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JESUS DES-VELA A VERDADEIRA FORÇA DOS SENTIDOS

Jesus não idealizou a realidade. Ele contemplava a realidade como o Pai a


contemplava, e se aproximava dela como o Pai mesmo se aproximava: com
palavras e gestos que traziam à luz a vida nova escondida entre os escombros
das velhas estruturas que a aprisionavam.
Em sua criatividade ilimitada e utilizando a linguagem da vida cotidiana, Jesus
construiu parábolas de uma beleza única para ajudar a “olhar” a realidade como
só Ele sabia olhar.
É na sua união com o Pai, que ama até a menor das criaturas, que Jesus fundamentava essa capacidade
contemplativa de “olhar” de uma maneira tão viva e diferente toda a Criação, de perceber o que Pai
fazia e de aproximar-se dessa realidade para re-criá-la e libertá-la das amarras que a oprimiam.

“Contemplar não é idealizar; contemplar é dissolver, com o olhar contemplativo, a casca dura das aparên-
cias, para descobrir, no mais profundo de toda pessoa e realidade, o agir do Pai, que continua
criando vida nova em abundância, inclusive de maneira privilegiada, nas realidades mais desu-
manizadas e destruídas. É urgente olhar. Deus não nos diz: “Buscai-me no vazio”. Ele é o
“Deus escondido”, mas na realidade”. (Joseph M. Rambla)

Nos Exercícios Espirituais, as contemplações culminam na “aplicação dos


sentidos”, onde nos aproximamos do Mistério contemplado da vida de Jesus
com todos os sentidos abertos, purificados e receptivos a tudo o que nos vai
sendo revelado de sua Vida.
As contemplações vão transformando nossa sensibilidade para aproximar-nos
da realidade como Jesus se aproximava, com uma sensibilidade cada dia mais
parecida com a d’Ele.
Chega até nosso sentidos, cada vez com mais nitidez, a presença ativa de Deus
no universo, em cada pessoa e em toda a história.
Em nosso ritmo cotidiano somos surpreendidos não por nossas reflexões, mas por
aquilo que chega aos nossos sentidos. Cada pedaço da realidade se faz “diá-
fana” (transparente) e nos revela a presença do Pai que sempre trabalha;
acontece, então um encontro inesperado com Ele.
Pode ser um encontro simples ou pode ser um encontro que transforma
definitivamente nosso coração e nosso olhar para toda a vida.
Em Jo. 5,1-47 encontramos um exemplo bem explícito e expressivo da maneira
como a realidade chegava
até os sentidos de Jesus e como Ele atuava em consequência.
Enquanto Jerusalém festeja a Páscoa, Jesus “desce” até o mundo dos excluídos, dos enfermos crônicos,
junto à piscina de Betesda.
Nesse espaço, à margem, Jesus percebe algo diferente daquilo que os outros percebiam. Ele sente-se
impactado por um enfermo que não tem ninguém e que leva 38 anos paralisado em sua solidão, sem que
alguém o ajudasse.
Naquele “não tenho ninguém” está resumido o drama de uma vida inteira e de uma solidão que parece
sem possibilidade de solução, no limite da resignação total, depois de tentativas repetidas e frustradas
(“com efeito, quando estou por chegar, outro desce antes de mim”).
Há anos as pessoas passam, olham-no, mas não dão nenhuma atenção real a esse homem, como se se
tratasse de um objeto no conjunto, um “algo” e não um “alguém” em estado de carência total.
Jesus, porém, “o vê” de outro modo, e vai ao seu encontro, tomando Ele mesmo a iniciativa de interpelá-
lo: “Queres ficar curado?”

Nesse espaço pagão não há nenhuma referência religiosa por parte de Jesus,
nenhuma pergunta sobre a fé do paralítico como condição de sua cura.
O paralítico não sabe nada sobre a pessoa de Jesus, que somente lhe pergunta se
quer ficar curado.
A pergunta de Jesus ajuda a des-velar o real desejo do paralítico; isso porque, às
vezes, as pessoas se acomodam em suas paralisias, delas tirando vantagens e
não querendo assumir os compromissos de estarem curadas.
A ternura de Jesus se faz gesto que antecede, ação atenciosa, orientada a fazer o
enfermo sair de sua condição de marginalização e exclusão.
Realiza-se um encontro tão profundamente humano como só Deus encarnado poderia fazer; uma
acolhida sem medida e sem condições, de tal maneira que o paralítico encontra o espaço aquecido onde se
atreve a ensaiar seu gesto de vida. A ordem “levanta-te” é a graça de uma vida reencontrada e de uma
reencontrada dignidade de vida.
O paralítico sai pelas ruas de Jerusalém carregando seu leito como um sinal do
Reino que não “desce” do céu, mas “sobe” a partir dos abismos da exclusão e
miséria.
Quando todos “olhavam” para cima esperando os sinais do Reino, Jesus
mostrou, à vista de todos, os sinais do Reino brotando de baixo, a vida brotando
das cinzas da condição humana.
Esse é o poder do Amor de Deus que se faz ternura e abraço acolhedor de todo
ser humano.
“Amar alguém é lhe dizer: não morrerás” (G. Marcel).

Os dirigentes judeus criticam a Jesus por curar no sábado.


A resposta de Jesus é profundamente iluminadora: “O Filho nada pode fazer por si
mesmo, mas só aquilo que vê o Pai fazer” (v. 19)
Este modo de olhar e sentir a realidade permite a Jesus captar a maneira de
atuar do Pai, para poder unir-se a Ele em seu trabalho criador. “Meu Pai trabalha
sempre, e eu também trabalho” (v. 17).
Quando Jesus olha o paralítico, e toda a sociedade simbolizada nesse pobre homem, não só se sente
estremecido pelo sofrimento, mas, na profundeza dessa situação inumana, Ele vê o Pai criando a vida
nova e inimaginável, soltando todas as amarras que, precisamente por razões religiosas e por má
interpretação do sábado e de Deus, paralisavam e mantinham seus filhos na escravidão.

Jesus também não faz complicados raciocínios para atuar e justificar sua ação,
mas revela que a maneira de agir do Pai se faz presente n’Ele através dos seus
sentidos contemplativos.
Essa possibilidade de “olhar” é um dom do Pai, não o produto final de refinadas
técnicas psicológicas e espirituais. “O Pai ama o Filho e lhe revela tudo o que faz” (v. 20).
Revelar a beleza de alguém é revelar o seu valor e dignidade, dedicando-lhe tempo, atenção e ternura.
Amar não é apenas fazer algo pelo outro, mas revelar ao outro sua própria originalidade, comunicando-
lhe, assim, que ele é especial e digno de atenção.
Podemos expressar essa revelação por meio da nossa presença aberta e gentil, pela maneira como
olhamos e escutamos uma pessoa, pelo modo como falamos com ela e cuidamos dela.
Os sentidos, cristificados na contemplação, nos impulsionam em direção ao outro e nos fazem acreditar
na beleza e dignidade escondidas na fragilidade da condição humana.
Mergulhar na realidade que nos cerca, por meio dos sentidos bem abertos e evangelizados, é deixar
estremecer de vida divina a fragilidade de nossa condição humana.

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