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R E VISTA PORTUGUES A

DE

CIÊNCIA CRIMINAL
ANO 16 • N•3 • lulho·Sctcmbro1006 • ooux:roa.JORGEDEFIGUE1REOODIAS

K
19 Colmbrll1 Edito r.a
.P67
l nsliiUtO de l)utlto Pulai Gconómico e Europeu
flaculcbde de 01ftlt0 da Vnivc:Jlidadc ck Q,imbra

1163-45
ULL
/01/CUDéS DÂMASO StM(if:S

(JTI) A par destes órg1íos deverá, ainda, encarar-se a consLruçao de


instrumentos que con firam maior operacionalidade à prática da coope-
ração judiciária. Por exemplo:

- Uma lista, permanentemente aciUal iU~da, com os nomes, direc-


ções I>OStais, números de telefone e telefax, endereços electró-
nicos e horários de contactabilidade dos pontos de contacto,
agrupados por países; O CONTROLO DA DUPLA INCRIMINAÇÃO
- Um manual de "boas práticas" no domínio da cooperação judi- E O MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
ciária. Poderá desenhar-se tomando corno modelos a "Decla-
raçiio de Boas Práticas• instituída na União Europeia pela M~rio Elias Soltoski Júnior
Acção Comum de 29-06-1998 (311) ou a •Declaração de Boas A.ssislçntc: do C~nuo de Ensino Superior
Práticas" dos Estado Ibero-americanos (39). dos C01mpóS Gerais, Paraná. Brasil
Mesuando cm Ciências Juridico-.Criminais
(IV) Na sequência desse manual de "boas prúticllS'' será muito útil n:t P:K:uld:wlc: de Direito da Universidade de Coinlbta
que, além do mais:

se institua um modelo uniforme de cartas rogat6rias que faci- 1. Introdução


lite o disciplin;tmento da sua fonna (com clara discriminação da
matéria de facto cm qucstüo e sua leitura juddica, das di ligên- Antes da abertura das frontei ras internas, a circulação de merca-
cias rogadas, da fundamentação do pedido ao nível do direito dorias, capitais, serviços ou pessoas não ocorria livremente no territó-
imernacional c com identificação da entidade requerente e da rio europeu, isto é, tais movimentações ficavam adstritas aos territórios
entidade requerida) (•O); nacionais, sendo que qua lquer transposição de fronteira redundaria em
se aprove um modelo uniforme de notas de transmissão de averiguação c aceite por purte dos Estados envo lvidos. Assim, cada
cartas rogatórias, que devem acompanhar os pedidos de auxí- Estado, de per si, apli cavu seu direito, sem necessitar, via de regra, do
lio, a fim de que a autoridade 1·equerida acuse a respectiva auxíl io de Eswdos terceiros.
recepção à autoridade requerente e faciliLe, assim, futuros con- Tal perspectiva também se aplicava ao direito penal ( 1). Com a cir-
tactos directos (41). culação de bens c pessoas adstritas aos seus territórios, aos Estados
bastava o combate ~ criminalidade intramwvs. Quando essa crimina-
lidade, ou melhor, os agentes dessa crim inalidade conseguiam ultra-
(") Jomat Oliciat L 19 1, do 7·07-t998. passar os limites ten·itoriais, o Estado podia lançar mão de institutos de
(") Aprovado na VIU Cimeira llx:to·americana de Presidentes dos Supremos Tri· direito internacional para ver seu direi to aplicado.
bunais. Cfr. bup:l/www.ibcrius.org/.
('") A Rede Judiciária Europcio criou um modelo em 2001, que está ser aplicado
com sucesso. Pode ser consullado no sitc bnp;//cjn.mi.pt ou www.allas.mj.pt (user-
name:rje;password:dgsi).
(") A Rede Judichlria Europeia criou um modelo que está a ser aplicado, tam· (') No preseruc ensaoo, o tcnno "di"ito pe1wr· deve set vislumbrado como a
bém com sucesso. Pode ser consultado no site indicado na nota anterior. "cilncia global do dirtito /Hnar' e não como rnero "cli~?iro fNnOliiiOttriof'.

474 RPCC 16 (2006) RPCC 16 (2006) 475


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MÁH/0 EIJAS .'il)/.70$1{/ JONIOR O CO.VTROW IM IJUI'UI INC:RIAIINAÇ}.O f.' 0 MIINDIIOO m: m:rf:Nç},o...

Com o advento da União Européia (2). c a conseqUente livre cir- rido, o Estado requente podia receber. novamente, cm seu território a pes-
cu lllção de merctldorias, capitais, sc•·viços e pessoas, a criminal idade soa procuradu c aplicar-lhe o seu direito. Nesse instrumento. eis que sus-
também passou u circular livremente. Dessa forma, o auxflio j udiciá- cetível de pr6viu avaliação pelo Estado requerido, os r.:statlos não pres-
rio internacional c l ~ssico. dian te das dificu ldades na colaboração elllre cindiam de qualquer parte de sua soberania na aplicação do direito
os Estados, eis que as ban·eiras judiciais, ao contrário de todas as outras, penal cm favor das pretensões punitivas alienígenas.
ainda subsistiam, mostrou-se inábil. O Poder Judiciário, ao contrário da Entretanto, o instrumento da extradição, diante da evolução his-
criminalidade, pennanecia embaraçado pelas exigências dos procedi- tórica, apresentou-se em declínio. causado, principalmente, por dois
mentos na,cionais c não podia lutar contr:l a delinqiiência com as mes- vetares: a criação do espaço comum europeu e a evolução da crimi·
mas armas. nalidadc.
Nesse contex to, surge a Dec isão-quad ro do Conselho da União Com a queda dos "mums" internos da Europa , cm prol de um
européia, de 13 de Junho de 2002, relativa ao Mandado de detenção maior controle dos fronteiras externas, a circulação de mercadorias,
europeu e aos processos de entrega cnt•-e os Estados-membros. capitais, serviços ou pessoas passou a ocorrer livremente no seu terri-
O presente ensaio tem como objcto a análise deste novcl instrumento tório. Tal relaxamento no controle sobre a circulação de pessoas redun·
de direito comunitário, principalmente no que se relaciona à "abolição dou, corno não poderia deixar de ser. além da livre movimentação de
do corurol e de dupla i ncriminaçüo", cxmni nando os motivos dessa pessoa.~ com ti nalidades lícitas, tumbém na livre passagem de agentes
supressão c a sua real necessidade. criminosos. Noutras palavras, considerando que o rcgi11lC de averi-
Para atingir o objctivo planeado, an<ilisar-se-ão os motivos da cadu- guações sobre a transposição das fronteiras internas foi relaxado, os
cidade do ulS[rumento clássico de aux(l io internacional, as earacterísti· criminosos também puderam se locomover de mancim mais livre no ter-
eas do Mandado de detenção europeu relacionadas com o rC(:onheci- ritório europeu.
mcnto mútuo, os argumentos para a supressão do controle de dupla Por outro lado, os Estados-membros da União Européia continua·
incriminação e os rencxos de tal supressão. vam apenas podendo lançar mão do clássico instrumento de auxílio
judiciário, o qual demonstrava subsistir fronteiras internas, mas agora <Ipc-
nas em relação às decisões j udiciúrius. isto é, enquanto us pessoas, c por
2. Motivos do dcclfnio do instrumento clássico do au xflio mút uo conseqüência os crim inosos, circulavam livremente dentro do território
internacional europeu, as decisões judiciárias eram obstadas nas fronteiras internas,
frente ao Princípio da territorialidade. Essa nova realidade demons·
Durante muito tempo, enquanto existiam fronteiras internas no ter- troo ser imperativa, também, a derrubada dos "muros" internos para
ritório europeu, cada Estado, ao controlar a entrada c safda de pessoas às decisões judiciárias.
cm seu território, podia fazer valer sua soberania aplicando, às pessoas Noutro extremo, a realidade criminológica uunbém sofreu uma
nele presentes, o seu di reito. Quando, todavia, as pessoas conseguiam mutação. O crime "expandiu-se, COipomtivizou-.fe, imemacionalizou-se
tran~por as barreiras intemas e evitar a apl icação das leis desse Estado, e globalizou-se" (3). As associações c•·iminosas deixaram de possuir ap()·
este buscava abrigo no instituto da Ex1radição. Através desse instru-
mento, após a prévia averiguação política e judiciária pelo Estado reque-
(') ROORIC'.UI:S, Anabela Mir:mda, "Um sistema sancionatório peno! para a Uniilo
Europeia- erurc a unidade c a diversidade ou os caminhos do hrtrmomz.ação~. Texto
( 2) O presente trnbalho foi escrito cm poJ'tuguês do Brasil. fotocopiado, p. l .

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MARIO fJJAS SOI.TOSKI JIIN/OH ~0/JJ /)A OUPUI INCR/!1/NAÇÃO E O MANI>AVO IH VI.TLNÇJiO.

nas aquelas caractcrfsticas até então conhecidas, pHra gan har novas Justiça c assuntos internos, impulsionundo a cooperação judicial em matd·
peculiaridades (4 ). ria penal. Criou-se, assim. o denominado "terceiro pilar'' ela União Euro-
Aquele velho paradi~ma do grupo c riminoso comandado por um péia, de natureza intcrgovemamc ntal, não comportando o co1mole demo-
"l'adrinho", que apenas determinava as ações necessá rias da sua crático por purte do Parlamento Cllropeu e do Tribunal de Justiça das
"empresa". as quais eram praticadas pelos "afilluulo.f'', normalmente Comunidades Européias. inerente ao "primeim pilar". c. dcstarte, insu~­
dentro do território de um mesmo Estado, foi :mbstituído por um grupo cetível de "imegmção. nem, rm conseqiiêm.:ia, cessão de sobera11ia" (8).
mms bem cstnllurado, cm forma de rede, que inclusive. devido aos Na vigência desse Tratado. finnaram-se, entre oo estado.5-membros,
uvanços tecno lógicos, pôde estar em vlirios lugares ao mesmo tempo. a Convenção relativa ao Processo S implificado de Extradição ('>) c a
Em suma, de um extremo, a criminalidade sofrctt uma mutaçfto, tor- Convenção relativa à Exmtdiçi\o e ntre os Estados-membros da União
nando-se volátil c dcscstigmatizada, c <tS barreiras internas foram rela- Européia ( 10), convenções que não entraram em vigor na totalidade elos
xadas, faci litando mais ainda a c ircu lação de criminosos. de outro Estados-membros. eis que nunca foram rati ficadas po r todos eles.
extremo, essas ba1Tciras internas ainda subsistiam para os pronuncia- Entretanto, apenas com a aprovação do Tratado de Amsterdã que
mentos estatais, facilitando a impunidade, frente à fuga para outros a construção de um espaço judicial europeu apresentou sua atual dimen-
Estados, eis que os Estados-membros apenas podiam lançar mão do são, onde se assumiu, conforme dctcm1ina seu artigo 29.", o objetivo de
instrumento clássico de a uxílio intercstadunl. a Extradição, que se mos- criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça. Se a convcn·
u·av<~ inábi l para tal fi m, frente à sua reconhecida complex idade e con- ção ele i\plicaçflo do Acordo de Schcn~en teve como ()bjeto a elimina-
seqUente morosidndc. ção dos cntr<~ves físicos à livre circ ulação de pessoas, o Tratado de
Diante de tal q uadro, procurar<~m-sc atualizar os instrumentos dis- Amsterdã teve por ambição suprimir os e ntraves jurld icos à circulação
poníveis, entre eles os relacionados aos procedimentos cxtradicionais, dos julgamentos ( 11 ). Para alcançar esse objetivo, o Tratado da União
nomeadamente a Convenção Européia de Extradição (S) e seus aditivos. Européia possibilitou novos instrumentos normativos. Em matéria
Para isso, foi assinada a Convenção de Aplicação do Acordo de Schen· penal, conforme o disposto no artigo 34.", n." 2. passam os Esta-
gcn (1'), q ue em resposta 11 supressão do controle nas fronteiras internas dos-membros a dispor de "decisões" c "decisões-quadJ'O" com natu ·
upresentou "medida.,· compensatória~" (1) relacionadas 11 cooperação reza vinculativa q uanto aos fins a alcançar.
policial e j uclic.ial cm mméria penal. c ujo objclivo, segundo seu a.tigo 59.•, Reconhecendo as disposições introdu<'-iclas pelo Tratado da União
n.• I. era completar a aplicação da Convenção Européia de Extradição. Européia, foi apresentado cm Viena ( 12) um plano de ações no sentido
Já com o Tratado de Maastricht, os E.~tados-membros afinnaram a de que, no pra.lO de dois anos (:•pós a entrada cm vigor do Tratado da
existência de um domínio de cooperação comum relacionados com a União Européia), se facilitasse os procedimentos de extradição emrc
os Estados-membros, assegurando que as duas convenções sobre a

4
( ) FERNANDGS, Lu(s l<'iiles. "C1·iminalidndc 1r.msnacional orgnnizntln: orgnnizn-
çllC>. poder e coacção". Eswdo.\' de lwmemrgcm ( lfJ Profnsor Oomor GtrmàiJO Mar- (') R Oil RIOUtS. Anabe la Mirnnda e oucro, Para uma />OIItlca..., cit., p. 34.
que• da Silm, Coimbr.1: Almedin•, 2004, pp. 427-42&. (') Jornal Oficial n.• C 375 de 12-12- 1996. pp. OIJO.I-0010.
(') Convenção l!uropéia de Ex1radição, tle 13 de dezembro de 1957. ( 10) Jomol Ofteial n.• C 191 de 23-06-t997, pp. 0013-0026.
( 6) Assinada cm: 19 de junho de 19'JO. l'ublicada em: Jornal Oficial n.• L 239 (11) KEl«.110Vt, Gollcs de, "La rccocmoJSsancc mutuelk: des d«iswns pré·seto·
de 22-09-2000. pp. 0019-0062. tcncielles en généml", Lt1 TFcom'lltissancr mmuc/1~ de.s tlécisimrs juJI~eialrts pin(l/l!s tkuu
(1} RODIUOVL"i. t\nul)ela Mmtndn e outt·o, Pm·a uma po/{(ica ~rimimtl Pttropeia, I'U11i011 europlemte, Bruxelas: rEE. 2001, p. 114.
Cuimb•·~: Coi mbra &lilora, 2002, p. 24. (I') Jornal Oficial n.• C 0 19 de 23·01-1999, pp. 0001 ·001 5.

478 RPCC 16 (2>006) RPCC 16 120061


MÁ/1/(J i:UA.\ .\Oi.-1 0SKI .IÚNI()H - - - -- -

ma1éria, e.xis1entes ao abrigo do Tratado da União Européia. fossem entrega de pessoas entre os Estados-membros que se baseasse no
efetivamc nte implementadas ( 13). /\firmou -se, no mesmo plano de reconhecimento c execução imediata do rnandnclo de dc1cnção emitido
açõcs, que no prazo de ci nco a nos (após a entrada em vigor do Tratado por umo autoridade judiciá1 ia.
da União Européia). deveria ser analisada a possibilidade de se intro- Apresentada proposta pela Comissão ( 11), o Conselho da União
duzir mclhormnentos nos procedimentos de c.xtradiç;ío. principalmente Européia adotou a Decisão-quadro de 13 de Junho de 2002. relativa
para reduzir seus prazos c. ai nda. a nrdisada a questão da extradição em ao numdado de tlctcnçao europeu c aos processos de entrega entre os
relação a procc~sos in absemia, no pleno respeito pelos direitos run- Estados-Membros ( 18).
damenwis previstos na Convenção Europeia dos Direitos do Homem ('4).
C'om o o~jcti vo de cumprir com o determinado pelo artigo 31.•, alí-
nea b), do Tra1ado da União Eu ropéia, o Conselho de 1àmperc (15) 3. Mandado de detenção europeu
concluiu que o procedimento fom1al de c.xlradiç;ío deveria ser abolido
entre os Estados· membros. no que diz respeito às pessoas julgadas à O upgmde criminoso, aliado ao avanço no processo de imegração
revelia cuja sente nça já tc nlw n·ansiwdo cm j ulgado e substitufda por uma européia entre os F-stados-mcmbros, demonstrou que os instrumentos de
simples transferência dessas pessoas, nos termos do artigo 6.• do Tra- auxílio internacional clássicos cm matéria penal, como já salicntudo,
tado da União Européia. Quanto aos demais casos, o Conselho solici- eram inaptos para combater esse novo paradigma criminal. Fazia-se
tou a nccessáriu ratiricaçilo das Conve nções da Uniiío Européia relati- neccss!íria, diante de 1.al caducidade, a criação de um "espaço penal
vas à ex tradição. 1mrope11", modificando-se a concepção clássica de auxflio judiciário
A solução. apontada em Tarnpcrc. que se baseava cm reconheci- entre os Estados-membros para uma relação de parceria entre os mes-
memo c execução imediata do mandado de detenção em itido por uma mos ( 19), onde a decisão judicial emitida por um deles, com o fim de
amoridade judiciária requerente, vislumbrava um procedimento muito detcnçiío e entrega de uma pessoa procurada, teria aplicabilidade no
mais a1rojado do que a mcm facilitação do procedimento de extradição te•Tit6rio de outro; noutras pu lavras: a "aberfltra de fronteiras" para (IS
consagrado no Tratado da União Européia. decisões judiciais.
Assim. iniciou-se um processo de implcmcmação do reconheci-
mento mútuo no plano da cooperação judicial, através, inclusive, do 3.1. O prindpio do reconilecimemo nuíruo
Programa de medidas destinadas a aplicar o princípio do reconheci-
mento mútuo dt1s decisões penais (16). Duas soluções são apresentadas para a realização dessa neces-
Em "progressão oritmélica", essa via evoluía. Entretanto, com os sária "nbertura de fronreiras": a natural, da harmonização, e a mais
fatos ocorridos nos Estados Unidos da América cm li de se1cmbro original , do reconhecimento 111útuo (20). A via da harmonização se
de 200 I, tal evolução passou para uma "progressão geométrica", espe-
cialmente no relacionado u adoção de um novo procedimento pura a
(") Jornal Oflcial n.• C 332 E de 27-11 -2001, p. 305.
(") Jornal Ofic1al n.• L 190 ele t8-07-2002, pp. OOOt-0020.
1
(19) f-LORE, Daniel, hRcconnni~sance mutuelle, tlouhle incriminntion et rerrit~
('') Arligo 45.". alíneA c), do Plano de nções. rialité.. , / .1.1 reconnaissrmce mutu(JI/e des dh:i,\'lom· jurllcfttira.\· pélwle~· <lans J'Uuian
(") Anigo 49.•. alínea fi), do Plano de ações. europétiiM, Bru.<elas: IEE. 200 t, 1>. 66.
(" ) Reatiudo em t5 e 16 de ou1uh<o de t999.
6
<"'> OliSCA'tPS. Marie-Hélêne, "La n:connaissance muiUcllc ele~ décisions judi-
(' ) Jomal Oficial n.• C Ot2 de 15-0 t·200J, pp. 0010-0022. Ciaires penatcs", Aclllalitts de droil penal etlro{JI'Ctz, Bmxclas: La chartc. 2003. p. 86.

480 RP(.'(.' 16 ( 2006) I<I'CC 16 (2001\) 4K I


O CONTROI.O I>A VUI'UI INCRIMINAÇÃO f: 0 MANOM)Q DE DE71.NÇÃO.:.:__

apresenta imed iatamente inapl icável. primeiro porque ilusório é ten- fato de que todos os l:~stados-membros fundam suas leis nos princípios
tar harmonizar tudo (2 1), depois, os Estados-membros estão forte- da liberdade, da democracia e do respeito dos direitos do homem c
mente ligados às suas particularidades, sendo o processo de aproxi- liberdades fundamentais. bem como do Estado de Direito (24).
mação das legislações um tanto lento, portanto, toma-se mais viável De tal modo, o objctivo gemi do reconhecimento mútuo é confe-
o reconhec imento mútuo. rir à decisão judicial eficác ia total c di reta, em todo o território da
No âmbito da União Européia, o Tratado de Amsterdã, cm seu União Européia, criando operacionalidade ao exercício das açõcs por
artigo 29.", consagrou como objctivo da União "facultar aos cidadãos parte de cada um dos seus Estados-membros.
um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança e
justiça, mNiiame a instituição de acções em comum entre os Esta- 3.2. Reconhecilllento IIIIÍttto e confiança mútua
dos-Membros 110 domf11i0 da cooperaçtio policial e jttdiciária em maté-
ria penal". Para atingir cs.<;e fim (22), o exercício da soberania penal de O Ptíncípio do reconhecimento mútuo é fundado na pn:missa de que
cada Estado membro deve ocorrer cm partilha com os outros membros os f..stados-membros confiam mutuamente na qualidade de seus pro-
da União Européia, ou seja, para se alcançar o objetivo delineado no Tra- cedimentos penais nacionais. Essa contiança permite que a cooperação
tado, os Estados devem, baseados l1il confiança mútua ex istente, pres- judiciária entre eles seja alargada.
cindir de uma parcela da sua soberania penal para reconhecer, tam- Questão inicial é saber se essa premissa é verdadeira. Defende-se.
bém. as pretensões punitivas estrangeiras. Assim, para a abertura das inclusive pelo Conselho (25), que a confiança mútua, entre os sistemas
fronteiras nacionais às decisões judiciais estrangeiras, o Conselho Euro- penais dos Estados-membros, justifica-se facilmente na medida em que
peu de T~mpcre consagrou (23), como pedra angular, o Princípio do todos parlem ele um nível de desenvolvimento comum, assim como de
Reconhecimento Mútuo. uma visão comum sobre as garanti as processuais, presumida na adesão
Pelo Princípio do reconhecimento mútuo, uma decisão judicial, comum à Convençllo européia de salvaguat·da dos direitos do homem
tomada por uma autoridade judiciária de um Estado-membro será c das liberdades fundamentais c, ainda, na submissão ao Tribunal curo·
reconhecida c executada pela autoridade judiciária de outro Estado-mem- peu dos direitos do homem. Essa confiança fundamenta-se no artigo 6°.
bro com efei tos equivalentes aos por esta tornados. Tal reconheci- do Tratado da Uni i.ío Européia, que consagra ser esta assentada nos
mento é baseado na confiança recíproca depositada cm cada um dos dife- princípios de li berdade, democracia c no respeito aos di rei tos funda-
rentes sistemas jurídicos c judiciários, determinada na presunção de mentais do homem e das liberdades fundamentais.
que todos os Estados-membros apresentam sistemas jurfdicos pertinen- Com essa assertiva, afirma-se que o espaço europeu está baseado
tes e sofisticados, tanto em relação às disposições legais. quanto na na confiança mútua. Entretanto, apenas o contt'ário é verdadeiro, ou seja,
correta aplicação dessas normas. O rcconhecimcmo ainda se refot·ça no a conliança mútua é que deve decorrer da existência elo espaço judicial
europeu, e este ainda resta constru ir, pois a con fiança, no terreno, não
se decreta. É irreal imaginar que as autoridades judiciárias executarão

( 21 ) RODRIGUES. Annbeln Miranda c OUli'O, l'(lt'fl 11/IUI polftica ... , Cil., p. 54.
(ll) KERC:IIOVE, Gilles de. La recommissance.... cit.. p. 114.
(") Já em Cardiff assinalava-se. oo reconhecimento mútuo. a qualidade de ser ' MAros. Rica,.do Jorge Brngança de, "O principio do reconhocimento IIIIÍIUO
(")
aplicado na .!rea de coopernção penal europtoa. apontando uma necessária evolução na e o mandado de detenção europeu.., Rt,,isra Portugu~sa tlt Ci2ncia Crlmiua/, ar.o 14,
cooperação judiciária p..1.ra CJUC o combate à criminalidade, que mmbém evoluiu. fosse n.• 3, p. 328.
lllais efetiva. ( U) OESCAMPS, Mnrie-Uélêne, Lo recomraisstmct!... , cit, p. 87.

RPCC 16 (2006) RPCC IG (2006) 483


MÁRIO I:UAS SOLTOS/O JIÍNIOfl 0 CONTROW DA I)UPU. INC/IIMINAÇÃO E O MANDAJ)Q m_ OtTENÇ.ÁO..•

o princfpio do reconhecimento mútuo sem uma redução das divergên- Dentro desse contexto, é uma aproximação setorial e não global que
cias entre as legislações pen<~is dos Estados-membros (26). foi retida para conduzir a concretização do princípio do reconhecimento
Por outro lado, o controle cfctuado pelo Tribunal europeu do.• direi- mútuo em matéria penal. A diligência progressiva se funda no "pro
tos do homem não poderia, por várias razões, ser su ficiente. Além de grama de metlida.ç de.I'Jinadas à aplicação do princfpiu do reconheci-
o controle ser realizado 11 p1meriori, e le apenas poderá ser uti lizado me/l/o mâtuo 11as decis/Je.\' penais" , adotada pelo con~e lho.
após o esgotamento de todus as vias intemas, por possuir carátcr excep- 1\ primeira aplicação concreta (27) do princfpio do reconhecimcmo
cional. Já o tribunal de Justi ça das comunidades européias, segundo o mútuo se fez pela aprovação, cm 13 de junho de 2002, da Decisão-qua-
anigo 35.•. do Tratado da União Européia. está fortemente limitado no dro do conselho, relativa ao Mandado de detenção europeu c aos pro-
quadro do terceiro pilar. cessos de entrega entre os Estados-membros da União Européia (2!).
Enfim, não obstame a importância da jurisprudência do Tribunal Pela definição rcaliz:tda pelo artigo I .•, da Dccisiio-quadro, o Man-
europeu dos direitos do homem sobre a aproximação dos procedimen- dado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um
tos penais, ex istem divergências importantes entre os sistemas repres- Estado-membro com o propósito da detenção c entrega por um outro
sivos dos Estados-membros. 1\ ntinnação da confi anç<t mútua entre os Estado-membro de tuna pessoa procurada para o exercfc io de uma
Estados-membros ignora, ainda, a questão do alargamento da União acção penal ou p11ra n execução de uma penalidade o u uma medida de
Européia, q ue introduziu novas d i Fcrcnças no seu seio. Ou seja, a segurança privativas de liberdade. O Mandado de clc1cnção europeu pode
intensiva relaçiío mantida entre o direito penal c as liberdades funda- ser emitido tendo em vista fatos punidos pela lei do Estado-membro de
mentais j ustifica. em si, a recusa de todo o relaxamento de vigi lância emissão com penalidade ou medida de segurança privativas de liberdade
entre os Estados-membros a tft ulo individual. com duração máxima niio inferior a doze meses ou, quando uma con-
denação a uma pena ou uma medida de segurança foi aplicada, para con-
3.3. A aplicação do prindpio do reconhecimento IIIIÍIIIO denações pronunciadas com duração maior que quatro meses.

VG-se, com o reconhecimento mútuo. na cooperação em matéria 3.4. Reflexos do mandado de detenção europe11
pena l entre os Estados-membros da União Européia, uma nova lógica.
A conseq Uência no tável introduzida por esse processo reside na "judi- O Mandado de detenção europeu assumiu, de acordo com o citado
ciarização" completa do mecanismo de auxílio mútuo judicial. O auxí- dispositivo, a natureza de decisão judiciária, ou seju, ao coniJ·ário do pro-
1io mútuo clássico, baseado no diálogo entre Estados soberanos, não tem ced ime mo da extradição, o Mandado de detenção europeu dispensa
mais curso aqui, porque toda a decisão de um juiz poderá ser transmi- totalmente a intervenção do Poder Executivo de cada um dos Esta-
tida diretamente aos outros juízes sobre o território da União Européia, dos-membros, tomando mais célere o procedimento de entrega.
ser aí reconhecida e aplicada. sem que sobre ela ocorra qualquer con- Tal procedime111o é baseado em um modelo "lwrmoni;;ado" de
trole político. É. por conseguinte, natural que inquictudcs surjam dessa decisões judiciais, fundamentadas na confiança depositada cm cada um
i novaç~<l.

I
(17)Ror>RtGUil.,'i, Annbcln Miranda. O mandado.... cit., I'· 32, uoca 20.
(") RODRIGUES, Anabela M irandn. "O mandado de detenção CUI"O(>en - na via Entre•anto, conforme determina o anigo 3 I .... n.6 I, da Decisão-quadtO,
{lll)
da construç;lo de um sislema pcn;tl europeu; um p.'lSSO ou um s~thO'!", Revista Portu- ~ubsiste • aplicação do insoiluoo da cxoradiçilo nas relações entre Estados-membros c
gu•sa d• Ci~ncia Criminal, ono 13. n.• I. pp. 44-45. Esla<los terceiros.

·= 16 (2006) 1\l'tt 16 (<1106)


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,~_SOt.1'05~·~~·1-'J~0~N~IO::!II:.__ _ _ __ _ O CONTROI.O DA DUPlA INCRIMINAÇÃO é O M1\NDADO 1!1:. /!F.TfNÇÃO...

dos diferentes sistemas jurídicos e judiciários, que podem ser emitidas Diante de todo o exposto, o Mandado de detenção europeu apre-
por qualquer juiz ou tribunal com competência penal de um Estado-mem- senta-se com vários reflexos positivo.~. entretanto, cm algumas consi-
bro (29), com a finalidade de deter uma pessoa, que se encontre no ter- deraçf>es devem ser reexaminadas.
ritório de outro Estado-membro (30), pelos motivos elcncados, e supra
analisados. no anigo 2.". da Decisão-quadro. Assim. o procedimento de 4. Abolição do controle d e d u pla incrim inação
"en/rego" deixa de ser ditado pelo "pedido de emrega" para ser d itado
pelo "mandado" de detenção. e mitido pela autorid ade com petente. Questão q ue re vela proble mas é a abolição da dupla incriminação
Diante dcss!l ''despolilização". o procedimento de ent1·cga produ- para a execução do Mandado de detenç~o europeu. Apcsa1· das visíveis
zir-sc-á cm um prazo muito menor (3 1) fre nte aos prmws praticados d ilc rc nças e ntre os sistemas j uríd ico s, d iante da conriança mútua q ue
nos procedimentos de extradição, q ue, não raro, duravam a nos. de ve m dcmo nslr<ll', os Estados-membros, segundo '' norma descrita no
Outro J'Crlcxo. no Mandado de de tenção europeu do Princípio do artigo 2.", n." 2, da Decisao-q uad ro, devem; naquelas infrações atTola-
reconhecimento mútuo, é que se deixa de fa lar cm "cau.l·r1s de recusa dus e quando cominadas penas o u medidas de segurança privati vas ele
de exer:uçtio". q ue se falava no procedimento da extradição, para se liberdade não inferior, na pena rnáxirna, a três unos; cumprir o Mandado
falar em ''molivos de JU!o execuçtit>'', isto é, devido no alto grau de de detenção europeu, independentemente do controle de d upla incri-
confiança recíproca, revelou-se um "aligeimmento" das condições que minaçiio. Tal abolição é tida como uma das mais evidentes manifes-
"podem represenwr um endurecimelllo pena/no eJ(JO(;O europeu" (3 2). tações do Princípio do reconbecimento mútuo (3S).
A judiciari7ação do procedimento implica ainda a "mamrtençllo de O princípio da dupla incriminação é uma regra clássica da coope-
uma pe.çsoa em de/ençtio obedece às mesmos condiçties que l'lllem paro ração intemacional em matéria penal (3(,), a qual consiste cm que os
qualquer pessoa detida, previsws no direilo processual inferno" (33 ), fatos, que podem dar ensejo à ex trad ição, devem ser considerados
gozando, o detido, de ga1·ant i a~ como ser, a qualquer tempo, colocado crime, quer no Estado requerente, quer no Estado requerido (>7 ). o q ue
em liberdade provisória ('4) ; ser informado sobre u ex istência e o con- se mostra j ustificado pelo fato de a extradição pressupor um acordo, e ntre
teúdo do mcmdado; sobre a possibilidade de consentir ou não, c suas os Gsrndos, de quais valores pro teger (38).
implicações, na sua e ntrega; de be neficia r-se dos serviços de um defen- F.ntrc a manutenção e a exclusão tot!tl da ex igência do controle de
sor c de um inté rprete; assim como, por conseqUê ncia jurídica da sua dupla incriminação. no Mandado de detenção e uro pe u, foi consagrada
e ntrega, bcncfici<Jr-se do instituto do desconto. unHt solução híbrida. Tal solução, apontada no m1igo 2.", n.• 2, da Deci-
são-q uadro, informa que as pessoas acusadas ou conde nadas pelas infra-
çõcs nele arroladas, caso puníveis no Estado~missor com pena ou medida
(") Uherio<n~<:me será utilizado, prua denominar o Ustadc).mcmb<O d<O que pro- de segurança privativas de liberdade com duração máxima não inferior a
vém o Mandadn de detenção europeu, o lermo "f;..stado-emi\~r".
('") Daqui por diante nliliz:>r-se-á. prua denominar o Est:odo·memb<O que recebe
o Mondado de dcteoç3o europeu. o termo "E>tado-executo~·. (") MATOS,Ricanlo Jorge Braganço de, O />I'Í>rt;lplo .... cit., p. 348.
('') Segundo os p111zos do artigo t7.•. da Decisâo·quadro. ('1•) SERRANO,Mário Mendes e outros. C(JOpemçtio lmmwcional pelltl~ vol. I,
(") ROt>RICUJlS, Amobela Miranda, O mandado... , cil .. p. 38. l..i•boa: CEJ. 2000, p. 47. nota 82.
(") ROJ>IU!H/1'~· Anohelo Miranda. O malldtu/()..., cit., J>. 36. ('') Olii.(MDO, Filomena. "A cxU':.tdição'', /Joll'lim do Mhu'stério da Justiça.
(l') O dircitc> no EsJado-cxccutor regulo o proccduncnto de entrega (detenção, n.• 367, j unho de 1987, p. 36.
garanLias processu"is, possibil idade de colocação cm libe1·dadc. etc.), conforme se (") t>J\ADJlL, Jean c COR'J'ENS, Geen 11pud M A'I'OS, Ricardo Jorge 13ragançn úe,
de1>rccndc doli :u·1 igo~ 9.0 e scg.s.~ da Dccisãcrqundi'O. O principio..., cit., p. 349.

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MÁRIO EU/IS SOLTOSKI JÚNI0/1 O (.'0lfl710W llA I>UI'I.A INCRIMINAÇÃO E O MIINDADO DE DE:T'ENÇ>;;A'.:.:O::...::.·- - -

três anos, serão entregues sem o controle de dupla incriminação. ou seja, sária, pois é natural ocorrer divergências entre os Estados-membros
naquelas infmções arroladas, caso preenchido o requisito da duração da sobre quais valores eleger para tutelar.
pena. não há a necessidade de ser o fato incriminado também no direito A noção de reconhecimento mú tuo retorna ao aspecto procedi-
do Estado-executor para q ue a e ntrega seja realizada. Caso não se amolde mental elas coisas (44 ). Considerando o Programa (45) de medidas des-
a estas ocorrê ncias, o contro le de dupla incriminação subsiste (39) para a tinadas à sua aplicaçílo, o "princípio do recouhecimento mútrw das
entrega da pessoa com base num Mandado de detenção europeu. decisões penais pre.l'.l'ltpc)e a COI!fiança recíproca dos e .wac/os-Membms
A vantagem desse método estaria no fato de não abolir a exigên- nos respectivos sistemas de justiça penal. Esta confiança repousa, em.
cia da dupla incriminação nas condutas que revelam Welumsdwuung c, especial, na plataforma romum constituída pelo empenho dos Esta-
deswrte. incriminadas cm apenas alguns países (40). dos-Membros 110s princfpios da liberdade, da democracia, do respeito
Entretanto. a discussão sobre a necessidade ou não do princípio dos direitos lumwnos e das liberdades fwulamemais, e do Estado de
da dupla incriminação conserva toda a sua pertinência. direito".
Entretanto, isso não se refere à questão ele fundo do direito penal.
4. 1. A desnecessidade da supresscio do collfrole de dupla incri- As diferenças, no que tocam as incriminações, não são d a competênci a
tniuaçüo da confiança mútua , mus ele política criminal c mais geralmente elo sis-
tema de valores dos Estados-membros (46).
Importante destacar que desde a proposta apresentada pela Comis- Na maioria d as vezes as d iferenças nas incrimin ações traduzem-se
são já se pleiteava pela abolição geral da cláusula de dupla incrimina- dos diferentes valores ado1ados pelos Estados. Isso se toma mais claro
ção. argumentando-se que a sua manutenção contrariava o princípio do quando nos deparamos com delitos relacionados à ética ou à moral.
reconhecimento mútuo (41 ). Consistia esse argumento, de cariz ideo- Exemplos são as condutas de abortamento e eutanásia, as quais, depen-
lógico (42), em dizer que o Reconhecimento mútuo, como já analisado, dendo da orientação ética ou moral de cada Estado, poderão ser, ou
repousa na confiança mtíltw c que constituiria incompatibi lidade com não, incriminadas.
seus objctivos a exigência da dupla incriminação. Não se trata de desconfiar do siste ma j urídico de o utro Estado-mem-
l~ntrctanto, se a abolição ela d upla incriminação parece clccOITer bro, mas sim de aplica•· o u coope rar para aplicar a legislação apenas
da confiança e do reconhecimento múwo (43), tal ligação não é ncces- àqueles valores que o Estado-membro elegeu tutelar.
Pode-se confiar e ao mesmo te mpo reconhecer as diferenças entre
as legislações, pois "a confiança será séria se ela não for cega " (47).
Um dos exemplos que podem ser suscitados é o que se relaciona
(") Notc·sc que o 1cx1o do Oecislio-quadro deixou ao alvedrio do legislador, no à eutanásia. Pode-se até argumentar que essa não faz parte do rol
momemo da lrnnsposiçào do diploma comunllário, a faculdade de exigir, ou não, o con-
lrole de dupla incriminaç-ão na~ infmções não arroladas no seu :111igo 2.0, n.• 2. O legis-
lado I· português, por sua vez. dcternunou que, nesses casos, s6 será ndmiss(vel a
cnt1·cga da pc..o;soa reclamada se os fatos que justificam a emissno do mandado de
dctençno euro1>eu consticufrcm inrntção puní,•el t>ela lei J)OI'tugucsn, indcpendente- ('") l~l.úiUi. Dnniel, Rcco1maissmrc~ mutuel/e, doublc .... ciL, p. 67.
lnente dos seus elementos constituti vos ou da sua. qual ificação. 1 (") .Torn,t Ol'iciot n." C 012 de 15-01-2001 , pp. 00 10-0022.
(oiO) RODRIGUES, Anabela Miranda, O mandado .... cil., p. 40. (4<t) Podcr~sc~ia lcvor cm consideração. além dessns difC.I'eiiÇfl.s quanto ao direito
(") RODRIGUES, Anabela Miranda, O mandado .... cil., r>. 39. nola 42. mntel'ial. as grandes tlif'ercnças prooessuais existemes entl'e ns legislações dos Esta-
(•l) Ft.(>Rt;. Oaniel. Rccomrnisstmce mmutlle. doubl~... , eh .. p. 67. dos-membros. entretarno, no presente ensaio apen3S nos reportaremos àquelas.
( 1) FLORE. Oá!niel, RtconnaiSS<mc~ mutut!lle, double.... eh.• p. 67.
4
('') RODRIGUES, Anabclo Mirnnda, 0 n1011dado .... cil., p. 39.

488 IU'CC 16 (2006) RFCC 16 1'2006) 489


MÁNJ() t:UAS SOI.'I'OSKI JI)NI.:::
O;; N_ _ _ _ __ O CONTHOW /Ji\ OUN.A INC'IUMINA(;lO I! O MANOADO DE OE:/'ENÇÃO...

inserido na Decisão-quadro cm estudo, entretanto, não se pode perder carrega o procedimento, eis que ao impor um maior controle. aumenta
de vista que esse catálogo é por demais genérico, possibi litando, inclu- o risco de impu ni dade.
sive, que a eutanásia seja vislumbrada na infração "homicídio voluntá- A própriu comissão ilustra bem esse argumento, ao afinnar que
rio" (48). Recentemente, a 11olanda e a Bélgica legalizaram a eU!aná- "Os ins/rumemos jurfdicos ctctua/meme vigemes em matéria de reconhe-
sia, isto é, tais Estados-membros admitem que pacientes que preencham cimento de decüães estnm~:eiras estabelecem qui' o reconhecimento
detenninados rt:quisitos legais pOSSUem o "direito de morrer". Esses dis- pO<Ie ser recus(l(/0 nos rasos em lJue não existe um crime dual. Se
positivos legais são manifestações concretas dos valores adotados pelos este requisito do reconhecimemo mtÍ/110 se mantiver. dever-se-á veriji-
cidadãos de cada um desses E$tados-membros. Entretanto. com a eli- cat; no clmbito de cada proudimemo tle validação, se este critério se
minação da exigência do controle da dupla incriminação no Mandado encontra J'atisfeito. Hsw aborrlaRem implica tmlll fase adiciotwl em
de detenção europeu. esses valores seriam desconsiderados. Em outms todo e qualquer procexlimemo de validação. tomando-o. em alguns
palavras, não obstante seus valores apontarem noutro sentido. esses casos, considl'ravl'imeme moro.w" (52).
Estados-membros estariam obrigados a cumprir um Mandado de deten- O controle de dupla incriminação pode ser realizado de duas manei-
ção europeu emitido por qualquer outro Estado-membro para deter e ras: í11 abstmcto c iu concreto. Na primeira. vetifica-sc se a qualificação
entregar uma pessoa que foi condenada ou está sendo processada pela jundica realizada pelo Estado requerente sobre os fatos é compatível com
prática de eutanásia, fato esse admitido cm suas legislações. a qualificação jurídica prevista na lei do Estado requerido, mesmo que
Deve-se lembrar, ainda, que o processo de construção do espaço não haja identid<tde material entre ambas. Já na segunda, a verificação
europeu ocone apenas sobre um pressuposto de consenso e11tre os Esta- engloba, além da qualificação jurídica dada nos Estados. ainda outros
dos-membros sobre os valores passíveis de tutela penal e, tal consenso, elementos objetivos e subje1ivos, que possam influenciar na punibilidade
ocorre à revelia de um debate público c democrático sobre esses bens, do agente. à lul. da legislação do Estado requerido (Sl). Noutras pala-
os meios adequados de pt·otcgê-los c práticas de decisão (49). vras, a exigência da dupla incriminaçao pode ser examinada, a princí-
Ai nda sobre o exemplo da 13utanásiu, uma possível recusa por pio, sob dois prismas (S~). na versilo mais radical, a dupla incriminação
parte de um dos dois Estados-membros no cumprimento de um Man- implica, não apenas na análise de ser o fato uma infração no âmbito do
dado de detenção europeu não implical'ia desconfiar do sistema legal e/ou direito do Eiitaclo de execução, mas também se deve proceder a um
judiciário do Estado-emissor, mas sim de cooperar apenas para a per- exame de todo~ os elementos suscetíveis ele influenciar na punibilidade
secução de atentados a valores que ndota. ou na justificação do futo. Já na versão mais célere, a dupla incri-
Dcstarte, o reconhecimento mútuo. muito embora embasado na minação imp lica apenas vcrifi car se os fatos correspondem a uma
confwnça recíproca, pode subsistir, sem dú vidas, perante o controle da infração prev ista no direito do Estudo de execução. Na prática css) se
dupla incriminação e vicc-versa. constata que o Ju iz, quando é chamado para apreciar a existê11cia da
Outro argumento ('O), agora de cnrátcr técnico (5 1), consiste na dupla incriminação, procede a uma avaliação i11 (lbstmto levando em con-
afinnação de que a exigência do com role de dupla incriminação sobre-

<") Comunicação dn COOIII130 00 Conselho e ao Parlamento Europeu Rccoohe-


(") Artigo 2.•, u.• 2, item 14. cimeuto mútuo de decisões nnais cm matéria penal.
("') RootuouES, Annbetn Mornndo. O IIKm<latlo.... cit .. p. 30. (:U) fLORE, D-dniel, Recomwissnnce mututll~. tlouble.... cit., pp. 69·70.
("') DtSCA,II'S, Manc·Htlên<:. UI ,.coomai.s.ra11c..... eit .. pp. 93 e ss. ("} rtcmmalssance... , cit., p. 93.
DF-'ICAMI'S. Maric·Hét.\ne, /.o
(") Ft.oRE, Daniel. R«<IIIIaiJsaoK:~ muw~l/e, clm•bl~.... eit., p. 67. ($$) FLORE. Do111et. R«01111aissance nwtu~/1~. double.... cit., p. 70.

RPCC 16 (21106) RI'(.'C 16 all06) 491


MÁRIO Ub\S SOUTJSM JÚN::/0:.:;11:...._ _ _ __ _ O C:ONI1<0W 1M llUPV. INC:RIMINAÇJ.O E O MANDADO UE DhTF.NÇ.ÃO.

sidcração, além dos elementos constitutivos da infração, os clememos são concebe uma limitação ao alcance da soberania, assim como o
objctivos tocantes à punibi lidade, cm especial, as causas de justilicação assentimento da validade do sistema de valores dos outros Estados-rnem-
do fato. bros para a perseguiçâo de fatos que relevam da soberonia destes, ou
Deve-se salientar, entretanto, que a Decisão-quadro apenas faz •de- seja, a passagem de um im[JI!riali.I'IIIO de soberanias para um reconhe-
rência à desncccssidnde do controle de dupla incriminação, subsistindo cimento tmÍIIIQ de soberanias limitadas (51).
um comrole de incriminação dos faros no Estado-emissor realizado Nesse sentido, tal abolição da Cláusula de dupla incriminação. que
pelu autoridade judiciária do Estado-executor. Tal controle, que cabe à dá sustentação ao Mandado de detenção europeu pode ocultar uma
autoridade judiciária do Estado-executor, ocorrerá da seguinte forma (56): rendência parti privilegiar um 'espaço penal' europeu repressivo: ulio
pl'i111ciramente, u•n contro le genérico, o nde se verificará se o fato que interessa 'que crime é', imeressa que 'é crime'! (SR).
deu origem ao Mandudo ele detenção eu rope u faz pane da I ista de
incriminações constantes na Decisão-quadro, e ainda se foram emiti-
dos por uma autoridade comp~ente; depois, um controle jurídico, que S. Conclusiio
consiste no controle de incriminação do fato no Estado-emissor. onde
a autoridade judici~rin do Estado-executor fica subordinada à definição Após apresentados os motivos da caducidade do instrumento clás-
legal dos fatos atendendo aos elementos constitutivos do tipo legal do sico de auxrlio mútuo internacional c discorrido sobre o nove\ instru-
deli to tal como p•·evislo na legislação daquele e não na sua legislação. mento de cooperação internacional. desde o seu fundamento até os seus
O•·a, a própria Decisão-quacb·o, mesmo abrindo mão do cont role de reflexos, para ulteriormente demonstrar os problemas da supressão do
dupla incriminação, determina outro controle, que também é complexo controle do dupla incriminação no Mandado de detenção europeu, con-
c moroso, e pode causar atrasos no seu cumprimento, mesmo porque clui-se pela necessidade de se optar por outro caminho para a C1iação
parece ser muito mais dificultoso para a autoridade judiciária do de espaço penal europeu.
Estado-executor proceder ao controle de incriminação do fato sob a O caminho do reconhecimento mútuo, até aqui percorrido, não
6gide da legislação do Estado-emissor. do que um controle sob a sua levan1, de per ~i. uo lugar deseJado. Há a necessidade, para se atingir
própriu lei. o objetivo planeado, de tril har também o caminho da harmonização.
Carece evidenciar, destarte, que facilitar o procedimento não é um A aplicação do princípio do reconhecimento mútuo comporta o
dos objetivos do Conselho e, portanto, não pode ser utilizado como risco de forçm· certos Estados-membros, em deLI'imcnto da evolução
:.rgumento para suprimir o controle de dupla incriminação. Outro que já se alcançou, a participar da aplicação de procedimentos penais
exemplo disso é a Decisão-quadro relativa ao congelamento de bens, estranbos que dão menor proteção em termos de direitos fundamen-
onde se criou em complexo procedimento, que não buscou, de maneira tais. A tênue relação entre o direito penal e as garantias fundamenmis
alg uma, acelerar o procedimento. Assim, se os procedimentos ditados exige, ao contrdrio disso, uma grande coesão das garantias processuais
pelo Conselho tendem a ser mais morosos, por q ue enlílo não dar prio- mínimas. A harmonização, por seu wmo, atenua as diferenças existe mes
l"idade às garantias indiv iduais? entre os sistemas jurídicos, faci litando, inc lusive, a implementação do
Refutados os argumentos apresentados para a ausência da Cláu- reconhecimento mútuo, mas se apresenta lenta c diffcil. Portanto, ante
sula de controle de dupla incriminação, toma-se patente que tal supres-

("} Ft.ORH, Daniel, Reconnaís.ftmce tmlluelle, donbl•..., cil .. pp. 73-74.


(") RODRIGUES, Annlx:l" Mirnnda, 0 mtmdndo..., cit., pp. 4 t -42. ($3) R<)I) IH(jUI.J.S, Anabela Mimncln, O mandado ... , cit., p. 44.

4?2 RPCC IG(~) RI'CC 16 12006) 493


M1ÍRIO IWAS SOI.'rOSKI JÚNI0/1

as deficiências das duas vias, que sejam aplicadas de maneira a se


complementarem.
Essa complementaridade cnlrc a harmonização e o reconhecimenlo
mútuo deve figurar, inclusive, no Mandado de dclcnção e uropeu. Não
se pode admilir que um instrumento de cooperação inlernacional seja
baseado apenas na confiança múiUa. independentemente de qualquer
aproximação das legislações dos E.~tados-mernbros, onde as garantias
individuais. conquistadas durJnte séculos, sejam descartadas sumaria-
menle. como o que ocorreu com o comrole de dupla incriminação.
Tal supres.~ão, claramclllc forçada pelos fatos ocorridos cm 11 de
setembro de 200 I; mesmo porque o Conselho extraordinário (59) que rei-
tera o seu apoio c legi1irnidadc à invasão do Afeganistão por tropas
cs1ado-unidcnses, 1ambém reafirma a sua determinação em suprimir o JURISPRUDÊNCIA CRÍTICA
princípio da dupla incriminação; dá preponderância aos Estados com sis-
temas penais repressivos, nivelando por baixo as garantias processuais
penais, ins1ando uma orientação repressiva e securitária.
Essa orientação latente de repressão vem à tona em d ias como o de
hoje (07 de julho de 2005), quando umu série de explosões mata e
leva o caos a Londres. Da mesma m;meira como ocooTeu cm 2001, qual
a garamia indiv id ual q ue será suprimida agora?

(,.) 8ruxela.<, 19 de OUIUbro de 2001.

RJ'(X; 16 (2006)

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