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WILSON COÊLHO
ANTONIN ARTAUD:
A LINGUAGEM NA DESINTEGRAÇÃO DA PALAVRA
Vitória
2005
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WILSON COÊLHO
ANTONIN ARTAUD:
A LINGUAGEM NA DESINTEGRAÇÃO DA PALAVRA
Vitória
2005
3
Ficha Catalográfica
4
DEFESA DE DISSERTAÇÃO
BANCA EXAMINADORA
Dedicatória
Aos meus filhos Uyara, Tahina, Jaciendy e Oiran por me ajudarem a compreender melhor o
mundo.
A todos os loucos.
6
Agradecimentos
A todos os professores que desde o ensino primário fazem parte desse meu percurso.
A Catherine Faudry que desde sua pesquisa em Grenoble e sua entrevista com o
Tarahumaras nos incentivou levar adiante a empreitada.
A Silviano Santiago, Marco Lucchesi, Oscar Gama, Beto Murta, Romildo Almeida, Nilson
Camizão, Natalia Branco, Ene Zopelari, Berenice Pahins e tantos outros que participaram
do projeto de “Centenário de Antonin Artaud” na ilha batizada de Artaudville.
7
A todos que de uma forma ou de outra contribuíram e ainda contribuem para a pesquisa
não termine nunca.
“eram palavras
que existiam
ou não existiam
diante
da urgência premente
de uma necessidade:
a de suprimir a idéia,
a idéia e seu mito,
e de fazer reinar em seu lugar
8
a manifestação tonitroante
dessa explosiva necessidade:
dilatar o corpo de minha noite interna.”
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO, 11
4. PALAVRA, 70
5. CONCLUSÃO, 98
6. CRONOLOGIA, 105
RESUMO
RÉSUMÉ
INTRODUÇÃO
pode parecer um reconhecimento daquilo que é óbvio para um autor que, somente
pela Gallimard, tem aproximadamente 20.000 páginas impressas. Mas – por outro
lado – considerando sua postura frente à literatura tal e qual esta tem sido social e
afirmando que a mesma serve apenas para falsificar o jogo que existe na relação
entre nós e uma dada situação. Para ele, uma situação basta-se por si mesma e,
uma atenção de destaque. Também não se pode afirmar que a palavra em Artaud
Faz-se necessário ressaltar que o estilo cristalizado lhe causa horror e, mesmo
que em muitas das vezes seja flagrado utilizando-se de uma espécie de estilo do
qual abomina, ele queima todos os seus manuscritos e guarda apenas aqueles
três níveis de desintegração da palavra. A palavra, aqui, não deve ser entendida
1
VIRMAUX, 1990, p. 93.
14
alegorias, ou seja, escrever como se tem vontade de falar. Nesse sentido, faz-se
somente no seu discurso estético, mas, também, a partir de seus textos mesmos,
poemas, crônicas, cartas, peças, críticas, desenhos, etc. Daí, a escrita não se
palavras são usadas dentro das frases, bem como, as relações das frases entre si.
Mas não se trata de uma guerra contra a sintaxe, porém uma recusa à sujeição de
não dever ser considerada como um a priori para aquilo que se quer dizer. Há
sopro do espírito.
15
arte de bem dizer. É dizer que quando algo tem que ser dito, para Artaud, fica
teatro, ensaio, “carta”, etc), ou seja, aquilo que Artaud persegue, em sua essência,
Artaud nos deixou um documento maior, que nada mais é que uma Arte poética.
Reconheço que ele aí fala do teatro, mas o que está em causa é a exigência da
poesia de uma tal forma que ela poderá se realizar somente recusando os gêneros
limitados e afirmando uma linguagem mais original... então não se trata mais
2
somente do espaço real que o palco nos apresenta, mas de um outro espaço...?
Não é por acaso que, em determinado momento, ele afirma que: “o mais
mas o estado de ebulição moral no qual eles mergulham o espìrito dos homens”.
muitos casos, também não se pode negar a contribuição que outros textos e
outros autores podem e devem servir de objetos para ilustrar sua demarche. Por
a necessidade de passar por uma cirurgia. Não uma cirurgia medicinal, uma mera
2
VIRMAUX, 1970.
16
intervenção física, mas uma cirurgia ontológica onde o homem deve perder toda a
ação e a palavra-paixão?
possibilidade de discutir sobre uma escrita que está para além do discurso do
Antonin Artaud, tomando como base seu poema Ci-Gît (Aqui Jaz) traçando assim
uma congruência entre seus escritos e sua direção em prol de novos valores da
3
ARTAUD, 1989, p. 84.
17
tendo a poesia como espinha dorsal, vimos eleger como primeiro passo a tentativa
compromisso com esta espécie de lógica induzida pelo óbvio. Abaixo, esse
nuyon kidi
nuyon kadan
tara dada i i
ota papa
ota strakman
tarma strapido
ota rapido
ota brutan
otargugido
ote krutan (ARTAUD, 1989, p. 81)
sacos de orelhas humanas, narizes e narinas bem cortadas pelo correio”, mas da
18
crueldade como o caminho para realizar, conforme Artaud, uma cirurgia ontológica
Por outro lado, para melhor abrangência do tema em questão, existe ainda a
evidenciado quanto para abrir um caminho que sirva de trilha e suporte novas
Ci-gît (Aqui jaz), título de um poema de Antonin Artaud (Marseille, 1896 – Paris,
1948) que, apesar de escrito em 1947, somente no ano de 1974 foi publicado em
sua primeira edição, pela Gallimard, no volume XII de suas obras completas. O
livres.
nas cores preta, cinza e branca, com as medidas de 3,50 x 7,80 m, foi resultado
Internacional de Paris.
levar em conta que a mesma história que os referenda como partícipes e convivas
A priori, eleitos como foco de análise, o poema Ci-gît e o quadro Guernica, Artaud
sai em prejuízo numa relação direta com Picasso. Mas esse suposto prejuízo não
demarche e o percurso de criação de cada uma delas em quase nada podem ser
obras de arte implica numa sustentação em conceitos estéticos que dizem mais
mesma como um fenômeno entre o objeto criado e o artista criador. Aqui, trata-se
de uma referência ao fato de que o citado poema de Artaud, até hoje, permanece
quase que completamente desconhecido, tendo em vista que até então a maior
atenção dispensada – pela maioria dos estudiosos e/ou aficionados por ele – se
país de lingua portuguesa, não a consegui localizar. Tive que fazer a tradução
abrangência das artes pláticas, onde Picasso e, em especial, Guernica não seja
tentativa de fazer justiça ao mérito de Picasso nesta obra. Na maioria das vezes, o
verdadeiro que seja o discurso de Picasso contra a pintura feita para decorar
seu valor como obra de arte, ou seja, aquilo que há de universal e que supera a
Em Guernica, Picasso abre mão das cores e, de certa forma, é visto como alguém
acaso que, devido a sua estética, foi mal recebido por alguns setores da chamada
esquerda. Mas isso não significa que Picasso tenha se limitado às influências de
sua época como um tempo fixado no espaço, considerando que, como herdeiro
tauromaquia.
seu caráter de obra mais representativa do século XX, considerando que nessa
i Fabre:
caso da pintura, pode ser considerada a obra mais representativa do século XX,
também, no caso da poesia, Ci-Gît assume o seu lugar no espaço como o poema
4
FABRE, 1984. Poeta catalão, Joùsep Palau i Fabre, por muito tempo (durante o regime de Franco)
morou na França, onde – entre 1946 e 1948 – encontrava-se freqüentemente com Artaud. Nos textos dos
números especiais em que apareceram “Artaud”, das revistas 84 e K, ele assinou “O Alquimista”. Suas obras
foram reunidas na Espanha, há alguns anos, sob o título Poemas da Alquimia.
24
espécie de unidade, pois elas se dão de forma dialogal e, quiçás, como um conflito
característicos que implicam nas conotações culturais que, em muitas vezes, são
língua francesa acordada como oficial, há que se ressaltar que ele não a emprega
de um em si, considerando que a cada vez que ele a utiliza, mesmo entendida
diversos níveis de leitura, tanto na escrita ela mesma, como pela voz, passando
nos transporta para o povo, de onde ele fala e devolve-se a si mesmo e leva o
leitor ao seu lugar de origem, a herança do povo marselhês. Não significa dizer
essa linguagem ao fato de Artaud ter passado uma grande parte de sua vida em
manicômios como uma pessoa com problemas mentais, bem como, por ter sido a
homem primitivo, o estado de barbárie que o homem atual – atado aos grilhões da
língua entendida como apurada. Para Artaud, cada uma das três maneiras com
que ele se expressa, não forma um estilo em si mesmo, mas são maneiras
5
GALENO, 2005.
26
entendido aqui, não como algo fora dele mesmo, mas como um delírio da razão.
(...)
(...)
dekantala
dakis tekel
ta redaba
ta redabel
de stra muntils
o ept anis
6
o ept atra
Caminhando, ainda um pouco mais, nas trilhas de uma possível analogia entre Ci-
6
ARTAUD, 1989.
27
que nos parece espalhado a partir de uma idéia do que já esteve unido, ao passo
AQUI JAZ7
minha mãe,
e eu;
o périplo papai-mamãe
e a criança,
fuligem do cu da vovozinha,
7
ARTAUD, Antonin. Ci-gît in Oeuvres completes, vol XIII. Paris: Gallimard, 1989, pp. 75-
100. Trad. Wilson Coêlho.
29
diz-se,
tirado,
eles,
único
para nos
do céu
detritus
expulso do sono
era a avareza
bufete
e que caminhou,
hediondo,
7 vezes 7 anos,
7 trilhões de anos,
8
Não consegui traduzir esse termo. Numa edição da Editorial Fundamentos, o tradutor
espanhol Ramón Font traduziu como “aguardentoso”, mas por eu não saber os motivos que
permitiram tal aventura, preferi deixar a palavra como está.
9
Aqui Artaud escreve DIZJE e, entendendo se tratar de uma inversão de JE DIS, me atrevi
a substituí-lo por DIGO.
31
segundo a lascada
aritmética
da antiga goemancia10,
ejetadas
da cinza oca
maldita do homem
e do inferno mesmo,
no homem
10
Tradução livre de goémantie. O termo, repetido 7 vezes por Artaud, remete à Cabala, à magia, à
feitiçaria. A Goétie (bruxo ou mágico que pronuncia encantações lúgubres e, por extensão, charlatão,
impostor) é uma espécie de magia pela qual se invoca forças maléficas, uma feitiçaria demoníaca, uma forma
de magia negra.
32
verdadeira,
era real,
sem avó
seu ventre,
de cachorro fedido,
saído sozinho
da mão em sangue
dedos.
do olho direito
nuyon kidi
nuyon kadan
tara dada i i
ota papa
ata strakman
tarma strapido
ota rapido
ota brutan
otargugido
ote krutan
kilzi
trakilzi
faildor
bara bama
baraba
mince
etretili
TILI
te belisca
na falzourchte
34
de todo ouro,
na ruína
de todo corpo.
Ninguém.
Myrmidons da Perséphone
11
Em francês existe o verto tutoyer que significa o trato a alguém de modo familiar, ou seja,
pelo pronome tu.
35
Infernal,
línguas de avarentos
fórceps
mesma,
vigor
morno,
do mesmo fogo,
cujo antro
inovador de um nó
terrível,
enclausurado
de vida mãe,
36
é a víbora 12
de meus ovos.
E este fim
é ele mesmo
quem elimina
todos os meios.
E agora
Cagar.
engrupir13
a peruca
da punheta14,
chatos15
da eternidade.
12
Aqui há um jogo de palavras que a tradução prejudica, ou seja, Artaud usa no verso
anterior a expressão vie mère (vida mãe) e, em contraposição, nesse verso ele escreve vipère
(víbora) que tem o mesmo som e a mesma escrita que vie père (vida pai).
13
Artaud escreveu engruper e, como não encontrei uma tradução, utilizei o termo engrupir
que considero mais apropriado, tendo em vista que significa: enganar, lograr e passar a perna em,
conforme Dicionário Popular Brasileiro, de J. Fernando, São Paulo: Ícone, 1987.
14
Tradução livre de papougnête.
15
Piolhos de púbis.
37
(O PORCALHÃO)
Assim que se é
tiraram de mim
papai e mamãe
e a fritura de Ji em
grito16
ao sexo (centro)
do grande estrangulamento,
semeando caixão18
16
Cri, em francês, significa grito, mas aqui, como em diversos outros lugares, Artaud faz um
jogo com as palavras Ji e cri para uma referência a Jesus Cristo.
17
Há aqui também um jogo entre cruz + sêmen (croi sement) e, ao mesmo tempo, temos o
som de cruzamento (croisemente).
18
Artaud aqui escreve de la bière, que também pode ser cerveja.
38
(morta)
e da matéria,
que dá vida
a Jizo-cri19
quando do esterco de
eu morto
Foi tirado
o sangue
fora
É assim que:
sempre,
ou melhor
19
Idem, a idéia do grito (cri).
39
mais cedo
demasiado cedo,
o mais tarde
e o demasiado cedo
e o mais cedo,
o demasiado tarde
desencaixa
Comentário
40
1º om-let cadran
(isso cochichado:)
que o estado:
OVO
era o estado
anti-Artaud
por excelência
mão há nada
como bater
um bom omelete
nos espaços
visando o ponto
gelatinoso
que Artaud
foi
E é esse ponto
41
CADASTRO.
e 2º palaoulette tirant
largalalouette te titrant
cabeça te visam
e da pinça te putando
dos limbos
fez,
A verruma-crime,
essa horrenda,
é Jiri-cri,
já conhecido no México
Artaud
20
Tradução livre de gendron, tendo em vista que, logo abaixo, Artaud se utilize do termo
gendre que em português quer dizer genro.
43
mas um corpo
na grangrena
do fêmur
adentro.
dakantala
dakis tekel
ta redaba
ta redabel
de stra muntils
o ept anis
o ept atra
da dor
suada
no
osso.
é incompreensível
como a bofetada
do claque-dente;
44
ou o claque (bordel)
da dor
essa matriz
e o osso,
o fundo do tufo
Moral
Moral
da cabeça
então,
ENTÃO,
então
Conclusão
Antonin Artaud,
ou que
deus.
46
nem mãe,
já na pas21
papai-mamãe,
natureza,
espírito
ou deus,
satã
ou corpo
ou ser,
vida
ou nada,
livre de mim
21
Não há tradução.
47
retirado
do vazio
mesmo,
e fungado
de tempo
em tempo.
Eu digo
o tempo
como se o tempo
de todos os descascados
do umbral,
Se por um lado o próprio Artaud afirma que “aqueles que vivem, vivem dos
Artaud não era um morto qualquer, mas com o devido cuidado para que a
22
ANTONIN ARTAUD, " Alienação e Magia", em Artaud, o Momo, Bordon, 1947, p.56.
49
último dos mitos e sua forma perfeita” que sustenta “a veneração unânime de um
conhecido, mas torna-se uma tarefa um tanto quanto difícil dissociá-lo de suas
Peregrino, o Poeta e tantos outros não sejam apenas mais alguns papéis
interpretados pelo ator Antonin Artaud. E as suas loucuras não poderiam ser para
ele uma forma de viver o teatro tal e qual o concebia? Se suas obras literárias
próprio Artaud afirmava que a vida de Heliogábalo – como todo poder – era
23
ALAIN VIRMAUX, "Artaud e o Teatro", Perspectiva, coleção Estudos, 2ª ed., São Paulo, 1990, p.
4.
24
"Heliogábalo ou o Anarquista Coroado", escrito em 1932/34 a partir de uma pesquisa de Artaud,
recorrendo a uma bibliografia de aproximadamente 50 títulos sobre História da Antiguidade, foi publicado em
1934 pelo editor Denoël
25
Os textos que compõem a Viagem ao País dos Tarahumaras foram escritos entre outubro de 1936,
começando com A Montanha dos Signos, quando Artaud ainda estava no México, até 12 de fevereiro de 1948,
com o Rito do Tutuguri, um mês antes de sua morte na França. No entanto, sua publicação somente se deu aos
20 de novembro de 1955.
50
composição do personagem central de sua polêmica peça “Os Cenci” 26. Quanto a
visões de Artaud sobre o teatro que – conforme Alain Virmaux – pudesse curar o
Assim, sua vida e sua obra são um todo intrinsecamente ligado mas, trespassando
estabelecida com o teatro, não como um gênero limitado, porém a partir de sua
idéia de um teatro que reivindica a poesia, uma linguagem original e outro espaço
mundo.
26
Peça polêmica de Artaud, inspirada em Shelley e Stendhal, a partir de um caso verídico de
assassinatos, estupro e morte do Conde Francesco Cenci, apresentada pela primeira vez aos 6 de maio de
1935, no Teatro Folies-Wagram, com música de Roger Désormière, cenografia e trajes de Balthus.
27
ALAIN VIRMAUX, "Artaud e o Teatro", Perspectiva, coleção Estudos, 2ª ed., São Paulo, 1990, p.
18.
51
intenção de apresentá-lo nos pátios das fábricas. Esta proposta é uma espécie de
de evolução e hierarquia.
Existem muitas especulações em torno dos motivos que realmente puderam fazer
28
ANTONIN ARTAUD, O Pesa-Nervos, tradução de Joaquim Afonso, Hiena Editora, Lisboa,
1991.
52
ser reconhecido pelos outros homens, reunir uma multidão e apresentar-se a ela
para recolher seus aplausos e, mesmo, suas vaias. Depois – numa fase que
instrumento e meio de ação sobre o mundo e sobre o homem, mas uma ação que
Defendia o teatro como um ente onde o Ser pudesse se re-velar, um teatro capaz
de recriação. Terapêutico pela crueldade, a cura pela destruição que, por um lado,
o ator representa a sua vida e, por outro, o espectador deve ter os seus nervos
uma cirurgia e mudar o corpo para mudar o mundo, mas não se trata de uma
cirurgia medicinal e – sim – de uma operação ontológica. Essa nova fase é a que
perdurou até o fim de sua vida, pois acabou por impregnar todos os seus escritos,
29
ARMAND-LAROCHE, "Antonin Artaud et son Double", Ed. Pierre Faulac, Périgueux, 1964, p. 135.
30
Fragmento do poema O Teatro e a Ciência, publicado em L'Arbalète (Marc Barbezat), nº 13, verão
de 1948, pp. 15-24.
53
utiliza para se comunicar com todo o corpo, no corpo e mesmo para negar este
interlocutor, ora surdo e silencioso, ora violento e acusador, com quem estabelece
Momo”, “Aqui Jaz” e também nas suas cartas públicas ou particulares e tantos
frente: Artaud diante de si, diante de seu duplo, diante do outro ou dos outros.
claro que são dois caminhos para um mesmo destino, mas não se chega a esse
54
destino por nenhum deles em separado, porque estes não estão isolados e
Assim, pela destruição do teatro existente, se faz necessário rejeitar o teatro como
renovação da vida através do teatro. Desta forma, Artaud se diferencia dos outros
homens de teatro de sua geração que fazem do teatro um fim em si mesmo. Para
Artaud, “o teatro destina-se a todos os que enxergam no teatro não um fim, mas
que ainda não existe, e o faz nascer”. Para melhor definir o projeto de Artaud seria
que o termo teatro pode ser confundido com uma série de atividades, usos e
limitações do palco tradicional dos quais – talvez pelo fracasso em suas tentativas
socorrer do sangue e do terror, mas apenas como um meio provisório, pois sua
31
ANTONIN ARTAUD, Escritos de Antonin Artaud, col. Rebeldes e Malditos, tradução, seleção e
notas de Cláudio Willer, L&PM, Porto Alegre, 2ª ed., 1983.
56
doutrinas ocultistas pela sua referência à magia, onde estabelece a relação entre
define o teatro através da expressão poética, o que o torna mais poeta que teórico
podemos citar o transe, mas não se trata do transe de uma histeria tresloucada e
primitivas pode provar, que se realizam por intermédio de ritos religiosos precisos,
Artaud sobre os balinenses. Algo bastante distinto e livre daquilo que nos dias que
demais" (sic).
estética, Artaud citou diversas vezes em seus últimos escritos: Villon, Baudelaire,
57
Poe, Nerval, Rimbaud, Kierkegaard, Van Gogh, Hölderlin... mas foi em Sófocles,
elementos de sua visão de teatro. Quanto aos elizabetanos, Artaud diz que “se em
degradação” do teatro. Num certo sentido, Artaud comunga com a idéia do escritor
irlandês Oscar Wilde quando afirmou que a mediocridade dos ingleses se devia ao
fato de lerem apenas dois livros: Shakespeare e a Bíblia. Mas, noutro momento,
Artaud também admitia que na falta de coisa melhor, alguma coisa dos
dirigida por Baty, tentou produzir “Ricardo II” e planejou encenar “Arden de
bastante com “Woyzeck” “por seu espìrito de reação contra os nossos princìpios”.
A afinidade de Artaud com Kleist (1777-1811) estava em sua obra carregada mais
palavra”. Hölderlin (1770-1843), por sua vez, era reconhecido e reivindicado por
como uma operação mágica, afirmando que "é em vão que, tanto num estado
Juntamente com Roger Vitrac (1899-1952) e Robert Aron, Artaud criou o Teatro
Alfred Jarry. A princípio, pode-se imaginar que o nome Alfred Jarry não passe de
1930, tendo montado apenas quatro espetáculos. Uma das montagens, com
32
FRIEDRICH HÖLDERLIN, "Reflexões", Relume Dumará, São Paulo, 1994, p. 46.
59
Poder-se-ia dizer que – numa primeira fase – entre os dramaturgos que puderam
inclusive, passa a acusar este teatro por se utilizar de uma certa concepção
avaliar até que ponto a afirmação é verdadeira. Por exemplo, em 1910, o pré-
1916, o futurista Pierre Albert-Birot funda a revista SIC, onde publica um manifesto
do “Teatro Núnico”(do grego nûn = agora) que queria ser a doutrina do presente,
60
descoberta e lidam com o homem em plena saúde, ao passo que Artaud quer a
invenção de uma forma dolorosa de expressão para construir este novo homem
Eu deveria ter especificado o uso muito particular que faço dessa palavra e dizer
que a utilizo não num sentido episódico, acessório, por gosto sádico e perversão
do espírito, por amor dos sentimentos estranhos e das atitudes malsãs, portanto
não num sentido circunstancial, não se trata de modo algum da crueldade-vício, da
crueldade efervescência de apetites perversos e que se expressam através de
gestos sangrentos, como excrescências doentias numa carne já contaminada;
mas, pelo contrário, de um sentimento distanciado e puro, um verdadeiro
movimento do espírito, calcado sobre o gesto da própria vida e na idéia de que a
vida, metafisicamente falando e pelo fato de admitir a extensão, a espessura, a
condensação e a matéria, admite, por consequência, o mal e tudo o que é inerente
33
ao mal, ao espaço, à extensão e à matéria.
Para se tirar uma certa “originalidade” de Artaud, muitos teóricos têm estabelecido
Adolph Appia (1862-1928). Do que eles têm em comum, uma coisa é indiscutível:
o fracasso. É claro que todos eles lutaram insistentemente para concretizar suas
cenografia. Outro ponto de convergência é a rejeição que todos eles têm pelos
acreditava ser impossível fazer nascer uma arte viva sem acumular as duas
da cena. Outra analogia se dá na medida em que Appia e Craig têm uma visão
linguagem cênica para uma eficácia sobre o espectador. Até ai, tudo bem, mas os
nova Arte de ordem estética, ao passo que Artaud se envereda em direção ao seu
diferença, o que pesa sobre Artaud para muitos teóricos é o seu tom “messiânico”
trabalhado com Lugné-Poe, Dullin e Pitoëff não poderia desconhecer Appia, Craig
62
e tantos outros, inclusive, escrevera em 1922 que “as conquistas de Gordon Craig,
teatro, Artaud faz elogios aos balés russos que acreditava “terem devolvido à cena
desejo de dispensar atores profissionais, pois “na Rússia são os operários que
está para Artaud por ele ter se preocupado, além das improvisações, em “levar o
realizado junto a Stanislavski, pela sua recusa à literatura e a divisão entre palco e
platéia, bem como, pela importância atribuída ao corpo do ator, assim como Appia,
impressiona por ter buscado uma modificação técnica do aparelho cênico em prol
de ter introduzido o palco na platéia – não se contentou por acreditar que o teatro
devia transformar a vida. Enfim, há muitos outros que não se sabe ao certo se
Artaud os conheceu, mas é fato que muito têm em comum, não na totalidade,
mesma, não é algo anterior à experiência, ou seja, a lógica não passa de uma
leitura do fenômeno.
34
VIRMAUX, 1990.
64
Mesmo não admitindo a tal “originalidade” de Artaud, o que não se pode negar é a
dessa zona intermediária que não é nem teatro, nem literatura”, mas “fazer um
de sua blasfêmia”, bem como, noutro momento deste mesmo texto, insiste pelo
Simone Benmussa constata diversos outros elementos que podem confirmar essa
Lucky e sua “agonia da linguagem”, vai muito além das semelhanças técnicas.
parece ter exercido maior influência em Beckett que propriamente “O Teatro e seu
Duplo”.
Não somente Ionesco e Beckett, mas todos os autores de teatro dos anos 40 e 50,
de vista técnico do teatro. Henry Pichette, por exemplo, cujo teatro é chamado de
revolta. Mas esses brados de revolta que por muitas vezes lhe renderam a
comparação, não chegam a atingir a pura selvageria dos de Artaud, com sua
quem era amigo. Seu teatro recusa o puro diálogo, contém uma atmosfera de
morte de Artaud. E, se Arthur Adamov ficou mais conhecido por seu teatro político,
Ghelderode, Jean Tardieu, Jean Genêt, Armand Gatti, Jean Vauthier, Romain
Weingarten, etc., que direta ou indiretamente são considerados por terem sofrido
uma clara influência, mas – ao mesmo tempo – seria improdutivo citá-los aqui,
que eles têm realmente em comum com Artaud, bem como, o que os separa.
Em 1966, Sartre declarou que “se o teatro, como diz Artaud, não é uma arte, se
ele libera como um ato as forças terríveis que dormem em nós, se o espectador
não é senão um ator em potencial, que sem demora vai entrar na dança com toda
a violência que será desencadeada nele, então Artaud parou no meio do caminho.
interessante observar que Sartre se equivoca por ter manifestado uma opinião
35
J.-P. SARTRE, Le Point, "mensário nacional de estudantes", Bruxelas, janeiro de 1967, nº 7.
67
do Teatro Alfred Jarry. Depois, quando se refere ao “Teatro e seu Duplo”, parece
não ter entendido muito bem que a intenção de Artaud em subverter a relação
teatro artaudiano, ou seja, para além da não repetição não se deve omitir o rigor
exteriores.
cênicos do autor de “O Teatro e seu Duplo”. Brook, numa primeira fase, tentou dar
vida aos textos de “O Teatro e seu Duplo”, treinou atores metodicamente nas
de Peter Weiss. Esta última foi a peça que mais o aproximou das propostas de
Artaud, tendo em vista que a mesma lhe oferecia mais possibilidades de explorar
O Living-Theatre, conforme Jean-Jacques Lebel, foi o “único grupo que até aqui
afirmam que o “espectro de Artaud” havia se tornado seu mestre, passando a ser
texto. Fizeram uma “colagem” da Bìblia à Cabala, passando por Ezra Pound, Walt
Julian Beck utiliza a droga como meio de investigação, ao passo que Artaud tenha
36
J.J. LEBEL, Le Happening, Dossier des Lettres Nouvelles, Denoël, 1966.
69
e seu Duplo” e, no mais, ainda está outra vez distanciado por se propagar como
sobre o corpo do ator, o transe, o rigor, etc. No entanto, também vão se distanciar
neutro”, ou seja, não mais que um elemento entre tantos outros que compõem o
ioga, ioga chinesa, psicanálise, etc., Artaud – por sua vez – detesta a ioga, a
37
François KOURILSKY, Le Théâtre aux États-Unis, ed. La Renaissance du Livre, col. Dionysos,
1967.
70
poético, ou seja, a reinvenção do teatro passa antes de mais nada por uma
reinvenção da linguagem, porque para ele o teatro deve ser igualado à vida, não a
não mais se contentam com o caduco teatro tradicional, mas – sim – pela
ação sobre o mundo para mudá-lo, recriando o homem e curando-o, sim, pela
destruição.
38
ALAIN VIRMAUX, "Da Condenação do Teatro Ocidental", in Artaud e o Teatro, Perspectiva, 2ª
ed.,. São Paulo, 1990.
71
PALAVRA
Afora seus poemas nos tempos em que era ainda um colegial em Marselha,
possuindo uma boa cultura poética e particular admiração por Edgar Allan Poe,
num certo sentido e, apesar do volume de suas obras editadas pela Gallimard e
sinto muito não poder publicar seus poemas na Nouvelle Revue Française”. Na
época nos meios literários, bem como, uma certa resistência ao modo de escrever
dos surrealistas., embora havemos de convir que, nesta fase, Artaud realmente
39
Conforme Gérard Duruzoi, em Artaud, l’aliénation et la folie, (p. 58) nos textos deste poeta,
publicados antes da Correspondance avec Jacques Rivière, tanto no prefácio de Maeterlink (I, 244)
quanto no Tric-trac du ciel (I, 251), há uma certa preocupação em demonstrar que havia lido muito
e que podia “escrever bem”, assim como, ser capaz de tentar certas imagens “originais”, como
acontece com o prefácio de doutor Edouard Toulouse em Au fil des préjugés (I, 242).
73
Mas, graças ao próprio Jacques Rivière é que Artaud vai ter uma oportunidade de
expor de maneira mais convincente os processos que dão origem à sua escrita, na
famosa carta em que ele responde ao poeta dizendo que seus poemas “me
pensar.
um ano, é tão relevante e reveladora que o editor acaba por se convencer de que
os poemas devem ser publicados e, para tanto, faz uma proposta a Artaud. Mas,
apesar de seus poemas serem “vagos” e sem “forma” – suas cartas refletiam
40
Sur un poète mort, transcrito por Gérard Durozoi, em Artaud, l’aliénation et la folie, p. 57, tradução
de Wilson Coêlho.
41
ARTAUD, OC, I, 23.
74
Artaud com a palavra, onde o ontológico precede o estético. Não é por acaso que
enfatizam a sua relação com a palavra. Mas, na maioria das vezes, o fazem
um poema sem palavras. É quase como supor uma página em branco, mesmo
acontecimento.
sejam eles concretos ou abstratos. Isso significa afirmar que todo símbolo ou toda
42
ARTAUD, OC, I, 30.
75
realidade não codificada. Não a palavra dada como uma herança de conceitos e
categorias estanques, mas a palavra que se dá. Pois cumpre-se salientar que o
que está em questão não é uma negação absoluta da palavra, mas o poeta,
dessas intuições em forma verbal, reivindica que a mesma (a palavra) não caia
43
ARTAUD, 1991: 64.
76
Porque a poesia deve ser entendida também como uma espécie de cosmogonia,
levando em conta que – para Artaud – a ação poética não passa de uma repetição
do ato mítico da criação, onde o jogo de forças utilizado nos processos mentais de
onde o poeta queima a si mesmo (crueldade), por intermédio das formas que
palavras, aceitas como tal – criam espaços exteriores à palavra. Mas essa
mais eficiente e originária. A linguagem que se estabelece para aquilo que está na
criação, onde – através das imagens transportadas pelos nervos – a carne se faz
verbo. Mas nesta carne que se faz verbo, desenvolve-se a linguagem do corpo
que não apenas ocupa um vazio, mas trata-se de um não-lugar que se faz espaço,
44
GALENO, 2005.
77
sentidos da poesia artaudiana. (...) ... não nos referimos apenas à palavra
que ocupa o espaço físico como som, ritmo etc. (...) ... materialidade da
palavra, mas o problema do espaço extrapola essa perspectiva. (...) ... não
se trata apenas do espaço fìsico, „real‟, mas de um „outro espaço‟, anterior
à própria linguagem, que a poesia atrai, libera, resguarda, através das
palavras que dissimulam essa espécie de silêncio. (...) ... esse vazio
prenhe de possibilidades, prestes a se desdobrar, nos remetendo sempre a
45
esse trânsito entre ser e não-ser.
exista faz-se necessário que a mesma se despoje de sê-la enquanto tal. Em certo
disso que não sabemos o que é, desse vir a ser do espírito que se manifesta,
O reche modo
to edire
di za
tan dari
47
do padera coco
uma linguagem, considerando que – na medida em que busca uma dissolução dos
sejam capazes de romper com essas que estruturam nossa mentalidade ocidental,
45
QUILICI, 2004.
46
Artaud faz questão que deus seja escrito com letra minúscula.
47
ARTAUD, OC. Vol. XIII, 1974, p. 84.
78
que a cultura do Ocidente, até então, tem sufocado ao ser humano. Portanto se,
em Artaud, a carne se faz verbo, não se trata do verbo como uma palavra em si,
sopro, essa palavra carne que se faz linguagem. Mas convém observarmos que,
consciência, mas assim como na fenomenologia não existe uma consciência pura
absolutas, mas como a linguagem dos Anjos, aquela que aparentemente não tem
lavra, ela é o que é no instante e no modo em que está lavrando. Nessa lavoura,
48
ARTAUD, 1989, p. 95.
79
Artaud se insurge como uma espécie de „pirata‟ que quer afundar os navios da
Martin Esslin, em Artaud, ao comentar a afirmação do poeta de que “Se faz frio,
ainda sou capaz de dizer que faz frio, mas pode acontecer também que seja
49
ESSLIN, 1976, p. 66.
80
sentidos. Um princípio de escrita que, por fim, acede à via total. Mas o princípio e
não como uma finalidade ou um fim em si mesmo, mas um fim que já existe no
princípio como proposta e objetivo. Da mesma maneira, um fim que só pode ser
50
... latrinas da morta ossuda
que traspassa sempre o mesmo
vigor morno,
do mesmo fogo,
cujo antro
inovador de um nó
terrível
enclausurado
de vida mãe
51
é a víbora
de meus ovos.
50
No verso de Artaud, está escrito: “latrines de la morte osseuse”. A palavra “osseuse
poderia ser traduzida como “ossosa”, mas preferi “ossuda” por entender que é mais coerente com
a linguagem do poeta.
51
Aqui há um jogo de palavras que a tradução prejudica, ou seja, Artaud usa no verso
anterior a expressão vie mère (vida mãe) e, em contraposição, nesse verso ele escreve vipère
(víbora) que, apesar da escrita diferente, tem o mesmo som de vie père (vida pai).
81
é ele mesmo
quem elimina
52
todos os meios.
que tampouco significa que a palavra seja entendida apenas como um veiculo que
tem por finalidade transportar uma idéia. Trata-se, não da palavra do ente, mas da
palavra do ser através do ente com e pelo corpo que, na medida em que é
É dizer que o grito, para Artaud, provém da “finura das medulas”, o cerne da carne
refeitos a partir das vibrações de sua língua como uma apropriação secreta e
mas de uma mente que habita o que é a própria carne. Uma espécie de
52
ARTAUD, 1989, 83-84.
53
QUILICI, 2004.
82
seja, (a) a relação entre a escrita e a fala, propondo o corpo sem órgãos, (b) a
recusa de uma sintaxe a priori como uma proposta de corpo sem carne ou o
estilo e do gênero, como a carne que nasce do osso. Não se trata apenas de um
homem, a partir de seu osso, vai se recriar, livre de todos os maneirismos e das
54
ARTAUD, 1998.
83
ato criador que faz com que o ser se revele a partir do homem, nas passagens do
fala. Não somente em seu discurso estético, mas, também, a partir de seus textos
contos, poemas, crônicas, cartas, peças, críticas, desenhos, etc. Daí, a escrita não
Nesse sentido, parece que – se, conforme alguns teóricos da literatura, esta é
dessas possibilidades ou, caso contrário, não há como separar esses “modos de
55
Do grego, Psittacos, papagaio.
86
ser”. Compreendendo a atitude normativa como a que diz o que deve ser e como
diz o que é a literatura aberta às especulações, pode-se afimar que Artaud não
em si do que com o objeto em questão que é deixar falar o espírito. É por isso sua
Rodez e Ivry, a não mais escrever sem desenhar ou desenhar sem escrever.
Mas, pelo outro lado, também vale observar que o poeta não pode ser visto como
que se queira afirmar pelo despedaçamento, não abre mão de um certo rigor.
Porque para se chegar ao “corpo sem órgãos”, é necessário o rigor do ritual. Mas
56
ARTAUD, OC, IV, 18.
57
ARTAUD, 1995, 56.
87
Por mais que o ritual proposto por Artaud se pareça solto e descomprometido com
um determinado fim aparente, ele (o rito) tem sua ordem interna e, mesmo no
literatura, Artaud assume a vida como possibilidade criadora. Mas Artaud sabe
enfim que pretende também a literatura como um “corpo sem órgãos”, obsessão
recorrente em toda sua obra. Os órgãos são o que estraga, o que perverte a
noção de homem, porque eles vão na direção da idéia de unidade, mas essa
(...)
58
ARTAUD, 1991.
88
vida podem ser apenas duas formas de dizer do mesmo: “eu disse crueldade
59
como poderia ter dito vida” e, ainda, “uso a palavra crueldade no sentido do
apetite de vida”60, mas isso não tem nada a ver com uma questão particular da
vida, mas com uma condição inexorável da existência que deve ser encarada de
Eu deveria ter especificado o uso muito particular que faço dessa palavra e
dizer que a utilizo não num sentido episódico, acessório, por gosto sádico e
perversão do espírito, por amor dos sentimentos estranhos e das atitudes
malsãs, portanto não num sentido circunstancial, não se trata de modo
algum da crueldade-vício, da crueldade efervescência de apetites
perversos e que se expressam através de gestos sangrentos, como
excrescências doentias numa carne já contaminada; mas, pelo contrário,
de um sentimento distanciado e puro, um verdadeiro movimento do
espírito, calcado sobre o gesto da própria vida e na idéia de que a vida,
metafisicamente falando e pelo fato de admitir a extensão, a espessura, a
condensação e a matéria, admite, por consequência, o mal e tudo que é
61
inerente ao mal, ao espaço, à extensão e à matéria.
como outra forma dinâmica de saber. Assim, Artaud carrega consigo, para o outro
e para si mesmo, esse ato de crueldade, esse furor iconoclasta que quer implodir
tanto a pirâmide hierárquica quanto a parede que separa o lado de dentro do lado
59
ARTAUD, OC: IV, 110.
60
ARTAUD, OC: IV, 98.
61
ARTAUD, OC: IV, 110.
89
de fora, derrubar a fronteira que quer apartar a arte do espírito. Assim, o poeta se
órgãos”, convém-nos lembrar que Artaud propõe, agora, uma raspagem da própria
carne, ou seja, o corpo sem carne, o imundo, como uma espécie de estar “fora do
compreender a carne como corpo, essa deve ser raspada, tendo em vista as
humano.
palavras são usadas dentro das frases, bem como, as relações das frases entre si.
Mas não se trata de uma guerra ou postura absoluta contra à sintaxe, porém uma
62
Última aparição de Artaud numa conferência de Artaud, intitulada “Tête a Tête”.
92
sintaxe? Não! Mas usar a sintaxe até o limite onde ela não possa mais ser um
idéia de que, conforme o discurso artaudiano, a sintaxe não dever ser considerada
como um a priori para aquilo que se quer dizer. Há uma recusa em se sujeitar o
ele mesmo diz em “O Pesa-nervos”, “esses estados que nunca são nomeados,
Conforme observado no capítulo anterior, além das variadas formas como Artaud
63
ARTAUD, 1995, p. 60. Poema escrito em 1947 e publicado pela Gallimard, no Luna-Park,
no 5, outubro de 1979.
93
tanto na escrita ela mesma, como pela voz, passando pela sonoridade, onde ele
ações que o fazem transcender ao seu mero nascimento, não se pode negar que
cotidianamente pela avó Mariette Nalpas64, bem como, resquícios de sua estada,
como uma pessoa supostamente com problemas mentais, com outras pessoas
Mas reduzir a esses termos a glossolalia artaudiana é cair numa armadilha muito
que algum crítico ou biógrafo aventureiro lhe atribuisse, devido ao contato com o
turco, uma herança sufista dos Derviches, cuja dança, de rodopios embriagantes,
induzindo-os, dessa forma, a um estado de êxtase místico. Pelo lado grego, ainda
64
Muitos dos escritos de Artaud são assinados como Nalpas.
94
Mas tudo isso pode não passar de conjecturas que procuram o significado de uma
cada vez que se realizam com eficácia, quando o texto se realiza materialmente
aqui a idéia de que a pá lavra e que, muitas das vezes, ao ato de lavrar, se torna
uma pá lava, a língua do vulcão, a língua de fogo, como o Espírito Santo dos
poema glossolálico
... cria o efeito de um mantra, essa sílaba, palavra ou verso que se repete
indefinidamente, gerando um canto, um rito sonoro que alcança uma
música mágica e encantatória que está fora da impostura do signo. Mais
67
uma vez, o poeta enlaça, num único evento, voz e escrita, corpo e letra.
65
Do grego glossa, língua + laleo, falar.
66
ARTAUD, 1983: 226.
67
FLORENTINO, 2005.
95
Equivale afirmar que quando algo tem que ser dito, para Artaud, fica quase
peça de teatro, ensaio, “carta”, etc), ou seja, aquilo que Artaud persegue, no
sentido de sua essencialização, está presente em todas as formas com que ele se
carne, da existência.
Faz-se importante frizar que, além de sua contribuição para uma episteme menos
ligada aos cânones no combate aos princípios racionalistas das chamadas obras-
literária, como uma espécie de nova lógica que não tem necessariamente que
68
ARTAUD, 2004: 207.
97
dos conceitos..
Admitindo que, em Artaud, a carne se faz verbo e, ainda, que ele escreve com
todo o corpo, faz-se necessário compreender sua luta pela descolonização desse
que o poeta possa criar espaços para a vida, considerando que, para Artaud, o
organismo aqui não representa a estrutura biológica, mas implica numa operação
social sobre o corpo que até então o tem tornado funcional e dócil e, até mesmo,
corpo.
Ainda no que diz respeito à relação de Artaud com o corpo, neste estágio, depois
de ter passado pela definição do que para ele significa a palavra, bem como,
“Entre a escrita e a fala (corpo sem órgãos), “Não à sintaxe como um a priori
69
CHAUDANNE, 1989.
98
uma análise mais atenta ao que afirma Paule Thévenin sobre Le retour d’Artaud le
Momo. Para essa atriz e grande amiga do poeta, tendo inclusive participado das
poema concreto que possui órgãos e que deve ser compreendido, ao mesmo
tempo, tanto numa leitura horizontal quanto vertical. De acordo com Durozoi, este
poema
70
Paule Thévenin citada por Durozoi, p. 219.
71
DUROZOI, Gérard. Artaud: l’aliénation et la folie. Paris: Larousse.
99
CONCLUSÃO
Afirmar que uma conclusão não chega a concluir ou pôr termo a um objeto em
considerando que o fim de uma investigação abre novas portas para a indagação
elegermos um tema – tantos são os outros que nos passam à margem. Mas isso
que passa à margem também não significa uma anulação, levando em conta que,
negação.
primeira, pelo caráter polifacético desse personagem que transitou pelos mais
diversos caminhos. Sua vida e obra quase se confundem e ambas são repletas de
lugar onde se encontre. Desde o palco às telas, como ator e diretor de teatro e
cinema, passando por roteirista, desenhista, poeta, escritor, cenógrafo, teórico das
que diz respeito mesmo ao tema proposto para esta pesquisa, torna-se ainda mais
bem como, não se resume ao objeto escrito, mas se revela e se rebela a partir da
recebido o prêmio “Cláudio Bueno Rocha”, no ano de 1987. Ainda neste mesmo
ano, foi fundado o Grupo Tarahumaras, cujo nome é uma homenagem ao povo do
México visitado por Artaud em 1936. Daí em diante, todo o trabalho do grupo,
espetáculo premiado.
insiro a informação devido ao tema que aqui exploramos, consta que neste
72
IV FECATE – Festival Capixaba de Teatro, realizado em Vitória, 1988.
102
muito, as necessidades para tal. E é justamente nesse ponto que sempre nos
pareceu residir o maior problema, ou seja, o que fazer com todos os frutos
saciar essa fome, quais os frutos seriam os mais nutritivos? Os mais amargos ou
Num primeiro momento, entendido como uma forma de introduzir o tema Antonin
objetivo.
de uma arte, não somente do ponto de vista teórico, mas como uma prática de
trilhas de Artaud num campo bem mais abrangente que o da literatura e, ainda,
buscar em seu conturbado trajeto os diálogos entre estilos e gêneros para que, de
certa forma, nos permitisse estabelecer vínculos entre muitos dos elementos de
sua inquietude nos mais variados formatos de manifestação da arte, bem como,
mais que uma operação que se realiza na carne, esbarra na questão primeira do
ruptura como o senso comum, ou seja, como é que, em Artaud, a palavra, para
além de um mero termo, se dê como ação. Daí, sua demarche ou modos de sua
corpo sem carne ou retorno ao osso (não à sintaxe como um a priori) e a carne
cada vez que se invista numa tentativa de nova leitura dessa palavra artaudiana
existe mesmo a necessidade de uma conclusão, fica aqui a idéia de que agora se
inicia um trabalho.
106
CRONOLOGIA
1906 – Artaud quase morre afogado durante temporada em Esmirna, com a avó
1910 – Lança no Collège du Sacré Couer, uma revista literária, onde publica seus
1915 – Numa crise de depressão, Artaud destrói todos os seus escritos e faz dá
perto de Marseille.
1916 – Convocado para o serviço militar, em Digne, nove meses mais tarde é
Henri de Régnier. Em outubro, através de seu tio, Louis Nalpas, diretor artístico da
Société des Ciné-Romans, obtém uma entrevista com Firmin Gémier, que o
recomenda a Chales Dullin. Este lhe oferece trabalho em sua oficina, o Atelier. Na
quem se apaixona.
maio, Artaud inicia sua correspondência com Jacques Rivière que será concluída
aos 8 de junho de 1924. Aos 4 de maio, Artaud publica seu primeiro volume de
de Andreiev.
Aos 7 de setembro, falece seu pai e sua mãe passa a residir em Paris. Em
textos feita por Artaud, que escreveu quase todas as matérias da edição. 28 e 29
Errant, de Luitz-Morat.
1926 – Fundação do Théâtre Alfred Jarry (com Roger Vitrac e Robert Aron, e
Aron); e Les Mystères de l’Amour, de Vitrac. Junho: Carl Theodor Dreyer oferece a
dezembro: quarta e última produção do Théâtre Alfred Jarry: Victor ou les Enfants
la Mort.
danças de Bali na Exposição Colonial, no Bois des Vincennes. Fim de sua ligação
com Josette Lusson. Publicação da tradução livre feita por Artaud de The Monk,
em-Scène et la Métaphysique.
1933 – Março: início da amizade com Anais Nïn. Abril: completa o manuscrito de
Mexique.
Shakespeare, numa soirée dada por Lise Deharme em cursos para o Teatro da
Quatre-Mares, em Sotteville-lès-Rouen.
Paris. Passa a residir, como paciente voluntário, no hospital para doentes mentais
1948 – 16 de janeiro: data em que deveria ser irradiado Pour em Finir avec le
Mairie, 23, Ivry. 8 de março: sepultado sem ritos religiosos no cemitério de Ivry.
114
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Néotypo, 1975.
Fundamentos, 1976.
d‟Água, 1985.
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1991.
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1985, 4ª ed.
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Vitória, 1987.
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Unesp, 1998.
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1996.
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2005
(Sel.). Antologia humanística alemã. Trad. Ari Lazzari e outros. Porto Alegre: Ed.
1996.
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118
QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud – teatro e ritual, São Paulo: Annablume,
2004.
Carlos Eugênio Marcondes de Moura, col. Estudos, São Paulo: Perspectiva, 1990,
VIRMAUX, Alain et Odette. Le Salut par l’écriture, in Antonin Artaud: Qui êtes-