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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ


INSTITUTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
FACULDADE DE DIREITO

GIULIA SANTOS DE VASCONCELOS

A recepção do direito à moradia pelo judiciário paraense: estudo de caso pós Lei
13.465/2017

BELÉM
2018
1

GIULIA SANTOS DE VASCONCELOS

A recepção do direito à moradia pelo judiciário paraense: estudo de caso pós Lei
13.465/2017

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


como requisito parcial para obtenção de grau
de Bacharel em Direito, pela Universidade
Federal do Pará.

Orientador: Prof.º Dr. Breno Baía Magalhães


Coorientadora: Prof. ª Dra. Luly Rodrigues da
Cunha Fischer

BELÉM
2018
2

GIULIA SANTOS DE VASCONCELOS

A recepção do direito à moradia pelo judiciário paraense: estudo de caso pós Lei
13.46/2017

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


como requisito parcial para obtenção de grau
de Bacharel em Direito, pela Universidade
Federal do Pará.

Data de aprovação: ____/____/_____

Banca Examinadora:

_____________________________________
Prof.º Dr. Breno Baía Magalhães
Orientador - Universidade Federal do Pará

_____________________________________
Prof.ª Dra. Luly Rodrigues da Cunha Fischer
Coorientadora - Universidade Federal do Pará

_____________________________________
Prof.º Dr. Antônio Gomes Moreira Maués
Avaliador Interno - Universidade Federal do Pará
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RESUMO

A pesquisa objetiva analisar a ressonância do argumento do direito à moradia através da


metodologia do estudo de caso único de uma ocupação irregular na periferia de Belém\PA. O
caso selecionado é o primeiro no Estado do Pará no qual foi realizado pedido de suspensão da
reintegração de posse diante da viabilidade no uso do instrumento de Regularização Urbana,
previsto na lei 13.465\17, o novo marco da regularização fundiária. Utiliza-se a técnica
bibliográfica, para reconstituir a evolução histórico-legal que permitiu o desenvolvimento da
garantia constitucional sobre moradia; e a técnica documental, para sintetizar as narrativas
apresentadas no processo judicial de reintegração de posse de bem público, possibilitando a
interpretação nesta situação concreta do discurso do poder judiciário sobre o instituto do
direito à moradia. A conclusão do trabalho é que, apesar dos avanços legais que visam a
expandir a garantia de moradia, persiste neste caso uma resistência em dialogar sobre o direito
à moradia diante do confronto com o direito de propriedade.

Palavras-chave: Direito à moradia. Direito à propriedade. Poder Judiciário. Lei 13.465\2017.


4

ABSTRACT

The research aims to analyze the resonance of the argument of the right to housing through
the methodology of the single case study of an irregular occupation in the periphery of Belém.
The case selected is the first in the State of Pará in which an application for suspension of the
reintegration of tenure in the face of viability in the use of the Urban Regularization
instrument, provided for in Law 13.465 \ 17, the new land regularization framework. The
bibliographical technique is used to reconstitute the historical-legal evolution that allowed the
development of the constitutional guarantee on housing; and the documentary technique, to
synthesize the narratives presented in the judicial process of reintegration of possession of
public good, making possible the interpretation in this concrete situation of the discourse of
the judiciary over the institute of the right to housing. The conclusion of the work is that, in
spite of the legal advances that aim to expand the guarantee of housing, there remains in this
case a resistance to dialogue about the right to housing in the face of confrontation with the
right to property

Keywords: Right to housing. Right to property. Judicial power. Law 13.465 \ 2017.
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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 6

2 CONSTRUÇÃO DO DIREITO À MORADIA NO ORDENAMENTO


JURÍDICO BRASILEIRO ATRAVÉS DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DE
OCUPAÇÃO DE TERRAS 9

2.1 A moradia no ordenamento jurídico 10

2.2 Sistema de Sesmarias (1548-1822) 11

2.3 Lei de Terras de 1850 13

2.4 Urbanização e Lei do Inquilinato 16

2.5 Políticas de Habitação 17

2.6 Lei 13.465\2017 e os núcleos urbanos consolidados 18

3 ESTUDO DE CASO DA OCUPAÇÃO CURTUME SANTO ANTÔNIO 18

3.1 Síntese do caso 19

3.2 Demanda judicial e percurso processual 20

3.3 Decisões e Fundamentações 27

3.3. Validade da Antecipação de Tutela de Reintegração de Posse 27


1

3.3. Direito de propriedade versus Direito à moradia. Segurança Jurídica 30


3.33..
2 Sensibilidade para com a situação dos requeridos 34
3.3.
3

4 CONCLUSÃO 36

REFERÊNCIAS 37
6

INTRODUÇÃO

A partir do contato com o Direito Agrário na graduação em Direito da UFPa foi sendo
possível começar a entender as dinâmicas que explicavam a violência no campo e de como as
pessoas migravam para as cidades em busca de melhores condições de vida.
Se tanto a urbanização quanto a industrialização podem ser considerados fenômenos
globais, a forma como se manifestam em cada país tem suas próprias particularidades. Assim,
as cidades brasileiras, por exemplo, tiveram surgimentos diferentes das cidades europeias e
hoje possuem desafios também bastante distintos.
A cidade, portanto, não poderia ser entendida como espaço geográfico
exclusivamente, mas como uma realização cultural que reproduz as condições de cidadania
de uma determinada comunidade. Por isso o que divide espacialmente as cidades brasileiras é
a estrutura social que aqui se encontra, construída a partir de um caminho marcado pela
colonialidade e pela desigualdade sobre a qual se fundou o país.
Em que pese a cidade ser considerada um espaço de grande dinâmica social se
comparado ao campo, a violência e desigualdade que caracterizam este também deixam suas
marcas no espaço urbano. E o desafio do poder público é garantir direitos de forma igualitária
e inclusiva.
Não é possível fazê-lo, entretanto, se for ignorado o que a história da cidade diz.
A história de Belém (PA) informa que para além do centro urbano formado por Cidade
Velha, Campina e Reduto, ficavam periferias não urbanizadas onde a população pobre residia
e para onde eram enviadas todas as pessoas consideradas indesejadas: doentes mentais,
leprosos, hansenianos, mendigos, idosos, e todos que pudessem oferecer perigo ou atentar
contra a normalidade social (FERREIRA, 1995 apud SANTOS, 2005, p. 50).
Além dessa segregação socioespacial os bairros periféricos foram também crescendo
por receberem pessoas tanto do interior do estado do Pará quanto de outros estados
brasileiros. Situação esta que continua a ocorrer até hoje. As pessoas vêm para a capital do
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estado para ter acesso aos serviços públicos de saúde e educação, outras vezes em busca de
oportunidades de trabalho, simplesmente.
Interessante que em Belém uma característica importante para determinar se a pessoa
reside em um bairro “rico” ou ”pobre” deve-se à probabilidade da área “alagar”, ou seja, ser
inundada por conta do aumento no nível do rio que alcança a terra por conta dos igarapés que
cortam a cidade, resistindo ao seu aterramento que vem ocorrendo desde meados do século
XIX (TRINDADE, 1997, p. 37, apud SANTOS, 2005, p. 47-8)
O bairro de Canudos onde se localiza uma ocupação irregular denominada Curtume
Santo Antônio é considerado um bairro “pobre”. Localizado relativamente próximo ao rio
Guamá, sofre com inundações constantes, tendo sido parcialmente aterrado irregularmente
com lixo. Quando o período de chuvas se inicia, a situação de calamidade chega ao ápice.
Então por que as pessoas insistem em residir em tais localidades?
A miséria em que sobrevive grande parte da população brasileira é uma explicação
importante. Outra se deve ao fato de que anteriormente as condições eram ainda piores.
No espaço urbano as pessoas têm condições de unir-se para politicamente barganhar
com o estado o acesso a serviços como coleta de lixo, asfaltamento, escolas e unidades de
saúde, dentre muitos outros.
No campo, longe dos centros de decisão política, a situação é muito mais difícil. Por
isso as cidades atraem as pessoas para nelas morarem. Objetivando ascenderem socialmente
com o tempo.
É uma luta árdua e constante que perpassa pelo convencimento do status quo de que
não são a maior ameaça à ordem social estabelecida. Que suas demandas são relevantes e
devem ser consideradas pelo simples fato de serem pessoas... E cidadãs.
Esta busca de cidadania não começa com as discussões para a Constituição de 1988.
Tal qual garantir o direito à moradia não começa no ano 2000. Pois é necessário reconhecer
que durante toda a história do Brasil, perpassando os períodos colonial, imperial e
republicano, se negaram direitos políticos e por consequência de direitos de cidadania a
maioria das pessoas. E que isso teve consequências diretas no acesso à terra e em sua
distribuição dentro do território. É contra esta história que se busca a legalização das moradias
onde residem, com o reconhecimento de suas propriedades (em sentido amplo).
Esta história precisa ser considerada pelo judiciário sob pena de se estar compactuando
com uma injustiça histórica e negando aplicabilidade a uma previsão constitucional. Assim o
complexo caso do Curtume Sto. Antônio exemplifica o debate de entendimentos sobre o
direito à moradia que disputa o reconhecimento do judiciário.
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De um lado existe o Estado do Pará afirmando o seu direito de propriedade e


informando o interesse em utilizar a área objeto do litígio para concretizar o direito à moradia.
Do outro lado persistem os ocupantes irregulares que informam que a gestão do executivo
estadual falhou anteriormente em garantir o direito à moradia dos ocupantes, e continua
falhando ao querer expulsá-los do local sem um diálogo construtivo que beneficie as pessoas
que ali se encontram. Ou seja, em garantir uma alternativa viável de ocupação em outro local.
A pesquisa deste trabalho de conclusão de curso iniciou em 21/08/2018. Neste período
até 24\09\2018 foi realizada a pesquisa jurisprudencial exploratória nos sítios eletrônicos do
Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ). Objetivava-se
encontrar os tribunais superiores haviam analisado casos sobre o direito à moradia em caso de
ocupações irregulares (ou “invasões”).
Diante da inexistência de julgados passíveis de serem analisados, como foi revelado
pela pesquisa exploratória, foi necessário modificar o projeto de pesquisa. Então o trabalho se
orientou na busca de casos de ocupação irregular julgados a partir na edição da Medida
Provisória nº 759 de 22/12/2016, que se converteu na Lei 13.465\17, dispondo sobre
regularização fundiária urbana.
Realizou-se em 29/09/2018 busca no site do Tribunal de Justiça do Estado do Pará
pelas palavras chave “direito à moradia” E (“ocupação irregular” ou “invasão” ou
“comunidade”). Houve o recorte temporal sobre a data de julgamento sendo alocada buscas
somente a partir de 23/12/2016. Dos 20 acórdãos cíveis encontrados como resultado, somente
1 se qualificava como objeto de estudo.
Tratando-se de um Agravo de Instrumento interposto pela Defensoria Pública do
Estado do Pará fundamentando-se diretamente no novo marco de regularização fundiária, a lei
13.465\17, para reverter uma ordem de reintegração de posse do juízo onde o processo
judicial é conduzido.
Dessa forma a pesquisa tornou-se um estudo de caso único objetivando analisar os
discursos proferidos pelo judiciário neste litígio. Assim todo o processo judicial nº 0434638-
41.2016.8.14.0301, em andamento na 5ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Belém, foi
analisado. Além dos autos nº 0805059-42.2018.8.14.0000 relativos ao agravo de instrumento
pedido no caso, e que havia sido localizado na pesquisa jurisprudencial eletrônica.
A metodologia do estudo de caso (YIN, 2015) foi escolhida para conduzir a pesquisa
por causa do problema que esta visa a responder: como o poder judiciário se manifesta sobre
o direito à moradia em caso de ocupações urbanas irregulares?
9

Por enfocar em eventos contemporâneos e nos quais não é claramente possível


distinguir o contexto e o fenômeno analisado o método de caso é a escolha metodológica mais
segura e capaz de oferecer respostas.
No trabalho foi utilizada a técnica documental (SILVA, 2017) para analisar os
processos judiciais e entender quais as disputas que estavam disputando o acolhimento pelo
poder judiciário que analisou as demandas, e principalmente quais as respostas dos
magistrados aos questionamentos submetidos pelas partes em conflito.
O estudo de caso optou por verificar se e como o direito à moradia é referenciado nos
discursos do judiciário na situação concreta; e se a sua previsão considera o arcabouço teórico
evolutivo que fundamenta a garantia da moradia enquanto previsão constitucional.
Por isso o trabalho foi dividido em duas partes. A primeira relatando através da técnica
bibliográfica a construção legal do instituto do direito à propriedade até o direito à moradia. E
a segunda parte abordando o caso concreto, com a síntese dele, o percurso processual, e as
decisões tomadas, frente às fundamentações apresentadas.
A conclusão do trabalho é que neste caso se verifica um enfretamento entre o direito à
moradia e o direito à propriedade, com este sendo beneficiado. Ou seja, que a alegação de
moradia não pode ser utilizada simplesmente para autorizar a ocupação, se contrário a tal
interesse estiver o proprietário.
O contexto de insegurança fundiária no país não é particularmente enfrentado, e
garante-se a proteção a quem se alega proprietário quando se apresenta o registro do imóvel,
independentemente do histórico dominial do bem.
Apesar disso, é possível que a lei 13.465/17 ao prever em seu artigo 31, §8º, que se
preserve as situações de fato existentes até a conclusão do procedimento administrativo de
Regularização Urbana, represente um avanço significativo enquanto argumento para efetivar
o direito à moradia, além de dificultar as ordens de reintegração de posse para ocorrerem a
nível de sentença.

2 Construção do Direito à Moradia no ordenamento jurídico brasileiro através da


evolução histórica de ocupação das terras.

É significativo esclarecer que a irregularidade fundiária não atinge somente pessoas de


classes socioeconômicas inferiores (FERNANDES, 2010). Entretanto são em assentamentos
precários, com parco ou sem acesso aos serviços urbanos, como luz, água encanada, coleta de
10

esgoto e de lixo, que enquanto objeto de litígios acabam por receber no judiciário a
denominação pejorativa de “invasões”.
O desenvolvimento dos espaços periféricos criados a partir de alegada “usurpação” de
propriedades é comumente descrito no discurso oficial como uma afronta ao direito
fundamental constitucional da propriedade (MARTINS DE ABREU, 2011) e que por isso
deve ser firmemente combatido, por representar uma ameaça ao mais antigo direito natural1.
Esta é uma criação nominal bastante difundida nos diálogos cotidianos, inclusive nas
faculdades de direito e no judiciário. Mas e se essa lente for insuficiente para enxergar o
panorama geral que afeta as cidades brasileiras? Diz-se isto porque nestes lugares se
concentram a maior parte da população, mas que ainda contam com serviços precários e
concentrados (KLINK; ROLNIK, 2011).
A observação rigorosa da realidade demonstra que grande parte da população vive em
cidades com déficit de urbanização a qual deveria caracterizar as urbes. Entender esta
ausência de acesso a serviços e direitos básicos faz parte da discussão sobre direito à moradia,
que como já revelou o Comitê do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e
Culturais (PIDESCS) da Organização das Nações Unidas (ONU) não se confunde com
simplesmente “ter um teto sobre a cabeça” (NASSAR, 2014, pág.19) ou com ser proprietário
de um bem imóvel.
Isso revela uma importante contradição no discurso que se manifesta como repressão
simples às “invasões”, justificando-a a partir de uma noção abstrata de propriedade. Isso
porque se grande parte dos grupos sociais não tem acessos a estes serviços básicos que
caracterizariam as cidades então como seria possível eles terem acesso à propriedade
fundiária legalmente mercantilizada?
Ou será que uma questão está ligada à outra?
A construção histórica de acesso ao direito de propriedade é o que revela a
fundamentação pela qual se desenvolve o direito à moradia.

2.1 A moradia no ordenamento jurídico

1
“Muitos dos textos fundamentais sobre a sociedade e o Estado modernos, tanto próprios do liberalismo como
contrários a este, derivam os atributos éticos e pessoais essenciais da cidadania, assim como seus direitos e
obrigações, do direito à propriedade. Essa discussão em geral não se limita à propriedade de terra, mas considera
os próprios direitos como uma espécie de propriedade” ( HOLSTON, 2013, p. 157)
11

Em 2000, através da emenda constitucional nº 26, o direito à moradia tornou-se


garantia fundamental prevista na Constituição brasileira (CF). Em 2001, o executivo federal
editou a Medida Provisória 2.220\2001 que dispõe sobre a Concessão de Uso Especial para
Moradia em bens públicos (CUEM); no mesmo ano houve a promulgação do Estatuto da
Cidade, que estabelece uma política urbana nacional, em consonância com a previsão do art.
182 da CF, além de prever a possibilidade de regularização fundiária para áreas ocupadas pela
população de baixa renda.
Estes são os principais marcos que trouxeram visibilidade jurídica para a discussão
sobre moradia.
Até então havia um entendimento silente por parte dos poderes que “confundia”,
conscientemente ou não, moradia com propriedade. Por consequência somente através da
difusão deste último enquanto bem comercializável seria possível estender o acesso à
moradia. Portanto esta se confunde com uma mercadoria que pode ser distribuída através do
mercado, sendo este apenas regulamentado pelo estado.
Esta visão parcial do problema de habitação no Brasil ignora o processo histórico de
ocupação de terras no país enquanto tendo sido marcado por desigualdade e concentração em
sua manutenção por parte das elites locais em detrimento da maior parte da população,
formada em grande parte por escravos e pessoas pobres.
Por isto este trabalho irá revisitar esta construção histórico-legal de acesso à terra de
modo a demonstrar a afirmação que as ocupações irregulares trazem; o símbolo que guardam
com a desigualdade que representa a sociedade brasileira; e a particularidade de única opção
para a sobrevivência de grupos marginalizados que foram e são paulatinamente incorporados
à visibilidade social conforme ocorre a expansão da cidade.

2.2 Sistema de Sesmarias (1548-1822)

As sesmarias eram uma forma de ocupação da terra em Portugal e que foi difundida
pela metrópole para suas colônias após as “conquistas” imperiais. Para garantir a exploração
econômica do Brasil a administração portuguesa utilizou-se da distribuição de sesmarias, que
eram nada mais do que lotes de terras, para particulares responsáveis por realizar o cultivo
destas, em troca de 1\6 da produção anual. Ou seja, era uma espécie de arrendamento rural já
que o domínio sobre as terras continuava configurando patrimônio da coroa portuguesa.
12

Em caso de abandono das terras ou se constatada improdutividade – um conceito de


difícil e contraditória precisão - estas retornavam ao pleno controle da administração colonial,
na condição de terras devolutas, para serem redistribuídas novamente.
A divisão de sesmarias era baseada em sistemas latifundiários, de grande escala,
voltados para a produção de monoculturas para exportação, e que dependiam de investimentos
vultuosos para garantir retorno. Entretanto é importante informar que “o Brasil colonial, a
terra em si tinha pouco valor, não só por causa de sua abundância mas porque sua
disponibilidade para explorações lucrativas dependia dos complexos arranjos de capitais para
conseguir escravos.” (HOLSTON, 2013)
Portanto a apropriação da terra era diretamente dependente do trabalho escravo. Um
complementava o outro neste arranjo produtivo exauriente e insustentável.
As concessões de sesmarias eram utilizadas como garantia de futuros investimentos de
produção, que necessitavam de contínuo suporte diante do modelo de exploração, e da
inexistência de um mercado legal de terras, já que todas as terras eram do estado português, e
a eles retornavam se desocupadas.
A situação fática, que impedia condições de acesso livre à terra também exigia uma
substituição contínua das terras que eram utilizadas pelas concessões, combinada com a
grande produção de leis burocráticas produzida para controlar – ou impedir- estas ocupações
acabaram por produzir o caos fundiário herdado pelo Brasil independente no século XIX,
como o antropólogo James Holston (2013) sinteticamente explica:

Debates no Congresso a respeito da legislação da terra em 1843 mostram que os


legisladores suspeitavam que a Coroa deliberadamente concedia sesmarias vagas
não por ignorância dos territórios não mapeados ou por falta de capacidade de
inspeção, mas para manter os ‘fazendeiros ocupados tramando uns contra os outros e
não contra a Coroa (Dean, 1971:607). Seja como for, o problema fundamental se
devia ao fato de que, como tantas terras eram originariamente vagas, se não
irregulares, e como o uso da terra seguia na prática uma lógica diferente da
legislada, cada nova lei criava novas condições de ilegalidade. Com efeito, cada
regulamentação tornava mais posses de terras ilegais e gerava novas camadas de
confusões e conflitos. (HOLSTON, 2013, p. 165)

Apesar dos custos advindos dos registros que praticamente somente quem recebia as
concessões de sesmarias poderia pagar; estes não se interessavam em realizar tal tarefa, pois
lucravam com a ausência de controle sobre as terras, e precisavam constantemente expandir
seus territórios por causa do regime extensivo de produção agrária que exauria rapidamente a
terra.
13

Os posseiros irregulares, ou seja, que não haviam recebido sesmarias, poderia realizar
a regularização de suas posses, desde que comprovassem a produção das áreas, além de pagar
tributos sobre o uso da terra, e custear a regularização, que era inacessível para maioria. Como
a administração não iria garantir a manutenção das posses em caso de conflitos, esse era um
investimento custoso e que não valia a pena.
Assim o período colonial já revelava a disputa sobre a terra através da violência e a
ineficiência – ou conivência - do aparato burocrático em controlar os registros de terras.

2.2 Lei de Terras de 1850

Quando a Resolução nº 76 de 1822 suspendeu a concessão de novas sesmarias o país


ficou sem legislação substituta sobre a alienação de terras públicas até a edição da Lei de
Terras em 1850 (Lei nº 601\1850). E somente em 1854 foi editado o Decreto nº 1.318 que
regulamentou sua execução.
Então durante esse lapso temporal todas as ocupações que ocorreram desde então não
tinham proteção legal. Assim a posse ilegal generalizou-se como única forma possível de
acesso à terra. Ainda que isso já ocorresse no período colonial, dentro desse limbo legal as
invasões tornaram-se a regra, independentemente das condições socioeconômicas dos
ocupantes. Naturalmente a força e a violência continuaram a definir os conflitos.
Com as pressões externas para a abolição do tráfico de escravos, tornou-se imperativo
discutir a substituição do trabalho escravo nas atividades agrícolas, já que as dificuldades na
entrada de escravos ameaçava a continuidade da produção, pois estes se estafavam (ou
morriam) rapidamente por conta das condições da exploração física.
Com o inevitável fim da escravidão que desde o início do século XIX se antevia a
opção encontrada para dar continuidade ao sistema produtivo de bens para exportação foi
estimular a imigração de europeus pobres.
Só que a elite agrária queria garantir trabalhadores, não futuros competidores. Por isso
seria necessário garantir que os novos trabalhadores imigrantes não recebessem salários
suficientes para abandonar a relação de emprego – na verdade se buscava mais uma espécie
de servidão - além de dificultar ou até proibir o acesso deles a terras.
14

Outra questão eram os custos de financiamento para incentivar a imigração dos


trabalhadores europeus que se tornou um dever do estado, não dos proprietários que com eles
iriam se beneficiar diretamente.
A necessidade de criar um mercado imobiliário para gerar receitas foi mais um
impulsionador da necessidade de “reforma agrária”; era necessário possibilitar a alienação de
terras públicas de forma segura, de modo a possibilitar investimentos.
Por isso o objetivo do mercado de terras criado pela lei de 1850 era ser inacessível a
todos que já não fossem latifundiários. O acesso à terra ocorreria exclusivamente através da
compra e venda; havendo um tamanho mínimo de lote, de modo a manter os valores altos;
além da proibição para os imigrantes subsidiados de comprar, arrendar, alugar ou obter o uso
da terra por três anos, a menos que arcassem com as despesas por sua imigração.
A questão mais importante é a definição de que o estado deve vender e não conceder
terras. Por isso mesmo na existência de grandes extensões territoriais sem produção, a
ocupação destas para moradia e trabalho não seria protegida, porque não havia possibilidade
legal de assegurar a posse.
Além da dificuldade prática de acesso a crédito e custos proibitivos de compra para a
maioria dos imigrantes, esta estratégia terminou por ter consequências por mais de um século.
Isso porque ao não se reconhecer a legitimidade das pessoas em buscar moradia e trabalho
através do uso da terra, se supervalorizou o título do bem em detrimento da realidade fática de
garantir que este tivesse retorno social.
Somente a partir da Constituição de 1988 o direito de propriedade passa a se coadunar
com o cumprimento de sua função social. Assim entende-se que o bem como meio para
efetivar outros direitos, e não com o mero fim de formar patrimônio ocioso e improdutivo
para a sociedade.
Por isso pode-se afirmar que a lei de terras perpetuou, para muito além de sua
vigência, a desigualdade, a injustiça e a violência ao impedir o acesso legal de cidadãos e
imigrantes à pequena propriedade fundiária. E tornou a ocupação ilegal no campo e
posteriormente nas cidades uma manifestação de sobrevivência.
A partir do ressurgimento em 1850 de uma legislação fundiária complexa e
burocrática surge um terceiro personagem que aproveitando-se do descontrole do aparato
estatal sobre os registros de terras, e com o desconhecimento do próprio estado sobre terras
públicas e privadas, passa a aproveitar-se deste descontrole burocrático para apropriar-se de
terras públicas ilegalmente e repassá-las ilegalmente ao mercado privado: o grileiro.
15

A sua importância reside justamente na criação de múltiplas transações sob a


aparência de legalidade para forjar este status a documentos, repassando-os de modo a que
futuramente seja considerado um bem privado.
Com o caos fundiário criado pelo descontrole de registros e discriminação entre terras
públicas e privadas, tornou-se uma atividade hercúlea garantir a consistência e veracidade de
um registro de modo a garantir sua legalidade perante o ordenamento. Por isso todos que se
beneficiaram, provavelmente desconhecendo esta situação de falseabilidade, dão continuidade
à atividade grileira. Podendo inclusive ser o próprio estado.
James Holston exemplifica esta complexa atividade:

Na medida em que o mercado imobiliário conferiu um novo propósito e uma nova


síntese a muitas práticas fraudulentas antigas, a Lei de 1850 iniciou uma era de
fraudes fundiárias sem precedentes. Durante a segunda metade do século XIX, os
que se apropriavam de terras aprimoravam técnicas de manipulação da lei que se
tornavam cada vez mais a marca registrada da grilagem: eles disfarçavam as terras
invadidas com um manto de legalidade, envolvendo-as no que parecem ser
transações legítimas. O duplo objetivo desta estratégia é elaborar um dossiê de
documentos atestando o que seria uma transação legal em cada caso se estivesse
fundada em direitos legítimos de propriedade e, portanto, envolvesse o maior
número de pessoas possível no aparente reconhecimento da alegação do usurpador.
Para envolver a terra em transações legítimas, um grileiro ou proprietário poderia
pagar impostos sobre sua posse, vender um pedaço dela, doar parte para uma
organização religiosa, fazer um levantamento da propriedade, usá-la como garantia
para um empréstimo, deixar de herança ou concedê-la como dote. Seus herdeiros ou
associados podiam continuar a acumular tais transações, desde que pagassem ao
menos partes dos encargos exigidos. O mais importante é que eles respeitosamente
as registrariam nos livros da paróquia local, que em muitos lugares serviam como
primeiro registro.

Todos os papéis acumulados nessas transações - recibos, testamentos, permissões,


levantamentos, títulos, páginas de registro e assim por diante – eram prova de que o
Estado e a Igreja os haviam sancionado. Portanto, as estratégias da grilagem
requerem um considerável conhecimento legal, usado para dissimular a usurpação e
a fraude dentro de uma teia de reivindicações legítimas. Embora tenha como
objetivo explorar essa teia como um ganho financeiro imediato, o grileiro em geral
tem um objetivo mais profundo: atravancar essas alegações legítimas com tantas
relações sociais ao longo do tempo que se torne impossível desmantelá-las, e por
isso a legalização do ilegal por decreto executivo, ato legislativo ou decisão judicial
se torne inevitável. Neste tipo de complicação, a fraude conta com a lei como
cúmplice. (HOLSTON, 2013, p. 188-189)

Então não somente quem não teve acesso à propriedade fundiária ao longo do século
XIX e XX foi diretamente prejudicado pela Lei de Terras. Esta foi tão fundamental para
consolidar a insegurança fundiária que mesmo quem de boa fé e com condições financeiras
construídas forçosamente ao longo do tempo, pode ter comprado imóveis em grande parte do
território nacional, cujo domínio não pertencia de fato aos múltiplos vendedores por onde
aquela negociação de terras passou.
16

É uma fraude construída através da manipulação da lei e do aproveitamento de suas


lacunas para a realidade social, que se perpetuou ao longo do tempo, e contribui para o déficit
habitacional atual, para o surgimento e expansão das ocupações irregulares, e para a
instabilidade no sistema fundiário brasileiro.

2.4 Urbanização e Lei do Inquilinato

Tão logo conseguiam recursos, os imigrantes deixavam o campo em busca de


trabalhos de maior remuneração nas cidades. Além deles havia também os pobres urbanos,
dentre os quais libertos e descendentes de escravos que não receberam políticas de inclusão
após a abolição da escravatura, além de migrantes de outras regiões em buscas de melhores
condições de vida.
Isso se justificava pela industrialização nas grandes cidades brasileiras no final do
século XIX e início do século XX. A manufatura passou a ser uma atividade produtiva em
larga escala e os incentivos para a imigração de europeus perduraram até o fim dos anos 20,
quando o governo Getúlio Vargas passa a reprimir duramente sindicatos, muito liderados por
imigrantes, e a valorizar sua criação ideológica de trabalhador nacional.
Como consequência das oportunidades que as cidades ofereciam em detrimento da
violência do campo, a população que nelas habitavam teve um crescimento exponencial
durante décadas, e no fim nos anos 80 a maior parte dos brasileiros já residia em cidades.
Esta urbanização provocou um crescimento exponencial da população nas grandes
cidades e a demanda por serviços essenciais e moradia se acentuou, para além do que os
centros eram capazes de recepcionar. Além de que com a grande demanda o custo com
habitação também cresceu, e por consequência muitas pessoas não tinham como subsidiar os
aluguéis, por exemplo.
Dessa forma grande massa de trabalhadores foram obrigados a se deslocar para “fora
do centro da cidade”, para as chamadas periferias, onde muitos assentamentos foram se
formando até então sem acesso a serviços urbanizados e à infraestrutura característica das
urbes (LOPES, 2006).
O custo da terra era mais acessível fora das cidades também porque estas regiões não
necessitavam obedecer às regras de loteamento. Conforme a área urbana se expande, estas
localidades com uma densidade populacional distribuída em contrariedade com a legislação
urbana, tornam-se também irregulares do ponto de vista da legislação urbanística, e passam a
receber menos recursos por configurarem tecnicamente como regiões rurais.
17

Assim a luta política de afirmação por suas ocupações e de mobilização pelo acesso
aos serviços urbanos e direitos fundamentais como saúde, educação, e saneamento básico, é
algo que define as periferias.
Esse movimento em direção às periferias é complementar ao do crescimento
populacional nas cidades e combina-se a escolhas políticas trágicas que resultaram em
descontrole sobre preços dos aluguéis nos centros urbanos e despejos em massa. Um exemplo
foi a promulgação da Lei de Inquilinato de 1942.
Com as reformas urbanas ocorrendo nos centros para “higienização” e embelezamento
das cidades, o número de demolições de habitações era crescente. A maior parte dos
domicílios nos centros era utilizada como locação, apesar disso, o controle legal sobre os
valores imposto pela lei de inquilinato impossibilitou a continuidade dos investimentos neste
tipo de acesso à moradia, sendo mais vantajoso ao locatário vender os prédios do que manter
os aluguéis para recuperar seus investimentos.
Assim um importante instrumento de fixação de pessoas nos centros acabou sendo
deturpado por uma medida legal, e resultou em mais um fator de estímulo à migração para as
periferias.

2.5 Políticas de Habitação

Para lidar com a “desorganização” consequente das migrações em direção às cidades


industriais como São Paulo que provocavam a cisão de pessoas de múltiplas funções, classes,
nacionalidades e etnias no mesmo espaço geográfico, os planejadores urbanos dentre outros
estudiosos propuseram a reconfiguração das cidades a partir da valorização da moradia.
A questão é que a moradia foi pensada enquanto bem comercializável a ser construído
nas periferias. Desse modo foi fundamental a expansão do transporte público em direção a
essas regiões para permitir essa ligação entre centro, onde se localizariam os trabalhos e a
vida social das cidades, e a periferia, o local para onde os trabalhadores urbanos tinham que se
deslocar. O centro assim seria habitado por classes abastadas, que teriam como custear
imóveis localizados em regiões com densidade demográfica baixa.
Assim através desse plano de transformar habitação em mercadoria previa-se um
estímulo à economia ao mesmo tempo em que possibilitaria a remodelação do centro, a ser
valorizado urbanisticamente.
Com a legislação do trabalho trazida pelo governo Getúlio Vargas muitos institutos de
pensão e seguridade social a partir de 1937 foram criados, e traziam entre suas finalidades o
18

financiamento de imóveis aos trabalhadores. Outra política pública adotada foi o incentivo às
instituições de crédito governamentais de garantir financiamentos a taxas menores do que as
praticadas pela iniciativa privada.
Esta prática inclusive continua sendo adotada até os dias atuais, também como forma
de aquecimento da economia, como foi o caso do Programa Minha Casa Minha Vida, adotado
após a crise mundial de 2008.
Além da crítica de que tais financiamentos eram acessíveis somente às classes média e
alta a principal consequência destas políticas habitacionais foi simplesmente sua insuficiência
porque nunca chegaram perto de conseguir realizar a construção de imóveis dentro do ritmo
imposto pelo crescimento da cidade.
Ou seja, a inadequação de uma política habitacional racional gerou a necessidade dos
trabalhadores autoconstruírem suas casas, das formas mais baratas e de modo estruturalmente
precário (HOLSTON, p. 217).

2.6 Lei 13.465/2017 e os núcleos urbanos consolidados

A lei nº 13.465/17 é uma legislação que dispõe sobre regularização fundiária rural e
urbana, aprovada a partir da conversão da Medida Provisória nº 759/ 2016. Ela alterou e
revogou artigos de inúmeras legislações, principalmente a lei nº 11.952/09 que tratava sobre a
temática, entre outros diplomas legais.
A grande inovação trazida pelo novo marco é a garantia de regularização fundiária
enquanto instrumento que reúne medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais de modo
a possibilitar a integração destas ocupações ao ordenamento territorial da cidade.
Ou seja, ocorre o reconhecimento de que a garantia do direito à moradia vai além de
assegurar a posse mas envolve medidas de urbanização e integração social, que definem o
espaço urbano (LOPES, 2006).
Além disso, existe a previsão que além da regularização urbana de núcleos urbanos
informais de pessoas em situação de vulnerabilidade (Reurb – S) é possível realizar a
regularização de assentamentos ocupados por pessoas de classes sócias elevadas (Reurb – E).
Reconhecendo, portanto, que a insegurança fundiária atinge o território como um todo.
O ente responsável por realizar a regularização é o Município no qual a ocupação se
localiza. Porém são aptos a requerer a regularização urbana além do Município, União,
Estados, e seus entes da administração indireta; proprietários dos terrenos, loteadores e
incorporadores; Defensoria Pública; e Ministério Público.
19

No caso analisado pela pesquisa o pedido de ReUrb-S foi realizado pela Defensoria
Pública do Estado do Pará em 15\06\2018.

3 Caso Curtume Sto. Antônio


3.1 Síntese do caso
Na Rua Olaria nº 94, que forma um quadrilátero de lados com diferentes medições
com a Rua Dr. Silva Rosado e a Rua Dr. Américo Santa Rosa, localiza-se uma ocupação
irregular, que recebeu a denominação de Curtume Santo Antônio. O nome advém de no local,
em meados de 1930, ter-se desenvolvido a atividade de curtição de couro de animais, cujos
dejetos eram diretamente jogados no igarapé das proximidades, que faz parte da Bacia do
Tucunduba, conforme Aldalice Oterllo informa (2001 apud 2005, SANTOS, p. 59).
No endereço localizava-se bem pertencente à empresa Sobral Irmãos Limitada. Em
2007 através do Decreto Estadual nº 460 o governo do Pará desapropriou quatro terrenos
“urbanos” nas áreas dos bairros do Marco e Terra Firme sob a justificativa de que a área seria
destinada à implementação de projeto da macrodrenagem da Bacia do Tucunduba atrvés do
Programa de Aceleração do Crescimento2
A área definida como Poligonal 1 delimita o Antigo Curtume ou Curtume Santo
Antônio atualmente, e compreende um espaço de 17.955 m²(dezessete mil novecentos e
cinquenta e cinco metros quadrados) cujos proprietários desapropriados receberam o valor de
R$ 2.852.000,00 (dois milhões oitocentos e cinquenta e dois mil reais) como indenização.
Em 2008, iniciou-se o processo de desapropriação por utilidade pública que seguiu os
trâmites processuais perante a 3ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Belém. Na época o
local já era utilizado como morada de muitas famílias, dentre as quais 212 foram remanejadas
durante este período e cadastradas passaram a receber auxílio moradia no valor de R$ 488, 58
(quatrocentos e oitenta e oito reais e cinquenta e oito centavos).
Como o local permaneceu sem utilização devido ao não início das obras intentadas
pelo executivo estadual novas ocupações voltaram a acontecer, pelo menos desde 2011. Dessa
forma em 2015 a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Obras Públicas
(SEDOB) realizou a pedido da Procuradoria Geral do Estado do Pará (PGE) o levantamento
das pessoas residindo na nova ocupação do local, que totalizariam 40 famílias, dentre as quais
85% teriam ocupando após 2008. E 10% afirmou estar no curtume pelo menos desde 2008.
Ou seja, retornaram após o remanejamento realizado naquele ano.
2
No auto de imissão do processo de desapropriação, juntado à Inicial, consta informação de que a negociação
com as 212 famílias que resultou em sua retirada do local, previu no termo de acordo que as famílias seriam
beneficiadas com unidades habitacionais a serem construídas naquela localidade. No auto de imissão consta a
assinatura do oficial de justiça e da procuradora do estado. Mas o termo de acordo não foi acostado à petição.
20

Diante dessa nova situação fática a PGE adentrou com a ação de reintegração de
posse, requerendo ademais a cominação de multa diária em caso de descumprimento da
solicitada ordem de reintegração e multa na hipótese de constatado novo esbulho pelos
mesmos réus. Além disso, foi solicitada indenização por perdas e danos em caso de eventuais
prejuízos causados pelas pessoas ao imóvel.

3.2 Percurso Processual


A inicial foi protocolada em 21/06/2016, cerca de um ano após o levantamento dos
novos ocupantes realizado pela SEDOB, que foi realizado entre os dias 18 a 29/06/2015.
A decisão que recepcionou a petição inicial data de 05/08/2016 e negou a medida
liminar de reintegração solicitada pelo réu. A magistrada da 3ª Vara da Fazenda Pública
ressaltou que a ocorrência de esbulho estaria ocorrendo há mais de 1 ano, de modo que o caso
se configuraria na hipótese do artigo 565 do Código de Processo Civil (CPC) de 2015, sendo
necessário realizar a audiência de conciliação antes da apreciação do pedido de liminar.
Também questionou a contrariedade no posicionamento da Procuradoria em afirmar
interesse em conciliação, mas solicitar deferimento para pedido liminar de reintegração de
posse. Além disso, determinou a regularização do polo passivo na demanda inicial, para que
as 39 famílias identificadas pelo órgão estadual passassem a constar como réus, de modo a
não terem prejudicados seus direitos a ampla defesa e contraditório.
Determinou a citação do Ministério Público do Estado do Pará (MPE),
especificamente a 4ª Promotoria de Justiça dos Direitos Constitucionais Fundamentais e dos
Direitos Humanos para atuação como fiscal do ordenamento jurídico (custos legis) por conta
da existência de inquérito civil que aborda a situação da área.
Ponderou também que diante da situação precária dos moradores que residem na área
e seriam citados, seria necessária também a intimação da Defensoria Pública do Estado (DPE)
que possivelmente atuaria como representante legal dos réus na causa.
Por fim determinou o apartamento dos autos gerando por sua vez o número processual
0434638-41.2016.8.14.0301, relativo unicamente à situação da discussão sobre posse e
moradia, que passou para a 5ª Vara da Fazenda Pública da mesma comarca, por conta da
existência de interesses coletivos.
A Defensoria Pública apresentou petição incidental na qualidade de “custos
vulnerabilis” (artigo 4º, inciso VIII, da Lei Complementar nº 80\94) em 25\04\2017. Apesar
de ter apresentado argumentos pelos quais a reintegração de posse deveria ser negada, em
seus pedidos finais acabou fazendo requerimentos de meio, como a notificação prévia de
21

desocupação; a não utilização de violência contra os ocupantes, principalmente violência e


coação moral através de instrumentos como balas de borracha e gás de efeito moral; e
finalmente que fosse concedido tempo para a retirada pelos ocupantes de seus objetos
pessoais.
Entretanto talvez o principal apontamento realizado pela DPE tenha sido a inexistência
de citação aos réus, como havia sido determinado pelo juízo anteriormente. Por isso solicitou
o cumprimento da ordem pela secretária da 5ª vara, para onde o processo foi encaminhado.
Então o processo foi encaminhado ao MPE onde em 30\05\2017 foi acostado o
posicionamento da titular da Promotoria de Ações Constitucionais e Fazenda Pública, apesar
da especificação da magistrada que recepcionou o caso, ter determinado a citação do MPE,
através da 4ª Promotoria de Ações Constitucionais e Direitos Humanos.
A manifestação do MPE foi simplesmente pela procedência da ação nos mesmos
termos da PGE. Tais quais de que o caso trata-se de uma invasão de bem público e de que a
posse do ente se provava diante da existência do Registro de Imóvel juntado como documento
instruído à inicial. Ainda afirmou que os argumentos de direito à moradia e dignidade da
pessoa humana não teriam pertinência com o caso.
Com o retorno dos autos à vara competente foi juntado ao processo o despacho
expedido em 06\04\2018, desta vez pelo magistrado da 5ª vara da fazenda pública.
Determinou a realização de audiência de conciliação para o dia 22\05\2018. E novamente
determinou a intimação das partes para ciência da audiência. O que não ocorreu.
No termo da audiência foi registrado que a DPE encontrava-se presente representando
o réu. O que contraria os termos da petição da própria Defensoria. Fato este também
ressaltado pelo órgão na audiência.
A DPE tentou negociar na audiência a realização de acordo para que a PGE
possibilitasse a inclusão dos ocupantes em programa social a exemplo do auxílio moradia
antes da desocupação. Mas o procurador do estado e o consultor jurídico da SEDOB
afirmaram que o auxílio moradia neste caso só alcançaria as famílias que foram remanejadas
em 2008. Informando a possibilidade, entretanto da inclusão, no caso de cumprimento das
regras exigidas, em outro programa habitacional.
Ao fim da audiência a Defensoria Pública apresentou Embargos de Declaração
questionando os termos da decisão do magistrado por não ter feito referência aos argumentos
sobre a Regularização Fundiária solicitada perante a Prefeitura de Belém, que interromperia a
reintegração; e também à aplicabilidade do comentário geral nº 7 das Nações Unidas (ONU) e
a Instrução Normativa nº 26 do Ministério das Cidades, vinculado ao Executivo Federal;
22

processualmente questionou a ausência do MPE na audiência, razão pela qual considerou que
a audiência deveria ser considerada invalidada e remarcada para contar com a participação do
parquet.
As contrarrazões aos Embargos de Declaração foram apresentadas na data de
16\06\2018 pela via eletrônica, pois a partir da data de audiência, o processo judicial migrou
para este formato. Preliminarmente afirmou ausência de qualquer dos requisitos que
justifiquem o recurso, a exemplo, omissão, obscuridade, contradição ou erro material.
No mérito alegou que não houve ofensa ao comentário geral nº 7 da ONU porque o
despejo forçado ocorreria em conformidade com a lei e com os pactos internacionais, previsão
que o próprio diploma prevê. Entretanto somente fundamentou a legalidade do ato em relação
à previsão da garantia de ampla defesa e contraditório afirmadas pela CF, sem referenciar
expressamente aos pactos internacionais.
Sobre a Instrução Normativa nº 26 afirmou que por conta desta se referir a
procedimentos e disposições relativos às operações de crédito no âmbito do Programa
Saneamento para Todos - Mutuários Públicos não seria aplicável ao caso em litígio.
Quanto ao argumento de cunho processual sobre a nulidade da audiência por conta da
ausência do MP a Procuradoria do Estado citou decisão do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) em procedimento de controle administrativo de que em atenção aos princípios da
celeridade processual e da garantia razoável do processo a ausência de membro do Ministério
Público devidamente intimado não geraria a nulidade do ato.
Em 29\06\2018 a Defensoria Pública do Estado apresentou pedido de retratação ao
juízo de 1ª instância diante dos argumentos trazidos no Agravo de Instrumento interposto na
mesma data perante o Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA). No recurso o órgão
apresentou os documentos dos ocupantes através dos quais estes outorgaram poderes para que
a instituição lhes representasse na questão perante procedimentos judicias e administrativos
advindos da ocupação.
Este foi o segundo pedido de reforma da ordem de reintegração. Pois antes da
apresentação do recurso, em 15\06\2018 a DPE havia requerido a suspensão da ordem contida
no mandado de reintegração de posse. Isso com base na informação fornecida ao juízo de que
na mesma data o Núcleo de Regularização Fundiária e Direito à Moradia da Defensoria
Pública do Estado apresentou pedido de Regularização Urbana (ReUrb-S) para o Curtume
Sto. Antônio perante a Prefeitura de Belém, tendo fundamentado seu pedido na previsão da lei
13.465\17.
23

Posteriormente ao primeiro Agravo de Instrumento impetrado, no dia 26\07\2018, a


DPE já está atuando devidamente como representante da comunidade do curtume Sto.
Antônio apresentou contestação à inicial de reintegração de posse e um pedido de
reconvenção da ação contra o estado do Pará, representado pela PGE.
A Defensoria alega que a ocupação data pelo menos desde o ano 2000. E que apesar
de existirem instrumentos disponíveis ao Governo do Estado para que promovesse a
regularização da segurança de posse dos moradores em detrimento dos particulares que
detinham o imóvel, visto que a propriedade não cumpria sua função social, o executivo
preferiu desapropriar o imóvel a um custo de milhões como indenização aos antigos
proprietários.
Através de notícias de jornais a DPE demonstrou as pressões políticas dos ocupantes
de 2008 para obter respostas para a conclusão do projeto habitacional. No lapso temporal de 7
anos, entre 2008 e 2015, teriam sido apresentados pela Companhia de Habitação do Estado do
Pará (CoHab) dois projetos para a área, mas que não teriam sido concretizados entre outros
motivos por déficit orçamentário.
Outros recortes de jornais da época entre a desapropriação e a atualidade demonstram
o abandono da área que propiciou sua utilização em determinados locais como “lixão” a céu
aberto, e como ponto para venda e uso de drogas ilícitas.
Diante do déficit habitacional que atinge a Região Metropolitana de Belém a DPE
afirma que logo em 2009 novas ocupações voltaram a acontecer no lugar, já que este
continuou desabitado, também por conta das condições de extrema precariedade. Assim foram
erigidas novas palafitas que, segundo o Parecer Técnico realizado por profissional de
arquitetura e urbanismo anexado à peça, ocupam aproximadamente 32% do total da área do
bem, estando por consequência aproximadamente 68% do espaço disponível.
Além desta informação, a Defensoria trouxe um levantamento sobre os ocupantes do
Curtume realizado através da visita no dia 06\06\2018 além dos comparecimentos ao órgão
para solicitar a assistência jurídica gratuita. Aqui existe uma clara divergência com as
informações prestadas pela PGE a partir do levantamento realizado pela Secretaria de Estado
em 2015.
Enquanto o levantamento da SEDOB informou a existência de 40 famílias tendo sido
citados em 2018 53 ocupantes; a DPE incluiu 126 famílias sendo representadas por uma (1)
pessoa, chegando o número total de ocupantes a 474 pessoas.
Inicialmente a DPE voltou a questionar a legalidade da audiência de mediação
realizada sem a presença do Ministério Público. Alega que o CPC é explícito ao determinar
24

que em casos de litígios de posse com mais 1 ano de existência a presença do fiscal da lei é
imprescindível.
E também afirmou a nulidade do ato pela ausência de intimação dos ocupantes que
não puderam gozar de seus direitos constitucionais de ampla defesa e contraditório. Afirmou
ainda que todos os atos posteriores à realização da audiência devem ser considerados nulos,
pois não haveria a possibilidade de convalidação de tais vícios.
Sobre a concessão de medida liminar da reintegração a Defensoria afirmou que os réus
não tiveram a possibilidade de se defender da denúncia como apontado na forma como
ocorreu a audiência de conciliação, mas ainda mais, afirmou que tal ordem se baseou
exclusivamente na versão incompleta e precariamente instruída fornecida pela Procuradoria.
Ademais ressaltou a ausência de urgência, considerando a inexistência de cronograma
de obras, mas principalmente informando que seria possível realizar a obra na área
desocupada do imóvel. Para justificar esta hipótese juntou à peça o inquérito civil 000327-
125/2014, aberto pela 4ª Promotoria de Direitos Constitucionais e Direitos Humanos, que
contém a ata da audiência realizada em 09\06\2014, e onde o engenheiro da CoHab presente
afirmou possível iniciar as obras em agosto desse mesmo ano, sendo que a ocupação presentes
no local não seria um impedimento.
Concluiu a alegação sobre fundamentos jurídicos abordando a lei 13.465\17 e sua
previsão de Regularização Urbana para núcleos informais consolidados. Explicou a relevância
da nova legislação com sua previsão de medidas jurídicas, ambientais, urbanísticas e sociais
para a realização de uma regularização fundiária.
Destacou os objetivos da lei dentre eles o de priorizar a permanência dos ocupantes
nos próprios núcleos de modo a privilegiar o direito à moradia e garantir a função social da
propriedade, além de priorizar as funções sociais da cidade.
Informou ainda a garantia do novo marco de regularização a manutenção dos
ocupantes na área até o julgamento definitivo do processo, e citou decisão do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo que reformou a decisão de 1ª instância que havia negado a
suspensão, justificando como previsão expressa da lei, sem previsão de exceções devido à
localização do bem ocupado.
Concluiu a petição com um pedido de reconvenção contra o Estado do Pará
requerendo a condenação do ente federado para que seja conferida a Concessão de Uso
Especial para fins de Moradia (CUEM); e para que inclua os atuais ocupantes como
beneficiários do projeto habitacional previsto para o local, ou na impossibilidade numérica
desta, para que sejam incluídos em outro projeto; e subsidiariamente para que caso negados
25

todos os pedidos anteriormente citados sendo decretada a reintegração, que os ocupantes


passem a receber auxílio moradia.
Além do agravo de instrumento interposto em nome da comunidade do curtume
Sto.Antonio em 29\06\2018; a Defensoria apresentou outras três petições de agravo de
instrumento representando indivíduos isoladamente que residem no local da ocupação. Dois
foram submetidos em 25\07\2018, e o quarto no dia posterior, 26\07\2018.
No agravo de instrumento coletivo foi requerido efeito suspensivo para que a ordem
de reintegração não fosse cumprida até o julgamento do agravo, por causa das consequências
que poderiam ocorrer da execução do mandado. Citou a grande quantidade de famílias e
moradores que incluem crianças, idosos, deficientes físicos, e mulheres grávidas. Assim
afirmou que a decisão que garantiu a reintegração ocorreu a partir da existência de inúmeros
vícios no julgamento, e teria o condão de afetar irreparavelmente o direito à moradia e a
sobrevida de tais pessoas.
Os termos gerais do recurso foram semelhantes ao da contestação que no lapso
temporal foi interposta após este, como já descrito acima. Afirmou a ofensa aos princípios de
ampla defesa, contraditório e devido processo legal, pela ausência de intimação ao MP para
participar da audiência de conciliação, assim como a falta de citação aos ocupantes;
Questionou a ausência de perigo da demora alegada para conceder a tutela de urgência
diante do abandono da área após a desapropriação do imóvel e ausência de plano de
construção, além de acostar a informação de que a maior parte do bem encontra-se
desocupada;
Alegou ainda que os despejos forçados são casos excepcionais segundo o Comentário
Geral nº da ONU, e que a forma como foi determinado estaria em desacordo com o Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais pelo Estado não ter apresentando
um plano de redução de danos para a retirada dos ocupantes ou mesmo ter indicado a
existência de recursos para a construção do Conjunto Habitacional inicialmente previsto para
a área.
Os outros 3 agravos de instrumento que adentraram ao processo apesar da disposição
dos argumentos de maneiras diferentes, utilizavam a mesma fundamentação jurídica que já foi
narrada nas sínteses da contestação e do agravo de instrumento coletivo, razão pela qual não
serão expostos aqui.
Em sede de contrarrazões ao agravo de instrumento coletivo o Estado preliminarmente
alegou ofensa ao princípio da unirrecorribilidade recursal por causa da Defensoria ter
apresentado embargos de declaração e antes do julgamento deste ter adentrado com o recurso
26

para reformar a decisão interlocutória. Quanto ao mérito se pautou na afirmação de que as


informações trazidas pela DPE não tem ligação com o objeto da em discussão no caso que
seria se o estado deve ou não ser reintegrado em sua posse, cujas exigências legais estariam
previstas pelo CPC e teriam sido apresentadas no litígio pela PGE;

O Estado também foi instado a manifestar réplica à contestação da DPE e defender-se


do pedido de reconvenção proposto. Juntou tal petição em 25\08\2018. Apresentou desta vez a
sua verdade dos fatos sobre a situação fática alegada pela Defensoria. Afirmou que as pessoas
invadem o local, conscientemente sabendo tratar-se de imóvel público e que a postura do
órgão de defesa busca forçar pela ilegalidade obter a propriedade do bem.

Além disso, informou que a decisão justa e legal seria retirar os invasores do local
para propiciar a construção do conjunto habitacional no terreno que teria sido desapropriado
para este fim. Por isso alega que a contestação combinada com reconvenção e os inúmeros
recursos apresentados tem fim meramente protelatório de impedir a concretização do direito
do Estado.

Para a PGE a Defensoria não teria comprovado os fatos que alega e de que a moradia
por si só não poderia justificar as invasões sob a possibilidade de criar uma confusão jurídica.
Isso porque apesar de serem questões relevantes não guardariam relação com o objeto do
processo cuja discussão se pautaria se o estado deve ou não ser reintegrado ao seu imóvel.

Por fim concluiu que utilizar as normas do PIDESCS para servir de pretexto para
legitimar a ilegalidade da invasão de terreno público seria uma contradição à garantia do
direito à moradia de quem deveria receber os imóveis previstos para o local, ofendendo os
direitos humanos de tais pessoas.

Segundo a PGE é imoral e ilógico defender sob o argumento da dignidade da pessoa


humana que poder-se-ia invadir terreno público ou a casa de alguém, ou adquirir via
Regularização Urbana ou qualquer outro instrumento a propriedade a propriedade de um
imóvel.

Posteriormente em 19\09\2018 a PGE apresentou petição simples contendo pedido de


reconsideração contra uma nova decisão interlocutória que suspendeu a ordem de reintegração
de posse. Justificou alegando que a decisão estaria em contrariedade com a decisão do TJPA
ao julgar o agravo de instrumento coletivo.
27

3.3 Decisões e Fundamentações


Houve ao longo do percurso judicial 5 decisões que se manifestaram de alguma forma
sobre o mérito do caso. Três decisões foram proferidas em primeira instância, e duas pelo
TJPA.
Houve a decisão interlocutória de 05\08\2016 da magistrada da 3ª Vara da Fazenda
Pública que recebeu a inicial, porém negou a concessão de tutela antecipada para reintegrar a
posse do Estado (A); a decisão interlocutória do magistrado da 5ª Vara da Fazenda Pública de
Interesses Coletivos, Difusos, e Individuais Homogêneos, onde tramita o processo, e que
determinou a concessão da ordem de reintegração, após o término da audiência de conciliação
no dia 22\05\2018 (B); e a decisão interlocutória do mesmo magistrado que em 08\08\2018
suspendeu a ordem de reintegração de posse anteriormente conferida (C);
No Tribunal de Justiça houve uma decisão monocrática do relator do agravo de
instrumento que em 10\08\2018 negou o pedido de efeito suspensivo ao recurso impetrado
(D); e o acórdão de 03\09\2018 da 1ª turma de direito público que por unanimidade negou a
reforma da decisão que havia concedido a reintegração em antecipação de tutela, nos termos
do voto do relator (E).
A partir da leitura das decisões verifica-se o posicionamento do judiciário a partir de
três perspectivas:
1. O entendimento da validade da antecipação da tutela concedida antes da defesa
dos réus no processo;
2. A fundamentação jurídica das decisões que concedeu e manteve a ordem de
reintegração de posse, justificando-a a partir de alegações de segurança jurídica e do direito de
propriedade, além do entendimento de que o direito à moradia não justificaria a “invasão” de
bens;
3. Afirmação de uma sensibilidade para com a situação precária dos requeridos,
que não obstante não seria motivo de manutenção da situação de ilegalidade em que tais
pessoas se mantêm;

3.3.1. Validade da Antecipação de Tutela de Reintegração de Posse

Todos os magistrados que avaliaram o pedido de nulidade da audiência de conciliação


realizado pela Defensoria Pública afastaram o argumento de ofensa ao devido processo legal,
contraditório e ampla defesa. Entenderam que o Ministério Público, ainda que ausente na
28

audiência, já havia se manifestado através de petição escrita, e que a participação da


Defensoria na audiência informava a condição de representação processual dos réus.
Isso apesar da DPE logo após a primeira intimação pelo juízo de que estaria
participando do processo na condição de custos vulnerabilis3, e não como representante dos
requeridos, que não haviam sido citados para participar da audiência.
Este equívoco percorreu ambas as instâncias que receberam o argumento da
Defensoria. Questionado pelos defensores públicos presentes na audiência o magistrado
informou que:
No que se refere à intimação e à citação pessoal de cada um dos
ocupantes, trata-se de procedimento inteiramente válido
processualmente e recomendável por medida de prudência. Todavia,
do ponto de vista processual, isso não constitui impedimento para a
análise de uma tutela de urgência, visto que a defesa poderá ser
exercida no curso do processo.
Por conta disso, assimilo que a audiência é plenamente válida e as
suas deliberações terão legitimidade jurídica plena. (p. 2-3 do termo
de audiência)

O juiz de 1ª instância entendeu que a defesa dos réus não havia sido prejudicada já que
a DPE estava na audiência de conciliação e apresentou argumentos favoráveis à demanda da
ocupação. Ademais compreendeu que diante da probabilidade do direito do Estado, por conta
da apresentação do registro de imóvel contendo a imissão de posse, autorizada no processo de
desapropriação, seria possível a determinação da ordem de reintegração.
Não houve referência aos argumentos sobre o direito à moradia, colacionados pelos
defensores principalmente sobre o possível descumprimento de tratados internacionais. Razão
pela qual a DPE apresentou embargos de declaração.
Além disso, é necessário ressaltar de que apesar de o objetivo da audiência ser
conciliar, foi determinada uma decisão que em caso de cumprimento, dificilmente seria
revertida na prática. E isso sem a presença física de nenhuma das pessoas que residem na
“invasão”. Considerando a importância das consequências que uma retirada judicial, não faz
sentido que as pessoas que seriam as principais prejudicadas não fossem ouvidas.
3
Na petição incidental, apresentada pela DPE em 25/04/2017, ou seja anteriormente à audiência de conciliação,
o órgão indica que sua atuação no processo ocorre na condição de custos vulnerabilis, sem se deter em explicar a
atribuição legal específica ou o reconhecimento jurisprudencial deste instituto. A especificidade da condição
processual da Defensoria volta a ser explicitada na audiência, com a DPE alegando a irregularidade da audiência
também por conta da ausência de citação dos requeridos. Entretanto apesar disso quando em embargos de
declaração apresentados a DPE requer a nulidade da audiência somente por conta da ausência do MPE, sem
reafirmar a não citação individual dos requeridos para se manifestarem no processo. O juízo então por conta dos
debates suscitados terminou por determinar em 24/05/2018 a citação dos requeridos da ordem de reintegração
que havia sido concedida na audiência.
29

O desembargador relator do agravo de instrumento no Tribunal de Justiça foi além e


afirmou que a presença dos defensores na audiência demonstrava que os réus tiveram direito
ao contraditório e ampla defesa:

Consta, inclusive, no Termo de Audiência (id. 5077677, págs.


01/05), que participaram do ato o Estado do Pará, por intermédio
doProcurador, os Defensores Públicos na defesa das famílias
ocupantes do terreno e representantes das Secretarias de
Desenvolvimento Urbano de Obras Públicas e Secretaria de Obras
Públicas,de forma que descabe falar em invalidade da tutela de
urgência concedida, uma vez que as famílias estavam sendo
assistidas pela Defensoria Pública. (p. 7 da decisão monocrática).

Isso apesar das manifestações realizadas pelos próprios defensores informarem, ainda
que não se detivesse em justificar, que não eram representantes legais dos ocupantes. E
também na petição de Agravo de Instrumento que foi julgada, constar entre as preliminares, a
ausência da citação dos requeridos para ciência do processo judicial e participação na
audiência de conciliação como argumento para requerer a nulidade do ato jurídico.
Além disso, considerou que no recurso manejado contra a decisão de reintegração, a
DPE se revoltava contra a decisão porque com a emenda da inicial teriam sido informadas
pela PGE a existência de 53 ocupantes em detrimento das 120 pessoas que representam cada
uma das 120 famílias, como foi posteriormente esclarecido pela Defensoria quando esta
passou a representar os moradores da ocupação, ao apresentar o agravo.
Esclarecendo o que considerou ser o argumento suscitado pela Defensoria, informou
que a ausência de citação era justificável:

No que concerne a ausência de citação de todos os ocupantes da área


objeto do litigio, registre-se que nas hipóteses de impossibilidade de
individualização de todas as pessoas no polo passivo da lide NCPC,
visando adequar a proteção possessória a tal realidade, tendo em conta
os interesses públicos e social inerentes a essa modalidade de conflito,
com cautela especial, sistematizou a forma de integralização da
relação jurídica, nos seguintes termos:
Art. 554. A propositura de uma ação possessória em vez de outra não
obstará a que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal
correspondente àquela cujos pressupostos estejam provados.

§ 1° No caso de ação possessória em que figure no polo passivo


grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos
ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos
30

demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e,


se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da
Defensoria Pública.. (p. 3 do voto do relator)

A questão é que não houve nem a citação pessoal dos ocupantes encontrados no local
nem a citação editalícia, porque a ordem de citação foi posterior à realização da audiência, e
para cientificar então da existência de uma ordem de reintegração decidida. Foi, portanto,
quando os requeridos passaram a saber de fato da existência do processo judicial, e
organizando-se buscaram à Defensoria que posteriormente passou a ingressar no litígio como
representante legal, submetendo junto às novas petições a declaração de hipossuficiência e a
outorga de poderes à DPE assinados pelos requeridos.
Acrescente-se que apesar de a Defensoria Pública não desenvolver a sua justificativa
jurídico-legal para informar sua atuação na condição de custos vulnerabilis, a informação em
si não é enfrentada pelos magistrados. Eles não enfrentam a discussão sobre condição
processual, apenas ignoram consciente ou conscientemente a informação, afirmando que a
DPE agia como representante processual dos requeridos.

3.3.2. Direito de propriedade versus Direito à moradia. Segurança Jurídica.

A principal questão de mérito que se configura como centro da demanda judicial é o


Estado do Pará informando seu direito de propriedade sobre a área, e a resistência dos
ocupantes do local que através da Defensoria Pública pleiteiam seu direito à moradia,
principalmente através da garantia da segurança jurídica de suas posses.

Note-se que apesar de ambas as garantias terem status de direito constitucional, sem
existência de hierarquia entre eles, todos os magistrados se manifestam informando que em
que pese a previsão da moradia como direito, esta não pode servir como argumento para a
invasão de propriedade pública ou privada.
Principalmente sendo considerado como bem público é destacado que qualquer
ocupação seria ilegítima, pela impossibilidade de se configurar como forma de acesso à
propriedade. Além disso, outro argumento levantado é o fato de que sendo de domínio do
estado, seria necessária a prevalência do interesse público em detrimento dos particulares
ocupantes. Ou seja, seria toda a coletividade representada pelo estado contra o benefício de
algumas famílias.
Este caso é especialmente significativo porque além da propriedade, o estado alega
como argumento que o fim pelo qual o imóvel foi desapropriado dentro do plano da
31

macrodrenagem da bacia do Tucunduba seria justamente a construção de um projeto


habitacional. Assim, portanto, o litígio provocado pelo comportamento dos réus e por eles
justificado com base no direito à moradia terminaria por afetar a consecução do direito à
moradia dos beneficiários do projeto. Portanto o estado não estaria sendo contrário ao direito
à moradia, mas tentando garantir sua efetividade.

Aparente contradição foi destacada pelo magistrado de 1ª instância:

Portanto, objetivamente, será mais prudente resguardar o interesse às


pessoas que, ao tempo que foi elaborado o projeto, em 2008, foram
identificadas e cadastradas. Afinal, imagina-se que as pessoas
estejam vivenciando a expectativa de, um dia, poderem residir em
uma moradia digna.
Desta forma, defiro a reintegração na posse pretendida pelo
demandante e determino a expedição do "Mandado de Citação,
Intimação e de Reintegração na Posse". Assim, os ocupantes,
especialmente os listados às fls. 42-44V serão intimados para que
desocupem os imóveis no prazo de 60 dias, espontaneamente, sob
pena de não sendo obedecido o prazo, serem removidos do local de
forma compulsória e com uso de força policial." (p. 3 do termo de
audiência)

E também pelo desembargador que relatou o agravo de instrumento:

(...) a manutenção da ocupação irregular de bem público, da forma


como foi realizada, obstará, por conseguinte, a obra social
materializada no projeto de construção habitacional, de maneira
que, com isso, se estará beneficiando o direito dos invasores em
detrimento das famílias que serão prioritariamente beneficiadas
pelo empreendimento, que também se encontram em situação de
vulnerabilidade social. (p. 15 do voto do relator do agravo de
instrumento)

Nada foi dito sobre o estágio de insegurança fundiária ou sobre o problema crônico de
acesso à habitação no Brasil. Apenas se fez referência ao status especial do estado cuja posse
jurídica decorreria da comprovação da propriedade, esta feita somente a partir da existência
do registro do imóvel, e que isso não poderia ser questionado através de uma invasão:

Na hipótese do bem objeto da ação de reintegração se tratar de imóvel


público, a demonstração efetiva da posse sobre o bem ganha
diferentes contornos, porquanto se reconhecem em favor da pessoa
jurídica de direito público a denominada posse jurídica, que decorre
da mera comprovação da propriedade. (p. 5 da decisão monocrática)
32

No que tange ao direito constitucional à moradia digna sustentada


pelos agravantes, ressalta-se que a garantia não justifica a invasão
e ocupação irregular de bens públicos. (p. 14 do voto do relator do
agravo de instrumento)

O direito à moradia ao longo de todas as decisões foi abordado de maneira um tanto


quanto abstrata. Considerando somente a sua previsão constitucional a partir dos anos 2000, e
que por isso deveria ser levado em consideração enquanto argumento.
As razões pelas quais as pessoas residem em ocupações precárias não foram em
nenhum momento mencionadas. Assim o problema de moradia teria passado a importar
quando a constituição passou a prever a moradia como garantia. Então o histórico de acesso à
terra no Brasil, a urbanização e a desigualdade social enquanto fatores determinantes para o
déficit habitacional são desconsiderados no caso concreto.
Ignorar a construção histórico-social na discussão sobre moradia que foi relatado no
primeiro capítulo deste trabalho impede a percepção da evolução da luta política por moradia
que se concretizou como direito. Ao fim termina por não compreender como as diferentes
legislações e instrumentos criados para concretizar a segurança jurídica da posse e possibilitar
o direito à cidade foram sendo criados e têm impacto social direto na realidade atual.
O novo marco legal da regularização fundiária urbana, por exemplo, ao garantir que os
núcleos urbanos consolidados, as chamadas ocupações, ou assentamentos ou ainda invasões,
não sofram despejos, uma vez realizado o pedido de regularização urbana, possibilita que tais
lugares não sejam tolerados por conivência, mas porque prevê sua incorporação ao
ordenamento territorial do município, para garantir que uma efetiva regularização ocorra, indo
além de um título de uso ou propriedade, por determinar medidas de urbanização de modo a
que tais pessoas se tornem efetivamente parte da cidade formal, acessando suas cidadanias no
entender de Holston (2013, pág. 48).
Entretanto tal inovação e suas garantias não foram percebidas pelos magistrados que
conheceram do caso a ponto do desembargador relator informar que a causa de pedir da
Defensoria seria irrealizável por causa da não concordância do ente estadual:

Conclui-se, portanto, que o requerimento da Regularização Urbana


de área pertencente ao domínio de outro ente federativo não
transfere a propriedade do imóvel aos seus ocupantes de forma
automática, uma vez que há necessidade de anuência expressa do
proprietário da área, de modo que inexiste óbice ao Estado do Pará em
33

reaver o terreno de seu domínio pelas vias legais (p. 13 do voto do


relator do agravo de instrumento)

Entendeu que a regularização fundiária determinaria uma transferência de domínio,


acarretando perda do patrimônio do estado. Quando o que propiciou a nova legislação foi a
garantia do direito à moradia que não se confunde com propriedade do bem.
NASSAR (2011, pág. 19) reproduziu os elementos que segundo a Comissão das
Nações Unidas sobre o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Políticos
englobam o direito à moradia:

a. Segurança jurídica da posse. A segurança da posse deve garantir


às pessoas proteção jurídica contra despejos forçados e outros tipos de
turbação da posse.
b. Disponibilidade de serviços, materiais, equipamentos e
infraestrutura essenciais à saúde, segurança, conforto e nutrição,
como, por exemplo, acesso à água potável, energia elétrica,
saneamento básico, coleta de lixo e serviços de emergência.
c. Acessibilidade econômica. Os custos associados à moradia, não
podem ser tamanhos, a ponto de prejudicar outras necessidades
básicas humanas. Para isso, os Estados devem estabelecer políticas de
subsidio habitacional para aqueles que não conseguem, por si, bancar
esses custos.
d. Habitabilidade. Afere-se em termos do espaço disponível aos
habitantes e da proteção contra frio, calor, chuva, ventos e outras
intempéries.
e. Acessibilidade social. A moradia deve estar disponível a grupos
vulneráveis, como idosos, crianças, pessoas com dificuldades físicas
e/ou doenças mentais, doentes terminais, soropositivos. Pessoas
vivendo em áreas de risco devem ter algum grau de prioridade nas
políticas habitacionais. Os Estados devem promover acesso à terra aos
sem-terra e aos segmentos mais pobres da sociedade.
f. Localização. A moradia deve estar próxima de trabalho, de postos
de saúde, escolas e creches.
g. Adequação cultural. A forma de construir e os materiais utilizados
devem respeitar as características culturais, a identidade e a
diversidade dos seus habitantes.

Assim pode-se afirmar que persiste uma confusão entre os operadores do direito sobre
os institutos da posse e propriedade, além da identificação da moradia com o acesso à
propriedade, que torna-se portanto essencialmente uma mercadoria, como o primeiro capítulo
já havia demonstrado. Mercadoria esta a qual a maioria dos brasileiros não tem acesso.
34

Pode-se inferir a partir deste caso concreto que em caso de confronto entre
propriedade e moradia, garante-se o primeiro, necessariamente. A partir das manifestações
dos magistrados se destaca a importância primordial da propriedade, desconsiderando-se a
aquisição desta no contexto histórico brasileiro, e como a moradia ilegal se tornou não opção,
mas saída viável para sobrevivência nas cidades.

3.3.3. Sensibilidade para com a situação dos requeridos

Não foram somente os magistrados quem informaram ter consciência da precariedade


na qual sobrevivem as pessoas que residem no curtume Santo Antônio. Mas apesar desta
afirmação de solidariedade para com os requeridos foi recorrente a imprescindibilidade em
garantir a proteção ao direito de propriedade.

Decidir contra o direito provável do estado de ter o domínio da área seria uma medida
que traria insegurança jurídica. Isso independentemente da empatia que seja possível nutrir
pelos ocupantes, afinal reconhece-se que eles também seriam vítimas do estado que não
conseguiu arcar com a demanda habitacional – afinal parte dos ocupantes foi contemplada
com moradia no projeto habitacional previsto há uma década para o local.

Apesar disso exceto a procedência da medida de reintegração de posse, com a


determinação de serem evitados instrumentos letais e coação moral, não houve determinação
de nenhuma outra medida que atenuasse a situação que estas pessoas estariam (ou estarão)
caso a reintegração de posse ocorra, como por exemplo a inclusão em programas de
assistência social ou em outros programas habitacionais.

Sobre a importância de resguardar ao menos a integridade física dos ocupantes, desde


o início mesmo com a negativa para antecipação de tutela, a primeira magistrada que analisou
o caso determinou:

"Para o caso do cumprimento da ordem pela via compulsória, deverão


ser observados alguns critérios pelo demandante e pela força policial,
tais como o fornecimento de transporte para a remoção de bens e
objetos pessoais, o resguardo da integridade física das pessoas que,
eventualmente, resistirem à ordem judicial, de maneira que deverão
ser evitados instrumentos que provoquem a letalidade. (p. 3-4 do
termo de audiência)
35

Considera-se um avanço a preocupação com a integridade física dos ocupantes.


Entretanto outro importante aspecto foi ignorado quando da concessão e manutenção da
ordem de reintegração de posse: para onde vão as pessoas expulsas da ocupação irregular?
Sobre esta questão nada foi descrito.
Opções como moradia provisória, auxílio aluguel, reassentamento em outro local,
nenhuma alternativa foi prevista.
Este é um aspecto relevante porque afirma que a lente pela qual se observa a situação
fática dos ocupantes é simplesmente a da ilegalidade. Sem atentar que apesar das pessoas ali
morarem de forma irregular, antes e concomitante ao ato delas, o estado, através de todos os
seus poderes, executivo, legislativo e judiciário, negou a estas pessoas a garantia
constitucional de moradia.
36

CONCLUSÃO

A pesquisa deste trabalho de conclusão analisou um caso concreto de


reintegração de posse, no qual o direito à moradia e o direito de propriedade se enfrentam.
A conclusão do estudo de caso único é de que, para além das inovações
legislativas que buscar garantir o direito à moradia, também é necessário o entendimento da
relevância histórica que esta construção jurídica possui. Isso de modo a possibilitar um
amadurecimento para que na atuação em litígios como este seja considerado o ordenamento
jurídico a partir de seus impactos na realidade social.
Daí a importância de que as decisões que dificilmente podem ser revertidas
posteriormente sejam objeto de cuidadosa análise da produção de provas apresentadas durante
o curso processual. Possibilitando por consequência que os ocupantes, parte social e
juridicamente mais vulnerável, tenham a possibilidade de argumentar e ter seus direitos de
ampla defesa e contraditório observados.
Garantir o direito à moradia não significa a redução da segurança jurídica
mas exige um grande esforço de fundamentação jurídica, considerando a produção desta ao
longo da história democrática e anti-democrática do Brasil.
Portanto a efetivação do direito à moradia ainda tem um longo caminho para
que produza discussões que sejam relativas a si, e não ao direito de propriedade, como ainda
entende-se estar atrelado.
37

REFERÊNCIAS

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