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1ª EDIÇÃO
2020
Não consigo expressar do modo que gostaria o quanto estou feliz com a
minha vida atualmente.
Normalmente já me considero uma mulher alegre — até demais em
certas ocasiões —, mas esse mês está tudo esplêndido, por incrível que
pareça estou vivendo o ápice da minha vida, em todos os sentidos.
Quando saí da Argo’s tomei uma decisão arriscada, principalmente por
ser consciente de que iria trocar um emprego confortável e garantido, por
algo novo. Mas quando seguimos nossos sonhos, precisamos arriscar, e assim
o fiz.
Entrei na GCR Turismo ocupando o cargo de Gerente Administrativa, o
que era bom, pois não fugia tanto da realidade em que vivia na Argo's,
mesmo assim dei um duro danado para me adaptar e me superar a cada dia,
tinha o objetivo de subir de cargo, e hoje estou na posição de Gerência Geral,
por competência e mérito próprio. Esse cargo não é um dos maiores da
empresa, já que os diretores possuem muito mais poder que eu, mas estou
feliz pelo meu crescimento, já que em praticamente um ano consegui um
cargo melhor financeiramente do que na minha última empresa.
Meu sonho sempre fora trabalhar em uma agência de turismo, e por isso
abdiquei do convívio diário com minha melhor amiga e um ótimo salário
para estar aqui, e hoje, olhando para trás, posso afirmar que não me
arrependo de nada, e pretendo continuar alçando voos maiores.
Natanael havia acabado de solicitar que eu comparecesse em sua sala.
Ele é CEO da agência, e a pessoa com quem mais tenho contato aqui, já
que basicamente preciso prestar conta de tudo a ele. Para mim é até melhor,
porque alguns diretores da GCR...
Prefiro nem comentar, só Jesus na causa!
— Cheguei! — Dei duas batidinhas na porta que estava entreaberta e
logo ele pediu para que eu prosseguisse.
— Olá. Conseguiu fechar os relatórios que pedi?
— Sim. Já até enviei por e-mail — sorri.
— Ah, tudo bem — falou e logo olhou na direção de sua janela.
Ele é um homem normalmente alegre, porém hoje não estava se
parecendo em nada a pessoa que me acostumei a notar no último ano na
empresa.
— O senhor está triste — quebrei o silêncio.
— Um pouco, menina.
Ele me chama de menina desde que entrei na empresa, tem 65 anos de
idade e sempre foi muito respeitoso comigo, e por incrível que pareça nunca
me cantou. Mas vez ou outra o vi reparando na minha bunda, não o culpo,
realmente sou um espetáculo de mulher e não passo despercebida pelos
homens, e nem por mulheres.
Sim, minha autoestima é um pouquinho elevada. Coisa pouca.
— E o que houve?
Percebi que ele esboçou um sorriso que nem chegou aos seus olhos, e
logo depois abaixou a cabeça, levemente chateado.
— O que acontece na maioria das empresas. Fui substituído.
Espera um pouco...!
Levei alguns segundos para assimilar o que ele tinha acabado de me
contar, e até me sentei em seguida.
— Mas... tudo está indo bem — gaguejei. — A empresa está crescendo,
os lucros aumentam a cada dia, a taxa de demissões caiu... Não entendo por
que isso agora, não faz sentido outra pessoa em seu lugar se tudo está em
perfeita ordem.
Essa informação não me agradou em nada, achei tudo isso muito injusto.
Natanael sempre fez tudo pela empresa, e foi uma das pessoas que me
deu auxílio, quando fui promovida pedi conselhos a ele, e foi por causa dos
seus vários ensinamentos que fiz cursos e mais cursos para me aperfeiçoar e
desempenhar o que o cargo exigia de modo satisfatório.
— Eles querem sangue novo, alguém mais jovem, com perspectivas
diferentes. Bom, pelo menos é o que eu acho, mas nunca vou saber de fato.
— Eu... nem sei o que dizer — pontuei, cabisbaixa.
— Luiza, só continue o belo trabalho que vem executando até agora
— sorriu — Nesse último ano você foi a pessoa que mais se destacou na
empresa e confio em sua capacidade, pois você é a melhor gerente que
temos. Sei que irá se dar bem com o novo CEO.
— Qual o nome dele?
— Não me disseram, mas ele começa essa semana mesmo. Amanhã já
não serei mais necessário aqui.
Não terei tempo nem de preparar meu psicológico pelo jeito, irei sentir
muita falta dele, pois era um ótimo CEO e orientador quando preciso.
Apesar de tudo, sou uma pessoa que me adapto com facilidade e tento
me dar bem com todo mundo. Tenho certeza de que isso irá acontecer com o
próximo CEO, afinal eu sou Luiza Goulart...
Após sair da empresa fui direto para a nova casa da minha amiga.
Antes de Daniel e Beatriz se casarem, eles compraram um imóvel perto
da minha residência, e nem preciso dizer que seremos um trisal, porque
basicamente todos os dias encho a paciência de ambos, graças à internet, mas
agora serei figurinha carimbada em sua casa também.
— Amor, a Luiza veio beber com a gente, e pela cara feia está chateada
— minha amiga falou, e logo ouvimos seus passos vindo em nossa direção.
Daniel e Beatriz se casaram mês passado e voltaram da lua de mel na
semana passada. E sim, eu já estou na casa deles, nem dei tempo para se
acomodarem. E sim, eles são recém-casados e parecem cansados, mas não
ligo.
Sou entrona e não me importo. Daniel não se casou só com Beatriz, eu
vim no pacote, e ele vai me aturar, queira ele ou não.
— Também estou chateado — Daniel falou ao se aproximar para me
cumprimentar. — Eu queria dormir e ela me atrapalhou — completou em
seguida e logo lancei uma olhar desdenhoso em sua direção.
— Vou ignorar esse comentário — pontuei com a cara fechada.
— Foi uma brincadeira. O que houve?
Contei a eles sobre a notícia da iminente demissão de Natanael, bem
como a forma que éramos alinhados trabalhando juntos. Devo boa parte do
meu crescimento a ele, já que como Beatriz, me espelhei bastante no meu
chefe, me tornando uma profissional bem mais capacitada.
— Espera... você não me falou o nome da empresa que Luiza trabalha
— ele voltou-se para Beatriz quando terminei minha lamúria.
— Falei sim! — ela retrucou.
— Não, você só disse que era algo relacionado a turismo, e mais nada.
Beatriz puxou pela memória e logo depois me olhou, acenando
positivamente.
— É, acho que não.
— Mas não entendi o motivo de estar tão chateada. CEO’s vem e vão
com uma frequência maior que imagina, e você já é ciente disso — Daniel
falou.
— Sim, eu sei, o problema é que tudo está indo bem, a empresa está
crescendo e tendo um bom desenvolvimento, foi por isso que não entendi
nada. O pior é que eu nem sei quem vai assumir o lugar dele.
— Qual é o nome da empresa que trabalha? — Daniel perguntou.
— GCR Turismo.
E foi só eu falar esse nome que Daniel fechou a cara e um vinco se
formou em sua testa.
Fiquei confusa com seu choque momentâneo, e essa sua reação me
deixou um pouco preocupada.
— Merda! — falou após algum tempo, já fechando os olhos e passando
a mão pelo rosto.
— Ah, meu Deus! Fala logo, homem, você está me deixando aflita... eu
sou cardíaca!
Ele respirou fundo e logo se sentou conosco.
— Se lembra de um homem que entrou no nosso casamento com uma
garrafa de whisky?
— Se eu me lembro?! Claro! Gostoso daquele jeito eu queria dar até
meu...
— Amiga, foco! — fui interrompida por Beatriz, que estava com cara de
poucos amigos.
— Tá bom — sorri sem graça. — Eu estava longe de vocês, mas reparei
sim, lembro que Daniel até conversou com ele, e logo o vi indo embora.
— Então vou resumir a história pra você...
Daniel me contou que ele e esse tal homem, que se chama Victor Hugo
Avelar, foram treinados juntos por Arquimedes, um grande CEO, e por causa
da competitividade acabaram se tornando rivais.
Depois, ele falou um pouco sobre a vida do meu futuro chefe, bem
como as empresas que ele passou. O que não achei nada demais, ele parecia
uma pessoa normal para mim.
— Vamos ser sinceros aqui... — Daniel juntou as mãos me analisando
metodicamente. — Quero que você me fale qual era sua visão em relação a
mim quando eu era o CEO da Argo’s?
— Olha...
Dei uma olhadinha para Beatriz do tipo: “vou poder xingar seu marido
mesmo?”
— Tem certeza que quer saber?
— Pode falar, amiga.
— Você claramente foi um excelente CEO, naqueles 6 meses reergueu a
empresa e a fez ser reconhecida novamente e tal, mas... comigo foi sempre
um escroto, babaca, ditador, tirano, grosso e outros lindos adjetivos que não
caberiam em uma folha.
— Imaginei. Agora... multiplique esses lindos adjetivos com a falta de
responsabilidade e você terá o espécime Victor Hugo Avelar como resultado
— deu um sorriso cínico.
— Isso é... impossível!
— Ah... te garanto que não é — debochou. — E será isso que vai
encarar, se o que o próprio disse for realmente verdade.
— Como é...?
— Ele é extremamente inteligente, e sabe usar como ninguém as
pessoas. Ele não é do tipo que trabalha, só em último caso. Eu pego no
batente, ele dificilmente faz isso.
— Que merda é essa?! Ele nem deveria ser CEO, tá no cargo errado.
— Falei a mesma coisa! — Beatriz pontuou e Daniel balançou a cabeça
discordando.
— Ah... ele está aonde deveria! — disse com o semblante sério. — Ele é
um dos melhores, ou o melhor dependendo do ponto de vista de quem
analisa. Mas vou te dar uma dica bem importante: tome bastante cuidado!
— Cuidado?!
— Sim. Pelo que Beatriz me disse, você está na empresa que sempre
desejou trabalhar, e que pretende permanecer lá.
— Isso mesmo.
— Saiba que Victor Hugo Avelar não vai estar nem aí com isso. E fique
ciente de que ele demite pessoas simplesmente por respirar ao lado dele.
Então meu conselho é que o evite ao máximo.
— Mas eu preciso trabalhar lado a lado com o CEO, sou a gerente geral.
— Então você terá problemas se o santo dele não bater com o seu, e
Luiza... — Daniel fez uma pausa dramática, o que fez minha preocupação ser
elevada ao nível máximo, já que ele não é assim tão expressivo. — O santo
dele não bate com o de 90% das pessoas.
— E o que eu faço em relação a isso?
— Foque no trabalho e o ignore, senão... — respirou fundo olhando para
Beatriz e para mim em seguida. — Ele vai fazer da sua vida um inferno!
Pode apostar!
“Não tenha medo de viver loucamente quando é necessário...”
— Pai! Mãe!
Não dei nem tempo para que eles dissessem alguma coisa e logo os
envolvi em um abraço aconchegante.
Um dos motivos para que eu aceitasse esse emprego em Florianópolis
foi a saudade que estava deles. Fui um filho ausente nos últimos anos, mas
não quero mais ficar longe, não mesmo. As poucas pessoas que realmente me
conhecem, sabem do meu amor e carinho para com eles, e que
indiscutivelmente meus pais são a minha vida.
— Seu pai e eu ainda não acreditamos que voltou, meu filho — minha
mãe disse, um pouco emocionada.
— E irei ficar! — dei ênfase. — Estava esperando uma oportunidade em
Florianópolis, e ela apareceu.
— Filho... isso me deixa muito feliz. — Novamente minha mãe me
abraçou e fechei meus olhos a aninhando em meus braços.
Estava com saudade, e agora quero compensar minha ausência de
alguma forma. E cortar essa distância é o primeiro passo.
— Seu pai preparou a janta, e pelo cheiro está uma delícia.
— Não esperava menos do meu velho! — Envolvi seu pescoço e beijei
sua bochecha. — E qual é o cardápio?
— Arroz branco, feijão tropeiro, salada de alface e tomate, chuchu,
batata frita e de sobremesa um gateau de chocolate.
Por mais que eu tenha dinheiro para poder comer nos melhores
restaurantes, o que realmente gosto é de comida simples, caseira.
— Meu Deus! Acho que eu irei voltar a morar aqui com vocês! — falei
e logo gargalhamos.
É incrível... senti bastante falta dessa energia. Nós nos damos super
bem, e desde que saí de casa, parece que um vazio se apossou de mim, e
dificilmente ele será preenchido.
Depois que nos sentamos à mesa, conversamos sobre inúmeros assuntos.
Ao sair de Florianópolis trabalhei em muitas cidades, e cheguei a ficar
quase um ano sem vê-los. Apesar disso, sempre estive presente no aniversário
deles, em Setembro, mas as outras datas eu deixei a desejar, e sei bem disso.
— Você é famoso, filho. Sua mãe e eu vimos várias notícias na televisão
e na internet do que faz nas empresas.
— Isso nós chamamos de trabalho duro, Sérgio — minha mãe falou, e
fiquei levemente sem graça.
Não vou falar nada, mas Victor Hugo e trabalho duro não combinam,
preciso destacar. Independentemente disso não vou entrar nesse mérito, é
bom que pensem assim.
— E então, como está a vida nessa cidade maravilhosa? — tratei de
mudar de assunto.
Por quase duas horas conversamos sobre assuntos pessoais relacionados
a eles, independentemente disso, nem preciso dizer que relembramos algumas
velhas histórias da minha adolescência, e gargalhamos em várias
oportunidades. Sempre fui um garoto levado e aprontava bastante. Minha
mãe que o diga, volta e meia estava em minha escola conversando com a
diretora sobre o meu comportamento.
Olhei para o meu relógio e já se passava das 21h.
— O que fará hoje à noite, filho? — minha mãe questionou ao notar
meu gesto.
— Estou pensando ainda. Provavelmente irei para um bar e...
— Filho... você não voltou a beber muito, né?
— Se acalme, dona Ana Maria... — Me levantei e logo dispus um beijo
em sua testa. — Estou comemorando minha volta, nada mais que isso.
De vez em quando a chamo pelo nome. Não sei o porquê, mas isso a
acalma em determinados momentos.
Não gosto de mentir para eles, mas tenho certeza de que não aprovam a
minha conduta. Prefiro não falar nada quando isso acontece, pois sei que os
machucaria, contudo infelizmente todos nós temos demônios constantes, e
não sou diferente. A bebida é a única coisa que me ajuda a esquecer uma
parte do meu passado.
— Espero que continue nos visitando, filho — foi a vez do meu pai falar
e logo abri um largo sorriso.
— E você tem dúvidas disso?
Me despedi dos dois com outro longo abraço.
Já na rua, respirei fundo.
Acho incrível e reconfortante voltar para Florianópolis após rodar a
maior parte do Brasil. Sempre achei que o meu lugar é aqui, e agora
finalmente posso voltar as minhas raízes...
LUIZA
Confesso que para garantir que tudo saísse da melhor maneira também
precisei fazer pesquisas a respeito da vida do grande Deus CEO ontem pela
noite. Tive medo de ele direcionar alguma pergunta para Renato e não ser
respondido. Se isso acontecesse eu poderia estar muito encrencada.
A GCR em peso estava na sala de reuniões, pelo menos as pessoas com
cargos maiores. Contei no mínimo umas 100, mas ainda faltava alguém...
Eu sabia que marcar uma reunião para as 9h não seria uma boa ideia,
ainda mais sabendo da “pontualidade” de Victor Hugo.
— Aposto que ele não chega no horário — Juliana disse.
Olhei em meu relógio e são 8h58m.
— Também acho que não — sorri, tentando disfarçar meu nervosismo.
— Calma, amiga, vai dar tudo certo, e...
Juliana parou de falar e seu rosto tornou-se um pouco mais sério. Ao
perceber em seus olhos a direção que ela olhava, logo fiz o mesmo e... vi que
ele chegou.
Adiantado!
— Bom dia, pessoal! — falou, e algumas pessoas responderam.
— Vocês estão muito desanimados. Bom dia, pessoal! — dessa vez
praticamente gritou e quase todos em coro disseram ao mesmo tempo: —
Bom dia!
Victor Hugo entrou e foi passando pelas pessoas, com um sorrisinho
cínico no rosto, ficando na frente de todos. Logo em seguida pegou o
microfone.
— Agradeço a todos por disporem um tempinho do trabalho para
estarem aqui. Como disse para Luiza ontem pela tarde, estou com um grande
incômodo em minha garganta, doente e com 39° de febre. Estou custando a
terminar essa simples fala para vocês terem ideia. Acho que eu conseguiria
falar uns 5 ou 10 minutos no máximo.
Meu Deus... que cara dissimulado!
Se eu tinha dúvidas de que ele era bipolar, agora tenho a confirmação
diante dos meus olhos.
— Disso você não me falou, amiga!
— Claro! É mentira! — A fuzilei com meus olhos.
— Ahh...
— Tenho certeza de que a pessoa escolhida desempenhará um bom
papel falando sobre mim, não é, Luzia? — continuou seu discurso inventado
e voltou-se a mim e logo dei meu sorriso mais falso acenando a cabeça em
seguida.
Esse cretino burro troca meu nome de propósito só para me irritar.
Se eu fosse a dona disso aqui ele estava ferrado!
— Bom, vamos acabar com isso logo.
Depois que ele deixou o microfone em cima da mesa, Renato logo se
levantou e foi em direção ao pequeno palco, e Victor Hugo veio para mais
perto de mim.
— Qual é o seu nome? — perguntou para minha amiga.
— Juliana.
— Eu poderia sentar-me no seu lugar, Juliana? Preciso conversar com
Luiza.
— Ah, claro. — Levantou-se imediatamente.
— Muito obrigado — com um lindo sorriso ele agradeceu, sentando-se
logo em seguida.
Minha vida se tornou uma tragédia ambulante nos últimos dias graças a
ele.
— O que deseja?
— Nada. Ficar ao seu lado. Vim analisar seu comportamento e ver se
está nervosa com a possibilidade de deixar a empresa, além disso, não
perderia a oportunidade de admirar sua beleza.
Sorri fechando os olhos em seguida.
— Podemos ter alguns problemas por eu ser um babaca na maior parte
do tempo, mas como já disse anteriormente, você é linda, a mulher mais
bonita na empresa, e não me canso de te olhar, sabia?
Fixei meus olhos nos dele, mas dessa vez havia algo diferente ali. Não
percebi deboche, tom de superioridade ou até mesmo tentativa de me
intimidar, já que parecia uma coisa genuína, e fiquei confusa por ele falar
assim.
— Obrigada — disse, o analisando por um curto período.
O problema foi que ao olhá-lo para falar isso prestei atenção em alguns
detalhes, bem como o cheiro que ele emanava, seus olhos, boca, a tatuagem
perto do seu pescoço, a barba por fazer...
Se controle! Seu emprego está em jogo e ele não é confiável...
— Então... que comece o show!
Inacreditável!
Acho que um mundo habitado por mulheres ia ser melhor no fim das
contas, mas infelizmente precisamos de um pau para nos reproduzir, o que é
uma merda!
Não sei o que me deu, mas saí pisando duro da minha sala, e logo estava
em frente a Victor Hugo, que esboçou um largo sorriso ao me ver.
— Desculpe te desapontar, mas não podemos fazer o que nossa carne
pede aqui na empresa — falou, e logo me enfezei mais.
Esse cara se acha...
— Não vim aqui para falar de ontem, e sim...
— Ah, conta outra, gracinha — abruptamente chegou mais perto, e
segurou minha cintura, me colando na parede.
— O que está fazendo?! — questionei, com uma raiva crescente
inundando meu corpo.
— Te dando uma amostra do que sou capaz.
— Ah, é? — sorri, mordendo uma parte da minha boca.
Então vamos brincar, Victor Hugo...
— Então deixa eu te dar uma amostra do que sou capaz.
Fui para mais perto do homem, e quando meus lábios chegaram perto da
sua boca, logo ouvi sua voz macia: — Estou começando a gostar um pouco
mais de você, gracinha...
— É?! Então escute com atenção o que vou falar... — Segurei seu
queixo com força, e logo seus olhos automaticamente se tornaram frios. —
Eu dou muito valor ao meu emprego, e se você não faz isso é problema seu!
— parei, relembrando as palavras de Luigi. — Ou melhor, não só seu, porque
agora preciso cuidar de um marmanjo que pelo jeito parou de crescer.
— Cuidar de mim? O que está querendo dizer? — tomou distância,
ajeitando sua postura em sequência.
— Luigi pediu para eu ser a sua babá e impedir você de fazer merda, o
que é bem normal pelo visto.
— Isso quer dizer que ficará me vigiando? — Cruzou os braços, e não
sabia ao certo se ele estava impaciente ou se divertia com essa situação.
— É! Alguém fez certa apresentação bêbado, ou com bastante álcool no
sangue.
— Sim. E o que isso tem a ver? Já fiz esse tipo de coisa inúmeras vezes.
— Deu de ombros, e a sua indiferença com o trabalho só me irritava um
pouco mais.
— Você por acaso está se ouvindo? — vociferei. — Acha isso...
normal?!
— Sim. É o meu normal.
Meu Deus do céu! É incrível o quanto ele é irresponsável e sente prazer
em esfregar sua falta de escrúpulos na minha cara.
— Você não tem noção do tanto que estou com saudades de Natanael, o
CEO que substituiu. Ele sim é um homem que levava o trabalho a sério.
Minha frase claramente não foi bem recebida por ele, já que seus olhos
instantaneamente mudaram, e pude ver uma grande obscuridade nos mesmos,
bem como indiferença. Não entendi o ponto dessa reação, mas pelo visto ele
não gosta de ser comparado a ninguém.
— É melhor não me comparar a ele. Para o seu bem esse vai ser o seu
primeiro e último aviso.
— Victor Hugo...
— Saia da minha frente, porra! — praticamente gritou, e a vontade de
mandá-lo para a puta que pariu só aumentou, ainda assim, não o fiz. Só que
agora eu tinha certo poder em minhas mãos, e iria usá-lo. Se ele quiser
continuar na empresa, é melhor se portar de forma profissional.
— Eu vou, mas é bom começar a se comportar. Luigi foi bem claro
quando conversou comigo, e pelo jeito ele não está nem um pouco satisfeito
com o atual CEO da GCR Turismo.
Não dei tempo de ele responder e saí pisando duro de sua sala.
Apesar de ter me sentido melhor falando isso, sei que não conseguirei
controlá-lo, e isso no fundo pode ser um problema maior em breve...
Infelizmente meu dia caminhou feito uma tartaruga, e minha ida
constante na sala de Victor Hugo só piorou a situação.
É um saco conversar com ele sobre trabalho, já que claramente esse não
é o seu assunto preferido aqui dentro. Suas piadinhas em determinados
momentos só me tiram do sério, e quando ele me olha com desejo acaba me
tirando do eixo, já que na maior parte do tempo é complicado ignorar seu
sorriso destacado, bem como sua beleza estonteante e seu cheiro. Ah, seu
cheiro...
Inferno de homem gostoso!
Não posso ficar desejando alguém que me desperta tanta raiva,
principalmente quando preciso fazer o meu trabalho e o dele, além de
trabalhar como babá, diga-se de passagem.
Em uma das minhas pequenas visitas em sua sala reparei que ele estava
cantarolando enquanto desligava seu computador.
— Onde está indo? — perguntei no automático.
— Hoje é quinta-feira, gracinha. Esqueceu que saio mais cedo?
Ah, ainda tem isso.
Me esqueço do horário flexível do estrupício. Bom, melhor ficar calma e
me concentrar no trabalho...
Ah, quer saber, dessa vez não.
Irei falar exatamente o que desejo. Esse idiota pode ser o meu chefe,
ainda assim, ele precisa ouvir algumas verdades de vez em quando.
— Você vem de ressaca trabalhar e praticamente não trabalha, saí mais
cedo duas vezes na semana, parece estar em outra dimensão 24 horas por dia,
faz piadinhas inconvenientes na maior parte do tempo... o que mais falta dizer
sobre seu trabalho?
— Luiza... — falou meu nome encarando profundamente meus olhos e
me senti desafiada. — Hoje é um dos poucos dias da semana que realmente
me permito ser um homem feliz, então não me dê motivos para que meu dia
vire uma desgraça. Não hoje!
— Você precisa ouvir algumas verdades de vez em quando — pontuei e
logo percebi ele chegando mais perto de mim, com o olhar sério.
— E você também, então preste bem atenção... — chegou perto da
minha boca, mas parou, analisando minha face de forma demorada. — Cuide
da sua vida, porque você pode muito bem ser a queridinha de Luigi, mas é só
eu estalar meus dedos que irá parar na rua. Então é melhor pensar duas vezes
antes de me irritar, porque a partir do momento que eu me tornar um inimigo,
você não terá chance alguma de sair ganhando, e acho que tem uma leve
noção do que sou capaz!
Estou encarando mais esse dia de trabalho como algo normal, mas sei
que isso não irá acontecer de fato.
Ter uma conversa com Victor Hugo tentando explicar que não quero ter
problemas na empresa será extremamente complicado, e não me imagino
saindo bem de uma situação como essa. Enfim, terei que dar um jeito de
resolver isso.
Após adentrar no seu escritório sem aviso prévio, logo ele me encarou, a
espera de alguma palavra.
Eu ainda não sabia bem o que diria, ou como, mas foi aí que reparei
melhor no seu rosto e vi algo estranho.
— O que foi? Vai ficar me olhando assim por quanto tempo mais?
— Você passou maquiagem? — perguntei, tentando conter algumas
gargalhadas.
— Tá maluca?! Por que eu faria isso? — me olhou com certo espanto.
— Seu rosto... — cheguei mais perto dele, e logo o homem se levantou,
em seguida olhou para o espelho que ficava do seu lado. — ...está um pouco
sujo — complementei.
Logo Victor Hugo analisou sua própria face e tentou limpar no ponto
específico que vi. Apesar de ter falado que era maquiagem parecia ser outra
coisa, e não identifiquei bem do que se tratava devido à sua rapidez em
limpar a tal mancha.
— E eu sei lá que merda é essa! — Voltou-se a mim, claramente
impaciente. — Do que precisa?
Eu ainda não estava acreditando que falaria isso, mas preciso de uma
preocupação a menos em meu trabalho.
— Preciso de uma trégua!
— Trégua?! — Sentou-se sobre a mesa e me encarou com
incredulidade.
— Isso mesmo. E quero fazer uma proposta.
— Hmm... estou começando a gostar do rumo que essa conversinha
despretensiosa está nos levando, sabia?
Fechei meus olhos.
Infelizmente nunca conseguirei ter um diálogo sério com esse homem.
— Não pense besteira um momento sequer — franzi o cenho, e logo
cruzei meus braços, impassível. — Eu só desejo que... sejamos amigos. Nada
mais, nada menos!
— Como é?!
Ele me olhou de soslaio, me analisando de forma metódica. Em seguida,
levantou-se e abriu o whisky disposto na pequena mesa ao seu lado,
colocando o líquido em um dos copos.
— É isso mesmo que ouviu. Precisamos trabalhar juntos, meu emprego
depende do seu, e pelo visto o contrário também. Eu só quero facilitar as
coisas para os dois, não quero inimizade com você, não tenho nada contra sua
pessoa, mas entenda que não tenho a favor também. Então, espero que
sejamos... amigos. Só isso.
Essa palavra saindo da minha boca e sendo direcionada para Victor
Hugo era estranha.
— Certo — disse com cuidado, ainda me fitando. — E sobre essa
suposta amizade, eu terei algum... benefício? — lançou-me uma piscadela e
sorri.
Victor Hugo nem disfarça o quanto é safado e vagabundo de carteirinha.
Não sou puritana, ainda assim sei como separar as coisas em um ambiente de
trabalho. Ou pelo menos estou me controlando para tal.
— Não. Amigos sem benefícios.
— Assim não tem graça nenhuma! Eu passo! — Tomou um gole de
whisky, mas antes fez uma careta.
Apesar de ser um cafajeste, considero ele um cara que tem atitudes
engraçadas e até certo ponto verdadeiro, pois ele fala na cara quando não está
gostando de algo, ou até mesmo quando não concorda com alguma opinião.
Mas não posso me esquecer do que Daniel me falou, e não sei até que ponto
ou exatamente quando estarei sendo manipulada, até porque ele já o fez
naquela aposta de dias atrás.
— Mas é assim que será! — disse por fim, séria.
— E por que isso agora?
— Eu...
— Espera... deixa eu adivinhar, gosto de joguinhos de adivinhações. —
Tomou outro gole de whisky, fixando seus olhos nos meus, e dessa vez
estremeci, pois ele parecia enxergar a minha alma ao fazer tal gesto. —
Daniel te falou que não sou uma pessoa confiável; que gosto de manipular as
pessoas ao meu redor; deve ter te falado também que não sou de me abrir
com ninguém; e que não gosto da maioria das pessoas que me cercam. Além
do mais, você me conhecendo pouco percebeu que não sou alguém fácil de
lidar, e isso vem de encontro a minha primeira frase, sabe por quê? — Uma
risadinha debochada surgiu em sua face.
— Por quê?
— Pois você foi falar de mim para ele! Acertei, não é? — sorriu, mas
não parecia abalado ou surpreso.
Por alguns segundos fiquei sem fala.
Daniel não iria dizer nada do que conversamos para Victor Hugo, até
porque eles nem parecem ser amigos. Sua descoberta é até certo ponto...
chocante para mim.
— Sua convivência comigo foi e está sendo difícil para você, e por isso
resolveu se abrir com Daniel, que com todo o seu jeito metódico e firme de
ser, acabou te dando alguns conselhos sobre mim, pensando que ajudaria.
Como ele em alguns momentos tem complexo de Deus, sugeriu algumas
ideias, e acho que se tornar minha amiga é uma delas.
— Isso que perguntou...
— Não é uma pergunta, gracinha — fechou o rosto. — Estou te
contando fatos, e contra fatos não há argumentos!
Dito isto, ele se aproximou de mim, ainda com o copo em mãos.
Eu sinceramente queria saber como ele consegue captar tantas coisas
sem estar no presente momento em que elas foram ditas, mas sei que não
conseguirei entender nunca a percepção que ele possui.
— Ele me deu conselhos — disse por fim.
— Bom... se isso te deixa feliz, siga-os. Mas fingir ser minha amiga não
me agrada nem um pouco. Sou uma pessoa verdadeira apesar de ser um
babaca.
— Verdadeira? — debochei. — Percebi mesmo quando me enganou ao
ler os arquivos da reunião.
— Ah, gracinha... eu fiquei louco com a ideia de te ver nua, e confesso...
não me arrependo de nada, faria tudo de novo e me arrependo de não ter
colocado umas coisinhas a mais na aposta — mordeu seu lábio inferior, e
aquilo foi sexy pra caralho!
Se comporte, Luiza...
— Você teve o que desejava. Agora, eu que faço a pergunta: eu terei o
que desejo?
— Se o seu desejo for me ter por uma noite inteira, quando quiser. Estou
livre para você!
Novamente fechei meus olhos, balançando a cabeça em desacordo.
— Você sabe muito bem do que estou falando, não mude de assunto.
— Então... quer tentar mesmo ser minha amiga? Minha amiga! —
repetiu, desdenhando da situação.
— Sim, e espero que faça o mesmo.
Victor Hugo me lançou uma olhadela e logo virou as costas, sentando-se
em seguida.
— Eu topo! Não quero te ver tristinha, e acho que isso será bom para
nós dois.
— Excelente!
— Mas tem um pequeno porém.
— Que porém?! — questionei duvidosa.
— Não mudarei meu jeito, vou te provocar de todas as formas possíveis,
e tenho certeza que um dia irá ceder ao meu charme, e a partir daí... você não
conseguirá me tirar da sua cabeça!
— Isso é o que veremos!
Hoje resolvi trabalhar, e não fingir.
Apesar de focar no serviço, as palavras de Luiza não saíram da minha
cabeça.
— Que garota abusada! — disse para mim mesmo ao me espreguiçar,
relembrando seu pedido inusitado.
É estranho falar assim, mas sempre me gabei de não ter amigos.
No fundo sou um homem solitário, e no máximo considero que tenho
colegas, e olhe lá. As únicas pessoas que realmente tenho sentimentos fortes
são meus pais, isso é um fato.
Não gosto que puxem meu saco, odeio que sequer pensem que estão
tirando vantagem de mim. Provavelmente estou errado nesse pensamento,
mas como uma das mulheres que saí muito tempo atrás disse: no lugar do
coração tenho uma pedra de gelo, que é dura feito aço!
Apesar de tudo, estou fazendo algumas amizades pela cidade, e certa
pessoa me encantou quando a vi pela primeira vez. Ainda me lembro do
sorriso de Vitória, e isso me deixou alegre.
— Victor Hugo! — ouvi uma voz, e logo meus olhos voltaram-se a
porta do meu escritório, onde avistei um homem de óculos que me olhava e
desviava suas íris de mim constantemente.
Por um segundo tentei puxar em minha cabeça se o notei na empresa,
mas realmente nunca o vi pintado de ouro.
— Quem é você e o que quer?— vociferei.
— Meu nome é Jarvas, e sou o responsável por...
— Não quero saber do que é responsável Jarbas. O que quer?
— Eu preciso sair mais cedo — falou, voltando-se ao chão. — Estou
com problemas... pessoais.
É o cúmulo pedir logo para mim dispensa do trabalho. Logo eu, um
homem que não respeita essa regra, ainda assim, Luigi sabe muito bem disso,
e eu ter passe livre para chegar e ir embora quando quiser foi um dos meus
pedidos. O mais importante deles.
Horário flexível, melhor dizendo. Não pega tão mal.
— Todos nós temos problemas pessoais. A reposta é não! Volte a
trabalhar!
— Mas... eu não consigo trabalhar!
Bufei, contrariado.
Odeio falar duas vezes a mesma frase, e prevejo uma demissão nesse
exato momento.
— Me dê um bom motivo para não te demitir agora. — Cruzei os
braços, e logo percebi algumas lágrimas se formando em seus olhos.
— É que minha filha está no hospital, e... não consigo me concentrar,
ela é tudo para mim.
Por alguns segundos não falei nada.
Encarei o homem em minha frente e sequer me mexi. Até mesmo os
meus olhos voltaram-se para o nada, e não me recordo o que passou pela
minha cabeça nos segundos que se seguiram.
— Quantos anos ela tem e o que houve?
— 6 aninhos. Minha mulher disse que ela subiu na escada e caiu.
— De qual altura? — perguntei afoito.
— Uns dois metros.
Meu Deus!
Algumas lembranças percorreram meu corpo, e logo senti um calafrio.
— E o que está fazendo aqui ainda?! Quando for assim nem precisa me
procurar! — bradei.
— Eu... posso ir?
— Sim. E eu quero notícias atualizadas de como ela está, o que
aconteceu, como aconteceu, o que o médico falou... tudo!— fiz uma pausa —
Entendeu bem?
— Sim, muito obrigado.
— Ande, vá logo e não enrole!
Depois que Jarvas saiu da minha sala uma onda de tristeza percorreu
meu corpo, e meus olhos ficaram marejados.
Logo fui ao banheiro da minha sala e reparei meu rosto. Pude perceber
uma pequena mancha no mesmo, e logo sorri, limpando a pequena sujeira.
Luiza é uma mulher bem observadora no fim das contas...
Logo abaixo ele enviou uma foto, onde Andressa sorria junto com ele e
sua mulher.
Fiquei olhando para aquela foto por alguns minutos, e quando coloquei
meu celular no bolso, foi inevitável um sorriso se destacar em minha face...
Eu não sei bem o que pensar quando Victor Hugo solta suas pérolas do
nada.
Se convidar para sair comigo é uma coisa, mas em um ambiente que
Renata estará presente é outra totalmente diferente, ainda mais ela que fala na
cara o que está pensando.
Bem, estou torcendo bastante para que isso seja uma brincadeira dele, já
que além do bibelô ser fã de carteirinha do Daniel, não acho que o santo dos
dois irá bater.
— Pelo jeito ela irá reduzir Victor Hugo a pó — pensei comigo.
Por enquanto é melhor focar no meu trabalho, pelo jeito minha noite
ficará para a história...
Totalmente sem controle!
— Pode ir abrindo a boca, quero saber logo o que não disse naquele dia,
coisa fofa.
Havia saído da GCR uma hora atrás. Renata e eu já estávamos no bar, e
abrimos os trabalhos.
— Ah, não é nada demais. É só que está olhando para a mais nova
gerente de vendas da Argo’s. Coisa irrelevante.
Arregalei os olhos e por um momento não acreditei no que meus
ouvidos captaram.
— Mentira!
— Verdade!
Tão novinha e crescendo tanto...
— Ah, não acredito...
Não sei o que deu em mim, e logo pulei da minha cadeira para dar um
longo e apertado abraço em minha amiga, que automaticamente fez cara feia.
Ela não é muito fã de ser apertada, mas não tenho culpa de ela ser apertável,
uma fofinha de carteirinha.
— Tá bom, né. Já deu! — disse e logo me afastei, rindo muito. — Não
te contei antes por que sabia que faria esse showzinho.
— Deixa de ser ranzinza. Essa notícia merece uma comemoração à
altura. Iremos beber todas hoje! — Levantei meu copo, mas logo percebi o
indicador dela meneando de um lado para o outro em negação.
— Preciso estudar alguns assuntos que a Beatriz me pediu. E começo no
cargo semana que vem. Nada de ficar bêbada, pelo menos não nesse mês.
Preciso de foco.
Sorri. Ultimamente foco é o que não estou tendo, e a culpa é toda do
estrupício do meu chefe. E por falar nele...
— Quer ouvir algo engraçado? — perguntei.
— O quê?
— Meu chefe disse que viria aqui hoje quando perguntou quais eram
meus planos para a noite. — Tomei um gole de cerveja.
— E você acreditou? Pelo jeito ele estava tentando te cantar.
— Não acreditei. E sim, ele tenta me cantar quase toda hora.
— Quem te viu, quem te vê... — desdenhou — Luiza Goulart
dispensando homem! Logo a mulher mais safada que conheci.
— São coisas diferentes — pontuei. — Estou no trabalho que sempre
almejei, subindo de cargo periodicamente e muito feliz por isso. Não quero e
nem vou botar tudo a perder por causa de um homem... — repensei algumas
características de Victor Hugo e foi inevitável lembrar dele peladão em sua
casa.
Gostoso, pirocudo e sarcástico ao extremo.
— Faz sentido. E, vindo de você, algo que faz sentido é bem difícil de
acontecer.
Fiz cara feia para Renata e apontei meu dedo médio a ela, que desatou a
rir.
Quando me preparei para entrar em outra conversa, eis que o Universo
resolveu conspirar contra mim, e meus olhos voltaram-se ao peladão...
Não é possível...
Perceber que Victor Hugo caminhava em nossa direção foi um choque.
Não achei que ele estava falando sério quando mencionou que viria ao bar.
Quando olhei para o lado, percebi Renata meneando a cabeça em negação. Eu
nem mesmo precisei dizer a ela como meu chefe se parecia, — já que ela o
tinha visto da última vez mais pra lá do que pra cá —, só que ela reparou
aquele espécime de homem desfilando com seu terno em direção a nós duas.
— O quê?! Eu pensei que era brincadeira! — Levantei as mãos, rendida.
— Pelo visto não era — grunhiu com a cara fechada.
Caminhando a passos lentos, onde mais parecia estar em um desfile, ele
veio até nós, sorrindo ao colocar os olhos em mim. Meu dia estava bom
demais, é lógico que uma tragédia iria acontecer...
— Boa noite, Luiza — ele parou na nossa frente, colocando as mãos nos
bolsos em seguida.
— Victor Hugo...
— Espera... — A atenção de Victor Hugo se voltou para Renata. —
Nossa... sua amiga também é uma gracinha — disse, e logo colocou uma de
suas mãos na cabeça de Renata, que o fuzilou com os olhos.
— Victor Hugo... — ponderei, meneando minha cabeça para o lado e
esperando o pior.
— Sabe... eu pensei que Diego era a pessoa mais insuportável que
conheci, mas seu chefe parece ser bem pior. E tire a mão da minha cabeça,
além de não ser um pet, não te dei essa liberdade!
Renata se esquivou e logo comecei a rir. Não esperava menos do meu
bibelô.
Preciso destacar que a culpa é exclusivamente de Victor Hugo, que veio
em um local que não foi chamado. Eu acho é pouco ele ser tratado assim.
— Você é arisca demais. Quantos anos têm? — perguntou e logo cruzou
os braços, a olhando de uma forma divertida.
— Não é da sua conta. Outra coisa: não gosto de você!
— Nem nos conhecemos direito — Victor Hugo sorriu e colocou as
mãos nos bolsos continuando a encará-la de um jeito bem engraçado.
— Ah, eu te conheço sim. Você é o rival do Daniel Falcão!
Ele logo fechou a cara ao ouvir esse nome, em seguida suspirou
adotando uma postura desleixada.
— Eu não tô nem aí para ele.
— Acho que não sabe, mas ele é meu ídolo — Renata sorriu, mas com
certo deboche.
— Percebi, mas ele só é o seu ídolo porque não me conheceu antes,
baixinha.
— Baixinha?!
— Eu chamo ela de bibelô — resolvi abrir a boca e logo Renata fechou
a cara. — É muita fofura para uma só pessoa.
Victor Hugo começou a gargalhar do nada, sentando-se. Isso porque ele
nem convidado foi.
É claro que ele faria isso...
— Acho que no fim não vou me arrepender de ter vindo encontrá-las.
— Só que o problema é que ninguém te chamou.
— Isso é verdade — reiterei.
— Não se preocupem, sou uma boa companhia quando quero.
— Basicamente... nunca — falei, e logo foi a vez de Renata sorrir.
— Na GCR estamos trabalhando, então tenho que me manter daquele
modo. Aqui é outra história.
— Victor Hugo... — Renata disse mansamente, e logo fiquei
preocupado com o que viria. — Já que falou da empresa e atrapalhou a minha
noitada e da Luiza, precisamos falar sobre algo.
— Renata! — usei o tom mais forte, sabendo o que viria em seguida,
mas ela simplesmente me ignorou. Minha amiga é boa nisso.
— Fiquei sabendo que você é preguiçoso; pega no pé das pessoas; erra
nomes de propósito; e que é impossível viver em sua presença. Por que não
dá uma melhoradinha em si mesmo e deixa minha amiga em paz?
— Sabe... é até engraçado você bancando a guarda-costas sendo desse
tamanho.
Fechei meus olhos.
Renata com toda a certeza vai agredir Victor Hugo, e isso não vai
demorar para acontecer.
E com uma faca!
— Olha aqui...
— Espere! — meneou o indicador. — Deixa eu me defender, depois
você me xinga. Primeiro, não gosto das pessoas em geral, vamos começar por
aí para entender o restante do meu pensamento. Segundo, não nasci para
agradar ninguém, muito menos ser agradado. E terceiro, eu sou o chefe dela,
e ela terá que lidar com isso. Mas agora somos amigos, e isso partiu dela.
Estranho, não?
Renata me olhou desconfiada, e só assenti com a cabeça um quanto
duvidosa.
Não havia falado para ela que Daniel havia me dado tal conselho, e nem
julguei tão importante, mas com ele praticamente vomitando essas palavras
vou precisar contar a história inteira, do contrário ela dirá que preciso ser
internada.
— Você não precisa ser um babaca por causa disso — Renata disse.
— Daniel Falcão sempre foi um babaca com as pessoas que trabalharam
para ele e no fim você o admira, então é melhor repensar sua opinião a
respeito de mim. Defender sua amiga é uma coisa, mas não entender meu
lado por ser assim é outra totalmente diferente.
Renata o encarou por um longo tempo, mas não disse nada. Em seguida,
balançou a cabeça para cima e para baixo.
— Nisso você pode estar certo.
Automaticamente olhei para o lado, não acreditando que tais palavras
haviam saído da boca do meu bibelô. Ela dificilmente admite estar errada em
algo.
— Eu sei, fofinha.
— Dá pra não me chamar desses apelidos melosos ou diminutivos?! —
grunhiu.
— Me desculpe. É que quando te olho dá vontade de te apertar. No bom
sentido.
Não aguentei e comecei a rir. Victor Hugo logo em seguida fez o
mesmo, e quando olhei para Renata percebi um pequeno sorriso se
configurando em sua face.
— Não tenho culpa de ser bonita e ter o rosto jovem e desejável.
— Não mesmo. E pelo seu gênio forte, sei que já destruiu o coração de
vários marmanjos por essa cidade. Aliás, é provável que gosta de fazer isso.
Ao ouvir essa frase, logo ela voltou-se para mim, e no mesmo segundo
balancei minha cabeça em negação, indicando que eu não havia falado nada.
O problema é isso... esse infeliz sabe ler muito bem as pessoas, e mesmo
em uma conversa informal ele solta algumas verdades sem querer querendo.
— Ela não me falou nada. Eu só... sei. Consigo identificar mais do que
pensa ao olhar e falar com uma pessoa.
Confesso que a conversa ficou um pouco mais leve nos minutos que se
seguiram. Acho que Renata deu uma chance a ele, já que não o expulsou de
nossa mesa, e isso vindo dela é algo e tanto. Pode apostar.
Victor Hugo falou muito pouco sobre ele, e parecia mais interessado em
ouvir sobre os nossos assuntos. Entramos até no tema maquiagem, e claro, ele
deu pitaco. Enfim, o homem sabia conversar quando desejava, e isso me
deixou um pouco surpresa.
— Tem um homem...
— ...que não para de olhar pra cá — Victor Hugo completou o
raciocínio de Renata, que logo assentiu.
— Bom, não estou fazendo nada — falei, e logo ele me lançou um
sorrisinho bem sacana.
— Se não está fazendo nada, podemos fazer algo na minha casa. Você
pelada ainda não saiu da minha cabeça, gracinha.
— Vocês dois! Meu Deus! — Renata falou. — Já não basta eu ser
obrigada a ouvir Luiza falando das orgias que já fez?
Um olhar desconfiado tomou conta da face do meu chefe, e logo ele
levantou o seu copo de cerveja simulando brindar com alguém, tomando um
gole do líquido.
— Luiza, Luiza, Luiza... o que mais vou descobrir sobre você?
— Nada mais! Eu só...
Parei de falar no exato momento em que uma mão tocou meus ombros.
Ao me virar, notei um homem moreno sorrindo para mim.
— Olá.
— Oi — respondi.
— Estava te admirando há algum tempo, e finalmente vim até você. Me
chamo Juan.
— Prazer, Luiza. — Ele me deu um beijo no rosto e logo olhei para
Renata que me analisava atentamente. Já Victor Hugo não parava de fitar o
homem, e ele logo percebeu.
— Vocês não são...?
— Namorados? Claro que não! Creeeedo! — Victor Hugo respondeu
com uma voz bem esquisita e logo mordeu os lábios. — Digamos que eu
prefiro outra coisa — deu uma piscadinha para o homem, e logo olhei para
Renata, que estava tão perplexa quanto eu ao observar tal cena.
Que raios esse ser está fazendo?
— Espera, você está dizendo...
— Gatinho... — falou. — Não vai rolar nada com a minha amiga, e sabe
o porquê?
— Por quê?
— Bom... desde o momento que te vi, eu disse a ela que você era o meu
número, e estou te elogiando faz tempo aqui na mesa. Você deveria ter
abordado a mim e não ela. Uma pena...
Após ele terminar a frase, Renata abaixou a cabeça e começou a rir, não
me segurei, e soltei uma gargalhada, deixando o homem sem graça.
— Então... por que não vai ao banheiro, dá uma arejada na cabeça e
depois volta aqui e convida a pessoa certa para sair? — Victor Hugo juntou
as mãos, e logo passou uma delas pelos cabelos, fazendo charme. — Vou
esperar ansioso e posso até relevar você ter chegado nela primeiro.
Eu não acredito que estou presenciando algo assim!
— Eu gosto de mulher — disse e se recompôs, ficando ereto.
— Nossa... que peninha! — fez beiço, e logo o homem saiu de perto da
mesa sem dizer nada mais.
Tanto eu quanto Renata ficamos encarando Victor Hugo, que voltou a
tomar sua cerveja como se nada tivesse acontecido.
— Vão ficar me olhando como se eu fosse uma aberração até quando?
— Não sabia desse seu lado — debochei.
— Não tenho esse lado, só improvisei para ele ir embora. Não gosto que
me atrapalhem quando estou com minhas amigas.
— Não sou sua amiga! — Renata afirmou categoricamente.
— Ainda! Já percebi que gostou de mim, e será questão de tempo para
sermos bons amigos. E não se preocupe, não quero te comer. Já você, Luiza...
— Meu Deus! — Renata sibilou colocando a mão na testa.
Ele não muda.
Apesar dos pesares, na empresa ele pode até ser uma pessoa difícil de
lidar, mas fora dela parece ser um homem divertido, confesso.
— Vamos mudar de assunto já que espantou o único cara que veio até
mim.
— Do que falaremos?
— Acho que...
Ouvi um pequeno barulho, e logo percebi ele colocando seu celular
perto do ouvido. Em seguida, suas feições ficaram um pouco mais sérias, e
ele se levantou.
— O que houve com ela?
Victor Hugo ouviu atentamente o que era dito por alguns instantes, e
logo depois disse: — Irei para aí agora! Acho que posso ajudar com isso...
— desligou o telefone e imediatamente se voltou a nós.
— O que houve? — perguntei.
— Não se preocupe, foi um imprevisto e irei lidar com isso agora —
sorriu e foi em direção à Renata. — Foi um prazer te conhecer, lady Renata.
— Pegou sua mão direita e deu um pequeno beijo na mesma, deixando-a
levemente surpresa.
— O prazer foi meu — riu brevemente.
— Até amanhã, Luiza. — Se aproximou e beijou minha bochecha, mas
claro, pegou a parte lateral dos meus lábios.
Feito esse gesto saiu andando, e logo olhei para Renata, que me
analisava bem desconfiada.
— Bom, acho que devo um pedido de desculpas a você.
— Pelo quê? — questionou.
— Eu pensei que ele não viria, sem falar que te provocou, e pode muito
bem estar trabalhada no ódio.
— Não, muito pelo contrário. Gostei do seu chefe. Ele fala o que pensa,
é desbocado, e não tá nem aí com o que as pessoas estão achando dele. Tipo
eu.
Soltei uma risadinha maliciosa encarando a minha amiga.
— Se quiser...
— Nem sequer pense em completar essa frase!
— Nossa! Eu só iria te chamar para um ménage, ele, você... e eu. Que
tal?! Posso te ensinar umas coisinhas que jamais irá esquecer...
Renata me olhou com certo nojo, e logo caí na gargalhada.
— Você é horrível, Luiza. Uma péssima pessoa e amiga.
— Foi brincadeira, bibelô. Amorzinho da minha vida.
— Vou deixar claro que vocês dois não fazem o meu tipo, e jamais
ficarei enrolada com alguém que se pareça comigo, eu mataria a pessoa ou o
contrário. Preciso de alguém oposto a mim.
— Tipo o Diego?
E foi só eu falar o nome dele que ela revirou os olhos, mas de um jeito
todo diferente do habitual.
— Seria uma pessoa com o estilo parecido sim, mas não
necessariamente ele.
— Aham...
— Dá pra parar de me olhar desse jeito?!
É incrível o quanto ela fica desconcertada quando toco no nome dele.
— Sei como é... se apaixonar é complicado.
— Eu não estou apaixonada por homem nenhum! — me fuzilou com o
olhar e vi que ela estava sim balançada de alguma forma por ele. Mas quero
manter minha integridade física, e não vou discutir.
— Tudo bem. — Levantei as mãos. — Ele ainda está na Argo’s, né?
— Sim — grunhiu.
Devido ao seu desconforto não me aprofundei no assunto.
Resolvi focar no que aconteceu em meu dia, e não contive um sorrisinho
ao relembrar a cena de Victor Hugo repelindo o homem que havia chegado
em mim. No fim, ele pode não ser um babaca completo...
“É bom ser surpreendida no trabalho...”
Não sei o motivo, mas a minha raiva por Victor Hugo foi amenizada.
Uma parte dela, que fique claro.
Na realidade acho que seu pedido de desculpas ajudou, já que percebi
em seu rosto que ele foi sincero. Mas algo que não diminuiu em nada foi a
minha ira em relação a esses papéis, e agora mesmo estou indo no RH da
empresa.
— Eu estava na esperança que tivesse trazido o que foi pedido, mas pelo
jeito não foi isso que veio fazer aqui — Marlene falou antes mesmo de eu
abrir a boca.
— Só um minuto! — falei, indo em direção a uma das mesas do RH,
onde Bianca e Marcos trabalhavam.
Geralmente é para eles que entrego esse arquivo específico. Depois de
uma rápida olhada não encontrei a minha pasta, e logo fiquei nervosa.
— O que está procurando? — Novamente a voz da histérica se fez
presente, mas a ignorei.
Não quero pensar na hipótese de que Victor Hugo me enganou, por isso
andei pela extensão da enorme sala, procurando algo chamativo.
Esse dossiê tinha uma cor diferente das demais, e pelo menos em gravar
características de objetos e pessoas sou muito boa.
Depois de quase estar desistindo, fui para um local isolado, ainda no
setor, e foi aí que tive uma bela surpresinha.
Logo fui na direção daquela gostosura de dossiê, o pegando e
praticamente jogando no peito de Marlene, que me olhou assustada.
— É o seguinte: Victor Hugo entregou isso na sexta.
— Mas... isso não é possível.
Marlene parecia perdida, e logo “achou” Valadares, que voltava do seu
café da manhã e sentou-se na mesa em que achei os documentos.
— Valadares! O que significa esse dossiê em sua mesa?
— Ah, eu não avisei antes. Victor Hugo me entregou na sexta-feira antes
de ir embora
— Como é?! Eu estava procurando isso! — berrou, o acuando.
Eu, como não tinha nada a ver com o problema dos outros, fui para mais
perto da megera.
— Da próxima vez preste atenção no seu serviço antes de cobrar o meu!
Dito isto simplesmente fui embora.
Meu dia está começando a melhorar...
Nada melhor do que chegar em casa mais cedo e se deitar em sua cama
quentinha. Olhei meu celular e era 15h. Eu poderia até tirar um cochilo se
quisesse.
A preguiça foi tanta que minha cama pareceu me abraçar quando me
esparramei, e... acho que apaguei.
Estou dizendo que acho porque tomei um belo susto quando meu celular
começou a tocar, e ao notar no visor dele que Beatriz estava me ligando, logo
atendi.
— Amiga, o que...
— Luiza! Por favor, me ajude! — A urgência nas suas palavras me
deixou alerta, e logo pulei da cama.
— O que houve?
— Meu pai, está no hospital e não acho o Daniel, e...
Beatriz começou a chorar ao telefone.
— Onde você está? Vou para aí agora!
— Saindo da Argo’s, preciso ir para o hospital, mas estou tremendo.
— Fiquei aí! Vou te buscar e vamos juntas. Não encoste no seu carro!
— Mas e o seu trabalho?
— Tirei folga no restante do dia. Não se preocupe, em menos de dez
minutos estarei aí.
— Obrigada, amiga.
Cheguei mais cedo que o normal, já que o nome Lucas ficava apitando
em minha cabeça.
Que ironia do destino!
Depois que toquei a campainha, logo fui recebido por Luiza... de
camisola, e puta que me pariu.
Ela usava uma camisola preta transparente com alças bem finas, fui
descendo meus olhos por seu corpo, e pude reparar que seus mamilos
estavam duros, marcando o tecido, e quando desci mais, a visão daquela
calcinha minúscula que ela usava, que mal cobria sua boceta, fez com que
minha boca enchesse d’água com a vontade de saboreá-la.
— Chegou cedo. Seria ansiedade?
Eu nem respondi, somente admirei aquela linda mulher em minha frente.
Não me fode assim, Luiza...
— Isso não importa, só quero provar seu corpo.
— Ah, mas você vai esperar, falta alguém... — sibilou e ficamos nos
olhando por alguns segundos, mas ela logo desviou seus olhos, e ouvi o
barulho de uma moto cada vez mais perto. — Agora não falta mais!
Depois de algum tempo um moreno alto passou pela porta.
— Oi, gata!
— Olá, Lucas. Então, rapazes, estou carente, conto com vocês para me
satisfazer!
Eu sei
Que não era pra gente se envolver
Que não era pra gente se encontrar
Mas esse amor bandido não posso evitar
É coisa de pele, um lance criminoso
Um frio na barriga, arrepio no corpo
Longe do mundo inteiro
Amor do nosso jeito
Deixa em off
Off, o nosso amor é mais gostoso em off
Proibido, escondido em off
Só eu e você perdido em love
Deixa em off
Victor Hugo até mesmo pegou um violão do nada para cantar junto com
Renata, e aquela cena tava engraçada, por isso filmei e não vou revelar para
ninguém.
Ao fim da música eles foram aplaudidos praticamente por todo mundo, e
vi meu bibelô visivelmente feliz.
— Foi difícil?
— Não. Ganhei várias coisas em menos de cinco minutos. Nem de longe
essa chantagem foi ruim para mim.
— Hmm. Acho que estava tramando algo desde o começo.
— Claro! Eu sabia que teria alguma piadinha nisso tudo. Eu só... —
sorriu de um jeito sarcástico para ele. — Queria tirar vantagem de você!
— Ah, é? Bom saber.
Continuamos a conversar e beber por algumas horas, e até me esqueci
que na verdade ainda falta uma coisa para ser feita.
— Acho que está na nossa hora.
— Também acho — Renata falou. — Mas antes preciso fazer a minha
pergunta.
— Claro. — Cruzou os braços a analisando.
— Já que Luiza não vai perguntar, eu irei. Em que dia e ano nasceu?
Automaticamente olhei desconfiada para Renata não entendendo o
motivo de tal questionamento.
— Essa era a pergunta importante?
— Iremos chegar lá. Me responda isso primeiro.
— 29 de maio 1985.
— Espera um segundo, deixa eu fazer algumas contas.
Por poucos momentos Renata pareceu contar algo mentalmente, e logo
me preocupei, já que tive um clarão do motivo de tal questionamento.
— Certo. Minha pergunta é: por que tem uma tatuagem no seu corpo
com a data de 10/05/1992? Nessa data você tinha 6 anos, 11 meses e alguns
dias. Não vejo sentido nisso.
Victor Hugo meio que travou alguns segundos ao ouvir esse
questionamento, e logo olhou para o céu repensando alguma coisa. Ele não
estava nervoso ou algo do tipo, parecia estar um pouco surpreso com essa
pergunta.
Não vou julgá-lo, eu mesma não esperava que logo Renata perguntasse
sobre isso, mas meu pequeno anjinho quer me ajudar em algo, e fiquei feliz.
— Não temos até amanhã. Desembucha!
— Bem... sobre isso não vou responder a você, querida aluna —
pontuou com o rosto amigável até demais.
— Você disse que poderia fazer a pergunta que eu quisesse! — falou,
nervosa.
— Exatamente! O que eu não disse é que responderia à pergunta, né,
baixinha?! — lançou uma piscadela e Renata ficou louca.
Sabe... apesar de não ter a resposta que tanto estava curiosa, no fundo
fiquei muito feliz. Meu bibelô se acha esperta na maior parte do tempo, e até
mesmo ela foi passada para trás agora.
— Eu te odeio tanto, Victor Hugo! Primeiro me traz no pagode, depois
me faz cantar um música com você, e agora me engana desse jeito!
— Que pena que me odeia, mas felizmente ou infelizmente gostei de
você e continuaremos amigos, queira ou não. Até porque... me tornei seu
professor particular a partir de hoje!
“Nossos demônios precisam ser confrontados diariamente...”
Pela primeira vez Victor Hugo, Renata e eu saímos juntos para um local
que meu bibelô sugeriu. Essa foi uma de suas condições na aposta que meu
próprio chefe fez, e agora estou vendo ela mais à vontade com a gente.
Conheço Renata há poucos anos, mas sei que ela não tem muitos
amigos. Os laços dela são mais com mulheres, e Victor Hugo percebeu isso
também, já que a todo momento queria colocá-la na conversa.
— Preciso confessar: Renata é a aluna mais aplicada e inteligente de
todas que ensinei!
— Sério? E quantas pessoas ensinou até hoje?
— Uma. Contando com ela.
Não aguentei e comecei a rir, Renata só olhou para ele e apontou o dedo
do meio, sorrindo também.
— Sou uma excelente aluna, em absolutamente tudo que eu tiver
comprometimento.
— Sei muito bem disso...
Depois que conversei por um tempo com meu chefe sobre assuntos
triviais, logo percebi que o rosto de Renata havia mudado, e não entendi bem
o porquê. Como o estrupício também é um homem observador, logo seus
olhos encontraram os meus, revelando que sua percepção estava tão boa
quanto a minha.
Depois que dei uma rápida analisada ao redor, logo vi um rostinho
conhecido...
Eu sabia!
— Renatinha... — Victor Hugo disse calmamente, e logo me preocupei.
— Sou tão observador quanto uma mulher e notei que quando viu certa
pessoa sua postura até mudou, sabe?
— Deixa disso e não comece, Luiza 2! — virou o rosto.
— Vai me falar do que se trata ou preciso descobrir?
— E vai descobrir como? — perguntou com deboche.
— Olha... — Se levantou. — Indo até o homem. Que tal a ideia?
Renata ficou vermelha do nada, e em seguida bufou.
— Diego trabalha comigo na Argo’s. Era meu professor no começo, me
ensinou muitas coisas sobre tecnologia, e...
— Ela gosta dele! — interferi. — O bibelô vai negar até a morte, mas é
fato.
— Luiza!
— Não, Renata. Vamos colocar as cartas na mesa. Não precisa fingir,
todos gostamos de alguém.
— E esse tal Diego te decepcionou de alguma forma?
— Pessoal... — nos analisou, e não decifrei o que ela estava pensando.
— Dá para desviar o foco de mim? Podem até falar das posições exóticas que
já fizeram, eu não me importo.
— Eu acho que ele a decepcionou sim! — ele falou, olhando bem fundo
nos olhos dela, ignorando seu comentário.
— Só que ela foi decepcionada de uma maneira diferente. Ele não dar
bola pra Renata e possivelmente ter uma namorada ou algo do tipo deixou ela
bem chateada. — Victor Hugo complementou.
Diante da incapacidade de resposta da minha querida amiga, meu chefe
deduziu que estava certo.
— Victor Hugo e Luiza, não me façam odiar um pouco mais vocês dois!
— Mas sabe o que esse cara não sabe e eu sei? — questionou — Ele é
um idiota se não notar uma mulher tão linda e inteligente que nem você,
então precisamos saber se os dois estão na mesma sintonia, ou se estão
brincando de gato e rato.
Olhei para Renata, que me olhou de volta não entendendo nada. Logo
depois, Victor Hugo deu um beijo em minha boca, e um sorrisinho
debochado surgiu no seu rosto.
— Luiza, você é linda, eu realmente gosto muito de você, mas...
— Mas...? — arqueei as sobrancelhas e cruzei os braços.
— É bom esquecer algumas coisinhas que irão acontecer agora. —
Voltou-se para Renata que balançava freneticamente a cabeça em negação.
— Se você beijar ela, eu vou te castrar! — fui logo avisando.
— Não farei isso. Mas pode ser algo similar.
— Eu é que não vou entrar nas suas de novo! Neeeeem morta! —
Renata esbravejou.
— Ah, vai sim. E depois vai me agradecer — disse, logo se
encaminhando em sua direção e pegando sua mão direita. — Vai me falar
que não quer pregar uma peça nele?
Renata observou meu chefe e logo se voltou para mim.
Ela é uma ótima atriz, e provavelmente essa oferta é irrecusável.
— Tudo bem. Mas só porque gosto de enganar certas pessoas.
— Ótimo. Só... siga o fluxo e deixe o resto comigo.
A baixinha se levantou e logo pegou na mão de Victor Hugo, meu
homem, que fique claro. Apesar desse gesto, eu fiquei curiosa com o que viria
em seguida, só que tomei um baita susto quando os dois chegaram perto de
Diego, e meu querido chefe começou... a cantar olhando para Renata.
A nossa noite estava bastante divertida, e até mesmo Renata que não era
muito de se abrir falava pelos cotovelos. Victor Hugo ao que parece
conseguiu, enfim, conquistá-la.
— Bom, eu atrapalhei demais os pombinhos, então vou me retirar agora
— Renata falou do nada, nos pegando desprevenidos.
— Você não atrapalha, só às vezes, quer dizer... sempre — Victor Hugo
caçoou.
— Eu sei, e faço de propósito. Acostume-se. A Luiza é minha.
— Posso lidar com isso.
— Aproveitem a noite de vocês, e obrigada por aquilo. — Voltou-se a
Victor Hugo. — Saiba que agora te considero meu amigo, mais do que Luiza,
aliás.
— Mas o que significa isso?! — perguntei, incrédula.
— Significa que seu tempo acabou, meu bem. — Passou a mão pelos
cabelos fazendo charme e simplesmente foi embora.
— Desaforada!
Eu amo o meu bibelô!
Depois que Renata foi embora, começamos a conversar sobre o pequeno
espetáculo que tive o prazer de observar de perto.
— É bom que não tenha se aproveitado do meu bebê, tenho mais ciúmes
dela do que de você.
— Só tirei uma casquinha! — deu uma piscadela e logo tomou um belo
tapa.
Essa coisa, ou seja lá o que for, está indo rápido demais. Não consigo
odiar esse homem ou achar algum defeito nele. Claro, a preguiça no trabalho
ainda está lá, mas eu não sei, estou muito confusa sobre o que estou sentindo
no meu peito quando estamos juntos. Nunca dei abertura a homem algum, e
com ele é... natural.
— Luiza, vamos lá: eles se gostam. Mas conhecendo Renata... sei lá, é
difícil. Nunca conheci alguém tão imprevisível, mas eles trabalham na mesma
empresa, quem sabe houve uma fugidinha e tal.
— Você não a conhece! Renata leva o trabalho a sério, até demais.
— Nós dois também! — falou e caímos na gargalhada de forma
instantânea.
Apesar desse momento de descontração, meu querido chefe não tirou os
olhos dos meus por um segundo sequer. Não sei o que ele está pensando, mas
quando observo a maneira com que ele me deseja... é complicado pensar em
outra coisa.
— Por que está me olhando assim? — rompi o silêncio.
— Só estou pensando que está cada dia mais difícil conquistar as
mulheres no geral.
— Não sendo um babaca na maior parte do tempo ajudaria muito, sabe?
— provoquei.
— Você já está pedindo demais
— Entendo que pode ser bem complicado para você — caçoei.
— Nem tanto. Eu te conquistei mesmo sendo um babaca, e olha como
estamos? Pelo visto alguém se apaixonou bem rápido.
— Fale por você!
A conversa estava fluindo normalmente, e a todo momento nos
divertíamos com alguns assuntos aleatórios, eu só não contava com um
pequeno probleminha de óculos chegando em nossa direção.
— Oi. — Uma mão tocou o ombro de Victor Hugo e logo me alarmei.
— Olá...
— Milena — pontuou. — Eu... estava reparando em você, e já tem um
tempinho.
Isso é um déjà vu por acaso?
Ou, como diz minha amiga, isso é um Djavan?
Victor Hugo me olhou de soslaio, se divertindo com a situação, mas se
estou tendo um déjà vu mesmo, eu sei bem o que fazer...
— ...então eu tomei coragem em vir até você. Sei que não iria reparar
em mim.
— Não é bem assim, Milena, é que...
— ...chegou na pessoa errada, gracinha — Luiza falou e logo sorri.
Ela daria o troco, com toda a certeza do mundo.
— Como assim?
— Eu estava conversando com ele sobre você. Reparei nos seus olhos
daqui onde estava, e eles me chamaram muita atenção.
Percebi a menina ficando um pouco mais vermelha, constrangida.
— Não deixe ela sem graça, é mentira! Ela só está descontando o que fiz
há algum tempo — falei, tentando provocar minha amiga.
— Então, ela não é...
— Na realidade sou bi, amor. Você pode muito bem acreditar nele —
disse e se levantou. — Mas, se quiser, posso tirar a prova. Não tem problema.
Tocou seus cabelos e... porra! Ela é muito boa em fingir as coisas.
E sabe o pior de tudo? Percebi traços na menina que ela gostou, mas
acabou disfarçando.
— Eu... entendo. Eu... desculpa, não vou atrapalhar vocês — falou, mas
sorriu para Luiza, que a observou se distanciando.
— Ah, ela gostou de mim. E eu gostei dela, sabe?
Suspirei.
— A vingança nunca é plena, mata a alma e envenena.
— Eu sou possessiva. Não tenho culpa.
— E se ela duvidasse?
— Ah, meu bem... acho que ultimamente você está me conhecendo bem
demais. Duvidar de mim nunca é uma opção, e não me importaria de uma
festinha a três.
Mas que safada...
Levantei as mãos, rendido. Provocar ou intimidar Luiza nunca foi e
nunca será algo que vou considerar... ou irei?
— É uma pena que não posso ficar na sua casa hoje, preciso acordar
bem mais cedo amanhã e resolver alguns problemas urgentes na empresa —
Victor Hugo falou ao estacionar seu carro em frente à minha residência.
— Eu nem me lembrei de te convidar. Estranho, né? — provoquei.
— Tenho passe livre, gracinha. E tem outra coisa: você estragou uma
potencial festinha minha.
— Simples de resolver: volte lá e tenha a sua festinha. Não me importo,
somos livres — debochei.
— Você vem no pacote? Se sim... posso reconsiderar.
— Não, você gostou dela, então sabe o que fazer.
Victor Hugo me olhou nos olhos e deu um breve sorriso.
— Então quer dizer que eu vivi para ver que Luiza Goulart está com
ciúmes de mim...!
— Ciúmes uma ova! — retruquei, desviando meu olhar. Mas a resposta
é sim, eu realmente estava com esse sentimento ruim.
— Vem cá!
Sem chances de desviar, ele segurou meu rosto com firmeza enquanto
seus olhos praticamente me comiam viva.
— É você a mulher que eu quero! — exclamou, sério. — Não preciso
que mais de uma mulher me satisfaça. Você é o pacote completo, meu pacote
completo! Nunca senti isso por mulher alguma, e vou até o fim para saber
quais as surpresas que Luiza Goulart tem para mim.
É... como diz aquele sábio poeta: fodeu!
— Não me deixe mais apaixonada. Só... me beija e cala essa boca!
Não precisei pedir duas vezes e logo nossas bocas colaram uma na outra,
e ao sentir sua língua dentro de mim praticamente me joguei em seu colo.
Deus... eu não posso ser tão safada assim.
— Luiza... não faça isso hoje. Não foda mais ainda o meu psicológico.
— Eu sei como é... — mordi sua orelha sussurrando em seu ouvido. —
Toda vez que me vê seu desejo é me comer, e quando te beijo... eu só quero
te dar! Que dilema...
— Porra, mulher!
Victor Hugo segurou meu rosto com firmeza e logo me beijou com uma
voracidade tremenda. Eu já tinha aberto seu zíper e estava quase retirando sua
calça, mas quando ele percebeu isso...
— Não! Preciso me controlar, se fizermos, com a fome que estou do seu
corpo, vou te foder a noite inteira.
— E...? — perguntei, não sabendo qual seria o problema nisso.
— E eu preciso ser profissional. Pelo menos amanhã.
— Que pena... — chupei o seu pescoço, e logo ele fechou os olhos,
apertando minha bunda, juntando nossos corpos, me fazendo sentir seu pau
duro embaixo de mim.
— Não fode comigo assim... — sibilou.
— Eu quero é que você me foda! — sussurrei me esfregando sobre ele.
— Caralho, gracinha.
Novamente ele chupou meus lábios e me agarrei com firmeza em seu
corpo, passando a mão pelos seus cabelos, arranhando seu pescoço. Suas
duas mãos agora passeavam pelo meu corpo, e essa pegada...
Que homem...
É bom quando achamos uma pessoa que se parece com a gente no
quesito sexo. Podemos fazer o que quisermos juntos. Sem pudor algum.
— Chega! Eu vou embora, sou humano no fim das contas.
— Eu deixo com uma condição... — sibilei — Qual o assunto
importante que fará o poderoso CEO me dispensar e acordar tão cedo?
— Reunião com todo o conselho juntamente com Luigi. Mas não
precisa se preocupar, a pauta é outra e não você.
— Não me preocupei, sei que certa pessoa me defenderia se eles me
atacassem. — Fiz movimentos circulares em sua camisa e mordi meus lábios.
— Mas tudo bem, apesar de estar carente demais hoje, dessa vez vou deixar
passar... só dessa vez, que fique claro!
Saí do seu colo e fui para o meu banco.
Percebi meu homem me olhando e suspirando fundo. Acho que posso
notar traços de arrependimento nesse rostinho lindo.
— Vou pedir com educação: vaza da porra do meu carro, sua
pervertida! — disse, aos risos, e logo abri a porta, sorrindo também.
— Espero que descanse bem e resolva todos os problemas na empresa
de manhã — falei de um jeito arrastado, provocando o homem descabelado
que havia ficado do carro.
— Preste bem atenção... — pontuou com o dedo em riste. — Amanhã eu
vou acabar com você, iremos transar igual coelhos! Sua provocação não vai
passar impune, e vou arrancar seu coro!
— Hmm, dormirei ansiosa... — pisquei. — E acho bom eu ser muito
bem recompensada, porque nunca fui dispensada — provoquei indo em
direção à minha casa e rebolando a minha bunda, a parte mais gostosa do
meu corpo.
De fato, esse homem está mexendo demais comigo...
“E quando tudo parece estar correndo bem...”
Tive um sono bastante reconfortante, pelo menos até ser acordada pelo
meu celular gritando.
Na verdade não foi bem assim. Já o estou ignorando há um tempo, para
enfim criar coragem e checar o visor do meu celular, finalmente vendo quem
estava me ligando constantemente, e...
42 ligações perdidas! Meu Deus!
Sentei em minha cama, já desperta. Nunca é bom me deparar com esse
tanto de chamada, geralmente é notícia ruim.
Afastei esses pensamentos e fui checar as ligações, e absolutamente
TODAS foram feitas da GCR. Na verdade, não todas, mas os números
avulsos eram de funcionários de lá.
Respirei fundo e logo disquei o número geral da empresa. No terceiro
toque fui atendida.
— Alô, é a Luiza Goulart, a gerente geral. O que tá acontecendo?
— Luiza, é a Francine. Pelo amor de Deus, venha para cá agora!
Fui literalmente recebida com essa frase, e se já estava em pânico, o
medo cresceu ainda mais em meu peito.
— O que aconteceu?
— Victor Hugo...
Ah, não...
— O que ele fez? — perguntei desesperada.
A linha ficou muda e novamente meu coração bateu descompassado.
— Francine, me fala logo, vou ter um treco aqui!
— Ela está quebrando toda a sala dele!
— Como é?!
— Ele simplesmente surtou... do nada. Quebrou a sala toda, e quase
agrediu dois funcionários que tentaram conter ele. Luigi quer chamar a
polícia, mas convenci ele que você poderia ajudar.
— Vou para aí agora!
Torci bastante para minha amiga estar em casa, já que ela havia tirado
pequenas férias.
Ela agora está morando sozinha. Saiu da casa dos pais há poucos meses.
Depois de tocar a campainha continuamente, ela abriu a porta com a
cara fechada.
— Mas que raios é... isso? — disse alto, mas sua voz diminuiu ao ver o
estado que Victor Hugo se encontrava.
— Me ajude, rápido!
Com muito custo conseguimos levar Victor Hugo para dentro da casa, e
seus olhos se voltaram aos meus de forma inquisitória.
— Vamos para o quarto de hóspedes — falou.
Agora, Victor Hugo estava na cama. Estava começando a ficar
preocupada à medida que o tempo passava.
— Vem cá! — Renata me puxou pelo braço e voltamos para a sala. —
Ele está em choque!
— O que eu faço, Renata? — perguntei, e uma lágrima caiu dos meus
olhos.
— Se acalme, amiga. Deixe-o descansando um pouco. Algumas pessoas
da minha família já ficaram em choque, daqui a pouco ele vai voltar ao
normal, se isso não acontecer vamos levar ele ao médico. Só o deixe
descansar um pouco — reforçou.
— Tudo bem — respirei fundo e limpei meus olhos.
— Agora, pelo amor de Deus, me diga o que houve.
Tive que contar a história toda para Renata. Desde o começo e tudo que
descobri.
— Isso é... meio inacreditável. Eu acreditaria se fosse qualquer pessoa,
mas Victor Hugo fazendo o que me falou é... sei lá, não tenho palavras.
Ficamos por cerca de duas horas conversando, e o assunto na maior
parte do tempo girou em torno do meu chefe.
De vez em quando ia no quarto, e em todas essas oportunidades notei
que seus olhos estavam fechados. Ele havia adormecido e fiquei aliviada.
— Ele ainda tá dormindo?
— Acho que sim.
— Isso é bom, e...
Renata parou de falar quando uma figura masculina saiu do quarto de
hóspedes e passou pela gente, indo até a geladeira. Em seguida, pegou uma
das garrafas que estava na mesa e colocou o líquido no primeiro copo que viu
pela frente.
— Acho que ele está melhor. Até abriu minha geladeira sem pedir
permissão.
— Renata! — a repreendi.
— Tá bom... foi mal, eu hein! — Levantou as mãos, simulando
rendição.
Depois de beber água, ele lavou o copo e sentou-se em um dos sofás da
sala.
Ele simplesmente ficou lá, olhando para baixo com as mãos juntas. Seus
olhos estavam vermelhos e eu podia ver o sofrimento estampado em seu
rosto.
Acho que ele ficou parado lá por no mínimo uns cinco minutos, e não
falou uma palavra sequer. Tanto eu quanto Renata não dissemos nada
também, somente o observamos preocupadas.
De maneira robótica, ele levantou sua cabeça e respirou fundo, mas sua
atenção não se voltou para mim, e sim para a Renata.
Victor Hugo sustentou o olhar, e não entendi aquele gesto.
— O quanto você sabe? — perguntou, friamente.
Renata me olhou de soslaio, mas logo disse: — Acho que agora sei de
tudo.
Novamente meu chefe abaixou a cabeça, mirando o chão. E aquele
silêncio estarrecedor tomou conta da sala.
Eu não sabia o que poderia estar passando pela cabeça dele, e me afligia
bastante não entendê-lo. A dor que observava em sua face me machucava, e
nunca pensei sentir tamanha angústia por algo.
— Remissão! — falou, mas nem sequer fez contato visual.
Observei Renata de canto de olho, mas ela parece ter entendido tanto
quanto eu. Nada.
Ele levantou a sua cabeça e novamente a encarou.
— Esse é o motivo da minha tatuagem, a pergunta que não te respondi
naquele dia — falou, passando uma das mãos em seu rosto, e em seguida nos
seus cabelos.
Não preciso nem dizer o quanto fiquei surpresa com a sua frase, e
Renata parece ter sentido o mesmo que eu.
— Essa data em seu corpo simboliza o dia que se curou do câncer
quando era criança — Renata falou e logo ele assentiu.
— Sim. Eu fui um menino muito doente. Enfrentei a leucemia e fiquei
inúmeras vezes à beira da morte. Tatuei em meu corpo o dia que finalmente
me livrei do câncer, e desde os meus 21 anos faço trabalho voluntário nos
hospitais nas cidades em que trabalho.
Coloquei uma das mãos na boca, estarrecida. Quando o observei, seus
olhos estavam mirados em mim, ele abriu um breve sorriso, mas logo
desapareceu.
— Eu me apeguei a uma garota chamada Laura em um dos meus
primeiros trabalhos voluntários. Ela era uma menina linda, encantadora, tinha
12 anos de idade, mas era tão cheia de vida... tinha uma força interna de dar
inveja, sempre estava sorrindo, nunca se deixando abater por nada, mesmo
quando as medicações fodiam com seu organismo... — olhou para a janela.
— No começo ela foi um dos motivos para eu persistir nesse trabalho
voluntário, pois eu ainda não sabia lidar com a perda, e queria desistir. No
fim, sua força de vontade rompeu todas as barreiras do meu coração e certo
dia ela me fez prometer que eu ajudaria o máximo de crianças que pudesse,
que faria de tudo para elas sorrirem cada vez mais e... eu dei minha palavra a
ela. Mas... — parou, e uma lágrima rebelde caiu. — ...ela faleceu, e isso me
destruiu. Pensei em desistir de tudo, não achei que conseguiria suportar outra
perda se eu me apegasse tanto, só que a promessa que fiz a ela sempre esteve
presente em minha cabeça. Eu não podia desistir. Eu devia isso a ela, e estou
indo até o fim. Tive muitas perdas no processo, a cada criança que morria, eu
me culpava, e foi aí que um vício entrou e ficou em minha vida: a bebida
alcoólica.
Olhei para Renata e vi que ela tentava parecer forte, mas estava se
segurando para não chorar, já eu... nem conseguia mais disfarçar, estava em
prantos.
— O que vou falar é errado, mas todas as vezes que perco alguém, eu...
simplesmente bebo até cair, tento de alguma forma sair da realidade, me
entorpecer — abaixou a cabeça e percebi traços de vergonha em seu rosto. —
Eu bebo para esquecer todas as minhas perdas, só que no dia seguinte... não
adianta em nada. Elas não voltam, e a dor continua aqui e eu me afundo cada
vez mais — falou batendo em seu peito, bem em cima do coração.
Victor Hugo cessou a fala, olhando para o chão, pensativo.
— Quando recebi a ligação da Marlene, a mãe da Vitória, fiquei de certa
forma feliz. A gente se fala bastante, e ela me ligar era algo normal. Mas eu
percebi ao telefone que a sua voz estava diferente, que havia receio ali —
respirou fundo, e fechou seus olhos, fungando. — Quando perguntei o que
estava acontecendo, ela me disse que Vitória tinha sofrido uma parada
cardíaca, e que estava entre a vida e a morte, mas quando fui falar alguma
coisa, ouvi outra voz ao telefone, e Marlene... começou a gritar e chorar, foi
aí que entendi tudo. Ela não resistiu e eu também não. Me descontrolei,
comecei a gritar e quebrar tudo à minha volta...
Victor Hugo parou de falar e somente balançava sua cabeça em negação.
— Luiza, eu não sou uma má pessoa... — novamente levantou a cabeça,
e seus olhos se encheram de lágrimas, que escorreram pelo seu rosto, vi ali
uma fragilidade nunca vista antes, notei o quanto ele estava perdido em dores
e lembranças. — Eu faço o que posso, mas quando me apego, eu crio
esperanças... — cessou a fala, emocionado. — Eu não suporto quando as
perco, e quando me apego... eu desabo, perco o meu norte e me entrego, não
querendo lembrar, querendo que essa dor suma.
Me levantei e fui para mais perto dele, o abraçando.
— Vitória era muito parecida com Laura, e... relembrar tudo me fez...
surtar, e...
— Se acalme.
Victor Hugo começou a chorar copiosamente, e fiz o possível para
acalmá-lo, o abraçando forte com os olhos fechados. De repente senti uma
mão perto da minha, e notei Renata do outro lado fazendo o mesmo.
— Eu... só devia fazer o que meu coração manda e não me apegar,
mas... no fim das contas sou humano.
Passei uma das mãos em seus cabelos, e olhei para Renata, que estava
com a cabeça levemente abaixada, absorvendo suas palavras.
Não havia nada que eu pudesse fazer para confortar a sua dor, não agora.
Deixei Victor Hugo desabafar, e só me permiti ficar abraçada a ele, tentando
de algum jeito apoiá-lo.
Agora mais do que nunca posso dizer que eu cuidaria dele, e estaria
presente para tudo que ele precisasse...
“Bons sentimentos surgem quando menos esperamos...”
Passamos em sua casa, só que não ficamos nem dois minutos sequer.
Não entendi bem o motivo, mas não perguntei.
Ao voltarmos para o carro, fizemos um trajeto demorado para um local
que eu só havia visto pelos noticiários da cidade: o morro das aranhas.
— Por que estamos aqui?
— Quero te mostrar um lugar.
Depois que estacionamos, olhei para o local que Victor Hugo queria ir, e
digamos que não estava “calçada” para entrar nessa trilha.
— Acho que viu como estou... esse salto — apontei para o calçado.
— Vem cá... — Do nada o homem me pegou no colo, com uma
facilidade tremenda, e seguimos montada em cima dele.
Aquilo foi engraçado, confesso.
— Vamos andar só um pouco, ou melhor, eu vou andar.
Como dito a mim, fizemos uma pequena trilha, e cerca de dez minutos
depois ele me colocou no chão.
— Tome cuidado agora, por favor.
Entendi no momento que coloquei os pés no chão o motivo de ele ter
falado isso, já que vi uma grande depressão no morro, e se eu caísse aqui...
No ponto que estávamos, calculei ter uns 30 metros daqui até o chão, e
até mesmo andar por esse local era perigoso. Apesar disso, havia mais áreas
perigosas na região se subíssemos mais um pouco o morro, ainda assim tomei
bastante cuidado para não pisar em falso.
— Tá vendo esse lugar?
— Sim, o que precisa me mostrar aqui?
Victor Hugo estava de costas para mim e não me respondeu.
Não entendi aquele gesto, e até pensei que ele não tivesse ouvido a
minha pergunta, só que ao se virar, seus olhos miraram os meus, e ele chegou
mais perto.
— Por várias vezes vim aqui para tentar... suicídio.
Meus olhos quase saltaram para fora ao ouvir essas palavras.
Ele falou com tanta naturalidade que me assustei. Mas eu devia esperar
algo assim, já que ele mesmo disse que me revelaria toda a história que não
sei sobre ele.
— Por que...?
— Leia isso antes, por favor.
Entregou em minha mão um papel, que quando bati o olho vi que estava
bem gasto. Após desdobrá-lo, percebi que era um bilhete, não havia muitas
palavras escritas, e resolvi ler:
As coisas por aqui estavam estranhas, não vou mentir, e acho que tanto
Beatriz quanto Renata perceberam isso, e logo trataram de puxar assunto.
— Já que estão frente a frente, por que não me contam o motivo dessa
rivalidade? — Renata perguntou, e ambos se entreolharam.
— Arquimedes nos treinou, e como só teve dois alunos, era normal
competirmos. A gente ficava disputando território, porque no fim poderíamos
ficar no cargo que ele ocupava na época, mas isso não aconteceu — Daniel
falou.
— Verdade — meu chefe assentiu. — Eu nunca fui de estudar, e
Arquimedes odiava isso. Eu chegava atrasado nas aulas, não ia, entre outras
coisas. Sempre fui uma pessoa que fugia das regras que ele impunha, e acho
que Arquimedes gostava mais do Daniel por isso. Uma pena, porque sou
mais bonito e bem mais inteligente.
Sorri, e Daniel balançou a cabeça em desacordo.
— Eu sou inteligente e esforçado, você é só inteligente. Então ainda
estou na sua frente.
— Acho que não.
Durante os minutos seguintes eles ficaram debatendo entre si quem era o
mais fodão, e quando olhei para as meninas, elas deviam estar pensando o
mesmo que eu, que estávamos presas no colegial e eles estavam disputando
alguma mulher.
Apesar de tudo, estava sendo bem engraçado ver esse embate, porque...
eles não pareciam se odiar como pensei. É claro que há uma tensão ali, ainda
assim, dá para ver que o ódio não se faz presente.
Depois que um longo silêncio se instaurou no ambiente, resolvi abrir a
boca e já que Beatriz e Renata pregaram uma peça no meu querido chefe,
ainda falta a minha vez.
Ninguém mandou ser entrão...
— Daniel... sabia que Victor Hugo canta muito bem? — perguntei e
meu querido chefe desaprovou o comentário.
— Sério? — Beatriz perguntou, mas ela já sabia do meu plano
maquiavélico. — Por que não dá uma palinha pra gente?
— Infelizmente fico mais à vontade quando estou com um violão.
— Ah, não seja por isso, eu tenho um no meu quarto. Vou pegar agora!
— Minha amiga levantou-se e Victor Hugo me fuzilou com os olhos.
Que culpa tenho?! Nada foi armado...
— Você nunca falou que cantava — foi a vez de Daniel falar ao cruzar
os braços e Victor Hugo suspirou, um pouco desanimado.
Esse é o preço que se paga por confiar nas pessoas, tipo eu, pessoas que
não valem o prato que comem.
— É, tenho alguns segredos.
Depois que minha amiga chegou com o violão e o entregou, ele voltou-
se a mim.
— O que eu canto, gracinha? — perguntou.
— Me surpreenda! — pontuei.
— Se é assim, vou cantar 8 segundos, do Atitude 67.
Não... não... não... Precisa cantar olhando pra mim assim, inferno?
Depois que ele terminou, eu tive que bater palmas. Todos, na verdade.
— Bom, é isso. E não vou nem cobrar cover artístico.
— Olha... alguém está me surpreendendo hoje.
— E então, rival? Nisso estou na sua frente, né?
Pela primeira vez no dia vi Daniel sorrindo em nossa frente.
— Com toda a certeza do mundo, sua voz é tão boa quanto a do Diego.
Olhei para Renata, que me devolveu o olhar, desconfiada.
— Diego...?
— Meu amigo que ensinou algumas coisas para a Renata.
— Ele canta?! — Renata questionou, perplexa.
— É melhor dizer... cantava. Ele foi vocalista de uma banda durante um
tempo, anos depois algumas coisas aconteceram na vida dele... — Daniel
parou de falar. — Eu nem deveria ter falado isso. É assunto pessoal dele, mas
sua voz é bonita cantando. Parabéns!
— Foi bom deixar o clima mais leve, porque agora as coisas vão mudar
um pouco — meu chefe falou, e pela segunda vez Daniel sorriu, mas ele não
fez o mesmo.
— Qual vai ser a pegadinha?
— Esse é o problema. Não tem pegadinha.
Victor Hugo olhava com seriedade para Daniel, que até ajeitou a sua
postura. Pelo visto o que ele vai falar não é brincadeira.
— Daniel... — Victor Hugo começou e respirou fundo. — Não fui
sincero com você no passado, e preciso te esclarecer algumas coisas.
Agradeço se não me interromper.
— Prossiga.
— Eu sei de todo o seu passado, Daniel. Absolutamente tudo, e já tem
um bom tempo.
Silêncio.
Pensei que Daniel responderia, mas ele não o interrompeu.
— Como eu falei, não fui sincero, e eu me via na sua frente por saber de
tudo sobre você. Não importava para mim se um dia eu jogaria isso na sua
cara, ou algo do tipo, mas o simples fato de saber o que passou me deixava...
confortável para seguir em frente, essa é a palavra.
O rosto de Daniel criou um vinco, e percebi que essa palavra que foi
usada não o agradou nem um pouco.
— Preciso perguntar: em que sentido você ficou confortável em saber o
que minha mãe fez comigo? Se sabe mesmo o que aconteceu, como o que
sofri durante a adolescência ou até mesmo o que meus padrastos fizeram te
deixou... confortável?
Essa pergunta direcionada a ele veio cheio de veneno e me alarmei. Não
sei se usar a palavra confortável foi bom.
— O quanto sabe sobre mim, Daniel?
— Você é um arruaceiro que não gosta de trabalhar, desistente, o
deboche em pessoa, mas se acha demais porque nasceu em berço de ouro, e
jogava isso na minha cara constantemente.
— E nunca se perguntou por que eu fazia isso?
— Porque é problemático! Você tem complexo de Deus! — Cruzou os
braços, irritado.
— Você está certo. Enfim, usei a palavra confortável, porque eu me
pareço com você, e tentar imaginar a sua dor, de alguma forma me ajudava.
— Não nos parecemos! Minha vida não foi um mar de rosas igual a sua.
Victor Hugo olhou para mim e logo em seguida para Renata. Daniel fez
o mesmo, e logo percebeu a nossa expressão um pouco mais séria e triste.
— O que realmente está acontecendo aqui?
— Sabe por que eu vim até aqui, Daniel? No fundo nunca nos demos tão
bem, e a culpa sempre foi minha, assumo. No começo você tentou ser meu
amigo, mas eu sempre arrumava desculpas para diminuir ou menosprezar
você. Sempre fui um babaca, todos aqui sabem.
— Concordo — pontuou.
— Eu só acho que precisa me conhecer melhor, entender porque eu fazia
isso. Eu sei de todo o seu passado, e agora irei falar aqui um pouco do meu...
Não acredito que ele vai revelar para ele...
— Estou ouvindo.
— Com 3 anos de idade fui abandonado na porta da casa de Ana Maria e
Sérgio, a quem trato como meus pais de verdade. Eles conseguiram me
adotar um ano depois de eu ter aparecido.
Ao ouvir isso vi que o semblante de Daniel mudou um pouco.
— Quer ouvir algo engraçado agora...? Eu fui abandonado com um
bilhete cheio de erros ortográficos, e meus pais biológicos disseram nele que
eu fui um erro, e que estava doente. De fato, eu estava, mas foi descoberto só
depois. Eu tinha câncer. Leucemia, para ser mais exato.
Daniel estava focado no que ele dizia, e nem sequer piscava ou desviava
seus olhos do seu rival.
— Lutei contra o câncer por algum tempo, e quase sucumbi algumas
vezes, mas eu fui curado. Acho que essa foi a minha primeira vitória na vida
após nascer. A minha fase adolescente não conta muito, já que não fiz nada
de interessante, só aproveitei a vida como qualquer pessoa, mas eu queria
ajudar crianças que passaram o mesmo que eu, e assim acabei me tornando
voluntário nos hospitais das cidades em que trabalhei. Todas as cidades. Eu
animava as crianças, me caracterizava, tentava fazer elas sorrirem em meio às
dificuldades, só que me apeguei bastante a uma garotinha que se chamava
Laura, e quando ela morreu... uma parte de mim morreu junto, sabe?
Comecei a beber descontroladamente, e volta e meia estava largado na rua,
como você se acostumou a ver nos noticiários — deu um pequeno sorriso. —
Todas as perdas em minha vida me motivavam a... beber, e quando voltei
para Florianópolis, conheci uma garotinha chamada Vitória, e ela me
lembrava muito a Laura. As duas se pareciam bastante, e foi inevitável me
encantar com ela, só que infelizmente ela também perdeu a batalha para o
câncer, e isso me abalou mais ainda. Enfim, acho que pode enxergar de onde
está... — Victor Hugo levantou sua camisa, indicando aquela tatuagem. —
Marquei na minha pele o dia em que venci o câncer: 10/05/1992.
Daniel prestava atenção em Victor Hugo, que estava com a cabeça
levemente abaixada, pensando em algo.
— Na manhã que recebi a notícia que Vitória faleceu, quebrei todo o
meu escritório. Lembro que soquei a parede até sangrar, e quando voltei a
realidade estava na casa de Renata, e foi aí que percebi que na vida é preciso
desabafar, e contei a verdade para as duas. Mas... sabe o que é pior de tudo, é
que mesmo fazendo isso, ainda tenho um vazio enorme em meu peito, e tudo
é motivo para fazer alguma cagada. Daniel... — fez um pequena pausa,
pegando ar. — Eu penso em bebida 24 horas por dia. Todo segundo eu quero
beber, porque quando estou tonto eu simplesmente... ignoro tudo, e não há
dor. Não há absolutamente nada. Eu usei a palavra confortável quando falei
de sua história justamente por isso, por mais que eu possa parecer um
monstro, saber que seu passado foi difícil me confortava de alguma forma, já
que passei por muita coisa ruim, assim como você.
Não sei exatamente por quanto tempo ficamos em silêncio.
Daniel olhava bem no fundo dos olhos do meu chefe, e tentava encontrar
algum traço de hesitação em sua face, mas eu sei que ele não veria isso. Não
dessa vez.
— Eu não tinha respeito algum por você — Daniel falou. — Não via
qualidade alguma em uma pessoa que vivia a vida loucamente. Apesar de ser
extremamente inteligente, nunca pensei que isso te ajudaria ou me fizesse
admirá-lo de alguma forma... — parou, o analisando. — ...até hoje! Jamais
poderia imaginar algo parecido com isso que me falou, minha visão era
totalmente outra sobre a sua família, o que passou na vida... enfim. Sempre
pensei que era um garoto mimado quando via a maneira que abraçava seus
pais, o quanto era grudento com eles, mas agora eu posso ver o motivo disso,
e em seu lugar faria o mesmo. Então...
Daniel se levantou, e ficou na frente de Victor Hugo que permaneceu
sentado.
— Que tal começarmos de novo? — estendeu a mão e logo meu chefe
se levantou.
— Por mim tudo bem — apertaram as mãos e deram um pequeno
sorriso.
Isso até que foi fofo!
— Outra coisa: seu whisky acaba de ser confiscado.
— Não é para tanto, Falcão!
— É sim.
Sorri e logo Victor Hugo fez o mesmo, mas... ficou sem o whisky, claro!
Tirando a tensão que tinha se instaurado minutos atrás, foi bom terminar
assim, já que em seguida a conversa ficou mais calma, e os dois estavam até
de sorrisinhos um para o outro.
O mundo realmente dá voltas...
Agora sei que Victor Hugo veio para falar a verdade para Daniel, isso
ficou bem na cara, eu só não pensei que ele pudesse dizer tudo.
— Ainda falta uma coisa para te contar, porém tenho absoluta certeza de
que não vai gostar nada nada disso — falou, e Daniel logo cruzou os braços
sorrindo.
— Outra revelação?
— Sim. A bomba é que Renata é a sua fã..., mas está tendo aulas
particulares comigo. Novamente, estou na sua frente.
Todas as cabeças se voltaram para Renata, que ficou branca, sem reação.
Agora ele cavou a própria cova botando o nome do meu bebê na roda...
— É sério, Renata? — Daniel perguntou cruzando os braços.
— E-eu... bom, é que...
— Só tem um problema, Daniel — meu chefe suspirou de forma pesada.
— Tem alguns assuntos complicados, que não são da minha área, e não
consigo passar de um jeito que ela entenda, nunca fui um bom professor,
acho que sabe que sou desleixado por natureza.
Mas espera um pouco... é justamente o contrário!
Renata disse que está aprendendo muito com Victor Hugo, e que ele é
um excelente professor quando dá aula. Por que ele está falando isso?
— Que assunto?
— Essas coisas que gosta: análise fundamentalista, gráficos dos mais
variados tipo, coisa de RH... você sabe bem que odiava esses assuntos
quando Arquimedes nos mostrava.
— Bom... eu posso ajudar, se quiser, Renata.
Victor Hugo deu uma piscadinha para ela, e logo minha amiga fingiu
demência (como a boa atriz que é), e retribuiu o sorriso.
— Eu ficaria muito feliz! O estrupício é bem preguiçoso para explicar
umas coisas.
— Estrupício?! — Daniel repetiu, se divertindo.
— Luiza e ela me chamam disso. Fazer o que... — deu de ombros.
Esse homem vive me surpreendendo...
O almoço se estendeu normalmente e tivemos assunto para tudo.
Quando percebi já se passava das 17h.
— Precisamos ir — falei. — Temos que levar o bibelô embora, se não
ela vai morar por aqui.
Renata me lançou um olhar de dó. Após nos levantarmos, os homens
ficaram frente a frente de novo.
— Obrigado pelo dia, foi bem proveitoso — meu chefe disse.
— Eu que agradeço pela sinceridade.
— Agora falta se beijarem, sabe? — provoquei, e logo fizeram uma cara
de desprezo.
— Nisso eu sou bom, né? — Do nada veio para mais perto e tomou
minha boca, se Daniel não sabia que poderíamos estar juntos, agora teve uma
leve certeza.
— Acho que formam um belo casal! São dois malucos. — Daniel
cruzou os braços e eu fiz a egípcia. — Agora sou eu quem preciso fazer um
pedido a você: por favor, mantenha Luiza longe da minha casa, ela me
atrapalha nas piores horas perguntando o que fazer para te suportar na
empresa ou conversando fiado com Beatriz.
Apontei o dedo do meio para Daniel que sorriu.
Nos despedimos e saímos da casa dos dois, mas tinha certa pessoa que
não parava de olhar para o meu homem,...
— O que foi, baixinha?
— Bom, eu queria agradecer por aquilo que fez.
— Não foi nada. Sei que no seu coraçãozinho Daniel sempre estará
presente, então dei o meu jeito de fazer com que ele te ajude em algumas
coisas também.
— Estou realmente sem palavras. Não sei o que falar.
— Mas eu sei... — Segurou seus dois ombros. — Aprenda tudo comigo
e com ele, e torne-se a profissional que deseja no futuro. Você merece e
acabou de se tornar a minha irmã mais nova!
É difícil não se apaixonar pelo jeito dele...
— Vou te dar a honra de me considerar a sua irmã, e vou me tornar a
melhor!
Depois que meu amor entrou no carro, fiquei encarando aquele homem
com os braços cruzados.
— Victor Hugo Avelar... — falei e logo um sorriso duvidoso apareceu
em seu rosto. — Vou te pedir um pequeno favor: não seja tão romântico e
fique cantando aquele tipo de música para mim.
— Me dê um bom motivo para isso — me olhou de um jeito divertido.
— Porque se eu me acostumar, vou querer que faça essas coisas com
muito mais frequência do que seja possível!
“Nas várias circunstâncias em nossa vida precisamos tomar uma
decisão, e o momento é chegado...”
Percebi que o Victor Hugo alegre e debochado havia voltado com tudo
na empresa.
Ao decorrer do mês, tudo voltou ao normal, até mesmo as nossas
escapadinhas periódicas na empresa. O maior problema é que isso acabaria,
já que a partir de amanhã estou de férias...
— Preparada?!
— Para o que exatamente?
— Ficar longe de mim — abriu aquele sorrisinho costumeiro. — Pensei
até que cancelaria suas férias.
Não me contive e comecei a rir com seu comentário.
— Praticamente não tirei férias desde que comecei a trabalhar aqui, o
que te faz pensar que... um homem mudaria isso em minha cabeça? Ainda
mais você que mais me atrapalha do que me ajuda aqui dentro — caçoei.
— Ultimamente você anda muito abusadinha, não acha...? — chegou
mais perto, mordendo o lábio inferior.
— Força do hábito, mas preciso ser sincera: no fundo aprendi muito
trabalhando com você — falei, inabalável.
— Sério?
— Sim, você é um 0 a esquerda, então como sempre digo, tenho que
fazer basicamente todo o seu trabalho. Um lado bom tinha que ter, não acha?
— Para mim já chega! — disse e logo tomou a minha boca. — Às vezes
prefiro você calada!
— E eu prefiro você duro... — arfei e nem preciso dizer o que aconteceu
em seguida.
Nos minutos seguintes o seu escritório mais pareceu uma sauna, e em
breve eu ficaria sem roupa.
O nosso pega foi se intensificando, mas o meu lado anjinha deu às caras
e me lembrei de algo, não era nada bom ser demitida por atitudes obscenas
um dia antes das férias.
— Você tem uma apresentação em poucos minutos, e Luigi está aqui, se
eles nos ver... — tentei me esquivar, mas ele me segurou.
— Gracinha... você vem, me provoca, praticamente joga gasolina em
todo esse meu fogo por você e quer parar logo agora?
— E quem disse que eu quero...? — falei, olhando para o meu relógio.
— O problema é que a apresentação será em 15 minutos.
Victor Hugo fez cara feia e olhou na direção da janela, visivelmente
chateado.
— Para que marcar uma coisa dessas para às 14h? — falou, se
desvencilhando. — Outra coisa: odeio reuniões!
— Sério?!
— Acho que sabe.
— Percebi quando fez outra pessoa te apresentar.
— Ah, mas me fala: foi um máximo, né? Eu dei um show depois!
Lembro até hoje da Margarida falando que odeia a palavra sexo.
Comecei a rir.
Estava sentindo falta desse seu lado safado, pervertido e engraçado.
— Claro, foi um espetáculo.
— Foi é? — chegou mais perto colando nossos corpos, começando
outro showzinho...
— Nem vou culpar o vento por essa bagunça, se foi eu que deixei a
janela aberta então é minha cuuuulpa. E já que entrou em minha vida, leve é
toda a sua. Quero aquele beijo de varanda e a lua de testemunha, eu tô até
com ciúme, o vento deve estar usando o seu perfuuume...
Eu sabia que se o velho Victor Hugo voltasse, as músicas também
viriam no pacote, e dessa vez a escolhida foi Beijo de Varanda, do Bruno e
Marrone.
— Suas músicas...
— São todas para minha inspiração, Luiza Goulart — tocou meu queixo.
— Alguém se tornou um homem romântico — pontuei.
— Mais safado do que romântico, vamos deixar claro.
Pelo jeito nos beijaríamos de novo e o ciclo recomeçaria, mas... preciso
ser a estraga-prazeres e logo tomei distância do homem, era muito perigoso
essa reaproximação.
— Se prepare para a reunião! Depois a gente finaliza esses assuntos
inacabados...
— Nasci preparado, gracinha. Daqui alguns minutos estarei lá.
— Então eu já vou. Não quero que pensem que estamos nos agarrando.
— A empresa toda sabe!
Pensei em suas palavras e ele estava coberto de razão.
— Então... se a empresa toda sabe... — foi se aproximando e logo
recuei.
— Melhor se afastar, do contrário vou pular no seu colo! — falei rindo,
mas já indo em direção à porta.
Meu chefe não falou nada, somente sorriu, me observando com as mãos
nos bolsos.
Estava com bastante saudades daquele sorriso...
Os diretores, Luigi e eu estávamos na primeira fila à espera da
apresentação do meu chefe safado.
A pauta da vez era comentar sobre o crescimento da GCR, e maneiras
para captar novos investidores. Estava bastante confiante no que Victor Hugo
falaria, porque colhi todos os dados, e dessa vez ele me ouviu e estudou a
pauta bem antes.
Ainda tinha algo diferente dessa vez, já que uma emissora de televisão
iria filmar tudo. Luigi queria estampar na capa de todos os jornais o
crescimento da empresa, e para isso resolveu inovar, o que de fato julguei ser
uma boa ideia. Victor Hugo fala muito bem em público, e isso não será
problema.
Ultimamente ando bem feliz com trabalho que estou executando na
empresa. Aprendi muita coisa nova com o velho Victor Hugo, já que precisei
me antenar de muita coisa que não tinha tanta familiaridade. Foi tipo o que
aconteceu com Beatriz na Argo’s, a única diferença foi que no meu caso eu
corri vários riscos por causa do meu chefe...
E por falar no pecado, dessa vez ele chegou no horário. Depois que nos
viu acenou levemente, mas deu uma pequena parada antes de chegar ao
palco. Não entendi aquele gesto, mas notei que o rosto dele estava um pouco
estranho, e também que ele piscava demais.
Logo ouvi alguns burburinhos do meu lado, e Luigi parecia ter visto o
mesmo que eu, já que seu cenho franziu automaticamente.
Depois de ficar naquela posição alguns segundos, ele logo foi ao palco
pegou o microfone e... caiu.
Me alarmei e fiquei de pé, mas ele se recompôs e se levantou
rapidamente.
Ele não pode ter bebido algo nesse meio tempo...
— Eu estou bem... — tentou soar engraçado, e logo foi na direção do
computador. — Bom, vamos falar agora de tudo que é interessante sobre a
empresa.
Seus olhos estavam caídos e sua voz um pouco diferente.
— O que tá acontecendo com você, Victor Hugo? — Luigi gritou do
meu lado, e isso atraiu a atenção de muita gente que estava no auditório.
— Nada, chefe. Estou bem, e... — Quando ele foi se apoiar na cadeira
ao seu lado, ele caiu, e ficou lá durante alguns segundos.
Eu não sabia o que fazer, como iria proceder, mas resolvi agir por
instinto e fui até onde ele estava, e quando cheguei mais perto vi que ele
parecia não estar aqui no mesmo ambiente. Estava assustado, não entendi.
— Eu estou farto de você chegar bêbado ou de ressaca na empresa! —
Luigi se levantou gritando.
Meu chefe não gostou de ouvir isso.
Victor Hugo não parecia estar bêbado, não agora, e tem mais, não teria
dado tempo de ele chegar a esse nível alcoólico pelo tempo que deixei sua
sala. Mas ele estava diferente, um pouco aéreo.
— Eu não estou bêbado! — gritou de volta.
— Ah, não?! Então se levante sem a ajuda da Luiza.
Olhei na direção dele, e logo Victor Hugo acenou a cabeça.
— Tudo bem, Luiza — falou baixinho.
Com muita calma, ele se levantou, e permaneceu de pé alguns segundos,
mas ele parecia estar flutuando, indo de um lado para o outro e... caiu
novamente.
— Pra mim já deu! — O homem veio a passos largos onde estávamos.
— Você foi de longe a pior contratação que fiz! Não me importa se está
dando resultados ou não, sua conduta é uma vergonha para mim e para todos
que trabalham aqui!
— Quer falar de vergonha mesmo?! Não foi eu quem contratou um CEO
corrupto e pedófilo para trabalhar aqui! Muito menos fiz acordo com eles! —
Victor Hugo falou bem alto, e ao olhar a plateia vi que eles ficaram chocados
ao ouvir isso.
— Que história é essa?! — Amadeu se levantou, olhando para Luigi,
que havia ficado pálido instantaneamente.
— Vocês não sabem?! — Victor Hugo falou tentando se levantar, mas
novamente foi ao chão. — Pelo jeito o problema aqui nunca foi uma pessoa
só — completou.
— Você é desprezível! Você acha que ajudar criancinhas com câncer
vai melhorar o lixo de homem que é?
Meu coração gelou ao ouvir essa frase, e ao olhar para Victor Hugo vi o
choque estampado em sua face.
— Você não é um afortunado por ter lutado contra o câncer; é por dó
que você faz esse gesto nos hospitais que é voluntário! Você é somente um
preguiçoso que sai mais cedo da empresa e usa elas como desculpa.
Meu chefe não falou nada por um tempo, só focou em se levantar, e logo
apoiou-se na mesa em sua frente.
— Eu uso crianças como desculpa?! — debochou. — Eu tenho pena de
você...
— Levou tempo, precisei até comprar informações de algumas pessoas,
sei tudo sobre você, Victor Hugo. Sua remissão, suas visitinhas no hospital, o
motivo de ser adotado — balançou a cabeça. — Bem que Luiza me disse
sobre você...
Luiza?!
Ao ouvir meu nome fiquei em choque. Jamais revelei esses segredos
para Luigi, e ele falar dessa maneira...
Automaticamente olhei para Victor Hugo, e o brilho nos seus olhos
havia sumido totalmente. O desprezo que ele me observava me machucou, e
eu simplesmente não falei nada.
— Eu devia te demitir agora!
— Não precisa! Eu mesmo me demito!
Acho que ninguém esperava essa reação, muito menos Luigi.
Victor Hugo simplesmente saiu da sala de reuniões com certa
dificuldade e sumiu das nossas vistas...
Não perdi tempo, e logo gritei com Luigi: — Por que citou meu nome?
Qual o seu problema?
— Falei seu nome por causa do modo que ele se comportava na
empresa. Você me fez várias queixas no começo. Sobre os assuntos pessoais
eu mesmo fui atrás e descobri o que ele faz... fazia, sei lá, eu não devo
satisfações para você!
Uma raiva crescente se apossou de mim, e quando me preparei para falar
algo, eis que ele foi cercado por vários diretores do conselho.
— Por que escondeu algo tão importante da gente? — Amadeu
perguntou com os braços cruzados.
— Eu sou o dono da GCR! Não preciso dar satisfações!
— Bom, agora precisa... — ele indicou com a mão e... a emissora de
televisão filmava tudo!
Por um tempo havia me esquecido disso, mas tudo foi transmitido em
rede nacional, e isso sim trará um impacto negativo para a empresa.
— Vou entrar de férias, mas quer saber: amanhã mesmo vou pedir
demissão!
— Não vai! — Daniel retrucou na hora. — Você não tem culpa de nada.
Mesmo se o dono da empresa mencionou seu nome, não foi você quem
revelou isso para ele. E outra coisa, é melhor esfriar a cabeça, se isso foi
televisionado, as implicações vão todas para esse tal Luigi. Victor Hugo não
iria se perdoar se pedisse demissão porque o defendeu. Aprendi algo bem
importante nesse ramo: Nunca faça nada de cabeça quente!
Estava no carro de Daniel, fomos nos lugares que pensei que poderia
encontrar meu chefe, mas não o vi em lugar algum.
Rodamos boa parte da cidade por algumas horas, e não vimos sinal de
Victor Hugo, até mesmo voltei na casa dele e nada. Toquei a campainha da
vizinha, e ela disse que meu chefe entrou na casa, mas rapidamente saiu em
seu carro.
— Daqui a pouco vai escurecer, Luiza. Se acha que ele pode estar em
outro lugar, é bom que lembre agora. Pela noite vai ficar mais complicado
achar ele.
Fechei meus olhos e me espreguicei no banco do passageiro.
Para qual local ele poderia ir se estivesse irritado com a vida e...
Paralisei olhando para Daniel.
— Agora você está me assustando olhando para mim desse jeito.
— Meu Deus!
— O que houve?
— Espero que eu esteja errada, mas precisamos ir imediatamente para o
morro das aranhas.
Como era caminho, passei em minha casa. Troquei a roupa voando, e
peguei o primeiro tênis que vi pela frente. Indo de salto eu iria perder muito
tempo, e Daniel não sabe o local exato que Victor Hugo me mostrou.
— Precisamos chegar rápido. Alguns pontos daquele morro no escuro
ficam impossíveis de serem vistos, e lá é bastante perigoso — falou.
— Vamos! Pise nesse acelerador e vá o mais rápido que conseguir!
Depois que desci uma parte do morro das aranhas, vi uma figura
conhecida à nossa espera.
— E aí, Falcão?
Durante um tempo ele não falou nada, só me fitou com curiosidade,
alternando seu foco entre mim e Luiza.
— O que tava fazendo aí? — perguntou com certa impaciência.
— Me libertando — dei um beijo na testa de Luiza, e parece que esse
gesto juntamente com as minhas palavras fizeram seu rosto se suavizar.
— Então você não veio para...
— Pular?! Não! Vi que é um pouco alto, sabe?! Fiquei com medo — dei
uma piscadinha e tomei um belo tapa de Luiza.
— Brincadeira tem limites! Vamos sair daqui que tá ficando escuro.
Percorremos a trilha cuidadosamente, e quando dei por mim já
estávamos entrando em seu carro, e saindo do morro.
— Foi necessário, Daniel — disse no automático, sem fazer nenhum
tipo de brincadeira. — Preciso dar um passo de cada vez, e esse foi o
primeiro. O segundo é parar de beber, e o terceiro é fazer terapia, qualquer
coisa que me ajude a ficar estável.
— Luiza me contou que na apresentação de hoje você ficou tonto e caiu,
mas que não parecia estar bêbado.
— Sim. Tomei alguns remédios por conta. Misturei Diazepam com mais
um e acho que o efeito colateral me deixou...
— Aéreo. Isso se chama vertigem.
— É, deve ser. Não bebo desde que fui à sua casa — sorri para Luiza,
que retribuiu.
— Então você já está no caminho certo.
Depois que Daniel ligou o carro, fomos para a casa de Luiza, a pedido
dela.
Não falamos muito, mas trocamos algumas palavras entre nós. Daniel
pelo jeito continua um homem sério na maior parte do tempo, e se realmente
um dia ficarmos amigos, irei pegar muito no pé dele, com respeito.
Ou não...
Após chegarmos, Luiza e eu descemos do carro, e logo voltei-me ao
meu eterno rival.
— Obrigado por ajudá-la a me encontrar, Daniel.
— Não precisa agradecer. Os dois: se cuidem. Por favor, me atualizem
do seu progresso — disse essa última frase e logo seu carro arrancou, sem me
dar direito a resposta.
— Aparentemente Daniel Falcão gosta de mim. Pouco, mas gosta —
sibilei.
— Está no começo, mas ao que parece ele está te dando uma chance
sim. Acho que ele se identifica com o seu passado, mais do que pensa.
Depois que entramos, ela foi imediatamente atender uma ligação.
Pela maneira que falava, percebi que o seu papo era com Renata, e o
assunto era eu, pra variar.
Depois que ela desligou, sentou-se no sofá, me analisando.
— Meu bibelô estava muito preocupada com você, me ligou várias
vezes para saber se tinha te encontrado.
— Sabe, eu gosto muito dela.
— Eu também. Mas... — Luiza deu um pequeno sorriso. — Ela me
xingou bastante por eu não ter retornado enquanto estava no carro com você.
Essa é a Renata, quer tudo pra ontem e não consegue esperar.
Sorri.
Não estou acostumado a conviver com pessoas que se importem comigo.
Antes de voltar para Florianópolis, eu sabia que meus pais tinham esse
sentimento por mim, e também as crianças que ajudei no decorrer dos anos.
Agora é diferente. Tenho mais pessoas ao meu redor, e isso está me
ajudando bastante. Nem preciso dizer que foi Luiza quem começou esse
processo. Ela abriu as portas do meu coração, literalmente.
Sempre escondi o que sentia, e guardava para mim todas as dores que
acumulei em minha jornada, mas agora sinto que estou no caminho certo para
fazer novas amizades, e de certa forma esquecer uma parte dos meus traumas.
— Você está muito pensativa — falei, e ela desviou seus olhos dos
meus.
— Eu estava conversando com Daniel, e estou cogitando pedir
demissão.
— Luiza, eu vou falar a mesma coisa que com certeza ele te falou: você
não tem culpa do que aconteceu.
— Como sabe?
Sorri.
— Simples, temos pensamentos iguais, e eu tinha certeza de que ele
diria o mesmo que eu. Quando Luigi citou seu nome, fiquei com bastante
raiva, e te culpei por tudo na hora, mas depois que esfriei minha cabeça
percebi que você não diria algo tão pessoal a ele. Não culpo Luigi, eu no
lugar dele também iria querer saber o motivo da pessoa mais importante sair
cedo da empresa alguns dias, mas a maneira que ele expôs aquilo na frente de
todas as pessoas, e também colocando as crianças no meio daquela forma...
Respirei fundo. Aquilo sim me irritava profundamente.
Falar que eu ajudo as crianças por dó e dizer que não sou um afortunado
por lutar contra o câncer e vencer arrebentou com a minha cabeça, e acabei
jogando tudo pro ar.
— E você se arrepende?
— Nem um pouco. Eu estou cansado, Luiza. Tem vários anos que ando
desmotivado, sem vontade alguma para novos desafios, então não vou ficar
batendo nessa tecla, vou fazer agora o que me faz feliz.
— E o que te faz mais feliz?
— Estar ao lado das crianças — sorri, e o seu sorriso refletiu ao meu. —
Sei lá o que posso fazer além de ser um voluntário, eu tenho muito dinheiro
guardado, posso viajar, estar presente, não sei.
— É um gesto muito bonito.
— E ainda tem você — pousei minha mão em seu rosto, admirando a
mulher incrível em minha frente. — O meu melhor presente está bem aqui, e
eu serei um homem bem tapado se não der valor a essa mulher maravilhosa.
— Sou o seu presente, é? — mordeu o lábio inferior.
— Sim, Luiza.
— Que tal... desembrulhar ele?!
Posso dizer que é extremamente complicado ficar na presença de Luiza
Goulart, essa mulher sexy e safada que mexe com a minha imaginação em
todos os sentidos.
— Você não se cansa de ser safada?
— Não. E você piora tudo quando me olha assim.
— Assim como...? — provoquei.
— Acho que sabe... — Veio por cima do meu corpo, colando sua boca
na minha...
Ter o seu corpo sobre o meu e sentir os efeitos que transbordam em meu
coração ao mínimo gesto que ele tem comigo me deixa nas nuvens.
— Quero só você... — beijou minha testa. — Somente você... — passou
a língua pelo meu pescoço. — Sempre você... — terminou tomando os meus
lábios, e... eu já não sabia de mais nada.
Nesse ponto eu já estava com medo de perder esse homem, estávamos
envolvidos de uma forma tão intensa.
Nossas roupas estavam em um lugar qualquer do chão agora, e eu só
pensava em quão boa era a sensação de ele estar dentro de mim.
— Eu te amo, Luiza — falou, e sem direito de resposta tocou meus
lábios. Em seguida acariciou meu rosto. — Você é linda, forte, amiga. Eu não
sei se mereço alguém assim.
Novamente tomou a minha boca, e logo o aninhei em meu corpo, não
querendo ele longe de mim um segundo sequer.
Não pensei que um sentimento crescesse tanto em um período tão curto,
mas gosto de ser surpreendida, e agora me pego perdidamente apaixonada
por esse homem.
— Só fique comigo...
— Eu vou, também te amo! — mergulhei minha língua em sua boca, e
enquanto ele se movimentava dentro de mim, tentei esquecer tudo e focar
somente naquele homem que tornou-me uma melhor versão de mim mesma.
Pude sentir inúmeras sensações durante o tempo que o sexo continuou.
Agora sei o que é fazer amor com alguém, e é mil vezes melhor do que
transar por transar.
Victor Hugo me mostrou um novo mundo, e aprendi muito com as suas
atitudes. Nunca fui tocada dessa forma por nenhum homem, e na realidade
jamais me permiti experimentar tal sensação.
Sempre fui uma mulher decidida quando sexo estava envolvido, e jamais
acreditei que poderia sentir em minha própria pele o que Beatriz sempre falou
para mim. Na época não sabia se ela era uma afortunada ou uma pessoa
comum ao sentir aquelas sensações, o amor de Daniel, e outras coisas.
O que estou tentando desesperadamente dizer é que estou feliz! Isso está
transbordando meu ser, e a cada gesto eu me sinto melhor comigo mesma, e
sei que no fundo precisamos de alguém que nos complete. E eu achei meu
par.
Agora posso afirmar com toda a certeza que acredito em recomeços...
“Quem não gosta de uma reuniãozinha animada?!”
Estou ansiosa.
Hoje é sábado, mas toda a turma estaria reunida.
Toda!
Sim, acho que estou um pouco empolgada em reunir os dois CEO’s que
fizeram da minha vida um inferno, juntamente com a Beatriz e meu bibelô.
Se alguém dissesse que isso aconteceria mais de uma vez, eu iria rir na
cara da pessoa.
— Eles chegaram! — Victor Hugo falou e logo foi atendê-los, afinal a
casa era dele.
Ajudei meu homem a fazer faxina antes deles virem. Ele parecia
bastante animado, e mesmo agora desempregado, ele não está parado, já que
agora está se exercitando, começou a terapia essa semana, e parou de beber.
Por enquanto não houve deslize por parte dele, e o estou controlando
bem de perto.
Depois que Beatriz, Daniel e Renata passaram pela porta, fui para a sala
cumprimentá-los.
— Gostei daqui — Daniel falou. — É bem simples e calmo, ao contrário
do dono que é bem complexo e espalhafatoso.
— Eu também gosto de você, Daniel.
O que não mudou em nada entre os dois continua são as provocações
constantes.
— Obrigada por aceitarem o convite, e se virem alguma sujeira pela
casa, culpem esse homem aqui — apontei para Victor Hugo. — Ele fez
faxina!
— Meu rival fez faxina?! Preguiçoso do jeito que é? — Daniel
ponderou.
— Olha aqui, Falcão...
As meninas me olharam e reviraram os olhos, e como se soubessem o
gesto me acompanharam na direção da cozinha.
— São duas crianças! — Beatriz sibilou, me ajudando com os pratos.
— Minha mentalidade é mais madura que a deles — Renata falou. —
Acho que até a da Luiza é.
Fechei a cara e quase mandei meu bibelô ir pastar.
— Já entendemos senhorita adulta demais pra sua idade, agora me
ajude aqui.
Depois que nos juntamos, pegamos tudo e levamos para a sala. Daniel e
Victor Hugo estavam lá discutindo, mas pelo jeito o assunto é esporte, porque
envolve bolas, e disso não entendo muito. Duvido que estejam falando das
bolas deles...
Enfim, tudo estava preparado, e poderíamos cear tranquilamente.
— Ahh, para com isso. Os Bulls nunca foram melhor, você tem merda
na cabeça, Daniel?
Ou nem tanto...
— Crianças... o almoço está pronto.
Ambos ficaram se encarando com a cara fechada: um com os braços
cruzados e outro com as mãos nos bolsos.
— Isso está longe de acabar, Victor Hugo!
— Pode apostar, Falcão!
Depois do fim da discussão, pudemos comer e conversar tranquilamente.
O foco agora era em Renata, o problema é que a resposta à pergunta que
fizeram a ela foi um tanto arriscada.
— Ah, baixinha, é lógico que sabe quem é o melhor professor. E nem
adianta vir falando pra mim que é o Falcão, ser fã dele é uma coisa.
— Já disse que não tenho preferidos — disse, impassível.
— Sou eu, mas ela não vai dizer, Victor Hugo. Estamos na sua casa, ela
te respeita.
Comecei a rir e Beatriz fez o mesmo.
— Uma ova! Se ela não trabalhasse com Beatriz, ela diria a verdade.
— Isso é indiferente para mim! — Olhou para os dois com ar de
superioridade, e não entendi bem. — A pessoa mais poderosa aqui é a
Beatriz, depois Luiza e eu, só depois... os homens. Adoro vocês, meus
professores, saibam disso, mas agora são donos de casa. Deixem os assuntos
de negócios para quem está no ramo.
Beatriz não se segurou e gargalhou, e até mesmo eu me desconcentrei
depois dessa carcada que Renata deu em ambos.
— Você merece outra promoção, Renata — falou e logo ela sorriu.
— Viu isso, Falcão? Olha do jeito que elas nos tratam!
— Realmente, eu tinha mais valor, agora... são coisas assim que recebo
em casa.
— E o drama? Para mais não?! — Beatriz falou e Daniel se calou.
— Ouvi boatos que ficaria estudando um tempo para montar uma
empresa, por que ainda não vi a Daniel Falcão Entertainment criada? —
Victor Hugo questionou.
— Com esse nome jamais verá! Mas sim, estou estudando alguns
assuntos e acho que ano que vem vou abrir meu próprio negócio.
— E por um acaso não precisa de um CEO? — deu uma piscadinha
nada discreta.
— Sim. Eu mesmo!
— Posso ser o dono então, e você o meu CEO. Não me importo. Mas se
quiser me contratar, só preciso sair mais cedo alguns dias e ter um horário
flexível de trabalho.
Sorri. Esses dois...
— Obrigado por se oferecer para o cargo, mas a reposta é não!
— Ah, agora gostei da ideia. Seria excelente voltar a trabalhar com uma
pessoa abaixo de mim no quesito inteligência!
— Foi uma péssima ideia vir em sua casa!
— Mas como está aqui, vai me ouvir...
E lá se foram o pouco tempo de paz que restava, pois a mascara de
adulto deles caíram e logo voltaram aos comportamentos habituais de
meninos mimados. Mais pareciam irmãos na realidade.
— É por isso que estou solteira! — Renata apontou para ambos, que
voltaram a discutir. — Eu sou capaz de matar um homem se ele ficar no meu
pé! Eu sempre tenho que ter a razão no fim das contas.
— Bibelô. Isso é porque ainda não encontrou o amor verdadeiro. A
gente fica meio tapada mesmo, não é, Beatriz?
— Sim... — fez uma carinha de coitada. — Não temos escapatória.
— Credo! Prefiro minha solteirice!
— Beatriz... ando notando Renata muito pra baixo ultimamente.
— Eu também — respondeu.
— Hã?!
— Ela precisa de um pau pra escalar — pontuei.
— Podemos levar ela em uma casa de massagem.
— O quê?! — os dois homens perguntaram ao mesmo tempo, e aquilo
me deixou surpresa.
— Foquem na conversa de vocês, isso aqui é assunto de mulher —
Beatriz falou.
— Casa de massagem é assunto de homem — Victor Hugo falou.
— Concordo — Daniel assentiu.
— Como eu disse... continuem a discussão de vocês, estamos orientando
a Renata.
— Não! Agora preciso dos meus professores ao meu lado. Podem entrar
no assunto — sorriu de forma amável e os dois se entreolharam, mas
voltaram-se a ela com desdém.
— Você não foi capaz de falar quem era o melhor, então se vire sozinha
— Victor Hugo falou.
— Daniel...? — Renata perguntou, e logo ele suspirou.
— Gosto muito de você, mas confio em seu potencial, é esperta demais,
então... se resolva com elas.
Foi engraçado ver os dois a deixando na mão.
— Homens...
— Qual era o assunto da pauta mesmo...? — perguntei e Beatriz me
lançou um sorrisinho malicioso.
6 MESES DEPOIS
2 ANOS DEPOIS