. 167.

46 RPCC 13 (2003) Rl'C<' ll (200)) 47


Ml118f.U. MIIIANI)II ROIJRJGUES O MANJJIIIIO ()f' /JhTHNÇ,iO EUROPEU

Tudo o que podemos encontrar, no considemndo n.• 10, é a afir- motivo de recusa de entrega baseado no não-respeito dos direitos fun-
mação de que a execução do mecanismo do mandado de detenção •·só damentais e dos princípios jurídico~ fund:m1cntais consagrados pelo
poderá ser suspensa no caso de violação grave e persisteme", por parte art. 6." do Tratado da União Europeia (1 1).
do estado-Membro, dos direitos fundamenrais, verificada pelo Conse- EM:l cm causa. aqui, uma questão mais vasta, que é, ao mesmo
lho nos termos do art. 7." do Tratado da União e uropeia. E, no.~ ter- tempo, um desafio colocado à constrtiÇâo penal europeia: ser ela capaz
mos do n.• 3 do m1. 1.", a decisão-quatlm (relmiva ao mandado) "não de se fazer no respeito c garanti a dos direito~ fundamentais. É signi-
tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais ficativo que no preâmbulo da Carta dos Direitos r:undamentais ~e refira
c dos princ(pios jurídicos fundamentais consagrados pelo arti go 6." do expressamente o espaço de " liberdade, de segurança e de justiça" , pela
Tratado ela Uniilo Europeia". sua nftlut·cza particularmente sensível c m termos ele di reitos e liberda·
O que vem defender-se, apesar de o referido considerando n.• I O des fundamentais. E não é preciso lcmbnu· que 11 sua garantia deve ser
não constar das disposições da decisão-quudro e de ser discutível a "rcn l'' c n~o ••fonnaln.
natureza jurídica da norma consagrada (art. I.•, 11. 0 3). é uma i nterpre- Vem-no repetindo insistentemente o Tribunal europeu dos Direitos
tação em prol dos direitos fundamentais. E, assim, o seu entendi- do Homem. Na sua jurisprudência ( 72). o T1ibunal <.:onsagrou a obrigação
mento (69) no sentido de que a deci são-quadro "não priva os Esta- de controlar a conformidade com os direitos fundamentais dos actos
dos-Membros da possibilidade de recusar a entrega de uma pessoa com tios outros E.~tados a que os E.~tados-partc da Convenção dão a sua
fundamento no não respeito dos direitos fundamentais nem os impede colabomção ou na execução dos quais cooperam. E admitiu. além
de fazer uso da cláusula humanitária de não-dcscriminação". disso, o principio da violação da Convenção pelo Estado requerido que
Esta interpretação encontra apoio no considerando n.• 12, primeiro entrega uma pessoa a um Estado onde existe um perigo sério de que os
e último períodos, enquanto aí se declara que a clecisiio-quadro res- seus direitos fundamentais sejam ignorados. Por isso (13), uma inter-
peita os direitos fundamentais tal como resultam elos instrumentos imer- pretação da decisão-quadro que não reconheça a possibilidade de recusa
naciona is e elas normas constitucionais intcmas dos l~stados-Membros, da entrega de uma pessoa por violação dos direitos fundamentais corre
e no considerando n.• 13, de acordo com (I quttl '"ninguém pode ser afas- o risco de fazer lncon-er um Est11do-M embro cm rcsponsabilídade inter-
tado. ex pu lso ou ex traditado para urn Estado onde corrn sério risco de nacionol , no quadro da Convenção, e de se ver condenado "por rico-
ser suj eito a pena de morte, torn1ra ou a outros mllos ou penas desu- chete" (14) .
manas ou degradantes". Aliás, o considerando n.O 12, segundo período,
reproduz o conteúdo da cláusula humanitári a, fonnulando-a mesmo
de maneira mais ampla pelo que diz respei to aos critérios de descri- (") llxclufda fica, de todo o modo. uma inlcrprut~ção ~r. decis.~o-quadro que pec-
minação. mittt que a autoridade judiciária de execução dcM:rnpcnhe urna função de ..apreciação
polí1ica d3 si1uaçào nos outro> Estados-Membros"". O comroto cm cau.a deve timilat·se.
Politicamente entendida como ..gesto simbólico" de.~tinado a tran- Citritnnw:nte, !l apreciação das ~'circunstâncias concn:Ub úo caso·· que dá lugar ao
quilizar os Estados-Membros em relação às boas intenções do legisla- m-andado de detenção. Neste senlido. DANIEL fLORE. Jourmd tl~s Tribunaut, cit.,
dor europeu. a previsão do n.• 3 elo art. I .•. pode ter um efeito útil (70): p. 278 e 279.
abrir o caminho a que, nas leis intem:L~ de transposição, se consagre um (") Rcrcn:·sc a esta jurisprudência. A ~Nf. Wt nMB~KGII. úme. eit .. p. 182.
(1-') No conclusiio, ANNt! W EYE.\il\f.RGH, "fJ· ult cit.. lt'f.', Ctl.
(") A e.<Je prop6silo, vem-se chamando a mcnçün. Clllrclanto. para o facto de
s~r diftcilmenté nceitável que o respeito pelos direito.." c lilx:l'•·k•des fundament~is. num
( 69) Assim. e no ((ue se segue. ANN~ WuYEMDbi!OII. t,rme, cil .• p. J 81 e t 82. proccsRO como o do reconhecimento múluo, <1ue flbi'C o c:runinho à criação de urn sis~
( 70) Assim, DANII!L Ft.OKil, JoumnJ tles Tri/Jwum.t, cít., p. 278. t<:ma pcnnl europeu. scjn _garantido apcna ~ por um cont1'olo a posleriori pelo Tribu ~

4S (~ POC 13 {2003) RI~'C I) (21)())) 49



MIMJeLA MIIIJ\NOA.
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A questão do património comum europeu que constituem os direi-


tos fundamentais é, pois, uma questão de comrolo do respeito dos direi-
-- -
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;.: MANUJIDO OE. UtTI:'.Nç},O EUROPE.U

Com efeito, é importante relembrar que se salvaguardam motivos


de não execução da entrega, obrigatória ou facultativa, dos quais neste
tos fundamentais. Questão que deve ser vista à margem do princípio contexto, im)lOrta salientar, a amnistia e a idade (art. 3.", n."' I c 3), como
da confiança recíproca - não se situa numa lógica de confiança ou de motivos de não execução obrigatória, a prescrição, como motivo de
desconfiança, pois que é uma questão de garantia "concreta" e não não-execução facultativa (art. 4.", n." 4), c o princípio ne bis in idem,
"i lusória" de direitos fundamentais. como mot ivo de não execução obrigatória (att. 3.", n.• 2) e facultativa
As " dúvidas" levantadas à construção do espaço penal europeu (ai1. 4.", n.oo 2, 3 c 5). Consubstanciam estes motivos condiçiies de
estão ligadas, por vezes. à ausência de urn sistema que garanta, de entrega que são, cm grande med ida, conformes ao direito actual de
forma adequada e suficiente. o contr olo elo respeito das l iberdades ftm- extr adição.
clamentais. Relativamente ao princípio ne bis in idem, como motivo ele não exe-
--- Neste aspecto, não deixa de se subli nhar como o Tratado da União cução obrigmória, a "dinâmica do reconheci mento mútuo", segundo a
Europeia, mesmo cm Amesterdão, colocou li mites substanciais à com- qual "o controlo de fundo se desenvol ve, a título principal, no Estado
petência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, face ao de em issão, justifica que se trate de uma condição relativa, no sentido
Título VI, cm matéria de apreciação de questões prejudiciais (15). de que não se impõe uma investigação ex officio pela autoridade judi-
ciária de execução. O funcionamento desta condição. nestes tennos, dife-
4. O equilíbrio liberdade-segurança rentemente daquilo que ocorre por força do art. 54." da Convenção de
Aplicação do Acordo de Schengen , onde também o princípio está
Em aplicação do princípio do reconhecimento mútuo, o mandado previsto, tem aliás a vantagem de não fazer demorar o processo de
de detenção europeu, relativamente a certos aspectos, manifesta uma posi- entrega (16). Ou seja: esta "diferença" não sign ifica que saia prejudi-
çüo moderada. De saudar, já que reveladora de uma preocupação de cada a vertente " liberdade", já que o pri ncípio, quanto ao fundo, con-
equilíbrio entre salvaguarda das liberdades fundamentais e exigências de tinua a ter va lidade absoluta. Para além disso, relativamente aos casos
eficác ia ela admi nistração da justiça penal europeia. de ne bis in idem, como motivos de não execução .facultativa, foram
11. exccuç1io do mandado de detenção não é t1fo automática como à incluídos na decisão-quadro elementos de protecção suplementares cm
primeira vista se poderia pensar, quando a atenção incidiu, sem mais, relação aos prev istos nas convenções (1 7) .
sobre a abolição da dupla incriminação e da clátL~ula de não-descriminação. Manifestação desta postura equilibrada quanto à confiança mútua
no espaço europeu é a consagl'llção, na decisão-quadro, de hipóteses em
que a execução do mandado de detenção pode ficar subordinada a garan-
tias a fornecer pelo Estado de emissão, que conronuam verdadeiras con-
nat de E.<lmsburgo (quanto a este ponto, crr. SEROE DE BtOt.U'Y, l.'eJf]{JU t>illal,
cit., p. t 96).
('') Pnrn obviar a e.<tas insuficiências. SEROE DE BIOUEY, op. 11ft. dt., /oc. cit.,
defende a criaçilo de uma jurisdição de controlo do respcito dos direitos fundamentais,
que deve ullervir quando esteja cm causa a decisão de exccuç3o, num Estado, de uma ('ó) As~in'l, DANIFJ. Ft.ORE. Journal <les Tl'ibrmmo., Cli. , p. 279. que explica: '"se
decisão cmitidn por outro Esutdo. E. assim. a intervenção jurisdicional ser possível. o princl)>io for invocado pela pessoa que é obj ecto do rnand:1do de detenção c se esta
quer sob a formn de :tprcciação de uma quesHio prejudicinl, antes da decisão de exe- fornecer ~ rnuoridnde judiciária de execução os clcm..:rnos de inrorrnação necesséh'ios
cuç5o1 quer 1nedinnte recurso da autoridade de cmis..'ilio. con1ra n decisão de recusa de de aprcci,tçíio no sentido de que o principio se aplicn no cnso COI'Icrcto, a autoridade
execução. Sobre n irucrvenção do Tribunal ele Jusdç~•. nt:Stes casos. w'dc ANNE \VEYe.i- judici6rin deve dní rctinw as consequência..~".
HERGif, I.UIIC. Cil., p. l83. (") Vide DANieL FLORE, ot'· ult. cit.. toe. cit.

50 RPCC 13 (2003) RPCC D (l00l) 51


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dições da sua execução (d'r. art. 5.•, corpo). Destaca-se (18), ncsre con· Quanto a ela, importa assinalar que se inscreve na orientação ela
tex to, a garan1ia relücionada com a "nacional idade" ou .. res idência" da decisão-quadro que põe fim ao princ fpio da llão -eutrega de nacio·
pessoa sobre a qual rcc~i o mandado ele detenção (al'l. 5.•, n.• 3). uais (19). Traw-sc, com aquela gamutit!, como já se rclcriu, ele uma con-
dição de execução do mandado de detenção, para cfciiOS de procedi-
mento penal, que pode ficar subordinada a que a pe.~soa (entregue),
(i'} Quanto f1s outra~ garomias eoosngrad:as no an. s.•. relncionad.'l'S com deci· nacional ou residente do E.~tado-Membro de execução. lhe seja devol-
WC~ proferidas nn uu~ência do arguido (n.e I) c com infracções punrvci~ com pena ou vida para nele cumprir a pena ou medida ele segur:mç<~ privativas de
rnedicln ele seguranç1l privoti vas de Libcrdndc com carácter perpé1uo (ll,0 2) - que
n5o vamos nprccin1· uqui • merecem-nos, a umn primeira leitura, alguulaS l'CServas
liberdade proferida contra ela no 13St(ldo-Membro de emissão (art. s.•.
CIH térmOs de equilíbrio "intCI'CS!>CS repre!;SÍVOS" /"p role:x:ção dOS d in!ÍlOS rundnmentais". n." 3).
J)Csign.adarneme, (JUOnclo o m:mdndo de dclt-nção europeu tem em vista o procedi· Prevê-se, al iás, no âmbito dH mesma orientação re ferida de abol i-
mento penal por infracção à que corresponde J>Cilil ou medida de segurança privativas ção do princípio da não-entrega de nacionais, como motivo de não exe-
de liberdade com c:ar'.JCter perpétuo e. nos tcrnwx do n.• 2 referido, a execução do man- cução facultativa do mandado de detenção europeu, para efeitos de
dado "pode lieár sujeila à condição de qU<O o E.<tado-Mcmbro de emissão preveja no
cumprimemo de um<t pena ou medida de segurança privalivas de liber-
~u .sistema juridico uma revisão da pena proferida - a pedido ou, o mais tardar. no
prazo de 20 anos ou a aplicação das medida~ de c lemência a qu.; n pesso::• tenha dade, a circunslância de a pessoa procurada "se encontrar" (SO) no
dirci(o nos lermos do d ireito o u <1:1 prática do E~tado-Mcmbro de c missno. com vista Est.1do-Membro de execução, ser sua " nncional" ou sua "rc~identc" e este
a que tal penn ou llledidn nfio seja executada", A pl'c visão, no fimbito assim definido Estado se com prometer a executar essa pena ou medida de segurança
na dccisão.. quadro, dn possibilidade de consagmç.5o, nos d ireitos nucionais. de coodi- nos termos do seu direito nacional (at·t. 4.", n." 6).
~ôes da c.mrega da 1>essoa procurada, fem cm conta iJ reserva fehn por Ponugal~
O que se salienta é que, no novo instrumento, a nacionalidcule das
quando da ratilicaçllo do Convenção Europeia de Extradição. de I9S7 (Rcwluçiio da
AR n.• 23189. de 21 de Agosto), e a interprcmção da reserva, n I>I"Of~ito do an. S.• pessoas só é tomada em consideração nestes dois casos específicos,
do Acordo de Ade.\o'lo de Ponugal à Convenção de Apli<:ação do Acordo de Schcngcn.
assinado cm 25 de Junho de 1991 e rmificado em 1993 (sobre isto, cfr. ANA!IN.II
MIRANDA RooJUGUt:;s u Josú Luís LOf>f~c; DA MOrA, Para unw polftiCll t;rimlnal euro..
J)Cill, <:iL. p. 73 s.); ntl sequência. foi alterado o nrt. 33.j) dn Constituiçào. no tJU<: se refere dos-Membros perderam uma oporwnidadc de <> pensar c de cvcnhafihncnlé optar por
à cxLradiçâo por infrncçl.io u que con-espondn pcnn ou medida de scguranç:t de natu- ''melhorá-lo''. no sentido ''progressista do 1>0010 de vista dos direitos fundamentais",
rez.a J>erpélua tan. 33 .... n.a 5. Lei Constitucional n.0 1/97; cfr. tarnhém, url. 6.0 n.~ 1, (usa este qualificativo, A~NE W EYEMBEROII. "L'Avenir~·. ve1'S un espace pénal , c it.,
olfnca /). e 2, alfnca< a). b) c c), da Lei n.• 144/99, de 31 de Agosto: cfr.. ainda, p. 157 s. e 162, a propósito d.1 legislação penal (X>rtuguc.<a que não oo11hece penas e
PIIDRo CAEIRO. "Proibiçiio cooSiitucional de extraditar cm função da pe.-1 aplicável (o medidas de segurança perpétuas), abolindo 3.< peoas e medidas de ~gumnça de car.ic·
estatuto constitucional dM proibições de cxtmdiw rundadas na n:uureza da pena cor- ter pcrpéi<IO no esp;lço da União Europeia.
re~pondente ao crime segundo o direito dô Estado requereme <tntc.-c c depois da Lei (19) Neste semido, cfr. DANIEL FlORE. op. ult. cit., p. 277.
ConstitucionaJ 1.97)", Revisw Portuguesa <le C;Rnria Cn'minal. ano 8. I.Q. p. L8 s., onde ( 80) A cláus ula da nacionalidade, como moLivo de não execução racuiHltiva
o nutor defende que cscn possibilidade de p1·oibiçüo de cxu·adiçfio ~e alcançava já, (:u1. 4.0 , n.0 6), é mois ampht do que t1 cláusuln da nacionalidade como condição de
unte.• ela Lei n.• 1197, por oplicação ana lógicn do art. 33.0 , n.• 3, dn Constituição]. emrega (al't. 5."', n.0 3): no p1i meiro caso abr::mgc, par.a além do " nncionaJ" ou "rcsi~
Ne.\te contexto, o mandado de dcLcnç.ão europeu n;lo significa qualquer a lteração sig- dente''. a pessoa pl'ocurnda que "se e ncontrar" no Eslado-Me mbm de execução (esla
nificativa do quadro jurfdico interno actual. Chama-se a atenção para o facto de. na aJtima situação nilo é eobcrul pelo n.• 3 do nn. S."). Entretanto. como bem se salienta
lógica da oooperoçllo onde se ínscreYC o roconhecirncnto mútuo. com a adopção do ins- (DAI<IEL FWRE. op. ult. cit. , 1«. cit.), é. por outro lado. de tlp/irtt( cio mais limitada,
ututo que consagra o mandado de dctcnçlio. Por1ugal aceita colnborar com Esta. já que só pode ser invocada como 1110(ivo de nilo execução se o din:no do Estado de
clo.-Mcmbros que prevejam penas ou medida.< de seguran~a privativ:t< de liberdade com execução pcrmilir u execução da pena ou medida de scgura~a nplicadn pe.l o outro
cn.rdcter peq>étoo, apenas pn:~crvando a onlcm intcnK&Cional do tistado português c pela Estado e apenas na medida cm que o Estado de execução se cornJ>romcta. cm concreto.
via "condicional... Ou .scju: cm tcnnos de conscruçno do espaço pcnnl europ.;u, os l~sta~ :l utilizar essa possibilidmJc ôc execução QliC lhe é conferida t>Cfo direito nacional.

'2 RI'CC 13 (2003) RI'(;(; 13 (20031 53


J\NAIJI'.'IA MIRJ\ND!t HO::.:I::.:>R.::I:;::G:;::U:::;ES~------- O MAN/)A/)0 m: DhTt:NÇÃO EUROPEU

deixando tle confomwr wna causa geral de recusa de extradição. como m


é o caso do direito convencional.
Com efeito, na linha da simplificação c facilitação da extradição que ~ hoje evidente a importância do espaço penal europeu.
a Convenção de 1996 significou (81), esta consagrou a abolição da A prioridade concedida ao penal - o "terceiro pilar" - na cons-
recusa de extradição de nacionais (art. 7.•. n.• I), mas apenas como truÇãO europeia foi o culminar de uma evolução, iniciada com o Tratado
"princípio", .iá que permitiu também aos Estados fazer declarações no de Maastricht, continuada com o Tratado de Amesterdão e na Cimeira
sentido de que não concedem a extradição dos seus nacionais ou que só de Tampere, e lraduziu-se numa "emancipação progressiva em relação
a concedem de acordo com certas condições que especificam (an. 1.•, aos mecanismos 'clássicos' de cooperação" (84). A União Europeia,
n.• 2). Ou seja: a regra continua a ser a da proibição de extradição de depois de ter promovido a cooperação policial c judiciária, como medida
nacionais c, portanto, a nacionalidade, como recusa de extradição, é compensatória pana o desaparecimento das fronteiras internas, vai agora
uma causa geral (R2). para além desta cooperação i nter-estadual cm beneffcio da consttução
A evolução verificada, no sentido de abolir o princípio da proibi- progressiva de um espaço penal homogéneo.
ção de extradição de nacionais, que teve o seu culmi nar no mandado de Os avanços realizaram-se em torno de qua1ro eixos definidos em
detenção europeu, obedece, sem dúvida, a uma ideia de "luta da comu- Tampere: harmonização do direito substantivo. reconhecimento mútuo,
nidade europeia contra o crime" - é uma "consequência normal" da coordenação das investigações e protecção dos direitos fundamentais oos
livre circulação de pessoas - e, assim. a uma preocupação de eficácia. processos penais. Tiveram expressão num conjunto de instrUmentos
Pam além disso, corresponde ainda a um elemento imprescindível da de que destacamos as decisões-quadro relativas ao terrorismo e ao man-
construçiio do espaço penal comum europeu - neste as)>ecto, o regime dado de detenção europeu pelo simbolismo que encerra no pós-11 de
do numdado de detenção europeu é um passo incvi1ável no caminho da Setembro; e na criação de actores europeus para funcionarem no espaço
criação daquele espaço (8>). europeu, com relevo para a decisão que instituiu a Eurojust.
Não é - ainda? - uma arquitectura penal europeia, de que nào
encontramos traços no Tratado da União: nlio há polfcia europeia, não
há ministério públ ico europeu, não há jurisdição penal europeia.
(") Sobt·c isto, cír. ANABr.LA M IRANDA RoORIGUIJS c Jos6 Lvrs Lo1•tJS DA MoTA,
Para unw polllicll criminal europeia, cit., p. 65 s. c p. 70. O que não quer dizer que, com as iniciativas conclu ídas, os Esta-
(til) Assim, muito clarameme no nosso direito, desde logo no nível constitucio- dos-Membros não tenham ultrapassado a "visão estreita" da soberania
nol: o art. 33.•, n.• I, dn Consliluição. consagro a regro da proibição de extradição de nacional (8S), que por longo tempo perdurou no domínio penal : com o
nacionais. A nacionulidade é, pois. uma causa geral de rccu:sa da extradição. salvo nos
ca~ prcvi•;ros no n.• 3: terrorismo e criminalidade internacional organizada. Aliás.
a Constituiç&> expressa o semido da declaração reita por Portugal, no acto de r.uifi-
cação dn Convenção, nos lermos da qual a extradiçilo de nacionais só será autori- proibiçilo de extmdiçio de nacionais (an. 33.•, n.• I. da Con.,.iruição), que tem sido
uda: "nos casos de terrorismo c de criminalidade internacional organizada" e "para fins vista pela doUirin.a ponuguesa. em especial a. constitucion:tl (cfr. GOMES CANOTI·
de procedimento penal ( ... ),desde que o Estado requerente &ammo a devolução dn pes- LJIOIVITAL MOREIRA, Constituição da República Portugutsa, Anotada, an. 33•, 11).
S0.1 extmdit3da a Portugal, para cumprimento da pena ou medida que lhe ccnha sido como encontrando fundamento no direito absoluro reconhecido no cid~dão português
aplicada. snlvo se essa pessoa a isso se opuser por declnmçfl.o exprcss:t". Cfr.• ainda., de residir e de per1nanecer em Porrug.aL Ne.~sa mcdid3. o prindpio exprimiria o Jnço
n Lei n.• 144.99, de 31 de Agosto. arL 32.•. n.•• 2 c 3. indissolúvel e ntre Portugal c os seus cidadãos (cfr. Parecer da Procuradoria-Geral da
11
( ·l) Não nos pronunciamos aqui sobre as implicações. no n(vel conscih•cional, do República, n.• 135})6, Pareceres, voL li, p. 20 1).
regime c(lns:.grn<lo na decisão-quadro quanlo f1 ubolição do princípio da não entrega (...) Assiln, MARC VERWILGHEN, "lnlrOduClion". L•e.fJUICe pé1wl. cit .. p. l.
de nacionuis. Apenas se charnn a U(ençflo pnrn a I'Cgnt gcntl, j~ rcfel'idfl (nota 82), dn (&)) Assim, MARC YERWILGI·IEN, op. u/t. cit.. p. 2.

I:W(;C 13 (2003) I<I'CC I~ (2003) 55


ANAIIHIA MIRAND!t UODHIGUES O MANDADO DE DéToNÇÃO eUROPEU

conjunto dos três instrumcmos rcfc1idos, <! um sistema penal europeu que Quanto à primeira concretização do princípio do reconhecimento
se perfi la no horiwnte. mútuo, não deixa de ser paradoxal que lenha ~ido exactamente o man-
Neste "movimento" - pois que só de um "movimento" se trata - , dado de delenção europeu.
poder polílico e sociedade civil lêm estado de costas voltadas (86). Não está em causa apreciá-lo quanto às vantagens-benefícios que
·'Fosso" e "ausência de diálogo": é por certo provocatório falar nestes representa em relação ao dircilo de extradição, que virá substituir a
termos e talvez exprima um juízo demasiado severo. partir de l de Janeiro de 2004: do pomo de vista dos direitos da pes-
Mas é es1e ''divórcio" o respons:lvcl pelo medo de um "Estado soa que é objeclo do mandado e da celeridade do processo. Nem
policial europeu" ou pelo discurso do "crepúsculo das liberdades". quanto ao simbolismo que encerra, ao tomar tangfvel o espaço comum
É a invocação de 1e1ldências securit:íria.~ que alimenta atitudes "aoti-euro- de jusliça penal: o de~aparecimento da extradiç.'io é o sinal da evolução
peistas" no âmbilo penal. que conhece ac1ualmen1e a União Europeia, que vê reduzir-se, na pró-
E não se lhe~ cole o ró111lo J>Cjorativo de "nacionalistas". Pelo pria cooperaç.'io, o nível estadual e polflico, em benefício da interven-
comrário: são-no em nome de um direi1o penal europeu que, por refe- ção das autoridades judiciárias, cada vez mais autónomas nas relações
rência aos direitos nacionais, signifique uma prolecção acrescida dos que estabelecem direc1amcn1e entre si. E também analisámos os aspec-
direitos fundamentais. tos que definem o regime do mandado de detenção ligados à confiança,
Já não eslamos cm tempo de iludir a questão: que Europa quere- que podem significar um endurecimento penal no espaço europeu ou uma
mos? Queremos uma Europa securitária e repressi va? Como encon- menor real i7.ação efectiva dos direitos fundamentais.
trar o equi líbrio entre liberdade e segurança? O que agora se quer salicmar é que lL5 duas primeiras aplicações que
As tensões que aqui perpassam fazem incidir a atenção na imagem estavam previstas do princfpio diziam respeito a decisões sobre o con-
de retorno do sector penal europeu. Devem ser dados sinais claros de gelamento ele bens c de provas c sobre sanções pecuniárias. Estas ini-
que a União Europeia não está a caminho de se tornar uma "Europa for- ciativas ficaram "congeladas" (89) depois do 11 de Setembro, em prol
taleza". O que passa J>Cia p1'0moção de instrumento~ que têm em vista de gestos simból icos fortes, com prioridade para lanços como o man-
a justiça penal na sua gl obtlfid(l(/e (81 ). dado de dclenção. Esqueceu-se ou quis esquecer-se que a aplicação do
A propós ilo do reconhecimento mútuo e dos instrumentos que princípio do reconhecimenlo mútuo a decisões, por exemplo, relativas
visam p6-lo em prálica - dos quais analisámos, na perspectiva ela ten- ao congelamento de bens e de provas também serve a luta anti-terrorista
são scgurança- lihcrdade, o mandado de detenção europeu - , tem de
admitir-se que, ao não ser concretizaclo em todas as suas implicações,
designadamente quanto ao I'Cconhecimento de decisões ligadas à exe- péna/, c i1., p. 3; e SPJ<Oa DE B1ou.~v. ibidem, p. 194 e 195). Saliente-se a meri1ória
cução de penas (~8), faz lemer pela orientação repressiva que encobre. inicia1iva da prc.'iidência belgn nesle domfnio ("Documento de trabaJho J'eJativo à rea..
lização do programa de mcdidM dc..cilinndo a aplicar o pl'incípio do reconhecimento
mútuo das decisões em malt5ria peno I: decisões tomadas no âmbito da assistência
pose-penal. Procurnr oplimiUlr n op1icnçno dn Convenção Europeia relativa à vigilância
(..) De<envolvendo CSIO ideia. Si>l!GB 1>€ BIOIJ.F.Y, L'ts(Xlte péna/, cit .. p. 169 s. de pe«oa.ç condenadas ou libenadas condieionalmcnlc, de 30 de Novembro de 1964",
("') Sobre a ncce<<idade de urna ":obordngem global da cooperação'' "para afas- doe. 10646.01, de 6 de Julho de 2001), que não teve seguimento.
1ar os receios de uma abonl:lgem exccssivamenle securilária na construção de um (") Assim, expressivomcnle (e no que se segue), ANNE WEYEMBERGH, L'espace
espaço penal europeu", efr. ANABEI.A MIRANDA ROONIGUilS e JOSÉ LUÍS LoPES DA péna/, cit., p. 192 s.. com indicações sobre ambas as iniciatiY:lS. A decisão-quadro sobre
MOTA, Para mtm JMifticn criminal ruroJ~ia. c.i1.. p. 41 s. o congelamen10 de ben• e de provas (doe. 698G02. COPEN 20. 13 de Março de 2002)
{") ~ rnanifesla a impot15ncia de aplicar o 1>nncfpio do reconhecimento múluo foi objeclo de um acordo polllico no Conselho JAI. de 28 de R:""reiro de 2002
às decisões de /il>erdO<I~ collflicitmal (neste ><:nlido. MARC VtRWII.GilliN, L'esP<•ce (6533.02, Pn:sse 43·G, p. 7), mos ainda não foi adoptada ofteialmenle.

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ANAJitU. MIIIANDA RODRIGUES
---- --------------- O MANDADO DE D~TiiNÇÃO EUROPEU

e preferiu começar-se por um domínio "bem mais delicado em tennos Se os progressos alcançados graças ao reconhecimento mtítuo são
de liberdades individuais" do que os outros dois que dizem respeito a roais espectaculares (93), a autonomia pertence à hannonização, das
"bens" c não directamente a "pessoas". infracções e das sanções, nos domínios tidos por prioritários e já iden-
O paradoxo é maior se se pensar na "facilidade'' com que, relati- tificados no Tratado da União Europeia. Os próprios debates que se tra-
vamente ao mandado de detenção, se abriu mão de um princfpio como varam aquando das negociações sobre o mandado de detenção europeu
o da dupla incriminação. Que, agora, pa~sado o ciclo empreendedor, se em tomo da abolição da dupla incriminação para a lista de infracções
mostra relutância em alargar aos outros don\fnios do reconhecimento ilustram bem como o reconhecimento múwo pode ir mais longe, con-
mtítuo. Quando, logicamente era de c.~pcnu· que o grau de confiança ferindo eficácia à j ustiça penal, havendo "consenso" quanto às i nfrac-
reciproca fosse (mais) elevado em domínos como o do congelamento de ções.
bens ou de provas. O Conselho aceitou, fina lmente (em 28 de Feve- Os tr~balhos de harmonização patticipam na emergência de uma
reiro de 2002). estender a abol ição da dupla incriminação a este domí- política criminal europeia. E só pode desejar-se - não entramos aqui
nio, mas apenas em relação à~ decisões de congelamento de provas e no tema - que não alinhe, no plano das infracções, em "definições
não de bens. E, para além desta "precaução", consagra também o máximas", e, em sede de sanções, no famoso sistema do "limite mínimo
método da "lista" de infracções, completado com o limite dos três anos da pena máxima" (94).
de punição, utilizado no mandado de detenção. O que, se, no caso, se O que agora queremos destacar é que o vazio (9S) em matéria de
explica pelo ataque à liberdade da pes.~oa que está cm jogo. já não tem harmoni7.ação de processos penais e de garantias processuais aumenta
raz..~o de ser na obtenção de provas, que deve ser, por princípio, ampla- o risco de que se instale no espaço penal europeu uma orientação
mente facilitada, mesmo para infracções menos graves (90). repressiva e securitária. É que o reconhecimento mútuo contém o gér-
De qualquer modo. esta decisão-quadro, apesar de ter havido um men de um "nivelamento por baixo" das garantias processuais: em ter-
acordo polftico sobre el a, ainda não foi adoptada oficialmente (91) . mos de protecção de direitos fundamentais, incita a contentar-se com o
Como iron icamente j á foi observado, parece que é mais fácil admitir a "menor denominador comum" (96). A tarefa ele harmonização ao nível
entrega de uma pessoa por causa de uma infracção, do que das provas processual é tão mais importante quanto se tiver em conta a rápida
para o seu processo ou o congelamento dos seus bens - uma pessoa evolução de novos métodos e técnicas de i nvestigação e de vigilância
seria mais fácil de obter do que a sua fotografia ! (92). que as inovações tecnol ógicas permitem. As diferenças en tre Esta-
De resto, o que ainda a propósito do mandado de detenção europeu dos-Membros tendem a acentuar-se.
se procurou tomar claro foi que, em termos de equi líbrio entre preo- A confinnar o que vimos dizendo, é curioso verificar que, agora que
eupaçõe.~ seeurilária.~ e de protecção de garantias individuais, a via prefeóvel o mecanismo do reconhecimento mútuo vai ser posto em funciona-
é fomentar um clima de confiança recíproca através da hannonização.
Já vimos em que tennos reconhecimento mútuo e harmonização se
relacionam de forma complementar na realização do espaço judiciário ('J) As.<im, DEN~ SORASIO. L'e.1p0ce pilwl. cil., p. 291 .
penal europeu. (") Sobre n harmonização das legisloções, cfr. os cstu<los de ANNE WEYEM-
liERGH. de GEORGt:S l<ru.l:Ns e de MARIA LutSA CESONr. todos publicados em L'eJpaa
p4nal. cil .• respectivamente, p. 127 s., 145 s. e 153 s. Vide. também, a propósi to da
("') Nc:.<lC sentido. DENlSE SoRAStO. "Rcconnaissancc mulucllc. rapprochemenl des dccisUo~quadro rclnti vo. à luta contl'a o lel'rorismo, ANN~ WEYEMBERGH, Luue. c.it.,
législmions et coopémlion", l.,'espace péna/, cit., p. 290. p. 161 S.
(") Cfr.• supra. nota 89. (") Assi m, e no que se segue. Sm<úti r>€ Brou.sv, L,'espllce pénal, cil .• p. 195 s.
('ll) Assi m, J.lMMANUEL BARBE, 1./{!Spacc pénal. Cil.. p. 116. (YO) Assim, ANNE WBY EMií~RGH, Luuc. cil., p. t88.

58 RPCC 13 (2()()3) llf'CC lJ (200l) 59


ANA8êl.A MIIIIIND'\ fi.O
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D.:.:R:.;;/(,:.='U.=E::..S_ _ _ __ _ __
---- O MANOADO 0/i DtTENÇÀO EUROPE:U

menta com o mandado de detenção europeu, a Comissão decidiu dar iní- espaço para um sistema de justiça penal não se faz por si. Há uma
cio à tarefa de harmonização dos processos penais. Num dos seus pri- mudança de perspectiva que pressupõe opções essenciais, quer ao nível
meiros documemos públicos sobre a matéria, justifica o seu objectivo material quer processual, que ainda não foram pensadas de forma sis-
de definir "normas mínimas a aplicar no trat:uncnto de suspeitos e de temática nas suas consequências últimas.
pessoas postas em causa nos processos penais na União Europeia" com Temos agora a oportunidade de repensar a Europa penal.
a necessidade de "fazer nascer a confiança e o respeito mútuos que Esta )>ode representar uma "mais-valia potencial" (99), em relação
exige um verdadeiro espaço de liberdade, de segurança e de j ustiça" (9'). aos sistemas n;tcionais, no plano da protecção dos direi tos e liberdades
lronicameme, a Comissão parece reconhecer o carácter artificial da e no equilíbrio liberdade/segurança. Quando a construção europeia é
confiança recíproca, invocada para j ustit1cur o reconhecimento mútuo das •·pré-determ inada por combates" - o tráfi co de seres humanos, a cri-
decisões judiciárias. minalidade organizada c, agora, o terrorismo - , à primeira vista temos
E, também aqui, no plano processual, só pode desejar-se que o uma imagem sccuri tária e repressiva do penal.
exercício de harmonização não se contente com as garantias já existentes Em vez de assumir o compromisso de uma reflexão sobre os
nos vários ordenamentos nacionais c em fixar standards mínimos. fundamentos culturais, éticos e políticos do sistema penal europeu, o
A tensão liberdade-segurança que esteve sempre latente na cons- Conselho dá por vezes a impressão de considerar os direitos funda-
trução do espaço penal europeu e que eclodiu sobretudo com a adop- mentais de maneira puramente retórica, "como uma referência a acres-
ção dos dois instrumentos relativos ao terrorismo e ao mandado de centar, dada a sensibilidade dos debates" ( 100). Fizemos referência ao
detençllo teve o mérito de nos fazer tomar consciência do relevo do "mal-estar" causado pela inserção de um dispositivo onde se prevê a
movimento que está em curso e das suas derivas. obrigação de respeitar os direitos fundamentais na decisão-quadro rela-
Os receios quanto à construç.~o do espaço judiciário penal europeu, tiva ao mandado de detenção europeu e o mesmo se pode dizer de dis-
legítimos face ao conteúdo de certos instrumentos - destacados, aqui, posição equivalente contida na decisão-quadro relativa ao terrorismo .
na decisão-quadro relativa ao mandado de detenção europeu - , são (art. 1.0 , 11.0 2).
igualmente justificados pela incoerência dos trabalhos (98). Produto Para além disso, esta falta de i nvestimento num pensamento para
talve7. da "fase pol ítica de transição" para um sistema penal europeu em a 13uropa penal contrasta com a abcttura progressiva da construção do
que nos encontramos, a incoerência manifesta-se, como vimos, na rela- · espaço penal europeu a domínios como os da prevenção, assistência
ç.'io entre os trabalhos de hannoni zação e os de concretização do reconhe- às vítimas ou procura de pessoas desaparecidas.
cimento mútuo ligado ao abandono da dupla incriminação. Só se podem enunciar aqui, de forma apodítica, os vectores essen-
A emergência de um sistema de justiça penal europeia parece ine- ciais da definição de uma política criminal europeia.
vitável. Pensar o sistema penal europeu significa, desde logo, colocar a
Mas falta "um projecto a longo prazo" que lhe dê sentido. questão da legitimidade e necessidade da.~ incriminações, não devendo
São "muitas e desvairada~" as iniciativas - como (só?) a língua bastar ao trabalho de harmonização a mera comparaç.'io entre os vários
de Camões ou de Herculano permite expre.~sivamente dizer. Que não ordenamentos nacionais.
se inscrevem, todavia, num "quadro global". É que a passagem de um Depois, ao nível das sanções criminais, deverá inevitavelmente

(•7) Referência cx<ra(da de S~RGE DE BtOLLbY, L'csp11ce phwt, cit. , p. 196. ("') Assim, SI; RGE DE BIOLLEY, Qp. ull. CÍI., toe. til,
('") Assi m. SERGE DB BtOLLEY, op. utt. cil.. p. t97. (1110) Assim, SEI<úl.i os I3101.1JiY, op. ult. cit., I>· 177.

60 RPCC I} (2003) RPÇC 13 (lOOl) 61

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IIN/18/i.V. ~11/IANDII RODRIGUES --------------'0
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1A;.;.N.=
I)AI)() /)E Vt"f'eNÇÃO EUROPEU

reflectir-se sobre o sentido e finalidade da punição. Vai aqui impli- em tudo o que faz é perfeito e inspira mais confiança assim do que se
cado um debate sobre uma estratégia europeia ahcmativa à prisão ou as realmente existisse". Depois percebi porquê.
perspectivas de uma justiça reparadora. É que um dia o Cavaleiro Inexistente desapareceu, deixando a
Finalmente, é preciso equacionar a protecção dos direitos funda- Rambalde a missão de existir. O que quer dizer, no ensinamento de Agi-
mentais ao nível das garantias processuais e do seu controlo jurisdicional. lulfo, pôr sempre, naquilo que se faz, "qualquer coisa", "um sinal par-
Défice que o mandado de detenção europeu, como tivemos ocasião de ticular".
salientar, põe a descoberto. A memória fazia parte da questão: dar "existência" à justiça penal
Esta é uma proposta de reflexão sobre alguns aspectos sensíveis da e uropeia.
arqu itectu ra pena l europeia. A fazer-se "fo,·a do qu adro formal d a
negociaçilo política", é um contributo potencial para os progressos a rea-
lizar ao nível jurídico.
Podemos talvez ser tentados a ver num horizonte "ainda" longín-
quo a realização do projecto penal europeu. Que, de qualquer modo,
não se quadra com prazos políticos dos governos nem com ímpetos
populistas de debates securitários.
A Europa está num momento charneira da sua história. Enfrenta
desafios capitais, senão o seu destino na cena internacional.
Não se pense, por isso, que tem menor ressonância na opinião
pdblica a construção do espaço de liberdade, de segurança c de justiça
ou que tem menor importância o desafio penal.
Algo mudou. A rapidez de reacção a dois acontecimentos - a
manifestação por ocasião da Cimeira Europeia de Gõtcborg, em Junho
de 200 .1 , c os atentados de 11 de Setembro do mesmo a no - (10 1),
com a organização de Consel hos extraord inários, teve por efeito dar
visibilidade e uma certa publicidade aos trabalhos. A construção euro-
peia tem lUdO a ganhar em trazer a debate o seu lado penal.
(Hoje) é o momento para pôr a questão do modelo de direito penal
que se quer para a Europa (de amanhã). A Convenção pode ser o
fomm para levar a cabo ou pelo menos lançar esta reflexão sobre a
justiça penal europeia.

Veio-me à memória Agilulfo, o Cavaleiro Inexistente. De quem


Rambalde, o jovem guerreiro ansioso por entrar cm acção, pensava: "ele

('"'> NcsJc SCIIJído, SUI<G~ o~ BIOLWY, op. ult. cit .. p. 172 s.

62 IU'(;C I~ (2(J(I)J RI'CC 1$ (200~) 63

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