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WALTER BENJAMIN E OS ANJOS DE COPACABANA1

Luis Antonio Baptista*

A beleza inexiste na própria matéria,ela é apenas um jogo de sombras e de


claro-escuro surgido entre matérias. Da mesma maneira que uma gema
fosforescente brilha no escuro mas perde o encanto quando exposta à luz
solar, creio que a beleza inexiste sem a sombra.

Junichiro Tanizaki. Em Louvor da Sombra

Abrir portas e janelas do edifício carioca para a visita do filósofo berlinense


estudioso dos sonhos da metrópole é o convite deste artigo. Walter Benjamin, o pensador
das imagens urbanas como imagens do pensamento, do artesanato da narração, talvez tenha
muito a nos dizer sobre esta visita. No Edifício Master (110 min), em Copacabana, dirigido
pelo cineasta Eduardo Coutinho e lançado em 2002, atravessa um Rio de Janeiro peculiar,
diverso do celebrado nos cartões-postais, ou do noticiado pela mídia. Na cidade cartão-
postal nada acontece; a beleza ou a barbárie estampadas bloqueiam o suceder de algo além
do previsto; são imagens da identificação, das quais nada aturde, é estranhado, apenas
incitam um apaziguador reconhecimento. No Master residem histórias anônimas do
cotidiano carioca capazes de descongelar imagens da cidade fixada na beleza natural da
paisagem ou paralisada pelo medo que esvazia a urbe. O anonimato desses relatos, palavras
e silêncios sujos do mundo dissolve o peso das confissões pessoais em que perdura a aura
do eu. Coutinho oferece-nos, por meio das narrativas dos moradores, o encontro com
existências comuns, precárias ou não; vidas díspares intensas que, misturadas ao urbano,
apresentam-nos o Rio de Janeiro (ou qualquer outra cidade) ocupado por artes de fazer
incansáveis, que têm o cotidiano como lugar de inconclusividade das lutas minúsculas e da
criação. Nos relatos sobre os sonhos e as agruras do dia-a-dia do camelô, do síndico, da
aposentada, do jovem artista, da garota de programa, entre outros entrevistados,
encontramos a multiplicidade de experiências alertando-nos para o empobrecimento do

*
Professor Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense.
pensar quando reduzido à camisa-de-força do discurso das identidades, que sabota do gesto,
da palavra, ou do silêncio a potência do inacabamento. O documentário, sem sociologismos
ou psicologismos, focaliza o anonimato de vidas-imagens atravessadas pela cidade,
provocando estranhamento à previsibilidade entranhada no mundo esgotado do sempre
igual, onde a singularidade de uma história perde a força do assombro. Vidas-imagens que
recusam a violenta conclusividade das tipologias, do exotismo que nos conduz ao
reconhecimento e à identificação do já visto. Na tecedura dos relatos, um mosaico díspar de
experiências oferta-nos a radicalidade política da alteridade propiciando-nos a chance de
recusarmos aquilo que somos , o que fomos, ou o que deveríamos ser. Que narrativas-
imagens encontraria Benjamin em sua visita por Copacabana? O que teria a nos dizer o
filósofo que refletiu sobre o seu tempo utilizando o cinema e a literatura?

A Implosão do Universo Carcerário

A montagem cinematográfica, a fotografia e a literatura não seriam, segundo o


filósofo berlinense, exclusivamente modalidades da arte; seriam também modos singulares
de pensamento, artifícios fecundos para o escape de uma filosofia que dicotomiza forma e
conteúdo, estética e política, pensamento e vida. Benjamin não só pensou sobre a literatura
e o cinema, mas como cinema e como literatura. Em seu ensaio clássico, A obra de arte na
era de sua reprodutibilidade técnica, afirma que a invenção do cinema legou-nos a
vulnerabilidade das verdades universais sobre a natureza e sobre o humano. A “explosão
com dinamite do universo carcerário” incrustado nas ruas, escritórios, corpos, paisagens
urbanas, nos modos de dar sentido à existência, foi para Benjamin2 (1996) uma das
conquistas da modernidade propiciada pela sétima arte. A técnica cinematográfica
detonaria, em sua explosão, a naturalização do real, assim como a compacidade do Sujeito
que observa, como soberano hermeneuta, esta suposta realidade. O “universo carcerário”
implodido ofereceria à modernidade a convocação de um mundo prenhe de paradoxos e de
possibilidades de ação; por meio das técnicas de montagem dos fotogramas, o movimento
das imagens incitaria um estranhamento desestabilizador àquilo que naturalmente
percebíamos, dissolvendo o peso do “universo carcerário” que aprisionava o existir do
humano, a política, a história e o próprio humano em uma única versão. Na tela, ao
contrário do olhar encarcerado, pode um rosto deixar ver a cidade que não percebemos; o
tempo de uma ação cotidiana recusar o fim e o começo; o horror banal do dia-a-dia ser
estranhado; uma forma de amar pôr à prova a universalidade do amor; o gesto morto
mover-se; um corpo desprender-se da essência que o aprisiona; o rosto humano não dizer e
não deixar ver absolutamente nada; uma árvore movimentar-se sem o sopro do vento. Das
reflexões benjaminianas sobre a politização da arte, que se difere da colagem ou aderência
de uma determinada ideologia às formas artísticas desatentas à dissociação entre forma e
conteúdo, o sujeito e a natureza são destituídos como protagonistas da cena, abrindo espaço
para que o tirânico universo saturado de conclusões seja implodido. Dessa implosão,
pedaços de histórias incompletas, fragmentos de narrativas seriam montados pelas
urgências políticas do agora, atentas às que ficaram no passado na metade do caminho,
inacabadas, interrompidas pela força da barbárie ou pelo esquecimento ávido de futuro.
Benjamin3, no aforismo “Alemão Bebe Cerveja Alemã!”, prenuncia a barbárie do
nazismo, indicando-nos o aniquilamento do humano não restrito ao uso da força, mas na
construção da sólida aura do coletivo, da qual homem “nenhum vê mais adiante do que as
costas do homem da frente, e cada qual se orgulha de ser, dessa forma, modelo para o
seguinte”. O cinema de Adolfo Hitler utilizado na propaganda nazista não promoveria a
destruição do “universo carcerário”, mas o fortalecimento do brilho da diferença da alma
ariana. O rosto alemão projetado na tela celebrava, e pedagogicamente ressaltava, a
potência da identidade nítida; através das imagens, preocupavam-se e achavam-se sem
nenhuma ambigüidade. A aura do rosto ariano na sala escura inclinava o público a orgulhar-
se de si e a desprezar o que ultrapassava o contorno desta identidade. Por meio dos filmes,
sabiam o que eram, o que foram e para onde deveriam ir, mas lhes seria impossível escapar
dessa comunidade que os encarcerava em um poderoso nós. O cinema nazista fez a
diferença do povo brilhar por meio de imagens que não aturdiam a solidez de sua alma e de
sua história. Aos alemães, o reconhecimento de si foi o único legado da sétima arte. No
cinema aprendiam que “Alemão Bebe Cerveja Alemã”.
No Edifício Master, o brilho da comunidade não reluz. Nenhum rosto concentra
uma história compactamente totalizada. Trazer o cinema nazista à luz das reflexões
benjaminianas para a visita ao prédio de Copacabana intenta retirar de uma época, ou de um
tirano, a autoria dessa estética. Eduardo Coutinho está ciente desse risco: suas vidas-
imagens impedem o previsível discurso de identidades essencializadas ou qualquer
adjetivação moralista em seus relatos. Os moradores de Copacabana são destituídos da aura
comunitária ou do brilho da personalidade-modelo que traz em si a arrogante vaidade de
seus fracassos ou vitórias. No documentário, velhos, trabalhadores, jovens, garotas de
programa, solitários, poetas, desempregados são implodidos na solidez daquilo que
esperamos ver ou ouvir. Os sem comunidade do Edifício Master recusam o brilho da
diferença; o que comove, e nos faz pensar, é a intensidade impessoal de suas histórias; a
impessoalidade que descentra de uma vida em particular a origem e a propriedade de quem
a contou. No Master, narrativas impessoais convidam-nos a usá-las, e a continuar contando-
as artesanalmente. Nos apartamentos de Copacabana, rastros de eu ou do coletivo
homogêneo são ofuscados pela passagem da cidade incansavelmente usada, porém não
esgotada.
As câmeras de vigilância no corredor escuro e a chegada da equipe para a filmagem
é a primeira imagem do documentário. Nesta imagem inicial, o diretor sugere-nos que sua
câmera irá interferir em alguma coisa, contar com os moradores o que acontece no Master,
recusando ser o registro neutro da realidade tal qual ela é. A chegada da equipe na tela
recusa a estética do cinema-verdade. As duas câmeras, ou as duas máquinas de fazer
imagens, produzem histórias radicalmente diferenciadas. As câmeras de vigilância,
estrategicamente posicionadas, segundo o depoimento do síndico no filme, seriam um dos
instrumentos para a moralização do prédio. Ele afirma que o Master, no passado, foi um
“antro de perdição”, repleto de situações envolvendo travestis, policiais, drogas, prostitutas;
e o seu método para moralizá-lo foi inspirado em Piaget, mas, dependendo da situação,
utilizava o de Pinochet. Piaget e Pinochet justificam, para o síndico, a meta de tornar o
Master um “prédio familiar”; um outro discurso, porém, perpassa as paredes do edifício de
Copacabana, retirando do síndico a autoria exclusiva do seu projeto. No corredor, a frase
“Sorria, você está sendo filmado” sentencia o uso político da imagem e da privatização da
existência no contemporâneo, em que o excesso de imagens é acompanhado de exposição e
de isolamento. Vigia-se e exibe-se em bancos, elevadores, condomínios, supermercados,
programas de TV; vigilância e exibição que ocupam os espaços impessoais da cidade de
insaciáveis rastros de privacidades em constante desmanche.
Nas entrevistas dos programas de TV, nos reality shows, os depoimentos pessoais,
as emoções confessadas em público fazem do telespectador um consumidor voyeur
precário, que tudo vê, assiste, testemunha; exploram a procura de algo que possa preencher
o vazio do seu isolamento. A precariedade desse consumidor, quase um deus voyeur,
forjado pelo capitalismo contemporâneo, estaria na sua onipotência, que não encontra
limites para aquilo que deseje ver, observar, informar-se, e, paradoxalmente, no fracasso
que o torna precário por não reter, não se saciar com as imagens que se esvaem, ou se
desmaterializam, aceleradamente. Excesso e falta fazem desse quase-deus laico o
consumidor de pontos de vista, de imagens e de emoções incorpóreas que não conseguem
preenchê-lo nem aturdi-lo. No mundo que o produz, alimentado por decretos do fim da
história, do fim de uma ética que ultrapasse os interesses individuais, só lhe resta a procura
dos rastros de si, percorridos sozinho no consumo do ver e ser visto. Eduardo Coutinho
recusa essa política de imagens, apresentando-nos narrativas feitas por palavras e silêncios
onde uma telerrealidade não encontra lugar. Consuelo Lins4, assistente de direção do
documentário, revela-nos a intervenção da equipe para “desprogramar” o conteúdo dos
depoimentos, no intuito de não transformá-los em imagens-existências de uma
telerrealidade: “Houve momentos nos quais foi preciso defender o entrevistado dele
mesmo, em que a lógica do pior − central nos programas sensacionalistas e populares −
impôs-se, e o que se ouviu foi a pior história, a maior desgraça, a grande humilhação.
Porque o desejo dos moradores, em muitos casos, é o de escapar do isolamento, ganhar
visibilidade a qualquer preço. O confronto com esse tipo de exibicionismo, indissociável do
voyeurismo de espectador, é incontornável (...). Desprogramar o que estava previsto,
produzir furo nos roteiros preestabelecidos, ocupar-se com o que ficou de fora dos
espetáculos da telerrealidade, essa foi uma tarefa que se impôs como programa mínimo
desse documentário de Coutinho”.
Desprogramados: assim Edifício Master nos apresenta Ester, traumatizada por causa
de um assalto, que só não se suicidou porque tinha contas a pagar e não queria morrer com
o nome sujo; Suzi, a mulata cantora que já dançou no Japão; Francisco José, o ator de
novelas, que perdeu a audição em cena e teve que parar de trabalhar; Oswaldo e Geicy, o
casal que se conheceu através de um anúncio, no jornal, de uma agência de casamentos;
Roberto, o camelô, que se emociona e insiste para que o diretor do documentário lhe
arrume emprego; Daniela, a professora de inglês, que diz sofrer de neurose e sociofobia e
detesta o vaivém de Copacabana; Henrique, o aposentado, que, dois sábados por mês,
coloca a aparelhagem de som na janela para que todos ouçam com ele My Way; Maria Pia, a
empregada doméstica espanhola, que afirma não existir pobreza no Brasil, onde não
trabalha quem não quer; Bacon, o jovem da banda de rock, que permanece mudo, imóvel,
durante o depoimento dos outros integrantes da banda; são algumas das trinta e sete
entrevistas realizadas pela equipe.
O corredor escuro do edifício em Copacabana, filmado vinte e quatro horas pelos
monitores das câmeras de vigilância, é também desprogramado. Coutinho implode o
“universo carcerário” das confissões pessoais dos moradores, assim como o do corredor
aprisionado na função de espaço de onde nada escapa ao controle. Os depoimentos dos
moradores são intercalados por imagens extraídas dos equipamentos de vigilância
instalados pelo síndico que utiliza Piaget e Pinochet para “moralizar” o Master. Entre a fala
dos entrevistados, vemos na tela o segurança do edifício subindo e descendo as escadas, e o
corredor vazio, como se a qualquer momento pudesse ocorrer um crime. Neste filme dentro
do filme é realizada a desmontagem do corredor como o cenário neutro de ocorrências,
como se a câmera fosse um grande olho que tudo vê e isenta-se de ser interpelada na sua
forma e no seu desejo de olhar. A câmera que filma a câmera nos indica, à luz das reflexões
de Walter Benjamin, o teor artesanal da narrativa que nega à imagem o significado restrito
de ser o vestígio de uma verdade conclusiva, ou a finalização de uma história que é
impedida de ser recontada. A vigilância conta histórias, Coutinho conta histórias, duas
formas artesanais de construção de políticas das imagens. O documentário desprograma o
corredor quando transfigura o olhar policial do equipamento de vigilância traduzindo-o
como o lugar do acaso, do qual, nenhum registro de controle poderá neutralizar a força
cortante de um acontecimento. Nas ocorrências, o tempo segue linearmente com início,
meio e fim; o acontecimento corta esta linearidade despedaçando a continuidade de uma
história, transtornando sua origem e conclusão. Ocorrência e acontecimento contidos nas
imagens legam-nos a tensão entre a previsibilidade do sempre igual e o imponderável do
cotidiano, assim como duas formas de dar sentido ao tempo e ao espaço. Uma cena filmada
pela câmera de vigilância ilustra esta tensão: Na tela o corredor vazio e silencioso. O garoto
com a mochila abre a porta do seu apartamento e dirige-se ao elevador; enquanto espera,
nenhum som e pouca luz confirmam o olhar estático da câmera de vigilância. Sem o garoto
perceber, em frente à porta fechada de um dos apartamentos um gato parece desejar entrar,
alguém deixou a porta aberta e o gato escapou. Apesar da ausência de som, intui-se que o
garoto escuta o miado e desiste de entrar no elevador; toca a campainha da vizinha, entrega
o gato e segue para o elevador, saindo de cena. O corredor silencioso retorna ao vazio.
Nenhum vestígio de crime sucedeu. Ninguém foi acusado. Nada foi confessado. O lugar da
suspeita agora é só passagem.
Este episódio foi transcrito sem cortes; as imagens do equipamento de vigilância
apropriadas pelo diretor registraram a cena inesperada para o registro de ocorrências;
imagens desnecessárias para o encaixe na lógica dos fatos passíveis de serem desvendados e
julgados. As portas que abrem e fecham, o garoto e o gato preencheram o corredor
silencioso de acontecimento, algo que irrompe provocando surpresa à onipotência do olhar,
ou ao pensamento, que presume controlar o incontrolável e a si mesmo; pensamento e olhar
para os quais o estranhamento é um estorvo. Esta cena, se repetida, não será a mesma. No
corredor desprogramado transcorrem cenas que subvertem o não-dizer do silêncio e a
conclusividade do gesto; nele, a imagem que denuncia e a que nega esta denúncia,
necessária a lógica do medo, sucumbem. O corredor ladeado por portas fechadas é
perpassado por histórias por vir que enfrentam a asfixiante sentença de um mundo sem
saída. Coutinho no Master desprogramando o corredor suscita imagens-acontecimentos
oferecendo-nos sopros de ar. Ali, palavras sopradas por Guimarães Rosa5 advertem-nos que
“quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”, milagres laicos da arte, ou
da vida, quando escapam de qualquer modalidade de aprisionamento.
Das conversas com o diretor, nenhum “herói solitário” é apresentado na tela. Walter
Benjamin6, no ensaio O Narrador, alerta-nos para o declínio da experiência coletiva
(Erfahrung) no capitalismo, em detrimento da experiência vivida (Erlebnis), a psicológica
encarnada no “herói solitário”, personagem central dos romances burgueses, no qual,
desorientado, enfrenta as agruras da sua existência na busca de um desfecho feliz. Ao leitor
desses romances é prometida a morte ou a vitória do herói, a conclusão da trama, para que a
catarse das suas emoções, ou uma edificante mensagem, possa dar sentido a sua leitura.
Porém, a experiência coletiva, para Benjamin, possui um significado particular. Como nos
adverte Jean Marie Gagnebin7, “a palavra Erfahrung vem do radical fahr, usado no antigo
alemão no seu sentido literal de percorrer, de atravessar uma região durante uma viagem”.
No Master, o coletivo se faz conhecer na porosidade dos apartamentos. Nas residências dos
entrevistados, à semelhança de Nápoles, a cidade italiana descrita por Benjamin8 como
imagem do pensamento, “a arquitetura é porosa como essas rochas (...) em todos os lugares
se preservam espaços capazes de se tornar cenário de novas e inéditas constelações de
eventos. Evita-se cunhar o definitivo. Nenhuma situação aparece, como é, destinada para
todo o sempre; nenhuma forma declara o seu desta maneira e não de outra (...) Pois nada
está pronto, nada está concluído”. Na cidade do Mediterrâneo, para o filósofo que pensa
como literatura, não encontraríamos a beleza retratada nos cartões postais, mas a proposta
ou a realização de um modo de pensar por meio das suas imagens. Nos closes dos interiores
dos apartamentos, como o da mesa com salgadinhos oferecidos para a equipe de filmagem
pelo casal que anteriormente morava no subúrbio, ou no close dos móveis, das portas e
janelas filmadas em silêncio das outras residências, inexiste a aura da intimidade ou os
rastros denunciadores da sombra de quem as habita. Nenhuma vitrine antropológica ou
psicológica do morar é exibida na tela. O que é visto nestes interiores, à semelhança de
Nápoles, o lugar ou o estilo de existência onde “a rua peregrina quarto adentro”, são relatos
de experiências dos objetos marcados por histórias à espera de “novas constelações de
eventos”. Nos pequenos apartamentos de Copacabana, porosos como o pensar que se faz
das interseções com o mundo, “evita-se cunhar o definitivo”, pois nada está pronto ou
concluído por todo o sempre, porque a cidade com suas misturas e acontecimentos os
atravessa mesmo com as portas e janelas fechadas.
Em nenhum momento do filme a paisagem de Copacabana, a exuberância do Rio de
Janeiro, aparece na tela. Os corredores, o interior dos apartamentos, as janelas, indicam-nos
que, em cada sujeito que conta uma história, algo o perpassa e o constitui nesse percurso. O
Sujeito atravessado e feito por narrações desprovidas de autoria torna-se singular na feitura,
ou montagem, desta narrativa composta por díspares forças do mundo. Eduardo Coutinho,
optando por implodir “universos carcerários”, aproxima-se de uma cidade descrita por
Benjamin9, “onde cada ruela adota cores e cada palavra tem por eco um grito de batalha”.
Um grito de batalha incansável, sem estridência ou alarde, que almeja a cada momento dos
minúsculos embates cotidianos, onde exista dor ou indiferença, libertar a palavra e o
silêncio do corpo sufocado por seus limites. No relato da jovem estudante que não imagina
nada para o futuro, dos aposentados diferentes tanto na solidão quanto em suas formas de
dissipá-la, da garota de programa que gasta o dinheiro do primeiro encontro comendo
sanduíche na lanchonete, entre outros depoimentos, testemunhamos o escape do corpo
asfixiado por fronteiras impermeáveis. As vidas-imagens, que nada têm em comum a não
ser o ato de contar histórias, incitam-nos a esquecê-las como autores daquilo que narram,
seduzindo-nos a desdobrar seus “gritos de batalha” para ganharmos o fôlego propiciado
pelo manuseio de um leque. O filósofo berlinense afirma o seguinte: “a faculdade da
fantasia é o dom do interpolar no infinitamente pequeno, descobrir para cada intensidade,
como extensiva, sua nova plenitude comprimida, em suma, tomar cada imagem como se
fosse a do leque fechado, que só no desdobramento toma fôlego” 10. Das narrativas dos
moradores uma brisa é soprada convidando-nos a desdobrar recontando com fôlego as
tramas de Copacabana. Com o balanço do leque a extensão deste recontar seria composta
por intensidades que ultrapassariam na inconclusividade os limites do corpo que diz eu e o
Rio de Janeiro comprimido por paisagens saturadas de significado. Entre portas fechadas o
espaço é traçado por extensões de afetos impessoais; nesta geografia nenhum gesto ou
corpo é esgotado pelos limites das suas bordas.

Anjos Exterminadores

No bairro do Master habitam anjos sem qualquer grandeza. Parecem com os do


filósofo berlinense que pensa como literatura e como cinema. Em sua obra, esses seres
inumanos participam como imagens das teses sobre a história, ou dos ensaios sobre a sua
Infância em Berlim. São anjos desterrados da transcendência que subvertem uma pátria
definitiva, pois não possuem o brilho da diferença estampada no pertencimento a uma
comunidade; não nos prometem nada no além, e não nos preenchem vazios da existência.
Nada possuem que possam confundi-los com mensageiros dos dogmas religiosos; ao
contrário, sua presença disruptiva nega a eternidade tanto da dor quanto da alegria e dessa
forma provoca transtorno. São fulgurantes, efêmeros, portadores de uma destruição
necessária da qual não sabem o que advirá, porém acreditam que destruir certezas
invioláveis vale a pena, pois caminhos impensados serão criados. Os anjos laicos de Walter
Benjamin possuem um caráter essencialmente destrutivo: “o caráter destrutivo não vê nada
de duradouro. Mas eis precisamente por que vê caminhos por toda parte. Onde outros
esbarram em muros ou montanhas, também aí ele vê um caminho. Já que o vê por toda
parte, tem de desobstruí-lo também por toda parte. Nem sempre com brutalidade, às vezes
com refinamento. Já que vê caminhos por toda parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum
momento é capaz de saber o que o próximo traz. O que existe ele converte em ruínas, não
por causa das ruínas, mas por causa do caminho que passa através delas.” 11.
Em Copacabana, esses seres inábeis anunciam a falácia das felicidades prometidas e
a esterilidade das morosas dores presas a corpos blindados. Só aparecem uma vez, para
nunca mais voltar. No Master, eles recusam benções, reencontros com irmãos,
reconhecimentos e identificações. Eduardo Coutinho apresentou-nos histórias de anjos sem
nome, exterminadores de mundos saturados de conclusões e de desencantamentos. Como
nos lembra Jeanne Marie Gagnebim12: “Podemos mesmo ir mais longe na interpretação e
dizer que a intervenção do anjo não se manifesta mais na sua eficácia soberana, mas sim
neste apelo ao mesmo tempo imperceptível e lancinante, a interromper o escoamento
moroso da infelicidade cotidiana e a instaurar o perigoso transtorno da felicidade”. Dona
Ester, Suzi, Francisco José, Oswaldo e Geicy, Roberto, Daniela, Maria Pia, o garoto e o
gato, entre outros, despossuindo seus nomes transformaram-se em anjos exterminadores
anunciando-nos o transtorno da felicidade soprada pelo leque do filósofo alemão que nega à
palavra “fim” o destino da narrativa e da história.

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1
Esta é uma versão modificada do artigo publicado originalmente com o mesmo título
na Revista Educação Especial: Biblioteca do Professor n° 7, 2008.
2
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1996.
3
BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. São Paulo, Brasiliense, 1987, pág. 30.
4
LINS, Consuelo. O Documentário de Eduardo Coutinho. Televisão, Cinema e Vídeo.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, pág. 143.
5
ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, pág. 65.
6
BENJAMIN, 1996.
7
GAGNEBIM, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo,
Perspectiva, 1994, pág. 66.
8
BENJAMIN, 1987, pág. 148.
9
BENJAMIN, 1987, pág. 35.
10
BENJAMIN, 1987, pág. 41.
11
BENJAMIN, 1987, pág. 237.
12
GAGNEBIM, Jeanne Marie. Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História. Rio
de Janeiro: Imago, 1997, pág. 130.

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