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Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD)

10(3):348-361, setembro-dezembro 2018


Unisinos - doi: 10.4013/rechtd.2018.103.11

O positivismo jurídico foi superado


no neoconstitucionalismo?
Was legal positivism overcome in neoconstitucionalism?

Juraci Mourão Lopes Filho1


Centro Universitário Christus, Brasil
juracimourao@gmail.com

Júlio César Matias Lobo¹


Centro Universitário Christus, Brasil
julio.lobo@defensoria.ce.def.br

Taís Vasconcelos Cidrão¹


Centro Universitário Christus, Brasil
taisvcidrao@hotmail.com

Resumo
O presente artigo propõe que não houve a superação do positivismo jurídico pelo
pós-positivismo indicado como marco filosófico do neoconstitucionalismo. Para de-
monstrar isso, expõe-se a evolução do positivismo jurídico e suas principais teses (se-
parabilidade, convencionalidade e das fontes), de modo a evidenciar como resistem
às críticas pós-positivistas atuais e concluir que apenas uma versão do positivismo
formalista e legalista é rejeitada. Uma efetiva alternativa ao positivismo demandaria
a completa incorporação de teses não positivistas (como o interpretativismo de
Dworkin), que se apresentam incompletas na prática e nos estudos do Direito no
Brasil. A pesquisa, portanto, é de natureza bibliográfica com a leitura da doutrina es-
pecializada sobre o assunto, além de análise jurisprudencial/documental.

Palavras-chave: positivismo, pós-positivismo, neoconstitucionalismo, interpretativismo.

Abstract
This paper indicates that there was no overcoming of legal positivism by post-posi-
tivism indicated as a philosophical framework of neo-constitutionalism. In order to
demonstrate this, the evolution of legal positivism and its main theses (separability,

1
Centro Universitário Christus. Rua João Adolfo Gurgel, 133, Bairro Cocó, 60190-060, Fortaleza, CE, Brasil.

Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0), sendo permitidas reprodução, adaptação e distribuição
desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
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conventionality and sources) are exposed, in order to demonstrate how they resist
the current post-positivist critiques and conclude that only a version of formalistic
and legalistic positivism is rejected. An effective alternative to positivism would re-
quire the complete incorporation of non-positivist theses (such as Dworkin’s inter-
pretativism), which are incomplete in practice and law studies in Brazil. The research,
therefore, is of bibliographic nature with the reading of the specialized doctrine on
the subject, besides jurisprudential/documentary analysis.

Keywords: positivismo, post-positivism, neo-constitutionalism, interpretativism.

Introdução resses de uma parte, subjaz necessariamente uma pers-


pectiva teórica, que influencia silenciosa e fortemente
A doutrina constitucionalista brasileira vem eri- essas atividades. Dessa forma, tanto melhor tomar cons-
gindo a dogmática do Direito Constitucional sobre o ciência e bem adotar uma perspectiva teórica profunda
que vem chamando pós-positivismo, emprestando a para impedir uma prática errática.
essa perspectiva teórica uma importância e relevo que Não se busca defender aqui o positivismo como
se entende desproporcionais após se emprestar a devi- a melhor proposta teórica na atualidade, mas demonstrar
da atenção a suas premissas. que é preciso avanços mais concretos e adoção de teses
Não é de todo correto sustentar que essa seja mais bem calcadas do que a atualmente propostas pelo
uma teoria bem delineada e que efetivamente suplante e pós-positivismo, marco teórico do neoconstitucionalismo.
substitua o positivismo, pois se opõe, na verdade, àquilo
que de maneira genérica e não aprofundada se difunde Positivismo jurídico: evolução e teses
como sendo o positivismo jurídico. Opõe-se, quando fundamentais
muito, a uma imbricação entre o positivismo, o legalis-
mo e o formalismo, inexistente em versões contempo- Premissas epistemológicas do positivismo
râneas do positivismo jurídico.
O objetivo do presente texto é tentar apon- Não se pretende aqui analisar detalhadamente
tar que o “pós-positivismo”, que embasa o neocons- todas as diversas versões do positivismo jurídico, se-
titucionalismo, deixa intocadas as teses centrais de ria mesmo tarefa impossível para um único artigo, mas
versões mais bem elaboradas do positivismo jurídico, apresentar suas teses centrais e como elas se apresen-
como apresentado pelo chamado positivismo inclu- tam em algumas versões mais relevantes da atualidade.
sivo; e não responde, ainda, às propostas do positivis- Destaca-se, inicialmente, que o positivismo jurídico tem
mo exclusivo. No mesmo sentido, buscar-se-á expor uma premissa epistemológica fundamental a respeito de
que há incorporações incompletas de pretensões não como se faz teoria de um modo geral para, então, pro-
positivistas, como as de Ronald Dworkin e Robert Alexy. por sua Teoria do Direito.
Por meio de um estudo eminentemente biblio- As correntes positivistas de um modo geral par-
gráfico, se tentará afastar falsas compreensões que têm tem da compreensão de que racionalmente se faz teoria
levado a doutrina e a prática jurídicas brasileiras a um descrevendo o objeto de estudo, de maneira livre de
comportamento errático em torno de teses centrais qualquer juízo de valor. Teorizar é tida como uma ativi-
para a Teoria Geral do Direito, e que tem influência de- dade racional, e um juízo racional deve ser objetivo, o
terminante na concepção e aplicação da Constituição e que exclui elementos que não possam ser identificados
das normas infraconstitucionais. e descritos. Não é, pois, uma atividade prescritiva (nor-
Toda prática jurídica tem, necessariamente, uma mativa); não é uma proposta de como o objeto de estu-
base teórica, ainda que velada e não refletida. Buscar do deveria ser segundo algum padrão ideal, mas como
maior rigor teórico não é, nesse sentido, mero exercício ele efetivamente é e se apresenta, buscando apontar os
de academicismo, mas essencialmente a busca de fun- traços similares nos vários exemplos observados para
damentos mais firmes para se realizar e compreender identificar o que possuem em comum entre si.
o Direito. Seja quando um professor escreve e leciona No particular caso da teoria do Direito, não
sobre os ramos tradicionais do Direito, seja quando um se busca, por via de consequência, uma explicação de
juiz julga uma causa ou um advogado patrocina os inte- como o Direito deveria ser em sua melhor forma, de-

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terminada segundo uma moral objetiva ou específico entre as várias interpretações possíveis de um enuncia-
conceito de justiça, mas descrever de maneira precisa e do normativo. Destaque-se: a moral que há no Direito
sem influência desses elementos intangíveis aquilo que positivo é tratada pela política, não pelo próprio Direito.
de comum se identifica como Direito nos vários locais e Para os positivistas, portanto, teorizar é descre-
períodos em que ele se apresenta. Essa é a tese da sepa- ver objetivamente, e teorizar sobre o Direito é descre-
rabilidade entre Direito e moral no meta-nível teórico ver sem nenhum juízo de valor, ou considerando apenas
da epistemologia. elementos empiricamente verificáveis, aquilo que se
Não que o direito positivo não traga elementos apresenta nas práticas sociais como sendo o Direito.
morais. Positivismo e direito positivo não são a mesma Uma teoria jurídica será tanto melhor quanto melhor
coisa. Kelsen (2009), por exemplo, entende que o direito explicar os vários aspectos dessas práticas sociais nos
positivo sempre terá um conteúdo moral, mas de uma diversos locais e épocas.
moral também positiva, identificada por observação sobre Pode-se afirmar, por via de consequência, que o
fatos (padrões de conduta garantidos por uma sanção so- positivismo jurídico não reconhece outro Direito que
cial não institucionalizada). Ele rejeita que se possa obser- não aquele expresso em normas oriundas de fatos so-
var um conteúdo moral, justamente porque não é passível ciais identificados, justamente por ser, repita-se, o único
de escrutínio objetivo. Daí se erige um conceito de Direi- passível de descrição racional objetiva nos termos aci-
to centrado no modo de ele se expressar: por meio de ma expostos. Nesse sentido, é a lição Kelsen (2009, p. 1):
normas com certas características obtidas em uma fonte
social autorizada. Kelsen (2009) entende que o Direito é Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o
seu próprio objeto. Procura responder a esta questão:
um conjunto de normas (com estrutura condicional “Se
o que é e como é o Direito? Mas já lhe importa a
f, então Sc”, em que a norma primária é aquela que esta- questão de saber como deve ser o Direito, ou como
tui uma sanção pelo descumprimento do consequente de deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do
uma norma de conduta, chamada por ele de norma secun- Direito. Quando a si própria se designa como “pura”
dária) garantidas por uma sanção institucional, cuja dinâmi- teoria do Direito, isto significa que ela se propõe ga-
ca e estática descreve sem pressupor qualquer conteúdo rantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e
necessário ou devido. excluir deste conhecimento tudo quanto não perten-
Herbert Hart, por sua vez, entende que o Direi- ça ao seu objeto, tudo quando não possa, rigorosa-
mente, determinar como Direito. Quer isto dizer que
to é um conjunto de normas primárias (que estabele-
ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os ele-
cem condutas) e secundárias (que prescrevem poderes mentos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio
para criar, modificar e jugar a desobediência às normas metodológico fundamental.
primárias) normalmente seguidas por uma comunidade
com um sentido de obrigatoriedade. Conquanto Hart
entenda que um Direito justo e moral será mais du- A premissa epistemológica do positivismo, mes-
radouro e eficaz, ele também aponta que não deixará mo em versões anteriores a Kelsen e Hart, foi bem ao
de ser Direito uma ordem de normas primárias e se- encontro do racionalismo dominante no ocidente após
cundárias que seja imoral ou injusta; poderá até ser um as revoluções liberais do século XVIII. Para os juristas
Direito pouco eficaz e bastante instável, mas, tendo essa franceses oitocentistas, por exemplo, o positivismo se
forma, será Direito. apresentou como ferramenta teórica politicamente
A relação com o conteúdo moral, portanto, se conveniente, pois o direito posto (direito positivo) foi
dá no nível objeto (do Direito positivo) e será contin- equiparado ao direito legislado estatal, centrando toda
gencial, segundo Hart, e necessário (mas a uma moral a juridicidade no novo modelo de Estado que, então, se
positiva), segundo Kelsen. Não há, na visão de Kelsen, instalava. As fontes sociais do Direito foram entendidas
por exemplo, uma moral objetiva que possa vir a com- apenas como fontes estatais, as quais, quando muito, ad-
por necessariamente a descrição do que seja o Direito, mitiam subsidiariamente outros fatos sociais como pro-
já que a objetividade demanda justamente uma atividade dutores do Direito, como o costume.
descritiva que não envolva valores. Afastar a concorrência da moral e da Justiça,
A inserção de elementos morais no direito posi- elementos metafísicos que servissem de uma régua
tivo de um determinado país não é controlada ou disci- para medir o Direito estatal, foi bastante conveniente.
plinada pelo próprio Direito, mas é realizada por atos de Centrou-se o jurídico naquilo que a “vontade popular”
política legislativa e mesmo por decisões judiciais, quan- estatuía por meio de textos aprovados pelo Legislativo
do o juiz escolhe, dentro do quadro hermenêutico, uma segundo rito pré-determinado. Se uma lei fosse injusta,

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isso não era um problema jurídico, mas um problema por isso ainda seja bastante lembrada, apesar de sua
político, a ser solucionado no parlamento, mediante pouca influência no positivismo contemporâneo.
articulação política para substituir aquela lei por outra É fácil perceber que com a ligação entre o
melhor. O modo de relação entre o Direito e a mo- positivismo e o formalismo se ganha, de um lado, em
ral política seria, portanto, operada pelo legislador, que segurança no trato da realidade que vem simplificada por
plasmaria no texto legislativo as escolhas e conforma- categorias formais e técnicas interpretativas limitadas;
ções, sem o Direito servir de critério para julgar essa por outro lado, também não é difícil imaginar que justa-
decisão do legislador, que seria, diga-se mais uma vez, mente todos os elementos da realidade expurgados pelo
política, fora do controle jurídico. filtro formalista exercerão uma pressão regulativa sobre
Foi nesse período que o positivismo se ligou a o Direito positivo. Menezes Cordeiro bem destaca que
outra teoria: o formalismo jurídico. “o formalismo e o positivismo, apresentados, respecti-
vamente, como predomínio de estruturas gnosiológicas
Positivismo e formalismo de tipo neo-kantiano e como a recusa na Ciência do
Direito de considerações não estritamente juspositivas
O formalismo jurídico propõe que a apreensão constituem o grande lastro metodológico do século XX”
da realidade pelo Direito se dê por meio de categorias (Canaris, 2002, p. XVI). Indica justamente nessa relação
e concepções simplificadoras da realidade consigna- o motivo para o século XX representar “na Ciência do
das nos textos legislativos. É possível exemplificar isso Direito, um espaço de letargia relativa. Uma agitação pre-
com o casamento. A despeito da enorme complexida- nunciadora de mudança viria a registrar-se apenas no seu
de social e pessoal que um longo relacionamento en- último quartel” (Canaris, 2002, p. IX).
tre duas pessoas invoca, era, na perspectiva formalista, É principalmente o formalismo que responde
compreendido como um contrato bilateral disciplinado por muito daquilo que ainda se aponta equivocado no
em um código exaustivo e sistematizado. A partir desse positivismo. Conquanto a Escola da Exegese não tenha
retrato da realidade social na forma de um contrato, e tido maior prevalência do pensamento jurídico ociden-
segundo a sistematização com outros elementos pró- tal, suas bases dominam o imaginário da prática jurídica
ximos também tratados no diploma legal, o casamento ao longo de todo o século XX, e ainda se apresentam
era apreendido juridicamente. Claramente, ficam alheios no Brasil como um modelo paradigmático de positivis-
ao trato estritamente jurídico, nessa perspectiva, todos mo. Quando se acusa, de modo depreciativo, alguém de
os dados da realidade que não passam por esse filtro ser positivista, tem em mente não o positivismo como
formal e legal. ele se apresenta nas formas mais sofisticadas, mas o po-
As grandes codificações oitocentistas, ainda in- sitivismo aliado ao formalismo e ao legalismo.
censadas durante boa parte do século XX, represen- A ligação positivismo/formalismo persistiu, ainda
tavam o grande instrumento para a apreensão da so- que sem o rigor exegético, sobretudo no raciocínio ju-
ciedade pelo Direito segundo a perspectiva formalista. rídico e na hermenêutica jurídica, que se valiam, e ainda
A moral estaria subjacente nas escolhas políticas do se valem em várias propostas teóricas, de elementos de
legislador ao redigir o código dessa ou daquela maneira. lógica formal, que prestigia métodos alheios às influên-
Ainda no exemplo do casamento, ao se dispor no texto cias substanciais sobre a compreensão. No entanto, ao
legal que casamento era a união entre um homem e ser submetido a um rigoroso escrutínio teórico, é per-
uma mulher, deixava-se de fora da apreensão jurídica o cebido que o formalismo jurídico, ainda que assegure a
relacionamento entre pessoas do mesmo sexo. Perce- segurança pela simplificação da realidade, não conseguiu
ba-se, assim, que o Direito posto traz sempre escolhas apresentar respostas eficazes às grandes mudanças do
morais, as quais são exercitadas politicamente no Legis- segundo quartel do século XX, daí sua pouca longevida-
lativo, o que não impede, em um plano epistemológico, de, apesar da clara atratividade.
se compreender o Direito apartado dessas escolhas É por isso que, nas palavras de Bruno Torra-
contingenciais. O Direito, nessa perspectiva, não apre- no Amorim de Almeida (2012, p. 6469): “o positivismo
senta qualquer elemento capaz de permitir o controle exegético foi uma realidade contingente, estranha à
jurídico dessa escolha, salvo o dever de observância do esmagadora maioria das teorias positivistas, estando hoje
processo legislativo pelo legislador, onde se fariam as totalmente desacreditado”. O positivismo busca, desde o
escolhas morais. segundo quartel do século XX, se desprender do forma-
A Escola da Exegese é o mais exacerbado exem- lismo, tendo versões que o afastam por completo, admi-
plo de teoria que liga positivismo e formalismo, talvez tindo a incorporação de elementos substanciais na argu-

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mentação e interpretação do Direito. Contudo, as bases É preciso, então, ter a percepção do positivismo
daquilo que se deve entender por positivismo, sobretudo analítico e do debate Hart/Dworkin, os quais só vem
a premissa epistêmica descritiva se mantém. sendo explorado no Brasil há alguns poucos anos. Em-
Essa forma de positivismo – próprio da realida- bora o neoconstitucionalismo brasileiro faça mensuras
de francesa, mas jamais encampado com maior vigor ao Direito como integridade e a tese dos princípios de
em outras ordens jurídicas – foi bem refutada pelo Dworkin, o faz sem contextualizar com as premissas do
positivismo normativista, cunhado por Hans Kelsen e positivismo hartiano que busca refutar. Contrapõem-se
Herbert Hart. Kelsen defende no capítulo VIII em sua as ideias de Dworkin ao exegetismo, ou quando muito
“Teoria Pura do Direito” a utilização da famosa moldura ao normativismo kelseniano, e o equipara à teoria dos
interpretativa. Em outras palavras, a norma jurídica não princípios de Alexy. Isso são dois erros tanto comuns
é capaz de vincular uma interpretação única unidirecio- quanto graves. É dessa perspectiva analítica que emerge
nal, mas sim delimitar um espectro de interpretações as versões mais vigorosas do positivismo na atualida-
diferentes, entre as quais o juiz deve escolher a que me- de, e que não é bem tratado no “pós-positivismo”, que
lhor soluciona cada caso concreto. Daí o decisionismo, ainda mantém o foco em algumas tradições da Europa
no qual há espaço para a discricionariedade, que por continental.
sua vez poderá levar à arbitrariedade por meio de uma
decisão solipsista do juiz ao agir de acordo com a sua O positivismo analítico
própria vontade e padrões pessoais. Mas esse aspecto
será rebatido mais à frente. É a proposta teórica de Herbert Hart que mais
O próprio positivismo jurídico buscou superar influencia o positivismo na atualidade e que tem papel
as velhas formas de exegetismo, mitigando bastante os fundamental na teoria do direito como um todo, pois
aportes do formalismo legalista, já em declínio no final é em contraposição a ela que teorias não positivistas
do XIX e início do século XX. Isso foi possível graças ao (como o interpretativismo de Dworkin) são erigidas, e
movimento da Escola do Direito Livre, da Jurisprudência é a partir dela que o positivismo inclusivo e positivismo
dos Interesses, da Jurisprudência dos Valores, além do exclusivo se apresentam nos dias atuais.
realismo americano dos anos 20 e 30. Identifica-se no pensamento hartiano um apri-
Essa evolução foi percebida por Kelsen (2009, moramento da base epistemológica apresentada li-
p. 395), mas as suas atenções estavam voltadas para o nhas atrás. Enquanto Kelsen procurou apreender o
estudo da interpretação jurídico-científica, isto é, da Direto como ciência em um sentido neo-kantiano
interpretação realizada pela ciência do Direito, que (atividade racional não valorativa), Jeremy Bentham e
“não pode fazer outra coisa senão estabelecer as pos- John Austin, ainda no século XIX, tomaram o Direito
síveis significações de uma norma jurídica”. Isso signi- como ciência em um sentido mais estrito como algo
fica dizer que não cabe à Ciência do Direito escolher empiricamente verificável. Hart, por sua vez, foca no
a melhor interpretação, a interpretação “correta”. Essa uso da linguagem para compreender as práticas so-
tarefa, segundo Kelsen, é dos órgãos jurídicos, que rea- ciais nela referida.
lizam uma função jurídico-política. Disso resulta claro O autor mantém a perspectiva descritiva neu-
que Kelsen não tratou da interpretação do Direito no tra ao não propor como o Direito deve ser. Busca
momento da sua aplicação, ou seja, da interpretação compreender como ele é, mas não centra a análise di-
concreta. Na precisa lição de Lenio Streck (2010, p. 20): retamente sobre fatos brutos, mas mediados pela lin-
guagem. É o que ele denomina de sociologia descritiva
Numa palavra: Kelsen já havia superado o positivismo
já no prefácio de sua obra: “a ideia de que a investiga-
exegético, mas abandonou o principal problema do
direito – a interpretação concreta, no nível da “aplica- ção sobre os significados das palavras lança luz apenas
ção”. E nisso reside a “maldição” de sua tese. Não foi sobre estas é falsa”. Faz citação a John Longshaw Aus-
bem entendido, quando ainda hoje se pensa que, para tin (filósofo que desenvolveu a teoria dos atos de fala)
ele, o juiz deve fazer uma interpretação “pura da lei”! ao propor “uma consciência mais aguda das palavras
para aguçar nossa percepção dos fenômenos” (Hart,
Contudo, o positivismo revigorado no final do 2009, p. X). Para Hart, portanto, termos como regra,
século XX e início do século XXI tem origem no mun- obrigação, sanção entre outros correlatos não são de-
do anglo-saxão, sobretudo porque gira em torno da finidos isoladamente, mas como parte integrante de
proposta de conceito de Direito de Herbert Hart e o um enunciado que, para ser compreendido, demanda
desafio apresentado por Ronaldo Dworkin. um contexto.

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É incorporada, dessa maneira, a reviravolta lin- descrever o modelo “Se f, então Sc” para todas as nor-
guística da filosofia ocidental (ao menos a reviravolta mas jurídicas. Ao contrário, trata-se de conceito amplo
pragmática em que estão inserido J.L. Austin, Searle e e abrangente, que será utilizado mais tarde pelo próprio
Wittgenstein) (Oliveira, 2006) na base epistemológica Hart e por positivistas inclusivos para absorver críticas
de sua teoria, pois a linguagem não é mais encarada ape- em torno dos princípios.
nas como instrumento para referir a algo apreendido Contudo, há outro ponto relevante na teoria
diretamente por um ato de intelecção. A linguagem in- hartiana: o Direito é composto por dois tipos distin-
tegra a maneira de o objeto ser para o sujeito que o ob- tos de normas. Isto também já foi adiantado acima. As
serva dentro de um contexto de enunciação. Com isso, normas primárias prescrevem condutas e as normas se-
Hart se aproxima de Wittgenstein com seus jogos de cundárias outorgam poderes para que uma autoridade
linguagem. Contudo, não deixa de considerar a função crie, altere ou assegure normas primárias. Somente com
descritiva da teoria, apenas admite que o objeto des- o conjunto desses dois tipos de normas serão respon-
crito tem dimensão relevante na linguagem, a qual deve didas todas as demandas de uma sociedade complexa,
ter papel principal na investigação. Continua, por isso, pois soluciona os três problemas que há em uma ordem
buscando indicar os elementos comuns daquilo que as composta apenas com normas de conduta (primárias):
várias sociedades ao longo do tempo denominam Direi- incerteza, inércia e ineficácia.
to em função do respectivo uso do termo, especialmen- A incerteza de um conjunto de normas primá-
te a partir do que denomina de ponto de vista interno rias decorre da incapacidade de se identificar, exclusi-
(próprio daqueles que integram a sociedade regulada vamente a partir desse mesmo conjunto, quais outras
e que encaram o conjunto de normas como obrigató- normas de conduta seriam ou não Direito. Essa indefi-
rio) e externo (próprio de quem não integra o grupo nição é solucionada por uma norma secundária, a regra
social e não possui qualquer censo de obrigatoriedade, de reconhecimento, que diz quais os critérios devem
encarando os comportamentos exclusivamente de uma ser atendidos para que uma norma seja Direito. A vali-
dimensão fática e de padrão de conduta observados). dade de uma norma como Direito depende, nessa pers-
Nesse sentido, Will Waluchow, afastando algumas leitu- pectiva, do preenchimento dos requisitos estatuídos na
ras equivocadas a respeito de Hart, escreve: norma de reconhecimento.
A inércia, por sua vez, deriva do caráter estáti-
We can discern at least three different recommenda- co de um conjunto formado apenas por normas pri-
tions in these thoughts on methodology. First, in doing márias. É um problema que advém do fato de as regras
philosophy of law we should avoid the traditional, Aris-
de conduta não determinarem quem pode alterá-las, daí
totelian method of definition per genus and differentia.
a necessidade de normas secundárias (normas de mo-
Second, no other method of definition, if applied to
singular words like ‘right’, ‘duty’ ‘corporation’ or ‘law’ dificação) outorgando poderes a uma fonte autorizada
is likely to shed much light on the phenomena we seek para alterar as normas estabelecidas quando se fizer
to understand, at least in the case of a multi-faceted necessário.
and somewhat puzzling phenomenon like law. Third, Por fim, a ineficiência decorre do desrespeito das
one and the same word or string of words can be normas primárias e a necessidade de normas secundá-
used to serve different functions or roles in different rias (normas de julgamento) outorgando poderes para
sentences, as when a judge states that ‘The defendant um corpo de autoridades para julgar casos de violação
is liable for damages’ and I later use this very same
a regras primárias.
string of words in reporting that authoritative verdict.
A regra de reconhecimento é peça chave nessa
In other words, we very much need to be sensitive to
the context of utterance when attempting to build an teoria, sendo traduzida como algo complexo, que envol-
understanding of a phenomenon like law by examin- ve, normalmente, uma Constituição, a promulgação de
ing the words and concepts typically employed in its leis por um processo legislativo formal e precedentes
analysis and/or practice (Waluchow, 2011). judiciais, e não apenas uma regra única e simples, carac-
terizada por critérios formais ou com a estrutura “Se f,
Nessa busca, Hart propõe, como já adiantado, então Sc”. A regra de reconhecimento é identificada a
que o Direito é composto por regras, consistentes em partir do comportamento das pessoas, especialmente
um padrão de conduta comumente observado pelos dos officials, ao se perquirir o que elas consideram para
membros de uma sociedade com um senso de obriga- identificar uma obrigação jurídica. Isso revela que a regra
toriedade. Nesse conceito, não se identifica a proposta de reconhecimento não tem validade jurídica da mesma
de uma estrutura como faz Kelsen ao explicitamente forma das demais normas do ordenamento. Normas se-

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rão jurídicas se observarem as exigências da regra de Não se pretende fazer uma revisão completa
reconhecimento, mas a regra de reconhecimento tem do debate com suas nuances, caricaturizações mútuas
validade não porque atenda às exigências de uma outra e veladas revisões de parte a parte. Procura-se focar
norma, mas porque é empiricamente constatada pelo no que o debate contribuiu para mudar o positivismo
comportamento social. jurídico, que a partir dele passa a se apresentar em no-
Com essa proposta, Hart mantém a tese da vas formas, que respondem cada um a seu modo aos
neutralidade em relação à moral, a base epistemológica desafios propostos. Nesse tocante, seguir o mapeamen-
descritiva, a tese dos fatos sociais e a tese da convencio- to dos principais aspectos do debate feito por Scott
nalidade (nos termos a serem detalhados a seguir). Des- Shapiro (2007) bem serve aos propósitos deste ensaio.
taque-se que não se identifica como necessário nenhum O desafio de Dworkin (2002) se inicia com o
traço do exegetismo, que invoque a figura do juiz boca “Modelo de Regras I”, atualmente o capítulo 2 de “Le-
da lei ou mesmo maior vigor em torno do formalismo a vando os direitos a sério”. O autor apesenta o que, para
fim de apreender a realidade a partir de categorias abs- ele, são as três teses básicas do positivismo jurídico: (a)
tratas inseridas em um texto legal. Ao contrário, a partir o direito é um conjunto de regras assim identificadas
da base em sua sociologia descritiva – que elide o for- por uma regra de reconhecimento, que utiliza um teste
malismo exagerado da Escola da Exegese – Hart admite, de pedigree para tanto, ou seja, importa apenas a fonte
similarmente a Kelsen, que a interpretação de regras, da norma, e não seu conteúdo ou peso moral; (b) o con-
pela própria natureza da linguagem, não assegura sem- junto dessas regras corresponde integralmente ao que
pre uma interpretação unívoca. Expõe que muitas vezes seja o Direito, e não havendo uma regra para solucionar
as regras, sejam elas primárias ou secundárias, possuem o caso o juiz recorrerá a seu discernimento para julgar
uma zona de foco de certeza positiva e uma zona de da melhor maneira que entender; (c) “dizer que alguém
foco de certeza negativa, entre as quais identifica-se tem uma obrigação jurídica é dizer que seu caso se en-
uma zona cinzenta de possibilidades interpretativas na quadra em uma regra jurídica válida que exige que ele
qual o intérprete/aplicador, entre eles o juiz, exerce uma faça ou se abstenha de fazer alguma coisa” (Dworkin,
discricionariedade na escolha do sentido. Ademais, es- 2002, p. 28).
sas zonas de foco podem mudar ao longo do tempo, Dworkin rejeita essas teses mediante a afirma-
correspondendo ao que o autor denomina de textura ção da existência de princípios, normas que valem en-
aberta da norma. quanto Direito não porque passam por um teste formal
O positivismo de Hart não tem, portanto, uma estabelecido por uma regra de reconhecimento, mas
relação necessária com o formalismo jurídico, que pode tão somente por seu peso moral. A validade dos prin-
ser justificado mesmo por uma razão histórica e social, cípios, pois, não é uma questão de pedigree (da fonte
porquanto o mundo anglo-saxão não experimentou do social de onde provém a norma), mas de seu conteúdo.
mesmo entusiasmo francês em torno das grandes codi- Com isso, ele elide a primeira tese do positivismo jurídi-
ficações e sua visão política a respeito do parlamento co indicada acima em “a”. O autor ressalta ainda outras
é menos racionalista do que a que moldou o Estado características dos princípios, como sua aplicação me-
de Direito francês logo após a revolução. Em verdade, diante ponderação; no entanto, esses outros aspectos
houve uma reação no mundo inglês ao absolutismo do perdem relevância no desenvolvimento do pensamento
parlamento, encarado como portador pleno da vontade de Dworkin em suas obras seguintes, tornando-se ca-
geral que a tudo se sobrepõe, e ao racionalismo formal racterísticas secundárias dos princípios, cuja feição prin-
que queria expurgar todos os elementos da tradição e cipal é ter validade jurídica por seu peso moral e não
costume, os quais, ao contrário, constituíram base de atender a critérios de uma regra de reconhecimento.
toda a compreensão político-institucional inglesa. Ao admitir a validade de princípios, Dworkin
Posta a base do positivismo analítico nesses ter- postula que o Direito não se exaure nas regras, tendo
mos, o principal desafio veio da própria tradição anglo- critérios para controlar a discricionariedade diante da
-saxã e de um ex-orientando de Herbert Hart: o ameri- insuficiência delas em regular um caso, refuta dessa ma-
cano Ronald Dworkin. neira a segunda tese positivista descrita acima em “b”:
O debate Hart/Dworkin, que não se limita a tex- não haveria uma discricionariedade em um sentido forte
tos dos dois autores, mas, sobretudo, de diversos teóri- do intérprete/aplicador, diante da restrição imposta por
cos que desenvolvem as propostas de um e de outro, é princípios. Por fim, dizer que alguém tem uma obrigação
central na teoria do Direito nas últimas décadas, tendo não é mais um caso que simplesmente se enquadre em
mesmo reverberado na tradição do Direito continental. uma regra, porque também poderá haver obrigações

354 Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), 10(3):348-361


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determinadas por princípios, rejeitando a tese apontada pios com validade moral. É o que explica mais uma
acima em “c”. vez Shapiro (2007):
O não positivismo de Dworkin não se exaure
apenas em sua tese dos princípios. Em “O Império do Positivists, therefore, appear to be in an awkward posi-
Direito”, o autor investe contra a base epistemológica tion. If they wish to deny the existence of theoretical
do positivismo e a neutralidade do Direito em relação à legal disagreements, they are forced to say that legal
scholars are so confused about the practice they study
moral com seu interpretativismo para, com esteio nele,
that they routinely engage in incoherent argumenta-
erigir o Direito como integridade. Dworkin identifica tion. This result is unattractive but perhaps not fatal.
que há certos desacordos em torno do Direito que For it cannot be demanded that legal theories fit ev-
são ignorados pelo positivismo em função do aguilhão ery lawyerly preconception. Lawyers can certainly be
semântico, ou seja, na crença epistemológica do posi- wrong about the practice in which they participate.
tivismo de que os desacordos entre teorias jurídicas What the positivist must show, however, is that there
ocorrem porque uma das teorias não está descrevendo are compelling theoretical reasons to either dismiss
adequadamente o objeto. No entanto, Dworkin propõe or reinterpret the self-understanding of these experts.
que não há um conceito de Direito, em torno do qual Whether this can be shown is a question that positiv-
ists have yet to face.
as teorias disputam por uma maior precisão em descre-
vê-lo, há apenas concepções de Direito, variáveis pela
Mas a tentativa de responder às críticas de
perspectiva moral necessária.
Dworkin, especialmente ao desafio dos princípios com
O americano entende que os desacordos exis-
validade moral, muda o positivismo definitivamente, que
tem porque os critérios morais condicionam necessa-
se desdobra em positivismo inclusivo e exclusivo. O pri-
riamente a concepção do Direito, que justamente por
meiro também é denominado de positivismo brando e
ser um fenômeno interpretativo só pode ser apreendi-
tem seus marcos lançados pelo posfácio de Hart (2009)
do por uma interpretação moral. É partir disso que ele
em resposta a Dworkin (2002), no qual, em apertada
propõe o Direito como integridade, por propor a com-
síntese, rejeita que a regra de reconhecimento estabe-
preensão do Direito a partir de uma comunidade de
leça apenas critérios formais de pedigree para dizer o
princípios que dá coesão e permite a compreensão do
que é ou não Direito, podendo adotar critérios morais
Direito como uma obra conjunta. Com isso, Dworkin
para tanto. Por sua vez, o positivismo exclusivo defende
não só rejeita a tese da separabilidade entre Direito e
que o Direito é conceitualmente incompatível com a
moral, mas também a tese dos fatos sociais e o conven-
incorporação da moral pelo Direito, seja porque é in-
cionalismo; tudo a partir de uma base epistemológica
compatível com a lógica da autoridade – versão de Raz
distinta, interpretativista, e com a ideia de integridade.
(1979) ao defender que o Direito, como razão de se-
Sobre essa segunda e mais bem formulada crítica de
gunda ordem, requer autoridade no sentido de que as
Dworkin, escreve Shapiro (2007):
prescrições jurídicas são obrigatórias não porque sejam
Perhaps Dworkin sensed the impasse as well, for his morais, mas porque são jurídicas, sob pena de o Direito
critique changed dramatically after ‘The Model of Rules ser desnecessário ao ponto de bastar a moral –; seja
I.’ As we will see, the new objection, first broached porque atenta contra a lógica dos planos – versão de
in ‘The Model of Rules II’ but fully developed only in Shapiro (2017), ao entender que o Direito pressupõe
Law’s Empire, attempts to show that legal positivists um planejamento que impede a constante revisão do
are unable to account for a certain type of disagree- que foi prescrito, o que é possibilitado caso se insira
ments that legal participants frequently have, namely, elementos morais.
those that concern the proper method for interpret- É possível, com Kenneth Himma (2002), dar uma
ing the law. The only plausible explanation for how
descrição geral das teses do positivismo e como cada
such disagreements are possible, Dworkin claimed, is
that they are moral disputes. Contrary to legal positiv-
versão atual lida com elas. Para o autor, a tese dos fa-
ists, therefore, Dworkin argued that the law does not tos sociais, como já dito neste trabalho, entende que o
rest on social facts alone but is ultimately grounded in Direito é uma criação social ou um artefato que exige,
considerations of political morality as well as institu- por via de consequência, ser tratado como uma questão
tional legitimacy. de fato e não de conteúdo moral. Assim, saber o que é
Direito é identificar uma fonte autorizada. Pela tese da
Essa segunda crítica de Dworkin ao positivis- convencionalidade, o critério de validade jurídica é uma
mo não recebe resposta tão eficiente quanto à for- convenção em especial entre os officials. Essa tese pos-
mulada a sua primeira proposta de identificar princí- sui uma versão forte e outra fraca. Pela versão forte da

Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), 10(3):348-361 355


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tese da convencionalidade, a regra de reconhecimento opostos. É possível se apresentar teorias alternativas ao


é uma regra impositiva que constrange os officials, en- positivismo, mas não porque este tenha decaído a uma
quanto a versão fraca diz que o critério de definição do falência teórica com teses não mais sustentáveis, e sim
que seja o Direito não integra o próprio Direito, como por ser uma teoria melhor em algum aspecto que não o
uma de suas normas, sendo apenas um critério teórico seja o positivismo, que ainda é uma corrente majoritária
da ciência do Direito. Por fim, a tese da separabilidade de entender o fenômeno jurídico.
entre Direito e moral possui dois níveis: (a) meta-nível, Destacadas as principais características do po-
no qual propõe que a definição do Direito independe de sitivismo jurídico, é chegado o momento de analisar
qualquer elemento moral, seria o que já se denominou, as ideias do pós-positivismo jurídico e os fundamen-
aqui, de nível epistemológico; (b) nível-objeto, em que a tos por ele utilizados para sustentar a superação da
separação entre Direito e Moral serve para indicar que teoria positivista.
a validade de uma norma enquanto Direito independe
de critérios morais. Não diz respeito, pois, ao conteúdo O pós-positivismo dominante no
da norma, nem sua finalidade ou a uma aplicação moral
neoconstitucionalismo brasileiro
da norma, mas apenas e tão somente sua validade. O
modo como cada teórico enfrenta cada uma dessas O objetivo desse tópico é apresentar os con-
teses qualifica uma corrente. ceitos fundamentais do pós-positivismo na tentativa de
O positivismo inclusivo parte da premissa epis- identificar as razões utilizadas pelos seus seguidores
temológica de que é possível descrever o Direito sem para sustentar a superação do positivismo jurídico. No
juízo de valor (meta-nível), mas admite que, mesmo entanto, para que essa superação efetivamente ocorra, o
provindo de um ato humano, é possível exigir critérios pós-positivismo deve refutar as três teses fundamentais
morais acrescidos de um teste de pedigree (ou seja, da do positivismo: separabilidade, convencionalidade e dos
fonte de onde provém) para determinar a validade de fatos sociais.
uma norma jurídica. A relação entre Direito e Moral, Para bem destacar as características fundamen-
portanto, não é necessária, mas apenas contingencial, tais do pós-positivismo, é relevante destacar os aspec-
dependendo do que dispõe a regra de reconhecimento tos que caracterizam o neoconstitucionalismo, como
de cada comunidade. Mantém, pois, a ideia de que todo o qual vem normalmente imbricado no Brasil, sendo
Direito provém de uma fonte formal autorizada, apenas aquele apontado como razão filosófica para este. Como
admite que essa fonte possa adicionalmente exigir um adverte Daniel Sarmento (2009, p. 31), não é uma tare-
critério moral para a validade jurídica. Os positivistas fa fácil defini-lo, mas é possível sintetizar as seguintes
inclusivos divergem ente si, no entanto, em aspectos de mudanças operadas tanto na teoria jurídica quanto na
como se dá essa relação: se basta a previsão normativa prática dos tribunais:
ou demanda, ainda, uma prática moral; se esse critério
da regra de reconhecimento é necessário ou suficiente; (a) reconhecimento da forma normativa dos princípios
e, por fim, se o Direito se relaciona com uma moral jurídicos e valorização da sua importância no proces-
racional ou social. so de aplicação do Direito; (b) rejeição ao formalismo
Já o positivismo exclusivo toma a tese do fato e recurso mais frequente a métodos ou “estilos” mais
social no sentido forte, por entender que todo Direito abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, te-
provém de ato humano, determinado por um teste de oria da argumentação etc; (c) constitucionalização do
Direito, com a irradiação das normas e valores consti-
pedigree, sem admitir a possibilidade de incorporação
tucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fun-
de critérios morais, seja porque o Direito requer au- damentais, para todos os ramos do ordenamento; (d)
toridade (Raz), seja porque essa incorporação iria de reaproximação entre o Direito e a Moral, com a pene-
encontro à lógica dos planos, que seria a inerente ao tração cada vez mais da Filosofia nos debates jurídicos;
raciocínio jurídico (Shapiro). As claras menções a con- (e) judicialização da política e das relações sociais, com
ceitos morais constantes em lei ou mesmo na Consti- um significativo deslocamento de poder da esfera do
tuição seriam não incorporações de critérios morais, Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário.
mas a remessa ao ordenamento moral, diante de uma
limitação Direito. Daniel Sarmento (2009, p. 33) esclarece ainda que
Em conclusão, não é lícito afirmar que o posi- os adeptos do neoconstitucionalismo buscam embasa-
tivismo foi superado, pois modificou-se a ponto de mento no pensamento de juristas que se filiam a linhas
conseguir comportar vários desafios que lhes vêm se bastantes heterogêneas, como Ronald Dworkin, Robert

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Alexy, Peter Härbele, Gustavo Zagrebelsky, Luigi Ferrajoli Essa breve exposição dos movimentos neocons-
e Carlos Santiago, mas nenhum destes se define hoje, ou já titucionalistas e pós-positivas pode se mostrar útil para
se definiu no passado, como neoconstitucionalista. extrair as seguintes conclusões. O neoconstitucionalis-
A mesma dificuldade também é encontrada para mo pode ser caracterizado pelo seguinte sumário: (a)
se destacar os pilares fundamentais do pós-positivismo. propõe o fortalecimento da Constituição como autênti-
Não há uma definição clara e precisa do objeto de estu- ca norma jurídica que autoriza imediatamente condutas;
do seja do neoconstitucionalismo, seja do pós-positivis- (b) defende a normatividade dos princípios, que devem
mo. Contudo, Hugo de Brito Machado Segundo (2009, p. ser vistos como espécies de normas jurídicas, que con-
70) destaca as seguintes características do pós-positivis- sagram valores e são os meios de resgatar a relação
mo, de forma aproximada e não definitiva: entre Direito e Moral; (c) a necessidade de uma nova
hermenêutica, em razão do caráter aberto, indetermi-
(a) a norma jurídica, sendo o sentido de um ato de nado e político das normas constitucionais; (d) a cons-
linguagem, é necessariamente determinada pelo intér- titucionalização do Direito, passando a Constituição a
prete, que “completa” um trabalho iniciado, mas só ini- ocupar o centro do ordenamento jurídico, outrora ocu-
ciado, pelo legislador; (b) na determinação da norma pado pelos códigos; (e) uma maior judicialização da po-
aplicável, o intérprete parte dos textos normativos, lítica e das relações sociais centrada no fortalecimento
mas considera sobretudo os princípios aplicáveis e
e ampliação da atuação do Poder Judiciário, que passa a
as peculiaridades do caso concreto, em face das quais
assumir lugar de destaque na interpretação, aplicação e
esses princípios são ponderados; (c) os princípios são
mandamentos que determinam a promoção de deter- preservação das garantias e direitos fundamentais.
minados valores ou objetivos com a maior intensidade Já o pós-positivismo pode ser descrito pelas se-
possível. Estão consagrados, implícita ou explicitamen- guintes afirmações: (a) o propósito central desse pensa-
te, no texto constitucional, (d) na determinação da mento é o de destacar a superação do positivismo jurí-
norma aplicável ao caso, o intérprete há de realizar a dico com a afirmação de que o sistema jurídico não é
conciliação dos princípios aplicáveis, de modo a adotar formado exclusivamente por regras jurídicas, com uma
a solução que os realize de forma ‘ótima’, vale dizer, aplicação subsuntiva, tendo em vista os princípios, que
com a maior intensidade possível. Em caso de con- devem ser utilizados para soluções dos casos difíceis
flito entre os princípios implicados, deve haver uma mediante ponderação; (b) a necessária inclusão da Moral
ponderação, de sorte a que se adote a solução que
como critério de correção e validade do sistema jurídico;
os realize da forma mais equilibrada possível; (e) os
direitos indispensáveis à promoção da dignidade da
a validade da norma jurídica passa a depender de crité-
pessoa humana estão positivados na Constituição, im- rios formais (procedimento e fonte) e materiais (justiça,
plícita ou explicitamente, em normas que podem ter moral e outros valores), ou seja, prega a aproximação
estrutura de princípio. São os direitos fundamentais; (f) entre o Direito e a justiça, mas por meio dos direitos
os direitos fundamentais, até por serem consagrados fundamentais, que seria encarados como uma ordem
em norma com estrutura de princípio, não têm como objetiva de valores; (c) por fim, defende uma interpreta-
ser protegidos de forma absoluta.Têm de ser concilia- ção que aproxime Direito e realidade, com o abandono
dos, ou ‘relativizados’, com aplicação do postulado da do formalismo, sendo necessário para tanto compreen-
proporcionalidade, de forma a que seja possível o con- der que texto e norma jurídica são realidades que não
trole intersubjetivo e racional da decisão respectiva. se confundem, que o intérprete não é neutro, que o ra-
ciocínio não é objetivo e que a ideia de completude do
Ainda, na precisa lição de Bruno Torrano Amo- ordenamento jurídico não passa de uma ficção jurídica.
rim de Almeida (2012, p. 6463):

Nesse ponto, devemos deixar claro que, em meio ao Análise das críticas
caos do kosmos jurídico, o ‘pós-positivismo’ apresen- formuladas pelo pós-positivismo
ta-se ao público como um movimento (i) que possui ao positivismo jurídico
uma estrita vinculação ao chamado neoconstitucio-
nalismo, ainda que este seja mais restrito; e (ii) que
Ao se observar adequadamente as caracterís-
procura ‘superar’ os ensinamentos basilares do posi-
tivismo jurídico por meio da defesa de que o Direito ticas tanto do neoconstitucionalismo quanto do pós-
possui uma vinculação conceitual necessária com a -positivismo sumariadas no item anterior, já bem conhe-
Moral – daí extraindo os mais diversos efeitos, como a cidas em diversas obras, identifica-se uma oposição não
right thesis dworkiniana, a pretensão de correção nor- ao positivismo de um modo geral, mas ao formalismo
mativa alexyana, a ‘ductibilidade’ de Zagrebelsky etc. jurídico e ao legalismo de um modo especial. Isso é

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Lopes Filho, Lobo e Cidrão | O positivismo jurídico foi superado no neoconstitucionalismo?

percebido no que é dito pelo neoconstitucionalismo a tos na Constituição; valem porque é uma decorrência
respeito da nova hermenêutica jurídica, da força nor- própria de uma comunidade de princípios que adota
mativa da Constituição e da expansão da jurisdição uma moral concorrente identificável nas várias decisões
constitucional. No entanto, esses três temas, mesmo políticas que a conformam. Portanto, no Direito como
revisitados, não refutam necessariamente um viés posi- integridade, o modo de aplicação dos princípios por
tivista. Com efeito, o positivismo brando absorve a crí- ponderação não é algo determinante para a superação
tica dos princípios, admitindo normas que passem por do positivismo, mas sim sua validade moral independen-
um crivo moral para serem válidas, desde que a regra temente de um reconhecimento formal em uma regra
de reconhecimento assim preveja, o que ocasiona uma de reconhecimento. Esse é o ponto fundamental da pri-
inserção da Moral no Direito, e abandona o formalismo meira crítica de Dworkin ao positivismo e que não é
em prol de uma visão mais atenta à realidade. Repita- incorporado no pós-positivismo.
-se: apenas trazer que os princípios possuem conteúdo No meta-nível epistemológico, nem o pós-positi-
moral e possuem uma determinada forma de aplicação vismo nem o neoconstitucionalismo abraçam a contra-
ou demandem uma interpretação específica quando es- posição entre conceito e concepções de Direito, nem
tatuídos pela Constituição não importa rejeição ao po- dizem que cada específica concepção de Direito é ne-
sitivismo, mas apenas e tão somente ao formalismo e ao cessariamente condicionada por uma perspectiva moral.
legalismo aos quais se aliaram algumas versões já antigas Segundo essa perspectiva, muitos desacordos jurídicos
dessa corrente. não são desacordos de fatos (acerca da fonte do direito
Portanto, o pós-positivismo enfrenta a tese da e sua interpretação), mas em um nível mais profundo
separabilidade entre Direito e Moral, mas no meta-nível acerca da própria concepção do Direito em função da
epistemológico não refuta a concepção positivista de Moral, o que autoriza um enfrentamento mais apropria-
que o Direito pode ser descrito independentemente de do desses desacordos, que, no positivismo, é tratado
qualquer juízo moral; e no nível-objeto admite a ques- ainda como uma questão de fato que, pode autorizar
tão da validade jurídica por critérios morais, mas não decisionismos, próprios de uma discricionariedade ad-
como a Moral sendo critério suficiente de validade, mas mitida por essa corrente, ainda que brando. Explica-se.
apenas necessário, de modo a ainda depender de uma Quando Dworkin fala dos princípios como nor-
fonte formal que prescreva a exija tais critérios morais, mas jurídicas com validade em função de seu peso mo-
que via de regra é a Constituição, em seu capitulo dos ral, justifica esses princípios dentro de uma comunidade
direitos fundamentais. que requerer integridade, ou seja, uma convergência
O pós-positivismo nada diz a respeito da tese principiológica maior, que não pode ser reduzida a uma
da convencionalidade, embora fique pressuposta nele a regra de reconhecimento por mais complexa que seja.
tese forte acima descrita, bem como admite a tese das Também não pode ser reduzida à concepção do neo-
fontes, porque busca identificar em fortes formais do constitucionalismo de que a relação se daria pelo capí-
Direito, mais precisamente na Constituição e, em espe- tulo dos direitos fundamentais. A integridade exige uma
cial, no capítulo dos direitos fundamentais a dimensão e análise mais ampla das várias decisões políticas daquela
a medida em que se relaciona Direito e Moral. comunidade, e não a pontuada apenas em um documen-
Isso não é bastante para superar o positivismo, to jurídico, que carece de uma determinada maneira de
ao contrário, mantém-se dentro de seu espectro, que interpretação. Admitir a validade moral dos princípios
comporta muitas das concepções hermenêutica e de sem a integridade, reduzindo sua compreensão a uma
aplicação que se propõe como complemento a essa questão de interpretação de determinada disposição
constatação da relação contingencial entre Direito e constitucional isolada ocasiona a discricionariedade
Moral. Conquanto se aponte Dworkin como referencial hermenêutica, que remota ao quadro hermenêutico
teórico, o Direito como integridade do americano pou- kelseniano ou a zona de penumbra de Hart, nas quais
co tem a ver com o pós-positivismo ou muito menos o juiz decide conforme elementos políticos ou mesmo
com o neoconstitucionalismo, porque duas de suas te- individuais. No entanto, essa discricionariedade vai ainda
ses fundamentais sequer são cogitados por essas pers- além, caindo em um decisionismo, fruto da predação do
pectivas. Com efeito, Dworkin propõe no nível-objeto Direito pela Moral, além de ampliar mesmo a margem
que a Moral é critério suficiente para a validade jurídica, de discricionariedade por alargar o conceito de casos
independentemente de previsão em capítulo específico difíceis, não como aqueles que envolvem conflitos de
da Constituição. Os princípios valem por seu peso mo- princípios ou de concepções de Direito, mas apenas o
ral, e não por veicularem direitos fundamentais previs- que levantasse dúvida hermenêutica em torno de dis-

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Lopes Filho, Lobo e Cidrão | O positivismo jurídico foi superado no neoconstitucionalismo?

positivos constitucionais, o que é muito mais frequente mortes) muito superiores aos benefícios da criminali-
e mesmo pressuposto pelo positivismo2. Trace-se um zação (Brasil, 2016, p. 18).
exemplo para demonstrar o que se está a dizer.
No julgamento do HC 124.306/RJ, foi discutida O Ministro, no entanto, trata o caso como uma
perante o Supremo Tribunal Federal a possibilidade da questão de sopesamento entre os princípios “vida po-
concessão da medida constitucional a pacientes acusa- tencial do feto” e vários “direitos fundamentais da mu-
dos pelos crimes dos artigos 1243 e 1264 do Código Pe- lher” (tendo, inclusive, trazido os ensinamentos de Ro-
nal, relacionados ao aborto. O ministro Roberto Barro- bert Alexy sobre a questão), sem, no entanto, identificar
so, que do ponto de vista doutrinário está entre os mais porque isso seria um caso difícil para o qual a solução
entusiastas defensores do neoconstitucionalismo, votou legislativa já dada não seria adequada. Parte de um grau
a favor da concessão do HC tendo como fundamentos zero de compreensão, pressupondo que sua posição
basicamente dois motivos: (1) a ausência de requisitos institucional é melhor que a do legislador. Diante dessa
do art. 312 do Código de Processo Penal para a decre- maneira solipsista de se enfrentar o caso, é de se ques-
tação da prisão preventiva; (2) a inconstitucionalidade tionar até que ponto a interferência da Moral no Direi-
da criminalização da interrupção voluntária da gestão to ou mesmo das preferências pessoais dos julgadores
efetivada no primeiro trimestre da gravidez. é capaz de inquinar uma decisão legislativa, sob pena de
Ao que interessa para os fins do presente estu- se inserir em cada lei votada pelo parlamento legitima-
do, importa analisar o segundo argumento do ministro, mente eleito uma condição resolutiva de chancela pelo
que buscou “examinar a própria constitucionalidade Judiciário, que, não eleito, não se importa com princípios
do tipo penal imputado aos pacientes e corréus, já que de moralidade política em um contexto de integridade,
a existência do crime é pressuposto para a decretação mas sua capacidade de impor suas concepções próprias
da prisão preventiva” (Brasil, 2016, p. 4). Em seu voto, e individuais a respeito do tema.
questionou a própria constitucionalidade da norma Contudo, o Direito não deve ser elidido pela
penal – ou, para ser preciso, a não recepção dos re- Moral, sobretudo por uma moral individual de um único
feridos dispositivos do Código Penal (1940) pela atual julgador. O positivismo não propõe isso, muito menos as
Constituição de 1988) - em estudo por meio de uma correntes não positivistas, como o interpretativismo de
argumentação puramente política baseada também em Dworkin. Ao contrário, o Direito visa a dar contornos
conceitos morais do próprio ministro, e não buscando racionais e socialmente aceitos para o que se conven-
uma integridade na moral política da comunidade jurí- cionou “bom para todos” (ou, pelo menos, para a maio-
dica brasileira, a fim de solucionar o problema que en- ria). Deverá haver, portanto, condições mínimas de o
xergava na questão. É de se duvidar, porém, mesmo se Direito conseguir sobreviver à Moral e às preferências
tratar de um caso difícil, dada a clara opção legislativa políticas de cada julgador. Nesse aspecto, tem-se prática
e a falta de princípios íntegros encontráveis em outras verdadeiramente arbitrária.
decisões políticas da comunidade, e não na mera con- As críticas formuladas por Luís Roberto Bar-
vicção pessoal do ministro, que apontasse uma escolha roso ao positivismo em suas obras doutrinárias são
legislativa contrária aos princípios. Quando muito, ha- uma crítica ao positivismo legalista e formalista, mas
via uma possibilidade hermenêutica alternativa, dentro não incorporam nem teses não positivistas nem bus-
de um quadro de possibilidades, mas que, no entanto, é cam solucionar ou admitir os problemas da discri-
muito comum na análise de fontes formais. cionariedade do aplicador/intérprete, própria do po-
No decorrer do seu voto, o Ministro Barroso elen- sitivismo; ao contrário, a reforça sob um manto de
ca a razoabilidade e a proporcionalidade como ferramenta
aplicação principiológica.
para se atingir a melhor solução para o caso concreto:
A relação entre Direito e Moral do pós-positi-
vismo não se dá no meta-nível epistemológico (ainda
Sopesando-se os custos e benefícios da criminalização,
torna-se evidente a ilegitimidade constitucional da ti- pressupõe um conceito de Direito identificável a par
pificação penal da interrupção voluntária da gestação, da Moral), e a maneira que a utiliza no nível-objeto da
por violar os direitos fundamentais das mulheres e validade não respeita, porém, premissas teóricas mais ri-
gerar custos sociais (e.g., problema de saúde pública e gorosas, ocasionando a predação do Direito pela Moral.

2
Matos e Souza (2017) chegam a equiparar apontar um perigoso viés nazifacista nessa predação do Direito pela moral na jurisdição brasileira.
3
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque: Pena - detenção, de um a três anos.
4
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos.

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Lopes Filho, Lobo e Cidrão | O positivismo jurídico foi superado no neoconstitucionalismo?

Em alguns aspectos, a proposta teórica e os jul- estabelecido, o qual simultaneamente lhe outorga o po-
gamentos judiciais de Barroso se aproximam mais de der de legislar e restringe esse poder”.
um positivismo exclusivo em que a aplicação do Direi- Por fim, Luís Roberto Barroso (2005, p. 214)
to se dá para além de suas fronteiras, se estendendo ressalta que:
até critérios exteriores ao ordenamento jurídico para
a solução de conflitos pelas autoridades. No entanto, O marco filosófico do novo direito constitucional
ainda de uma perspectiva doutrinária, Barroso abraça a é o pós-positivismo. O debate acerca de sua carac-
impossibilidade de neutralidade e objetividade na identi- terização situa-se na confluência das duas grandes
correntes de pensamento que oferecem paradigmas
ficação do Direito. Escreve (2001, p. 10):
opostos para o Direito: o jusnaturalismo e o positivis-
mo. Opostos. Mas, por vezes, singularmente comple-
As reflexões acima incidem diretamente sobre dois
mentares. A quadra atual é assinalada pela superação
conceitos que integram o imaginário do conhecimen-
- ou, talvez, sublimação - dos modelos puros por um
to científico: a neutralidade e a objetividade. Ao menos
conjunto difuso e abrangente de ideias, agrupadas sob
no domínio das ciências humanas e, especialmente no
o rótulo genérico de pós-positivismo.
campo do Direito, a realização plena de qualquer um
deles é impossível. A neutralidade, entendida como um
distanciamento absoluto da questão a ser apreciada, Ora, como é possível afirmar que o marco filo-
pressupõe um operador jurídico isento não somente sófico do novo Direito Constitucional, leia-se neocons-
das complexidades da subjetividade pessoal, mas tam- titucionalismo, é o pós-positivismo jurídico se as teses
bém das influências sociais. Isto é: sem história, sem centrais do positivismo jurídico permanecem intactas, e
memória, sem desejos. Uma ficção. não foram sequer revisitadas? Em verdade, o que ocor-
reu foi uma mudança do constitucionalismo liberal para
No que se refere à neutralidade na identifica- o constitucionalismo social, mudança de paradigma polí-
ção do Direito, faz-se necessária para preservar a sua tico ou ideológico, mas não filosófico (Almeida, 2012, p.
própria autoridade, sem a qual não há que se falar em 6464). Ademais, há uma incorporação incompleta de te-
Direito. Como bem pontua Bruno Torrano Amorim de ses não positivistas como o interpretativismo e o Direi-
Almeida (2012, p. 6479), “essa neutralidade na identifi- to como integridade de Dworkin e mesmo a teoria dos
cação do Direito é imprescindível à teoria positivista e direitos fundamentais de Alexy. Com efeito, de Dworkin
visa preservar a própria noção de normatividade. O que invoca-se o conteúdo moral dos princípios, mas não o
seria do Direito se, para existir, dependesse da concep- interpretativismo como base epistemológica nem o Di-
ção particular de uma pessoa?”. reito como integridade na base teórica. De Alexy, absor-
Quanto à suposta objetividade na identificação do ve a ponderação de direitos, mas sem submetê-la aos
Direito, esclarece Luís Roberto Barroso (2001, p. 11) que: rígidos critérios de argumentação jurídica daquele ou
mesmo a relevância de princípios formais que presti-
A moderna dogmática jurídica já superou a ideia de giam a resposta do Legislativo em detrimento de uma
que as leis possam ter, sempre e sempre, sentido uní- nova ponderação judicial substitutiva àquela.
voco, produzindo uma única solução adequada para
Enfim, o pós-positivismo é uma não-teoria, por-
cada caso. A objetividade possível do Direito reside no
conjunto de possibilidades interpretativas que o relato que se opõe apenas a uma versão simplória ou mesmo
da norma oferece. posta como espantalho de um positivismo ainda vincu-
lado ao formalismo e ao legalismo, que não é – e talvez
Ao que parece, há redução do positivismo ju- nunca tenha sido – definido com maior rigor teórico
rídico ao positivismo exegético. Este último prega a pelos próprios positivistas.
ideia de plenitude da lei (dos Códigos), da exegese
textual/sentido único e apego à vontade do legislador. Conclusão
Como visto linhas atrás, isso foi refutado por Kelsen
e Hart. Tentou-se aqui neste ensaio apresentar argu-
No mesmo sentido é a ideia de completude da mentos a favor da (sobre)vida da teoria positivista, não
legislação, que deve ser atribuída ao positivismo exegé- porque se a entenda como a melhor e mais adequada
tico, e não ao positivismo jurídico como um todo. Hart para o Direito na atualidade (particularmente se en-
(2009, p. 351), mais uma vez, é claro ao afirmar que, “as- tendem mais precisas as colocações de Dworkin, en-
sim, nesses casos não regulamentados juridicamente, o riquecidas com aportes da hermenêutica filosófica ga-
juiz ao mesmo tempo cria direito novo e aplica o direito dameriana e da crítica hermenêutica do Direito), mas

360 Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), 10(3):348-361


Lopes Filho, Lobo e Cidrão | O positivismo jurídico foi superado no neoconstitucionalismo?

por uma questão de rigor científico com o que a teoria Acesso em: 05/06/2018.
positivista é atualmente em suas várias versões.As bases CANARIS, C.-W. 2002. Pensamento sistemático e conceito de sistema na
ciência do direito. 3ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 311 p.
pós-positivistas do neoconstitucionalismo são pouco DWORKIN, R. 2002. Levando os direitos a sério. Tradução e notas Nel-
precisas, na medida em que não são hábeis a superar o son Boeira. São Paulo, Martins Fontes, 586 p.
positivismo jurídico nos termos em que ela é formulada HART, H.L.A. 2009. O conceito de direito. São Paulo, WMF Martins Fon-
na atualidade. O positivismo, ao longo dos anos, tem se tes, 399 p.
HIMMA, K.E. 2002. Inclusive Legal Positivism. In: J.L. COLEMAN; S.
transmudado e se aperfeiçoado o suficiente para reba-
SHAPIRO (eds.), Oxford Handbook of Jurisprudence and legal Philosophy.
ter as críticas feitas, não tendo melhor efeito as formu- Oxford, Oxford University Press. Disponível em: https://ssrn.com/ab-
ladas pelo neoconstitucionalismo. stract=928098. Acesso em: 05/05/2018.
Muitas das imprecisões observadas em julga- KELSEN, H. 2009. Teoria pura do direito. 8ª ed., São Paulo, WMF, 427 p.
mentos e lições doutrinárias deitam raízes profundas na MACHADO SEGUNDO, H. de B. 2009. Fundamentos do ordenamento
jurídico: liberdade, igualdade e democracise a como premissas necessárias à
equivocada ideia de superação de positivismo. Reputa- aproximação de uma justiça possível. Fortaleza, CE. Tese de Doutorado.
-se demonstrado aqui, então, que todas as superações Universidade de Fortaleza, 268 p.
sugeridas pelo pós-positivismo são respondidas, de al- MATOS, A.S.M.C.; SOUZA, J.K. de S. 2017. Sobrevivências do nazifas-
guma forma, pelas teses do positivismo, e daí emergem cismo na teoria jurídica contemporânea e seus reflexos na interpreta-
ção judicial brasileira. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e
suas duas falhas: (a) por deixar intocada as bases po- Teoria do Direito (RECHTD), 9(3):295-310.
sitivistas, não apresenta um aporte teórico alternativo https://doi.org/10.4013/rechtd.2017.93.08
autônomo e não realiza adequadamente a pretensão OLIVEIRA, M. de A. 2006. Reviravolta Linguístico-Pragmática na Filosofia
de emprestar um olhar substancial ao Direito que bem Contemporânea. 3ª ed., São Paulo, Loyola, 427 p.
lide com profundos desacordos teóricos; (b) por não RAZ, J. 1979. The authority of law: essays on law and morality. Oxford,
Oxford University Press, 340 p.
se admitir positivista, não incorpora a integralidade das https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780198253457.001.0001
teses do positivismo inclusivo, restando incoerente e in- SARMENTO, D. 2009. O neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e
completa, um meio termo entre teses não positivistas e possibilidades. In: M. NOVELINO (org.), Leituras complementares de di-
inclusivistas. reito constitucional:Teoria da Constituição. Salvador, Juspodivm, p. 31-68.
SHAPIRO, S.J. 2017. The Planning Theory of Law. Yale Law School Public
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SHAPIRO, S.J. 2007. The Hart-Dworkin Debate: A Short Guide for the Per-
ALMEIDA, B.T. de. 2012. Contra o pós-positivismo: breve ensaio sobre plexed. Mar. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=968657. Acesso
o conteúdo e a importância teórica do positivismo jurídico. Revista do em: 19/05/2018.
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stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12580345. Aceito: 16/01/2019

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