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QUESTÕES FILOSÓFICAS CONTEMPORÂNEAS EM EDUCAÇÃO:


MULTICULTURALISMO E POLÍTICAS DA DIFERENÇA

Wivian Weller1

Resumo:
O debate sobre Multiculturalismo e Políticas da Diferença tem ocupado nos últimos anos um
espaço ascendente e importante, tanto na academia, como no campo político-jurídico, no
âmbito dos movimentos sociais e das políticas públicas. O multiculturalismo vem se
configurando como um campo de estudos interdisciplinar e transversal, que têm tematizado e
teorizado sobre a complexidade dos processos de elaboração de significados nas relações
intergrupais e intersubjetivas, constitutivos de campos identitários em termos de raça/etnia,
gênero, classe social, gerações, orientação sexual, religião/crença, pertencimento regional,
entre outras. Nesse sentido, a Filosofia e a Educação devem romper com os essencialismos e
binarismos muitas vezes presentes nos debates educacionais, assumindo uma análise crítica e
criativa das relações entre sujeitos diferentes, criando condições para compreender as
especificidades e conflitualidades dessas relações e elaborando formas emancipatórias de
relação social que favoreçam a superação dos processos de sujeição e exploração que têm
marcado nossa história. Devem incorporar-se à discussão que contempla o hibridismo – no
sentido elaborado por Bhabha – como principal componente de nossas identidades,
desenvolvendo uma idéia de cultura e de nação, na qual as diferenças constituem partes
integrantes dos estados nacionais contemporâneos.

Palavras-chave: Filosofia contemporânea. Multiculturalismo. Políticas da diferença.

O debate sobre Multiculturalismo e Políticas da Diferença tem ocupado nos últimos


anos um espaço ascendente e importante, tanto na academia, como no campo político-jurídico
e no âmbito dos movimentos sociais. Mas de acordo com Stuart Hall (2003) a proliferação do
termo multiculturalismo não contribuiu para estabilizar ou esclarecer seu significado, e assim
como outros termos correlatos - como raça, etnicidade, identidade, diáspora -, só é possível
utilizá-lo sob “rasura”. O autor também faz uma distinção entre as denominações
multicultural e multiculturalismo afirmando que: Multicultural é um termo qualificativo.
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Doutora em Sociologia pela Universidade Livre de Berlim. Professora adjunta da Faculdade de Educação e do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília. Fonte mantenedora: FE-UnB. Endereço
eletrônico: wivian@unb.br
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Descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por


qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir
uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade “original”.
Enquanto que: Multiculturalismo é um termo substantivo, que se refere às estratégias e
políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e de multiplicidade
gerado pelas sociedades multiculturais (Stuart Hall, 2003, p.52).
O ismo (de multiculturalismo) tende a converter o multiculturalismo em uma doutrina
filosófica, reduzindo-o a uma singularidade formal e fixando-a numa condição petrificada. No
entanto, o multiculturalismo não é algo novo e tampouco representa uma doutrina específica
ou um estado de coisas já alcançado. O termo multiculturalismo descreve uma série de
processos e estratégias sempre inacabados e assim como existem distintas sociedades
multiculturais, também podemos constatar distintos multiculturalismos e distintas correntes
teóricas discutindo os distintos multiculturalismos.
Duarte & Smith (1999) apontam ainda uma distinção entre condição multicultural e
multiculturalismo: A expressão condição multicultural descreve a presença demográfica de
diferentes grupos étnicos dentro de uma população, relacionando fatores adjacentes às
experiências históricas de grupos específicos, crenças culturais, valores e status social dentro
da sociedade geral. Por contraste, a expressão multiculturalismo tem a ver com a forma como
um indivíduo interpreta ou vê o mundo e percebe o seu lugar nele – sendo o mundo esse lugar
caracterizado pela condição multicultural. Completando, o multiculturalismo tem a ver com a
forma como um [indivíduo] avalia esse sentido de espaço para si próprio e para o outro e com
o que se propõe a fazer em resposta à condição multicultural (p.3, tradução nossa).
De acordo com os autores acima citados o multiculturalismo pode ser visto como uma
proposta ou um conjunto de estratégias políticas em resposta à condição multicultural. Para
Duarte & Smith (p.4-6) essas estratégias políticas ou “posições multiculturais” estão
fundamentadas em dois princípios básicos a serem adotados pelos multiculturalistas, ou seja:
1. Na rejeição ou contestação dos Estados Nacionais como um melting pot cultural.
Segundo os autores, os multiculturalistas norteamericanos compreendem os EUA
como uma democracia com diferentes línguas, grupos étnicos e uma diversidade
de estilos de vida, tradições e valores. Conseqüentemente, os multiculturalistas
rejeitam o ideal de um EUA como um “caldeirão” no qual essas diversidades são
assimiladas em uma cultural comum.
2. No papel oposicionista assumido pelos multiculturalistas em relação ao
assimilacionismo cultural, que tem sido a força política dominante nos EUA.
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Nesse papel os multiculturalistas questionam e, muitas vezes, rejeitam tais idéias e


instituições que descartaram ou exerceram repressão sobre o pluralismo, uma das
características centrais da condição multicultural.
Outro termo que vêm ganhando espaço no debate sobre Multiculturalismo e Políticas
da Diferença diz respeito à noção de hibridismo. Os estudos pós-coloniais (cf. entre outros:
Bronfen & Marius, 1997) assim como as ações políticas de diferentes movimentos têm
apontado para a necessidade de compreensão do hibridismo e da ambivalência, que
constituem as identidades e relações nas sociedades multiculturais. A idéia de hibridismo de
Homi Bhabha (2001) torna transparente o fato de que a natureza humana por si só já está
constituída por identidades híbridas, por identidades que estão num contínuo trânsito,
cruzando-se com várias culturas, gerando ambivalências, entre-lugares e espaços liminares.
Tal concepção vai além do conceito de diversidade cultural e propõe a importância do
reconhecimento das diferenças culturais. Reconhecer as diferenças culturais significa ir além
do reconhecimento do racismo e das sociedades pluriétnicas que caracterizam grande parte
dos estados nacionais contemporâneos:

Defendendo a utilização do conceito de “diferença cultural”, Bhabha


chama a atenção para um problema que se faz presente em
praticamente todos os campos das chamadas ciências humanas, mas
que seria uma espécie de “território perdido” nos debates críticos
contemporâneos. Sua proposta é “pensar o limite da cultura como um
problema da enunciação da diferença cultural”, o que significa ir além
do reconhecimento e do acolhimento das diversidades, da crítica aos
racismos e discriminações de todas as ordens, de exclusões e
inclusões, individuais e grupais. Se a cultura é um problema na
medida em que “há uma perda de significado na contestação e
articulação da vida cotidiana entre classes, gêneros, raças e nações”,
deve ser teorizada justamente aí (Fischer, 1999, s/p).

De acordo com Bhabha não podemos compreender a diferença cultural “como um


jogo livre de polaridades e pluralidades no tempo homogênio e vazio da comunidade
nacional” (p.227). A diferença cultural deve ser vista sobretudo como uma forma de
intervenção e negociação:

A analítica da diferença cultural intervém para transformar o cenário


de articulação – não simplesmente para expor a lógica da
discriminação política. Ela altera a posição de enunciação e as
relações de interpelação em seu interior; não somente aquilo que é
falado, mas de onde é falado, não simplesmente a lógica da
articulação, mas o topos da enunciação. O objetivo da diferença
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cultural é rearticular a soma do conhecimento a partir da perspectiva


da posição de significação da minoria, que resiste à totalização (p.228
– grifos da autora).

Nessa perspectiva, o multiculturalismo vêm se configurando como um campo de


estudos interdisciplinar e transversal, que têm tematizado e teorizado sobre a complexidade
dos processos de elaboração de significados nas relações intergrupais e intersubjetivas,
constitutivos de campos identitários em termos de raça/etnia, gênero, classe social, gerações,
orientação sexual, religião/crença, pertencimento regional, entre outras. A educação
multicultural representa uma importante ferramenta, pois é “somente através do processo de
dissemiNação – de significado, tempo, povos, fronteiras culturais e tradições históricas – que
a alteridade radical da cultura nacional criará novas formas de viver e escrever2” (Bhabha,
2001, p.234).

Multiculturalismo e Políticas da Diferença: exercendo a liberdade de ser e de ser


reconhecido nessa nova forma de ser

Situada neste contexto marcado por políticas excludentes e discriminatórias, violência,


perda de identidade, pluralismo cultural, etnocentrismo, problemas sociais e políticos, entre
outros, a prática educacional também está revestida de artimanhas que – mesmo sem querer –
acabam reproduzindo ou contribuindo para a manutenção das desigualdades. Portanto, o
trabalho filosófico, político e educacional deve estar direcionado para uma “prática
libertadora, não no sentido de restaurar alguma suposta natureza ou identidade perdida,
alienada ou mascarada, mas no sentido de liberarmo-nos daquilo que somos para exercer a
liberdade de ser de alguma outra forma” (Kohan, 2003, p.90). Partindo da premissa de que a
libertação daquilo que somos ou daquilo a que estamos apegados (por exemplo: teorias
previamente elaboradas e não mais questionadas, modelos curriculares prontos, concepções
pré-formuladas sobre infância e juventude) é fundamental para que possamos exercer a
liberdade de ser de outra forma, e, ao mesmo tempo, de sermos reconhecidos nessa nova
forma de ser, apresentaremos a seguir o aporte de alguns filósofos, que tem contribuído para a
construção desse novo ser e de suas especificidades de gênero, raça/etnia, de classe, de
pertencimento geracional, religioso, regional, dentre outras.

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Essa nova forma de viver e recriar a cultura nacional também pressupõe uma revisão da literatura comumente
utilizada em sala de aula, responsável, em grande parte, pela proliferação de esteriótipos em relação à migrantes
de origem turca na Alemanha ou em relação aos negros e indígenas no Brasil. Sobre este tema cf. Weller, 1995.
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Partindo da premissa de que a libertação daquilo que somos ou daquilo a que estamos
apegados é fundamental para que possamos exercer a liberdade de ser de outra forma e, ao
mesmo tempo, de sermos reconhecidos nessa nova forma de ser, o aporte de alguns filósofos
contemporâneos tem contribuído para o reconhecimento desse novo ser e de suas
especificidades de gênero, raça/etnia, de classe, de pertencimento geracional, religioso,
regional, dentre outras. Para tanto faremos uma breve menção aos aportes do filósofo Charles
Taylor e da filósofa e cientista política Nancy Frazer para a prática educacional, enfatizando a
importância do reconhecimento das diferenças bem como das políticas redistributivas, como
condições necessárias para o desenvolvimento de sociedades mais democráticas e igualitárias.

Reconhecimento e redistribuição: as contribuições de Taylor e Fraser

Os autores acima citados vêm discutindo e colocando “a política do reconhecimento3”


como um tema central para uma teoria crítica das sociedades contemporâneas. Existe uma
relação entre os trabalhos desses autores, mas também é possível observar divergências ou
diferentes propostas de construção das políticas de reconhecimento.
Para Charles Taylor (2004) “a política do reconhecimento”, surge como uma exigência
de vários setores “em favor de grupos minoritários ou ‘subalternos’, em algumas modalidades
de feminismo e naquilo que se chama política do multiculturalismo” (2004, p.241). O autor
parte do princípio de que nossas identidades são constituídas, em parte, pelo reconhecimento,
ou seja, existe um forte vínculo entre identidade e reconhecimento. Indivíduos ou grupos que
vivem a experiência do não-reconhecimento ou do reconhecimento inadequado
(reconhecimento errôneo) podem sofrer danos decorrentes dos estigmas e das hostilizações
sofridas, desenvolvendo, assim, “identidades deterioradas” como Goffman (1988) preferiu
denominar. Para Taylor o reconhecimento adequado não é uma cortesia, mas uma necessidade
vital, uma vez que nossa identidade está vinculada à experiência do reconhecimento que se dá
na relação com o outro: “Definimos nossa identidade sempre em diálogo com as coisas que
nossos outros significativos desejam ver em nós – e por vezes em luta contra essas coisas”
(Taylor, 2004, p.246). Negar o reconhecimento dessas identidades seria uma forma de
opressão, como já apontado pelo feminismo, movimento negro assim como pelos teóricos do
multiculturalismo. De acordo com Nascimento:

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Título de um famoso ensaio de Taylor que recebeu comentários de vários autores, dentre os quais: K. Anthony
Appiah, Jürgen Habermas, Steven C. Rockefeller, Michael Walzer e Susan Wolf (cf. Taylor, 1998).
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Taylor defende um liberalismo “mais tolerante” e não procedimental


para sociedades multiculturais, a partir do qual seja possível não
somente reconhecer a sobrevivência cultural como meta legítima, mas
também reconhecer o “igual valor de diferentes culturas”. Ou seja, não
se trata apenas de reconhecer o direito de certas comunidades culturais
de sobreviverem, mas reconhecer o igual valor das diversas culturas
existentes (2005, p.122-123).

Taylor vislumbra a possibilidade de “igual respeito às diferentes culturas” a partir do


processo de “fusão de horizontes” dos indivíduos (conceito utilizado por Taylor em alusão a
Gadamer; cf. Taylor, 2004, p.270). A “fusão de horizontes” pressupõe não somente o estudo
de diferentes culturas, valores e crenças, mas, sobretudo, o estabelecimento de relações
recíprocas entre indivíduos de diferentes culturas: A “fusão de horizontes” ou comparação
entre culturas implica ainda em um processo de “aquisição de novas linguagens e isso só é
possível através da transformação de meu juízo inicial em relação à outra cultura que eu só
posso ter na medida em que entro em contato com ela (Mattos, 2004, p.150).
Para Taylor o campo da educação (no sentido amplo) deve ser o principal locus desse
debate e de implementação de políticas de reconhecimento. As universidades e escolas devem
alterar seus currículos e abrir espaços para que “mulheres e pessoas de raças e culturas não-
européias” tenham maior visibilidade e sejam incluídas nos currículos e livros didáticos
(p. 269). O autor destaca que é preciso mudar as imagens distorcidas construídas sobre esses
grupos e fornecer elementos de identificação positiva. Além das críticas dirigidas a Taylor e
ao seu “liberalismo tolerante” (cf. Mattos, 2004; Nascimento, 2005), especialistas no campo
educacional criticam a tese tayloriana que reduz o problema a uma questão de não-
reconhecimento ou reconhecimento inadequado das mulheres, negros, indígenas, migrantes,
homosexuais, entre outros:

Com sua filosofia do reconhecimento, Taylor sugere que existe uma


verdade sobre a categoria que só necessita ser reconhecida, à medida
que as vendas do preconceito comecem a cair de nossos olhos. Taylor
não discorda das categorias, ao menos não diretamente. Ao denunciar
“o aprisionamento de uma pessoa em um modo de ser falso, distorcido
e limitado”, direciona nossa energia moral e política no sentido de
liberar o modo de ser verdadeiro, preciso e ilimitado de uma pessoa.
Meu receio é que isso seja de pouca valia para nos dissuadir da crença
de que, se não fosse por essa tradição de reconhecimento inadequado,
enxergaríamos a natureza (verdadeira) uns dos outros e
compreenderíamos exatamente as qualidades que hoje estão
encobertas pelas forças sociais (Willinsky, 2002, p. 36-37).
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Segundo Willinsky não estaríamos enfrentando um problema de não-reconhecimento


ou de reconhecimento inadequado de determinadas categorias, grupos ou indivíduos nas
sociedades contemporâneas, mas, sobretudo, um processo de mudança do significado e da
significância das categorias: “Aqueles que ocupavam o poder sentiram-se compelidos a
redefinir o status político das mulheres, por exemplo, depois de terem sido persuadidos pelas
sufragistas de que recusar o direito de voto às mulheres constituía prática democrática
inaceitável” (p.36). Ao invés de afirmar que as mulheres foram erroneamente reconhecidas o
autor destaca a necessidade de analisarmos as formas pelas quais “os homens constituíram,
pelos poderes de que foram investidos pelo Estado, o status legal da categoria mulher”. Desde
Platão aos filósofos modernos como Nietzsche, Schopenhauer, Hume e Descartes, buscou-se
sempre destacar a deficiência ou inferioridade, como elementos constitutivos da categoria
mulher:
Dizer que eles consideravam as mulheres de forma errada é considerar
as divisões como determinadas e fixas, ainda que terrivelmente mal
interpretadas. Com isso, perde-se de vista o fato de que a própria
categoria é em grande parte construída pelo homem. A categoria é
constituída por aqueles que ocupam o poder, segundo sua própria
imagem da mulher e que tiveram de ser convencidos a mudar o
significado da categoria (Willinsky, 2002, p.36).

Nesse sentido, o autor pondera que o trabalho político e educacional a ser realizado
deve voltar-se para a análise das formas “como as categorias pelas quais conhecemos e
nomeamos uns aos outros foram formadas” e como essas mesmas categorias ainda continuam
sendo utilizadas como “forma de diferenciar a distribuição de poder” nas sociedades em que
vivemos, mesma aquelas consideradas democráticas e multiculturais. O autor pondera que as
políticas de reconhecimento no campo educacional devem passar necessariamente por uma
análise crítica dos conceitos construídos ao longo do século XX, das políticas migratórias e de
‘assimilação’ dos imigrantes, ou ainda, da construção da nação brasileira com base no mito da
‘democracia racial’:
Uma educação voltada para a política do reconhecimento faria muito
melhor concentrando-se na ciência da raça que surgiu no século
passado e que continua no presente século. Deveria examinar as
políticas de imigração e o tratamento dado pela mídia às mulheres.
Deveria deter-se sobre as leis, em Quebec, referentes a idiomas que
restringem o uso do inglês nos avisos públicos. Deveria considerar
como a idéia de nação se alinha com raça, e como a cultura passou a
servir de mediadora entre os dois termos, ao dividir o mundo entre nós
(Willinsky, 2002, p.38-39).
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Nancy Fraser também vêm discutindo as políticas de reconhecimento, enfatizando a


integração entre reconhecimento e redistribuição como condição necessária para a
compreensão das dimensões sócio-cultural e política-econômica das desigualdades sociais.
Em um de seus artigos mais conhecidos – Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da
justiça na era pós-socialista –, a autora destaca que “demandas por ‘reconhecimento das
diferenças’ alimentam a luta de grupos mobilizados sob as bandeiras da nacionalidade,
etnicidade, raça, gênero e sexualidade. Nesses conflitos ‘pós-socialistas’, identidades grupais
substituem interesses de classe como principal incentivo para mobilização política” (2001,
p.245). Fraser sugere aos intelectuais uma nova tarefa, ou seja, o desenvolvimento de uma
teoria crítica do reconhecimento, “uma teoria que identifique e defenda apenas versões da
política cultural da diferença que possa ser coerentemente combinada com a política social de
igualdade” (p.246). Nesse sentido, a autora propõe um conceito de justiça, no qual a dimensão
do reconhecimento e da distribuição estão igualmente integrados, uma vez que nenhuma
dessas políticas é suficiente:

Ao formular esse projeto, assumo o fato de a justiça requerer hoje


tanto reconhecimento como redistribuição. Proponho-me a examinar a
relação entre ambos. Em parte, isso significa descobrir como
conceitualizar reconhecimento cultural e igualdade social de forma
que ambos se sustentem e não enfraqueçam um ao outro [...] Também
significa teorizar sobre os modos pelos quais desvantagem econômica
e desrespeito cultural estão entrelaçados e apoiando um ao outro
(2001, p. 246).

Segundo Fraser, uma concepção bidimensional ou bifocal de justiça deve englobar


tanto as preocupações tradicionais da justiça distributiva, resultantes das injustiças
socioeconômicas (entre outras: a pobreza, a exploração, a desigualdade e os diferenciais de
classe), como as preocupações recentes levantadas pela filosofia do reconhecimento (entre
outras: o desrespeito, o imperialismo cultural e a hierarquia de status), compreendidas como
injustiças culturais ou simbólicas (p.249). Trata-se de uma distinção analítica, uma vez que
injustiças culturais ou simbólicas e injustiças socioeconômicas estão interligadas nas práticas
cotidianas. No entanto, os “remédios” para a minimização dessas injustiças são distintos: A
reparação de injustiças sócio-econômicas exige medidas que envolvam redistribuição de
renda, reorganização da divisão do trabalho, instiguem a tomada de decisões democráticas e a
transformação das estruturas econômicas básicas (p.252), ao passo que as injustiças culturais,
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requerem outros tipos de “remédios” associados a uma mudança cultural ou simbólica, entre
outras:
Reavaliação positiva de identidades desrespeitadas e dos produtos
culturais de grupos marginalizados. Poderia também envolver
reconhecimento e valorização positiva da identidade cultural. Ainda
mais radicalmente, poderia envolver a transformação geral dos
padrões societais de representação, interpretação e comunicação, a fim
de alterar todas as percepções de individualidade (p.252).

Em um outro artigo disponível em língua portuguesa intitulado “Políticas feministas


na era do reconhecimento: uma abordagem bidimensional da justiça de gênero”, Fraser
afirma que as políticas de reconhecimento só serão bem sucedidas se vierem acompanhadas
de políticas redistributivas. Portanto, as políticas requerem uma visão bifocal que olhe
simultaneamente pelas duas lentes de forma a garantir tanto o reconhecimento como a
distribuição. Trata-se, portanto, de uma concepção feminista alternativa de reconhecimento,
que não significa somente uma política de identidade como defendida por Taylor, mas uma
“política que busca vencer a subordinação por meio do estabelecimento das mulheres
[migrantes, negros, entre outros - WW] como membros plenos da sociedade, capazes de
participar lado a lado com os homens, sendo seus pares” (2002, p.71). Em outras palavras, as
lutas que integram redistribuição e reconhecimento “almejam a desinstitucionalização dos
padrões androcêntricos de valor cultural que impedem a paridade de gêneros e a substituição
desses padrões por outros que dêem suporte a essa paridade” (p.72). O feminismo não está
sozinho na luta pelo reconhecimento, mas ele vem desenvolvendo um importante papel que
reflete uma modificação mais profunda na gramática dos discursos das demandas políticas.

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