Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A recepção do direito à moradia pelo judiciário paraense: estudo de caso pós Lei
13.465/2017
BELÉM
2018
1
A recepção do direito à moradia pelo judiciário paraense: estudo de caso pós Lei
13.465/2017
BELÉM
2018
2
A recepção do direito à moradia pelo judiciário paraense: estudo de caso pós Lei
13.46/2017
Banca Examinadora:
_____________________________________
Prof.º Dr. Breno Baía Magalhães
Orientador - Universidade Federal do Pará
_____________________________________
Prof.ª Dra. Luly Rodrigues da Cunha Fischer
Coorientadora - Universidade Federal do Pará
_____________________________________
Prof.º Dr. Antônio Gomes Moreira Maués
Avaliador Interno - Universidade Federal do Pará
3
RESUMO
ABSTRACT
The research aims to analyze the resonance of the argument of the right to housing through
the methodology of the single case study of an irregular occupation in the periphery of Belém.
The case selected is the first in the State of Pará in which an application for suspension of the
reintegration of tenure in the face of viability in the use of the Urban Regularization
instrument, provided for in Law 13.465 \ 17, the new land regularization framework. The
bibliographical technique is used to reconstitute the historical-legal evolution that allowed the
development of the constitutional guarantee on housing; and the documentary technique, to
synthesize the narratives presented in the judicial process of reintegration of possession of
public good, making possible the interpretation in this concrete situation of the discourse of
the judiciary over the institute of the right to housing. The conclusion of the work is that, in
spite of the legal advances that aim to expand the guarantee of housing, there remains in this
case a resistance to dialogue about the right to housing in the face of confrontation with the
right to property
Keywords: Right to housing. Right to property. Judicial power. Law 13.465 \ 2017.
5
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 6
4 CONCLUSÃO 36
REFERÊNCIAS 37
6
INTRODUÇÃO
A partir do contato com o Direito Agrário na graduação em Direito da UFPa foi sendo
possível começar a entender as dinâmicas que explicavam a violência no campo e de como as
pessoas migravam para as cidades em busca de melhores condições de vida.
Se tanto a urbanização quanto a industrialização podem ser considerados fenômenos
globais, a forma como se manifestam em cada país tem suas próprias particularidades. Assim,
as cidades brasileiras, por exemplo, tiveram surgimentos diferentes das cidades europeias e
hoje possuem desafios também bastante distintos.
A cidade, portanto, não poderia ser entendida como espaço geográfico
exclusivamente, mas como uma realização cultural que reproduz as condições de cidadania
de uma determinada comunidade. Por isso o que divide espacialmente as cidades brasileiras é
a estrutura social que aqui se encontra, construída a partir de um caminho marcado pela
colonialidade e pela desigualdade sobre a qual se fundou o país.
Em que pese a cidade ser considerada um espaço de grande dinâmica social se
comparado ao campo, a violência e desigualdade que caracterizam este também deixam suas
marcas no espaço urbano. E o desafio do poder público é garantir direitos de forma igualitária
e inclusiva.
Não é possível fazê-lo, entretanto, se for ignorado o que a história da cidade diz.
A história de Belém (PA) informa que para além do centro urbano formado por Cidade
Velha, Campina e Reduto, ficavam periferias não urbanizadas onde a população pobre residia
e para onde eram enviadas todas as pessoas consideradas indesejadas: doentes mentais,
leprosos, hansenianos, mendigos, idosos, e todos que pudessem oferecer perigo ou atentar
contra a normalidade social (FERREIRA, 1995 apud SANTOS, 2005, p. 50).
Além dessa segregação socioespacial os bairros periféricos foram também crescendo
por receberem pessoas tanto do interior do estado do Pará quanto de outros estados
brasileiros. Situação esta que continua a ocorrer até hoje. As pessoas vêm para a capital do
7
estado para ter acesso aos serviços públicos de saúde e educação, outras vezes em busca de
oportunidades de trabalho, simplesmente.
Interessante que em Belém uma característica importante para determinar se a pessoa
reside em um bairro “rico” ou ”pobre” deve-se à probabilidade da área “alagar”, ou seja, ser
inundada por conta do aumento no nível do rio que alcança a terra por conta dos igarapés que
cortam a cidade, resistindo ao seu aterramento que vem ocorrendo desde meados do século
XIX (TRINDADE, 1997, p. 37, apud SANTOS, 2005, p. 47-8)
O bairro de Canudos onde se localiza uma ocupação irregular denominada Curtume
Santo Antônio é considerado um bairro “pobre”. Localizado relativamente próximo ao rio
Guamá, sofre com inundações constantes, tendo sido parcialmente aterrado irregularmente
com lixo. Quando o período de chuvas se inicia, a situação de calamidade chega ao ápice.
Então por que as pessoas insistem em residir em tais localidades?
A miséria em que sobrevive grande parte da população brasileira é uma explicação
importante. Outra se deve ao fato de que anteriormente as condições eram ainda piores.
No espaço urbano as pessoas têm condições de unir-se para politicamente barganhar
com o estado o acesso a serviços como coleta de lixo, asfaltamento, escolas e unidades de
saúde, dentre muitos outros.
No campo, longe dos centros de decisão política, a situação é muito mais difícil. Por
isso as cidades atraem as pessoas para nelas morarem. Objetivando ascenderem socialmente
com o tempo.
É uma luta árdua e constante que perpassa pelo convencimento do status quo de que
não são a maior ameaça à ordem social estabelecida. Que suas demandas são relevantes e
devem ser consideradas pelo simples fato de serem pessoas... E cidadãs.
Esta busca de cidadania não começa com as discussões para a Constituição de 1988.
Tal qual garantir o direito à moradia não começa no ano 2000. Pois é necessário reconhecer
que durante toda a história do Brasil, perpassando os períodos colonial, imperial e
republicano, se negaram direitos políticos e por consequência de direitos de cidadania a
maioria das pessoas. E que isso teve consequências diretas no acesso à terra e em sua
distribuição dentro do território. É contra esta história que se busca a legalização das moradias
onde residem, com o reconhecimento de suas propriedades (em sentido amplo).
Esta história precisa ser considerada pelo judiciário sob pena de se estar compactuando
com uma injustiça histórica e negando aplicabilidade a uma previsão constitucional. Assim o
complexo caso do Curtume Sto. Antônio exemplifica o debate de entendimentos sobre o
direito à moradia que disputa o reconhecimento do judiciário.
8
esgoto e de lixo, que enquanto objeto de litígios acabam por receber no judiciário a
denominação pejorativa de “invasões”.
O desenvolvimento dos espaços periféricos criados a partir de alegada “usurpação” de
propriedades é comumente descrito no discurso oficial como uma afronta ao direito
fundamental constitucional da propriedade (MARTINS DE ABREU, 2011) e que por isso
deve ser firmemente combatido, por representar uma ameaça ao mais antigo direito natural1.
Esta é uma criação nominal bastante difundida nos diálogos cotidianos, inclusive nas
faculdades de direito e no judiciário. Mas e se essa lente for insuficiente para enxergar o
panorama geral que afeta as cidades brasileiras? Diz-se isto porque nestes lugares se
concentram a maior parte da população, mas que ainda contam com serviços precários e
concentrados (KLINK; ROLNIK, 2011).
A observação rigorosa da realidade demonstra que grande parte da população vive em
cidades com déficit de urbanização a qual deveria caracterizar as urbes. Entender esta
ausência de acesso a serviços e direitos básicos faz parte da discussão sobre direito à moradia,
que como já revelou o Comitê do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e
Culturais (PIDESCS) da Organização das Nações Unidas (ONU) não se confunde com
simplesmente “ter um teto sobre a cabeça” (NASSAR, 2014, pág.19) ou com ser proprietário
de um bem imóvel.
Isso revela uma importante contradição no discurso que se manifesta como repressão
simples às “invasões”, justificando-a a partir de uma noção abstrata de propriedade. Isso
porque se grande parte dos grupos sociais não tem acessos a estes serviços básicos que
caracterizariam as cidades então como seria possível eles terem acesso à propriedade
fundiária legalmente mercantilizada?
Ou será que uma questão está ligada à outra?
A construção histórica de acesso ao direito de propriedade é o que revela a
fundamentação pela qual se desenvolve o direito à moradia.
1
“Muitos dos textos fundamentais sobre a sociedade e o Estado modernos, tanto próprios do liberalismo como
contrários a este, derivam os atributos éticos e pessoais essenciais da cidadania, assim como seus direitos e
obrigações, do direito à propriedade. Essa discussão em geral não se limita à propriedade de terra, mas considera
os próprios direitos como uma espécie de propriedade” ( HOLSTON, 2013, p. 157)
11
As sesmarias eram uma forma de ocupação da terra em Portugal e que foi difundida
pela metrópole para suas colônias após as “conquistas” imperiais. Para garantir a exploração
econômica do Brasil a administração portuguesa utilizou-se da distribuição de sesmarias, que
eram nada mais do que lotes de terras, para particulares responsáveis por realizar o cultivo
destas, em troca de 1\6 da produção anual. Ou seja, era uma espécie de arrendamento rural já
que o domínio sobre as terras continuava configurando patrimônio da coroa portuguesa.
12
Apesar dos custos advindos dos registros que praticamente somente quem recebia as
concessões de sesmarias poderia pagar; estes não se interessavam em realizar tal tarefa, pois
lucravam com a ausência de controle sobre as terras, e precisavam constantemente expandir
seus territórios por causa do regime extensivo de produção agrária que exauria rapidamente a
terra.
13
Os posseiros irregulares, ou seja, que não haviam recebido sesmarias, poderia realizar
a regularização de suas posses, desde que comprovassem a produção das áreas, além de pagar
tributos sobre o uso da terra, e custear a regularização, que era inacessível para maioria. Como
a administração não iria garantir a manutenção das posses em caso de conflitos, esse era um
investimento custoso e que não valia a pena.
Assim o período colonial já revelava a disputa sobre a terra através da violência e a
ineficiência – ou conivência - do aparato burocrático em controlar os registros de terras.
Então não somente quem não teve acesso à propriedade fundiária ao longo do século
XIX e XX foi diretamente prejudicado pela Lei de Terras. Esta foi tão fundamental para
consolidar a insegurança fundiária que mesmo quem de boa fé e com condições financeiras
construídas forçosamente ao longo do tempo, pode ter comprado imóveis em grande parte do
território nacional, cujo domínio não pertencia de fato aos múltiplos vendedores por onde
aquela negociação de terras passou.
16
Assim a luta política de afirmação por suas ocupações e de mobilização pelo acesso
aos serviços urbanos e direitos fundamentais como saúde, educação, e saneamento básico, é
algo que define as periferias.
Esse movimento em direção às periferias é complementar ao do crescimento
populacional nas cidades e combina-se a escolhas políticas trágicas que resultaram em
descontrole sobre preços dos aluguéis nos centros urbanos e despejos em massa. Um exemplo
foi a promulgação da Lei de Inquilinato de 1942.
Com as reformas urbanas ocorrendo nos centros para “higienização” e embelezamento
das cidades, o número de demolições de habitações era crescente. A maior parte dos
domicílios nos centros era utilizada como locação, apesar disso, o controle legal sobre os
valores imposto pela lei de inquilinato impossibilitou a continuidade dos investimentos neste
tipo de acesso à moradia, sendo mais vantajoso ao locatário vender os prédios do que manter
os aluguéis para recuperar seus investimentos.
Assim um importante instrumento de fixação de pessoas nos centros acabou sendo
deturpado por uma medida legal, e resultou em mais um fator de estímulo à migração para as
periferias.
financiamento de imóveis aos trabalhadores. Outra política pública adotada foi o incentivo às
instituições de crédito governamentais de garantir financiamentos a taxas menores do que as
praticadas pela iniciativa privada.
Esta prática inclusive continua sendo adotada até os dias atuais, também como forma
de aquecimento da economia, como foi o caso do Programa Minha Casa Minha Vida, adotado
após a crise mundial de 2008.
Além da crítica de que tais financiamentos eram acessíveis somente às classes média e
alta a principal consequência destas políticas habitacionais foi simplesmente sua insuficiência
porque nunca chegaram perto de conseguir realizar a construção de imóveis dentro do ritmo
imposto pelo crescimento da cidade.
Ou seja, a inadequação de uma política habitacional racional gerou a necessidade dos
trabalhadores autoconstruírem suas casas, das formas mais baratas e de modo estruturalmente
precário (HOLSTON, p. 217).
A lei nº 13.465/17 é uma legislação que dispõe sobre regularização fundiária rural e
urbana, aprovada a partir da conversão da Medida Provisória nº 759/ 2016. Ela alterou e
revogou artigos de inúmeras legislações, principalmente a lei nº 11.952/09 que tratava sobre a
temática, entre outros diplomas legais.
A grande inovação trazida pelo novo marco é a garantia de regularização fundiária
enquanto instrumento que reúne medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais de modo
a possibilitar a integração destas ocupações ao ordenamento territorial da cidade.
Ou seja, ocorre o reconhecimento de que a garantia do direito à moradia vai além de
assegurar a posse mas envolve medidas de urbanização e integração social, que definem o
espaço urbano (LOPES, 2006).
Além disso, existe a previsão que além da regularização urbana de núcleos urbanos
informais de pessoas em situação de vulnerabilidade (Reurb – S) é possível realizar a
regularização de assentamentos ocupados por pessoas de classes sócias elevadas (Reurb – E).
Reconhecendo, portanto, que a insegurança fundiária atinge o território como um todo.
O ente responsável por realizar a regularização é o Município no qual a ocupação se
localiza. Porém são aptos a requerer a regularização urbana além do Município, União,
Estados, e seus entes da administração indireta; proprietários dos terrenos, loteadores e
incorporadores; Defensoria Pública; e Ministério Público.
19
No caso analisado pela pesquisa o pedido de ReUrb-S foi realizado pela Defensoria
Pública do Estado do Pará em 15\06\2018.
Diante dessa nova situação fática a PGE adentrou com a ação de reintegração de
posse, requerendo ademais a cominação de multa diária em caso de descumprimento da
solicitada ordem de reintegração e multa na hipótese de constatado novo esbulho pelos
mesmos réus. Além disso, foi solicitada indenização por perdas e danos em caso de eventuais
prejuízos causados pelas pessoas ao imóvel.
processualmente questionou a ausência do MPE na audiência, razão pela qual considerou que
a audiência deveria ser considerada invalidada e remarcada para contar com a participação do
parquet.
As contrarrazões aos Embargos de Declaração foram apresentadas na data de
16\06\2018 pela via eletrônica, pois a partir da data de audiência, o processo judicial migrou
para este formato. Preliminarmente afirmou ausência de qualquer dos requisitos que
justifiquem o recurso, a exemplo, omissão, obscuridade, contradição ou erro material.
No mérito alegou que não houve ofensa ao comentário geral nº 7 da ONU porque o
despejo forçado ocorreria em conformidade com a lei e com os pactos internacionais, previsão
que o próprio diploma prevê. Entretanto somente fundamentou a legalidade do ato em relação
à previsão da garantia de ampla defesa e contraditório afirmadas pela CF, sem referenciar
expressamente aos pactos internacionais.
Sobre a Instrução Normativa nº 26 afirmou que por conta desta se referir a
procedimentos e disposições relativos às operações de crédito no âmbito do Programa
Saneamento para Todos - Mutuários Públicos não seria aplicável ao caso em litígio.
Quanto ao argumento de cunho processual sobre a nulidade da audiência por conta da
ausência do MP a Procuradoria do Estado citou decisão do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) em procedimento de controle administrativo de que em atenção aos princípios da
celeridade processual e da garantia razoável do processo a ausência de membro do Ministério
Público devidamente intimado não geraria a nulidade do ato.
Em 29\06\2018 a Defensoria Pública do Estado apresentou pedido de retratação ao
juízo de 1ª instância diante dos argumentos trazidos no Agravo de Instrumento interposto na
mesma data perante o Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA). No recurso o órgão
apresentou os documentos dos ocupantes através dos quais estes outorgaram poderes para que
a instituição lhes representasse na questão perante procedimentos judicias e administrativos
advindos da ocupação.
Este foi o segundo pedido de reforma da ordem de reintegração. Pois antes da
apresentação do recurso, em 15\06\2018 a DPE havia requerido a suspensão da ordem contida
no mandado de reintegração de posse. Isso com base na informação fornecida ao juízo de que
na mesma data o Núcleo de Regularização Fundiária e Direito à Moradia da Defensoria
Pública do Estado apresentou pedido de Regularização Urbana (ReUrb-S) para o Curtume
Sto. Antônio perante a Prefeitura de Belém, tendo fundamentado seu pedido na previsão da lei
13.465\17.
23
que em casos de litígios de posse com mais 1 ano de existência a presença do fiscal da lei é
imprescindível.
E também afirmou a nulidade do ato pela ausência de intimação dos ocupantes que
não puderam gozar de seus direitos constitucionais de ampla defesa e contraditório. Afirmou
ainda que todos os atos posteriores à realização da audiência devem ser considerados nulos,
pois não haveria a possibilidade de convalidação de tais vícios.
Sobre a concessão de medida liminar da reintegração a Defensoria afirmou que os réus
não tiveram a possibilidade de se defender da denúncia como apontado na forma como
ocorreu a audiência de conciliação, mas ainda mais, afirmou que tal ordem se baseou
exclusivamente na versão incompleta e precariamente instruída fornecida pela Procuradoria.
Ademais ressaltou a ausência de urgência, considerando a inexistência de cronograma
de obras, mas principalmente informando que seria possível realizar a obra na área
desocupada do imóvel. Para justificar esta hipótese juntou à peça o inquérito civil 000327-
125/2014, aberto pela 4ª Promotoria de Direitos Constitucionais e Direitos Humanos, que
contém a ata da audiência realizada em 09\06\2014, e onde o engenheiro da CoHab presente
afirmou possível iniciar as obras em agosto desse mesmo ano, sendo que a ocupação presentes
no local não seria um impedimento.
Concluiu a alegação sobre fundamentos jurídicos abordando a lei 13.465\17 e sua
previsão de Regularização Urbana para núcleos informais consolidados. Explicou a relevância
da nova legislação com sua previsão de medidas jurídicas, ambientais, urbanísticas e sociais
para a realização de uma regularização fundiária.
Destacou os objetivos da lei dentre eles o de priorizar a permanência dos ocupantes
nos próprios núcleos de modo a privilegiar o direito à moradia e garantir a função social da
propriedade, além de priorizar as funções sociais da cidade.
Informou ainda a garantia do novo marco de regularização a manutenção dos
ocupantes na área até o julgamento definitivo do processo, e citou decisão do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo que reformou a decisão de 1ª instância que havia negado a
suspensão, justificando como previsão expressa da lei, sem previsão de exceções devido à
localização do bem ocupado.
Concluiu a petição com um pedido de reconvenção contra o Estado do Pará
requerendo a condenação do ente federado para que seja conferida a Concessão de Uso
Especial para fins de Moradia (CUEM); e para que inclua os atuais ocupantes como
beneficiários do projeto habitacional previsto para o local, ou na impossibilidade numérica
desta, para que sejam incluídos em outro projeto; e subsidiariamente para que caso negados
25
Além disso, informou que a decisão justa e legal seria retirar os invasores do local
para propiciar a construção do conjunto habitacional no terreno que teria sido desapropriado
para este fim. Por isso alega que a contestação combinada com reconvenção e os inúmeros
recursos apresentados tem fim meramente protelatório de impedir a concretização do direito
do Estado.
Para a PGE a Defensoria não teria comprovado os fatos que alega e de que a moradia
por si só não poderia justificar as invasões sob a possibilidade de criar uma confusão jurídica.
Isso porque apesar de serem questões relevantes não guardariam relação com o objeto do
processo cuja discussão se pautaria se o estado deve ou não ser reintegrado ao seu imóvel.
Por fim concluiu que utilizar as normas do PIDESCS para servir de pretexto para
legitimar a ilegalidade da invasão de terreno público seria uma contradição à garantia do
direito à moradia de quem deveria receber os imóveis previstos para o local, ofendendo os
direitos humanos de tais pessoas.
O juiz de 1ª instância entendeu que a defesa dos réus não havia sido prejudicada já que
a DPE estava na audiência de conciliação e apresentou argumentos favoráveis à demanda da
ocupação. Ademais compreendeu que diante da probabilidade do direito do Estado, por conta
da apresentação do registro de imóvel contendo a imissão de posse, autorizada no processo de
desapropriação, seria possível a determinação da ordem de reintegração.
Não houve referência aos argumentos sobre o direito à moradia, colacionados pelos
defensores principalmente sobre o possível descumprimento de tratados internacionais. Razão
pela qual a DPE apresentou embargos de declaração.
Além disso, é necessário ressaltar de que apesar de o objetivo da audiência ser
conciliar, foi determinada uma decisão que em caso de cumprimento, dificilmente seria
revertida na prática. E isso sem a presença física de nenhuma das pessoas que residem na
“invasão”. Considerando a importância das consequências que uma retirada judicial, não faz
sentido que as pessoas que seriam as principais prejudicadas não fossem ouvidas.
3
Na petição incidental, apresentada pela DPE em 25/04/2017, ou seja anteriormente à audiência de conciliação,
o órgão indica que sua atuação no processo ocorre na condição de custos vulnerabilis, sem se deter em explicar a
atribuição legal específica ou o reconhecimento jurisprudencial deste instituto. A especificidade da condição
processual da Defensoria volta a ser explicitada na audiência, com a DPE alegando a irregularidade da audiência
também por conta da ausência de citação dos requeridos. Entretanto apesar disso quando em embargos de
declaração apresentados a DPE requer a nulidade da audiência somente por conta da ausência do MPE, sem
reafirmar a não citação individual dos requeridos para se manifestarem no processo. O juízo então por conta dos
debates suscitados terminou por determinar em 24/05/2018 a citação dos requeridos da ordem de reintegração
que havia sido concedida na audiência.
29
Isso apesar das manifestações realizadas pelos próprios defensores informarem, ainda
que não se detivesse em justificar, que não eram representantes legais dos ocupantes. E
também na petição de Agravo de Instrumento que foi julgada, constar entre as preliminares, a
ausência da citação dos requeridos para ciência do processo judicial e participação na
audiência de conciliação como argumento para requerer a nulidade do ato jurídico.
Além disso, considerou que no recurso manejado contra a decisão de reintegração, a
DPE se revoltava contra a decisão porque com a emenda da inicial teriam sido informadas
pela PGE a existência de 53 ocupantes em detrimento das 120 pessoas que representam cada
uma das 120 famílias, como foi posteriormente esclarecido pela Defensoria quando esta
passou a representar os moradores da ocupação, ao apresentar o agravo.
Esclarecendo o que considerou ser o argumento suscitado pela Defensoria, informou
que a ausência de citação era justificável:
A questão é que não houve nem a citação pessoal dos ocupantes encontrados no local
nem a citação editalícia, porque a ordem de citação foi posterior à realização da audiência, e
para cientificar então da existência de uma ordem de reintegração decidida. Foi, portanto,
quando os requeridos passaram a saber de fato da existência do processo judicial, e
organizando-se buscaram à Defensoria que posteriormente passou a ingressar no litígio como
representante legal, submetendo junto às novas petições a declaração de hipossuficiência e a
outorga de poderes à DPE assinados pelos requeridos.
Acrescente-se que apesar de a Defensoria Pública não desenvolver a sua justificativa
jurídico-legal para informar sua atuação na condição de custos vulnerabilis, a informação em
si não é enfrentada pelos magistrados. Eles não enfrentam a discussão sobre condição
processual, apenas ignoram consciente ou conscientemente a informação, afirmando que a
DPE agia como representante processual dos requeridos.
Note-se que apesar de ambas as garantias terem status de direito constitucional, sem
existência de hierarquia entre eles, todos os magistrados se manifestam informando que em
que pese a previsão da moradia como direito, esta não pode servir como argumento para a
invasão de propriedade pública ou privada.
Principalmente sendo considerado como bem público é destacado que qualquer
ocupação seria ilegítima, pela impossibilidade de se configurar como forma de acesso à
propriedade. Além disso, outro argumento levantado é o fato de que sendo de domínio do
estado, seria necessária a prevalência do interesse público em detrimento dos particulares
ocupantes. Ou seja, seria toda a coletividade representada pelo estado contra o benefício de
algumas famílias.
Este caso é especialmente significativo porque além da propriedade, o estado alega
como argumento que o fim pelo qual o imóvel foi desapropriado dentro do plano da
31
Nada foi dito sobre o estágio de insegurança fundiária ou sobre o problema crônico de
acesso à habitação no Brasil. Apenas se fez referência ao status especial do estado cuja posse
jurídica decorreria da comprovação da propriedade, esta feita somente a partir da existência
do registro do imóvel, e que isso não poderia ser questionado através de uma invasão:
Assim pode-se afirmar que persiste uma confusão entre os operadores do direito sobre
os institutos da posse e propriedade, além da identificação da moradia com o acesso à
propriedade, que torna-se portanto essencialmente uma mercadoria, como o primeiro capítulo
já havia demonstrado. Mercadoria esta a qual a maioria dos brasileiros não tem acesso.
34
Pode-se inferir a partir deste caso concreto que em caso de confronto entre
propriedade e moradia, garante-se o primeiro, necessariamente. A partir das manifestações
dos magistrados se destaca a importância primordial da propriedade, desconsiderando-se a
aquisição desta no contexto histórico brasileiro, e como a moradia ilegal se tornou não opção,
mas saída viável para sobrevivência nas cidades.
Decidir contra o direito provável do estado de ter o domínio da área seria uma medida
que traria insegurança jurídica. Isso independentemente da empatia que seja possível nutrir
pelos ocupantes, afinal reconhece-se que eles também seriam vítimas do estado que não
conseguiu arcar com a demanda habitacional – afinal parte dos ocupantes foi contemplada
com moradia no projeto habitacional previsto há uma década para o local.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei 13.465\17. Dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a
liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização
fundiária no âmbito da Amazônia Legal; institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos
procedimentos de alienação de imóveis da União e dá outras providências. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 jul. 2017. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13465.htm>. Acesso em: 5
dez. 2018.
BRASIL. Lei 11.952\09. Dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em
terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal; e dá outras providências.
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 25 jun. 2009. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11952.htm>. Acesso em: 5
dez. 2018.
BRASIL. Medida Provisória nº 2.220\2001. Dispõe sobre a concessão de uso especial de que
trata o § 1o do art. 183 da Constituição, cria o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Urbano - CNDU e dá outras providências.Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, DF,4 set. 2001. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/2220.htm>. Acesso em: 5 dez. 2018.
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4598-20-agosto-1942-
414411-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 5 dez. 2018
BRASIL. Lei nº 601\1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Registrada á fl. 57 do
livro 1º do Actos Legislativos. Secretaria d'Estado dos Negocios do Imperio, Rio de Janeiro,
RJ, 2out. 1850. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/L0601-
1850.htm>. Acesso em: 5 dez. 2018.
LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito à moradia e o direito à vida na cidade: breve
visão histórica. In. _____________. Direitos Sociais: Teoria e Prática. São Paulo: Método,
2006.
MARTINS DE ABREU, João Maurício. A moradia informal no banco dos réus: discurso
normativo e prática judicial. Revista Direito GV, São Paulo, ano 7 (2), P. 391-416, jul-dez
2011.
NASSAR, Paulo André Silva. Direito à moradia: o que os juristas tem a ver com isso?
SUNDFELD, Carlos Ari; ROSILHO, André (orgs). Direito da regulação e
políticas públicas. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.
39
SILVA, Paulo Eduardo da. Pesquisas em Processos Judiciais. In. Machado, Maíra Rocha
(Org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em
Direito, 2017. P. 275-320.
TONELLA, Celene. Políticas Urbanas no Brasil: marcos legais, sujeitos e instituições. Rio de
Janeiro: Revista Sociedade e Estado, vol. 28 nº 1, jan-abr 2013, P. 29-52.