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©Kristel Ralston 2020

Estava Escrito nas Estrelas.


Série Maktub. Livro 2.
Todos os direitos reservados.
As obras da autora têm direitos de autor e estão registadas na
plataforma SafeCreative. A pirataria é um crime e é punível por lei.
N. 2006014207419.
Capa: Karolina García Rojo ©Shutterstock.
Tradutora: Magda Romero J.
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eletrónico, mecânico, fotocópia, gravação ou outros métodos, sem a
prévia e expressa autorização do proprietário do copyright.
Todos os personagens e eventos desta novela são fictícios,
qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.
Índice
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
EPÍLOGO
SOBRE A AUTORA
"O teu objetivo na vida é encontrar um propósito e
dedicar-te a ele com todo o teu coração"
Buda
PRÓLOGO

Tobrath, Reino de Azhat, Médio Oriente.

O caminho polvorento de uma zona afastada da cidade estava


cheia de jovens a animarem os seus corredores favoritos. A areia
misturava-se com o asfalto de um terreno que constava num projeto
para dentro de um ano se converter na zona mais exclusiva de
Tobrath. As obras realizavam-se durante o dia, mas durante a
madrugada eram os jovens quem utilizavam a zona para corridas de
carros.
—Aos seus lugares, prontos… Partida! —gritou um rapaz de
vinte anos na linha de saída agitando uma bandeira preta e branca.
Tahír pressionou o acelerador do Ferrari a todo o gás e o corpo
agitou-se com o impulso da velocidade. A adrenalina fluía-lhe pelas
veias, enquanto mantinha a concentração.
Tinha de ganhar esta corrida de duas voltas. Sentia gotas de
suor na testa. O corpo estava em tensão. Na mente só tinha a ideia
de ganhar. A aposta era apenas trocos para ele, mas estava a
competir contra Bassil Ashummi, o seu rival na escola e em outros
âmbitos.
No verão anterior, Bassil conseguiu levar para a cama a moça
com quem Tahír tinha intenções de conquista, e isso corroía-o por
dentro. Na aula de debate político, o loiro de olhos azuis costumava
perder o pódio face aos eloquentes argumentos de Tahír, salvo nas
três últimas semanas em que faltou às aulas. Era filho de um
diplomático canadiano e costumava ausentar-se de vez em quando,
principalmente quando o pai tinha viagens para fortalecer a imagem
do Canadá como país unido e de grandes famílias. Os rapazes só
tinham este último ponto em comum: preservar uma imagem. Fingir
perante os outros.
—Que porcaria de carro! —gritou Tahír dando murros ao volante
quando o Ferrari pareceu aquecer demasiado e perder velocidade.
Estava a ponto de virar para a direita para sair do caminho e
manter-se em segurança, quando outro dos condutores da corrida
ilegal chocou contra ele. Tahír agarrou-se ao assento quando o
Ferrari girou duas vezes e caiu com o tejadilho no chão. Quando o
cérebro registou o cheiro da gasolina, magoado e atordoado, ele
deu um pontapé com força na porta. Não abriu.
—Fogo! Extintores! —gritou alguém que estava por perto, mas o
príncipe já tinha visto as chamas a darem de si.
Desesperado, lembrou-se que costumava guardar no porta-luvas
uma arma e uma faca para autoproteção, encontrou um gato
hidráulico pequeno. Ele tirou-o com rapidez e começou a bater no
vidro da janela até parti-lo.
Tahír tentou tirar o cinto de segurança para se arrastar e se
salvar. As mãos estavam arranhadas e possivelmente tinha uma
ferida na testa, porque a quantidade de líquido que sentia a escorrer
pela cara não era normal. Passou as costas da mão. Vermelho. De
facto, ele estava ferido. Virou-se e soltou um gemido de dor. A
maldita costela.
—Al-Muhabitti! —gritou a inconfundível voz de Bassil—. Os teus
guarda-costas estão aqui! Vão ajudar-te a sair!
«Demónios.» O que o Tahír menos queria era ver o seu principal
adversário a salvar-lhe a pele. Nem louco ia permitir isso. Pelo canto
do olho, viu vários pares de sapatos. Havia gente à volta do carro e
gritavam. Sentia como o Ferrari se movia com a força das pessoas a
tentarem dar-lhe a volta para lhe facilitar a saída. Se conseguissem
o mais provável é que sentissem mais pena dele, porque estava
ferido.
—Eu posso sair sozinho. Afastem-se do maldito Ferrari! —gritou
com prepotência antes de conseguir gatear pelo asfalto árido.
Bassil ignorou o que ele dizia e agarrou-o pelos braços,
ajudando-o a pôr-se de pé. Tahír afastou-o com um empurrão e
olhou para ele com raiva.
—Mas és parvo, Al-Muhabitti? —disse o rapaz passando as
mãos pelo cabelo grosso com tons de raios de sol.
—Vai à merda, Ashummi. Estamos empatados.
Bassil torceu o nariz e quando compreendeu ao que se referia
conteve a vontade de lhe dar um murro.
—Ouve bem, principezinho —disselhe ao apontar-lhe o dedo
indicador perante o olhar atónito das pessoas ali presentes, na
maioria moças que faziam fila para ser, nem que fosse por uns
minutos, o ponto de atenção de um rapaz popular da classe alta—.
A vida de um ser humano não vale uma corrida de carros. Estás a
salvo. Queres desempatar? Perfeito. Temos um desafio pendente
num futuro próximo.
—Idiota —murmurou Tahír ao despir o casaco de couro preto.
A corrida já estava parada. E se antes havia duzentas pessoas
por ali a gritar, agora apenas restavam umas trinta.
Um acidente era o pior que podia acontecer numa corrida ilegal,
porque isso atraia irremediavelmente a autoridades. Todos os
assistentes eram integrantes da fina flor da sociedade de Tobrath.
Ninguém queria perder os privilégios nas suas casas de luxo por
causa de um escândalo.
Tahír costumava escapar da segurança real, os seus guarda-
costas, para ir às festas organizadas por seus companheiros do
colégio de elite que frequentava. De madrugada, ele saía em
silêncio, para que ninguém notasse a sua ausência, e divertia-se,
como nessa ocasião, em atividades que colocavam à prova a
tenacidade e subiam a adrenalina.
Com indolência, ele gostava de se vangloriar por ter o status de
um príncipe e saber que podia ter o que quisesse. Realizar qualquer
capricho que quisesse ter. Gozar dos luxos mais extravagantes de
mão beijada e satisfazer a inquietação sexual com assiduidade.
Tahír sabia que o peso da coroa nunca estaria sobre os seus
ombros, e isso representava um grande alívio para sua ansiosa
necessidade de experimentar mais riscos do que seus irmãos:
Bashah, príncipe herdeiro, e Amir, terceiro na linha de sucessão ao
trono de Azhat.
—Alteza! —exclamou um dos guarda-costas agarrando-o pela
cintura para que não caísse. Tahír pôs o braço no ombro dele e
começou a andar até ao carro da sua equipa de segurança—.
Temos de levá-lo ao hospital mais próximo. Se tivéssemos
demorado mais um segundo…
Já estavam bastante longe quando o príncipe ouviu uma
explosão. «Adeus, Ferrari», pensou ao virar a cabeça para ver como
as chamas ardiam até ao céu, e uma equipa de bombeiros, que
acabava de chegar, tentava apagar o fogo.
—Levem-me ao palácio. O médico da minha família atende-me
ali. Não quero saber de nenhum hospital nem de gente que se mete
em tudo o que tenho de fazer a cada cinco minutos.
Denth, o guarda-costas, olhou para o colega Oliver. Ambos
estavam ao lado do príncipe desde que este entrou no BMW
blindado.
—Mas… —começou Denth, ao mesmo tempo que o condutor
saía da zona.
—Não é uma ordem burocrática —disse Tahír entre dentes.
Doía-lhe a cabeça e as costas. Só queria que o deixassem em paz
—. É uma ordem real.
—Claro, Alteza —respondeu Oliver, um homem forte, sem se
opor e olhando para Denth para que este não dissesse nada.
Ambos sabiam que este incidente marcava o seu último dia de
trabalho para a família real Al-Muhabitti. Foi a quinta vez em um
mês que Tahír os deixou mal. Se não o tivessem localizado a tempo,
o mais provável era que o príncipe não estivesse vivo. Ignoravam
quantas agências de segurança teriam sido designadas para
custodiar os membros da família real de Azhat, mas tinham a
certeza que a empresa para a qual trabalhavam, Homs & Thua, não
seria mais uma delas.
No dia seguinte, o remoinho que o acidente causou nas
manchetes internacionais, revelando o comportamento rebelde e
impróprio de Tahír, foi a gota d'água para o palácio.
—Deixem-nos a sós! —gritou o rei ao entrar na recâmara do
príncipe.
Estavam na ala médica onde se atendiam os Al-Muhabitti. Tahír
tinha uma costela partida. A sobrancelha precisava de pontos e o
rosto estava marcado pelo impacto. A ferida da sobrancelha teve de
cosida com quatro pontos.
A recâmara ficou vazia.
—Pai… —murmurou Tahír— obrigada por me visitar.
O rei Zahír atirou-lhe um dos titulares menos benéficos para a
reputação da casa real. O príncipe levantou o jornal do colo e leu-o.
Orgias, corridas ilegais e muita adrenalina marcam a vida do
príncipe Tahír Al-Muhabitti.
Pôs o jornal de lado. Sabia que a imprensa exagerava. Orgias?
Talvez nas suas fantasias pessoais, mas não era verdade. De
certeza que alguém que esteve na corrida nos arredores de Tobrath
pensou que não havia nada melhor para falar do que havia por
detrás das corridas. O que lhes teriam oferecido? Porque todos
queriam algo. Dinheiro, contactos, fama… Já devia estar habituado,
mas não estava. Olhou para o pai, cuja expressão de reprovação e
deceção conseguia cravar mais profundamente o punhal de
ressentimento que sentia por ele desde que a mãe partira.
—Esta não é uma visita social, Tahír —espetou ao cruzar os
braços e começar a andar de um lado para o outro. Era um homem
alto e com uma barba perfeitamente cortada, grisalha. Tinha uma
força inquebrável, e era respeitado pelo seu povo—. Estás a
manchar o nome da nossa família com as tuas saídas de tom. Não é
a primeira vez que isto acontece. Quando vais parar de te comportar
como um miúdo de 12 anos? Tu és o segundo na linha de sucessão
ao trono de um país tradicional e próspero! Será que não tens
consciência? Tu tens 16 anos! Eu pus-te no melhor colégio do país,
que compete com o de outras nações. Queres fornicar? Tens um
harém. Queres uma orgia? Vai ao harém— disse ele, sem se
importar com nada.
—Vivo a vida —respondeu insolente.
O rei achava que o filho só se dedicava à promiscuidade. Que
interessante, e ele que tinha pensado expor-lhe uma tese para
melhorar os sistemas de segurança do palácio. Ele era um génio
com computadores e tinha inteligência para ver espaços e detalhes
que, aos melhores guardas, lhe escapavam. Tinha de ser, de outra
forma como é que ele conseguia escapar-se deles?
—Não nasceste para gozar da puta vida! Nasceste para ser um
príncipe e levar o teu povo para a frente.
A raiva do Tahír começava a ferver. O que é que o pai sabia?
Como se atrevia a julga-lo se nunca estava presente como pai só
como rei? Nem sequer se tinha preocupado por perguntar como
estava ou como se sentia.
—Talvez não queira ser príncipe.
—Não tens escolha, Tahír. O teu destino está escrito e deves
segui-lo. Da próxima vez que saíres nos titulares, podes ter a
certeza absoluta que te envio para as tribos dos bérberes no deserto
para que vivas com eles durante um ano.
O príncipe olhou para o pai e sentiu um grande vazio. Os irmãos
foram visitá-lo preocupados com ele, não com o que pudessem
dizer os outros sobre o sucedido. Pelo menos, este laço entre
irmãos era forte e alheio ao factos dos três serem figuras públicas.
—Eu ia gostar muito de viver no deserto.
—Estás avisado —disse o rei, sem demonstrar o seu
descontentamento por não receber uma reação do filho. Durante
anos ele tentou recuperar o relacionamento distante, mas Tahír era
um osso duro de roer e ele mal tinha tempo devido aos seus
compromissos como monarca. Dos seus três filhos, Tahír foi o mais
indomável—. Está claro?

—Claríssimo.
—Não sei o que fazer contigo. És uma deceção constante para
esta família.
—Às vezes pergunto se deseja que eu nunca tivesse nascido —
expressou.
O rei Zahir olhou para ele intensamente. Sem mais palavras,
com dois passos, deixou o filho sozinho e fechou a porta.
Tahír observou o quarto e sentiu a garganta seca. Não diziam
que quem cala consente?, perguntou-se magoado.
Se ainda restava uma esperança de que o pai pudesse ver nele
algo mais do que problemas, nesse dia ficou claro. Aceitava,
derrotado, que o rei nunca seria capaz de o entender. Nem amá-lo…
A morte da mãe tinha-o afetado de uma maneira que jamais
poderia explicar. Os príncipes não tinham autorização para
demonstrar emoções em público… e parece que também não em
privado. E isso marcou-o.
Ninguém parecia entende-lo e tratavam-no como se fosse um
problema dele, e como algo normal aprender a lidar com uma perda
de essa magnitude sem se queixar. Nunca falava disso com os
irmãos. Cada um parecia viver a sua própria realidade do tema. De
facto, as atividades giravam em torno à preparação dos príncipes
como membros da família real Al-Muhabitti. O caminho a seguir
neste sentido parecia delimitado, exceto para Tahír.
Bashah, o príncipe herdeiro, tinha de seguir a tradição das
iniciações sexuais durante dois períodos da sua vida adolescente e
juvenil. Era o encarregado de dar um herdeiro ao trono e contrair
casamento com uma mulher que viesse bem aos interesses de
Azhat para trazer estabilidade e harmonia ao reino. Amir, o terceiro
dos irmãos, tinha uma capacidade inata para obter o que desejava
de uma forma equânime e encantadora; o rei considerou prepará-lo
para a administração das ligações sociais e para conseguir alianças
e benefícios comerciais futuros.
No caso de Tahír, ele parecia não ter um caminho traçado devido
sobretudo à sua constante rebeldia. E esta situação só conseguia
chatear ainda mais o príncipe, o único dos irmãos que tinha herdado
quer os luminosos olhos verdes da já desaparecida rainha Dhalilah
como o seu espírito aventureiro indomável. Talvez estes traços em
comum com a rainha a tenham feito, em vida, mostrar mais
paciência e compreensão para seu segundo filho do que tinha o rei.
***
—O que acha que está a fazer, Alteza? —perguntou a voz
inconfundível do conselheiro de Tahír quando o apanhou a abrir o
cofre do rei, onde se guardavam todas a joias, não apenas as
herdadas, mas também dos reis e dos seus filhos.
Com a altivez que o caracterizava, Tahír virou-se para o homem
de barba proeminente e olhos negros esbugalhados. Já tinham
passado cinco meses do acidente. Não participava mais em corridas
ilegais, mas isso não significava que ele parasse de escapar para
gozar da sua juventude e dos prazeres que podia usufruir.
—O óbvio —respondeu enquanto guardava num pequeno saco
castanho uns dos muitos anéis e pérolas—. Vou sair. E tenho direito
de levar algumas destas bugigangas —agitou o saco— porque são
tanto minhas como de qualquer outro membro da família.
O homem olhou para ele sereno.
—É melhor que saia agora, Alteza, se não deseja que Sua
Majestade se chateie e o castigue.
«O meu pai não tem tempo suficiente para dedicar a um filho que
acha que só serve para causar problemas», era o que ele tinha
vontade de dizer ao homem que se encarregava da sua agenda
real, mas não ia gastar saliva com isso. Ele estava cada vez mais
cansado daquela farsa em que o pai fingia interesse pelos filhos.
Talvez os irmãos estivessem dispostos a aceitá-lo; ele não.
Detestava viver confinado no palácio. Odiava ser príncipe
quando só era observado como um instrumento de imagem
monárquica. Preferia unir-se aos planos dos seus colegas de escola
e criar o caos, esquecer-se das responsabilidades… Preferia estar
no deserto, montar a cavalo, praticar artes marciais no ginásio ou
treinar com o exército real.
—Por acaso não és tu o meu conselheiro, Karim? —perguntou a
sorrir com malícia. O homem inclinou a cabeça com um
assentimento que não significava resignação, mas sim raiva contida,
porque qualquer deslize por parte do Tahír seria culpa de Karim—.
Já sabia que sim.
Tahír guardou as joias num dos bolsos e ajustou os laços
vermelhos de seu kuffiya branco. Naquela manhã, tinha estado a
praticar esgrima no pátio do palácio. A areia, o sol e a tensão
misturavam-se numa atividade que exigia todo o seu engenho e
coordenação. Todos os anos realizava-se uma competição nacional
de esgrima. Desde que começou a participar, aos treze anos,
venceu consecutivamente todos os concursos na sua categoria.
—Os ânimos estão exaltados pela reforma do novo preço do
petróleo, é preferível que fique no palácio. Fugir, como pretende
fazer, só vai pôr em risco os agentes que cuidam de si…
—Conheço melhor do que ninguém as medidas de segurança.
Por acaso não fujo delas constantemente? —perguntou com
petulância.
—Entendo que a sua vida não foi fácil depois da morte da rainha
Dhalilah, Alteza, nem vai ser, mas já é tempo de…
O príncipe levantou a mão para que ele se calasse.
Karim acatou a ordem silenciosa.
—Nem penses que podes dizer-me o que quiseres. O teu
comportamento está fora de lugar. Que não te volte a passar pela
cabeça falar sobre a minha mãe!
Karim Labouthy assentiu, mas o jovem príncipe não ignorou que
o homem continuava a apertar os punhos.
—Podem despedir-me se souberem que está em perigo e que
por minha culpa não foram capazes de evitá-lo. Lembra-se daquela
corrida de carros? —Tahír encolheu os ombros—. Passámos por um
grande susto. Como é muito bom a escapar-se dos seus guarda-
costas, quem lhe pretenda fazer mal pode aproveitar-se desse facto.
Pode colocar o país numa encruzilhada desnecessária, alteza.
Por um breve momento, Tahír pareceu reconsiderar a sua
intenção de ir ver a moça por quem se tinha encaprichado. Já sabia
como sair do palácio e ir ter com Freya pelas ruas da cidade. Ele
pensou em camuflar-se e passar por um cidadão mais... Era ciente
que tinha uma pequena margem de tempo antes dos guarda-costas
darem com ele, e era por isso que tirava o máximo de vantagem de
cada minuto roubado de liberdade.
—Não, não vão despedir-te se não disseres nada. Isto é tudo —
disse com o mesmo tom desagradável com que ouvia o pai falar
quando despachava alguém que o estava a incomodar.
Sem olhar para o conselheiro, o príncipe foi-se embora.
O sol já não era tão forte e a vontade de reencontrar a mulher
que lhe fazia o coração palpitar encorajava-o a saltar qualquer regra
para vê-la. Nunca tinha visto uma mulher tão bonita. Nem as
mulheres do harém se podiam comparar com ela. Ele sentia que era
a única mulher para ele. Estava apaixonado, não havia outra
explicação para o príncipe. Ele sentia-se invencível, importante
finalmente para alguém. Ele levava sempre a dele para a frente,
talvez não do jeito sutil que Amir costumava fazer, mas o resultado
favorecia-o sempre.
Tahír conheceu a Freya numa noite há três semanas, na festa de
aniversário do filho do embaixador da Suécia. Desde que posou os
olhos em Freya Wahmuh não voltou a interessar-se por nenhuma
outra mulher. Não queria outra mulher.
Depois da festa, eles encontraram-se em segredo em diferentes
eventos privados organizados pelo Tahír. Ele não queria vincular
uma pessoa tão especial como Freya com os temas do palácio,
porque não queria contaminar algo que considerava tão especial e
submetê-lo às bisbilhotices da casa real. Eles mantinham contacto
através do Skype, WhatsApp e com perfis criptografados do
Facebook com identidades falsas.
Ela era a primeira mulher que não se interessava por ele para
além da pessoa que ele realmente era: um jovem aventureiro,
seguro de si e com muitas ideias para o futuro de Azhat. Ambos
tinham os mesmos gostos pela arte, comida... A única diferença é
que Freya era um pouco tímida, mas de qualquer forma com ele era
doce e carinhosa.
—És especial para mim —disselhe ela uma vez.
—O teus gestos demonstram-no —respondeu ele preso pela
candura que emanava o olhar feminino.
—E penso continuar a fazê-lo se me permitires —sussurrou-lhe
ao ouvido antes de o abraçar e deixar-se acariciar com paixão.
Quando estavam juntos eran discretos. Raramente saiam em
público. Era o modo de Tahír a proteger da imprensa e ela estava de
acordo. Não lhe exigia nada. E ele não podia acreditar na sorte de
tê-la conhecido.
Apesar de viver num país que mantinha tradições machistas, ele
não se considerava parte daquele grupo de idiotas pouco
acostumados a entender o mundo de maneira cosmopolita. Por isso
não ficou surpreendido ao descobrir que ele não foi o primeiro
homem com quem a Freya esteve. No entanto, ele estava
apaixonado e queria ser o último a conhecer os segredos do prazer
nos braços dela. Foi por esta razão que ele roubou do cofre do
palácio a aliança de casamento da mãe, e as pérolas que
pertenceram à avó materna.
Ele ia pedir Freya em casamento. Ele seria um príncipe que se
casava jovem, e daí? Estava louco por tudo dela. Aquela pele verde-
oliva suave como a seda mais cara deixava-o cheio de desejos de
lhe tocar, mesmo depois de horas de carícias agradáveis. O cabelo,
que lhe caia em cascata ao ritmo de uma cachoeira furiosa
enquanto ela cavalgava sobre o seu corpo em busca de prazer e o
levava ao abismo do êxtase selvagem, era a cortina perfeita para
partilhar sussurros de prazer.
Tahír sentia o coração a bater a mil. Era um dia importante. Ia
marcar o princípio do resto da sua vida ao lado de Freya. Pensava
enfrentar-se a todo o mundo se fosse necessário para tê-la para
sempre ao seu lado.
Quando saiu do palácio a rir-se dos guarda-costas, Tahír
conduziu o carro, que um dos seus amigos lhe emprestou, pelas
ruas até chegar ao estacionamento subterrâneo de um hotel muito
elegante e exclusivo. Era o tipo de lugar onde os empregados
sabiam que não podiam falar sobre o que viam ou ouviam. Eram
bem pagos para isso.
Talvez ele não devesse ter usado um carro tão caro, mas
gostava da velocidade. Saiu do carro a assobiar uma melodia
alegre. Pressionou o código de segurança para ativar o alarme.
«Quero ver o rosto de Freya quando a peça em casamento»,
pensou animado. Reservou a penthouse, encomendou champanhe
e flores. Tudo o que uma moça podia pedir, e tudo o que uma moça
de 16 anos podia imaginar como "romântico".
Ele dirigiu-se para a porta que conduzia aos elevadores. Para
além da excitação, o que ele sentiu a seguir foi um duro golpe na
cabeça. Tudo ficou completamente às escuras.
***
Tahír recuperou pouco a pouco o reconhecimento.
O treino do dia anterior estava prestes a acabar com ele. Apenas
a força aprendida durante o treino das artes marciais e o estado
físico adquirido graças aos dias de exercícios com o exército real de
Azhat permitiram que ele encarasse a dor de outra maneira.
Não se lembrava há quantos dias estava em cativeiro e ignorava
onde se encontrava. Tinham-lhe batido e torturado.
Tinha de sobreviver. Precisava fazê-lo.
Esteve a ponto de fraquejar e pedir que parassem, implorar que
deixassem de lhe bater quando tiraram o capuz. Um príncipe jamais
implorava, lembrou-se ao encher-se de forças.
Os olhos começaram a habituar-se à luz. A primeira imagem que
viu à sua frente foi de um dos cinco homens que lhe tinham
espancado. Cada um deles era mais intimidante que o outro. Ele
não mostrou medo, nem interesse.
Em relação à comida, davam-lhe bocados do frango que —tanto
como pareciam— eram as sobras daqueles bastardos. Estava claro
que a intenção era matá-lo à fome… e talvez nem matá-lo. Queriam
dar cabo dele e humilhá-lo para obter algo que ele ignorava: uma
chave para aceder aos arquivos do palácio. Tahír disselhe, repetidas
vezes, que desconhecia os códigos de segurança.
—Olha, olha, o principezinho está acordado. —O tipo de barba
ruiva deu-lhe um pontapé no estômago que o fez encolher-se com
dores—. Oh, que pena, doeu-te?
—Ufff —Tahír expulsou ar quando voltou a sentir outro pontapé,
desta vez no braço. Tentava proteger a cabeça, pondo-se em
posição fetal, embora não servisse de muito porque tinha as mãos
atadas nas costas.
—Odiamos os da tua classe. Estamos cansados de ter de pagar
para que vocês levem o melhor para a mesa, e não duvido que para
a cama também —disse, depois cuspir-lhe— por isso vais falar de
uma vez por todas.
A dor e a fúria misturaram-se no interior do príncipe. Se vivesse
noutra época, o insulto que estavam a cometer contra ele seria
punido com decapitação pública. Uma pena que, nessas
circunstâncias, as leis se tenham transformado em algo mais
"civilizado".
—Eu…
—Cala-te, estúpido! —gritou o cretino antes de dar-lhe outro
pontapé—. Se não disseres o que queremos de ti, então é melhor
que não fales e continues a aguentar o castigo por ser um perfeito
inútil e arrogante. Andas de festa em festa, enquanto o resto da
gente que vive neste país tem de se conformar em ver-te…
—Ouve… Porquê… porquê eu? —quis saber com uma voz que
só o orgulho conseguia que tivesse um pouco de força.
—Para além de não saberes acatar ordens, a tua rotina é fácil de
entender. Por isso, foi impossível não te escolher como objetivo —
disse a rir-se—. Tenho vontade de mijar —expressou ao começar a
desabotoar as calças pretas.
«Que raios…» pensou Tahír com nojo. O bastardo ia urinar-lhe
em cima.
Perguntaram ao Tahír repetidas vezes, em cada ocasião com
murros e pontapés, qual era a chave que dava acesso ao escritório
onde estavam os arquivos eletrónicos criptografados das
identidades dos agentes especiais do palácio: os homens
encarregados de criar protocolos de segurança para a transferência
da família real dentro e fora de Azhat. Era uma equipa de elite que
também trabalhava em casos específicos com os altos
comandantes da polícia, nomeadamente aqueles especializados em
encontrar e desmantelar ataques terroristas e células de
vandalismo.
—Queres continuar a gozar do nosso tratamento amável
enquanto eu mijo para cima de ti, ou vais dar-nos o código de
acesso? —perguntou ao tirar o membro das calças.
Estava num lugar fedorento. E estava aterrorizado com a ideia
daquele imbecil começar a urinar-lhe em cima.
—Eu não…
Os pontapés pararam. Achava que não ia resistir muito mais
tempo com as mãos atadas. O homem tirou o cinto e bateu-lhe nas
costas.
—Eu…—Tahír ofegou respirando fundo. Mesmo que tivesse a
informação que eles queriam, não a dava. Ele preferia morrer a trair
o seu país.
—Não consigo compreender como é que o nosso incentivo não
te fez dar à língua, principezinho de merda. Talvez tenhamos que
levar mais a sério o teu gosto pelas mulheres —disse o tipo com um
tom de desprezo antes de apontar para ele com o membro.
Antes que o Tahír pudesse dizer alguma coisa, um barulho
alertou-o que já não estavam sozinhos naquele lugar. Ao mesmo
tempo apareceu a última pessoa que imaginou ver.
Freya.
—Guarda as tuas intimidades e fantasias —disse ela ao homem.
O torturador, perante a presença feminina, resmungou e virou-se
para ajeitar a roupa—. Podes obter mais dados com mel que com
fel.
—Contigo não funcionou muito bem, caso contrario não
estaríamos aqui —respondeu o ruivo antes de mostrar má cara e
apanhar o cinto do chão.
Atónito e chocado, Tahír olhou para ela com medo que também
tivesse sido raptada e lhe fossem magoar. Contudo, o breve diálogo
entre ela e o torturador tirou-lhe as dúvidas. Quando Freya sorriu
com vontade, Tahír uniu os cabos.
Quando todas as imagens e eventos começaram a vir-lhe à
cabeça, ele sentiu uma fúria incontida. As coincidências pelo modo
como ele a conhecera. O facto de ela ser sempre tão reservada ao
interagir com os seus melhores amigos, apesar de se ter encontrado
pela primeira vez em um círculo tão importante quanto a família de
um embaixador. A maneira como falava sobre o mundo como se o
conhecesse há mais tempo do que ele. As conversas...
Como foi estúpido! Como é que não suspeitou? Como é que não
pôs os sentidos em alerta? Ela nunca mencionou a família dele. E
ele, que achava que ela se interessava pelas suas aspirações como
pessoa e não como príncipe, quando na verdade só queria
informações sobre o palácio através de sexo. O truque mais
estúpido e mais antigo. E ele, que se achava invencível, tinha caído
no feitiço daquela mulher. Naquele momento, ele não podia sentir-se
pior e não tinha nada a ver com as contusões físicas.

—Enganaste-me —conseguiu dizer.


Uma expressão de arrependimento cruzou rapidamente os olhos
negros de Freya, mas antes que Tahír pudesse registá-lo como algo
real, e não como produto do seu atordoamento, desapareceu tão
rapidamente quanto tinha chegado.
—Claro que não —respondeu ela com um tom de soberbia.
Tahír sentiu como se estivessem a espetar-lhe um punhal no
peito. Se até há poucos dias atrás ele pensava que estava
apaixonado, nesse momento o seu coração partia-se em pequenos
pedaços que eram difíceis de unir e estavam cheios de fel.
—Pensei que… —não terminou a frase. Conteve-se. De alguma
maneira conseguiu guardar os seus sentimentos. Não confessou o
amor que tinha por ela, assim mantinha o orgulho intacto. Ninguém
merecia aquelas palavras. Ninguém.
Freya cruzou os braços. Os seios, aqueles seios que ele
apreciou, pressionavam contra o tecido macio do vestido. Não
usava um hijab. Ele olhou para aquele corpo curvilíneo que um dia
achou perfeito para o dele...
Naquele momento detestou que o seu país tivesse começado a
permitir o uso de roupas ocidentais por conveniência, porque ele
teria preferido ignorar aquelas curvas femininas. Curvas traidoras
como as de uma montanha cheia de valas e precipícios.
Freya, a muito infame, tinha posto o anel de sua falecida mãe e
as pérolas da sua avó. Tahír não entendeu como pôde chegar a
acreditar que seriam perfeitos para ela.
—Parecer mais jovem sempre foi uma vantagem para mim,
pareço mais inocente. Tenho 21 anos —expressou preguiçosamente
perante o embaraço evidente de Tahír, a quem lhe disse terem a
mesma idade—. Além disso, não te enganei —sorriu com maldade
— só me converti no que tu querias. Entre os teus irmãos, tu foste o
objetivo mais fácil. Sempre de festa, instável e com debilidade pelas
mulheres aparentemente fáceis de serem conquistadas por ti. Mas
foi complicado fazer-te falar um bocadinho sobre o teu palácio. —
Tahír sentia-se muito dececionado—. Se não queres que um destes
cinco gorilas entre aqui, diz-me onde ...?
Bum!
Pum!
Nesse momento, um grupo de homens fardados, com os rostos
tapados entrou na pequena e suja sala. Tudo aconteceu a uma
velocidade impressionante.
Quando Tahír assimilou que estava a ser resgatado, Freya já não
estava em lado nenhum. O único que ele queria era sair dali. Os
agentes desamarraram-no e levaram-no para um helicóptero,
enquanto um médico o controlava e hidratava.
—Como…? — disse com uma voz rouca, sentindo as dores nas
costelas a aumentar e ardor nos pulsos, onde a corda grossa lhe
rasgava a pele —. Como é que souberam onde estava?
—Somos o serviço de inteligência, Alteza — respondeu um dos
agentes sem tirar o gorro que lhe tapava a cara e sem responder
diretamente. Estava à espera que o príncipe recuperasse pouco a
pouco do choque que tinha sofrido—. Onde quer que o levemos? Ao
hospital ou ao palácio real.
—Qual é o seu nome, agente?
—Agente 30, Alteza.
Sim. Os agentes do palácio identificavam-se com números entre
eles. Não só porque era mais eficiente, mas porque se protegiam
durante as missões que tinham no deserto ou durante as rodadas
de segurança que organizavam.
—Obrigado, Agente 30 —murmurou Tahír—. Obrigado… —
repetiu outra vez. O que menos queria era encontrar-se cara a cara
com o pai. Não precisava de sermões nem de ver mais uma vez na
cara dele a expressão de deceção.
Viver a humilhação de o terem feito de parvo, ver o pai a
chatear-se e a deceção nos olhos dos irmãos não era uma opção.
De repente lembrou-se de algo pior... tinha perdido o anel da mãe e
as pérolas da avó materna. O valor sentimental dessas joias era
incalculável. Pelo menos, não tinha encontrado a pulseira de ouro
com safiras que também queria oferecer à Freya. Esse teria sido o
fim.
—É uma honra cuidar da família real —respondeu o agente 30.
—Foi o Karim que vos mandou?
O homem assentiu brevemente. Nesse instante aproximou-se
outro agente, que lhe entregou uma bolsa de veludo. Tahír foi
invadido por um alívio indescritível ao abrir a bolsa e encontrar o
anel da mãe e as pérolas da avó.
—Imagino que não foi fácil tirá-las a essa mulher —disse ele ao
olhar agradecido ao agente que, como era de esperar, só assentiu.
—Digam ao rei que estou de festa na Riviera Francesa —
ordenou—. Quando recupere volto ao palácio. Levem-me para casa
do Karim… onde quer que esse sítio seja. Ele… A família de Karim
pode ajudar-me sem fazer perguntas.
Devia a vida ao seu assistente. Karim tinha-lhe protegido as
costas. De novo.
A experiência horrível que acabava de viver era uma lição de
humildade… Tinha estado a ponto de pôr o seu país e a sua vida
em perigo por uma maldita mulher.
—O que ordenar —disse o agente 30.
—Quantos dias…Quantos dias passaram?
O médico, em eficiente silêncio, aplicou-lhe pomadas e gazes,
enquanto controlava os sinais vitais. Tahír fez um gesto de dor.
—Três —respondeu um dos agentes.
«Meu Deus, pareciam ter sido dez», pensou Tahír. Até o som das
hélices do helicóptero, onde era transportado, parecia soar como
cinco orquestras sinfónicas às três da madrugada num recinto
fechado. Doía-lhe a cabeça.
—Quem eram os sequestradores?
—Rebeldes que estão contra a monarquia e formavam parte de
uma célula militar revoltosa. Os meus colegas que ficaram em terra
vão encarregar-se de tudo. Já não há perigo.
—Vão informar o rei?
—Sim.
—Vão omitir o pormenor que eu estava preso nesse sítio. É uma
ordem. E nunca se falará deste tema.
—Alteza —disse o agente 30 a modo de assentimento e sem
protestar.
Vinte dias depois do sequestro, quando Tahír voltou ao palácio,
já recuperado graças aos cuidados da família de Karim, o rei
ordenou-lhe que se envolvesse mais nos procedimentos militares da
guarda real, e também exigiu que ele participasse mais em
atividades como príncipe real fora de Azhat e começasse a ganhar
experiência.
Tahír não protestou.
A verdade é que ele amava a vida no deserto e os treinos duros.
Era consciente que se houvesse uma guerra em que Azhat fosse
um aliado estratégico ele não podia lutar, mas daria o melhor de si
para deixar bem o nome da família Al-Muhabitti. Ele tinha de aceitar
ver-se privado, mais do que gostaria, da sua preciosa liberdade e
ajustar-se às tediosas visitas de Estado.
***
Três meses mais tarde, Tahír preparava-se para um dos seus
treinos diários. Acabava de regressar de uma curta viagem ao
Luxemburgo, onde a sua mãe deixou vários bens em seu nome e
dos irmãos.
Com o passar das semanas, acabou por convencer-se que tinha
capacidade inata para analisar mapas estratégicos e criá-los, bem
como lidar com softwares de inteligência militar. Durante um breve
encontro com o general Yakott, um dos mais respeitados do país,
este disselhe que apesar de certas reticências via nele um rapaz
com grande potencial.
Talvez o apoio do general, que ele nunca teve de seu próprio pai,
o tenha motivado a reafirmar a sua inclinação para ser parte
integrante da gestão de segurança de Azhat. Ele era muito
competitivo e queria ser o melhor em tudo.
Bateram à porta do quarto. Tahír respirou ao lembrar-se das
duras semanas de treino. O corpo fortalecia-se de dia para dia, tal
como a aprendizagem intelectual. Era hábil com os idiomas, e agora
estava a melhorar os seus conhecimentos de russo.
—Alteza, posso entrar? —disse a inconfundível voz de Karim.
—Entra, Karim —concedeu.
Tahír retirou da mesa documentos que faziam parte de um
projeto de concessão de bolsas desportivas para os melhores
alunos das escolas públicas de Azhat. A Fundação Reina Dhalilah,
da qual Tahír era um patrocinador, ajudava crianças com recursos
limitados e tinha como objetivo a obtenção de oportunidades
educacionais em áreas menos favorecidas. De facto, ele era
apaixonado pela área de educação e, no futuro, poderia ser mais
produtivo se se envolvesse mais intensamente.
—Alteza, o médico sugeriu com insistência para não se esforçar
demasiado, por causa da costela partida durante o sequestro —
comentou ao ver o Tahír em fato de treino.

O príncipe encolheu os ombros.


Demorou mais tempo do que o normal para curar, porque tinha
necessidade de esforçar-se por seguir em frente. A forçar o corpo
um pouco além dos limites. Ele devia a vida ao seu conselheiro e
também à sua família. Romha, a esposa de Karim, cuidou dele
como se fosse do próprio filho.
Encontrou naquela casa simples uma demonstração do que
poderia ter sido a sua família se a mãe ainda estivesse viva.
Perguntava-se se os seus irmãos também tinham tantas saudades
dela como ele.
Em casa de Karim, não foram condescendentes com ele, apenas
o cumprimentavam com uma breve inclinação da cabeça. Tahír
pediu-lhes que o chamassem só pelo nome. Romha era uma mãe
rigorosa, embora carinhosa. Era uma combinação que Tahír não
entendia.
O príncipe quis pagar um grande bónus ao Karim, mas ele e a
esposa devolveram o dinheiro, disseram-lhe que apenas lhe deram
o que qualquer ser humano daria a outro num momento de
dificuldade. Tahír sentiu-se comovido e deu-se conta da frivolidade
em que tinha estado a viver.
Ele descobriu a diferença entre o poder do dinheiro e o poder do
coração e, por um momento, sentiu inveja do calor que recebeu
naquela casa. Tahír justificou a decisão de evitar cometer
disparates, porque o destino dele era diferente do de outros rapazes
da sua idade.
Apesar da relutância de seu conselheiro e assistente, o príncipe
pediu ao rei para ampliar com mais luxo a dependência privada de
Karim para quando ele tivesse de dormir no palácio antes e depois
das viagens do Estado. O rei questionou a decisão, como fazia
sempre que Tahír pedia algo, mas no final acedeu ao pedido. Talvez
suspeitasse que o filho não estivesse estado realmente na Riviera
Francesa, ou talvez tivesse a certeza, mas agora estava a salvo no
palácio. Isso era tudo que importava. Para o rei Zahir, a coroa
estava acima de qualquer benefício ou desejo pessoal. Sempre. E
não esperava menos dos seus filhos.
—Não posso perder tempo, Karim —expressou o príncipe—.
Prefiro ter a mente ocupada em algo que seja realmente útil. O meu
treino é necessário.
A folia noturna tinha terminado. Contudo, o seu espírito rebelde
levava-o a procurar novos desafios. Agora era mais cauteloso, e já
não se divertia a fugir dos seguranças do palácio. Talvez fosse o
efeito de ter estado num cenário de sequestro...
—Ainda tem pesadelos? —indagou Karim com cautela.
Ter salvo a vida do príncipe não significava que tivesse o direito
de lhe falar como se tivesse autoridade sobre ele. Tais atribuições
nunca poderiam ser tomadas.
«Era ridículo mentir ao Karim», pensou Tahír.
—Sim.
—Talvez fosse melhor telefonar ao psicólogo para…
—Não. Vou resolver isto à minha maneira, tal como me
ensinaram a resolver tudo o que está relacionado com «emoções».
—O príncipe lidava o melhor que podia com os pesadelos, onde se
via a afogar-se ou metido numa fossa sem conseguir ver a luz,
agitado e com dificuldade para respirar. Levantava-se suado e em
alerta. Tahír não sabia durante quanto tempo iria sentir este stress
pós-traumático. Ele podia defender-se sozinho, e se havia algo que
ele se gabava era da sua força mental—. Tens ideia da identidade
dos homens que me sequestraram?
—O general Yakott pode dar-lhe mais pormenores sobre o que já
sabe.
Tahír riu-se sem alegria.
—Agora tentas ser reservado?
Karim entendia que para Tahír era difícil viver sob os costumes
impostos, principalmente por não saber se alguém se aproximava
dele pelas suas qualidades humanas ou por ser um príncipe com
muita riqueza e uma posição social inestimável. Os três filhos do rei
tinham um grande coração. Karim esperava que, embora fosse
Bashah quem ia reinar, Tahír se tornasse num príncipe respeitado e
criasse planos eficientes para proteger seu país... o seu povo.
—Alteza…
—Quero saber, Karim.
—Estão todos mortos. Não se disse os nomes a ninguém, só são
do conhecimento do exclusivo grupo de inteligência especial que o
resgatou, FERA.
—Ou seja, não vou saber quem foi que me sequestrou? Essa
informação vai ficar congelada nos arquivos das Forças Especiais
de Resgate de Azhat? —perguntou ao dizer o nome completo da
sigla do grupo de elite.
Karim assentiu.
—A operação desenvolvida em terra, enquanto Sua Alteza era
transportado no helicóptero, consistiu em caçar os sequestradores e
possíveis cúmplices. Houve tiroteio… mas FERA não sofreu baixas.
—Isso deixa-me mais tranquilo —disse com sinceridade— Mas
suponho que esta é a tua maneira de dizer que não tenho acesso à
informação por mais que queira.
—É informação confidencial, Alteza, a esse nível só pode aceder
o rei, e os príncipes quando fizerem 21 anos ou formarem parte do
Departamento de Segurança Nacional.
Tahír exalou com relutância.
—Freya…?
Embora o tenha traído e utilizado não lhe desejava a morte.
—Foi acusada de traição à coroa e está a cumprir uma pena de
vários anos numa cadeia perto de Tobrath.
—Informaste que era minha amante?
—Não é da minha incumbência falar da sua vida privada, Alteza.
Contudo, suponho que terá sido comentado durante o interrogatório.
—O meu pai foi informado?
—Como sabe, a partir dos 16 anos todos os príncipes têm o
mesmo nível hierárquico no que respeita a exigir obediência dos
súbditos, tal como tem o rei. E como pediu ao agente para tratar das
coisas de outra maneira… O rei Zahír conhece os detalhes deste
grupo, mas não sabe que esteve no meio do fogo cruzado… por
chamá-lo de alguma maneira.
—Quero a verdade —gritou. O pai sabia de tudo o que acontecia
dentro e fora do palácio. Por outra parte, os Conselheiros do Destino
—uns anciões com uma mentalidade caduca e costumes arcaicos—
estão sempre a coscuvilhar, a tentar chatear o rei com alguma
informação, que muitas vezes, nem é de importância vital. É
provável que estes saibam alguma coisa.
—Esta é a verdade —aclarou—. Se por acaso o rei intui ou sabe
de alguma coisa, ignoro.
—Só me exigiu que assuma a responsabilidade da segurança
com as forças armadas do palácio. De facto, não é nenhum
sacrifício e menos um castigo. Gosto disto! Gosto de treinar!
Karim assentiu.
—Talvez o rei se tenha dado conta que essa capacidade inata
que tem para escapar dos membros da segurança real pode ser
utilizada para o benefício do país, Alteza. O rei confia plenamente
nos seus filhos.
—Talvez…
Cada um dos príncipes Al-Muhabitti tinha um conselheiro muito
leal a eles, que ao mesmo tempo era um assistente. De tal forma
que nem o rei se incomodava a dar-lhes ordens. Não porque não
pudesse, mas porque havia algo valioso em Azhat: a lealdade. A
certeza que os filhos estavam protegidos era importante para a
tranquilidade do rei, ele confiava em quem trabalhava para ele. Isto
tinha permitido aos seus empregados, como também ao povo,
confiar no seu poder de conduzi-los a um país mais próspero unindo
forças.
—Karim, o que tenho marcado na agenda depois do treino de
hoje?
Esse foi o último dia que falaram do sequestro. E o último dia
que Tahír permitiu ao Karim mencionar qualquer pormenor ou
reminiscência a respeito. Freya já não tinha importância para ele,
não queria saber se ela odiava ou amava a realeza ou preferia um
Estado anárquico. Estava na prisão. E aqueles que o torturaram
estavam mortos.
No horizonte estavam vários anos para Tahír cheios de treinos,
aulas especiais e um número sem fim de informação sobre a
segurança nacional que teria de aprender. Também tinha de
terminar a escola, depois mudar-se a Oxford para concluir os
estudos em economia e em história. Tentar juntar o dever com o
prazer ia ser complicado, mas o que podia ser difícil depois do susto
que teve ao ser sequestrado? O que podia ser difícil quando sabia
que o amor era uma mentira cruel?
Não ia renunciar às mulheres, mas sim à ideia de leva-las a
sério. Era impossível acreditar nessas criaturas voláteis. Tahír não
pensava derrubar as muralhas de pedra que tinha erguido à volta do
coração.
A vida tinha-lhe dado uma segunda oportunidade. Talvez fosse
um príncipe que começava a descobrir como gerir o curso do seu
destino sem incluir acidentes ou manchetes sobre a sua rebeldia,
mas tinha toda a intenção de inverter a má opinião pública que tinha
forjado. Faltava-lhe um longo caminho a percorrer.
***
Melbourne, Austrália.

—O que estás a pintar agora, Bea? —perguntou Ordella Fisher


ao ver a sua única filha tão concentrada.
O olhar alegre de Beatriz, Bea, foi ao encontro do da mãe.
Estavam sentadas na entrada da modesta casa que tinham na
cidade, enquanto a menina de oito anos pintava uns cadernos que o
pai lhe tinha oferecido dias antes.
—Um castelo. O pai comprou-me um livro de princesas e outro
de carros de corridas. Já terminei o dos carros…
—Então, só te falta o dos castelos?
—Sim… Podia brincar com os legos, mas emprestei-os à minha
amiga Tara. Ainda não mos devolveu.
—Gosto que saibas partilhar…
De repente, o olhar suave de Ordella transformou-se, parou de
se balançar na cadeira de madeira e os olhos azuis profundos
escureceram.
Bea já tinha presenciado esta situação várias vezes. Em
nenhuma dessas ocasiões as palavras foram dedicadas a ela, mas
às centenas de pessoas que foram a casa pedir que a Ordella lhes
contasse o futuro. Se iam casar. Se o marido ou a esposa eram
infiéis. Se alguma doença ia matá-los... O pai costumava repreendê-
la quando a encontrava a espreitar, mas não fazia mais do que isso,
sabia que mãe e filha partilhavam aquela capacidade psíquica.
—Mãe…? —perguntou ao pôr de lado os lápis de cores. Sentou-
se no chão de madeira com as pernas a chinês—. O que é que se
passa? Não comeces a…
—Haverá um momento na tua vida em que vais acreditar que
tudo está perdido. Que não há esperança. Vais acreditar que eu me
enganei hoje, minha doce menina, mas daqui a alguns anos vais ter
de ser forte, porque o teu destino vem de muito longe —disse a voz
monótona de Ordella, que geralmente era reservada com os clientes
quando a consultavam sobre o futuro—. Também vais saber o que é
o amor. E a dor.
—Estás a assustar-me… Não entendo nada, mãe. —A mãe dela
não gostava de ser tratada por «mãe», sim por Ordella, mas, nesse
momento, a Bea pareceu-lhe que «mãe» era uma forma de pedir
segurança perante o que ouvia. Sentia-se confusa.
—Só deves ser forte. Resistir. A recompensa depende de ti.
—Por favor, para —pediu ao levantar-se para lhe agarrar nas
mãos suaves—. Não digas mais nada, assustas-me, mãe.
De repente, Ordella pareceu voltar do lugar onde estava
segundos antes, e olhou para a filha com carinho. Os seus olhos
voltaram a ser tão claros como sempre.
—Vai escrever o que te acebei de contar, meu amor. —Bea
negou rotundamente com a cabeça, os cabelos ondulados agitaram-
se—. Guarda na caixa com a estrelinha dourada, onde tens os
sonhos que desejas realizar.
—Não gostei do que me disseste… Não entendo.
—O teu pai está quase a chegar. Tens dormido bem? Perto de
outubro as energias tornam-se um pouco mais espessas...
Talvez a mãe tivesse tido apenas um lapsus. Naqueles dias
estava a ensina-la a controlar as premonições. Às vezes tinha medo
de tocar outras pessoas, porque imediatamente era capaz de "ver"
as suas vidas no futuro. Na idade dela, Bea não considerava a
premonição ou a clarividência uma virtude. Era uma coisa que lhe
dava medo.
—Durmo melhor...
Ordella assentiu e pôs-se de pé para agarrar na mão da filha.
—Guarda a caixinha e escreve o que eu te disse, está bem?
—Só quero que me deixes pintar ou ir brincar com a Tara…—
murmurou. Às vezes, a mãe falava com ela como se ela fosse
entender tudo, e não era assim. O mundo dos adultos para ela era
complexo, embora tivesse um QI de 145 e fosse mais inteligente
que os outros meninos, não significava que pudesse ir ao mesmo
ritmo da mãe e das premonições desta—. É melhor esquecer-me
disso —disse com a esperança que a Ordella a deixasse em paz.
—Há coisas que simplesmente estão escritas.
—Por quem?
Um sorriso indulgente apareceu nos lábios da jovem mãe.
—Pelas estrelas.
Depois desta conversa, Beatriz passou o dia a fazer coisas.
Durante a noite teve um sonho que a perturbou.
Acordou sobressaltada e ficou a olhar para a janela. O céu
estava limpo. A lua brilhava. Abriu as persianas e contemplou o
manto de estrelas.
Esfregou os olhos com os dedos a tentar entender aquele
palpitar estranho no coração que de repente a dominou... Tinha a
sensação de estar acompanhada, como se alguém também
estivesse a olhar para o céu ao lado dela.
Ao sentir um escalafrio olhou para o lado. Estava sozinha.
Ela colocou a mão na garganta, porque queria gritar. Não era
medo, mas a sensação de que lhe estavam a tirar algo importante.
Sentiu uma necessidade urgente de abraçar a mãe e pedir que lhe
explicasse por que sentia um vazio estranho, como se lhe faltasse
ar. Não era a primeira vez que isto lhe acontecia. «Bea, tu és
especial. Não entres em pânico. Só respira. Um dia, o teu dom vai
ajudar-te», costumava dizer Ordella quando a via angustiada.
—Que não aconteça nada de mau… —sussurrou Bea ao vento
antes de voltar para a cama e enrolar-se nos lençóis. No pesadelo
tinha visto uma figura deitada no chão rodeada de sangue, e varias
tarântulas à volta do corpo. Sentiu uma dor como se fosse o corpo
dela. Olhou para a mão. Estava a tremer. Abriu e fechou as
pálpebras com força—. Que não aconteça nada de mau — repetiu
num fiozinho de voz.
CAPÍTULO 1

Doze anos depois…

Bea Fisher observou o trabalho que tinha terminado no jardim


traseiro da casa de Matilda, a mãe de um cliente habitual do seu
pequeno escritório de design de jardins, e sentiu-se satisfeita. Usou
o dorso da mão para secar o suor da testa, depois pegou no copo
que ainda estava gelado e bebeu o líquido em alguns goles. Em
Melbourne, o sol aquecia impiedosamente, em menos de duas
horas ela já tinha bebido dois litros de água.
Ela não era a única a sentir que a pele estava a ser frita numa
frigideira. De facto, os colaboradores que ela costumava contratar,
quando tinha um novo espaço para transformar num belo jardim,
acabavam de lhe dizer que iam adiantar o final da jornada. Bea não
se opôs, até porque o trabalho já estava terminado. Ela não se
importava de ter pago os honorários com antecedência e por mais
horas do que fizeram nesse dia. Para ela, a saúde dos seus
colaboradores era mais importante.
—Obrigada, turminha! — disselhes enquanto eles se afastavam
para entrar num Chevrolet Silverado.
Ela ajustou o laço que segurava o seu cabelo castanho sedoso.
Ela dava tudo para dar entrar numa piscina, mas ainda faltavam
quatro horas para anoitecer.
—Que lindo, Bea, obrigada! —expressou Matilde com os olhos
brilhantes admirando as rosas e os gerânios do seu jardim—. Fiz um
guisado de peru com legumes. Queres ficar para jantar?
Beatriz negou. Se ela passasse mais tempo com aquela roupa
colada ao corpo, começaria a gritar. Preferia ir-se embora no seu
Toyota Hiliux e ligar o ar-condicionado na temperatura mais fria
possível.
—Tenho de preparar-me para o jantar desta noite, mas obrigada,
Matilda.
A anciã abriu a porta do pátio para Bea entrar em casa, onde
estava mais fresco, e conduziu-a à saída enquanto conversavam.
—Vou adorar ter-te aqui noutra ocasião. O meu filho disseme
que trabalhas para o Real Jardim Botânico. É um sítio encantador.
Evan Hubbert, o filho de Matilda, era uma pessoa muito
generosa. Apesar de estar sempre de mau humor desde que a
esposa faleceu de um enfarte, o ímpeto e a energia que
demonstrava pela vida era admirável. Bea não entendia a extensão
da dor de perder uma pessoa que se tinha amado durante três
décadas. Talvez tenha sido essa história que a levou a aceitar
trabalhar para a Matilda e não lhe cobrar nada.
«Coração demasiado brando, Bea.»
—Sim, trabalho na secção que está em Cranbourne. Faço todos
os dias 45 km —respondeu amável, apesar da dor nos pés e nas
costas—. Como me deviam estes dois dias livres aproveitei para
aceitar este pedido do Evan.
O certo é que Anthon Larrent, o coordenador do projeto em que
Bea trabalhava nos famosos jardins australianos, não a suportava,
mas devido à qualidade do trabalho dela, muito contra vontade,
aceitou que ela tirasse dois dias de folga. Bea sabia que os
próximos dias seriam um inferno ao lado dele, não percebia como é
que a mulher dele o aguentava.
Felizmente, Bea tinha a sua própria empresa e fornecia serviços
temporários, porque, do contrário, as suas economias seriam ainda
mais precárias. Como o contrato com os jardins estava prestes a
terminar precisava da recomendação de Larrent; mandá-lo para o
diabo não ia ajudá-la muito.
Um ano antes tinha inaugurado o seu negócio, Bea’s Tulip. Os
pais fizeram um empréstimo no banco para ajudá-la a abrir o seu
espaço, e ela era-lhes sempre pontual no pagamento da
mensalidade. Esta foi a única ajuda que aceitou dos pais.
Quando pensava que o dinheiro que ia receber não dava para
pagar todas as necessidades - pagar à assistente, Annie, ou ao
vendedor de equipamentos de jardinagem, Leny - recorria ao
Dexter. O amigo era dono de uma popular cadeia de bares em
Melbourne, por isso às vezes pedia-lhe para deixá-la servir às
mesas uns dois dias à semana. Não era fácil entrar no mercado.
Primeiro, porque era jovem e, segundo, porque não tinha tantos
contactos como o Dexter.
A maior parte do dinheiro que lhe restava, muito pouco, Bea
investia no rés de chão da sua casa, onde tinha o escritório Bea's
Tulip. A propriedade precisava de reparações, mas não podia estar
com pressas.
O espaço do seu negócio era pequeno, tinha comprado umas
sementes exóticas de diferentes países para vender. Ainda não
tinha recuperado o dinheiro investido. Esperava que fosse em breve,
porque à diferença dos seus concorrentes, Bea carecia de um pé de
meia para poder comprar mais material. Se não acabava com o
existente, não poderia comprar mais; e isso aplicava-se aos
elementos mais básicos de jardinaria. Não vendia para ser rica, mas
sim para que os clientes soubessem que podiam contar com a sua
loja para fazer encomendas.
—Há décadas, neste mesmo jardim —começou a dizer Matilda
com saudade— o Norman pediu-me em casamento. Oxalá algum
dia encontres o amor duradouro que eu tenho com o meu marido.
—Mmm. —«Tema escabroso», pensou Beatriz.
—Quando o amor bate à porta é melhor preparar o melhor
sorriso —deixou escapar um suspiro— não perco a esperança que
Evan volte a casar-se algum dia…—concluiu com um sorriso
nostálgico.
—Que assim seja, caso contrário ele fica com três filhos e você
com os netos —disselhe a agitar as chaves de forma dissimulada,
mas sem intenção, o único que queria dizer é que se queria ir
embora—. Desfrute do seu jardim, Matilda.
—Mais uma vez obrigada!
—De nada!
Bea dirigiu-se ao seu carro acenando-lhe com a mão, enquanto
pensava que não tinha intenção de dizer à senhora Hubbert que não
tinha planos de casamento. A sua habilidade premonitória era ao
mesmo tempo uma bênção como uma maldição. Ela tinha herdado
da mãe, Ordella, aquela faculdade de perceber o que muitos outros
mortais não podiam ou preferiam fingir que não existia: o
paranormal. Para Bea, não se tratava de acreditar ou não acreditar,
não era uma questão de fé.
Bea estava convencida de que, assim como havia o bem e o
mal, havia esse plano humano e outros. Negar e condenar o
inexplicável, o diferente, poderia fazê-lo desaparecer? Claro que
não. Porque é que as pessoas costumam rejeitar a diferença,
quando é tão maravilhoso e se pode aprender muito com isso?
Na escola sentia-se estranha. O simples facto de poder antecipar
o que os outros iam fazer ou dizer era esmagador. Felizmente,
Ordella não parou de ensiná-la a gerir as habilidades para que a
afetassem cada vez menos. Ela tornou-se numa professora
implacável. Bea estava muito grata, porque só assim a vida
começou a ser um pouco mais suportável.
Durante vários meses, participou num grupo com pessoas
discretas que compartilhavam as mesmas habilidades, alguns ainda
mais desenvolvidas noutros campos, mas no mesmo ramo
paranormal. Quando Bea deixou de se assustar com os seus
sonhos e começou a vê-los como inofensivos, a sua mente pareceu
acalmar-se.
Ela tentava, tanto quanto possível, não ter contacto físico com os
outros. Isso reduzia as possibilidades de ter uma premonição
inesperada e lidava melhor com a sua capacidade, mas não era
infalível.
—Deixa fluir. Respira profundamente quando estiveres
assustada e pensa que, ainda que tenhas a informação, ninguém te
pode fazer mal —foi o que lhe disse uma noite Ordella. A mãe
preferia que ela a tratasse pelo nome em vez de «mãe»; mais uma
extravagância para juntar à lista. Como se ter premonições e ler a
mente não fosse já suficiente—. Algum dia talvez ajudes alguém
que esteja a precisar.
—Para de repetir-me isso, por favor. Não quero ser como tu —
respondeu-lhe entre lágrimas e desespero—. Cala as vozes da
minha cabeça, Ordella. Cala-as, por favor.
A mãe abraçou-a, sussurrando-lhe que ia ficar tudo bem. Por
outro lado, o pai, que era um simples "mortal" e tinha uma empresa
de consultoria de engenharia ambiental, tentava entendê-la, faziam
caminhadas ou algo que lhe ocorresse para distraí-la. Os pais eram
as pessoas que ela mais amava no mundo e, se a sua mãe não
fosse psíquica, o mais provável era que — se os seus pais não
fossem tão à frente — ela a internasse num manicómio. Não teve
uma infância fácil, a adolescência ainda foi pior, mas ela saiu-se
muito bem, embora o seu círculo social fosse mais do que reduzido.
Quando muitas de suas amigas souberam que Ordella era
psíquica e lia o tarot, deixaram de sair com ela. Só a procuravam
quando queriam saber se iam ter alguma coisa com um ou outro
rapaz. O pai aconselhou-a a ignorá-las, mas para Beatriz o facto de
ser diferente marcou-a. Foi uma época em que ela teve que
amadurecer mais rápido do que qualquer outro dos seus colegas de
turma.
Os seus problemas não tinham nada a ver com a sua imagem de
mulher que começava a mudar pouco a pouco. Aceitava ter um
rosto normal, o nariz levemente arrebitado, lábios rosados e
carnudos, uma decente copa de sutiã B e, nos quadris, não
encontrar o adjetivo preciso. A sua mãe sim. «Tens uma figura
petite. Como um pequeno relógio de areia, meu tesouro ",
costumava dizer-lhe com doçura Ordella. Para quê discutir? O que
menos a preocupava não era o que ela podia ver no plano físico,
mas o que só ela era capaz de "ver", e os outros não.
Durante a época da escola, a sua aborrecida existência deu uma
volta radical. Foi quando o Dexter Louden entrou na sala de aula.
Atlético, atrativo e muito inteligente. Os professores contavam
maravilhas do novo estudante de Brisbane. Ele tornou-se
rapidamente num dos rapazes mais populares da escola. Beatriz
seguia com a sua vida, se existia um sinónimo de «não popular» era
o nome dela, e não queria dar conversa ao Dexter apesar de terem
várias aulas juntos. O que lhe ia dizer?
Uma manhã, quando ela estava a terminar de almoçar na
cantina da escola, algo no seu coração incentivou-a a abrir a mente
e deixar fluir o que quer que fosse que o destino lhe quisesse dizer.
Ficou em silêncio num estado de calma e trance que não sentia há
muitos anos.
Via Dexter a subir alegremente num autocarro. E mais à frente
produzia-se uma colisão brutal. Viu-o preso entre os ferros quase a
ponto de morrer, porque os serviços de emergências não o viam. Se
no dia seguinte, Dexter apanhasse o autocarro para Brisbane
morreria nessa colisão.
Abriu os olhos, sentiu o coração a bater muito rápido. Nem
sequer lhe tinha tocado, nem apertado a mão! Porque tinha uma
premonição com Dexter? A resposta foi trascendente. Sentia o
dever moral de avisá-lo.
Bea encheu-se de coragem.
Encontrou o rapaz de 17 anos num dos corredores, aproximou-
se apresentando-se como Bea Fisher, colega de turma. Ele olhou
para ela intrigado, porque notava que ela estava alterada por
alguma razão. Não teve vontade de fazer pouco dela pela forma
abrupta como ela se dirigiu a ele.
Tentou ignorar os olhares consternados das colegas, que de
certeza pensavam que ela se estava a atirar a ele pensando que era
uma «oferecida» ou «desesperada». Bea, num tom de voz contante,
contou-lhe a visão que tinha tido.
Ele olhou para ela com aqueles olhos azuis-mar durante um
longo momento e, finalmente, assentiu.
—Obrigado por avisar-me.
—Acreditas em mim, a sério? —perguntou-lhe Bea com os olhos
muito abertos a conter o alento.
—Sim.
—Uau… — murmurou conscientemente que corava, deixando
sair o ar - sei que várias pessoas me acham um bocado estranha...
—Todos temos segredos. Além disso, eu tenho uma mente muito
aberta.
—Sim?
—Anda, pago-te um sumo num restaurante que está perto daqui.
A menos que estejas ocupada.
—Eu… —sussurrou com timidez.
—Não é um encontro amoroso, não te ponhas nervosa —
disselhe com um sorriso encantador— a última coisa que quero é
perder a oportunidade de ser teu amigo. Necessito de alguém que
me vigie as costas —acrescentou com um piscar de olho.
Ela deu uma gargalhada, ele era um dos rapazes mais giros que
ela conhecia.
—Vamos beber esse sumo, então.
Para tristeza da escola, os colegas que foram de excursão a
Brisbane sofreram o grave acidente que Bea tinha «visto», mas sem
falecidos. Alguns dos feridos terminaram no hospital internados
pouco mais de três dias, e outros menos tempo. Ela quis falar com o
diretor da escola para avisá-lo, mas foi inútil, porque não lhe
quiserem dar hora alegando que ele estava demasiado ocupado,
que era melhor esperar para o dia seguinte à tarde. Pelo menos,
Beatriz tentou e isso deixava-a de consciência tranquila.
A partir do encontro no corredor, ambos tornaram-se bons
amigos e Beatriz começou a ser convidada para festas. Ela sabia
que só o faziam por causa do Dexter, mas ele dizia que não. Era
encantador, mas Bea sentia que nunca haveria nada entre eles.
Dexter nunca lhe pediu para o ajudar vendo o futuro, porque
sabia o quanto era difícil para ela e como lhe custava lidar com a
situação. Ele foi testemunha de como, no momento de uma
premonição inesperada, ela teve uma dor de cabeça insuportável,
não apenas pelo esforço de "ver", mas pelo esforço de apaziguar as
imagens. Dexter foi um grande apoio.
Embora tivessem profissões diferentes, depois de terminar o
secundário e a faculdade, os dois frequentavam o mesmo círculo
social; não por ela, porque não havia ninguém menos inclinado a
socializar do que Bea, mas pelos contactos que ele tinha na cidade.
Bea serviu de namorada fictícia ou namorada ciumenta; e numa
festa até chegou a dizer que estava grávida, porque Dexter não
conseguia livrar-se de uma ex-namorada irritante. Por isso, ele
pediu-lhe para fazer um de seus números habituais de quase-
namorada. Como podia dizer que "não" a um amigo incondicional
como ele, mesmo quando fazia papel de ridícula? Depois dessas
festas, quando conversavam noutro lugar, eles riam-se ao lembrar-
se do que inventavam.
Daquela época já tinham passado mais de 15 anos, e Dexter já
era mais do que capaz de lidar com quantidade de moças que se
derretiam por ele.
Devido aos afazeres de cada um, Bea e Dexter viam-se menos
do que antes, mas a amizade mantinha-se.
Ao longo dos anos, Beatriz conseguiu bloquear a possibilidade
de ouvir os pensamentos dos outros, o que era um grande alívio.
Ela não podia fazer nada em relação aos sonhos, mas já não tinha
medo.
Bea nunca se aproveitou das suas capacidades ou das da mãe.
Mesmo nos momentos mais difíceis no trabalho, nos quais não
encontrava respostas, preferia sentir o mesmo nervosismo que
qualquer outro profissional sentia. Mentir ou enganar não lhe parecia
justo. Tinha uma vida tão normal quanto possível e tentava sempre
ver o lado positivo de tudo.
A buzina de um carro fê-la pisar o acelerador.
Com um suspiro, aumentou a intensidade do ar-condicionado do
Toyota Hiliux. Conduziu menos afetada pelo calor pelas ruas da
cidade até chegar ao seu pequeno escritório localizado no coração
comercial de Melbourne.
À sua espera estava Annie Warriot, sua assistente, com uma
pilha de papéis. Contas para pagar e uma lista de mensagens para
responder.
«Bem-vinda de novo ao mundo empresarial.»
***
Tobrath, Reino de Azhat, Médio Oriente.

—Alteza, estão à sua espera no Salão Obsidiana —disse Karim


a Tahír.
O príncipe preferia fazer visitas pessoais, inspeções e, quando a
mente começava a bloquear, saia a cavalgar para visitar os
berberes do deserto. Com os chefes tribais tinha aprendido a
meditar, a descobrir na terra árida que amava os recursos para
sobreviver. Foi preparado durante anos para isso.
A mente e o corpo eram de um guerreiro moderno de 28 anos.
Um guerreiro de fato e gravata no Ocidente e fato real em Azhat. Ele
fortalecia a sua determinação como um homem nascido nas dunas,
porque se sentia orgulhoso da sua linhagem.
—O que importa, Karim? Não sei porque continuas a marcar a
minha presença em reuniões para ouvir os Conselheiros do Destino
a falarem sobre temas trascendentes.
—Deveres reais —respondeu com calma.
—O meu trabalho é de campo.
—As artes marciais, a esgrima e as armas não podem ser
utilizadas nas reuniões de Estado, Alteza.
—Falar da próxima exposição de flores exóticas no deserto
também não.
—Dentro de uns meses será uma ocasião especial, Alteza.
—Para isso está o meu irmão, Amir. Não é ele o encarregado
dos temas comerciais e dos negócios em geral?
—Como é do seu conhecimento, o príncipe Amir está em
Espanha em negócios. O príncipe Bashah, neste momento, está a
tratar de uma situação distinta.
—Pede que levem um pouco de chá ao salão —disse ao mudar
de tema.
—Alteza —disse com um tom reverente e com uma inclinação
antes de ir para a cozinha do palácio.
O salão que mencionou era o lugar onde se encontravam os
altos mandos militares, policiais e especiais do país. Como
representante da família real, Tahír tinha de estar presente.
Ultimamente o seu pai, o rei Zahir, estava bastante doente e
começava a delegar mais ao Bashah, como herdeiro do trono.
Naquele momento, Tahír era o único membro da família real com
disponibilidade para estar presente na reunião, por isso tentava
saber de tudo o que se passava ao seu redor.
Eram as únicas reuniões que Tahír gostava de assistir. A
adrenalina começou a percorrer-lhe o corpo enquanto se movia
pelos corredores e paredes de mármore com um cenário requintado.
Ele gostava do risco e do perigo. Pena que não pudesse usar as
suas habilidades numa zona de combate, como era um dos
herdeiros não podia colocar a vida em risco. Ele era uma pessoa
com muitos recursos para estratégias de segurança, algo que o pai
lhe tinha elogiado, por isso aproveitava as reuniões para colocar sua
visão em prática perante os membros do conselho. Ele tinha
conquistado o respeito destes homens tão complexos que
trabalhavam todos os dias pela segurança de Azhat e, aos poucos,
esperava, que a sua reputação de príncipe e playboy rebelde
deixasse de influenciar a perceção que tinham dele ou a eficácia as
suas decisões.
—Cavalheiros —disse ao entrar.
Nove homens elegantemente vestidos com os fatos tradicionais
de Azhat estavam à volta da grande mesa retangular para
cumprimentar o príncipe como sinal de respeito. Com um gesto,
Tahír pediu que se sentassem.
—Alteza —disse Abdul Kamal, general das forças armadas com
três décadas de experiência, uma cara conhecida e respeitada em
todo o país, um assessor de grande importância para o rei e um
guia inestimável para o príncipe Tahír e para o herdeiro ao trono,
Bashah—. Não temos boas notícias.
—Proceda, general.
—Atualmente está a ser organizada uma manifestação no centro
da cidade contra as medidas económicas. Vários cidadãos estão
furiosos e não têm problemas em causar distúrbios para chamar a
atenção. Temos um agente infiltrado que já tem vários dados a
respeito. Os níveis de popularidade da Casa Real Al-Muhabitti não
são os mais altos, por causa do imposto geral aos produtos de
primeira necessidade que aumentaram dois por cento.
—O tema dos impostos é um assunto do governo. Para sermos
mais claros, do Primeiro-ministro. Além disso, no país acreditamos
piamente que os cidadãos têm o dever de se expressar. Contudo,
podemos trabalhar nas medidas de contingência para esta situação
e redobrar a segurança no dia da manifestação.
—Alteza…
—Apenas são da minha incumbência, da dos meus irmãos e do
meu pai, as normas relacionadas com a Casa Real e os assuntos
que a afetam diretamente, porque podemos tomar ações unilaterais
a esse respeito. Por isso, diga-me, porque estou a ser informado de
uma manifestação? — Concluiu cruzando os braços.
O seu corpo de adolescente tinha sido atrativo, mas agora —
com 28 anos— era majestoso e poderoso. Tahír exalava um poder
inerente que não tinha nada a ver com o seu lugar na realeza, mas
sim com a segurança em si mesmo com a qual lidava com todos os
assuntos. Não tinha medo de nada.
—O cidadão tem o direito de se expressar, é claro, Alteza, mas
desde que isso não represente uma ofensa à família real —disse o
general sem perder o juízo. Nunca um general, por mais importante
ou decorado que fosse, tinha poder ou autoridade superior em
relação aos membros da família real de Azhat. Entendiam e
respeitavam-no com a mesma disciplina com que assumiam as suas
profissões. — Por esta razão, tivemos necessidade de nos reunir
consigo, porque é quem tem a solução para a informação que
possuímos e estudámos.
Isto fez o príncipe tamborilar os elegantes dedos no braço da
poltrona dourada que presidia a mesa.
—Em que sentido pode causar um problema para a minha
família?
Os altos comandantes da inteligência permaneceram
impassíveis. Apenas o porta-voz do grupo falou, e neste caso foi o
general Kamal.
Devido ao divórcio do príncipe Bashah e da princesa de
Ushuath, Moesha, a atenção do povo estava muito focada na família
real. Embora tivessem passado alguns anos, os cidadãos pareciam
incapazes de esquecer. Talvez porque o casamento dos pais do
Bashah fosse legendário e um marco na fidelidade que outros
monarcas anteriores não haviam mostrado.
O facto do rei parecer mais frágil do que antes, começou a gerar
a perceção de que a monarquia estava um pouco enfraquecida. Isso
não era nada bom, e a ideia de uma manifestação com insígnias
antimonárquicas, pior. O simples facto das pessoas estarem a
atravessar uma situação económica complicada e observarem uma
monarquia que vivia luxuosamente — mesmo quando a fortuna não
vinha dos cidadãos — aumentava o ressentimento.
—A pessoa que lidera essa marcha… é sua conhecida, Alteza.
Talvez não seja uma questão de segurança em termos de perigo, é
verdade, mas é uma questão de segurança em termos de imagem e
estabilidade para a realeza que viveu durante séculos nestas dunas.
Nós não podemos mostrar uma face vulnerável, principalmente
agora que sua majestade, o rei Zahir, parece passar um momento
de saúde delicado.
Tahír torceu o nariz. O general só estava a confirmar que já se
tinha transcendido as condições de saúde do seu pai.
—Quem é a pessoa que está a organizar essa manifestação?
—Freya Wahmuh —anunciou o homem de barba branca— há
seis meses saiu da prisão por bom comportamento. Está a organizar
a manifestação para daqui a quatro dias.
—Não perdeu tempo —expressou Tahír sem dar a entender a
surpresa que acabava de ter com aquela notícia. Se os nove
agentes da inteligência se lembravam ou sabiam pormenores do
que ocorreu e resultou no final do seu relacionamento com aquela
mulher na adolescência, não davam sinais disso —. Há alguma
maneira que ela desista?
Pela cabeça do príncipe e xeque de Azhat passaram uma série
de imagens. Por causa daquela maldita mulher ainda tinha
pesadelos à noite. E agora, estava livre. Bom comportamento?
Claro! Não tinha dúvidas que ela usou os seus truques para
conseguir a liberdade.
—Contactámos com ela, sim, através do nosso agente infiltrado.
Ela tem uma condição para deter a manifestação…
—O que quer?
—Um trabalho e uma audiência.
Tahír fez uma careta leve e impercetível. Ao longo dos anos,
aprendeu muito bem a esconder as emoções.
—A audiência está negada. Categoricamente. Explique-me isso
do emprego, general.
—A jovem diz que desde o dia em que pôs o pé na rua, com o
seu passado de traidora, ninguém lhe quer dar um emprego. Os
pais dela morreram há muitos anos. Ela diz que é uma pária social e
—tossiu, evidentemente incómodo— que Sua Alteza, é o culpado.
Também deixou claro que há uma parte da história que gostava de
colocar em consideração na audiência, já que ela considera
importante que Sua Alteza a conheça.
Tahír teve vontade de dar uma gargalhada. Para além de ser
mentirosa, a prisão tinha aumentado o seu cinismo.
—E porque prestamos tanta atenção nesta manifestação e não
em outras? —perguntou.
—Porque esta ocasião tem a particularidade de a menina
Wahmuh, a organizadora, estar disposta a contar a história que
viveu com Sua Alteza há muito tempo e vendê-la ao melhor licitante
mediático, caso a condição que impõe para impedir a manifestação
não seja aceite.
«Uma pena que o general Yakottt tivesse morrido num
inesperado acidente aéreo durante uma viagem turística ao Nepal.
O homem teria tido um estilo mais direto e concreto do que Kamal»,
pensou Tahír.
—Aqui os meios de comunicação não costumam fazer esse tipo
de tratos. Mas suponho que os tempos mudaram.
—É o preço da liberdade de expressão.
—Ou o preço das indiscrições —murmurou Tahír para si mesmo.
Levantou-se e estudou os presentes—: Se a solução para parar
essa manifestação, que só vai trazer um escândalo que não
precisamos é tão simples, tente convencer a menina Wahmuh a
encontrar um emprego. Não estava à espera de ser chamado aqui
por algo tão trivial como isto, senhores.
Desta vez, um dos agentes pressionou os lábios e Tahír
percebeu que ainda faltava algo a dizer. Ele não gostava da
expressão de contrariedade, ou seria impotência, do general
Kamal?
—Ela não quer um emprego qualquer —disse o homem com
pele cor de chocolate.
—Explique-se, general.
—Quer trabalhar no palácio real, Alteza.
—A fazer o quê exatamente?
—Imagino que o pedido de audiência esteja relacionado com
isso.
Nenhum dos presentes parecia afetado ou desconfortável pelo
tema. O príncipe sabia que recebiam um bom bónus económico
anual que garantia sentirem-se bem pagos pelo palácio, como
também a não emitir juízos sobre o que acontecia na vida privada
da família Al-Muhabitti.
CAPÍTULO 2

Bea gostava de conduzir sem sapatos porque os saltos de


agulha irritavam-na. Ela preferia desfrutar dos 45 minutos de carro
de Melbourne a Cranbourne com total liberdade. Adorava as
autoestradas.
Enquanto conduzia eficientemente o seu Toyota, também ouvia
música country americana. Adorava! Os dedos moviam-se no
volante ao ritmo de Cole Swindell com a canção You Should Be
Here. Um título interessante para dedicar a... ninguém. "A ninguém",
repetiu baixinho ao mesmo tempo que sorria.
Um sentido de humor saudável era necessário, porque estar com
um parceiro já lhe tinha causado situações desagradáveis no
passado, e pouco dignos de uma gargalhada. Ela não sabia se
conseguia controlar as premonições no que dizia respeito à parte
sexual. Essa perspectiva tornava-a mais cautelosa e inquieta do que
qualquer outra. Por isso, uma virgem de 21 anos acabados de fazer
numa nação liberal ainda tornava o panorava mais caricato. Devia
telefonar para Ripley's Believe or Not para apresentar uma
candidatura?
Já tinha beijado dois tipos, foi desastroso.
Enquanto se deixava encantar com o beijo de um deles teve a
imagem clara de como ele a ia trair com outra mulher. Com o outro,
assim que o beijou soube que o destino de ambos não era juntos.
Quando voltou a acontecer, noutra das suas tentativas de ter um
namorado como qualquer outra rapariga da sua idade, deu-se por
vencida. Seria um problema dela ou os rapazes tinham uma mente
fraca e previsível?
Não parava de se perguntar como podia manter uma ilusão
quando era óbvio que o seu lado psíquico ia pregar-lhe partidas a
qualquer momento. Talvez o seu destino fosse servir os outros
através das suas capacidades, como fez a sua mãe. Não para
ganhar a vida com isso, porque ela tinha o seu próprio negócio para
gerir e muitas esperanças postas nele mas para sentir que estava a
dar sentido ao legado da Ordella... Um legado que, com ou sem
razão, era uma parte essencial da sua natureza.

Beatriz sabia que o pai possuía uma grande força mental e


Ordella nunca tentou entrar nos pensamentos dele. Talvez fosse por
isso que os dois continuavam juntos após 25 anos de casamento.
Dada a sua estranha onda de amor, Bea tinha feito do trabalho
uma prioridade. Uma vez mergulhada nele, deixou de se preocupar,
sobretudo, com o que seria ter um amor como o dos seus pais.
"Nem todos têm a sorte de encontrar o amor, mas tu estás
destinada a ele", disselhe Ordella uma vez. Beatriz queria acreditar
fervorosamente na mãe, mas ela não era infalível.
Bea sentia que devia parar, por algum tempo, de aspirar a algo
que talvez não fosse tão claro que a alma precisasse.
O próximo plano era viajar um pouco e tentar dar mais cor à
vida, conhecer outros lugares. Tinha saudades das viagens que
fazia com o pai quando era mais nova, quando ia com ele à Europa
e outros sítios em viagens de negócios. Ela até chegou a ir a Nova
Iorque.
A vontade de embarcar num voo não dava tréguas, e há anos
que não ia de férias. Tinha uma veia aventureira que vibrava com
força, mas não lhe dava ouvidos por causa do seu negócio. Era
necessário remediar a situação. Desde que montou a empresa que
não parava de trabalhar. Uma pausa seria bem-vinda.
Devido ao seu QI, terminou o secundário três anos antes do
habitual, tal como a universidade. Aos 21 anos recém-cumpridos, os
colegas ainda estavam a terminar o último semestre de engenharia
agrícola, e ela já tinha a licenciatura na mão. Costumavam dizer que
as crianças com um QI elevado tinham dificuldades com as
competências sociais. Não era o caso de Bea, embora fosse
complicado pelo facto de ela também ser psíquica Quando Bea se
sentia sobrecarregada com responsabilidades, fazia uma corrida
matinal na praia de St. Kilda. A área costumava estar meio deserta
ao amanhecer. Por isso, aproveitava o dia para praticar desporto e
depois ia a Ancland Street tomar o pequeno-almoço em qualquer
café na moda. Esse era o seu pequeno luxo diário.
Ocasionalmente, fazia surf e surfava muito bem, mas preferia
companhia porque a praia onde podia desfrutar das ondas
selvagens ficava a 70 km de Melbourne. Surka Varsinni, uma amiga
que conheceu no lançamento de um livro de ficção científica,
costumava aventurar-se com ela na Península de Mornington. A
praia mais famosa era Gunnamatta, era espetacular. Passavam o
fim-de-semana nas redondezas e regressavam renovadas para o
trabalho diário. Surka era enfermeira e tinha turnos loucos. Talvez
por isso raramente tivessem oportunidade de pôr em dia os
mexericos uma da outra, mas o WhatsApp não deixava de dar sinal
de vez em quando.
Nos meses extremamente quentes, como agora, Beatriz evitava
os cafés que estavam na moda e mudava a rotina mergulhando no
mar de St. Kilda para terminar os treinos. Depois voltava para casa
e preparava-se para abrir a loja.
Esta noite terminava o projeto dos jardins australianos com uma
cerimónia exclusiva, que lhe tinha dado uma boa quantia de dinheiro
pelos seus serviços... e sacrifícios. Há dois meses que trabalhava
com a equipa do Royal Botanic Gardens, como profissional externa,
na remodelação da área das cafetarias de modo a criar um espaço
para as espécies de vegetação nativa. Entre a coordenação dos
pormenores com Anthon e a tentativa de adaptação às orientações,
o trabalho tinha progredido de forma paulatina mas bem sucedida.
Bea conseguiu trabalhar na expansão de uma área essencial
para que pessoas com mobilidade reduzida pudessem circular com
mais facilidade. Também conseguiu incluir uma área especial para
baby-sitters, sem custos para os visitantes, enquanto os pais fazem
um passeio as crianças podem ficar entediadas ou tentadas a
quebrar as regras de segurança e assim têm um sítio onde estar
entretidas. Bea e a equipa também trabalharam na criação de um
jardim alternativo para os membros mais jovens da casa, adjacente
à área de Australia Gardens - uma secção especial e premiada que
tinha sido aberta ao público em maio de 2006 - para lhes ensinar o
valor da natureza.
O som da música que ecoava dos altifalantes do Toyota foi
substituído por um telefonema. Carregou no botão de "mãos livres".
—Dex —cumprimentou o melhor amigo ao vê-lo no identificador
de chamadas.
—Está tudo em ordem? —perguntou com a sua voz serena.
—Claro, já estás de caminho…? — perguntou enquanto
acelerava um pouco o motor para ultrapassar um carro que parecia
ter preguiça para andar mais depressa.
—Clem está a terminar de se arranjar, eu vou no helicóptero da
empresa. —«Claro que vais», pensou Bea com um sorriso. Para
além da cadeia de bares, a família Louden era proprietária de uma
produção de compotas artesanais de alta qualidade servidas nos
melhores restaurantes e vendidas a preços justos em todos os
supermercados do país—. Estou a telefonar-te para saber se
precisas de alguma coisa.
—Obrigada, Dex, mas se a tua amiga desta noite descobre que
estás preocupado com outra mulher, acho que não vai gostar —
disse a rir-se—. Além disso, será bom se, após tantas semanas,
finalmente possas mostrar-te à civilização por algum tempo.
Bea ouviu a rir-se às gargalhadas. Como a família Louden,
representada por Dexter, era uma das patrocinadores dos recentes
projetos, ele estaria com Bea no jantar de baile.
—Clem vai simpatizar contigo. Ela é especial… Até logo, Bea.
«Até que te fartes», pensou Beatriz com um sorriso.
—Aposto que sim. —Desligou a chamada.
O jantar de despedida foi para a equipa de trabalho: 25 pessoas
no total mais patrocinadores, convidados especiais e altas
autoridades responsáveis por dar contas dos movimentos nas áreas
do Royal Botanic Gardens. O local tinha duas zonas, a primeira,
localizada na parte sul do rio Yarra, com 38 hectares. A segunda,
onde Bea trabalhou até essa noite, localizada no subúrbio de
Cranbourne, tinha 363 hectares de plantas nativas da Austrália. O
evento daquela noite teria no total umas cem pessoas. Bea tinha a
sensação que o tempo tinha "voado", há apenas duas semanas
tinha terminado o jardim da Sra. Hubbert.
Beatriz não tinha intenções de conduzir sozinha para Melbourne,
por isso na bagageira levava uma mala para se trocar no quarto que
tinha reservado no Beechmont Garden Retreat e descansar
confortavelmente. Este tipo de eventos costumavam ser eternos.
Bea deu a Annie e Leny dia livre no dia seguinte, e ela ia aproveitar
essas 24 horas para descansar. Vários orçamentos de potenciais
clientes esperavam por ela na secretária, tinha de responder se
podia ou não atender a esses serviços. Ia escolher um projeto que
lhe trouxesse alegria, porque - embora o dinheiro fosse um incentivo
maravilhoso - nada se comparava com o entusiasmo de trabalhar
em algo que acreditava e pelo qual era apaixonada, mesmo que o
salário não fosse tão grande. Contudo, exigia sempre uma
remuneração justa, porque não se contentava com menos do que o
seu trabalho valia.
—Dex! —a Bea chamou-o quando viu o amigo a entrar na sala.
Ele virou-se ao mesmo tempo que a sua acompanhante, desta
vez era uma morena. A figura de Clem estava longe dos cânones de
mulheres curvilíneas que Dex gostava. Parecia-se mais a uma
delicada boneca de porcelana com um elegante vestido azul.
Dexter estava espetacular, como sempre, com um smoking feito
à medida e, claro, a sua elegância inata fazia-o sobressair. Bea
perguntou-se porque não se apaixonava por ele. "Outro dos
mistérios da vida", disse para si mesma enquanto Dex caminhava
para cumprimentá-la.
—O teu helicóptero é mais rápido que uma chamada telefónica
—brincou.
—Isso já tu sabes —respondeu com um sorriso genuíno—. Olá,
amiga! —deu-lhe um beijo na cara— É bom ver-te! Estás bonita.
—Eu digo o mesmo!
Para além dos sapatos de salto alto, Beatriz levava um vestido
confortável, cor de cereja, que realçava a sua figura de "relógio de
areia", como dizia Ordella. Beatriz media 1,70 m. Com o cabelo
apanhado num estilo descuidado sexy, parecia mais elegante do
que realmente gostava de parecer.
Dexter colocou a mão no final das costas do seu par dessa noite.
—Bea, apresento-te a Clem. Ela é especialista em filologia
inglesa e está na cidade durante algumas semanas —disse olhando
para ela.
«Se vivesse perto de ti, fugias», pensou a Bea com um grande
sorriso. Conhecia-o bem.
—Prazer, Clem! É bom ter companhia extra nestas noites
aborrecidas —deu um passou bem à moça.
A morena olhou para ela com desconfiança, mas deu-lhe a mão
quando notou que não havia nenhum interesse entre ela e Dexer.
—Igualmente —disse ao observá-la com os seus intensos olhos
cor de chocolate—. Este sítio está lindo —olhou à volta— De onde
conheces o Dex?
—Bea é a minha melhor amiga desde a escola secundária —
respondeu ele.
Beatriz riu-se.
—Ele costuma responder por mim quando está nervoso —piscou
o olho a Clem— o que é sinal que gosta de ti.
—Espero que não tentes envergonhar-me contando os meus
pontos fracos —disse ele a rir-se.
—Nunca faria uma coisa dessas.
A tensão inicial de Clem desapareceu completamente, e depois
começou a falar com uma fluidez natural.
Eram já as oito da noite e o mestre de cerimónias estava prestes
a dar lugar aos discursos de alguns patrocinadores, de acordo com
o curto programa que tinha sido passado aos convidados. A Tarnuk
Room, onde se realizava a festa, estava no meio da natureza e
lindamente decorada a céu aberto à luz das estrelas.
O cenário era quase mágico. Era um lugar perfeitamente
aconchegante para uma noite tão privada e exclusiva como aquela
noite. Todos os profissionais que colaboraram no extenso projeto de
reestruturação e reordenamento eram bem reconhecidos na sua
área. Beatriz era a mais nova do grupo, e tinha ganho o seu lugar
com base numa competição baseada no mérito.
A música suave dava uma agradável sensação de placidez e ao
mesmo tempo dava-lhe um toque "chique".
Beatriz suspirou. Algo no meio envolvente parecia diferente.
"Tem a ver com o facto de já ter passado algum tempo desde que
estive numa reunião tão chique". Com esse pensamento em mente,
decidiu aproveitar a noite, bem como a companhia do seu melhor
amigo, e claro, conhecer um pouco melhor a Clem.
Depois de conhecer pessoalmente as namoradas ou amigas
coloridas de Dexter, ele costumava telefonar-lhe para saber qual era
a sua impressão sobre elas. Ela ria-se porque não compreendia
como um tipo tão atraente e bem sucedido como ele precisava da
opinião dela sobre uma mulher.
—Menina Fisher —chamou-a alguém enquanto dava um gole no
champanhe.
Ela virou-se a sorrir. Tanto o Clem como o Dexter estavam a
cumprimentar a uns conhecidos a uns passos de distância dela.
—Sim?
Não conhecia o homem que olhava para ela.
— O meu nome é Irvin Creekon, e tenho estado a investigar
quem foi o consultor criativo externo que fez o projeto de
melhoramento. Está excelente! E finalmente conheço-a.
Alto, com olhos negros intensos e uma barba perfeitamente
aparada, o homem era pura masculinidade. Ele não era bonito, mas
atraía porque parecia prometer perigo. Vestido com um fato azul
escuro e, como ela, segurava uma taça de champanhe na mão
direita. Uma mão em que Bea viu que tinha algumas cicatrizes muito
feias. No entanto, ele não lhe causou qualquer medo ou pavor.
Curioso.
—Obrigada pelas suas palavras, Sr. Creekon…
—Irvin, por favor —pediu.
—Irvin, claro, chame-me Bea. —O homem assentiu—. Não fui só
eu que estive envolvida neste trabalho dos jardins e arredores, eu fiz
parte de uma equipa de 25 pessoas. É um dos vários
patrocinadores, suponho?
O homem sorriu. E esse gesto fez com que parecesse menos
severo.
—Por esta noite —disse sem responder à pergunta—. Gostaria
de saber se está disponível para fazer um trabalho importante numa
casa no Estado de Queensland. —Beatriz olhou para ele muito séria
—. O trabalho será bem pago.
—Não compreendo, porquê eu? Disse Queensland?— olhou
para a sala que já estava cheia. Ela nunca tinha ido a esse Estado
—. Os meus colegas podem…
— O sr. Larrent deu-me o seu nome - interrompeu suavemente
e sem deixar de sorrir - e como pessoa formada para obter
resultados, um "não" causar-me-ia graves problemas.
—Com quem? Com o ego? —perguntou.
O riso alto de Irvin surpreendeu-a.
—O pagamento é generoso. Preciso de trabalhar na adaptação
das áreas externas e de algumas internas. Preciso de algo que dê a
sensação de estar num paraíso dentro de um paraíso.
—Queensland é muito grande —murmurou.
—Port Douglas. A propriedade fica aí. Nós pagamos as
deslocalizações ou transportes, Bea. Tudo está coberto para que o
especialista em design e gestão paisagística seja contratado. Até
oferecemos seguros de saúde internacionais especiais e cobertura
para vestuário de trabalho.
As propriedades em Port Douglas podiam custar mais de cinco
milhões de dólares. Era uma loucura, e talvez fosse a oportunidade
que andava à procura para fazer algo divertido fora de Melbourne.
Um lugar novo e um projeto bem pago. No entanto, sentia que
nesse puzzle faltava algo.
—Quem é o senhor? — perguntou com a sobrancelha levantada
e tentando aproximar-se sorrateiramente de Dexter.
—O dono da propriedade.
— Não sei se tenho tempo. Também não sei se o sr. Larrent lhe
disse que sou o meu próprio patrão e que tenho pessoas que
trabalham para mim e dependem do meu negócio …
—Não há problema. O que normalmente ganha em cada dia de
trabalho será triplicado durante o tempo que estiver em Queensland
a trabalhar para este amigo. Ficará confortavelmente instalada num
dos seis quartos da mansão, que está completamente ao seu dispor.
Basta fazer o trabalho e depois pode voltar para Melbourne. Não
tem de estar presente todos os dias, embora o ideal seja dedicar-se
a terminar o trabalho o mais rapidamente possível.
—Qual é a armadilha?
O homem sorriu-lhe e entregou-lhe um cartão de visita.
— Não há armadilhas. É uma profissional com temperamento, e
é disso que eu preciso. Sei que se formou muito jovem e que tem
um QI mais do que excelente. — Bea ia protestar, mas calou-se.
Anthon provavelmente contou-lhe detalhes do seu currículo, e ele
tinha um relatório do seu QI —. Por favor, ligue-me, para contar-lhe
todos os pormenores. É uma excelente oportunidade de trabalho,
garanto-lhe.
E Irvin foi-se embora, deixando-a com o cartão na mão e muitas
perguntas sobre o que tinha acabado de acontecer. Anthon
recomendou-a? A ela? Uma de duas: ou ele fumou um charro ao
contrário ou tinha um projeto em que não a queria envolvida e
preferia que ela estivesse longe de Melbourne.
—Bea —disse Dexter.
Ela levantou a cabeça. Não se apercebeu que estava na sala a
olhar para o champanhe que restava no copo.
—Eu… —sorriu— estava à tua procura.
—Tudo bem? —perguntou ele.
—Conheces um tal de Irvin Creekon?
Ele franziu a sobrancelha.
—O nome não me é estranho, mas não sei de onde. Um
empresário como todos os que estão aqui, imagino. Conta-me, o
que é que aconteceu?
Ela explicou-lhe em poucas palavras.
—Devias telefonar-lhe! De toda a equipa recomendar-te a ti é um
grande passo.
—E se for um assassino?
Dexter deu uma gargalhada.
—Às vezes a tua imaginação é demasiado louca. Se quiseres eu
posso falar com Zeus Max, o detetive privado da empresa do meu
pai, para fazer algumas investigações simples e rápidas, mas acho
que aqui não deixam entrar potenciais assassinos, especialmente
quando o Ministro do Ambiente está por perto.
—Que exagero contratar um detetive —disse ela a rir-se das
suas preocupações— imagino que como nunca me fizeram uma
proposta desta magnitude… —suspirou—. Bem, quando se tem um
negócio novo —agitou o cartão de visita de Irvin— Vou ligar-lhe
amanhã e ver exatamente o que quer. Afinal de contas, se não
resultar, posso sempre contar com servir às mesas.
Dexter apertou-lhe o ombro e sorriu.
Clem, de regresso da casa de banho, aproximou-se e agarrou o
braço de Dexter com uma expressão animada. A música, a comida
e o ambiente convidavam a estar de bom humor.
—Servir às mesas é uma alternativa —disse Dexter a rir-se—.
Vamos para o centro da sala onde o mestre de cerimónias vai iniciar
o evento.
—Este lugar é fantástico —interveio Clem.
—E ainda falta o baile - murmurou Bea, antes de guardar na
mala o cartão de Irvin. Decidiu aproveitar a noite, embora os
calcanhares começassem a fazer-lhe desejar calçar uns ténis.
***
Tahír estava sentado numa das espreguiçadeiras da piscina do
palácio. A água percorria-lhe os ângulos irregulares do seu corpo
esculpido. Com costas largas, abdominais de aço e pernas fortes,
Tahír era um espetáculo para os sentidos femininos e um adversário
a temer para os homens. Ele irradiava hermetismo e autoconfiança,
e sabia disso. Desde que fosse visto como um príncipe preocupado
com a segurança do seu povo, o resto não lhe importava. Os anos
tinham feito o seu trabalho e as experiências de vida ensinaram-no
a crescer rapidamente Tinha acabado de dar oito voltas à piscina
sob o sol escaldante do deserto.
Durante o tempo em que esteve debaixo de água, costumava
esquecer o que se passava à sua volta, entre elas a Freya.
Após a reunião no salão Obsidiana, Tahír não esperou para
telefonar a Bashah, que se encontrava em Londres. O que menos
lhe interessava era saber as razões das viagens do irmão mais
velho. Só queria resolver um problema com o qual não queria lidar.
Ele podia delegar a tarefa ao Karim, mas era algo do passado que
não queria saber. Só aceitou a exigência da bruxa da Freya porque
não queria que as consequências da sua imprudência juvenil
continuassem a ter repercussões, e porque não era justo confundir o
trabalho árduo do seu pai com a drástica situação financeira dos
países do deserto. O preço internacional do petróleo estava a
mínimos, o que tornava a situação mais difícil.
—E onde queres que a ponha a trabalhar, Tahír? —perguntou-
lhe Bashah com impaciência. Ele parecia estar numa festa—. Não
sou o responsável de recursos humanos de uma empresa.
—Onde te der vontade, Bash, mas longe de mim. Tens mais
senso comum para saber onde colocar as mulheres que causam
problemas e perdê-las de vista.
Ele ouviu o irmão a soprar do outro lado da linha.
—Eu encarrego-me da situação, mas faz-me um favor, Tahír.
—Diz.
—Deixa-te de meter em problemas de saias que te podem
causar stresses.
—Olha quem fala. Se me pusesse a contar as vezes que te
salvei a pele…
—Pufff. Depois falamos, irmão.
—Que assim seja.
Esta foi a sua breve conversa com Bash, como lhe chamavam
carinhosamente os mais próximos do futuro rei, e não precisavam
de mais palavras. Apesar do respeito rigoroso pelos membros da
família real, isto não se aplicava entre irmãos longe dos olhos do
público. Se havia algo que Tahír apreciava nos seus irmãos,
independentemente das suas feridas, era que podiam contar
sempre com a ajuda uns aos outros O vínculo fraterno era
indestrutível, embora não o considerasse um estímulo para o levar a
falar das suas humilhações pessoais ou dos seus dias sombrios.
Com isto referia-se especificamente ao seu rapto.
—Tahír… pões-me protetor solar?
Ele voltou ao presente ao dar-se conta que tinha estado a
contemplar o infinito, perdido nos seus pensamentos.
Ele virou a cabeça e encontrou a dona daquela voz suave que o
tinha acabado de trazer de volta ao presente. Lianna, a sua amante.
Em topless e um bikini rosa.
Ele assentiu com um meio sorriso.
Ele gostava daquela mulher, tal como de muitas outras.
Fisicamente perfeita em todos os sentidos, mas com um cérebro
oco, uma conversa vazia baseada em gostos superficiais à espera
de grandes demonstrações de generosidade material. O pacote
completo criou o ambiente ideal para manter à distância a muralha
de pedra dura que rodeava o seu coração há doze anos. Para quê
preocupar-se com cérebro daquelas mulheres quando elas só
duravam umas noites na sua cama? Para quê preocupar-se
demasiado com elas se elas sabiam agradar-lhe da forma que ele
precisava para satisfazer a sua libido? Não queria saber.
Tahír estendeu a mão e acariciou o mamilo ereto da mulher de
pele de canela. Ela ronronou. "Foi tão fácil seduzi-la", pensou ele
antes de se juntar a ela para satisfazer o pedido de Lianna.
—Depois tomamos um banho…
—Fazer amor na água parece-me muito decadente —sussurrou
a mulher enquanto sentia as mãos do príncipe percorrer as curvas
—. Adoro como tocas a minha pele.
—Então acho que isto está a mais —disse desfazendo os laços
laterais do bikini.
Ela riu-se e olhou coquete para ele. Tahír agarrou-lhe nas mãos
para que ela se levantasse e assim tocá-la com mais vontade.
—E se alguém nos vê? —perguntou sussurrando e olhando de
um lado para o outro como se tivesse vergonha.
— Talvez isso acrescente um pouco mais de emoção ao
momento —disse ele, acariciando os lábios íntimos de Lianna.
Estava molhada.
Ninguém ia apanhá-los, porque estavam no espaço privado do
príncipe.
Ele não demorou em ficar como veio ao mundo. Sem perder
mais tempo agarrou na Lianna e mergulhou com ela na piscina.
Quando saíram a rir-se, Tahír —tão excitado como estava— apoiou-
a contra a parede e fizeram uma festa dando prazer um ao outro.
Horas depois, quando o sol já tinha desaparecido assim como a
amante, Tahír terminava de jantar. Já tinha despachado todos os
documentos do dia e não tinha temas pendentes na agenda. No
entanto, pensava rever o protocolo de segurança do evento da
coroação para o momento em que o pai decidisse abdicar a favor de
Bashah. Ele não tinha dúvidas de que isso aconteceria mais cedo
ou mais tarde, e dois dias depois ensaiavam as medidas de
segurança acordadas para o evento Enquanto caminhava no seu
sumptuoso quarto, perguntou-se em que altura da sua vida poderia
ter um espaço só para ele, para estar sozinho. Normalmente,
costumava estar rodeado de pessoas, muitas delas indesejadas,
mas devido às suas atividades reais tinha de as tolerar. O palácio
devia-lhe as férias que ele não tinha tirado desde que se lembrava.
Sim, gostava de festas e de sair, mas isso não eram férias. Tinha
em mente ir a Espanha, um país que o seu irmão Amir visitava
continuamente para o trabalho da coroa. Desfrutar um pouco dos
Alpes suíços também não era uma má ideia.
A sua última missão era encontrar-se com Amir em Berlim. Iriam
com uma pequena comitiva dos altos comandos militares para se
encontrarem com representantes de empresas de armamento tanto
da Alemanha como do Reino Unido. Não havia uma guerra
iminente, mas era necessário, antes de mais, equipamento de
defesa aérea novo e moderno. Periodicamente era uma despesa a
fazer para manter sempre Azhat com a mais recente tecnologia de
defesa. Em terra eram perfeitos e no mar também, já que contavam
com uma base emprestada em território aliado, porque Azhat não
tinha mar.
Dias depois mais tarde, a caminho do hangar privado da família
real, Tahír pegou no telefone e ligou para um dos seus melhores
amigos. Talvez depois das negociações em Berlim pudessem
encontrar-se na Suíça. Ele poderia ficar como os seus amigos reais
no Hotel Kulm St Moritz.
—Alteza, boa noite. Sirvo-lhe alguma coisa? —perguntou a
hospedeira.
O jet privado estava há 15 minutos no ar.
—Não, obrigado —disse aborrecido à atraente mulher.
—Claro, se precisar de alguma coisa diga-me…
—Trabalhas para mim, já sei que se precisar de alguma coisa
vais fazê-lo.
A moça só assentiu, mas Tahír sentiu-se como um cretino. Era a
primeira vez que falava dessa forma com alguém do serviço. Só
havia uma explicação para isso, e ele sabia qual era. Ainda tinha de
negociar antes de poder fugir de Azhat e da congestionada agenda
de trabalho.
—Karim —chamou.
O seu conselheiro e assistente, que tinha assistido à cena, foi ter
com ele. Karim costumava viajar com o príncipe na área privada
destinada apenas à família real, uma clara indicação da elevada
estima que o príncipe Tahír tinha por ele.
O avião era espaçoso e tinha três salas. Uma para a tripulação.
Outra para os oficiais superiores que podiam ou não viajar com a
realeza e a outra apenas para a família real. Esta última sala incluía
duas suites completas com casa de banho e jacuzzi, serviço de
massagens e um guarda-roupa especial.
—Alteza.
— Quando chegarmos a terra, dá à hospedeira que acabou de
sair uma semana de descanso. Diz-lhe que é uma recompensa
pelos seus esforços para manter os membros da família real tão
eficientemente atendidos.
Karim tossiu.
—Incluo uma nota de desculpas?
Não permitia que ninguém, por muito subtilmente que fosse, o
repreendesse. Karim era uma exceção. E ele tinha ganho essa
exceção há muitos anos.
—Sim, fá-lo.
Surpreendido pela sua irritação, Tahír tirou o cinto de segurança
e dirigiu-se à suite do jet privado. Ia ser uma viagem bastante longa
até à Alemanha. Ele não queria chegar com o cérebro baralhado por
falta de sono. Viajava com Karim e uma delegação militar que lhe ia
fornecer um briefing sobre os pormenores técnicos, uma vez que o
líder da negociação era Amir.
Fechou a porta da suite e despiu-se.
Acendeu uma pequena lâmpada com luz fraca e acomodou-se
entre os lençóis.
CAPÍTULO 3

Do terraço, Bea podia ver no horizonte o reflexo do sol no mar.


As férias de Annie e Leny teriam de ser adiadas, porque Bea não
podia fechar as portas ao público. Essa era a verdade, mesmo que
as suas intenções fossem diferentes. Só lhes podia dar o dia de
folga prometido e nada mais. Bea esperava poder compensá-los no
futuro. Eles eram leais e entusiastas, embora o salário não fosse tão
competitivo.
Bea ia ficar a trabalhar na mansão de Irvin em Port Douglas
durante duas semanas. Afinal, deu-se conta que ele era um
respeitado construtor e corretor de imóveis, e que a oferta de
emprego que ele lhe tinha feito no jantar dos jardins reais era muito
séria.
Já estava há dois dias no estado de Queensland, e estava
apaixonada pela propriedade onde trabalhava. Era um projeto de
sonho. O seu primeiro grande projeto. Às vezes, mais do que criar,
gostava da ideia de renovar, dar outro ar, recuperar o brilho de antes
ou melhorar.
Na casa trabalhava uma senhora muito simpática, Candice, que
se encarregava de cozinhar e tinha funções de governanta. Também
estava Seymour, o chofer e encarregado da limpeza, que trabalhava
das seis da manhã às quatro da tarde. Ambos estavam à disposição
de Beatriz.
A casa tinha um design acolhedor e ficava numa zona exclusiva.
Era evidente que se tinham esmerado para torná-la acolhedora,
elegante e ao mesmo tempo selvagem. Era uma mistura de ideias
única.
A casa estava construída em três andares, a decoração básica
estava regida pela água através de cascatas e lagos belamente
organizados, uma mistura da natureza e requintados acabamentos
arquitetónicos. O trabalho de Beatriz era renovar as plantas que
rodeavam esses espaços aquáticos, como também os caminhos de
pedra da entrada até à área principal da residência. A cascata maior
era exterior e cobria uma parede inteira; a água caía simetricamente
numa piscina infinita criando a sensação de chegar até ao oceano
apenas com pequenos movimentos na piscina. O interior exibia uma
impressionante sala de estar com dois espaços com teto de catedral
abobadado de madeira, chão de mármore e uma sala de jantar
elevada com vistas ao horizonte. Uma escada de caracol levava ao
andar superior.
Todos os quartos estavam muito bem equipados. Beatriz opinava
que o quarto principal fosse de Irvin e da esposa, Malena —quem
conheceu durante a reunião que teve antes de aceitar assinar o
contrato de trabalho— e tinha acesso a um lindíssimo spa privado.
Era um sonho. A cozinha era ampla e tinhas três quartos ao lado
para os empregados que, certamente, não seriam muito diferentes
dos quartos dos donos da casa ou dos hóspedes, talvez um
bocadinho mais pequenos.
Perto do pátio, com sala de jantar com piso de madeira, estava o
ginásio e a área para churrascos. Apesar de uma grande parte da
mansão ter janelas de vidro, à noite —notou a Beatriz— estas
escureciam automaticamente através de um comando inteligente. A
área do estúdio principal, que ocupava todo o último andar, tinha
uma biblioteca fascinante cujas partes —organizadas por géneros
literários— se moviam da esquerda para a direita com um comando
à distância para facilitar a procura. Uma maravilha!
Beatriz tinha um trabalho árduo pela frente e só tinha duas
semanas para terminá-lo, e já tinham passado dois dias.
Os planos estavam aprovados por Irvin. Passou dois dias a
trabalhar neles com o arquiteto de confiança do seu empregador
para este projeto. Ela era engenheira agrónoma, especializada em
projetos de jardins e áreas externas, mas também se formou em
arquitetura. Estava feliz por ter estudado essas duas áreas, porque
facilitava a compreensão de outros aspetos que, sendo apenas
engenheiro agrónomo, não poderia compreender.
—É uma vista linda, não é? —perguntou a voz suave de
Candice. Rondava os 40 anos e era muito jovial.
—Espetacular —disse Bea ao contemplar o amanhecer,
enquanto os raios de sol começavam a dar uma cor especial ao céu.
Depois de uns breves segundos de silêncio virou-se para a mulher
com cabelos dourados. Já tinha descoberto que Candice gostava de
ler novelas românticas e revistas do mundo rosa internacionais. Era
uma senhora que dava muita conversa.
—O pequeno-almoço está pronto —disse-lhe a mulher com um
sorriso—. Pensei que ainda estava a dormir, mas vejo que é
madrugadora como eu. Ainda bem que gosta das redondezas. Se
vai ficar aqui duas semanas é melhor que aproveite!
—Não posso perder tempo para tirar proveito pessoais, embora
não desejasse outra coisa —disse com sinceridade— Contudo,
espero ter tudo pronto a tempo. A empresa que contratei para me
ajudar a gerir todas as mudanças chega amanhã às oito da manhã.
Por isso, tenho de me apressar. Pediu ao sr. Seymour para abrir as
portas?
—Claro que sim, não se preocupe com nada, Bea. Trabalhe,
mas também aproveite para conhecer as redondezas. Quando
terminar o seu dia de trabalho, pode pedir ao sr. Seymour para a
levar a lojas, há uns restaurantes baratos e outros mais caros…
—De certeza que não têm melhor comida do que a sua!
—Oh, que querida! Tenta provar a comida deste lado da
Austrália. Joga golf?
Beatriz deu uma gargalhada.
—Não, que loucura, a minha pontaria é uma desgraça.
—Uma pena, porque temos uns campos de golf impressionantes
—disse com um sorriso—. Os senhores Creekon deram-me um
cartão para si, para que vá ao resort, que fica a uns km de aqui. Já o
vou levar à sua mesa enquanto toma o pequeno-almoço.
—Uau… —disse surpreendida— não tinham de se incomodar.
—Os donos da casa são muito generosos.
—Pois, a ver se entre uma coisa e outra consigo ter tudo pronto
a tempo…
—De certeza que sim. O pequeno-almoço já está na mesa.
Bea já tinha contratado uma empresa que oferecia serviços de
jardinagem.
Ela tinha um orçamento limitado para comprar implementos,
materiais, terra, lâmpadas, pagar aos trabalhadores e, portanto, ter
o trabalho pronto. Aparentemente, Irvin ia dar um importante jantar
de negócios, por isso, era imperioso que Bea desse o melhor de si.
Não o ia defraudar.
Nos dias seguintes mal teve tempo para respirar.
Quando chegava a noite, subia as escadas como um zombie.
Tomava banho e depois perdia o conhecimento até às seis da
manhã do dia seguinte. Fez grandes melhorias e precisava de um
descanso.
O corpo pedia-lhe para fazer surf, mas o seu lado feminino
gritava-lhe para se entreter nas lojas. Já tinha 70% do trabalho
realizado. As áreas exteriores estavam terminadas, agora só
trabalhava no interior da casa.
Há uma semana que trabalhava sem parar. Não era saudável
para a sua criatividade. Era melhor que equilibrasse.
—Seymour, tudo bem? —disse Bea quando o viu na garagem—.
Podia levar-me a algum sítio para alugar um carro?
O homem, magro e alto, olhou para ela surpreendido. Depois
sorriu.
—Por aqui está tudo bem, menina. Eu posso levá-la onde quiser.
Esse é o meu trabalho —respondeu com amabilidade.
Ela assentiu.
—Acho que já fez mais do que o seu trabalho ao ajudar a
empresa que envia todos os dias os empregados para me ajudarem
no jardim, Seymour. Não se preocupe. Também não se ofenda.
Agradeço-lhe toda a sua ajuda, mas gostava de me deslocar mais à
vontade sem interromper o seu trabalho de limpeza diário —disse
conciliadora—. Além disso, tenho o seu número e o da Candice
registados —abanou o iPhone como prova disso e depois voltou-o a
guardar no bolso dos calções cor celeste— vou alugar um carro
para os últimos sete dias que me restam. Então, leva-me?
—Claro que sim —respondeu ao dirigir-se a um Mercedes Benz
branco. Abriu-lhe a porta de passageiros e ela entrou.
Já na estrada, Bea ficou surpreendida mais uma vez pela linda
vista. Observou as lojas, os transeuntes e o ambiente. Com óculos
de sol e otimismo renovado, saiu do carro quando chegaram à
agência Avis mais próxima. Seymour só voltou para a mansão
quando teve a certeza de que ela tinha alugado um veículo
confortável.
Depois de fazer o pagamento, Beatriz foi até ao estacionamento
e acomodou-se atrás do volante azul do jipe. Ligou o GPS e colocou
o endereço da famosa padaria que a rececionista da Avis lhe tinha
sugerido. "O melhor lugar com bolos e pão fresco de forno que a
farão suspirar", disse ela. Com os desejos que tinha por um chá
fresco à noite com um doce antes de dormir, não pensou duas
vezes e foi para o lugar, que se chamava Coralinne.
Perdeu-se, claro! Bea tinha um sentido de orientação que dava
pena, quando tinha de encontrar um sítio perdia-se sempre, e não
coordenava com o seu QI, mas finalmente lá entrou na padaria.
Estava localizada numa rua pouco movimentada, por isso,
conseguiu estacionar sem problemas.
Conversou um pouco com a empregada. Comeu duas bolachas
de aveia com pedacitos de chocolate, deu um mordisco num bolo de
caramelo com nozes, e depois saiu com um sorriso no rosto.
Comprou um pouco de cada doce que tinha provado, multiplicado
por três, em vários sacos de papel.
O panorama era prometedor, pensou entusiasmada.
Caminhou pela calçada com os sacos de bolachas e bolos, mais
um extra de croissants numa mão, enquanto que com a outra
tentava encontrar as chaves do carro dentro da mala. Tinha de estar
concentrada para não deixar cair os bolos e para ela não dar um
trambolhão e acabar no chão. Ia muito carregada, porque também
comprou café com leite que levava num dispensador portátil. Só se
atreveu a comprá-lo porque era pequeno.
Mesmo com malabarismos encontrou as chaves. Colocou os
doces no banco do co-piloto, sentou-se ao volante, pôs o cinto de
segurança e colocou o motor a trabalhar.
No meio do seu entusiasmo cometeu um grande erro. Em vez de
mover a mudança das velocidades para ir para a frente, ao
pressionar o acelerador, fê-lo para trás. Um forte golpe empurrou-a
para a frente e o airbag abriu-se.
Do impacto apenas se deu conta que os doces estavam
espalhados pelo assento de couro, e que o pequeno café estava a
gotear o tapete. Deu um murro no airbag para se afastar, reclinando
o assento para atrás. Praguejou em voz baixa.
Acabava de se meter num grande problema.
«Ai, não», gemeu em voz alta quando se deu conta, ao olhar
pelo retrovisor, do tipo de carro em que tinha batido. Um Bugatti
Veyron. Esse modelo custava mais de três milhões de dólares.
«Mas será que sou parva?», perguntou-se ao dar uma palmada na
testa.
Observando o desastre em que estavam os assentos brancos
não conseguiu deixar de pensar na conta que ia pagar. «Muito bem,
Miss Independência.»
Relutante abriu a porta e saiu do carro com cara de
preocupação.
***
As férias de Tahír na Tailândia estavam arruinadas, porque a
negociação da compra de armas em Berlim tinha demorado mais
tempo do que o necessário. O príncipe teve de telefonar ao seu
amigo Davros para lhe dizer que adiava a visita a Bangkok.
Com a ilusão que tinha de esquecer-se de todos e dedicar-se a
viver a vida boémia que costumava ter graças a ser solteiro, ainda
lhe restava uma carta para aproveitar os dias livres que tinha por
direito. Não pensava renunciar às férias.
Já tinha pedido ao Karim para enviar um comunicado oficial ao
palácio sobre a sua decisão de tirar uma semana para ele mesmo.
Quando a delegação com a qual viajou para se encontrar com o
irmão em Berlim voltou a Azhat, ele ficou na Alemanha com um dos
seus guarda-costas que costumava acompanhá-lo quando queria
privacidade ou estava de férias. Eram sigilosos e tinham treinado
juntos nas forças armadas durante a adolescência e também nas
forças especiais da segurança do palácio. Era um dos melhores
amigos do príncipe: Sufyan Tajal y Mawaj Bami. Ambos eram
descendentes de uma linhagem de guerreiros intocáveis e possuíam
uma vasta fortuna. Tinham optado pela vida militar.
—Tens a certeza que queres ir a Melbourne? —perguntou
Sufyan. Com o cabelo muito curto e olhos penetrantes cor café,
transmitia temor. Era fornido e muito rápido com armas e facas—.
Podias delegar ao Karim. Davros não se vai chatear se telefonares a
dizer que mudaste de opinião. Além disso, já sabes que as mulheres
tailandesas estão sempre dispostas a agradar aos estrangeiros.
—As mulheres que eu conheço estão dispostas a agradar a
qualquer um que lhe possa proporcionar um bom nível de vida —
respondeu o príncipe com um tom ácido.
—Estás a ser muito cínico —disso Sufyan.
—Experiências de vida.
—Nem todas são como Freya, sabias?
Os seus melhores amigos sabiam a verdade sobre aqueles dias
horríveis que viveu no passado. Cada um à sua maneira, todos o
ajudaram a sair do buraco depressivo em que esteve nesses dias.
Convidaram-no a corridas de cavalo e encarregaram-se de
organizar festas quando não tinham turno ou missão de treino.
—Ao longo dos anos não encontrei nenhuma diferente… —
acomodou-se no kuffiya—. Quanto ao tema da Austrália, já disse ao
Karim que aceitava o convite de Estado, que ia estar presente.
Então, vamos sair?
—É trabalho, Tahír, principalmente se decidires que queres
perder-te com alguma ou algumas mulheres e nos pões em apuros
à tua procura —disse Mawaj a rir-se. Ainda estavam no hotel em
Berlim a ponto de irem para o hangar privado.
—Isto se não nos causares dores de cabeça por não atenderes o
telefone—disse Mawaj. De todos os seus amigos, este era o mais
cauteloso. Ele parecia-se muito ao ator britânico James McAvoy,
com a exceção de que o militar de Azhat era moreno. Com olhos cor
de mel e bem constituído.
—Vantagens da realeza —disse a gozar—. Se gostamos da
cidade onde vamos podemos ficar lá alguns dias. Se não for grande
coisa, podemos ir mergulhar na Grande Barreira de Coral.
—Isso soa prometedor, principalmente porque não tens grandes
destrezas na água —disse Sufyan ao encolher os ombros.
—E tenho-vos aqui para quê se não for para me salvarem a
pele?
—Temos de pedir uma subsídio extra —brincou Mawaj enquanto
se dirigiam os três para a limusina estacionada na entrada principal
do hotel.
—Ou talvez nos deixes escolher primeiro a mulher mais bonita,
em vez de utilizar a tua posição monárquica para deslumbra-la e
ficar com ela —disse Sufyan com uma seriedade dissimulada. A
resposta do Tahír foi uma gargalhada.
O príncipe era um homem reservado desde o incidente com
Freya, só conseguia abrir-se mais com os irmãos ou com uns
poucos amigos, porque eles sabiam que a verdadeira natureza dele
estava orientada para a aventura e como ele gostava de desafiar as
normas e sentir a adrenalina percorrer-lhe o corpo. As restrições do
cargo que assumia assemelhavam-se ao confinamento de um tigre
de bengala numa jaula minúscula, por isso Tahír desabafava nos
treinos no ginásio, na esgrima, nos passeios a cavalo no deserto ou
nas visitas aos bérberes em camelo e, claro, também numa mulher
bonita que lhe aquecesse os lençóis.
Aos 28 anos o seu objetivo como príncipe era claro. Já não era
um adolescente perdido, que procurava a aprovação. Tinha vivido o
suficiente para só depender da sua própria opinião. Trabalhava
intensamente para melhorar o sistema de segurança fronteiriço de
Azhat, ao mesmo tempo que criava mais oportunidades para os
meninos com menos recursos na área educativa através da
Fundação Reina Dhalilah e também geria projetos de inclusão
social.
—Tu acreditas? —perguntou Tahír com um sorriso de satisfação.
Durante a adolescência os três amigos foram uns diabinhos com
as mulheres... e continuavam a sê-lo. Não as tratavam mal, mas não
tornavam oficial nenhuma relação e nem prometiam coisas que não
podiam, nem queriam, cumprir.
Sufyan e Mawaj eram os únicos que tinham autorização para
tratar Tahír por tu. E era uma grande deferência. Contudo, quando
se tratava de proteger a integridade do príncipe, não hesitavam nos
métodos a aplicar para consegui-lo, apesar da relutância do Tahír
em ouvir as regras dos amigos para o manter a salvo.
—Aqui vamos —disse Mawaj quando se sentaram comodamente
no jet privado de Azhat—. Férias à vista. —Olhou para o Tahír e
disse-lhe—: Põe o cinto de segurança, a ver se o ego não
transborda.
Tahír e Sufyan deram uma gargalhada, antes de pedir à
hospedeira que lhes servisse um whisky.
O voo para Melbourne foi muito cansativo. Fizeram uma longa
paragem para abastecer de gasolina em Paris. Mal aterraram em
solo australiano já os esperava uma delegação de boas-vindas do
presidente da câmara de Melbourne.
Tahír não teve tempo para descansar. Visitou alguns lugares
emblemáticos da cidade e comeu com o presidente da câmara e
sua esposa. Há muitos anos, noutras viagens de trabalho, tinha
estado em Sidney, Brisbane e Gold Coast, mas era a primeira vez
que estava em Melbourne. Tahír sentiu-se gratamente
impressionado com a cidade e com a hospitalidade dos locais.
Passou a noite num luxuoso hotel e no dia seguinte partiu para
Queensland. A região era lindíssima, segundo as averiguações
feitas pelo Karim e por ele próprio, e ia contratar uma excursão
privada para mergulhar na Grande Barreira de Coral. Não era todos
os dias que tinha a oportunidade de ter um tempo para ele mesmo e
para aproveitar das maravilhas do mundo em privado.
—Este lugar está muito bem —disse Mawaj quando chegaram à
mansão onde iam ficar alojados.
—Foi por isso que a comprei —respondeu Tahír, observando as
vistas da propriedade localizada em Port Douglas.
No palácio, através de Karim, encarregaram-se de organizar
tudo numa transação ágil, e o título da propriedade ia ser emitido
nos próximos dias, antes do Tahír se ir embora da Austrália. O preço
de mercado da mansão era de dez milhões de dólares, e mesmo
sem regressar tão depressa, Tahír considerou que era um
investimento excelente para os Al-Muhabitti. Um sítio para
descansar privado e cómodo. Era ideal para perder de vista os
paparazzi, os políticos intrometidos ou os contra tempos habituais.
A casa tinha uma piscina central, quadra de ténis, três andares
que se distribuíam em 10 quartos, uma sauna, uma sala de jogos,
duas cozinhas e um estúdio grande. As vistas do terceiro andar
davam para as montanhas e para o mar.
—Realmente é espetacular —disse Sufyan quando o empregado
lhes atendeu para mostrar a casa.
O dinheiro movia tudo com mais agilidade. Quatro horas depois
de terem chegado, não só tinham empregados dispostos a servi-los
como contavam com tudo o que pudessem precisar. Uma vez mais,
Karim —desde Tobrath— tinha coordenado tudo com extraordinária
rapidez.
—Vamos comer alguma coisa por aí? —perguntou Sufyan ao
tentar relaxar o pescoço. O jet-lag ia ser insuportável.
Os três usavam roupa desportiva. As roupas típicas do Médio
Oriente estava guardada em segurança em casa. Estava calor e,
ainda que estivessem habituados a isso, não queriam deambular a
chamar a atenção quando o que Tahír mais queria era passar
despercebido.
—Podíamos beber algo típico recomendado pelos moradores da
zona. Podias pesquisar? —perguntou Tahír a Mawaj.
—Sem problema —respondeu o sósia de James McAvoy—.
Seguimos-te no carro que alugámos para nós. Podíamos deixar-te
sozinho, mas não devemos deixar à sorte as normas de segurança.
—Revisaram as redondezas? Acho que é um lugar bastante
seguro.
Sufyan assentiu.
—Enquanto terminavas de tomar banho, demos um passeio
pelas redondezas. Não encontrámos nada que pudesse ser
considerado suspeito. A casa fica a vários Km de outra casa. Vais
ter privacidade suficiente, e acho que finalmente também nos
podemos descontrair um pouco.
—Magnífico —sorriu.
Tahír aproveitava as férias, porque podia fazer com o tempo o
que quisesse, sem agenda, sem protocolos. Além disso, podia
desfrutar de um carro potente e vaguear com ele pelas ruas a alta
velocidade.
Saíram de casa e foram à padaria que as pessoas do serviço da
mansão recomendaram ao Mawaj. Coralinne. Este era o nome da
padaria localizada numa rua discreta.
Tahír estacionou atrás de um Jeep azul e agradeceu por haver
pouca gente.
Estava a ponto de sair do Bugatti quando viu sair da padaria uma
mulher que mal conseguia manter o equilíbrio com a quantidade de
compras que levava. Era impossível não olhar para ela. De facto,
era uma mulher muito bonita. Não dessas belezas artificiais e
arranjadas como se fossem apresentar-se a um evento importante.
Dava a impressão que não tinha reparos em sujar as mãos se o
benefício fosse para ela mesma. Vestia um short que deixava à vista
umas pernas bem torneadas, enquanto que a blusa de alças que o
vento colava à pele mostrava uma cintura estreita. O cabelo
apanhado num rabo de cavalo parecia castanho claro à luz do sol.
Tinha umas curvas de infarto. Em poucas palavras: de tirar a
respiração.
Algo vibrou no peito de Tahír; algo mais do que a luxuria súbita e
surpreendente, isso fê-lo torcer o nariz. Não costumava reagir assim
a nenhuma mulher. Era como se de repente ela tivesse algo dentro
dele que se expandia e contraia com intensidade. Abriu e fechou os
olhos.
Tirou os óculos de sol e esfregou as pálpebras com os dedos.
Tirou o cinto de segurança para sair do carro. Ia à padaria, e
enquanto a mulher saia do estacionamento podia vê-la mais de
perto.
Tahír praticamente deu um salto no passeio quando ao chegar a
porta do Bugatti, viu com perplexidade que o Jeep azul em vez de ir
em frente, recuava com um impulso obstinado e avançava contra o
seu carro. O príncipe amaldiçoou em voz alta. Como é que alguém
podia conduzir tão mal para bater numa zona vazia, com imenso
espaço e com o sol radiante a iluminar todos os sítios? Um grande
mistério, ou então a mulher era uma novata amadora.
Se havia coisa que tinha aprendido era que ninguém passava
pela sua vida causando estragos sem receber uma boa bronca. E
ele pensava dá-la a essa mulher.
CAPÍTULO 4

—O que está a fazer? —perguntou-lhe o desconhecido.


Bea ficou um instante sem dizer nada. O homem arrepiou-a.
Sentia que já o tinha visto antes, em algum sítio. Mas isso não era
possível. Massajou as têmporas para acalmar a dor de cabeça
súbita que começou a atormenta-la. Sentiu-se ansiosa, porque este
era o tipo de dor que costumava ser o prelúdio de uma premonição.
Isto já não lhe acontecia há vários anos.
Fechou os olhos.
Esperou que o corpo começasse a sentir-se cansado. Esperou
que a necessidade de deitar-se fosse tão intensa que mal pudesse
ver alguma coisa à volta. A dor de cabeça permaneceu, e não teve
nenhuma premonição durante os segundos em que manteve os
olhos fechados.
—Está surda? —insistiu o homem.
Ela abriu os olhos e olhou para ele consciente.
Ele estava de braços cruzados. Uns braços muito fortes, notou
Bea sem poder evitar. Também não pôde deixar de evitar que vestia
umas calças brancas e que estas se ajustavam a umas pernas
poderosas; tinha uma camisa com três botões que lhe assentava
como uma luva. As mangas da camisa celeste estavam arregaçadas
até aos cotovelos. Os moccasins desportivos, marcados com o
caríssimo símbolo da marca, faziam pandam com a camisa. O
cabelo escuro estava penteado para trás, e o queixo salpicado por
uma barba de uns três dias.
—Já terminou de inspecionar a minha roupa? Gosta? —
perguntou com tom de gozo sem descruzar os braços.
—Eu… —murmurou ela a tentar recuperar a compostura.
Era a primeira vez que sentia uma espécie de emoção
borbulhante, e isso não tinha sentido. Acabava de bater num
Bugatti! Onde é que ia ao dinheiro para arranjar um risco enorme
neste carro?
Em poucos passos, Tahír diminuiu a distância entre eles. Uma
leve brisa levou até à Beatriz o aroma masculino, um perfume caro e
exótico que lhe encheu os sentidos.
—Parece que só sabe dizer monossílabos, menina —disse
inclinando a cabeça levemente para um lado—. Terá de aprender a
falar com mais fluidez, porque tem de explicar o que aconteceu.
—Desculpe, a sério! —murmurou quando o seu cérebro pareceu
ter compaixão por ela e começou a funcionar. Deu-se conta que não
se tratava apenas de um risco, tinha levado à frente a esquina
esquerda do carro—. Ai, meu Deus, a sério. Que pena. É a primeira
vez que…
—Conduz? Imagino que sim.
Nesse momento apareceram dois homens grandes e
aproximaram-se com intenção de rodeá-la, mas um gesto quase
impercetível do dono do Bugatti deteve-os.
—É inofensiva. Salvo pela falta de talento que tem ao volante —
disse ao olhar para ela—. Não se preocupem.
—Mas…—começou a contradizer Sufyan, embora muito de
repente tenha mudado de opinião— como quiseres. Por certo, dizia
a sério, isso da primeira mulher bonita, eh.
—Deixa-o, Sufyan, não o provoques, depois não podemos sair à
noite—disse Mawaj com um sorriso ignorando completamente o
Tahír, quem lhes enviou um olhar furioso antes de voltar a
concentrar-se na linda condutora.
—Imagino que o senhor tem muito dinheiro —sussurrou Bea
aliviada ao ver aqueles homens intimidantes a irem-se embora—.
Tenho um pequeno negócio, mas não posso permitir-me a ter um
Bugatti —tentou sorrir, mas falhou totalmente— de qualquer forma,
podia dar-me o seu nome e os seus dados? Garanto-lhe que pouco
a pouco vou pagando-lhe o que custar o arranjo do carro. A minha
empresa tem um advogado externo, que pode contactar com os
seus para limar asperezas —disse nervosa.
—Não me reconhece? —perguntou ele com a cara franzida.
Ela suspirou.
—Duvido que seja uma estrela de cinema. Gosto imenso de
Henry Cavill, e você não se parece a ele. Ele é a única celebridade
que conheço… —suspirou, o que é que este homem tinha a ver com
as fantasias dela eram com Henry? —Se é modelo ou algo assim
terá de me dizer, porque o meu tempo está dividido entre trabalhar e
tentar ter uma vida.
—E além disso fala por quatro —murmurou Tahír.
Bea encolheu os ombros.
—Se lhe parece. —Não era nenhuma novidade. Ela já sabia que
esse era um dos seus principais “atributos” quando se punha
nervosa. Falava mais da conta.
—Chamo-me Tahír —disse. A ideia de ela não o ter reconhecido
animava-o. Ou se calhar estava a mentir-lhe. De todos os modos,
ele ia comprovar o que ela estava a dizer. Todas as mulheres
sabiam perfeitamente quem ele era e os milhões que a família tinha,
mais a propriedades e os yates que podia usar quando quisesse—.
E você quem é…?
—Beatriz Fisher, mas os meus amigos chamam-me Bea.
—Nós não somos amigos, por isso chamo-a de Beatriz.
«Mal-humorado.»
—Claro… —Bea tirou do bolso dos calções o talão da padaria—
podia dar-me os seus dados?
Ele olhou para ela de alto a baixo. De perto ainda era mais
bonita. Tinha algumas sardas no nariz espalhadas de uma maneira
adorável, e os olhos pareciam ter pontinhos verdes. Era impossível
não reparar na boca provocativa, rosada, que parecia gritar para ser
beijada por ele. Beatriz exalava uma subtil sensualidade, e o
príncipe desejou poder aproximar-se para provar aquela boca.
Parecia que o depredador que existia nele tinha sido acordado
de repente, mais despertado e com mais brio do que nunca. Teve
vontade de experimentar a sensação daqueles lábios generosos à
volta do seu membro, provando-o, tocando-o intimamente…
Perguntava-se se ela seria uma amante cautelosa ou aventureira.
—Farei algo melhor —disse Tahír. Ele ia dizer-lhe para esquecer
o assunto porque não queria problemas. O susto que parecia ter
causado nela a ideia da reparação, que garantidamente teria um
preço alto para alguém que dizia ter um negócio modesto, já era
suficiente para ter atenção para aproxima vez.
—Sim? —perguntou na esperança de ele não ser assim tão
malvado—. Podia dar-me o seu cartão de visita? Assim poupo-me a
vergonha de pedir uma caneta emprestada à empregada da loja, já
basta esta confusão…
—Jante comigo esta noite —pediu-lhe Tahír surpreendendo-se a
si mesmo.
—O quê?
—Jantar. Comer. Por acaso não come?
Ela abriu e fechou a boca. Ficou a olhar para ele. Os olhos
verdes de Tahír eram luminosos e contrariavam a evidente teimosia
do seu dono, assim como a tendência palpável a ser demasiado
sério. Embora, vendo bem, ela também não se ia sentir feliz se
alguém batesse no carro dela.
—Acho que ter batido lhe afetou mais a si do que a mim.
—Isso é um sim ou um não, Beatriz?
Bea sentiu um formigueiro na pele pela maneira como ele
pronunciou o nome dela. Ela não conseguia identificar a origem do
sotaque dele, soava exótico, sensual. Como o ronronar de um tigre
pronto para conseguir o que quer.
Não seria estranho se ele lhe pedisse para pagar um jantar
absurdamente caro como o arranjo do carro… E como era tudo tão
caro em Port Douglas, o mais provável é que lhe faltasse dinheiro.
Ela não se podia dar ao luxo de jantares caros com frequência, mas
era melhor isso do que pagar o arranjo do Bugatti. Sim. Essa jantar
podia sair muitíssimo caro.
—Claro. Acho que posso pagar um excelente jantar em algum
sítio luxuoso onde quiser ir com a sua namorada ou mulher —sorriu
com timidez. A dor de cabeça não dava tréguas. Sentiu mais falta do
que nunca dos chás especiais que a mãe lhe preparava para a dor
de cabeça na sua casa de Melbourne—. De facto, acabei de
começar um projeto novo, e, bom, prefiro pagar-lhe em prestações.
Vou fazê-lo, mas neste momento…
—Não lhe estou a pedir que me pague um jantar, Beatriz! Nem
que seja patrocinadora de um encontro com uma mulher, que
loucura! —Exclamou Tahír, aborrecido com a interpretação
equivocada. Esta mulher falava pelos cotovelos—. Estou a pedir-lhe
que jante comigo. E se for uma boa companhia, talvez pense em
esquecer o que aconteceu com o Bugatti.
—Isto é uma demonstração do seu “charme”? De como costuma
meter-se com uma mulher? —perguntou ela ao cruzar os braços e
alheia ao olhar interessado do Tahír pelos atributos físicos que
acabava de destacar, sem dar-se conta, em exclusivo para ele—.
Porque se vê a KM que —apontou para ela e depois para ele— o
senhor e eu não temos os mesmos gostos.
Ele fez um meio sorriso, e Beatriz tentou não fechar muito as
pernas devido ao calor súbito que se instalou na sua zona mais
íntima.
—Há muitas maneiras de conquistar uma mulher, Beatriz, mas
hoje só quero que me acompanhe a jantar.
Ela tinha a certeza que tinha corado. A voz de Tahír era um
pecado em si mesma, baixa e rouca. Tinha o tom perfeito para
convidá-la a pensar nos lençóis de seda pretos, corpos nus e
enrolados em posições ardentes. A imaginação superava a
experiência, sem dúvida.
—Se considera que essa é a forma de pagar este acidente…
—Eu disse que, se fosse uma boa companhia, pensaria.
—E que critérios utilizará? As doses de comida? Quantos doces
sou capaz de comer? Se por acaso não faço barulho com a boca?
Ou…?
Ele levantou a mão com o seu gesto habitual majestoso com o
qual pedia silêncio, e ela calou-se.
—Jante comigo e descubra.
—Eu…
—Sim ou não? Escolha entre a conta do arranjo do Bugatti ou
um jantar que pode evitar-lhe um valor avultado ao mecânico.
—Eu…
Beatriz não se via a jantar com ele. Punha-a nervosa. Precisava
de se afastar, mas o seu sentido de sobrevivência económica tinha
de prevalecer. Depois analisaria a razão das emoções tão
surpreendentes que vinham à superfície à frente do Tahír.
—Voltamos aos monossílabos? —perguntou ele levantando uma
sobrancelha.
Ela olhou para ele relutante.
—De facto, não me dá as melhores opções, mas entre todos os
males, este é o mais pequeno —suspirou— OK, janto consigo. —
Ditou-lhe a morada, e Tahír anotou no telemóvel—. Às 20h00,
porque antes estou a trabalhar…
A ele ninguém lhe dizia a hora ou o lugar onde tinha de estar.
Pelo contrário, os horários e as imposições eram ditadas por ele.
Mas como a Beatriz ignorava o seu status real, ou fingia muito bem,
preferia ignorar.
—Até logo, Beatriz.
***
A primeira vez que saia com alguém em… cinco anos?
Não, não era um encontro. Era uma reparação de danos.
Desceu as escadas da mansão que era o seu lar até terminar o
projeto dos Creekon.
Nessa noite tinha optado por um vestido sem alças, branco com
motivos florais azuis, e um cinto vermelho com fivela estreita. As
sandálias vermelhas com cordões realçavam a pele branca. Para
complementar, o relógio que usava sempre e os brincos de lágrimas
douradas que o pai lhe tinha dado pelo seu décimo quinto
aniversário. Eram os seus brincos favoritos.
Esta era a única peça de roupa mais ou menos elegante que
tinha na mala de viagem, tinha o hábito de levar sempre algo assim
"porque nunca se sabe". Ela respirou fundo e agarrou na pequena
mala, onde guardava o telemóvel e as chaves. Nem sequer queria
pensar na conta naquela noite. A campainha da porta principal soou.
—Sim?
—Beatriz —disse uma voz grave que ela reconhecia com total
claridade.
Ela pressionou o botão que abria a porta. Toda a parte frontal
dos jardins da casa estavam terminados. Estava muito emocionada.
Tinha substituído umas flores e uns cactos velhos por umas flores
em tom fúcsia. A relva estava cortada e ela tinha posto uma piscina
grande de dois querubins. Também pensou em criar um arco de
flores na porta lateral do ginásio, para dar mais privacidade. Se tudo
fosse tão rápido como tinha sido até agora, talvez terminasse três
dias antes do esperado.
Ao segundo toque, quando abriu a porta principal, Bea ficou
branca. Meu Deus. Se nessa manhã Tahír estava giríssimo, agora
parecia tirado de um anúncio de fantasias proibidas.
—Eu… Olá —cumprimentou ela.
Ele olhou para ela com uma apreciação masculina. No geral
estava lindíssima. Sem artifícios, mal estava maquilhada. Os lábios
que de manhã tinham um tom rosado natural, agora estavam
pintados de vermelho. Tahír imaginou-se a despi-la para descobrir
cada centímetro da pele dela. Perguntava-se como ficaria o cabelo
castanho dela espalhado na sua almofada, pensava nela exposta a
ele. Dentro das calças cor café escuro o membro vibrou.
—Estás muito bonita—tratou-a por tu—. Vamos? —perguntou
com um meio sorriso e dando-lhe o braço para que ela o agarrasse.
—Obrigada… —murmurou, corando.
Bea pensou que devia ter sentido algum tipo de faísca. E que
essa faísca era um indício de querer saber mais sobre ele só pelo
facto de tê-lo tocado, como lhe costumava passar com outras
pessoas. Não fez qualquer tentativa para se abrir mentalmente a
Tahír. Preferia não tentar a sorte. De manhã já tinha tido suficiente
com as capacidades como malabarista multifunções.
Ele levou-a até ao carro e abriu a porta de co-piloto até que a
Bea se sentou confortavelmente. Depois, Tahír foi até ao outro lado
do carro e sentou-se atrás do volante. O Bugatti lembrava-a
claramente da verdadeira razão pela qual estavam a sair para jantar.
—Os teus guarda-costas vêm contigo? —perguntou-se tratando-
o também por tu, uma vez que era ridículo continuar com o tom tão
formal da manhã.
—Estão discretamente perto de mim.
Ele pôs rumo ao número 17 da Murphy Street. Nautilus
Restaurant. Tinha boas referências, e não tinha intenções de provar
qualquer tipo de comida. Adorava o marisco e ia comprovar os
excelentes comentários que tinha lido do sítio.
—Não me disseste de que país és… o teu sotaque é diferente.
Não consigo identificá-lo.—disse ao observar o perfil masculino. As
mãos elegantes de Tahír estavam no volante e davam leves
palmadas ao ritmo da música de fundo. Bea imaginou aqueles
dedos a acariciarem-lhe a pele. O contraste da pele bronzeada com
a dela tão branca era exótico e tentador.
Ele olhou para ela brevemente. Sorriu.
—O meu país chama-se Azhat. Um pequeno reino do Médio
Oriente. A principal cidade é Tobrath.
—Se é um deserto deve fazer muito calor ali.
—Se estás habituada ao calor da Austrália, em Azhat não te
sentirias muito diferente.
Ela apertou os dedos que estavam interlaçados no regaço. Tinha
vontade de o tocar. Acariciar o queixo e perder-se nas promessas
ocultas daquele olhar de um verde inigualável. Abanou um pouco a
cabeça.
—Porque tens guarda-costas? —indagou quando chegaram às
imediações do restaurante—. O meu país é um sítio muito seguro.
Tahír ficou em silêncio durante um longo momento até que
estacionaram. Tiraram o cinto de segurança. Quando Bea ia abrir a
porta, a mão dele pousou no pulso dela para que ela não saísse do
carro.
Ficou quieta. O aroma exótico e pessoal de cada um misturava-
se com a marca do perfume que levavam. Era uma combinação
envolvente. O ar borbulhava com uma tensão primitiva.
—Sou um príncipe.
Ela olhou para ele durante um segundo e depois começou-se a
rir.
—Eu pensei que eras um folgado, mas agora dou-me vejo que
contas piadas muito engraçadas…
—Não é brincadeira —disse sério, e pouco a pouco o riso dela
foi perdendo força—. Chamo-me Tahír Al-Muhabitti, e sou o
segundo na linha de sucessão ao trono do meu país.
Sentia a pele a arder no sítio onde ele a estava a tocar. Um
toque firme e suave. Nos olhos verdes não havia uma única pinga
de dúvida. Ele estava a dizer a verdade. «Um príncipe! Era
impossível não estar mais fora da sua praia.»
—Então, a verdade é que não precisas decidir se devo ou não
pagar-te o arranjo do Bugatti, não é? —perguntou num sussurro, em
choque com a notícia. Não era todos os dias que se encontrava com
príncipes. Bem, nem com comuns mortais.
Tahír largou-a, com muita pena.
—Antes de bateres no meu carro, eu já me tinha fixado em ti —
confessou.
Tahír notou que ela de facto não sabia quem ele era. A verdade
é que queria levá-la para a cama. Queimar debaixo dos lençóis
aquela estranha necessidade de tê-la que não sentia desde… Como
nunca tinha sentido nunca. Seriam só uns dias de diversão, depois
ele voltaria à vida dele. De certeza que se esqueceria dela como de
todas as mulheres que ia conhecendo. Nenhuma era material
duradouro.
—Não sei o que dizer…
—Vamos jantar, e assim fico a saber um pouco mais sobre ti.
—E eu também um bocadinho mais sobre ti —murmurou.
Com tantas mulheres que de certeza estavam atrás dele, porque
se fixou nela?, pensou Bea. Claro que não lhe ia perguntar isso,
porque isso significava que precisava de reafirmar a sua atração
com o sexo oposto, e tinha uma autoestima bastante saudável para
não fazer esse disparate.
Para chegar ao restaurante tinham de andar do estacionamento
até a um pequeno caminho alinhado com árvores altas. Fizeram
esse caminho em silêncio.
Quando chegaram ao local, foram atendidos com diligência e
sentaram-se numa mesa central. Para surpresa de Beatriz o
restaurante estava vazio. Pelo canto do olho viu que dois homens,
imaginava que eram os mesmos que de manhã a tentaram
repreender, estavam a falar com um pequeno grupo de pessoas.
Não eram quaisquer pessoas, eram as pessoas de ali.
—É sempre assim? —perguntou-lhe ela. Não precisava de lhe
explicar a que se referia.
Tahír encostou-se às costas da cadeira de vime. Era cómoda e
acolchoada. Para além da boa comida, Sufyan e Mawaj disseram-
lhe que o Nautilus Restaurant era discreto e assim seria mais fácil
manter a sua segurança do que na Macrossan Street, a artéria mais
concorrida de Port Douglas com vários restaurantes e boutiques.
—Geralmente. De facto, os dois guarda-costas são os meus
melhores amigos —comentou enquanto lhe serviam um requintado
vinho francês de 2007, Châ teau Malescot St. Exupéry—. Preferes
outro tipo de vinho ou outra coisa para beber, Beatriz? —perguntou
Tahír.
Ela negou.
—Vinho tinto está bem para mim. Obrigado! —disse ao
empregado de mesa.
Este assentiu, serviu-os e deixou-os sozinhos.
—Eu pensava que um príncipe teria toda uma delegação à sua
disposição —comento girando o conteúdo do copo.
—É isso —comentou ele com um sorriso—. Agora estou de
férias. Não preciso de tanto staff. Sei tomar conta de mim mesmo.
«Aposto que sim.»
—Porque escolheste Port Douglas?
Tahír esboçou um sorriso. Tinha uns dentes perfeitos. Por um
segundo, Bea olhou fixamente para a boca sensual dele. Ele
pareceu dar-se conta, mas não disse nada.
—Estou perto da Grande Barreira de Coral. Um destino
interessante e imperdível. Já há muito tempo que queria vir aqui e
visitar a barreira. E tu? Há quanto tempo vives aqui?
À medida que bebia vinho, Bea começava a descontrair-se. A
tensão que sentia desde manhã ia desaparecendo. Talvez fosse
devido ao som do mar ao longe, a voz cativante de Tahír e, claro,
para quê negar, a virilidade tão potente que irradiava.
—Sou de Melbourne. O sítio onde me foste buscar hoje é a
mansão onde eu trabalho…
—És governanta? —perguntou curioso, mas sem alterar o tom
de voz.
Bea riu-se suavemente, e isso foi música para os ouvidos de
Tahír, que lhe respondeu com um sorriso. Ele gostava do pouco que
começava a ver nela. Às vezes parecia tímida, e de repente podia
desatar a rir.
—Sou engenheira agrónoma com especialidade em design de
jardins. Os donos da casa contrataram-me para um projeto. Tenho
de o entregar nos próximos dias.
—Compreendo —sorriu—. Então, não tens compromissos?
Talvez um namorado interessado em vir visitar-te? —perguntou-lhe
ao mesmo tempo que fez um gesto ao empregado de mesa para
pedirem.
Ela pediu o prato clássico da casa, uma especialidade de trucha
de coral, cuja receita datava de 1980. Tahír pediu o menu de
degustação com cinco pratos e os seus respetivos vinhos.
—A única coisa que me interessa agora é a minha carreira
profissional —disse com simplicidade.
Ainda sentia a necessidade de telefonar a Ordella. A dor de
cabeça de antes já tinha diminuído, mas o coração batia como se
estivesse a correr. Tahír dava respostas herméticas. E, apesar
dessa certeza, ela estava disposta a contar-lhe tudo o que ele
quisesse saber dela. Como se fosse importante ganhar a confiança
dele. Que grande disparate!
—Todos temos momentos dedicados ao prazer, Beatriz —
comentou ao olhá-la com o fogo a arder nos olhos das pestanas
grossas—. És saudável.
—Podes chamar-me Bea, em vez de Beatriz. Só os meus país é
que me tratam pelo nome completo quando se chateiam comigo —
disse ao tentar parecer casual. Estava inquieta pela maneira como
ele olhava para ela. Remexeu-se na cadeira.
—Disseste que os teus amigos te chamavam por esse
diminutivo, e eu deixei claro que não somos amigos…—expressou
meio sorridente—. Mas noutra circunstância posso chamar-te assim,
claro!
Mesmo sabendo que não era prudente morder o gancho, ela
forçou os seus próprios limites.
—Qual seria essa circunstância? —perguntou com cautela.
—Quando formos amantes.
—Uau… —disse Beatriz ao tentar conter a vontade o mandar
para o inferno. Não lhe ia dar a satisfação de reagir. Ela não merecia
isso e não ia perder tempo. Pôs o garfo no prato e inclinou-se para
um lado, apoiando o peso do corpo no lado esquerdo, olhou para
ele—. Nenhuma mulher te diz que «não», não é?
CAPÍTULO 5

Tahír era muito seguro de si mesmo como homem. Isso ia muito


além do dinheiro e do status. Sabia que era bonito e que também
era bom, muito bom na cama. Por isso, nunca ouviu um «não».
—Não tiveram razões para fazê-lo.
Bea abanou a cabeça, dececionada, e depois deixou escapar um
riso irónico. Agarrou no guardanapo que tinha no colo e pôs de lado
o copo de vinho sem terminar.
—Dá-me um momento. Vou ao lavabo.
Ele achou estanho, mas levantou-se ao mesmo tempo que ela.
—Claro.
Enquanto esperava, Tahír pensou no que a Beatriz lhe tinha
acabado de dizer.
Costumava ser muito seguro sobre o que desejava e queria,
porque foi criado dessa maneira. Embora tivesse uma reputação
como bom estratega em segurança a pulso, e não por ser príncipe,
a verdade é que devia aceitar que se tinha comportado como um
parvalhão. Aquela mulher tinha alguma coisa que o desequilibrava,
e isso incomodava-o. Não se justificava dar por sentado que ela
queria ter relações com ele.
Tudo teria ido perfeitamente se ele não tivesse aberto a boca
para o que o seu membro estava a pedir a gritos, porque Beatriz o
excitava e não conseguia parar de imaginá-la nua na sua cama. A
química entre ambos era palpável; era visível na forma em que os
olhos cafés de Beatriz o estudavam e como ela corava.
Podia ser mulherengo ou descarado, mas nunca faltava ao
respeito às mulheres. Embora não fosse do seu estilo desculpar-se,
ia fazê-lo.
Passavam os minutos e a Beatriz não regressava.
«Nenhuma mulher demorava 15 minutos no lavabo, a menos
que tivesse acontecido alguma coisa.» Tahír levantou-se da mesa e
foi buscá-la.
—Onde é o lavabo de senhoras? —perguntou ao homem atrás
do balcão.
O homem já tinha visto a jovem que estava com o príncipe. Os
empregados do restaurante estavam proibidos de dar informação
sobre Tahír.
—Alteza, está à procura da menina que veio consigo?
—Sim.
—Desculpe, ela foi-se embora há uns dez minutos.
Tahír abriu e fechou a boca. Totalmente desconcertado.
—O que está a dizer? Como que se foi embora? Não a vi a sair
—disse a pensar no tempo que esteve à espera de ela voltar à
mesa. De facto, mentalmente tinha calculado o que lhe diria para
pedir-lhe desculpas.
O homem tossiu, evidentemente incomodado, e esboçou um
sorriso amável. Não tinha intenção de chatear o príncipe.
—O restaurante tem duas saídas, Alteza. A principal —apontou
para lá— e a de emergência. Ela perguntou-me por essa, não vi
nenhuma razão para não lhe dizer. Desculpe.
—A culpa não é sua. Aqui tem —disse Tahír ao passar-lhe o
cartão de crédito.
O ruivo de olhos azuis sorriu-lhe com pena. De novo.
—Ehhh, desculpe, Alteza, mas eu não posso cobrar duas vezes.
A menina, antes de sair, pagou a conta. Parecia estar com pressa e
eu não pensei que fosse um problema. De facto, ela até insistiu.
«Mas que raio?», pensou Tahír, cada vez mais irritado.
—E não lhe passou pela cabeça que é de mau gosto que uma
mulher pague o jantar de um encontro?
O homem ficou sem palavras. Mas não era normal uma mulher
pagar tal como um homem?, pensou. Pelo menos isso era normal
na Austrália, e ia dizer-lho.
—Alteza…
—Cavalheirismo, senhor. Cavalheirismo.
—Desculpe, a sério…
—Para de pedir desculpas —disse de mau humor.
A paciência de Tahír esgotou-se.
Sem dizer mais nada saiu para o parque de estacionamento,
como se o estivessem a perseguir mil demónios. Sufyan e Mawaj
olharam intrigados um para o outro ao vê-lo passar, seguiram-no.
—O que se passa? —perguntou Mawaj quando chegaram ao
carro, com a mão no bolso do casaco de linho. Levava uma 9mm.
—Deixou-me plantado. Agarrou na mala, foi ao lavabo e depois,
simplesmente, saiu pela saída de emergências do restaurante e foi-
se embora. Foi-se embora! —disse com voz de espanto.
—Ups —murmurrou Sufyan, enquanto Mawaj guardava a arma
—. Devíamos tê-la vigilada?
—Não —interrumpeu Tahír. Eles estavam ali por ele, não por ela.
Também não lhes tinha pedido nenhum tipo de segurança especial.
A culpa era sua.
—Deve ter apanhado um táxi —expressou Mawaj com as mãos
nos bolsos.
—Tenho de solucionar este assunto —disse o príncipe.
—Não acho que… —começou a dizer Sufyan.
—Tenho o mesmo treino que vocês. Os únicos que sabem onde
estou são o meu pai, os meus irmãos e Karim. Vou estar bem.
—Tens o botão de emergência ativado no telefone, e se mesmo
assim não for suficiente em caso de necessidade, amigo? —
peguntou Sufyan—. Mesmo que queiras não te podemos deixar
sozinho, já sabes, seríamos acusados de negligência.
—É uma ordem real!
Suyan deu uma gargalhada. Sabia que Tahír estava frustrado.
Isso era muito curioso, porque geralmente controlava bem os
nervos, raramente deixava escapar as suas verdadeiras emoções.
Era a primeira vez que uma mulher o desprezava.
—Temos ordens do rei para não te perder de vista. A quem é
que achas que vamos obedecer? Os que perdemos somos nós, não
tu —respondeu.
—Resolve o que tens para resolver que nós protegemos-te,
embora não precises —comentou Mawaj no seu habitual tom
conciliador—. Vamos estar discretamente por perto.
Tahír passou os dedos pelo cabelo. Eles tinham razão.
—OK, rapazes… OK.
Tirou as chaves do Bugatti do bolso e abriu a porta do carro. Não
tinha tido tempo para ir ao concessionário trocá-lo.
***
Não queria saber quanto teria de pagar de cartão de crédito no
final do mês pelo consumo no restaurante. O melhor que fez foi
deixar ali o Tahír, embora tivesse sentido pena pela comida deliciosa
que tinha começado a apreciar mas que deixou no prato.
Atirou as sandálias para um lado e foi até à casa de banho
escovar os dentes. Ao terminar pôs o vestido atrás da porta. Da
gaveta que estava perto da janela tirou uns calções azuis turquesa e
uma blusa de algodão preta.
Costumava dormir com um copo de água na mesinha de
cabeceira, por isso desceu as escadas, descalça, e foi até à cozinha
principal. Detestava passear pela casa em plena madrugada.
Enquanto deambulava pela casa perguntava-se como se atrevia
Tahír a propor-lhe algo assim. Será que pensava que ela era igual a
todas as mulheres com quem ele saia e que caiam rendidas aos pés
dele?
Agora que já sabia de onde ele era e o seu apelido, não tinha
problemas em pedir ao Dexter os serviços do seu detetive privado
para pagar as prestações mensais —teria de pedir um orçamento a
uma oficina— do valor da reparação do Bugatti. Embora fosse
exigente com tudo, depois da grosseria por parte dele, considerou
que ele teve o que mereceu.
Sim. Assunto resolvido. Não lhe ia pagar nada. Dívida paga.
Encheu o copo com água e foi bebendo devagarinho. Voltou a
enchê-lo. Apagou a luz da cozinha, e começou a subir as escadas
de volta ao quarto. Acabava de colocar o copo na mesinha de
cabeceira quando o telefone começou a tocar.
No ecrã aparecia o nome da mãe.
—Olá, Ordella —disse com um sorriso. A mãe sempre a fazia
sorrir—. Já estava a estranhar que não me telefonasses.
—Acabei de regressar de Sidney com o teu pai. Diz que tem
saudades tuas, e claro, eu também tenho, meu tesouro.
—Eu também tenho saudades vossas. Correu tudo bem em casa
da tia Elvira?
—Sim, claro. Já sabes que a tua tia é um bocadinho
melodramática, por isso o teu pai quis ficar lá mais uns dias. Bem, e
que tal tudo por Queensland?
—Costumas ter um timing excelente para falar comigo —disse
Bea a rir-se.
A tia Elvira era hipocondríaca. Costumava telefonar ao pai da
Bea a dizer que a iam tirar de sua casa ou que ia morrer nesse dia e
queria despedir-se. Em consequência, os pais da Bea apanhavam o
primeiro voo disponível de Melbourne a Sidney para passar uns dias
com ela, eram conscientes de que a tia Elvira de vez em quando
precisava de ver o seu único irmão.
—São apenas capacidades especiais.
Ambas se riram. Bea não estava nada chateada.
—Eu ia telefonar-te. Queria perguntar-te uma coisa.
—Isso é uma novidade, normalmente não gostas das minhas
premonições.
—Não é nada disso —disse a sorrir enquanto se encostava na
cama com um colchão muito suave e confortável—. Hoje aconteceu-
me uma coisa estranha.
Contou-lhe que bateu num carro, da dor de cabeça repentina, da
súbita ansiedade e da excessiva intranquilidade. A sensação de
conhecer o Tahír desde sempre. Falou-lhe do desejo irreprimível de
se aproximar e afastar dele numa contradição que a inquietou
depois do encontro. Depois contou-lhe como decorreu o jantar. Bea
esteve a divagar durante uns cinco minutos com a mãe, que a ouvia
muito atentamente.
—Mmm…—disse Ordella quando a filha terminou de falar.
—Isto é habitual? Tive a última premonição há tanto tempo, mas
lembro-me que os sintomas que tive hoje foram muito diferentes dos
que já tive com outras pessoas. Até com o Dexter, foi muito
diferente.
Dex caia bem aos pais da Beatriz, e o apreço era mútuo. Surka,
amiga da Bea, adorava ouvir as premonições da Ordella, para além
de ser enfermeira ainda tinha um curso em astrologia. Cada vez que
visitava a Ordella, Surka podia passar horas a conversar e a
misturar a ciência dos astros com os arquétipos do Tarot.
—Não, não é habitual. Só acontece uma vez na vida na rama
psíquica feminina da nossa família.
—Acho que não quero saber…—sussurrou.
—Isso aconteceu com a tua tataravó, a tua bisavó, a tua avó e a
mim. Tenho a certeza que se procurares na árvore genealógica, na
história das tuas predecessoras também encontrarás mulheres com
capacidades extrassensoriais —continuou sem prestar atenção ao
comentário da sua única filha.
—Em que circunstâncias? —perguntou a Bea agarrando com
força o auscultador.
—No dia em que conhecemos o homem que marca o nosso
destino para sempre. Uma vez que entra na nossa vida, já nada
volta a ser igual. Lembraste do papel que pedi que colocasses na
Caixa com a estrelinha dourada onde guardavas os sonhos quando
eras pequena?
—Sim…
—O que tenha de acontecer vai acontecer de uma maneira ou
de outra. Às vezes tentamos mudar a direção do nosso destino, mas
quando algo está pré-destinado todos os caminhos vão dar ao
mesmo sítio.
Beatriz passou a mão pelo cabelo, sentia-se frustrada.
—Tahír é um príncipe! E é tão vaidoso, o que ele menos me
pode ensinar é a amar outra coisa que não seja o seu próprio ego.
Meu Deus!
Ordella riu-se.
—Filha, não é importante como vai embrulhado ou o título que
tenha. É só uma questão de tempo para que as peças comecem a
encaixar. Como num quebra-cabeças. Independentemente de
adiares ou de pores um espaço entre ambos, o que estiver escrito,
acontecerá.
—Vive num país muito longe… —começou, e deu-se conta que
estava a repetir a premonição que a mãe lhe fez quando tinha oito
anos. Gemeu de frustração.
—Assim está escrito o teu destino do coração, Bea, tal como te
disse uma vez à tarde. Tahír é o homem que vai mudar a tua vida, e
tu a dele.
Bea ia argumentar algo, mas tocou a campainha da entrada
principal.
—Mãe, tenho de desligar. Estão a chamar à porta. Acho que pela
primeira vez estás enganada. O meu destino faço-o eu.
Ordella suspirou desde a sua cómoda posição sentada numa
cadeira de madeira.
—Bea, és sempre tão teimosa —disse com carinho—. Quando
voltares, eu e o teu pai esperamos por ti para jantar. Diverte-te muito
por Queensland.
—Sim, claro! —disse com a incerteza a vibrar na alma—. Adoro-
te. Beijinhos para o pai.
—Também te adoramos. Beijinhos.
Pousou o telefone.
O táxi deixou-a ao pé da porta, por isso… Se calhar esqueceu-se
de fechar o portão que dava passagem ao caminho de cascalho da
entrada. O que estava a tocar era a campainha da porta principal,
não era o intercomunicador.
Menos mal que vivia num país muito seguro. Desceu as escadas
com rapidez.
Abriu a porta e deu de caras com Tahír.
—Primeiro pensei em ir à polícia e dizer que se calhar tinhas
sido abduzida por um extraterrestre. Mas pensei melhor, que
extraterrestre ia querer levar uma mulher tão peculiar?
—Que encantador o teu comentário.
Ele tinha as mãos apoiadas em cada lado da porta, e olhava
para ela com uma mistura de fúria e desconcerto.
Perante as palavras tão presunçosas de Tahír, o que a Bea
menos esperava é que ele fosse ter com ela. Afinal não tinha um
harém à espera dele? «Orgulho ferido. Por isso é que estava ali»,
pensou.
—Posso entrar? —perguntou com um sorriso devastadoramente
sensual—. Depois de desperdiçar um jantar tão delicioso, pelo
menos podias convidar-me a tomar um café.
As pernas de Bea de repente pareciam demasiado frágeis, e ao
ver a aquela boca, inconscientemente, humedeceu os lábios. Ainda
bem que ela não tinha a capacidade dela para ler a mente. A ideia
de penetrar os pensamentos de Tahír era tentadora, mas não ia
fazer isso. Claro que não.
—O jantar paguei-o eu —disse— por isso, depois do teu
agradável comentário sobre os motivos pelos quais me chamarias
“Bea” em vez de “Beatriz”, acho que não te devo nada.
—Sobre o jantar falamos depois… E, claro, o tema do meu carro
está esquecido —acordou—. Então, pensas deixar-me aqui à
entrada o resto da noite ou vais ter a cortesia de me convidar a
entrar?
Assim que estava esquecido, eh? De acordo. Um café e depois
mandava-o dar uma volta para que continuasse a gozar das férias.
—Nós, os australianos temos fama de ser muito simpáticos —
disse ao virar-lhe as costas, deixando a porta aberta. Um claro
indício de que podia entrar, mas que a ela essa ideia não lhe
agradava demasiado.
Tahír não costumava ir atrás de nenhuma mulher. Era sempre ao
contrário. Encontrar-se numa situação como esta parecia-lhe
totalmente inaudito. Não se sentia na sua onda, mas a consciência
—que raramente aparecia no panorama— dizia-lhe que estava a
fazer o correto.
Ele seguiu a Beatriz, e o seu olhar pousou no tentador traseiro,
como também na forma em que as curvilíneas ancas se moviam ao
andar. Imaginou-se a tirar-lhe os calções e a deixar ao léu os
espaços erógenos, a tocar no sexo húmido e a penetrar o corpo
dela. «Fogo, já começava a sentir a ereção nas calças».
—Como preferes o café? —perguntou ela, indiferente à imagem
de que estava sem maquilhagem e descalça. Se ele não gostava ia-
se embora mais cedo, melhor! A verdade é que não sabia lidar com
um homem como ele. Tahír parecia uma força da natureza
controlada com mão de ferro, ao mesmo tempo poderosa e
impregnada de uma enorme potência. O cenário dessa impressão
perturbava-a, mas também a excitava em partes iguais.
Tahír sentou-se no banco alto da mesa de mármore que estava
no centro da sala de madeira com eletrodomésticos modernos. Era
evidente que o dono tinha uma excelente visão de design de
interiores ou sabia contratar os melhores profissionais. Sentiu
curiosidade por conhecer os trabalhos realizados pela Beatriz.
—Forte e sem açúcar.
«Devia ter imaginado.»
—De acordo.
Preparou o recipiente com o café para filtrar e pô-lo na cafeteira.
Se continuasse de costas para ele ia parecer ridícula, e também não
era ingénua para não sentir os olhos dele no traseiro dela. Virou-se
e avançou para umas cadeiras altas de mogno com costas baixas,
sentou-se.
—Devo-te um pedido de desculpa —começou Tahír.
—Ah, sim…?
Tahír riu-se.
—Não vais facilitar, por não?
Ela encolheu os ombros em modo de resposta.
—Comportei-me como um parvalhão assumindo que querias ir
para a cama comigo. Desculpa se te ofendi. Nunca nenhuma
mulher…
—Te negou alguma coisa… só aceitam o que te dizem porque
lhes interessa o que tens para oferecer, não é?
Tahír olhou para ela durante uns três longos segundos. Ninguém
costumava ter coragem para falar com ele como ela estava a fazer.
Sentia-se como uma manhã refrescante depois de ter estado preso
nas areias do deserto. Sabia que a ideia de ter sido desafiado por
ela só aumentava o desejo de seduzi-la, mas não tinha a certeza de
que isso era tudo. Talvez fosse apenas o fator novidade, nada mais
do que isso —Já o disseste. Contudo, não te vou mentir e dizer que
não te desejo. Desejo-te. Tenho fantasias sobre como seria beijar-te
e fazer-te minha. —Beatriz olhou para ele com os olhos muito
abertos—. Tu também me desejas?
Bea ouviu a cafeteira a soar. «Justo a tempo.» Levantou-se da
cadeira e foi servir-se de uma chávena fumegante. Ela não queria
beber nada. Voltou e pousou uma chávena em frente de Tahír, antes
de voltar a sentar-se.
—Não sei para que achas que essa resposta te serviria.
—Para saber que se estamos na mesma sintonia.
—Bem, príncipe Tahír, não estamos na mesma sintonia. Tu vais
voltar para o teu país dentro de uns dias e eu à minha realidade. E
eu não vou para a cama com estranhos.
«Nem nunca fui para a cama com ninguém», gostava de lhe ter
dito. Certamente ele iria gozar com ela quando soubesse que era
virgem e fugiria a pés da peste. Era mais do que evidente que ele
tinha uma longa trajetória debaixo dos lençóis com mulheres e
pensava que ela podia igualar as habilidades destas.
Ele inclinou a cabeça para um lado. Bebeu com calma o café.
Estava delicioso, embora não se comparasse ao café que serviam
em Azhat.
—Compreendo —disse com voz sedosa—. Vou ficar vários dias
pela zona, como já te disse, então, aceitas sair comigo amanhã?
Talvez se me conhecesses um pouco eu deixasse de te parecer um
estranho.
—Porque achas que eu estou interessada em gastar o meu
tempo contigo?
—Acho que nos podíamos levar bem —respondeu Tahír,
imperturbável pelo tom cortante de Beatriz.
Ela suspirou.
—Tenho de trabalhar. Não tenho tempo para coquetear nem para
sair. Já não te devo nada, segundo as tuas próprias palavras há um
momento.
—Antes de chegar aqui cancelei o teu pagamento e o dinheiro
do jantar foi reembolsado. Por isso, em teoria, o jantar foi pago por
mim. Como deve ser.
—Não fizeste isso! Não quero dever-te nada.
—Não me deves nada. Só queria deixar claro. Nunca nenhuma
mulher vai pagar um jantar quando estiver comigo.
—Que atitude machista. As mulheres podem pagar a comida, as
saídas, o que quisermos. É por isso que somos independentes!
—Não se trata de independência —disse com voz firme—.
Ignoro o tipo de homens com quem sais —e por alguma razão
estranha nem queria imaginá-lo— mas neste caso, pelo menos para
mim, é um ato de cavalheirismo.
—Recuso-me discutir sobre isso.
Ele levantou-se e Beatriz quis dar um passo para trás, mas isso
só daria aso a que ele pensasse que ela era uma cobarde. Não era,
claro que não.
—Beatriz —disse a rodear a mesa até que ficou em frente dela—
não lutes contra o inevitável. Ah, ah, não protestes antes de eu
terminar de falar. Só ouve. Tenho muito poucas amigas. Menos que
poucas, nenhuma. Pelo menos podes dar-me a oportunidade de te
conhecer melhor e que tu também me conheças?
«Golpe baixo», pensou Beatriz, a olhar para ele e a aspirar o
aroma do café impregnado no ambiente. Perguntava-se a que
saberia aquela deliciosa mistura na boca de Tahír. «Ou tenho falta
de sono ou ele é um destruidor de neurónios femininos.»
—Se te disser que «não», vais continuar a vir aqui todos os dias
até que se terminem as tuas férias em Port Douglas argumentando
e argumentando?
—Podes apostar nisso.
Num gesto de resignação, ela revirou os olhos e afastou-se. Ele
não tentou tocá-la, ignorando que a Beatriz desejava que aqueles
dedos elegantes e com as unhas perfeitamente limpas tocassem a
sua pele. Estava maluca. Não havia outra explicação.
—OK… Podemos conhecer-nos melhor… Ser amigos, acho.
—Então, talvez possa chamar-te Bea —disse ao piscar-lhe o
olho.
E isso fê-la dar uma gargalhada.
—Talvez.
Tahír sentiu-se triunfante. Gostava de a ouvir rir. Ele só estava
acostumado a preocupar-se com as suas necessidades, embora na
cama se considerasse um amante generoso. Gostava de dar prazer
às suas companheiras de lençóis, mas com a Beatriz a ideia de
estimulá-la provocava-lhe um formigueiro inexplicável.
Inclinou-se e beijou a suave bochecha feminina. Demorou um
bocadinho mais do que o devido, mas ela não se afastou. Um bom
sinal, pensou Tahír, embora não fosse forçar a trégua que existia
nesse momento. Ia ganhar a confiança da Beatriz, seduzi-la até se
saciar dela; até que em cada orgasmo ela gritasse o nome dele.
—Até breve, Beatriz —disse ao acariciar-lhe suavemente o
queixo.
Ela tossiu.
—Que descanses —sussurrou ela.
Sem mais demoras, Tahír dirigiu-se à saída. Segundos depois,
Bea ouviu o barulho do motor a afastar-se.
No meio do silêncio da cozinha, Beatriz deu-se conta que queria
mais do que o contacto fugaz da mão quente do Tahír. De repente,
sentia-se ansiosa por provar a sensualidade que via nos olhos dele,
em tornar realidade as promessas que os olhos verdes não
escondiam e as possibilidades de saber o que era o prazer nos
braços de um homem como ele. Tahír levou-a a imaginar lençóis de
seda com os corpos deles nus durante uma sessão de sexo
ardente, intensa, húmida….
Ele às vezes mostrava-se frio e indolente, mas a forma como a
tinha olhado antes de ir-se embora não tinha nada de indiferente.
Pelo contrário. Aqueles luminosos olhos verdes pareciam ter ardido
com faíscas capazes de consumi-la completamente com promessas
de algo ardente e apaixonado por trás de uma máscara de
estoicismo. Em sintonia com esses pensamentos, os seus peitos
ficaram duros, e as cuequinhas desconfortavelmente molhadas. Só
por ter pensado em Tahír e em sexo ao mesmo tempo. As
contradições daquele príncipe davam-se voltas à cabeça. Acabava
de conhecê-lo e parecia que ele já tinha virado o mundo dela de
avesso.
Beatriz permaneceu em pé durante um longo momento, com a
mão apoiada na mármore da mesa central, antes de apagar a luz e
subir as escadas. Não sabia exatamente ao que tinha concordado
quando disse ao Tahír que podiam conhecer-se melhor, se ser sua
amiga ou amante depois de ser amiga.
CAPÍTULO 6

Tahír levantou-se cedo para correr. O ar com iodo da praia


ajudou-o a clarificar as ideias. A areia debaixo dos pés e o vento a
bater-lhe no peito nu, ao compasso dos seus movimentos
calculados, geraram uma agradável sensação de bem-estar durante
os três km de ida e volta.
Enquanto tomavam o pequeno-almoço, Mawaj e Sufyan não
comentaram o facto de ele ter voltado tão cedo para a casa na noite
anterior. Eles sabiam que quando Tahír gostava de estar com uma
mulher, costumava ficar com ela até de manhã e depois já não
voltariam a falar mais sobre ela.
Tahír sabia que os amigos estavam curiosos por saber o que
tinha acontecido com Beatriz na noite anterior. A verdade é que nem
mesmo ele sabia a resposta. Não podia dizer que estava confuso,
porque não era esse o caso. A única coisa que sabia era que essa
mulher peculiar tinha conseguido chamar a sua atenção
completamente, e ele queria descobrir todos os segredos que ela
pudesse esconder.
Ele queria saber tudo sobre ela. À superfície parecia igual a
todas as outras do seu género, mas ele sabia melhor do que
ninguém o que era construir capas e capas para proteger-se, e
ninguém podia negar que a Beatriz tinha construído uma barreira
muito forte. Tal como ele. Tahír considerava-se um especialista para
decifrar os outros, mas não conseguia decifrar a Beatriz. Esse era
mais um pormenor para juntar ao interesse que ela lhe provocava.
Agora, recém-saído do banho e com os músculos descontraídos
depois do exercício, o príncipe observava como o céu começava a
ficar tingido de vários tons de luz. Ele lembrava-se sempre do
amanhecer inspirador no Médio Oriente, que também era sua hora
do dia favorita por causa do silêncio, da clareza com que a sua
cabeça podia pensar e da calma à sua volta. A Austrália era
espetacular, mas ele não trocaria os amanheceres de Azhat.
Afastou-se da janela e foi ter com os amigos.
Durante o tempo que ficasse em Port Douglas teria de usar outro
carro, por isso foi com Mawaj a um rent-a-car de veículos de luxo.
—Achas que podes organizar um tour para navegar amanhã? —
perguntou Tahír a Sufyan, enquanto escolhia um Porsche branco,
referindo-se ao desejo que tinha de ir à Grande Barreira de Coral.
—Claro que sim. Há muitos tours turísticos para mergulhar nos
recifes.
—Acho que um dia inteiro é o ideal. Dois saltos ou apenas
mergulhar. Depende da vontade do momento.
—Anotado. E se te afogares com que cara olhamos para o rei?
—perguntou Sufyan em tom de gozo.
—De certeza que vais gostar de receber o castigo ancestral que
era aplicado às pessoas que faziam bruxaria —disse ao abrir a porta
do Porsche. Podia alcançar os 60 km/ hora em três segundos e
meio. Uma bonita máquina.
—Chicotadas? —indagou Sufyan com uma gargalhada.
—Lapidação. Tens uma péssima memória histórica —disse o
príncipe.
—Ontem à noite saí um bocado para conhecer a vida noturna da
zona —começou Mawaj perante o olhar de surpresa de Sufyan e
Tahír, porque dos três era o que menos gostava de sair à noite
sozinho, mas parecia que estavam enganados—. Estive num sítio
porreiro e luxuoso. As empregadas são lindas… Acho que devíamos
ir almoçar ali para conhecer a gastronomia local.
Olharam uns para os outros com um sorriso cúmplice masculino.
—Claro —disse Sufyan dando-lhe uma palmada forte—.
Excelente ideia. O que achas, Tahír?
—Combinado —respondeu antes de abrir a porta do carro para
pô-lo à prova pelas ruas da cidade, inda que tivesse outros planos
em mente.
***
Beatriz bebeu água gelada da garrafa.
A piscina, sob o brilho do sol, parecia seduzi-la a entrar, mas ela
negava-se a fazê-lo. Não enquanto estivesse a trabalhar. Tinha
mudado as plantas interiores por umas mais coloridas. Pensou em
rosas, mas considerou que o caráter tinha mais a ver com belos
girassóis. Continuou com a renovação na área do primeiro andar,
tirou todas as plantas que já estavam um pouco murchas e pediu à
equipa de trabalho para plantá-las do lado de fora, para que
tivessem mais contacto com o sol, pôs-lhes fertilizante, e que
aproveitou o espaço interior para reposicionar alguns ornamentos.
Era positivo ter uma casa com natureza, mas não demasiada. Só
esperava que os Creekon estivessem de acordo com a sua decisão.
—Obrigada —disse Bea aos empregados de Tribecca, enquanto
os via a guardar as ferramentas de trabalho numa pick-up. O sol
batia-lhe no rosto, tapou os olhos com as mãos simulando um
chapéu de sol para poder vê-los—. Espero por vocês amanhã para
os retoques finais?
O chefe da equipa, Joseph Levitt, tirou as luvas e aproximou-se
de Bea. Estavam a trabalhar desde manhã. Desde as sete, e já
passava do meio-dia. Estava cheio de fome.
—Não, menina Fisher, pensei que a tinham informado —coçou a
cabeça— desculpe, amanhã temos uma reunião com o dono da
nossa empresa. Pensei que lhe tinham telefonado ou enviado um
email. Desculpe!
—Oh…, OK, sr. Levitt. Qualquer um se pode esquecer. Talvez
nos faça falta um dia de folga —disse para acalmar a ansiedade que
via nele—. De todas as maneiras o trabalho já está muito avançado.
Tempo record. É uma pena que não tenham sucursais em
Melbourne. Se soubessem as dores de cabeça que às vezes tenho
para encontrar pessoas tão eficientes como vocês!
—Obrigado —sorriu o homem de barba grisalha e abdómen
proeminente—. Já só nos falta mudar a terra da área exterior do
ginásio, onde ontem pusemos os gerânios, e colocar as tulipas
como queria a sra. Creekon. Mais um dia de trabalho e temos tudo
feito.
Que a Beatriz pudesse decidir algumas mudanças não
significava que podia pôr de lado as preferências e os desejos dos
proprietários. As tulipas eram um capricho da dona da casa, e Bea
não insistiu para ela mudar de opinião.
—No interior da casa já está quase tudo pronto?
—Falta limpar um pouco, mas fazemos isto depois de amanhã —
olhou para o céu— o sol está endiabrado. Mais alguma coisa,
menina Fisher?
—Acho que é tudo —comentou—. Obrigada de novo e sorte
para a reunião.
Joseph assentiu e juntou-se aos companheiros. Bea olhou para
os trabalhadores que estavam sentados na parte de trás da pick-up.
—Obrigada! —exclamou acenando-lhes enquanto o condutor
arrancava.
A parte que a Bea mais gostava do seu quarto era da banheira.
Branca, ampla e com vista para o horizonte. Deixou que a água
gelada lhe refrescasse a pele. Suspirou aliviada, enquanto inalava o
aroma de baunilha da essência que se estava a dissolver em
bolhas.
Passado um bocado saiu contrariada da água e secou-se.
Não secou o cabelo, preferiu deixá-lo solto para que secasse
pouco a pouco. Gostava de usar roupa interior que combina-se
entre si. Escolheu uma tanga branca que fazia jogo com um sutiã de
algodão, cujas copas tinham um corte ligeiramente baixo. Agarrou
nuns calções vermelhos e tirou do armário a blusa bege que tinha
trazido.
Estava cheia de fome.
Desceu as escadas a cantarolar. Eram duas da tarde.
—Bea, tens uma visita —anunciou Candice quando a viu.
—Como?
Candice aproximou-se com um sorriso.
—É o príncipe Tahír Al-Muhabitti. Às vezes ele sai nas revistas
que eu leio. Não contavas a ninguém! —disse num sussurro
emocionado—. Quando me dei conta que era ele quem estava à
porta quase desmaiei —abanou as mãos no rosto como se estas
fossem leques— e quando perguntou por ti.... Tu sabes guardar um
segredo! Este príncipe é lindo! Todo misterioso…
Beatriz teve de se rir, ainda que por dentro tenha sentido um
arrepio. O que é que o Tahír queria a esta hora? Devia de estar a
fazer turismo ou, se calhar, ia encontrar-se com alguma mulher
bonita da zona. Não. Essa ideia não lhe agradava. Porquê? O
estranho universo que tinha posto aquele tentado e inatingível
homem no seu caminho de certeza que sabia porquê. Ou melhor, o
caminho do jeep que lhe acabava de custar várias centenas de
dólares australianos. A totalidade do que ia receber pelo trabalho
para os Creekon ia diretamente para pagar o cartão de crédito que
estava a usar em Queensland. «Que sorte», pensou com amargura.
—Não, não te interessa conhecer a história —comentou Bea
perante o olhar expectante de Candice— mas posso dizer-te que
tem a ver com um choque que me saiu exorbitante, e uma fatura
muito cara num restaurante local… Esse homem, que está algures
nesta casa, é apenas uma lembrança disso tudo.
—Oh, ele é encantador. Disse-lhe para esperar na salinha de
cristal que tem vistas para a piscina. Na parte de trás da casa —
indicou como se a Bea não estivesse já familiarizada com a
mansão. Às vezes confundia-se com o corredor, sim, isso era
verdade, tinha de agradecer ao seu péssimo sentido de orientação
que não estava compensado com o seu coeficiente intelectual. Era
uma verdadeira sorte que, pelo menos, se pudesse encontrar a ela
mesma.
—Não te preocupes com nada. Almoço daqui a pouco…
Candice tossiu e sorriu com ares de culpa.
—Ele trouxe uns sacos com comida… Perguntou-se me já tinhas
comido, disse-lhe que não, não lhe ia mentir. Foi tão simpático que,
desculpa, garanti-lhe que te guardava a comida que preparei para
esta noite e assim já podias almoçar o que ele tão amavelmente
trouxe.
Beatriz torceu os olhos. Candice parecia uma adolescente que
acabava de conhecer a sua estrela favorita de rock. Não a culpava.
A perspetiva de ver Tahír eriçou-lhe os pelos. Pensou que ele
provavelmente lhe ia telefonar, mas não que aparecesse ali em
casa.
—Vou ver o que quer…
—Desculpa se me excedi —murmurou Candice—. Nem todos os
dias se vê um príncipe por estos lados. E um giro muito menos.
Beatriz só se riu e apertou suavemente o ombro da Candice.
—Não te preocupes. Vou ver o que quer o Tahír.
Candice assentiu e depois foi para a cozinha.
Mais uma vez, não estar maquilhada e levar vestido roupa
casual não lhe causou nenhum desconforto. Este príncipe parecia
ter tatuada a palavra «perigoso» na testa. Não lhe faziam falta
tatuagens nem cintos com correias ou o cabelo rapado dos dois
lados, nem piercings. O perigo do Tahír era fácil de perceber. Ou
talvez ela começasse a deixar-se levar pela intuição que, neste
caso, não tinha nada a ver com o paranormal, mas sim o seu sexto
sentido feminino. Ou talvez também tivesse a ver com a vontade de
conhecer os segredos do erotismo que, sem nenhum esforço,
imaginava que o Tahír lhe pudesse revelar.
Bea parou perto da salinha.
De onde estava observou-o. A um metro de distância. Só
conseguia ver o perfil aristocrático. Respirou fundo e soltou o ar
pouco a pouco. Era a sua maneira de reunir forças.
—Olá, Tahír! Que surpresa ver-te.
Ele afastou-se da janela e olhou para ela com um sorriso. Bea já
tinha reparado que ele não sorria com muita frequência, contudo
quando o fazia era genuíno e deslumbrava-a.
—Pensei que talvez tivesses vontade de comer a trucha de coral
que deixaste no prato ontem à noite —mostrou-lhe com a mão um
prato que, era evidente, vinha do Nautilus— e assim conversamos.
—É… muito simpático da tua parte —murmurou.
Tahír passou ao lado dela e apontou para a cadeira para ela se
sentar. Depois sentou-se ele. A Bea pareceu-lhe que enquanto ela
terminou de dar banho, Candice ajudou o príncipe a pôr a comida
nos pratos. «O encanto estudado de um homem bonito e famoso
conseguia tudo», pensou Bea guardando um sorriso para ela
mesma.
—Para amanhã reservei um tour aos recifes. Queres vir comigo?
Seremos tu e eu, para além dos meus dois amigos, Mawaj e Sufyan.
Aqueles de ontem de manhã.
—Tahír, não tenho a certeza do que estamos a fazer aqui —
comentou ao ver como ele colocava os talheres no seu sítio com
entusiasmo. Até em algo tão simples se podia ver os seus gestos
elegantes. Gestos de uma pessoa acostumada a todo o tipo de
luxos e com modos requintados.
—Estamos a ser amigos —respondeu com um meio sorriso. Um
sorriso de depredador, pensou ela, e teve de se rir—. Onde é que
está a graça? —indagou a torcer o nariz.
—O que não consigo entender é porque queres a minha
companhia. Não te enganes, não quero elogios, tenho uma
autoestima muito saudável. O que quero dizer é que tenho o tempo
contado, assim como tu, em Queensland. Porque queres ser amigo
de uma mulher que nunca mais vais ver na tua vida?
Era uma boa pergunta, pensou Tahír, mas nesse momento não
queria pensar na resposta. A perspetiva de não voltar a vê-la
causava-lhe um leve borbulhar no peito. Uma emoção estranha. Ele
resolvia sempre qualquer emoção que saísse do círculo vinculado
ao prazer, e queria manter as coisas assim. Porque era mais
seguro.
—Vamos comer primeiro —disse suavemente—. Depois quero
saber que argumentos tens para não aproveitar os seguintes dias
sem pensar no futuro. Por acaso é perigoso viver só o presente?
—Comemos então…
Ela não tinha intenção de discutir ou fazer comentários para
responder. Claro que era perigoso deixar-se ir ... por ele. Não
importava se fosse no presente ou no futuro. Embora Beatriz lutasse
com todas as suas forças, o nível de atração que existia entre eles
era inegável.
Durante quanto tempo podia resistir e manter as suas fantasias à
distância, assim como a sua capacidade de recusar qualquer
avanço que ele fizesse? O simples toque dos seus dedos já parecia
marcar-lhe a pele. Ele deixou claro que a queria, e Beatriz não o via
capaz de abandonar as intenções quando já tinha um objetivo
definido. E era evidente que o objetivo de Tahír era seduzi-la.
—Bom apetite —disse ele, interrompendo os pensamentos dela,
antes de sentar à frente dela.
***
O catamarã zarpou à hora marcada: nove da manhã.
Bea teve de acordar muito cedo. Tinham um mapa traçado para
se dirigirem até aos recifes no norte da cidade de Cairns, a mais de
40 minutos de carro desde Port Douglas. A corrente suave da zona
era excelente para novatos em mergulho ou imersões, decidiram ir a
Steve's Bommie.
Depois do almoço, Beatriz não encontrou um motivo razoável
para não ir com Tahír aos recifes. Não tinha de trabalhar porque a
equipa de Tribecca estava numa reunião. Depois do almoço, do dia
anterior, foram até ao pátio e ela explicou-lhe os arranjos que esteve
a fazer. Não a tentou tocar em nenhum momento. Mantinha a
distância, mostrava um interesse genuíno pela profissão dela e
falava, tão breve como sempre, das suas impressões sobre a vida
no deserto.
—Alguma vez pensaste em como seria a tua vida se não
tivesses nascido príncipe? —perguntou-lhe enquanto caminhavam à
volta da piscina.
—Não posso mudar as minhas origens, mas acho que, se as
minhas origens dinásticas fossem diferentes, as pessoas
aproximavam-se de mim por quem sou, não pelo que possuo em
bens ou influências.
Bea pensou que esta resposta estava carregada de amargura.
Não fez mais preguntas, porque depois isso ele disse que tinha de
se ir embora. Ela não o deteve. Acabou por a convencer a ir com el
aos recifes. Tahír intrigava-a. Mas quando é que ela fugiu de um
mistério ou de alguma coisa que lhe causasse curiosidade?
Por isso, ali estava a Bea em alto mar.
Estava muito confortável, sentada num assento almofadado,
franzindo a água cristalina do oceano enquanto observava o vento
chicotear o tecido da camisa branca de Tahír, expondo-lhe a pele
bronzeada do peito. Conseguia ver os peitorais definidos, já que ele
tinha quatro botões da camisa desabotoados e também podia ver o
início de um abdómen marcado por flexões de aço.
Ele estava descalço e usava calções curtos para nadar. O cabelo
movia-se ao compasso do ar, e Bea sentiu vontade de enterrar os
dedos, sentir a textura e cheirar de perto o aroma dele. E esses
óculos de sol! Meu Deus, será que ele era consciente da
sensualidade que irradiava e do desejo louco que ela sentia por
tocá-lo?
Ela afastou o olhar. Eles estavam à sombra no catamarã, mas
como ela tinha uma tendência inesperada para corar não queria que
ninguém visse isso, porque não poderia dizer que era dos raios do
sol. Além disso, tinha posto creme protetor.
Para esta ocasião escolheu um bikini azul claro. Com os anos
aprendeu a aceitar a sua figura curvilínea e estava orgulhosa dela.
Tinha um vestido de praia azul-marinho para tapar a pele, um
chapéu de palha - que comprou por um preço louco nos saldos -
para proteger a cabeça do sol, e sandálias brancas com tiras suaves
para não lhe ferirem os pés com o atrito da água ou areia ao
caminhar. Os óculos de sol foram o complemento que a salvou de
ser apanhada em infraganti por devorar Tahír com os olhos.
***
Ele podia sentir o olhar feminino através da cor escura dos
óculos de sol que ela usava. Talvez pelo mesmo motivo, ele também
levava os óculos postos. Beatriz era a mulher mais sexy que ele
conhecia. E sua falta de artifícios conseguia intensificar esse efeito.
Quando a viu sair de casa com aquele vestido curto, quase se
ajoelhou aos seus pés para pedir-lhe que a deixasse beijar. Ele
estava louco! Um príncipe nunca se ajoelhava, e menos por uma
mulher.
Durante a viagem até Cairns, eles tiveram uma leve conversa
sobre política. O ar do carro estava marcado por uma evidente
tensão sexual, que foi quebrada quando chegaram ao cais e, junto
com Sufyan e Mawaj, embarcaram no luxuoso catamarã.
Embora Tahír não quisesse ser privado da companhia de Beatriz,
ao mesmo tempo pensava que queria estar constantemente em
estado de excitação com a impossibilidade de se aproximar dela
quando estavam cercados por outros.
Estava confuso, e isso punha-o de mau humor. «Ir para a cama
com ela uma vez será suficiente», disse para si mesmo. Ajeitou os
óculos de sol. Impassível.
—Estás confortável? — perguntou Sufyan a Beatriz.
Tahír ouviu os dois a conversarem animadamente durante muito
tempo. Esteve a ponto, várias vezes, de dizer ao amigo para estar
calado, porque a Beatriz só podia falar com ele. Se fosse em Azhat
ou em algum evento real, os guarda-costas nunca teriam
autorização para falar com os acompanhantes de um membro da
casa real, e menos se fosse uma mulher. Mas Mawaj e Sufyan
estavam acima de qualquer categoria de guarda-costas, eles eram
os seus melhores amigos. Tahír teria de engolir as emoções
incomuns e apreciar o que o rodeava, embora algumas partes
daquela bela paisagem ainda fossem proibidas...
—Sim, obrigado —respondeu Bea—. Este lugar é simplesmente
maravilhoso. Ouvi dizer que a Grande Barreira de Coral é a
estrutura viva más facilmente visível do espaço. Não é espetacular?
—O teu país é muito bonito, estou surpreendido. Talvez um dia
possas ir ao deserto, teria muito gosto em mostrar-te tudo —disse
ao piscar-lhe o olho com aqueles olhos tons de café mais bonitos.
Bea riu-se. No início da viagem, Sufyan pareceu-lhe muito sério,
mas agora que tinha falado mais com ele notou que ele tinha um
caráter muito jovial. Mawaj parecia bastante reservado. Os dois
eram simpáticos.
Tahír, por outro lado, parecia indiferente a ela. Não entendia
porque a tinha convidado. Com a sua expressão fria bem podia ter
ficado em terra. Ela aproveitava o clima, a brisa e a maravilha que
era a Grande Barreira de Corais sem sentir que estava a mais ou
que talvez ele se arrependesse de tê-la levado.
—Isso seria interessante —disse animada. De manhã apanhou o
espesso cabelo como uma cebola na nuca—. Embora eu prefira
surfar que estar num yate ou num catamarã.
—A sério? Era genial se nos ensinasses a surfar —disse Sufyan,
depois olhou para o Mawaj—: O que é que achas?
—Pois…
—Não há tempo —interrompeu Tahír sem poder aguentar mais.
Beatriz olhou surpreendida para ele. Em toda a viagem, era a
primeira vez que falava. E fazia-o com um tom duro.
—Tu trabalhas e nós também temos os nossos planos, não faz
falta que dediques o teu tempo a ensiná-lo a surfar ou o que quer
que seja —explicou Tahír com calma ao dar-se conta que estava a
ser mal educado—. Já mergulhaste alguma vez?
Bea negou com a cabeça.
—Paramos aqui —interveio o chefe do grupo guia, um tipo
chamado Bob Salemson, interrompendo a conversa. Com um fato
especial dava a impressão que sabia tudo e isso transmitia um clima
de segurança aos passageiros—. Tudo isto, como lhes disse antes,
é Ribbon Reef. Vamos fazer o primeiro mergulho. Esta área é Steve
´s Bommie. Vamos demorar cerca de 20 minutos para nadar à volta
da base. Podemos estender um pouco mais, mas talvez isso seja
em detrimento da possibilidade de alcançar outro ponto.
—Podemos levar câmaras fotográficas? —perguntou Bea,
entusiasmada.
Todos se levantaram. Tahír conteve o desejo de tapar o corpo de
Bea do olhar dos homens a bordo. Punha toda a força de vontade
para não o fazer. O que precisava era parar de fazer disparates e
procurar uma mulher que não lhe desse cabo da cabeça para tentar
entendê-la ou seduzi-la.
—Nós alugamos o equipamento, por isso é claro que podem
fazê-lo —interveio Misty, a moça que ia guiar o mergulho. O
catamarã tinha cinco cabines e quatro lavabos. Uma das cabines
era para a tripulação masculina e outra para a tripulação feminina.
As três restantes foram destinadas, uma para Tahír, outra para Bea
e a restante para Sufyan e Mawaj. Todos levaram uma pequena
mala com roupa para trocar depois do banho, regressando frescos e
limpos a terra—. Esta zona do recife número três tem 10 m2 na parte
superior e 27 m2 na inferior.
—É muito profundo? —perguntou Mawaj.
—Entre três e 30 metros mais ou menos —respondeu Bob. Ele,
dois assistentes, o responsável pela equipa, Misty e o capitão do
catamarã eram a tripulação. Como a corrente marítima aqui é muito
baixa não existe esse tipo de perigo, mas de qualquer maneira
temos de estar sempre alerta. Terão visibilidade até 30 metros. Vale
realmente a pena aproveitar este espaço.
—Afinal foram muitas horas para chegar até aqui—murmurou
Bea. Ela não tinha vontade de regressar tarde. E não achava que
ele quisesse voltar tarde. Havia mergulhos noturnos, mas a ela não
lhe apetecia particularmente. Era um pouco medrosa. E se um
tubarão vindo do nada ditava o adeus à sua existência? Não,
obrigado.
—Que tipo de vida marinha vamos ver? —inquiriu Tahír, já sem
camisa, ficava tão bem exposto ao sol como só uma criatura feita
para o pecado podia fazer.
Bea afastou o olhar, preferiu concentrar-se na natureza tão
imponente e avassaladora que a rodeava. Era impressionante.
—Pargos, fusileiros e também agulhas de mar. Há tubarões
brancos e de recife. Nada a temer. Eu vou mostrando-vos quais são
as espécies com que nos vamos cruzando, se entenderem a língua
gestual —disse bem humorado—. Agora Bob vai explicar como
colocar o equipamento. Devem imitar, OK? —Todos assentiram—.
Perfeito.
Enquanto Bob explicava, eles colocaram o equipamento.
Demorou um bocadinho, mas com a ajuda da equipa encarregada
conseguiram carregar com tudo: barbatanas, viseira, snorkel,
garrafa, colete hidrostático, regulador com medidor de profundidade,
laser e manómetro, uma pequena faca, lanterna, luvas e chapéus.
Embora este último tivessem a opção de deixar a bordo.
Tahír aproximou-se de Bea, que tinha a viseira na cabeça, foi a
primeira a ficar pronta. Ele pegou-lhe na mão dela para lhe chamar
à atenção, ela olhou para ele.
—Tudo em ordem? Estás a gostar do tour? Esta é a primeira vez
que mergulho. Amanhã talvez me lance de um parapente.
A roupa de mergulho combinava com a forma atlética de Tahír e
marcava as curvas da Beatriz. Estavam protegidos para não se
ferirem na água nem para entrar no curso da natureza marinha.
—É tudo tão espetacular —disse ela a olhar à volta. As
barbatanas magoavam-lhe os pés, mas sabia que era normal—. E
estás louco, Tahír, nem que me dessem os números da lotaria eu
saltava de parapente, ufff. Isso não é para mim.
Ele riu-se e Bea fez o mesmo. Quebraram o gelo inecessário
instaurado pelo Tahír.
—Desculpa ter estado… distante —disse-lhe ao inclinar a
cabeça para um lado de uma maneira que a ela lhe pareceu
adorável—. Fazes-me sentir coisas que…
—Tahír, não eras obrigado a convidar-me, podias ter vindo
sozinho com os teus amigos —expresso com sinceridade e
interrompendo o quer que fosse que ele ia dizer—. Não era
necessário que te incomodasses. Podiamo-nos ter encontrado outro
dia ou simplesmente não voltar a ver-nos.
Ele sorriu e tocou-lhe no queixo para levantar o rosto da Beatriz.
—A tua companhia é uma prazer, não é nenhum incómodo —
disse ao olhá-la com os seus penetrantes olhos verdes.
—Demonstra —desafiou-o.
Ele inclinou-se para dizer-lhe algo ao ouvido.
—Mais tarde vou fazê-lo com muito atenção. Gosto de desafios.
—E eu sou um?
—És mais do que só um desafio, Beatriz.
Ela ia responder, mas a guia pediu a atenção de todos com uma
salva de palmas sonora.
—Prontos? —perguntou Misty, e com isso cortou a ligação entre
Tahír e Bea.
—Sim —disseram Mawaj e Sufyan em uníssono. Os dois
estavam muito conscientes de que o amigo Tahír estava metido num
grande problema. Ambos tinham a certeza que iam voltar a ver a
Beatriz Fisher mais vezes do que o melhor amigo aristocrático
pensava.
—Pelo menos na água não há perigo de disparem ao Tahír —
gozou Sufyan— mas nunca se sabe se um tubarão nos vai arruinar
o dia.
Isso causou uma gargalhada grupal.
—Não me percam de vista —disse Misty com um sorriso— dois
de vocês vão com o Bob e os outros dois comigo. Por favor,
lembrem-se que o coral é um organismo vivo. Não lhe toquem. Não
se apoiem nele. As barbatanas dos pés têm de ficar por cima ou ao
lado do coral para evitar danificá-lo. A distância ideal é a equivalente
a duas vezes a largura dos braços de cada um. Não toquem nos
peixes ou noutras espécies. Também não se agitem. Deixem-se
descontrair e vivam esta aventura.
—Agora que já sabem tudo, vamos aproveitar ao máximo esta
experiência! —disse Bob, antes de apontar para Sufyan e Mawaj
como os seus dois pupilos do dia.
Beatriz viu os dois amigos de Tahír lançarem-se à água com toda
a naturalidade. Ela estava um bocadinho nervosa, e olhou um pouco
inquieta para Misty, esta sorriu-lhe e disse-lhe que tudo ia correr
bem.
—Esqueci-me de deixar o meu anel de noivado no camarote —
disse Misty. Com as máscaras na cabeça e a boquilha de oxigénio
num ombro, Tahír e Bea assentiram—. Já venho e saltamos. Bea,
não te vai acontecer nada. Este é um dos melhores grupos de
mergulho e turismo em Cairns.
Tahír agarrou na mão da Bea ao ver o debate interior dela entre
ficar ali —quando Misty regressasse— ou lançar-se à água.
—Se nos lançamos juntos à água —disse ao olhar para as mãos
deles juntas—quando a Misty regressar, vais sentir-te menos tensa
ou inquieta?
—Errr…
—Não sei como consegues superar as ondas que se avizinham
quando estás a surfar e sentes medo da água calma do mar aberto
—disse-lhe ao acariciar-lhe a face com a mão livre.
Bea passou a língua pelo lábio inferior.
—É… é diferente —disse ao olhar à volta. Claro, uma coisa é
superar as ondas, a superfície, cair na água profunda e sair. Outra
coisa é lançar-se e ficar debaixo de água durante um bocado—. De
qualquer forma, acho que não me afogo…
Num impulso pouco comum nele, atraiu-a para si, baixou a
cabeça e capturou os lábios de Beatriz. Antes dela poder falar, o
contacto da boca de Tahír fê-la esquecer completamente os seus
medos ou as ideias que tinha de que podia ficar presa na água, ou
que talvez não fosse capaz de respirar através da boquilha ligada à
garrafa de oxigénio.
Ele agarrou no rosto de Bea e pouco a pouco sentiu que ela se
descontraia o suficiente para deixá-lo dar-lhe um beijo com língua. O
poder daquele beijo deixou Bea sem fôlego. O calor entre as coxas
transformou-se num espaço ardente que só parecia capaz de se
acalmar se a ereção latejante de Tahír se aninhava no canal íntimo
e húmido. Ela sentia a dureza do desejo masculino através da roupa
de mergulho, pressionando-se tentadoramente contra o monte
suave de Vênus que ansiava por ser descoberto e exposto a ele.
Ela só foi consciente que se estava a agarrar firmemente aos
ombros de Tahír, quando sentiu através do fato de mergulho os
músculos a contraírem-se devido aos dedos dele. Foi consciente do
gemido que lhe escapou dos lábios quando os dentes de Tahír os
mordiscaram, e depois voltou a sentir a língua perita entrelaçada
com a dela numa dança silenciosa cercada pela natureza selvagem,
o som do mar, o ar com iodo...
Tahír já tinha beijado muitas mulheres bonitas e sensuais, e
nenhuma delas conseguiu convencê-lo a sentir um estado de
bebedeira sem ter bebido uma gota de álcool. Ele sentiu o momento
exato em que Beatriz abriu completamente a paixão que vibrava
entre eles como o rugido de um vulcão prestes a entrar em erupção,
com toda a lava ardente e desejando desabafar toda a força contida.
Ela colocou os braços ao redor dele e arqueou o corpo quando ele
colocou as duas mãos nos seios inchados. Ele sentiu os mamilos de
Beatriz contraírem-se com mais força contra as pontas dos dedos,
aprisionou-os entre o indicador e o polegar com força, e ela soltou
um gemido.
A resposta de Beatriz levou-o a deixar escapar um som sensual
de aprovação masculina. Ele percorreu as curvas femininas
marcadas pelo fato. Era perfeita. Ele deslizou as mãos para pousá-
las nas nádegas, mesmo debaixo da garrafa de oxigénio. Sentiu-a a
pôr-se em pontas dos pés, tentando encontrar a localização perfeita
entre os seus braços para ter mais acesso a ele, e ao prazer que
podia oferecer-lhe.
Tahír rosnou com frustração porque não podia tocá-la como
desejava e porque o lugar em que estavam era o menos indicado.
Que inferno, o que mais desejava era que todos desaparecessem
do catamarã para que pudesse despir a Beatriz e provar aquele
corpo tentador de todas as maneiras imagináveis. Muito a contra
vontade, pouco a pouco, a intensidade do beijo diminuiu.
Afastou-se e pôs a testa contra a da Bea.
—Tahír… —sussurrou— é… isto não devia ter acontecido.
Aceitei vir, mas não acho que tu e eu. Isto… Somos de mundos
distintos.
Ele sorriu, ambos respiravam com dificuldade e o olhar deles
parecia incandescente. Sim, eles eram de mundos diferentes, sem
dúvida, e mesmo assim, Tahír não queria perdê-la de vista. O que
tinha ela que outras mulheres não?, perguntou-se, olhando para ela.
Talvez fosse a mistura de inocência e independência com aquele
toque sensual erótico contido que ele começava a deixar fluir pouco
a pouco. Queria ouvi-la gemer seu nome, nua, sob o desejo mais
cru e primitivo.
—Eu sei, mas é melhor enfrentar o destino mais tarde ou mais
cedo —murmurou referindo-se à química entre eles os dois.
Beatriz não compreendeu dessa maneira, embora fosse uma
clara lembrança da premonição da Ordella. No entanto, no momento
em que os lábios se uniram sentiu algo a derreter-se no seu interior.
Onde estava a resistência? Onde estava a força de vontade para
marcar um destino diferente ao previsto por Ordella? Se alguma vez
existiram, tanto a resistência quanto a força de vontade, perderam-
se no exato momento em que conheceu o sabor dos beijos deste
príncipe tentador e perigoso para sua sanidade mental. «Todos os
caminhos me levam ao Tahír», pensou, perante a inegável química
e do sentimento de plenitude que a enchia quando ele estava por
perto.
Talvez pudesse aproveitar esse dia e depois recusar-se a vê-lo.
Ignorá-lo para continuar o seu caminho em paz. Ela estava muito
confusa porque, independente dos raciocínios lógicos que tentasse
fazer prevalecer, a possibilidade de não o voltar a ver causou-lhe
uma aflição absurda. E aquele beijo... Que jeito de beijar! Ao início
parecia subtil, mas depois invadiu-lhe completamente os sentidos. O
calor poderia ter triplicado com menos roupas... noutro espaço.
Para a Bea o mais surpreendente de tudo foi que apesar de o ter
beijado, tinha sido incapaz de ver a vida passada ou o futuro de
Tahír. Isso desconcertou-a, assustando-a ao mesmo tempo, porque
significava que a mente dele era tão ou mais forte do que a dela;
que ele era diferente de qualquer outro homem que ela tivesse
conhecido. Talvez tivesse a ver com o facto de, tal como ele lhe
disse, ter a mente treinada por uma disciplina militar, de modo a não
romper as adversidades?
—Tahír… —sussurrou corada.
Ele inclinou-se para dar-lhe um beijo rápido, mas nem por isso
menos atencioso.
—Depois falamos —disse com a boca encostada à da Bea,
antes de se afastar quando viu que a guia se aproximava.
—Prontos? —perguntou Misty sorridente pondo-se perto deles
antes de olhar para o mar. Deu-lhes mais umas instruções
adicionais—. Se tiverem mais alguma pergunta, agora é o momento.
—Tudo claro —respondeu o príncipe de físico imponente.
—Vamos então conhecer a Grande Barreira de Coral, ao vivo e
em direto.
Tahír olhou para Bea. Ambos colocaram o bocal do oxigénio.
Segundos depois saltaram para a água.
***
Horas depois, durante o pôr-do-sol, o céu ensolarado ficou
tapado por nuvens escuras e por um vendaval que conseguiu
balançar o catamarã mais do que normal antes de chegar ao cais.
Tahír adormeceu, só a força com que Majaw bateu à porta
conseguiu acordá-lo. Há muito tempo que não dormia sem a
preocupação de acordar com uma faca no pescoço ou sentir um
pontapé nas costas. As repercussões do sequestro às vezes
perseguiam-no. Menos que antes, sim, mas de qualquer forma o
efeito do desconforto e da angústia permanecia.
Caminhou descalço e sem camisa até ao lavatório. A água fria
que jorrou no rosto ajudou-o a acordar. A lembrança imediata que
lhe ocorreu, quando abotoou a camisa que deixou atrás da porta,
era o gosto dos beijos de Beatriz. Ele podia viciar-se num sabor tão
doce e tentador.
Mergulhar com espécies marinhas, ver a maravilha que escondia
o fundo do oceano, não se podia comparar ao sentimento de alegria
que sentiu quando foi correspondido pela Beatriz. Tahír sabia
quando uma mulher o queria e agora tinha certeza de que Beatriz
Fisher correspondia à atração que sentia por ela.
Ele notou esse desejo no calor do seu olhar cauteloso, no rubor
das suas bochechas e nos lábios levemente inchados depois que
ele a beijara. Bea tinha uns lábios deliciosos e estavam tão
inflamados quanto Tahír esperava que também estivessem os lábios
entre as pernas bem torneadas. Os mamilos tinham-se tornado
numa bagas duras e excitadas quando ele os apertou entre os
dedos, provando-lhe isso...
O que ele mais queria era saborear a essência de Beatriz e
acabar de uma vez por todas com o tormento de não a ter.
—Chegamos em 10 minutos —disse Mawaj da porta.
Tahír aproximou-se a abri-la.
—Já estão todos no convés?
—Não —respondeu com o seu tom militar— está a chover muito,
por isso cada um está resguardado no seu camarote. O tempo não
é propício para regressar a Port Douglas. O capitão disse que
tivemos sorte por a chuva só ter começado agora que estamos a
chegar ao cais.
—É assim tão mau?
Mawaj encolheu os ombros. Tinha um ar completamente
diferente com os chinelos de praia, uns calções estampados e t’shirt
preta. Mas mesmo assim tinha um ar intimidante. Talvez tivesse a
ver com a corpulência, muito ao estilo de um jogador de futebol
americano da NFL.
—É uma chuva típica da temporada na zona. É melhor estarmos
prevenidos. Aconselhou-me a ficarmos em Cairns.
Tahír assentiu.
—Haverá um hotel de cinco estrelas disponível com tão pouco
tempo de antecedência? —perguntou dubitativo—. Podíamos
contratar um chofer, ou posso eu fazê-lo sem problemas, não é só
pela minha segurança, mas também pela da Beatriz.
Mawaj assentiu. Durante a viagem, tanto ele como Sufyan
tinham visto como o amigo praticamente babava pela Beatriz.
Quando ela, natural e inocentemente, tirou a roupa de mergulho e
estava de bikini, Sufyan deu-lhe uma cotovelada ao ver a expressão
de absoluto arrebatamento de Tahír.
Depois, Mawaj tentou esconder um sorriso quando viu o príncipe
a correr para encontrar uma toalha para tapá-la, para que ela não
apanhasse uma gripe sob o sol quente e sucumbir à luxúria da
aparência amigável da tripulação do catamarã. Mawaj não queria
especular, mas ele e Sufyan estavam certos de que os próximos
meses seriam bastante divertidos.
—Oh, que gentil! Obrigado por pensar na segurança dos teus
melhores amigos —disse Mawaj ao pôr a mão no peito, fingindo ter
sido atravessado por uma dor indescritível.
—Idiota.
Mawaj teve de se rir.
—O mais provável é que quando saibam que queres gastar o teu
dinheiro com eles, esvaziem o hotel só para ti —disse com um
sorriso burlão.
—Encarrega-te de ter um hotel disponível, pode ser?
—Vamos dar oportunidade ao Sufyan de ser útil.
Com uma gargalhada e com uma palmada amigável no ombro,
Tahír calçou os moccassins e foi ter com a Beatriz. Como é que se
deixou dormir? Era inaudito, para além de ser uma falta de atenção
com ela. Suponha-se que estavam a começar a fazer grandes
progressos entre eles. E qual era a resposta dele? Nada mais, nada
menos que dormir!, pensou com incredulidade.
CAPÍTULO 7

Um erro de julgamento.
De que outra maneira podia catalogar o facto de se ter deixado
levar pelo beijo apaixonado do Tahír? Decidiu que isso não voltaria a
acontecer. Tirou o bikini e, debaixo do vestido curto de praia, usava
roupa interior de seda branca. Ela gostava de comprar roupa íntima
cara. Era um luxo que tinha, assim como o café de manhã na
cafeteria de Melbourne.
Inclinou-se para apanhar o elástico e fazer um rabo-de-cavalo,
quando sentiu que já não estava sozinha. Evitou fechar a porta, uma
vez que não gostava de estar em espaços fechados. Causavam-lhe
claustrofobia. Não era em vão que preferia trabalhar com a
natureza, ao ar livre, e respirar a liberdade que sua profissão lhe
dava.
Não precisava de falar. O corpo parecia ter exercido uma
conexão com Tahír depois daquele beijo horas antes.
—Está tudo bem por aqui? —perguntou ele apoiando o ombro
contra o umbral da porta com os braços cruzados.
—Sim… Foi um dia interessante —disse desde a cadeira
vermelha onde estava sentada.
—Adormeci. Desculpa ter-te deixado sozinha.
Beatriz riu-se.
—Já sou crescidinha para tomar conta mim, mas obrigada. Não
estive sozinha, Bob fez-me companhia e estivemos a conversar até
que desatou a chover.
Ele apertou a mandíbula. Tenso.
—Bob fez-te companhia, eh? — perguntou-lhe com um tom que
ela não conseguiu decifrar, nem tentou fazê-lo. Tahír olhou para o
relógio. Faltavam quatro minutos para chegarem ao cais —. Não
sabia que eras exibicionista —murmurou ao olhá-la de alto a baixo.
Tirando-lhe a roupa com os olhos. Fazendo-a sentir um formigueiro
intenso enquanto o seu corpo se recusava a recuperar a sanidade.
Os seios começaram a ficar pesados, os mamilos empurravam
contra a seda do sutiã como se quisessem chamar a atenção de
Tahír a todo custo, e o canal íntimo estava molhado. Muito molhado
porque ele olhou para ela possessivamente, como se quisesse
devorá-la naquele exato momento. E talvez, porque a parte menos
civilizada e cerebral dela, também o desejava.
Beatriz olhou para ele, estava incrédula com o comentário. Olhou
para ela mesma.
— Esta é a roupa que todas as mulheres usam quando vão à
praia. Não sei se sabes, mas até existem praias para nudistas. E se
te pareço exibicionista, a verdade é que não quero saber o que tu
fazes ou deixes de fazer, e nem me interessa a tua opinião sobre
qualquer assunto que me concerne. — Meu Deus, o coração batia
com tanta força, porquê?
Tahír só se deu conta que o seu corpo se tinha movido quando
as pontas dos moccassins roçaram as sandálias de Beatriz. Ela
levantou o queixo, desafiante.
—Ou seja, não te ia importar que neste momento decidisse tirar-
te a roupa e deslizar a minha boca no teu sexo para prova-lo,
lambê-lo e chupá-lo até que explodas de prazer?
Beatriz não conseguiu evitar de imaginar a cena. Que não
tivesse experiência física não significava que os seus
conhecimentos sobre as atividades na cama não estivessem
registadas no seu cérebro. Afastou o olhar.
Tahír inclinou-se e pôs as mãos nos braços da cadeira, uma a
cada lado de Beatriz, encurralando-a com a força, aroma e
territorialidade dele. Ela viu-se forçada a olhar para ele.
—O que faças com outras pessoas ou o que penses sobre elas;
o que penses sobre mim ou sobre as minhas ações, é da tua conta.
Mas o mais importante, convencido, para que me possas dar prazer
com a tua boca é preciso que eu queira, e sabes uma coisa?
Ele levantou uma sobrancelha à espera da resposta da Beatriz.
—Não me interessa.
Tahír aproximou-se do lóbulo da orelha de Beatriz, e mordeu-lho.
Ela sentiu um formigueiro a percorrer-lhe todos os pontos do corpo
ao sentir os dentes e o fôlego morno na pele.
—Mentirosa —sussurrou-lhe ao ouvido antes de deixar um rasto
de beijos até chegar à boca dela, mordiscou-lhe o lábio inferior. Ela
olhou para ele com os olhos muito abertos—. Com este beijo selaste
o teu destino!
Estava tão longe do seu estilo comportar-se assim na frente de
uma mulher, pensou Tahír. Não fazia ideia de como conter a
sensação de que deveria ficar claro que Beatriz era dele. Mas não
disse nada.
—Não voltará a acontecer —afirmou a tremer, perdida na
expressão confiante e cheia de desejo de Tahír—. Recomendo que
tomes uma dose extra de Xanax, porque este beijo não significou
nada.
Mesmo com os lábios quase separados dos dela, ele sorriu. A
bravata de Beatriz foi a resposta à vulnerabilidade e conseguiu
reafirmar o interesse que tinha por ela. Mas nem por isso deixou de
lhe incomodar que esses lábios tivessem sido beijados por outro
homem. Só a conhecia há dois dias. Dois malditos dias e parecia
um adolescente sem qualquer controlo hormonal.
Beatriz tentou empurrá-lo para afastá-lo, mas foi como tentar
mover uma pedra a vários metros de distância. Assoprou.
—Foi só um beijo —continuou ela— e vou voltar a Port Douglas.
Vou trabalhar e tu vais gozar as tuas férias onde o sol aqueça mais
ou onde a lua jogue às escondidas.
Ele inclinou a cabeça para um lado. Sem exaltar-se.
—Tudo tem um princípio. — disselhe com a voz rouca ao sentir
como palpitava o pulso delicado do pescoço— e aquele beijo, no
qual tu participaste tão ativamente, é nosso ...
—Bea, já vamos… Ups! Desculpem… Não sabia que estavas
aqui —disse Sufyan ao ver o melhor amigo inclinado sobre Beatriz,
que tinha as bochechas coradas.
Tahír afastou-se com uma calma incompreensível para Bea. Ah,
mas ele não saiu sem primeiro piscar-lhe os olho de forma bastante
eloquente. Ela levantou-se e suavizou as rugas inexistentes do
vestido.
—O que se está a passar? —perguntou Tahír fixando-se no
amigo.
Nesse momento, o catamarã moveu-se com força, atirando a
Beatriz para a cama e o Tahír contra o Mawaj.
—Que raio! —murmurrou Bea, antes de se pôr em pé.
Tahír moveu-se com rapidez.
—Estás bem? —perguntou-lhe enquanto a segurava pelos
braços para a ajudar a equilibrar-se. O movimento foi bastante forte
e o catamarã continuou a balançar enquanto o capitão amarrava as
cordas e lançava a âncora para fora.
—Sim… —murmurou, e afastou-se— vou buscar a minha roupa.
—Sem demoras, entrou na casa de banho e fechou a porta.
Majaw levantou uma sobrancelha, mas Tahír não comentou nada
perante a pergunta silenciosa sobre o que estava a acontecer.
—Vinha dizer à Beatriz que vamos passar a noite num hotel, e
saber se ela está de acordo. Assim não regressa sozinha.
—E isso o que é que te diz respeito…?
Majaw não se alterou. Começava a divertir-se ao ver Tahír tão
perturbado na procura de autocontrolo quando era evidente que lhe
faltava, pela primeira vez em muitos anos.
—Suponho que não faz sentido que Sufyan continue à tua
procura —respondeu em troca e ignorando de propósito o
comentário fora de lugar de Tahír—. Já tratei da estadia no hotel.
Seria melhor que perguntasses à Bea —apontou para a porta
fechada— se está de acordo. Caso contrário tentamos fazer a
viagem.
—É uma mulher inteligente, de certeza que sabe o que lhe
convém mais para a sua integridade nestes casos. E se quiser voltar
a Port Douglas, levo-a eu.
—Não duvido —murmurou Mawaj, encolhendo os ombros, antes
de sair do camarote de Beatriz.
De mau humor, Tahír pensou que de repente precisava de
apanhar ar. Um simples desejo sexual parecia ter-se transformado
numa frustração que lhe punha o humor ácido. Tinha de tomar as
rédeas da situação.
***
A última coisa que Bea tinha esperado era terminar num hotel
quando o que mais queria era distanciar-se daquele príncipe
vaidoso e arrogante. Aqueles eram dois adjetivos que ficavam
aquém de Tahír.
Se continuasse a permitir o prazer de tê-lo por perto, teria de
aceitar o caos que estava a começar a manifestar-se nas suas
emoções, porque quem é que ela queria enganar? Era agradável
olhar para ele e tinha sido mais do que delicioso beijá-lo. Mas tinha
de se concentrar no que era estável e duradouro: a sua vida em
Melbourne. Ela começava a abrir caminho profissionalmente, e seria
um grave erro colocar tudo a perder por distrações com uma pessoa
que desapareceria da sua vida em poucos dias...
Enquanto ouvia como as gotas de água pareciam capazes de
penetrar no vidro das janelas, pensou que podia ter apanhado um
táxi em vez de aceitar a suíte privada num hotel cinco estrelas que
Tahír lhe ofereceu. No entanto, o senso comum preferiu
desaparecer durante a tarde: não era seguro por causa da
tempestade elétrica. De qualquer maneira era apenas uma noite…
Quartos separados.
Entraram no hotel por volta das nove horas da noite. Depois
foram ao restaurante jantar e, quando começaram a pedir Tahír
recebeu um telefonema. Com um pedido de desculpas, saiu da
mesa e não voltou a vê-lo.
Ela aproveitou o jantar para conhecer um pouco melhor Mawaj e
Sufyan. Bea gostava de ouvir anedotas engraçadas sobre algumas
situações em Azhat. Estava curiosa sobre as tradições daquele país
no Médio Oriente. Sabia que era um país cujas políticas arcaicas
começavam a transformar-se em progressistas. Tal era incomum,
porque, geralmente, os países do Médio Oriente têm tendência a ser
repressivos e incoerentes com os direitos humanos, especialmente
com as mulheres.
—Podem usar roupa ocidental? —perguntou ela a Sufyan.
Apesar da sua aparência séria, quando sorria, os olhos dele
brilhavam. Ele parecia o tipo de homem que não gostaríamos de ter
como inimigo.
—Sim, há quase duas décadas. De facto, o hijab das mulheres é
mais usado para se protegerem do sol abrasador do deserto do que
pela estupidez da tentação ou de outras teorias não têm sentido. No
nosso país, as mulheres são respeitadas.
—Talvez algum dia visite Azhat —disse ao olhar à volta. Tahír
não estava em lado nenhum.
—Quando recebe chamadas no telemóvel particular
normalmente é Karim, o assistente e conselheiro dele. Nem sempre
são boas notícias, por isso o Tahír tem de atender sempre, até
quando está de férias —disse Mawaj quando a viu à procura do
príncipe com o olhar.
—Entendo —comentou—. Foi uma tarde divertida e uma
companhia agradável à mesa. Por favor, agradeçam ao príncipe em
meu nome. Estou exausta, vou descansar.
—Claro —responderam eles em uníssono.
Um trovão surpreendeu Beatriz, devolvendo-a ao quarto em que
ela estava. Virou a cabeça para ver a hora no relógio luminoso que
estava na mesinha de cabeceira. Eram onze e meia. Ela sabia que o
quarto do Tahír estava ao lado do dela. Foi esperança ou desejo que
fez o coração palpitar com a possibilidade de ele bater à porta da
suíte pedindo-lhe para entrar...?
Precisava de falar com Dexter. O conselho de um homem era
sempre necessário quando a perspetiva feminina parecia
tendenciosa. Será que lhe ia dizer para se deixar levar pelo instinto
ou deixar o "cenário" completamente? Ninguém a conhecia melhor
do que ele.
Surka entendia-a e era a sua confidente nas situações em que
não podia confiar no Dexter pelo simples facto de haver assuntos
que ela preferia falar com mulheres. Além disso, se dissesse à
Surka quem era o homem em questão, ela provavelmente ia insistir
para que se lançasse numa aventura sexual sem limites.
Dexter costumava ser mais cauteloso nos conselhos que lhe
dava, por isso precisava de saber a opinião dele. Não considerava a
virgindade o tesouro mais precioso ou um sinal de pureza. Não
acreditava nesses disparates típicos de sociedades
preconceituosas. Ninguém queria saber de homens virgens. O facto
dela ser virgem só tinha a ver com cautela e falta de oportunidades.
Para Beatriz o mais importante era o coração dela, por isso
protegia-o a sete chaves. Aceitava que o desejo era mútuo; desde
que o conheceu não parava de pensar nele. E se Tahír fosse
apenas a pessoa com quem teria prazer pela primeira vez? Dessa
forma, ambos poderiam obter o que procuravam. Ele tinha-a na
cama dele. E ela aprendia na prática o que era ter sexo. Não era
uma troca justa? Depois cada um podia seguir o seu próprio
caminho. Não?
Precisava de falar com o Dexter.
A tempestade ficou mais forte. Não gostava de estar sozinha
quando chovia tanto como naquele momento.
Surka costumava gozar com dela, até já lhe tinha dito para
adotar um animal de estimação para abraçar a ele nos dias de
tempestade. Beatriz preferiu pedir-lhe que lhe desse um comprimido
para dormir. Para quê ser enfermeira se não era para ajudar?
***
Esta situação inesperada foi a melhor, pensou Tahír, enquanto
observava o céu azul da janela de seu jato particular. Estavam no
avião há seis horas e ainda faltavam três para chegar a Paris.
Ele sentia que tinha voltado a recuperar o controlo de si mesmo
quando saiu do hotel em Cairns ao amanhecer. Pagou tudo e saiu.
Quando chegou na mansão em Port Douglas, a governanta tinha
instruções para devolver os carros ao concessionário de luxo.
Organizar as malas para deixar a Austrália foi rápido. A equipa
de serviço da mansão era contratada de forma perene. Por isso, ele
não precisava de se preocupar com nada para além de chegar ao
hangar a tempo. Como devia ser.
Durante o jantar da noite anterior, ele recebeu um telefonema do
pai. Esse maldito telefonema foi o motivo porque deixou de lado o
seu precioso tempo livre.
—Os príncipes não têm férias. Não me dececiones, Tahír —
disselhe em tom cortante quando o informou que tinha de ir para
França imediatamente—. Se me pudesse levantar desta maldita
cama iria eu atender aos meus deveres reais, mas estou doente,
raios, e os teus irmãos não me podem substituir. Tens de ir tu! Agora
telefona ao Karim, pede-lhe um brief da reunião. Vais representar-
me a mim e a Azhat.
—Que bom saber que está interessado no meu bem-estar, pai —
disse com sarcasmo.
—Não tenho tempo para disparates. És especialista em
segurança, sabes tomar bem conta de ti. Agora vai para França e
faz o teu trabalho. Sê um príncipe capaz.
E depois, desligou-lhe o telefone.
O pai era o crítico mais feroz dos seus atos. Não foi o pai quem
há uns anos insinuou que preferia que ele não fosse seu filho?
Ainda lhe custava muito essa facada no peito.
Se tivesse sido Karim a ligar, Tahír teria exigido que ele
comunicasse com Amir, ao até com o Bashah, para ir à reunião em
Paris. Mas com o pai não podia fazer birras. Nunca tinham estado
juntos no mesmo espaço sem discutir. Eles costumavam ter ideias
diferentes. Um relacionamento ácido. E agora que ele estava
doente, a distância entre eles aumentava no lugar de diminuir.
Irritado e sem apetite para voltar à mesa onde estavam a jantar,
Tahír telefonou ao conselheiro. Ao segundo toque, ele respondeu
com a mesma voz cerimonial e gentil de sempre.
Karim informou-o que a reunião em Paris era com líderes
mundiais para discutir as mudanças climáticas. Estavam à procura
de um compromisso para melhorar a qualidade de vida dos países
membros através do cuidado com os recursos naturais. Também
iam falar sobre as energias renováveis e sobre como controlar a
poluição.
—Devias tê-la acordado e dizer que tinhas de ausentar-te —
disse Sufyan.
Estavam sentados frente a frente num dos confortáveis assentos
de couro café.
—O quê? —perguntou Tahír ao afastar a vista da janela.
Também não havia uma paisagem muito diferente precisamente. Só
nuvens e mais nuvens.
—Beatriz. Não lhe disseste nada —Sou um prín…
—Sim, sim, já sei o que vais dizer, Tahír. Estamos entre amigos,
e estou farto de ver como as mulheres entram e saem da tua vida,
mas realmente nenhuma merece a pena. Beatriz não é igual à
outras com que passas uma noite.
—É melhor assim. Ela não pertence ao meu mundo. Teria sido
só uma queca durante as férias. Agora que o meu pai está mais
delicado que nunca, eu não preciso desse tipo de distrações.
Sufyan olhou para ele durante um longo momento.
—E isso significa que podes comportar-te como um cretino com
uma pessoa que, de facto, nem pediu a tua atenção? —suspirou—.
Ela é linda. De certeza que não lhe faltam pretendentes… —
encolheu os ombros—. Se consideras que isto seria uma coisa de
uma noite, fico contente por a teres deixado.
Tahír cerrou os punhos até que os nós dos dedos ficaram
brancos. Beatriz nublou-lhe o pensamento. Ele tinha a certeza de
que ela era o tipo de mulher que queria um relacionamento a longo
prazo e não algumas noites de luxúria. Ele só queria levá-la para a
cama. Dar rédea solta ao desejo e depois deixá-la ir. Mas como ela,
ele poderia encontrar muitas, é claro. Agora tinha as ideias mais
organizadas. Não ia amarrar-se a ninguém. Não era Paris a cidade
do amor? Bem, ia aproveitar isso ao máximo.
—Pensas que és a versão do Doctor Phill no Médio Oriente?
O amigo, muito disposto a responder-lhe ou a seguir a corrente,
simplesmente se inclinou para agarrar no livro que estava a ler.
Tahír passou a mão pelo rosto cansado.
Havia muitas mulheres disponíveis e à espera dele. Ele não
pretendia complicar a vida simplesmente porque não tinha tido nada
com uma em particular.
CAPÍTULO 8

—Desculpa, Bea, a sério! Cheguei à bocadinho e quando abri a


porta vi que estava tudo sujo —disse Annie com tristeza ao olhar
para os sapatos cheios de lama—. Tentei limpar, mas precisamos de
muitas mãos para conseguir isso. Temos de contratar uma empresa
de limpezas.
Eram 9 da manhã em Melbourne.
—Eu vim um pouco antes —interveio Leny perante o silêncio de
Beatriz— e verifiquei que a água não chegou até às traseiras onde
guardas os planos para o teu projeto.
—Estão secos?
—Gostava de te dizer que sim…
Ainda com as malas da viagem a Queensland, ela observou com
uma expressão derrotada o que aconteceu na Bea's Tulip. Todas as
sementes exóticas, os poucos implementos de jardinagem que ela
vendia e alguns sacos de fertilizante especial que costumava ter
para encomendas especiais estavam estragados. E agora, Leny
estava a dizer que os planos que guardava no escritório também. Só
queria chorar. As perdas eram facilmente quantificáveis, eram mais
de dez mil dólares australianos. Estava arruinada.
Olhou para o teto de madeira. A água continuava a pingar. A
madeira estava evidentemente inchada.
—Como é que isto aconteceu? Como é que rebentaram os
canos? Deixei tudo em ordem antes de me ir embora —disse para si
mesma num sussurro, tapando a boca com as mãos com
incredulidade. Tinha a certeza que não tinha deixado nada aberto—.
Tenho de ir ver o estado do meu apartamento. O que me vai custar
reconstruir tudo isto…—Olhou à volta sentindo-se desolada.
—Já fechei a torneira de segurança. É impossível controlar algo
assim. Deve ter acontecido durante a noite ou no fim-de.semana —
disse Leny—. Talvez seja melhor telefonar aos canalizadores para
que façam uma revisão exaustiva. Assim podem passar-te um
orçamento.
—Suponho…—murmurou Beatriz.
—É provável que tenha sido tão caótico porque certamente
começou no fim-de-semana. Se tivesse sido só uma tarde de
infiltração de água ou talvez meio-dia, Annie e eu teríamos
controlado a situação a tempo.
«O fim-de-semana». Bea nem queria pensar nos seus últimos
dois dias de trabalho em Port Douglas desde que tinha sido
abandonada num hotel, como se não valesse a pena, ou não
merecesse a consideração de uma comunicação infeliz de Tahír
explicando-lhe porque se ia embora sem se despedir pessoalmente.
Ele podia ter ido ao quarto dela dizer-lhe que se ia embora. Ela teria
aceitado sem problemas. Pelo menos agora já sabia que esse
príncipe não era diferente dos outros. Marcou-lhe o destino? Claro
que não. Tahír tinha sido apenas um deslize na sua existência.
Ponto final.
Foi humilhante ir tomar o pequeno-almoço e ser informada pela
rececionista de plantão que estava tudo pago e que a comitiva do
príncipe Tahír Al-Muhabitti tinha deixado o hotel ao amanhecer. No
entanto, tinha ordens para que um motorista a levasse quando ela
quisesse a Port Douglas. A simpática rececionista assegurou-lhe
que não havia nota ou explicação além do que ela já a estava a
informar. Nem um número de telefone para telefonar.
«Estás melhor assim.»
—Obrigada —murmurou, e Annie aproximou-se para lhe dar um
abraço.
—Vamos sair desta, chefe —disse para tentar ser otimista,
apesar de ambas saberem que o negócio estava arruinado.
Leny tirou-lhe as malas das mãos e foi até à parte traseira, onde
estava a discreta porta que levava ao andar superior. O apartamento
onde ela vivia.
Bea abriu a porta e encontrou tudo encharcado. Os tapetes.
Suspirou alto e foi à casa de banho. A mangueira que estava ligada
à sanita e a outra que estava ligada ao lavatório estava estragada.
Como é que os conectores que tinham sido ligados aos canos
tinham saído? O resultado desse acidente foi uma inundação da loja
e um caos de água no apartamento, mas ia esperar pela opinião dos
canalizadores.
Beatriz virou-se para os empregados.
—Estamos fora de serviço, malta. Tenho de usar as minhas
poupanças para cumprir com as encomendas que já foram pagas,
mas receio que não vou poder pagar no próximo mês. Vou fechar a
loja por um tempo, pelo menos até encontrar uma maneira de
recuperá-la novamente. Tenho que fazer novas projeções - suspirou
- tenho que começar do zero.
—Não te vamos deixar sozinha, Bea —interveio Leny— ficamos
aqui para te ajudar com tudo.
Beatriz esboçou um sorriso triste.
—Tens uma esposa e um bebé a caminho. O salário que eu te
pago dá para dois, de certeza, mas com um bebé vais ter muitas
despesas. —Ele bateu-lhe levemente no ombro—. Eu vou falar com
meu pai. Acho que ele te pode recomendar ou encontrar um
emprego para ti. Ele tem excelentes contactos com gente que
trabalha com questões ambientais e já sabe que tu trabalhas muito
bem.
—Não faz falta, Bea.
—Não tens de levar isto para a frente sozinha —disse Annie—.
Além disso, a loja tem seguro. Só tens de preencher a papelada e
avaliar quanto te vão pedir para cobrir os arranjos. O resto pouco a
pouco.
Não discutiu. Estava demasiado esgotada até para isso.
Ela precisava da força para começar do zero, principalmente
porque temia que o seguro não pagasse. Costumava ir ao banco
pagar as faturas mensais à seguradora, aproveitava esse tempo
para limpar a mente e também para ir ao hospital onde Surka
trabalhava, que ficava de caminho. O problema era que se tinha
esquecido completamente de automatizar as cobranças no cartão
de crédito - como fazia quando viajava - e com tudo o que
aconteceu com um certo príncipe, os neurónios entraram em
colapso.
Agora estava arruinada. Era a isso que se referia Ordella quando
lhe disse que ele ia marcar-lhe o destino? Ah! Que maneira de
cumprir com as previsões da mãe, pensou com acidez,
contemplando o seu apartamento.
—Obrigada pela vossa apoio —disse olhando para eles—. De
momento ainda faltam uns dias para chegar ao final do mês, vamos
trabalhar juntos, organizando o que pudermos dos temas
contabilísticos e com os clientes. Não me interpretem mal, aprecio
muito a vossa intenção de ficarem, apesar de não poder pagar-vos
durante algum tempo, mas não me parece justo. Tudo acontece por
alguma razão. Talvez tenha de fechar por algum tempo o Bea´s
Tulip, e reorganizar-me —sorriu— de repente surgem ideias novas e
voltamos a trabalhar a todo o vapor.
—De acordo, Bea. Então, hoje daremos o nosso melhor para
organizar tudo até que se possa abrir a loja —concluiu Leny dando-
lhe um leve aperto no braço.
Ao cair da noite, exaustos depois de ter conseguido limpar toda a
bagunça e os canalizadores terem ajustado as mangueiras do
lavatório, Leny e Annie organizaram as questões contabilísticas dos
clientes, e Beatriz finalmente respirou. As pessoas odiavam as
segunda-feiras, sobretudo ela naquele momento.
Tinha uma horrível dor de costas. Os pés pareciam latejar. E o
estômago rugia com fome. Relutante, foi até a frigorifico. Garrafas
de água. Uma pizza congelada. Litros de leite. Iogurte. Abriu a
gaveta dos legumes, estava vazia. Esteve fora de casa durante
duas semanas, por isso todos os produtos que podiam matar-lhe a
fome não existiam.
Agarrou no telefone e ligou para um restaurante italiano para
encomendar comida ao domicílio. Não teve forças para se vestir e ir
ao supermercado, já faria isso no dia seguinte. Teria de esperar
cerca de quarenta minutos. Eram as oito horas da noite.
Beatriz tomou banho. Não tinha intenção de descer para ver
mais nada na loja. De momento, já tinha conseguido o mais
importante: limpar o desastre. As mangueiras que se soltaram já
estavam bem colocadas. "Os anéis que protegem o bocal e que se
conectam ao tubo de água estavam soltos. Talvez por uso ou
movimento constante. Os canos, como esta casa, são velhos, por
isso recomendo uma revisão periódica do sistema de água do
apartamento para que um acidente desta magnitude não volte a
acontecer, menina", disse um dos canalizadores.
Antes de entrar na banheira, o telemóvel vibrou com uma
mensagem de texto. Até se tinha esquecido completamente do
telemóvel. Deslizou o dedo no ecrã e sorriu ao ver quem era.
Bea: Olá! Estava a entrar para a banheira. Há séculos que não
sei nada de ti.
Dexter: Eu digo o mesmo, menina! Queres ir tomar um café?
Hoje é o único dia em que fecham os bares da minha cadeia, por
isso sou todo ouvidos. Correu tudo bem em Queensland?
Bea: Foram uns dias demoníacos.
Dexter: Weeepa. A sério?
Bea: Sim.
Dexter: Jantamos? Já sabes que não me podes dizer que “não”.
Bea: Então, devo começar a exercer o poder do “não” =) Pedi
comida ao domicílio. Se te apetecer comer em pratos de plásticos e
com talheres com a mesma categoria de luxo está convidado! Mas o
mais provável é que adormeça antes de começar a jantar.
Dexter: Encomendaste comida italiana?
Bea: É a minha debilidades, já sabes.
Dexter: Uma grande ameaça à tua silhueta. LOL. Estou aí em 20
minutos. Quero contar-te umas coisas.
Bea: Isso promete...
Dexter: Sarcasmo? =/
Bea: Quando vieres conto-te…
Dexter: Levo vinho. Estou a pressentir que precisas.
Bea: E eu que pensava que era a psíquica na equação;) Pôs o
telemóvel de lado e entrou na banheira.
A coisa boa de ter amigos era que podia contar sempre com eles
para arrancarem-lhe um sorriso. Antes de Dexter chegar, ela ia ligar
à Surka. Assim, só tinha de contar o que aconteceu em Melbourne
uma vez e aproveitava para estar com os seus dois melhores
amigos num momento em que a vida parecia desfazer-se em
pequenos pedaços.
***
Durante a sua estada na França, Tahír aproveitou a oportunidade
para visitar a Riviera Francesa após a convenção climática. Ele
estava com alguns amigos que tinha em Cannes e, em seguida, foi
a Monte Carlo para desfrutar da vida noturna, e também para
cumprimentar os amigos reais no Palácio Grimaldi. Alberto era um
bom amigo, e Tahír não teve oportunidade de cumprimentar
pessoalmente os gémeos do príncipe de Mónaco, por isso
aproveitou estar ali para fazê-lo. Por outro lado, o jogo de apostas
não era algo que Tahír gostasse particularmente, mas como fazia
parte do pacote de entretenimento, aventurou-se. Na roleta perdeu o
equivalente a quinze mil euros. Pensava em fazer a última jogada
da noite. Não para recuperar o dinheiro, sabia que era impossível,
mas para estar entretido com alguns conhecidos que costumavam
frequentar os famosos casinos do principado.
Karim tinha vindo de Azhat para acompanhá-lo nas reuniões em
França. E junto com ele veio a equipa de segurança habitual que
costuma viajar com Tahír a todos os lugares. Uma clara lembrança
de que as férias tinham chegado ao fim até que o seu pai, o rei, lhe
reconhecesse que como qualquer cidadão do mundo tinha direito a
fazer uma pausa.
Os melhores amigos de Tahír tinham optado por viajar a Ibiza.
Embora o príncipe não tivesse mais tempo para gozar das férias
como gostaria, Mawaj e Sufyan não se privariam das suas. Não foi
justo. Eles acompanharam-no até Cannes e depois apanharam um
voo para a ilha espanhola.
Aquela era a última noite de Tahír na Europa e a segunda em
Montecarlo. Karim não tinha nenhum evento oficial programado,
porque os próximos seriam em Tobrath. Esse era o destino do dia
seguinte.
Tahír foi recebido pelo barulho do casino e o cheiro do dinheiro.
Os candeeiros de ouro, as lâmpadas de cristal e a elegância eram o
cenário onde ele tinha nascido. Era natural para ele, movia-se nesse
mundo como peixe dentro de água.
Tahír, vestido elegantemente com um fato requintado, sorriu para
a sedutora morena de olhos castanhos que passou a noite inteira a
insinuar-se a ele. Quando se afastava da mesa de pôquer para ir ter
com ela, alguém lhe tocou no ombro e ele deteve-se de repente.
Virou-se.
—Depois de tantos anos, por fim vejo-te, Al-Muhabitti.
O brilho de gozo nos olhos azuis de Bassil Ashummi era
inconfundível. A última vez que se viram foi há nove anos numa
festa em Londres.
—Ashummi — disse Tahír, apertando a mão de seu velho rival
de corridas de carro e, claro, também de mulheres.
—O que fazes em Montecarlo?
—Trabalho. Amanhã regresso a Azhat. Vais jogar?
O copo de whisky do príncipe repousava na borda da mesa de
madeira para dez pessoas. Havia dois espaços vazios, porque iam
começar um jogo novo.
—Impossível recusar tal oferta com um amigo como tu —
comentou a rir-se antes de sentar-se ao lado do príncipe. Olhou
para onde estava a atenção do Tahír uns minutos antes—. Chama-
se Penélope. Ontem fui para a cama com ela.
—Claro, e não foi nada memorável ou não estaria interessada
em continuar a olhar para mim, quando se supõe que ainda ontem à
noite estava na tua cama. —Fez um sinal ao dealer para indicar-lhe
que ia jogar, este assentiu. O amigo de Tahír também assentiu
perante olhar interrogante do dealer—. Tudo bem, Bassil?
O canadiano deu uma gargalhada.
—Durante todos estes anos nunca tive um oponente tão teimoso
como tu, devo confessar —tocou no queixo perfeitamente barbeado
— talvez tenhamos de pensar num desafio que valha mesmo a
pena. Para celebrar este casual reencontro.
Tahír levantou uma sobrancelha.
—Na mesa de Póker?
—Agora que acabei de retomar o contacto contigo —tirou um
cartão de visita do bolso esquerdo e entregou-o ao Tahír. Este
guardou no bolso das calças pretas— talvez possa fazer alguns
acordos comerciais. Talvez seja um desafio interessante medirmo-
nos numa mesa de negociações. Estou a expandir a minha
empresa.
—És especializado em quê?
—Construo parques eólicos em áreas desenvolvidas da Europa,
e trabalho na perfuração de poços de petróleo na América do Sul.
Agora estou em negociações com a Arábia Saudita para começar a
investir com eles.
—E porque te interessa o meu país se já estás em conversações
com a Arábia Saudita?
— Eu vou aventurar-me no minério. Nos arredores de Tobrath
há zonas potenciais de diamantes e veios de ouro. Não tanto como
na África, mas há. Nós podíamos dividir os lucros.
—Tens de falar com o meu irmão Amir.
—Já estás a desistir do desafio, Tahír?
—Não gosto de me meter no campo dos outros.
Bassil cruzou os braços, enquanto uma empregada de mesa
trazia um conhaque.
—Se bem me lembro, tu não gostas das salas de negócios.
Preferes uma batalha no deserto —sorriu— vou pensar em alguma
coisa que te faça pensar no que te proponho. A menos, claro, que
aches que não podemos chegar a um bom acordo e não possas
fazer uma exceção para reunir com a administração da minha
empresa no lugar do Amir.
—Pensaste em reunir-te com o meu pai para apresentar-lhe o
teu negócio? —perguntou em resposta. Tinha aprendido a controlar-
se.
—Sim. Era um plano a longo prazo entrar em contacto com o rei
Zahír. Encontrar-te em Montecarlo só antecipou a minha jogada.
—Não acredito nas coincidências —disse sem controlar o seu
tom desconfiado.
Bassil era um homem com muitos recursos. Depois de lhe terem
matado o pai, o embaixador Ethone, durante uma revolta numa
visita consular ao Zaire, ele transformou esse revés numa fortaleza
para criar uma rede de importantes contactos corporativos. Agora
era um homem de peso nas áreas potencialmente lucrativas do
mundo.
Tahír não sabia nada de Bassil desde que o pai dele terminou a
missão diplomática em Azhat. Não se esqueceu que o canadiano
costumava jogar sujo para atingir os seus objetivos. Nas ocasiões
em que o venceu nas corridas, na esgrima ou mesmo com uma
mulher que Tahír desejava, tinham um estratagema. E estava
convencido de que o encontro deles em Montecarlo não era uma
coincidência.
—A minha ideia é ajudar-te a acreditar nelas —disse ao levar um
punhado de amendoins à boca. Mastigou devagar—. Espero que
pelos velhos tempos me cedas uma audiência, Al-Muhabitti.
—Claro. O meu secretário entrará em contacto contigo.
—O Karim continua a trabalhar contigo?
—Até esta tarde continuava comigo, ainda não tinha mudado de
opinião.
Bassil riu-se.
—De acordo. Começamos o jogo.
O dealer repartiu as cartas. Estiveram em silêncio durante todo o
jogo. Cada um concentrou-se nas suas possibilidades, e os outros
sete participantes também. Minutos depois, Tahír venceu o jogo
inicial e levou o equivalente a vinte mil euros. Eles voltaram a jogar
a duas mãos adicionais, nas quais os outros jogadores dividiram os
ganhos da noite. Bassil não ganhou nenhuma ronda, perdeu trinta
mil euros.
—Desistes? —perguntou o Bassil quando viu o Tahír levantar-se
da mesa.
O príncipe ajustou o blazer do smoking.
—Sim, durante uma boa temporada estou satisfeito com estes
jogos.
—Um whisky? —perguntou ao empresário de cabelo escuro.
—Claro.
Às duas da madrugada, Tahír chegou ao quarto do hotel.
Estava tranquilo.
Depois de se despedir de Bassil, os olhos dele encontraram uma
loira de pernas compridas e um sorriso travesso. A loira que não
teve reparos em aproximar-se dele, tinha um vestido decotado de
estilista, que parecia ter custado vários milhares de euros.
—Então és um príncipe —perguntou ao olhá-lo nos olhos
enquanto tirava os sapatos—. Adoro as histórias em que dizem que
são um pouco pervertidos nas práticas do amor.
Tahír teve de se rir. Mas calou-se abruptamente quando a
mulher, Ivonne, deixou o vestido deslizar sobre os ombros até ficar
em cuequinhas. Não tinha sutiã. Ele sabia diferenciar um par de
seios naturais daqueles operados. Era evidente que a gravidade não
era um fator que afetava as curvas arredondadas de pequenos
mamilos e aréolas de tonalidade rosa. Era uma mulher espetacular.
—Sim? — avançou até pôr as mãos nos quadris da publicitária.
Ou pelo menos foi essa a profissão que ela disse ter —. Então,
deves gostar que te amarrem à cama, te vendam os olhos e te
deem prazer, mas sem a oportunidade de tocar. Ou estou
enganada? — perguntou, levantando as mãos sobre a pele macia
até pousá-las no peito. Ele acariciou os mamilos com os polegares e
estes transformaram-se em bagas duras.
—Adoro.
Com um meio sorriso, Tahír pegou-a e deitou-a na cama. Com
uma agilidade impressionante, tirou o blazer, a gravata borboleta e
depois desabotoou os botões da camisa branca um a um. O torso
musculoso e atlético de Tahír estava à vista. Pele de azeitona com
algumas cicatrizes produto das lutas em esgrima, travessuras nas
montanhas quando era pequeno ou uma briga com os irmãos em
que, geralmente, ele era a vítima por ser tão inquieto.
—Beija-me, príncipe do deserto —murmurou a agitar as
pestanas postiças.
Estava excitado, não ia negar isso. Mas, de repente, ao ver um
corpo com retoques de cirurgia plástica, e ao dar-se conta de como
tinha sido fácil deslumbrar a Ivonne e levá-la para a cama, deteve-
se antes de se inclinar para beijá-la.
—Porque decidiste ter relações comigo tão rapidamente? —
perguntou-lhe.
Tinha as calças desabotoadas e o membro vibrava contra o
tecido dos bóxers.
—Adoro homens poderosos.
—E não queres saber quem eles são na realidade?
A mulher ficou pensativa por um segundo, mas depois sorriu e
estendeu a mão para agarrar o membro Tahír. Apertou-o e ele
gemeu.
— Não sei porque de repente tens vontade de falar, querido.
Neste momento divertido para ti e para mim — ela mordeu o lábio
inferior num gesto provocativo, antes de mover os quadris sugerindo
que estava pronta para ele — isso é tudo o que precisamos para
sermos felizes num mundo cheio de luxos.
Ele olhou para a expressão satisfeita e superficial dela e, de
repente, sentiu nojo dele mesmo. Estava com ela, porque queria
pensar que era outra mulher. Uma a que deixou sem qualquer
explicação, com a maior descortesia possível. Era como se todas as
suas ações fossem para empurrá-lo a pedir desculpas a Beatriz
Fisher. Precisava de tirar isso da cabeça.
Balançou a cabeça, como se tentasse tirar a imagem do sorriso
de Beatriz, o corpo curvilíneo —natural— em bikini, o sabor daquele
beijo que tinha gravado na memória. Agarrou nos extremos da tanga
de Ivonne e arrancou-a. Ela deu um risinho tolo.
Fechou os olhos e deixou-se levar.
CAPÍTULO 9

—Não pensei que ia voltar aqui tão cedo —disse Bea sorrindo ao
Michael, o empregado do One Second, um bar da cadeia de
entretenimento do Dexter.
Na noite em que Dexter e Surka foram à sua casa, ela
embebedou-se até perder a consciência, deram-lhe conselhos
sábios. «Nem tudo tem de levar ao amor. Se encontrares alguém
que te atraia, avança", disse o melhor amigo dela. "Desde que
tenhas a certeza de que não é nenhum tarado", acrescentou Surka
muito séria.
Embora ambos lhe tenham oferecido dinheiro para ajudá-la
financeiramente a levantar o negócio, Bea preferiu fazer isso com
seus próprios recursos. Ela disselhes que a única coisa que
aceitava era a recomendação deles a potenciais clientes.
Como ela precisava já de dinheiro, aceitou a proposta de Dexter
para ajudá-lo servindo às mesas até que ela quisesse. Já tinha
trabalhado nisso antes, mas como Bea's Tulip progrediu deixou o
trabalho. Estava grata por não ser o tipo de pessoa que
menosprezava um emprego. Faltava receber o pagamento do
Creekon, que elogiou o bom gosto dela para a reforma da mansão
de Port Douglas. Ou seja, tinha uma almofada económica para
recuperar gradualmente o ritmo.
Dexter tinha-lhe oferecido a gestão do One Second, mas ela
recusou porque estar sentada num escritório a olhar para números e
calada lhe dava fobia. Ela gostava do contacto com as pessoas e de
estar ao ar livre. E como não podia estar ao ar livre atualmente, pelo
menos teria a possibilidade de interagir com outros e ganhar
dinheiro com gorjetas, ouvir boa música e estar perto de Dexter
quando fizesse rondas de controlo nas instalações. Era um bom
trato.
—Estás aqui há uma semana e já tens admiradores —comentou
Michael.
Ele trabalhava no One Second desde que abriu as portas, há oito
meses. Fazia deliciosos coquetéis e também era muito giro. Pena
que fosse gay, pensou Bea. Mas os clientes não sabiam disso, e ele
aproveitava para vender ainda mais bebidas alcoólicas ou ganhar
uma gorjeta extra. Um rapaz esperto.
—O português?
Michael encolheu os ombros.
—Não sei de onde é, mas acho que se continuar a vir vais saber
de mais coisas do sítio onde nasceu. Uma noite deixas voar a tua
roupa pelo ar e permites às tuas pernas ter uma queca tão boa que
vais dormir como um anjo.
Beatriz riu-se. Michael quando abria a boca não tinha filtros e ela
ria-se muito com ele.
—És terrível, sabes isso?
—Sim. O meu marido aproveita-se disso —respondeu-lhe e
piscou-lhe o olho.
Bea virou-se astutamente para o local onde o olhar de Michael
estava apontando. O cliente não era um homem bonito, mas
atraente no geral. Quando ele notou que ela estava a olhar para ele,
sorriu-lhe. Não era a primeira vez que o via no bar. Isso era verdade.
Passava por ali à noite e pedia sempre a mesma bebida. Tinha o
cabelo ondulado, loiríssimo, e olhos castanhos. Um sorriso fácil e
parecia muito simpático.
Pôs na bandeja duas cervejas e um mojito.
—Só sei de onde é e que se chama Fabrizzio. Não tem aliança…
Eu também não estou à procura de uma relação.
Michael serviu uma cerveja a um cliente que estava ao balcão.
—Tu é que sabes o que fazes com esse olhar incendiário que te
lança, bonita. Estas cervejas são para a mesa oito e o mojito para a
quinze. —Bea assentiu ajeitando a bandeja—. O concerto começa
dentro de 20 minutos. Isto vai ficar um caos. Ainda bem que já
chegaram todos os empregados de mesa.
—Menos mal —murmurou Bea antes de entrar dentro do caos
que significava um negócio com comida e música ao vivo.
Principalmente quando o grupo era Maroon 5, porque o vocalista era
um bom amigo de Dexter, e ia dar um concerto privado para os
donos de uma empresa, e para os clientes que quisessem até
esgotar a capacidade do bar de 120 pessoas.
Bea adorava os tons de fúcsia, camel e lilás intercalados nas
diferentes áreas do bar. As mesas eram espaçosas. O menu era
diversificado, desde a comida tradicional australiana, passando pela
gourmet alemã até vários pratos mediterrânicos. Também havia uma
área com mesa de snooker onde costumavam estar os clientes mais
jovens.
O balcão era de vidro e estava iluminado. A quantidade de oferta
alcoólica era impressionante, assim como a variedade das suas
origens. Dava a sensação de estar num filme futurista. Para a
Beatriz era divertido.
Dexter apareceu por volta das três horas da madrugada, depois
de toda a agitação com o concerto, quando os pedidos não paravam
de chegar. Ela encontrou-se com ele quando tirava a roupa do
trabalho. Uma saia preta curta, uma blusa branca de mangas curtas
com o logo do bar no bolso do lado esquerdo do peito e sapatos de
salto alto. Ela não gostava muito de saltos, mas fazia parte do
trabalho, por isso não reclamava.
A expressão facial de Dexter mostrava preocupação. Beatriz não
disse nada, ajudou os colegas a limpar as mesas, e quando
fecharam a caixa e terminaram o inventário do dia, esperou que o
amigo voltasse do escritório localizado no final do corredor onde
estavam os cacifos e lavabos para os trabalhadores.
Estava sentada ao balcão com um vestido até ao joelho
confortável de mangas e flats vermelhos, com um rabo-de-cavalo e
já sem maquilhagem.
—Ainda por aqui? —perguntou ele num tom pouco normal—.
Pensava que já se tinham ido embora todos.
Ela abanou a cabeça.
—Quando entraste parecias preocupado, queres falar?
—Hoje não sou boa companhia, Bea. —Tirou as chaves do carro
do bolso.
—Eu também não era quando voltei de Queensland, e aqui
estou. Duas semanas depois já começo a recuperar o sentido
comum —disse a sorrir.
—Levo-te a casa.
—Tu sabes que venho de carro.
Dexter passou-lhe a mão pelos cabelos. Era muito mais alto do
que ela. E quando se chateava, com outros não com a Bea, parecia
muito ameaçador.
—Sigo-te com o meu carro até à tua casa, assim tenho a certeza
que chegas sã e salva, e convido-te para almoçar amanhã. Amanhã
não estás de turno, pois não?
—Não. Nos próximos dois dias não venho aqui. Hoje fiz o turno
da Harriet. Ela está engripada.
—Bem me parecia que tu não vinhas à quarta-feira —disse com
um sorriso sem brilho—. Bora, Bea, vamos para casa.
***
Tahír acabava de voltar do ginásio.
O suor escorria-lhe pela pele e os músculos ainda estavam
sensíveis devido ao treino. Naquela manhã, tinha treinado com o
instrutor de boxe. Limpou o rosto com a toalha que pendia do
pescoço enquanto seguia para o quarto no rihad privado.
Nas últimas duas semanas, desde que voltou, ele duplicou o
tempo que passava no ginásio e pediu a Karim que aumentasse a
quantidade de trabalho em questões de representação como
membro da família real. O conselheiro apenas levantou uma
sobrancelha ao pedido tão estranho, e depois foi consultar as
próximas atividades.
Depois da noite em Montecarlo, quando pediu a Ivonne para que
se fosse embora, porque não parava de pensar que queria que ela
fosse uma australiana cujos lábios ele não conseguia esquecer, não
tirava da cabeça a forma como tinha deixado a Beatriz em Cairns.
Ele nem podia ter relações sexuais com outra mulher. Isso nunca
lhe tinha acontecido.
Não importava quantas mulheres já tinham passado pela vida
dele. Nenhuma era Beatriz. Nenhuma tinha conseguido prende-lo
tanto a ponto de não poder estar com outras. Maldição, tinha de se
controlar.
—Tahír —atrás dele alguém o chamava.
Ele estava no meio do corredor que dividia as áreas que levavam
aos quartos de cada membro da família. O som daquela voz
percorreu-lhe a espinha como uma espada de aço. Fria, pungente.
Ele fechou os punhos e virou-se.
Um fantasma do passado. A mulher que conseguiu destroça-lo.
Olhou para ela de cima a baixo. Ela estava vestida com uma
longa saia verde-esmeralda que abraçava a cintura estreita, em
conjunto com uma blusa branca de gola alta sem mangas. Levava
um hijab que combinava com a saia comprida e calçava uns
chinelos pontiagudos com pedrinhas coloridas. Tudo somado, era
uma roupa reservada e elegante. Nunca foi diferente.
Tahír sentiu a garganta seca. O coração acelerou. Não tinha
nada a ver com amor, só com desprezo que nunca deixou de sentir
por ela. Vê-la ali diante dele, tão bonita e vulnerável ao mesmo
tempo, era uma bofetada na ideia de que já tinha esquecido. Talvez
ele não sentisse nada por ela, mais do que repulsa pela traição, mas
a lembrança do insulto persistia.
—Alteza real, para ti. O que fazes nesta ala do palácio? —
perguntou-lhe. Tinha vontade de partir alguma coisa e de gritar com
o Bashah. Ela pensava que o irmão a tinha mandado trabalhar
numa das casas dos Al-Muhabitti longe de Tobrath. Não imaginou
que a instalasse no palácio sabe-se lá a fazer o quê.
—Alteza —murmurou Freya inclinando levemente a cabeça.
Ela olhou para ele com aqueles olhos com que Tahír se perdeu
muitas noites. Incontáveis tardes... Longe do facto de que o tempo
tinha feito estragos desagradáveis na Freya, o rosto parecia mais
maduro e bonito. As curvas agora eram menos exuberantes, mas
mesmo assim a figura dela conseguia atrair olhares com uma
surpreendente facilidade.
—Não respondeste.
—Eu… O príncipe Bashah deu-me a possibilidade de trabalhar
no palácio. Devo agradecer-te por isso... obrigado, Alteza —corrigiu
—. Deu-me a escolher entre a área dos correios ou como assistente
de protocolo.
— Nenhuma dessas duas zonas estão dentro do palácio, e
nenhum trabalho dessas duas zonas devem trazer-te para as áreas
privadas.
—Preciso de falar consigo…
—Não temos nada para falar.
—Queria explicar-me —continuou com cautela— o que
aconteceu naquela noite em que o sequestraram. Por isso, pedi
uma audiência. Por isso…
A mera menção acabou com a paciência de Tahír. Ele dirigiu-se
a ela em fúria e empurrou-a contra a parede. Com a mão na
garganta, tentando não matá-la com as próprias mãos. Ela respirava
com dificuldade e ele observava-a com um intenso repúdio.
—Não tentes a tua sorte, mulherzinha! —largou-a e ficou de
costas para ela—. Tu e eu não temos nada para falar. Nada. Se
queres este trabalho, terás de ser um fantasma. Não existes. Não
tentes voltar a falar comigo ou vais conhecer o meu pior lado.
—Ameaçaram matar a minha irmã… Vivíamos numa zona
humilde. Só nos tínhamos uma a outra, e uma amiga costumava
cuidar ela enquanto eu trabalhava. Conheci-te por acaso, Tahír, e
apaixonei-me por ti.
—Uma embaixada não é uma zona humilde.
— Naquela noite eu tinha acabado de terminar o meu turno
como empregada de mesa de uma empresa de catering que às
vezes me contratava... Os vestidos nunca foram um problema, se é
isso que te perguntas, porque eu tenho jeito para a costura. Na
prisão dediquei-me a ensinar a algumas das presidiárias que
queriam…
—Não me interessa a tua vida na prisão —voltou-se novamente
para olhá-la na cara. Odiava sentir-se inclinado a acreditar nela.
—Quando eles… —continuou. Quando os sequestradores me
viram contigo uma noite, no dia seguinte aproximaram-se de mim.
Investigaram-me... Deram-me um ultimato. Tu ou a minha irmã. E
eu… —disse com um fio de voz, mas o suficientemente forte para
que ele a ouvisse. Viu-o apertar os punhos—. No dia em que me
meteram na prisão, a Elmahi ficou a cargo dos serviços sociais. A
minha irmã só tinha seis anos. Não consigo encontra-la, e ela é toda
a família que tenho. Preciso de lhe explicar que não a abandonei.
Esta é a única razão pela qual eu criei uma suposta revolta contra a
monarquia... Era a única maneira de chamar a atenção, porque eu
sei como é importante a segurança deste país é para ti... Porque eu
sabia, e eu sei, que me odeias e ias reagir. Por favor... Por favor,
ouve-me... Alteza... Preciso que me ajudes a encontrar a minha
irmã…
Tahír não ia cair nas mentiras dela. Nem ter pena pela voz
quebrada da Freya. Ele não queria ouvir mais explicações.
—Regressa ao teu posto de trabalho. E não voltes a dirigir-te a
mim.
Sem mais demoras, Tahír continuou o seu caminho.
A ferida estava aberta e ardia.
***
—O que é que achaste que estavas a fazer ao pôr a minha ex-
amante no palácio? —perguntou o Tahír quando se encontrou com o
irmão Bashah, que estava a assinar uns documentos no seu
escritório privado.
Ele tinha tomado banho e estava vestido de smoking. Tinha de
assistir a uma festa para celebrar o nascimento de um famoso pintor
do país. Umel Pash. Tinha pouco tempo, mas quando o Karim lhe
disse que o irmão estava no escritório, decidiu que não ia adiar a
conversa com ele.
—Ver-te alegra-me o dia, irmãozinho — respondeu o príncipe
herdeiro sarcasticamente. Não era novidade que o humor sombrio e
beleza de Bashah eram muito solicitados pelas mulheres onde quer
que fosse.
Tahír sabia que o calcanhar de Aquiles de Bashah era a sua
amiga de infância Adara Rizik, que caso um dia voltasse ao reino
poderia fazer com que o irmão se ajoelhasse a ela. Nunca se falava
da história que envolvia Adara. Cada um dos irmãos lidou com os
seus fantasmas da melhor maneira, pensou Tahír.
—Responde, Bash —insistiu. Depois de ver a Freya custou-lhe
recuperar a compostura.
—Pediste-me que tomasse conta do assunto. Que lhe desse um
emprego. Eu dei.
—Mas não perto de mim!
Bashah deu uma gargalhada.
—Olha, nunca quiseste falar comigo sobre esta mulher, só me
pediste para lhe dar um trabalho para evitar problemas. Quais são
esses problemas?
—Uma manifestação contra a monarquia.
— Bem, então, como não houve essa manifestação ou nada
semelhante em Tobrath em muito tempo, acho que minha atitude
valeu a pena.
—Quero-a fora do palácio.
Bashah suspirou. Afastou-se da cadeira e encheu um copo com
um pouco de whisky. Também ofereceu em silêncio ao irmão, mas
Tahír rejeitou.
—Não quero meter-me na tua vida, como também não te permito
que te metas na minha, Tahír. Tenta perceber o que ela quer. Talvez
se lhe deres uma oportunidade para ouvi-la, pare de tentar chamar a
tua atenção. Neste momento não posso demiti-la. Tem quatro
meses de contrato para ver se serve para o posto. Já não tratamos
das questões laborais como antes. As regras são respeitadas à
letra. Agora existem normas e pô-la na rua sem causa implicaria
uma denúncia que eu não quero enfrentar, quando está claro que a
solução está nas tuas mãos. Desculpa, irmão. Vais ter de lidar com
a situação.
—Que chatice! —murmurou Tahír antes de dar a volta e fechar a
porta com força.
***
O escritório costumava estar cheio de funcionários que
trabalhavam a mil por minuto para atender a todos os pedidos
diários da família real. Agora, por volta das seis da tarde, foi o
momento em que começaram a fechar o dia, e toda a gente estava
um pouco mais insistente nas exigências interdepartamentais.
—Conseguiste falar com o príncipe? —perguntou-lhe Brunah. Há
três anos que ocupava o posto de assistente financeira do palácio e
dividia a mesa com Freya.
Estavam num edifício novo adjacente ao palácio, onde se
tratavam de assuntos administrativos. Os funcionários raramente
atravessavam a estrada de gravilha com lindos arcos de flores que
levavam à entrada lateral do palácio. À entrada, o primeiro escritório
era dos três conselheiros e secretários dos príncipes. Eram três
homens intimidantes e muito diferentes entre eles. No entanto,
aparentemente compartilhavam uma certa afinidade de caráter com
os príncipes a quem serviam e respeitavam muito.
—Sim…
Freya estava a verificar dados no computador do escritório que
tratava da correspondência do palácio. Já era quase hora de saída.
—O que aconteceu? —pressionou a moça de pele escura com
uns olhos pretos vibrantes.
—Odeia-me — suspirou, guardando na pasta as cartas
enviadas pelos cidadãos com saudações ou perguntas aos
membros da família Al-Muhabitti — e não foi nada fácil manter a
compostura sem ir-me abaixo e pedir-lhe ajuda. Disseme para fazer
o possível para ser invisível. —Deixou alguns envelopes sigilosos
para o chefe, que estava encarregado de enviar as anotações que
exigiam uma resposta urgente aos canais apropriados. A
correspondência diplomática e confidencial já tinha sido enviada
diretamente ao palácio. Ninguém tinha acesso a esses documentos,
exceto os conselheiros e secretários dos príncipes e do rei.
Brunah e Freya eram amigas há alguns meses. Um dia à tarde,
encontraram-se na sala de jantar dos funcionários no quinto andar e
começaram logo a conversar. Na prisão, não se podia confiar em
ninguém, e Freya guardou todos os segredos durante anos. Quando
saiu por bom comportamento, continuou a sentir a necessidade de
ser mais cautelosa e estar mais alerta. Mas havia algo na Brunah
que a fazia confiar nela. Além disso, também estava cansada de
viver na solidão do remorso e da tristeza pelo que teve e perdeu.
Ver Tahír cara a cara afetou-a muito. O tempo foi generoso com
ele. Parecia mais musculoso. Irradiava uma virilidade cativante e
uma sensualidade selvagem, mas contida. Ele amadureceu. Os
jornais ou a Internet já não mencionavam mais a vida louca do
príncipe. Só falavam sobre a boa gestão dele em questões altruístas
e projetos para o cuidado da frágil fauna de Azhat. Ele tinha-se
tornado num homem respeitado e num príncipe reservado em
relação à sua vida particular. Todo o oposto ao jovem de dezasseis
anos por quem ela se apaixonou anos atrás.
Se pudesse voltar atrás no tempo…
— Foi um capítulo complicado que podia ter causado uma
grande tragédia se aqueles homens tivessem matado o príncipe.
Freya apertou os lábios e baixou a cabeça.
— Quando eu o vi deitado no chão a sangrar, espancado e
amarrado, a minha alma partiu-se. Eu queria ajudá-lo, queria libertá-
lo, mas a vida da minha irmã estava em jogo —levantou o olhar—
afinal, perdi os dois.
Semanas antes, Freya deixou as memórias surgirem. Sentada à
mesa de um restaurante simples da cidade, ela e Brunah falaram
sobre as suas histórias. Brunah era mãe solteira e teve que lidar
com um marido drogado e abusivo. No final, ela ganhou a custódia
da única filha, mas as consequências psicológicas dos maus-tratos
ainda a atormentavam. Ela conseguiu o posto de trabalho no palácio
graças à amizade da mãe com a mulher que gere o harém, a
Yosoulah, Era do conhecimento de todos, que o harém era apenas a
lembrança de tempos passados e que nenhum dos príncipes
realmente lhe dava uso. Nem o rei quando enviuvou décadas atrás.
As jovens do harém só davam espetáculos de dança do ventre ou
participavam em eventos muito específicos como parte das
tradições de Azhat. Havia rumores de que o príncipe herdeiro,
Bashah, era a favor da abolição do harém, porque considerava-o
como um símbolo de decadência anacrónica.
—Ele nem sequer te deu o benefício da dúvida... O que vais
fazer agora?
Freya esboçou um sorriso tímido.
—Tudo o que estiver ao meu alcance para que me ajude a
encontrar a minha irmã. Ele tem muitos contactos. Mas mesmo
assim ele vai odiar-me sempre.
—O que queres dizer?
—Não vou ter escrúpulos. Talvez o Tahír não me volte a amar, eu
ainda o amo, mas vou fazer com que me oiça e me ajude a
recuperar a minha irmã.
CAPÍTULO 10

Beatriz ia com Surka a um evento noturno na praia organizado


por um grupo de artistas especializados em malabarismo, e usavam
fogo e elementos naturais. Mas agora estava à espera do Dexter
num restaurante espetacular que acabavam de inaugurar de comida
indiana. Ela não era uma grande fã de comida picante, embora
ocasionalmente gostasse de experimentar outros temperos.
— Não encontrava sítio para estacionar —disse Dexter ao dar-
lhe um beijo na cara para a cumprimentar—. Desculpa a demora. —
Tirou os óculos de sol e sentou-se em frente da Bea.
—Estava à tua espera para pedir. Tu és o especialista em
gastronomia, por isso faz as honras da casa.
Dex sorriu e chamou a empregada de mesa. Disse o que
queriam comer mais dois copos de Pepsi, e depois tentou relaxar.
Algo complicado, dada a notícia que ia soltar à melhor amiga.
—Está um calor infernal —disse Dexter a assoprar.
Beatriz torceu o nariz. Quando ele falava sobre o tempo,
significava que problema era maior do que pensava.
—Não estamos aqui para falar sobre o tempo, pois não? —
perguntou com suavidade pondo a mão encima da dele—. O que se
passa? Pode contar-me o que quer que seja.
Ele bebeu três longos frios goles de Pepsi.
—O meu pai tem cancro do pâncreas. Há uns dias, ele juntou-
nos a todos para contar-nos. A minha mãe está arrasada e as
minhas duas irmãs inconsoláveis. Nós sempre fomos muito
próximos, e isto é um grande golpe para a família.
—Não! — exclamou, tapando a boca com a mão. Sem pensar
duas vezes, levantou-se e pôs-se ao lado de Dexter para abraçá-lo
com força —. Lamento muito. Há esperança?
Kirk Louden era um patriarca bem-humorado que dirigia o seu
império de negócios com mão de ferro e conquistava o respeito do
círculo executivo a pulso. Beatriz conhecia-o porque antes de Dex
viver sozinho ela costumava ir a casa dos pais dele e tinham longas
discussões sobre política e meio ambiente.
—O tonto do meu pai já sabia disto há seis meses. Seis meses,
Bea! —disse a abraça-la com força—. Só confessou agora porque,
segundo os argumentos dele, não nos queria preocupar. A tensão
baixa, o açúcar e mal-estar repentinos eram consequências da
quimioterapia.
—Mas como é que a tua mãe não se deu conta? —perguntou
incrédula, porque sabia que a mãe do Dex era bastante suspicaz.
Perante o olhar desolado do amigo, deduziu—. Ela sabia… Ambos
sabiam. Oh, Meu Deus.
—Acham que são invencíveis… Achavam que podiam fazer tudo
em silêncio sem que soubéssemos de nada.
Ficaram assim, abraçados durante um longo momento.
—E porque é que vos contaram isso agora?
—A quimioterapia não deu resultado.
—Não sei o que dizer, Dex…
—Vou precisar de ti ao meu lado, Bea. Não sei se consigo
aguentar com tudo isto.
—Claro que sim, estarei sempre ao teu lado, Dex —murmurou
ela desolada.
A família Louden era excecional, e também conheciam os pais
dela. De certeza que a Ordella estava a par da situação, e não
precisamente porque alguém lhe tivesse contado. Imaginou que a
mãe não tinha dito uma palavra pela mesma razão que, se
soubesse, Bea também não teria dito: o destino tinha que seguir o
seu caminho e perante uma doença desta magnitude —quando o
destino já estava escrito— não havia nada a fazer.
Esse era o tipo de situações em que ela se sentia impotente,
quando não podia ajudar as pessoas que gostava. Talvez se tivesse
exercitado a capacidade premonitória pudesse ter avisado Dex de
que algo estava errado com a saúde de Kirk. Embora não achasse
que teria servido de muito... Suspirou, com pena de sentir a aflição
do Dexter, enquanto terminavam o almoço e sem muita vontade.
***
Era um parvo, Tahír disse para si mesmo enquanto observava
Beatriz a despedir-se de um homem abraçada ao pescoço dele e
encostando o corpo com uma confiança que só se podia ter com um
amante. Ele não entendia porque tinha seguido o maldito impulso de
comprar uma viagem repentina de Azhat para Melbourne.
Depois de ter visto a Freya, Tahír sentiu no peito uma forte
necessidade de convencer-se de que não tinha transformado o
coração numa pedra devido à traição. Ele queria convencer-se de
que não estava afetado com a confissão dela... que por um
momento não duvidou da explicação dela.
Talvez precisasse de uma certeza em primeira mão de que havia
alguma mulher lá fora capaz de superar as suas muralhas e tirá-lo
do confinamento emocional em que tinha entrado. Talvez precisasse
de sentir a inocência de outro ser humano para acalmar a alma
inquieta e adormecer o passado amargo que o levou a experimentar
muitos corpos e ser indiferente a tantos corações. Talvez precisasse
da Beatriz.
Após conversar com Bashah, Tahír contactou com o detetive
particular do irmão para pedir-lhe que encontrasse o lugar exato em
que morava Beatriz. Com a informação na mão, num dia organizou
a agenda de trabalho, e Karim não pôde protestar quando ele lhe
insistiu para fazer o mesmo. Enquanto estivesse na Austrália
pensava realizar todas as reuniões por videoconferência. Precisava
de tirar da cabeça a Beatriz, e descobrir que raios se estava a
passar com ela.
E agora, sob o céu de Melbourne, ele sentia-se como um idiota
sentado no Mercedes Benz preto a observar como a mulher que não
conseguia tirar da cabeça já estava com outro. "Ela não perdeu
tempo." Ele não tinha o direito de pensar assim, porque? Ele perdeu
tempo? Claro que não. De qualquer forma, o seu lado egoísta,
vendo-a nos braços daquele homem, vibrou como se tivesse sido
esbofeteado. Ele sentiu-se estupidamente possessivo. "Estúpido."
Eles só tinham partilhado um maldito beijo!
Embora ele pensasse repeti-lo, e fazer um pouco mais do que
apenas beijá-la.
—Regressamos ao hotel —disse ao chofer.
***
Depois de beber um par de copos de vinho com Surka na praia e
curtir um belo show ao ar livre, Beatriz ligou para o Dexter para
saber como estavam as coisas em casa. A chamada telefónica no
último sinal sonoro enviou-a para o correio de voz. Ela deixou uma
mensagem a pedir que a avisasse de qualquer novidade porque
queria fazer uma visita aos Louden.
Quando deixou a Surka em casa foi a um Starbucks. Eram
quase dez horas da noite. No dia seguinte, ia começar com os
planos de reconstrução do Bea's Tulip. Tanto Annie quanto Leny
tinham encontrado outros empregos e ela estava feliz por eles. Só
esperava que, quando voltasse à estrada com seus negócios, eles
quisessem voltar para a loja.
De momento tinha um cliente, recomendado pela Surka. Era
uma paciente do hospital que acabava de receber alta e, como tinha
passado vários dias internada, o jardim estava um desastre. Bea ia
dar uma boa mão com as plantas para dar-lhes vida e para
embelezar o jardim da entrada da casa. Com este tipo de trabalho
não ganhava muito, mas era dinheiro que não podia desperdiçar.
Graças ao emprego temporário no One Second, não tinha dívidas.
O melhor de tudo é que tinha casa.
Abriu a porta e entrou no apartamento. Após o desastre com a
água, teve de renovar os tapetes e pintar com várias de mão toda a
casa de banho. Afinal não tinha sido tão caótico como pensou ao
princípio. Menos mal.
Tirou as sandálias e foi até ao lavatório desmaquilhar-se. Levava
uns calções roxos e uma blusa num tom mais suave. Aquele tipo de
blusa de seda marcava-lhe os seios e pegava-se à curva da cintura.
Ela gostou de coquetear um pouco na praia com um dos
participantes do evento. Um Robert. Divertiu-se, realmente. Sentia-
se viva e ansiosa por conhecer alguém especial. De momento, a
sua vida profissional estava um pouco estagnada, mas isso não
significava que a sua vida sentimental... ou sexual também
estivesse.
Ao regressarem da praia, Surka disse-lhe que ia apresentá-la a
um médico que acabava de ser transferido de Perth, e que estava
solteiro. Um encontro às cegas? Porque não? Beatriz aceitou a
ideia, mas pediu para ela lhe enviar uma fotografia primeiro. Surka
riu-se, mas não disse que não. Desesperada não estava, mas
também não queria sair com o primeiro homem que lhe aparecia à
frente.
Era justo.
Estava a comer uma taça de cereais quendo bateram à porta.
Esperava que não fosse o Dex com más notícias. Ela tinha-lhe
enviado cinco mensagens de texto e uma mensagem de voz. O
amigo era uma pessoa que falava sobre as situações delicadas em
pessoa. E se ele estava ali, só podia ser por algo relacionado com a
saúde de Kirk.
Deixou a taça de lado e abriu a porta.
—Dex…
Não. Não era o Dexter. O olhar felino do príncipe Tahír Al-
Muhabitti atravessou-a como um relâmpago. Chocante e
determinada. Absorveu a imagem. Alto e atlético, com roupa casual
que lhe caiam como uma luva. Jeans pretos que deixava vestígios
de pernas bem exercitadas e uma camisa branca que tornava
irresistível a ideia de tocar os antebraços salpicados de pelos
negros muito masculinos. Já conhecia aqueles abdominais que a
camisa não conseguia esconder. Céus, queria lamber a pele morena
apenas para deleitar-se com o sabor que teria…
Mas então lembrou-se de como tinha terminado uma tarde
maravilhosa de mergulho. E os neurónios voltaram a sincronizar-se.
—Olá, Beatriz — disse ele com um sorriso brilhante e um lindo
ramo de rosas na mão. Rosas vermelhas brilhantes e algumas
brancas —. Posso entrar? —perguntou—. Isto é para ti. —Deu-lhe o
ramo.
Ela aceitou por inércia. Olhou para ele incrédula. Continuava a
ter a mesma pompa arrogante de antes.
— Depois de me teres deixado num hotel, sem uma nota de
despedida, como se não valesse a pena uma explicação, tu
apareces do nada à minha porta e tens coragem de me perguntar se
podes entrar… —disse— não, não podes.
Ia fechar-lhe a porta na cara quando ele a impediu sem esforço.
—Quero explicar-te a razão do meu comportamento nesse dia.
—Não me interessa. E se não te fores embora, chamo a polícia.
Este não é o reino ou o principado onde tu mandas ou tens
influência pelo teu título. Beatriz esperava que não se notasse o
pulso no pescoço. Tahír era bonito, sem dúvida, mas não havia nada
delicado nele. Tinha linhas e músculos marcados. Transmitia a
sensação de que não havia nada no mundo que ele não pudesse
alcançar. E a verdade é que, se ele não a tivesse deixado no hotel,
a decisão de não se misturar com Tahír teria desaparecido.
Houve uma espécie de guerra de vontades declarada entre os
dois. Uma guerra silenciosa que causava estragos nos nervos de
Beatriz. Ela teve a impressão de que podia acabar mais prejudicada
do que ele naquele cenário.
—Nunca me trataste como um príncipe…
—Porque não te comportas como tal —disse ao olhar para ele,
orgulhosa.
—Devo fazer honor ao que pensas, então — expressou com
uma espécie de grunhido de frustração, antes de agarrá-la
desprevenida e beijá-la. Com um pontapé fechou a porta atrás dele.
Os arredores de Bea explodiram em mil pedaços. Os sons dos
carros ou as mínimas possibilidades que estivessem a interromper a
sensação de estar envolvida num turbilhão de sensações,
desapareceram.
O beijo começou como uma lição implacável de sensualidade,
como um desafio e como um castigo de Tahír por insultá-lo, mas
pouco a pouco começou a transformar-se em algo muito diferente.
Era algo que causava tremores no corpo inteiro de Beatriz, ela
sentia os lábios quentes e urgentes devorando os dela, provocando
reações eletrizantes. Não podia fazer nada além de gemer e
devolver a mesma paixão que estava a receber, porque sentia uma
lava efervescente a percorrer-lhe o corpo.
Ela aceitou a intrusão da língua de Tahír, que conquistou a sua
boca com habilidade, e foi ao encontro dele sem pudores, sem
sequer pensou em como se agarrava à camisa masculina. Uma
espécie de calor sufocante escalou através da pele. Foi uma
sensação tão inebriante que soltou um gemido, murmurando o
nome dele.
Tahír achava que não ia sucumbir às emoções como estava a
fazer. A determinação de ferro para convidá-la a sair e pedir
desculpas - parecia ser o seu discurso habitual desde que conheceu
a Beatriz - tornou-se numa paixão incontornável quando a viu. Sem
maquilhagem, descalça, com o cabelo solto e os lábios que o
deixavam louco. E se a isso acrescentava que a blusa que ela
usava mostrava como os mamilos eretos procuravam atenção, a
força de vontade não servia de muito. Não com a Beatriz. Ai Deus.
Por aquela mulher tinha feito uma viagem de mais de dez horas. E
só para provar aqueles lábios… e voltaria a fazê-lo.
Beatriz sentiu as mãos de Tahír a passar-lhe pelo rosto,
acariciando as maçãs do rosto com os polegares, e então
começaram a descer pelo corpo até pararem na parte inferior das
costas. Com esse movimento, sentiu a evidente ereção contra o
ventre, e sentiu um fogo líquido a passar pelas veias aquecendo a
área mais sensível do corpo. Ela estava húmida e ansiosa para que
ele não parasse… que a acariciasse mais… A sensação era
estranha, porque os beijos de outros homens nunca a afetaram
como os de Tahír. Sentiu-o a esfregar-se sensualmente e sentiu um
desejo impossível de tocá-lo, de o despir, de tocar-lhe pele com as
mãos, saborear o seu sexo, o seu gosto…
A dança frenética que Tahír iniciou culminou tão abruptamente
como tinha começado. Os dois estavam ofegantes a tentar levar
oxigénio aos pulmões, enquanto olhavam um para o outro.
—Bea… —murmurou acariciando-lhe a face— lamento a forma
como te deixei. —Ela desviou o olhar e afastou-se. Tahír não tentou
tocá-la de novo, não por não ter vontade de fazê-lo, muito pelo
contrário, mas porque primeiro era necessário esclarecer a situação.
—Por favor, vai-te embora —pediu num sussurro.
—Aquele homem com quem estavas esta tarde… Estás a sair
com ele? —perguntou de repente—. É por isso que queres que me
vá embora?
Ela levantou o olhar, confusa.
—Não sei a quem te referes.
—No restaurante indiano. O tipo que te abraçou…
—Agora dedicas-te a espiar, além das tuas atividades habituais
como príncipe? —perguntou com humor, tentando acalmar os
nervos, algo difícil de fazer—. Nunca te disse onde vivia, mas não
quero saber como me encontraste. E não, não estou a sair com o
Dexter.
Tahír encolheu os ombros, um pouco envergonhado, mas ao
mesmo tempo aliviado por saber que o tal Dexter não era nenhum
obstáculo. Era uma situação incomum na vida dele. Muito
embaraçosa se pensava bem... para um príncipe.
—Queria ver-te… Isso é mau? Não sei explicar a razão, mas não
consigo tirar-te da cabeça.
O tom de voz um tanto apagado de Tahír, e o fogo no olhar
deram-lhe vontade de avançar e beijá-lo novamente.
— É tarde e tive um dia cansativo. Nada disto tem sentido. Eu
tenho coisas importantes para tratar, Tahír. Um negócio, uma vida...
Em nenhuma destas áreas tu estás presente.
Ele apertou a mandíbula. Não tinha muitos argumentos, porque o
que ela estava a dizer era verdade, mas isso não significava que
Tahír aceitasse o facto da Beatriz o estar a rejeitar tão facilmente.
Durante a sua vida tinha lidado com a rejeição do pai, o rei, apesar
de ter o apreço dos cidadãos de Azhat, bem como o carinho dos
irmãos. Ele podia tolerar a indiferença ou rejeição do rei, estava
acostumado a isso; mas não em relação à Beatriz.
O terreno estava contra ele. Por ser um idiota, claro. Tinha uma
ligeira vantagem. Ela, apesar da linguagem corporal indescritível
que tinha naqueles momentos, desejava-o. Continuava a deseja-lo
com a mesma intensidade que ele.
—Aceitas as minhas desculpas? —perguntou em troca.
—Fizeste alguma coisa para merecer isso?
—Não. Não fiz.
—Então já tens a tua resposta.
—Quero compensar-te.
Beatriz levantou as mãos como se estivesse a tentar pedir ao
universo que enviasse uma iluminação para ter força.
—Tahír, faz o que quiseres, eu vou-me deitar.
Com um assentimento, ele afastou-se e saiu sigilosamente.
Uma respiração profunda não foi suficiente para aplacar a
remissão que sentiu em todo o seu ser. Beatriz não tinha mais
apetite. Esfregou os olhos com os dedos. Foi o suficiente para
provar a essência da boca de Tahír na sua, para impeli-la a imaginar
uma sessão de sexo quente. Ia escovar os dentes duas vezes. Não,
cinco.
Quando se deitou, apesar da boca cheirar a hortelã, os sentidos
- muito traiçoeiros - decidiram usar a memória sensorial para
lembrar o que queria esquecer. Havia apenas uma maneira de
aliviar o calor que sentia no sexo e o desejo doloroso que tinha por
lhe acariciarem os mamilos. Maldição! O Tahír não tinha de aparecer
assim na vida dela.
Antes de se resignar deu um murro na almofada. Acariciou-se.
Deslizou a mão até aos calções do pijama, evitou o elástico das
cuequinhas e alcançou o centro. Começou a mover os dedos,
enquanto a mão esquerda apertava os mamilos. Fechou os olhos e
pensou que todas aquelas carícias estavam a ser realizadas por um
príncipe do deserto.
***
—Sirvo-te o mesmo de sempre? —perguntou-lhe Sally, a
empregada de um Starbucks onde a Bea era cliente habitual já que
ficava perto do bar do melhor amigo.
O sítio estava cheio. Eram quase as sete da tarde. Beatriz foi
trabalhar para o bar de Dexter às oito horas, porque era necessário
fazer o inventário das bebidas a tempo. Tinha uma hora para ler um
romance que tinha começado a ler e depois atravessava a rua. One
Second estava mesmo à frente do Starbucks.
—Iced smoked butterscotch latte, sim. A minha bebida favorita
para suportar as loucas temperaturas destes dias —sorriu a tirar da
mala a carteira para pagar—. O tamanho é o de sempre.
A empregada assentiu rotulando o copo com o nome da Bea.
—Daqui a pouco chamam-te, Bea. —Virou-se para o cliente que
avançava até à caixa—: O que lhe sirvo?
—Espera —interrompeu Beatriz— não paguei.
—Já pagaram a tua bebida. De facto, deixaram um vale aberto
para que consumas todo o que quiseres quando vieres aqui.
Bea sabia que nenhum dos seus amigos estava por trás de tal
gesto. Então, com relutância, virou a cabeça para onde Sally
apontou com a mão.
Tahír.
Agora ele tinha dotes de detetive? Ele estava sentado num canto
discreto e observa-a intensamente. Sentiu o olhar como uma carícia.
Notou que ele estava rodeado de guarda-costas, embora estes
estivessem entre outras pessoas. Mas não via em sítio nenhum
Mawaj ou Sufyan. Não tinha vontade de falar com ele, por isso
levantou o olhar em tom de cumprimentos e murmurou "obrigado",
antes de dar meia volta e atravessar a rua.
Ela dirigiu-se até aos cacifos dos funcionários fixos ou
temporários da One Second. Trocou os jeans e a camisa azul de
mangas curtas, pela habitual saia preta sobre o joelho, as meias
pretas e os sapatos de salto alto; Fez um rabo-de-cavalo e abotoou
a blusa branca de gola em V. Tentou ser rápida, porque naquela
noite transmitiam um jogo importante de rugbi entre as equipas
locais. O menu foi especial para aquela ocasião, e esperava-se que
o bar enchesse.
Com o olhar procurou o Dexter. Ele estava a conversar com uma
mulher que parecia estar chateada. Bea fez-lhe um sinal em
silêncio, perguntando-lhe se havia algum problema ir ali ter com ele,
o amigo assentiu com uma expressão de óbvio alívio pela
interrupção que Bea ia causar.
—Que bom ver-te, Bea —disse Dexter dando-lhe um beijo na
cara—. Esta é a Caroline Hough, a nossa fornecedora de bebidas
alcoólicas. Ela está a comentar-me que, segundo o inventário, foram
enviadas várias garrafas mas nós não as cancelámos. Obviamente
que já esclareci que nunca ficamos com nada sem pagar. Sabes de
alguma coisa? Porque já lhe expliquei que tu és a pessoa
encarregada de supervisionar o inventário final, diariamente, e que
contas com a minha absoluta confiança.
Figura alta e estilizada, Caroline era a referência para a mulher
de negócios de sobriedade e sem alma. A expressão era fria. A
maquilhagem escassa, mas a roupa gritavam aos quatro ventos que
era cara.
«Porque Dexter sempre se metia em problemas?», pensou. A
mulher não estava lá para reclamar um pagamento não realizado.
Claro que não. Beatriz apostava um olho, de que Caroline e Dex
tinham tido um caso. A mesma história de sempre. Elas apaixonam-
se exatamente quando ele decide cortar a relação. Ela achava que,
devido ao que se estava a passar com Kirk, o raciocínio de Dex era
menos claro do que em outras ocasiões. Ele nunca misturava prazer
com negócios. O amigo devia estar a passar por momentos muito
difíceis.
—Claro que sim. Acompanha-me ao escritório, menina Hough,
por favor? —pediu Beatriz. Pelo caminho tinha de se lembrar onde
estavam os documentos dos inventários, as faturas e fingir que
sabia do tema mencionado pelo Dexter.
O que custava ao Dex chamar Giorgios, o verdadeiro
administrador da área de bebidas, para resolver o problema? Só
esperava que o amigo não tivesse dito à mulher em fúria que, além
de trabalhar em One Second também dormia com ele... Embora isso
não a surpreendesse. Quantas histórias o Dex inventou para sair de
histórias de alcofa?
—Claro, não tenho outra hipótese —respondeu Caroline,
lançando com os olhos punhais de aço ao Dexter.
***
Andar atrás de uma mulher não era o estilo de Tahír. Mas era
exatamente o que ele estava a fazer desde que conheceu Beatriz.
Estava há cinco dias à espera à porta da casa dela. Oferecia-se
para levá-la onde ela quisesse, mas a mulher muito teimosa
ignorava-o e ia no carro dela.
—Porque não deixas que eu te leve? —perguntou-lhe dois dias
antes.
—Tenho um meio de transporte. Além disso, quem é que me
garante que não me vais deixar no meio da estrada? Não, obrigada.
—Já te pedi desculpas.
—Era o mínimo que podias fazer.
Mesmo apesar dos seus comentários agridoces, ele ficava à
espera dela até às sete horas da noite no Starbucks, mesmo que
fosse apenas para ela murmurar um "obrigada" depois de beber o
que quisesse e ir trabalhar no bar. Claro, ele ficou até à hora de
fechar One Second.
Na noite anterior, esteve prestes a pegar pelos colarinhos a um
tipo que queria agarrá-la pela cintura, mas Beatriz soube lidar com
isso antes do Tahír perder a paciência. Já estava farto, pensou ao
mesmo tempo que esperava que Beatriz saísse do bar. Quinto e
último dia. Suficiente.
Queria saber porque é que ela estava a trabalhar como
empregada de bar quando lhe disse que era designer paisagística.
Porque estava a desperdiçar talento que tinha?
Ele encontrou-a quando ela estava a tentar escapar dele.
Encheu-se de paciência enquanto ela conduzia até casa. Uma vez
no estacionamento, Tahír fez sinal para que os seus guarda-costas
mantivessem distância. Ele não os queria por perto. Que inferno, ele
estava cansado de andar atrás dela por um simples erro.
—É suficiente, — terminou com um tom firme antes de a agarrar
pelo pulso e puxá-la contra o seu corpo — quero que deixes de
fugir.
—De acordo, Tahír —expressou— o quer queres?
Relutantemente, Beatriz levantou o olhar e fixou-o nos olhos
verdes. Vê-lo todos os dias, esperando por ela mesmo quando saía
tarde, era tão inadequado no personagem que ela vislumbrava em
Tahír que decidiu enfrentá-lo. Sem gravata e em mangas de camisa
tinha um aspeto masculino e vital, e ela sentia borboletas no
estômago.
—Acabar com este muro que criaste entre nós.
Ela dizia que não com a cabeça.
— Cheiras a problemas de longe. Essa é uma verdade. E o que
eu menos preciso agora é que... —olhou como ela a garrava com
firmeza— Desculpo-te pelo que aconteceu em Cairns. Está bem?
—A paixão não é um problema —disse com uma voz rouca e
agarrando-a com menos força, e com o polegar acariciava-lhe o
pulso.
—N…não?
Ele negou com a cabeça.
—O problema é nega-la, porque no final é pior.
—Eu…
—Deixa-me entrar — pediu-lhe num sussurro que ia de mãos
dadas com o fogo que ardia no seu olhar.
Desejava-o com um desespero sem precedentes. Estava ciente
de que, assim que as mãos de Tahír tocassem a sua pele, não havia
volta atrás. Sim, ela disse que ia ser dona do seu destino e, embora
o cérebro insistisse para que ela recusasse o prazer de se
aproximar fisicamente daquele homem perigoso, sentiu a impetuosa
necessidade de ceder ao magnetismo selvagem que parecia
arrastá-la impotente para ele.
—Porque ia fazer isso? —perguntou-lhe com voz rouca.
Tahír acariciou-lhe o lábio inferior com o polegar. Os olhares
conectados lançaram faíscas que começaram a transformar-se num
fogo que revivia a cada respiração. Era assim que se cozia a poção
de sedução iminente.
— Porque eu desejo-te e tu também me desejas, e assim
pomos um ponto final a esta tortura de não poder unir o meu corpo
ao teu profundamente.
Beatriz sentiu os seios excitados, os mamilos eretos e o sexo
encharcado. E isso apenas com as imagens de Tahír nu, e ela
envolta na pele morena dele.
—Tahír…— sussurrou quando ele se inclinou e a distância dos
lábios era a de um suspiro.
—Desejas-me, Beatriz? —indagou.
O cérebro perdeu-se quando, sem deixar de olhar para ela, o
príncipe levantou-lhe a mão e beijou-a. Afastou a boca da pele dela,
mas antes acariciou-a com a língua.
—Sim, Tahír… Desejo-te —murmurou.
Beatriz não tinha vontade de continuar a lutar. Cinco dias a tentar
ignorar a força da natureza que era Tahír, já parecia uma batalha
titânica. Talvez se se deixasse levar, poderia passar página e
recuperar o ritmo do dia-a-dia, sem ter de pensar nele nas noites
solitárias perguntando-se: "Como seria ...?»
CAPÍTULO 11

Tahír abriu caminho através dos lábios femininos com a sua


língua perversa, seduzindo-a. O estremecimento que se apropriou
dos sentidos de Beatriz fez com que ela segurasse os braços
musculosos em busca de apoio. Foi uma doce fraqueza que ele
removeu dentro dela, e fez com que os seios endurecessem contra
o sutiã. O grunhido que ouviu convenceu-a de que ele sentia o
mesmo ardor que ela, e foi seguido por um ataque mais possessivo
da sua boca, mas sem antes lhe apertar a cintura decisivamente e
atraí-la ao corpo dele. Não só sentia um delicioso choque de duas
forças vibrantes de desejos sensuais, como também o membro viril
estava consciente de que a ânsia pelo desejo se vivia ao mesmo
nível.
—Excita-me a possibilidade de estar dentro de ti, Beatriz. Sinto
isso desde o primeiro momento que te cruzaste na minha vida —
confessou ao subir as mãos pela cintura estreita de Bea até aos
seios que esperavam pelas carícias.
—És um perigo para mim — murmurou ela, perdida nas
sensações das mãos quentes que lhe tiravam a blusa para atirá-la
para um lado.
—O perigo e a adrenalina são a minha especialidade —
respondeu antes de selar os lábios contra os de Bea com gentileza
e paixão, enquanto os nós dos dedos dele traçavam a pele de sua
barriga nua.
Tahír acariciou o lábio superior com a ponta da língua e, com um
suspiro, deu lugar à sua língua invasora novamente. Ele sabia a
homem quente e tentação. Queria estar mais perto dele, mas não
queria deixar de beijá-lo, nem queria parar de tocá-lo. Ele pareceu
ler o pensamento dela e, sem deixar de beijá-la, introduziu os
polegares no cós da saia. Num movimento rápido, deslizou a saia
para baixo, deixando-a só com as cuequinhas azuis escuras e o
sutiã com a mesma cor.
—Se tivesse de escolher uma sobremesa para depois das
refeições, serias sempre tu. És linda… e requintada.
«Estou perdida», disse para ela mesma.
De olhos fechados, beijando-a, ele deslizou as pontas dos dedos
no meio das costas dela. Desapertou-lhe o sutiã. Bea conteve a
respiração, mas foi soltando pouco a pouco quando ouvia a
exclamação de aprovação masculina ao ver os seus seios nus. Eles
olharam-se nos olhos, e —fixaram o olhar— ele desceu a boca até
ao calor dos apetitosos seios e com a língua rodeou os palpitantes
mamilos rosados. As mãos de Tahír massageavam os seios de Bea
enquanto os lábios ávidos sugavam os cumes lisos. Ele sentia um
delicioso prazer em saboreá-la. Tudo o que mais queria era
mergulhar no corpo dela, penetrá-la profundamente... mas não
podia.
—Oh… —gemeu enterrando os dedos no cabelo sedoso do
príncipe. Ele ainda estava completamente vestido, ela arqueada
diante da boca de Tahír que lhe chupava e puxava os mamilos,
esfregando levemente os dentes contra a pele queimada de seda
com cheiro do pecado.
Beatriz soltou um riso agradável e nervoso que percorreu as
veias de Tahír com um calor requintado semelhante ao mel quente.
Ele conhecia muitas mulheres e tinha gozado de muitos prazeres, e
nenhum desses prazeres, nem nenhuma dessas mulheres,
causavam um impacto tão grande nas suas emoções como a
mulher que naquele momento tinha nas mãos o controle de sua
libido, embora ela não o soubesse. E talvez por agora fosse o
melhor.
—Onde fica o teu quarto? —perguntou afastando-se para olhá-
la.
Ela deu-lhe a mão e avançaram pelo corredor.
Com movimentos certeiros, o príncipe despiu-se e ela olhou para
ele de boca aberta deitada no colchão. Sabia que podia recebê-lo, o
corpo estava desenhado para isso, mas mesmo assim, era a sua
primeira vez e não era fácil fingir que ia estar na mesma sintonia de
um homem com a experiência óbvia dele. Engoliu em seco.
—Há algo que deves saber… — murmurou quando ele se pôs
em cima dela, e deslizou as cuequinhas rapidamente para se livrar
delas de uma vez.
—O quê? — perguntou mordiscando-lhe o queixo, subindo pela
bochecha até chegar ao lóbulo da orelha deixando um rastro de
beijos.
—Não tenho muita experiência neste assunto — sussurrou.
Arqueou as costas quando sentiu os dedos de Tahír na entrada do
seu sexo molhado. Sentia-se bastante bem.
Ele torceu o nariz. Deteve os dedos.
—A que te referes?
—Nunca tive relações com ninguém.
—Virgem? És virgem? —perguntou incrédulo.
Ela tentou afastar-se, pensando que ele a estava a rejeitar, pois
Tahír estava atordoado, observando-a. Ele parou-a, colocando a
mão na anca dela coberta de pele macia. Abanou a cabeça em sinal
de negação.
—Só estou surpreendido. Não te afastes de mim.
—Provavelmente não cumpro com as tuas expectativas…
Ele acariciou o lábio inferior com a língua.
—Impossível. Mas… Tens a certeza? — perguntou, sentindo o
coração a bater a uma velocidade impressionante. O corpo estava
duro, mas ele não queria estar com pressa. Não com ela. E menos
depois do que ela acabava de confessar.
«Sim», respondeu Bea em silêncio. Olhou-o nos olhos e a
certeza atingiu-lhe os sentidos. Ter certeza de querer fazer amor
com Tahír foi além do aspeto físico. Ela sentia-se irremediavelmente
atraída pelo mistério que aqueles olhos verdes escondiam e que
também a cativavam completamente.
—Estou. Agora beija-me e deixa de questionar tanto — disse
com um sorriso travesso antes de levantar a pélvis para esfregar
contra o membro que lhe tocava na anca. Ela suspirou de prazer
quando ele a beijou com força.
Ela traçou as costas de Tahír com as unhas e sentiu a cada
toque como os músculos reagiam aos seus dedos. A pressão
daquele corpo quente no dela era deliciosa e o que mais desejava
era senti-lo a abrir caminho dentro dela.
Carícias ardentes e beijos molhados deram lugar à iminente
necessidade de Tahír de aliviar a paixão. Ele afastou-se por um
momento e depois voltou para junto dela. Abriu espaço entre as
pernas de Beatriz e de joelhos diante dela, com o membro ereto e
vibrante, começou a colocar o preservativo. Ele gostava de vê-la
exposta, molhada e com lábios inflamados da mesma necessidade
que ele sentia.
—Tahír…
—Adoro olhar para ti, Bea. És simplesmente linda.
—Tu também és lindo — murmurou ao conter a respiração
quando se inclinou para dar entrada ao seu membro com a ponta
romba macia e vibrante.
Ele riu-se.
—Aceito o elogio, mas nós os homens não somos bonitos, Bea.
—Tu continua a chamar-me Bea e aceita os meus elogios, OK?
—disse maravilhada pela forma em que ele a tentava.
—Tão exigente…—comentou a rir-se.
—Mostra-me o que é o prazer — sussurrou séria, levantando-se
um pouco para atrair o rosto de Tahír e devorar-lhe a boca.
Para o príncipe era emocionante fixar-se no olhar de Beatriz
enquanto se aproximava do corpo dela, e agora, beijando-a,
aproveitou a oportunidade para colocar uma mão na anca esquerda
e deslizar a mão direita nas costas. Com o membro latejando de
necessidade, ele passou vários minutos a beijá-la e cuidando da
carne tenra dos seios dela. Ele gostava de sentir o gosto de Bea.
—Pode doer um bocadinho, Bea —murmurou mal entrava nela
para que começasse a aceitá-lo.
—Eu sei —respondeu com confiança—. Gosto quando me
chamas de Bea.
—Agora que mencionas, o nome fica-te melhor. —Ela sorriu ao
acariciar a face de Tahír—. Esta também é a primeira vez para mim.
Beatriz soltou uma gargalhada que derreteu a tensão que se
tinha apoderado do seu corpo na expectativa de se fundir com outro.
—Gosto como te ris, Bea.
Bea moveu-se e levantou as pernas sobre as ancas do Tahír, à
volta da cintura incentivando-o a entrar. Ele sabia que não podia
deter a dor que lhe ia causar, por isso, preferiu tornar a situação
menos desconfortável para Beatriz. Com um movimento único e
preciso penetrou-a completamente.
Ela fez uma cara de desconforto quando ele abriu espaço dentro
dela. Por alguns segundos, sentiu um leve ardor. Sentiu que ele
continuava dentro dela sem se mover, e sabia que estava à espera
que o seu corpo se acostumasse ao dele.
—Desculpa se te magoei —murmurou ao inclinar-se para beijá-
la.
Conseguiu esboçar um sorriso.
—Faz parte do processo, Tahír — respondeu ao acariciar-lhe a
face. Ele tinha os músculos tensos pelo esforço de se conter e a
testa coberta de suor, mas queria que Beatriz se sentisse bem.
Ambos respiravam entre suspiros.
Com um piscar de olhos, sentindo-se comovida pela
preocupação que observava no rosto atraente do príncipe, Beatriz
agarrou-se aos ombros firmes e apertou as pernas para atraí-lo para
dentro dela. Ele viu nos olhos dela um convite. Ao ver que ela se
movia e insistia para que ele fizesse o mesmo, Tahír sentiu-se
perdido e sucumbiu ao calor húmido que envolvia o seu sexo.
As investidas começaram a acelerar. Começaram por suaves
estocadas para criar um som com acordes promissores e
gradualmente transformados em movimentos rápidos. Os seios de
Beatriz dançavam ao compasso das investidas, e ela cravou as
unhas nos braços morenos enquanto as ancas iam ao encontro da
deliciosa fricção que aguardava a libertação. A libertação era tudo
que ela mais desejava sentir no mundo. Esse momento ia mudar-lhe
a vida de uma maneira que ela sabia que não tinha volta atrás. Ela
acabava de selar o seu destino com um beijo e uma noite de paixão.
Tahír sentiu que não podia satisfazer-se. O corpo que lhe dava
prazer naquele momento era lindo. Parecia impossível ir mais
devagar. Ela insistiu com os seus gemidos para continuar. Sabendo
que ele era o primeiro homem a observar todas as mudanças de
emoção no rosto dela, bem como em conquistar o seu corpo, isso
despertava nele o seu lado mais primitivo. Ele sentiu que tinha
conquistado um continente inteiro, e não acreditava que longe
daquele corpo pudesse sentir uma satisfação tão completa. Ele
estava inflamado e excitado.
—Queres que eu pare…? —perguntou quando ela se moveu
debaixo dele.
—Não, pelo contrário, quero que te despaches.
—Travessa… — murmurou com um meio sorriso, movendo-se
com força e desespero que parecia estar mais relacionado com o de
uma criatura sem restrições do que com a de um homem civilizado.
Submergiu de novo e de novo na doce profundidade de Beatriz.
Ele sentia-a a responder com o mesmo ardor e compulsão que ele.
Sentiu o momento exato em que ela estava a começar a atingir o
orgasmo. Ele abaixou a cabeça, desconectando-se do olhar velado
pela paixão, para beijar aqueles lábios rosados inchados. Ele provou
o vinho mais delicioso, e ficou intoxicado pelo gosto daqueles beijos.
O seu controlo de ferro estava prestes a desintegrar-se.
—Preciso de ti—murmurou ela contra a boca dele, isso foi
suficiente para Tahír.
Todas as correntes se romperam e uma explosão de partículas
de prazer abriu caminho entre eles enquanto ele entrava e saía do
canal húmido. As paredes internas de Bea começaram a contrair-se
à volta do membro, absorvendo cada grama da sua essência.
—Beatriz! —disse o nome dela com um gemido ronco.
O clímax varreu os sentidos de ambos. Como se aquele
momento tivesse ficado suspenso no tempo. Ele caiu em cima dela
e abraçou-a.
Eles ficaram abraçados durante muito tempo, enquanto os
últimos acordes do orgasmo ressoavam nos seus corpos. Nas suas
almas que nasceram para estar juntas, mas ainda tinham um
caminho complicado para enfrentar essa verdade.
***
Estava a andar por ruas de um sítio que não lhe pareciam
familiares.
Chegou a um bonito salão. Podia ver-se a ela mesma. Usava um
vestido de seda azul-marinho preso apenas num ombro. O cabelo
estava solto, mas tinha ondas, um estilo muito dos anos 40 dos
Estados Unidos. Estava sozinha. Porque decidiu ir aquele sítio? Não
encontrava razões ou motivos. Simplesmente estava ali.
Tudo era difuso.
Ela tentou guiar-se pela zona iluminada até chegar ao que
parecia ser uma cerimónia em pleno andamento. O engraçado é
que era apenas uma mesa cercada por homens vestidos de
etiqueta. Eles pareciam discutir intensamente algo. Porque estava
ela tão bem vestida num salão exclusivo para homens?
Ela pensou em voltou atrás, porque sentia-se fora de lugar. Teve
a sensação que chegava no último minuto e sem ser convidada.
Esse não era o estilo dela, pensou Beatriz. Também sentia o
coração a bater muito rápido. Em lugar de estar serena, sentia uma
profunda angústia. Queria gritar, mas não sabia "o quê".
Foi então quando o viu.
Tahír.
Sorriu. Ele era a razão dos seus risos e alegrias. Porque o
amava. Disso estava convencida. Sorriu e aproximou-se. O rosto de
Tahír, que era sereno apesar da animosidade do ambiente,
repentinamente notou a sua presença. O olhar verde que ela
conhecia sempre com toques doces, apaixonados e até quentes,
agora observavam-na com ódio.
Então, Beatriz entendeu.
Ele pensava que tinha sido traído. Não era verdade. Sentia que
estava a ficar sem tempo. Tinha de se aproximar para evitar alguma
coisa, não sabia o quê. Mas esse era o seu único objetivo e a sua
última tentativa para que ele entendesse que, apesar de tudo, ela
nunca poderia deixar de amá-lo.
Um dos homens sentados à mesa fez um gesto com a mão.
Tinha uma tatuagem. Uma tatuagem que ela recordava de anos
atrás. Preto. Marcado. O corpo tremeu.
Tudo começou a mover-se rapidamente. Ela tentou gritar, mas
não conseguiu porque uma dor que nunca tinha sentido antes
perfurou-lhe o corpo.
O último que soube é que tinha sangue nas mãos.

—Hey… —sacudiu com cuidado os ombros da Beatriz— O que


se passa, Bea? —perguntou Tahír preocupado, despertando-a do
pesadelo.
Despertou, assustada. Abriu os olhos e sem pensar agarrou-se
ao pescoço de Tahír. Ele encostou-a bem ao seu corpo. Acariciou-
lhe as costas com suaves carícias na pele nua. Quando sentiu que a
respiração dela se acalmava, afastou-a e encontrou uns olhos
cheios de lágrimas sem derramar.
—Desculpa acordar-te —murmurou ela contra o pescoço
masculino, inalando o cheiro dele. Parecia ser o analgésico que
precisava. Senti-lo ao seu lado era como sentir uma força terrestre
capaz de mover as suas emoções e deixar de lado os seus medos.
Pelo menos naquele exato momento, foi assim.
—Estavas a ter um pesadelo, gritavas como se alguém te
estivesse a apunhalar. Queres contar-me o que era? — perguntou
ele acariciando o rosto dela com os polegares, antes de se inclinar
para beijá-la suavemente nos lábios.
Bea ainda estava a tentar processar o que tinha sentido. Há
anos, quando tinha oito anos para ser exato, teve aquele pesadelo
no seu quarto. Ela olhou para Tahír.
As peças na sua cabeça começam a encaixar. A sensação de
que o conhecia de algum lugar tinha muito a ver com a noite
daquela imprecisa premonição. Foi ele quem sentiu naquela noite
da sua infância. A conexão com a sua alma à distância.
—Não tenho a certeza… quero fazer-te uma pergunta.
—Claro, mas antes queres que te traga um copo com água? Ou
outra coisa?
Ela negou com a cabeça e sorriu levemente.
—Então, força, o que queres saber, Bea.
—O que é que se passava na tua vida quando tinhas 16 anos?
Tahír levantou as sobrancelhas. Era uma pergunta muito pouco
frequente. Coçou a cabeça como se daquela maneira fosse mais
fácil.
—Bem, a verdade é que as minhas ações eram um caos total —
comentou a rir-se. Ela olhava para ele séria, por isso pouco a pouco
o riso foi diminuindo—. Depois tens de me dizer porque queres tanto
saber isso, OK?
—Sim… —sussurrou.
—Há 16 anos participava em corridas de carros ilegais. Era um
príncipe que gostava bastante de sair dos limites e a imprensa era
entretida com manchetes que eu lhes ajudava a criar. Uma dessas
corridas, a última pelo menos, quase me custou a vida. Eu não sei
como perdi o controlo do carro. Capotei e fiquei preso dentro do
carro. Saí antes que se incendiasse. Tive sorte de sair vivo dali.
Embora essa não tenha sido a pior experiência da época.
—Não? Eu teria ficado traumatizada e sem vontade de conduzir.
Ele sorriu.
— Não se compara em absoluto a quando te sequestram, te
batem e ainda tens de passar vários dias no exílio para ficar em
plena forma.
—S…sequestraram-te?
—Cometi uma grande estupidez com uma mulher, e com isso
fiquei à mercê de alguns tipos que queriam matar-me... eu não sei
se essa era a verdadeira intenção deles, porque depois de ser
resgatado pelos serviços de inteligência do meu país, os
sequestradores foram mortos.
—Ainda bem que te resgataram, Tahír —disse ao tocar-lhe o
rosto com ternura—. Amaste essa mulher?
—Isso não tem importância.
—Desculpa se pareço intrometida, só quero entender.
Ele suspirou.
—Desculpa. É a primeira vez que falo com alguém sobre isto. Só
falei com o meu conselheiro e secretário, Karim, ele sabe o que
aconteceu. Ela chama-se Freya, está viva e passeando pelo meu
palácio. —Ela olhou para ele com uma expressão interrogativa
devido ao tempo verbal em que ele mencionou, especialmente ao
dizer que ela estava no palácio. O que significava isso? Ele
convidou-a para morar no palácio porque não conseguia esquecê-la
apesar da traição? Uma traição sobre a qual ela queria ter mais
pormenores—. Não sei se alguma vez a amei de verdade, mas
sendo adolescente, posso dizer-te que estava nas nuvens e
apaixonado por ela. Ela traiu-me.
—Então, por isso…—murmurou para si mesma.
Agora entendia a sensação de perigo que lhe atingiu o peito com
força quando tinha apenas oito anos. Esse nível de empatia sem
explicação, tão repentino e capaz de comover profundamente,
ocorria quando a pessoa tinha uma forte ligação com outra alma.
Em alguma ocasião a sua mãe tinha-lhe dito isso. «Uma alma
gémea.»
—O quê? —perguntou Tahír.
—Tahír, achas que é possível prever o futuro? —indagou a
apalpar o terreno.
A gargalhada dele serviu de resposta.
— A menos que fumes umas ganzas, Bea, eu acho que não
podes nem prever nem mudar o futuro.
—Quero voltar a dormir —disse. Ela precisava de processar o
que acabava de entender, porque, de alguma forma, isso significava
que qualquer que fosse o seu próximo passo estaria vinculado a
esse homem. Para ela era imperativo encontrar uma maneira de
decifrar completamente esse sonho... ou pesadelo.
—Como foi o pesadelo? —perguntou suavemente.
—Uma parvoíce —respondeu antes de se virar para o outro lado
ajeitando-se entre os lençóis —. Amanhã gostava de mostrar-te o
sítio onde pretendo reinstalar o meu negócio.
—Claro, dessa forma garantes que não voltará a acontecer um
acidente da magnitude que me contaste. —Ela assentiu—. Estou
curioso, porque me perguntaste o que fazia aos meus 16 anos? —
quis saber atraindo a Bea para os seus braços para observá-la.
Beatriz suspirou.
—Disseste que não acreditavas que alguém pudesse prever o
futuro.
—O que é que isso tem a ver com a tua pergunta?
Ela permaneceu um bom bocado em silêncio.
—Se te respondo com sinceridade, o mais provável é que gozes
e te rias de mim.
—Se não tentares não vais saber, como tudo na vida, Bea.
—O que achas se o faço depois de dormir umas horas e tiver
cafeína no sangue? —perguntou sorrindo.
—Eu prefiro agora — disse Tahír maliciosamente, referindo-se a
um assunto totalmente diferente. Beatriz riu-se.
—Mmm… fazemos o que dizes… Agora —respondeu ainda a rir-
se, quando os lábios de Tahír se fundiram com os dela.
CAPÍTULO 12

—Só posso ficar aqui mais dois dias, Bea —disse Tahír ao
regressarem da praia—. Já passei aqui muito tempo, e tenho o meu
pai a buzinar-me aos ouvidos.
—Ele não deve ser assim tão chato —comentou ao dar-lhe uma
leve cotovelada—. És filho dele, alguma coisa de bom deves ter
dele, não?
—Mmm —murmurou. Ainda não lhe tinha dito nada sobre a mãe
nem sobre a família dele em geral. Não era importante. A ardência
inicial que pensou que ia desaparecer enquanto a tivesse na cama
tinha aumentado. A cada momento sentia mais desejo por ela.
Ela tentou ensiná-lo a surfar, e ele tentou fazer frente ao desafio
e concentrar-se ao mesmo tempo que admirava o corpo cheio de
curvas de Bea. Contudo, acabou por cair várias vezes, engolindo
água salgada e mal dizendo. Até que, com a determinação nas
veias, conseguiu domar as ondas. Terminou a manhã acenando e
sentindo-se orgulho de si mesmo, a tal ponto que a autoconfiança
fez com que Bea se risse. Isso rendeu-lhe um beijo longo, sensual e
profundo.
Eles passaram três dias juntos. Na maioria das vezes, sob os
lençóis, descobrindo-se um ao outro e aprendendo o que excitava o
outro. Também tiveram longas conversas. Algumas transcendentais
e outras sem importância. Bea não mencionou, em nenhum
momento, o pesadelo que teve na primeira noite que passaram
juntos.
Durante aqueles dias, Bea percebeu que o príncipe era mais
complexo do que parecia, e possuía emoções tão fortes quanto a
sua vontade. Conheceu um Tahír mais calmo, apaixonado e
sincero… Não havia nenhum ponto de comparação com o tipo
arrogante a quem ela danificou um carro há algum tempo. Por outro
lado, era fácil lidar com a ideia de um príncipe arrogante prestar
pouca atenção aos outros, mas não era fácil para o coração dela
ignorar a vibração repentina da possibilidade de tocá-lo, beijá-lo ou
apenas ouvi-lo. Ela estava a apaixonar-se por ele e a situação
parecia-lhe incontrolável. Ele era o seu destino, não porque a mãe
lhe tivesse dito, mas porque o coração gritava por ele.
Ela prestava sempre atenção ao que lhe dizia o coração.
—Porquê, Tahír? —perguntou, beijando-lhe o pescoço, enquanto
subiam no elevador do hotel onde ele se hospedava—. Eu pensava
que os príncipes faziam o que lhes dava na veneta.
Ele riu-se.
Estavam no que tinha sido até há algumas semanas a loja de
Bea. As reparações já estavam em andamento. Embora ela não
achasse que fosse possível ter o negócio pronto em dois meses.
Tinha em vista fazer melhorias em alguns jardins pequenos, mas
eram apenas trabalhos de quatro horas, porque não precisavam de
muito. Eram trabalhos recomendados por Surka. Normalmente,
eram pacientes que recebiam alta e queriam algo agradável para se
divertir até que recuperassem completamente as habilidades físicas.
Bea não queria incomodar Dexter. A mera ideia de que o chefe
da família dos Louden morresse enchia-a de arrependimento. Sabia
que o amigo tinha muitas coisas com que se preocupar. Eles tinham
uma conversa pendente. Ela tinha que lhe dizer que deixava o
emprego temporário como empregada de mesa. Dexter dizia-lhe
sempre, que o emprego, o que ela quisesse, estaria disponível, bem
como o salário que ela quisesse ganhar. Beatriz não queria abusar,
por mais necessitada que estivesse, por isso costumava escolher
um emprego que lhe desse liberdade, boas gorjetas e que também
a mantivesse entretida. Ser empregada de mesa era divertido, mas
não era tanto como o que fazia com a natureza.
—Tenho de trabalhar num projeto comercial com o meu irmão
Amir, em Azhat, mas quero propor-te uma coisa —disse Tahír antes
de apertar o botão que parava o elevador—. Algo em que estou a
pensar nos últimos dias.
Agarrou-a pela cintura e apertou-a contra o corpo.
—Ui, o que será? —perguntou na brincadeira.
—Vem comigo. Trabalha para mim nos jardins do palácio. Eu
pago-te generosamente e, com esse dinheiro, não vais ter de parar
de fazer o que adoras fazer, em vez de trabalhar como empregada
de mesa. Sim, é um trabalho honesto, mas desperdiças a tua
criatividade, eu vi uma parte do trabalho que fizeste na casa de
Creekon. Parar é um verdadeiro crime.
Ela ficou a olhar para ele.
—Obrigada… —suspirou— Tahír, eu tenho uma vida aqui. Não é
tão fácil fazer as malas e ir-me embora… E quem é que vai precisar
de uma designer de jardins no deserto? As pessoas à tua volta vão
começar a especular e vão olhar para mim com olhos críticos. Não
tenho vontade de aguentar esse tipo de coisas… —disse frontal—.
O meu negócio é uma prioridade. Sempre segui em frente pelo meu
esforço, não posso colocar tudo em risco por causa da possibilidade
de um affaire em que não sei quanto me deixará em perdas.
Tahír tocou-lhe no rabo e acariciou-lhe o short de surf.
—Posso convencer-te. E este affaire, ou como lhe chames,
durará o que tenha de durar. Não vamos por limites. Tu és adulta tal
como eu. Não queremos algemas.
Beatriz sorriu.
—Sempre assumindo o que eu penso.
Ele parou de lhe acariciar o rabo e subiu as mãos até debaixo
dos seios. Moveu tentadoramente os polegares sem a tocar onde
ela mais ansiava.
—Desejo-te. E sei que tu a mim. Eu nunca pedi a nenhuma
mulher que ficasse ao meu lado. Mas a ti peço. Vamos apenas viver
o que temos. Adoro estar ao teu lado, adoro o teu corpo e a tua
mente excita-me. Queres arriscar? —perguntou com um sorriso
sensual.
—É um risco muito grande.
—Uma mulher como tu assusta-se com um desafio tão simples
como este?
—Isso não é justo, Tahír.
Ele sorriu.
—Eu sei, mas jogo as minhas cartas —agarrou no rosto de Bea,
absorvendo o aroma dela— não te quero longe de mim. Tenho a
certeza que te vou pagar melhor que esse Dexter no bar que agora
está na moda.
Beatriz riu-se.
—Estou a detetar ciúmes na tua voz?
—Podes apostar que sim — respondeu ao beijar-lhe a pele,
deixando uma pequena marca. Territorial. Este era um qualificador
ideal para Tahír Al-Muhabitti.
Ela afastou-se com suavidade.
Beatriz não queria que Tahír soubesse as emoções que sentia se
estavam a tornar mais profundas. Por isso, deixou-o assumir que o
brilho que certamente tinha no olhar se devia ao desejo e não ao
amor.
—Vou contigo a Azhat com uma condição.
—Sou todo ouvidos —disse ao abanar as ancas contra as de
Bea, para tentá-la. Ela pôs os olhos em branco.
—Não penso ter relações contigo durante as horas de trabalho.
—Mmm, estás a desafiar-me?
Ela riu-se, soltou ar e acariciou o lábio inferior de Tahír com o
polegar, depois colocou a palma da mão na face dele.
—Não, Tahír, falo a sério. Se me vais pagar para trabalhar, então
é só para isso. Caso contrário, vou sentir que me pagas para ter
relações contigo.
—Isso não é verdade, Bea. Porque distorces o significado das
coisas?
—Só quero deixar este ponto bem claro.
—Isso não tem sentido —insistiu ele, claramente contrariado.
—Temos um acordo? —perguntou. Ela manteve a mão na face,
acariciando-a, porque queria fazê-lo entender que embora o
desejasse, também merecia que ele a ouvisse e que no seu mundo
a respeitasse como profissional. O último não iria acontecer a
menos que ele aceitasse esta condição.
Ele olhou para ela. O que mais queria era estar com ela. Quando
estivessem no palácio, talvez se divertisse a tentar seduzi-la para
esquecer esta condição. Gostava de sentir que ela seria sempre um
desafio na vida dele.
—Sim senhora, temos um acordo — ele disse com uma voz
astuta, antes de pressionar o botão do elevador para reiniciar —. E
como ainda não trabalhas para mim, vou devorar a tua boca e fazer-
te gemer o meu nome nos próximos dias que passe aqui em
Melbourne. A todas as horas do dia! O que achas?
— Tenho de fazer os últimos turnos para Dexter, mas, no meu
tempo livre, espero que mantenhas a tua palavra. Embora, muito
provavelmente, sejas tu a gritar o meu nome.
—Gosto de mulheres atrevidas.
— Eu sou novata nas lides do sexo, mas aprendo rápido. Não
há dúvida sobre isso —disse ao piscar-lhe o olho.
O elevador deu lugar à suíte presidencial do hotel e, quando
Tahír fechou a porta, o mundo desapareceu e só ficaram eles.
—Vamos confirmar isso —sussurrou contra a boca de Beatriz
antes de se perder completamente no seu sabor.
***
Freya estava a terminar de organizar o arquivo. A
correspondência era guardada e digitalizada num disco rígido
externo e físico. Ambos os métodos eram uma exigência da
administração real, e fazia todo o sentido.
No palácio vivia-se uma intensa turbulência com a notícia de que
o rei abdicaria em favor do filho Bashah. Havia especulações de que
seria em breve, mas sob nenhuma circunstância essas suposições
saíram dos muros da fortaleza que abrigava a família real.
Naquela manhã, um dos guardas do palácio parecia
particularmente interessado nela. Estavam a conversar há algum
tempo, ou flertando, até que ela teve que entrar no escritório. Freya
não tinha todo o tempo do mundo. A prisão tirou-lhe anos valiosos
em que podia ter salvado a irmã. Todos os dias se perguntava se ela
estava a ser bem tratada, se a família que a tinha acolhido era boa
ou se a tratavam mal, e se ela se lembrava dela.
Conversar com alguém no palácio real, que quisesse ou fingisse
ser amigo, não era desperdiçar tempo. Para Freya qualquer aliado
podia ser útil a longo prazo. Já tinha verificado que os membros
serviçais eram mais acessíveis do que os sombrios seguranças que
estavam parados nas principais entradas e corredores externos ao
redor da fortaleza do palácio.
Graças a Phot, uma gentil empregada de limpeza, Freya
conseguiu encontrar-se com Tahír. Os funcionários costumavam
dizer que os príncipes eram muito acessíveis e amigáveis, e ela
aproveitou-se desse detalhe para perguntar a Phot se achava
possível ajudá-la a encontrar o príncipe Tahír de uma maneira que
parecesse uma coincidência, porque lhe dava vergonha pedir uma
audiência, principalmente, sendo uma funcionária do departamento
administrativo. Também acrescentou que era uma pessoa que o
admirava muito. A mulher ficou entusiasmada e ajudou-a.
Ela teve muita sorte a esse respeito, e também pelo fato da sua
tentativa de organizar uma manifestação ter sido encarada como
uma explosão de uma mulher ferida em vez de um insurgente para
criar o caos em Tobrath. A verdade é que Tahír podia tê-la prendido
ou algo semelhante. Não o fez. Talvez isso significasse que ele
ainda tinha um pouco de coração por ela, embora não quisesse
tentar o seu destino. Foi-lhe negada a audiência que solicitou como
uma das duas condições para deixar de lado a ideia de protestar
com um grupo que costumava apoiar todas as suas iniciativas, não
importa o quão tolas ou loucas elas fossem - eram conhecidos por
não terem nada melhor para fazer que lutar por causas sem sentido
- mas ela sentiu-se aliviada quando conseguiu um emprego.
Ela não sabia fazer muito mais, porque mal tinha uma
preparação académica, embora na prisão trabalhasse como uma
pessoa de confiança no departamento médico e mantivesse todos
os registos médicos dos reclusos com discrição e ordem. Pelo
menos essa meticulosidade serviu para trabalhar no departamento
administrativo adjacente ao palácio real. Nem todas as batalhas
podiam ser ganhas. O importante já estava no menu: tinha Tahír por
perto e com ele a possibilidade de recuperar Elmahi.
—Hey —disse uma voz nas costas dela.
Virou-se com um sorriso estudado e deixou de lado um conjunto
de canetas que acabavam de chegar do supermercado.
—Sim?
—Estás a ocupar muito espaço com essas pastas e canetas —
disse zangado um tipo com bigote e pele cor de azeitona. Ele tinha
uma aparência intensa, não no sentido atraente, mais pelo contrário.
—O teu sotaque é diferente —comentou amavelmente—. Sou a
Freya.
Os cidadãos de Tobrath têm um modo particular de pronunciar
as últimas letras das palavras que terminam em "e", parece que o
arrastam. Esse homem tinha uma pronúncia diametralmente
diferente.
—Sim? Isso não me interessa, a única coisa que quero é que
organizes isto — respondeu deixando-a com a palavra na boca
quando Freya quis responder —. E se continuares aí parada serei o
teu pior pesadelo.
«Idiota.» Freya encolheu os ombros e afastou-se com relutância.
Melhor ter os idiotas longe de vista.
Freya foi até ao WC e olhou-se ao espelho antes de sair. Tinha
trinta e três anos. Ela passou os dedos pelos contornos dos olhos.
Ao contrário de outras mulheres, ela já tinha sulcos marcados, até
na testa. Já não tinha o brilho de atrevida que um dia teve. O brilho
da vida e alegria. Ela teve de escolher entre a família e o amor. A
família venceu, mas ela nunca esperou pagar com a prisão. Aquela
noite, anos atrás, deveria ter terminado de maneira diferente. No
final, ela perdeu tudo.
—Freya, almoçamos juntas? —perguntou Brunah.
—Claro. —Olhou para o relógio—. Pensei que ainda faltavam
duas horas para o almoço. Há anos que não vou ao deserto… O
tempo ali parece que não existe.
Nos próximos dois meses vai haver um campo aberto para os
berberes. Devido a um acordo com o grupo que gere as áreas de
preservação cultural no país, eles concordaram em ensinar aos
cidadãos que desejam métodos para sobreviver no deserto e
técnicas de meditação—Mmm… Isso parece interessante. A
modernidade parece consumir-nos e estamos a perder de vista o
importante que é entender as raízes do que nos rodeia.
—Ui, estás muito filosófica — disse Brunah quando abriram a
porta da sala de jantar para os funcionários.
—Não —riu-se—. Talvez os príncipes estejam mais ligados ao
deserto do que nós, cidadãos comuns.
—Ouvi comentários de que o príncipe Tahír está fora do país há
vários dias ... Ninguém comenta nada. Quando se trata desse
príncipe, Karim é uma sepultura. Ele defende-o com capa e espada
como se fosse o seu próprio filho.
Freya encolheu os ombros.
— Deixemos o Al-Muhabitti de lado e vamos apreciar a comida.
Eu sei que vão mudar o chef desta temporada, porque querem
trazer um francês. E podemos sugerir o menu!
Freya não queria dar asas à curiosidade diante de Brunah. Não
queria que ela suspeitasse que havia um interesse pessoal pelo
Tahír, além daquele que despertava no público em geral. Ela sabia
que ele era um homem muito ocupado.
Freya esperava que ele voltasse rapidamente de onde estivesse.
Ambos tinham uma conversa pendente, e ela, além disso, uma irmã
para encontrar.
***
—Posso oferecer-te uma mala de viagem sem problemas —
disse Tahír, nu na cama, observando Beatriz com uma expressão
frustrada, porque acabava de estragar o fecho da mala que
costumava levar de viagem —. De facto, gostava muito que me
deixasses oferecer-te uma.
Ela cruzou os braços. Estava em cuecas e sutiã. As suas partes
mais sensíveis ainda sentiam a auréola das carícias de Tahír.
—Não quero que me ofereças nada. Talvez as tuas amantes
estejam acostumadas a receber coisas ou até mesmo esperar por
elas, mas eu sou diferente. Além disso, acho que vou ter de passar
na casa dos meus pais por uma das minhas muitas malas de
viagem que certamente estão num estado melhor do que as que
tenho aqui.
—Como és teimosa! — murmurou, sentando-se, muito
confortável e ciente de que o seu sexo estava a começar a ficar
ereto.
—Tahír…
Beatriz conhecia perfeitamente aquele olhar. Os olhos verdes
claros ficavam um pouco mais escuros quando ele estava animado.
Talvez não fosse algo notório para as outras pessoas, mas para ela,
sim. A ideia era ir o mais rápido possível para Azhat, já que ele a
seduzia sempre que queria, embora não naquele momento.
—Vem comigo para a cama. Depois resolvemos algo tão simples
como as malas… —pediu com voz sensual, esticando-lhe a mão.
«Como negar algo assim a um homem que fala contigo desta
maneira e te faz arder com os olhos?», perguntou-se Beatriz
sorrindo sem esforço.
—Depois soluciono este assunto — murmurou quando a pegou
nos braços e caíram juntos na cama.
Os beijos de Tahír eram apaixonados e Bea começava a viciar-
se neles. Gostava da maneira como ele a tratava. Cada carícia
daquela boca dava uma nova dimensão ao prazer e ao desejo.
Sentiu os lábios de Tahír percorrem o queixo, o pescoço e voltarem
para o lóbulo da orelha. Depois tirou a roupa com uma velocidade
incrível. Ela não se resistia, porque descobrir o prazer nos braços
daquele homem era uma experiência que queria repetir várias
vezes. Ela sentia que suas vibrações estavam na mesma sintonia e
isso fazia com que se sentisse mais confiante no novo campo físico.
—Dá a volta, Bea — perguntou. Tinha fantasiado em tê-la de
outra maneira, e não ia perder a oportunidade. Ela observou-o com
uma expressão de dúvida no rosto —. Dá a volta, nena. Confia em
mim— disse levantando um dedo e girando-o com lentidão
deliberada, enquanto acompanhava o gesto com um sorriso
travesso.
—De acordo… — respondeu com uma voz que mostrava desejo
e encorajava Tahír a deixar de lado o seu autocontrole e possuí-la
sem premissas.
Ela trocou de posição.
Ele percorreu com a ponta do dedo indicador da nuca até a parte
inferior das costas da pele sedosa de Beatriz, com muita delicadeza.
Ela tremia. Depois, inclinou-se sobre ela e substituiu os dedos pela
boca. Voltou a traçar o caminho para cima e para baixo,
atravessando as costas de Bea, decidido a manter o autocontrolo
perante os sussurros de prazer que ela emitia. Lambeu as pequenas
covinhas acima das nádegas.
—Tahír… —murmurou perdida nas sensações que ele lhe dava.
Bea sentia a ereção ardente roçando-lhe a pele, sentia-a quente e
latejante. Ele percorria-lhe a pele como se estivesse a memorizar
um mapa.
Bea virou levemente a cabeça e fixou-se nos olhos de Tahír.
O príncipe viu um forte desejo naqueles lindos olhos, e ele ia
explodir só com a ideia de tê-la naquela posição. Tal como
fantasiava. Pôs-se atrás dela. Com uma mão levantou-lhe uma
perna e colocou-a na anca dele. Quando Beatriz olhou para ele
novamente, ele beijou-a nos lábios.
—Tive a fantasia de ter-te assim desde a primeira vez. E quero
saber se gostas…
Sem mais delongas, ele investiu. Soltou um gemido plácido
quando sentiu os músculos internos de Bea se contraírem em torno
do seu sexo ereto. Agarrou-o firmemente com a mão, mantendo-a
aberta, enquanto investia repetidamente na carne húmida. Ela
gritou.
—Toca-te, Beatriz…—pediu-lhe—. Toca-te no peito… Aperta-os
como se fosse eu quem te estivesse a tocar enquanto te penetro.
Frente a Beatriz havia um amplo espelho. Ambos podiam ver-se
a partir da posição na cama. Era uma cena erótica e cheia de um
desejo primário.
Ela obedeceu, tocou-se e ouviu Tahír ofegar. O atrito dos corpos
chocantes era a nota alta de uma nota que começou como um
silêncio e que agora se tornou numa batida impossível de descrever
com palavras.
—Sinto-te mais profunda que em outras posições —disse ele
deixando-se levar pelas sensações.
—Diz-me se gostas…
—Sim. —Ele investiu com mais força e mais rápido—. Sim… Oh,
sim, Tahír…
Eles estavam perto do clímax. Tahír agarrou no lóbulo da orelha
de Bea entre os dentes, mordiscou-o com firmeza e logo começou a
sentir os espasmos femininos ao redor do seu sexo. Beatriz
empurrou os quadris para trás, as nádegas fizeram contato com a
pélvis de Tahír, enquanto ele segurava a perna dela e penetrava o
seu corpo com longas investidas.
—Bea… Sim, faz assim… grita para mim… Preciso de ouvir o
prazer da tua boca —murmurou na orelha dela.
—Tahír! — exclamou colocando os dedos sobre o antebraço
masculino.
O príncipe soltou um rugido que ofuscou os gritos de Beatriz.
—Oh, querida…
O orgasmo veio como uma avalanche, deixando-o vulnerável,
cobrindo todos os pensamentos que tinha em mente. Quando os
corpos se começaram a acalmar lentamente, ele beijou Beatriz e
abraçou-a com firmeza.
As horas seguintes passaram vertiginosamente.
Após fazerem amor, tomaram banho juntos e depois foram para
a praia. Tahír não se lembrava de se ter divertido tanto com uma
mulher como com Beatriz.
Eles caminharam, comeram num dos lugares mais exclusivos,
cujos pratos excediam os cem dólares australianos. Os pratos eram
exóticos e, segundo a ementa, afrodisíacos. Embora ele não
precisasse de nada disso para desejar a mulher que tinha ao seu
lado.
A ideia de voltar à Austrália foi mesmo boa. A Beatriz era uma
pessoa simples e ria-se facilmente. A comunicação com ela não era
difícil, e o melhor de tudo era que sabia respeitar os períodos de
silêncio que ele precisava de vez em quando. Não era muito curiosa
pela sua vida no palácio, e isso deixava-o um pouco inquieto, mas
não o suficiente para suspeitar de algo estranho.
Agora que tinha uma mulher que parecia interessada nele, e não
no título que trazia, entrar num esquema de cinismo desenfreado
não tinha nenhum sentido. Além disso, de que lhe servia? O melhor
que podia fazer era aproveitar ao máximo estes dias.
Ele pediu ao Karim, para que este pedisse à equipa jurídica, a
elaboração de um contrato de trabalho de dois meses para Beatriz.
O contrato era apenas uma formalidade. Nenhum cidadão
estrangeiro podia pôr os pés em Azhat para trabalhar sem um
contrato. E isto aplicava-se a todas as instâncias, incluindo a família
real. Fazia parte das políticas de "justiça social" que o rei elogiava,
regulada pela equipa jurídica do palácio e o Parlamento.
Aquele era o último dia antes de partir para Azhat.
A Tahír estava à espera que a Bea acabasse de se vestir.
Estavam na suite do hotel onde o príncipe estava hospedado. Os
dois iam a uma festa de gala para a qual ele tinha sido convidado e
que lhe custou convencer a Bea a acompanhá-lo. O que mais queria
era vê-la com o belo vestido azul claro. Um vestido de uma boutique
de Melbourne, que ele não pagou porque ela teimou em pagá-lo.
Habituado a comprar presentes às amantes, o facto de Bea não
lhe ter permitido dar-lhe um vestido atenuou a tendência que tinha
para desconfiar das mulheres. Será que ela era tão genuína como
parecia? Beatriz tinha-lhe dito que a sobrevalorização da virgindade
feminina era machista e insistiu que a primeira experiência sexual
era importante, mas não ao ponto de fazer dela um grande negócio
ou de ficar chocado com o número de parceiros sexuais que uma
mulher podia ou não ter.
Tahír vinha de uma cultura machista que, graças ao seu pai e
irmão, começou a mudar rapidamente. A virgindade de uma mulher
era uma das características mais importantes para escolher uma
rainha ou uma princesa. Ele não se importava com isso e, no caso
de Beatriz, ele sentia-se privilegiado por ter sido o primeiro.
No entanto, ele queria a paixão de Beatriz apenas para ele. E
pensava mantê-la assim. Era possessivo, sim. Um pequeno detalhe
que acabava de descobrir com a ideia de que Bea pudesse estar
interessada em viver uma paixão por o com outra pessoa. Estranho
para um homem com tanta experiência entre lençóis como ele, e
que pouco ou nada lhe importava o que as amantes faziam depois
que saíam da sua cama.
CAPÍTULO 13

—Bea, o meu pai acabou de morrer — disse Dexter com uma


voz abafada depois de receber a notícia por telefone. Bebeu dois
goles do conhaque.
Estavam na sala de estar da casa de Dex. Beatriz tinha ido ali
contar-lhe os planos que tinha para ir com Tahír para Azhat. Ela
ficou muito triste com a notícia e percebeu como o sorriso alegre do
Dexter há alguns minutos atrás se tornou uma expressão desolada,
e isso ainda a angustiou mais. Ele não era uma pessoa muito
emocional, vê-lo naquele estado partiu-lhe o coração.
Afastou-se da cadeira e, sem pensar duas vezes, sentou-se no
colo de Dex e abraçou-o. Dexter segurou-a com força pela cintura e
enterrou o rosto no pescoço. Ela ouviu-o a soluçar e não conseguiu
evitar que as lágrimas começassem a rolar pelo rosto.
—Oh, Dex… —expressou com dor—. Lamento muito…
Kirk Louden sempre foi gentil com ela, tal como toda a família de
Dexter. Ia adiar a viagem para Azhat. Não podia deixar de lado o
melhor amigo, e menos numa circunstância tão dolorosa como esta.
—Nem penses —disse ao afastar-se do pescoço da Bea olhando
para ela fixamente. —Ela observou-o interrogante—. Tu achas que
por me deixares aqui e ir para esse país no deserto estás a ser
egoísta —aclarou Dex— mas não é assim. Nem me deixaste
emprestar-te dinheiro para reiniciar o teu negócio, por isso tens de
aproveitar a oportunidade laboral que este príncipe te está a
oferecer.
—Não posso ir e deixar-te aqui assim como estás, Dexter. Sabes
muito bem disso.
Ele sorriu e respirou fundo.
—Bea, para ser vidente, fazes um excelente trabalho a aprender
a controlar as tuas possibilidades de ler o pensamento dos outros.
—O que é que isso tem a ver com o que estamos a falar?
—Se esse príncipe não tivesse aparecido pelo caminho, a esta
altura talvez já soubesses.
—Dex, não estou para advinhas.
—Então vou fazer uma coisa para que entendas melhor, OK?
—O quê…? —começou a protestar, mas a boca de Dexter
juntou-se à dela, surpreendendo-a completamente.
Os lábios de Dexter eram macios, mas insistentes e
completamente dominantes. Ele beijou-a com tanta concentração
que não notou o facto de que ela respondeu, sim, mas não da
mesma maneira entusiasta e profunda dele. Alguns minutos depois,
Dexter afastou-se.
—Não sentiste nada, pois não?
Beatriz não conseguia dizer nada. Olhou para ele boquiaberta.
Dexter, o seu melhor amigo, acabava de a beijar como se
estivesse… apaixonado.
—Dexter…
Ele esboçou um sorriso triste.
—Estive sempre apaixonado por ti, Beatriz. Sempre. Essas
novas conquistas são uma tentativa de me esquecer do mero facto
de que não posso ter-te. Quando te telefonava por estar enrolado
com alguém às vezes tinha a esperança que te dessem ciúmes…
Nunca aconteceu. —Beatriz ficou muito séria. Sentia-se confundida
e também traída com o que estava a ocontecer—. O problema é que
sabia que tu não sentias o mesmo por mim. E mesmo que tivesse
tentado, acho que não teria resultado.
—Foi por isso que me beijaste? Para demonstrar-me que não
posso corresponder-te?
Ele negou.
—Eu fiz isto para contar-te com um beijo o que sinto por ti. Isto é
tudo. E também para saber que não sentes o mesmo. Tu podias
retribuir, mas como lutarias com o destino do teu coração? Além
disso, nunca me vistes com outros olhos.
—Não sei a que te referes com isso do meu destino.
—Esse principezinho.
—O que é que tem o Tahír? —perguntou. Podia afastar-se do
Dexter, mas não o fez—. Já te expliquei tudo.
—Contaste-me tudo, sim. De facto, no dia em que me disseste
que o tinhas conhecido, planeei ir ver-te a Port Douglas. Mas
alguma coisa na tua voz fez-me mudar de ideias. Não me enganei.
E a maneira como os teus olhos brilham quando o mencionas,
reafirmam a felicidade do teu coração. És uma mulher especial, por
isso que não posso permitir que saias a perder.
Beatriz sentou-se ao lado dele, apoiando a mão nas costas do
sofá. Olhou para ele.
—Talvez se me tivesses dito, eu…
—Não, Bea. Não vamos por esse caminho. Não estou a
censurar-te por nada. Eu só queria esclarecer esse ponto. Preciso
de aceitar que tu definitivamente nunca serás mais do que a minha
melhor amiga. Portanto, não posso permitir que fiques ao meu lado
quando o homem que amas está à tua espera para te levar para o
país dele, sob o pretexto de que é apenas uma questão de trabalho.
Ela não ia argumentar contra o que ele estava a dizer.
—Quero estar contigo neste momento de dor…
—Dar-me-ia mais dor saber que após o enterro, a dor e a
angústia desse dia difícil, não poderei dormir ao lado da mulher que
realmente amo, consolar-me nos braços da maneira que quero,
porque não é minha. Porque tu não és minha, Beatriz. Faz-me feliz
e tenta realizar os teus sonhos em Azhat. Encontra uma maneira de
chegar ao coração desse príncipe. Mas se ele se atrever a magoá-
lo, não me peças para não ir ter contigo e partir a cara a esse tipo.
Bea riu-se entre lágrimas. Foi uma confissão inesperada,
profunda e dolorosa ao mesmo tempo. Como é que tinha sido tão
cega?
—Nunca esperei isto, peço-te desculpas por…
Dexter levantou-se muito rapidamente para tapar os lábios da
Bea com um dedo.
—Não digas isso. Depois de hoje, não voltaremos a falar sobre o
assunto. De acordo? Provavelmente levarei um pouco mais de
tempo para me acostumar à ideia de que o teu coração pertence a
outra pessoa, por eu não ter sido mais intrépido. De qualquer forma,
obrigado, porque eu sei que tu serás sempre... minha amiga.
Ela assentiu.
Eles deram um longo abraço. Beatriz pegou na mala e deixou a
mansão de Dexter com demasiados pensamentos a darem-lhe
voltas na cabeça, mas o que mais persistia era a confissão do
amigo. Pelo menos continuavam amigos, pensou ao entrar no carro
e ligar o motor.
***
—¿Onde estavas? —perguntou Tahír depois de recebê-la com
um beijo profundo. Ela encontrou-se com ele no hotel para irem
juntos a casa dos pais dela.
—Já te disse que fui contar a Dexter que ia para Azhat contigo.
O príncipe olhou para ela desconfiado.
—Tu não bebes conhaque —assinalou.
Beatriz olhou para ele como se estivesse a ver um lunático.
—Obrigada por me lembrares que não gosto de beber.
Tahír agarrou-a com força no braço, ele levantou o queixo.
—Esse imbecil agora é teu amante? —perguntou rudemente.
—Larga-me, Tahír. Não sei do que estás a falar.
—Conheço perfeitamente o sabor da tua boca e tu não bebes
conhaque. E se estiveste com aquele homem, então devo deduzir
que estiveram aos beijos. Ou tu achas que sou estúpido para não
notar pequenos pormenores como esse? —perguntou, largando-a.
Ele passou as mãos pelo cabelo. O ciúme era um poderoso
impulsionador de ações disparatadas. Não queria cometer uma
estupidez com Beatriz, mas suspeitava, tendo em conta o sabor de
um licor que ela não bebia, junto ao facto de estar com outro homem
por qualquer razão ou por qualquer relação de amizade entre eles.
Imbecil, não era.
Beatriz sentiu que se punha pálida.
—Não sei o que dizer-te —expressou.
Ela nem conseguia encaixar o que tinha acontecido na casa do
Dexter. Somado a isso, a morte do Kirk. Agora Tahír olhava para ela
como se tivesse cometido o maior crime da história.
—Tiveste relações com ele? —indagou.
—Não. O pai de Dexter acabou de morrer.
—Que pena, mas isso não tem nada a ver com o facto de teres
beijado outro homem —espetou com dureza.
Esgotada e sem vontade de discussões, Beatriz começou a dar
a voltar para ir-se embora.
—E se tivesse sido eu? E se tivesses saboreado na minha boca
o sabor de uma bebida que nunca bebo, principalmente, depois de
ter estado com uma grande amiga?
Essas perguntas detiveram-na e voltou atrás olhando para ele,
compreendendo. Reparou como ele tinha as mãos em punho. Ela
tinha a certeza que tinha os dedos brancos devido à força que
estava a fazer.
Bea contou até cinco, e começou a contar-lhe o que realmente
tinha acontecido. O olhar sagaz de Tahír não se afastou nem um
instante do rosto dela, mas ela continuou até o final. Embora a
expressão do príncipe continuasse a ser furiosa, já parecia um
pouco menos do que quando ela chegou à suíte do hotel.
—Não é uma desculpa, Tahír. Mas isto também não é enganar
nem mentir. Estou nervosa e confundida pelo que aconteceu —
explicou aproximando-se dele.
— Que ele te tenha beijado... faz-me querer matar esse idiota
por ousar tocar-te. Por ter ousado colocar-te numa situação desse
calibre…
— Eu nunca te enganaria, Tahír. Sermos amantes significa que
enquanto eu estiver contigo não estarei com mais ninguém. Embora
não tenha prometido nada antes, faço-o agora.
—Porquê? Por acaso esperas o mesmo da minha parte? —
perguntou ainda com os ciúmes a comerem-lhe as entranhas.
Beatriz sabia que no passado Freya o tinha enganado, e que
este era o ponto de partida para tanta desconfiança em relação às
mulheres. Contudo, essa realidade não diminuia a dor de pensar
nele com outra mulher... No caso do Dexter, ela não tinha a culpa e
esperava que ele compreendesse. Embora com Tahír nunca se
soubesse.
— Só se sentires para fazer isso, se não, respeito, mas
entenderás que, se for o caso, eu não terei mais interesse em
continuar contigo. Como te contei, não aconteceu nada.
—Contavas-me?
— Eu tinha acabado de chegar quando tu me beijaste, Tahír, e o
que aconteceu na casa de Dexter foi um momento triste e único.
Não faço ideia do que podia ou não ter feito antes de me beijares.
Vais acreditar na minha palavra ou deixo-te sozinho com as tuas
inseguranças?
Tahír olhou para ela boca aberto. Depois pôs a cabeça para trás
e deu uma gargalhada. Ninguém falava com ele daquela maneira,
mas ela atrevia-se a fazê-lo. Bea estava certa, ele tentava mostrar
segurança em si mesmo, mas sentia-se inseguro sobre as intenções
das mulheres, não sobre a sua performance como homem ou
capacidade para conquistá-las. Isso nunca. Por outro lado, não
compreendia a 100% o que sentia pela Beatriz, mas estava
convencido que era muito diferente ao que tinha sentido pelas
outras mulheres que passaram pela vida dele.
—Vou aceitar a tua palavra —disse com sinceridade.
Ela sentiu um grande alívio.
—Assunto terminado?
Ele aproximou-se. Abraçou-a.
—Por agora —murmurou e sentiu-a sorrir encostada ao peito
dele.
—És um obcecado.
Tahír afastou-a com suavidade. Acariciou-lhe a face.
— Tenho de digerir a ideia de que, embora não tenhas
participado ativamente ou não o planeasses fazer, outro homem te
tocou. E isso deixa-me doente.
—Porque és muito possessivo.
—Não, é porque és tu —afirmou olhando-a fixamente. A
confissão dele fê-la estremecer.
***
Tahír insistiu em acompanhar a Beatriz à casa dos pais para ir
buscar a mala. No entanto, o que ele não sabia é que o que ela
menos queria era apresentá-lo às pessoas mais importantes da sua
vida. Não porque considerasse o príncipe indigno ou porque tivesse
vergonha dela, não. Ordella tinha um modo peculiar de se aproximar
das pessoas que iam lá a casa.
Ainda se lembrava da vergonha que sentiu quando lhe
apresentou um dos seus namorados adolescentes. Ordella deu-se
ao trabalho de lhe contar tudo sobre o passado de toda a família e
de o aconselhar sobre negócios futuros. A uma colega de faculdade,
Ordella recomendou-lhe a não sair do país atrás de um estrangeiro,
só por estar apaixonada, porque lhe esperava um calvário fora da
Austrália. A questão não era que Ordella desse a conhecer as suas
previsões, o problema é que ela divagava e dava opiniões, muito ao
seu próprio estilo, e sem que lhe tivessem sido pedidas. Era uma
mulher pitoresca, mas as pessoas desconhecidas não sabiam de
nada e sentiam-se sobrecarregadas com tais observações Bea não
queria passar por isto novamente, e menos com Tahír.
Talvez se no futuro tivesse oportunidade, lhe contasse o seu
dom, mas de momento não sabia se ela e o príncipe tinham os dias
contados. No mais profundo de si mesma tinha a certeza que cada
vez estava mais apaixonada por ele... Antes de aceitar perdê-lo,
primeiro precisava de entender a premonição que se repetia desde
a primeira noite juntos, e qual era o papel ela que desempenhava
naquele cenário.
Por mais que tentasse, era difícil recordar aquele sonho ou
identificar mais pormenores. Era frustrante. Um dos motivos para ir
a Azhat era a necessidade de compreender o que tinha sonhado
naquele nefasto ambiente, o segundo motivo —mas não menos
importante— era o aspeto económico. Primeiro de tudo, ela pensava
no futuro. Talvez pelo caminho perdesse Tahír, mas não podia pôr
todas as cartas na mesa e deixar que uma tempestade a deixasse à
deriva.
Beatriz não sabia como é que ele ia lidar com a ideia da mãe ler
o futuro, e dela também ter algumas experiências do género. Como
é que lhe ia pedir para ficar à porta da casa dos pais sem parecer
rude e ridícula? Impossível.
—Oh, a minha querida filha! —exclamou Ordella quando abriu a
porta principal. A voz vibrante e aqueles olhos carregados de amor
pela única filha não perderam de vista o facto de estarem
estacionados dois carros de luxo com vidros escuros do lado de fora
da casa e três homens volumosos olharem de um lado para o outro.
Mas o mais importante para Ordella não era isso, era a companhia
da filha. Ela afastou-se da Bea e olhou para o príncipe,
cumprimentou-o—: Prazer em conhecê-lo, jovem. Chamo-me
Ordella Fisher.
A Beatriz respirou lentamente. Pelo menos a mãe estava
controlada... por enquanto. Era engraçado, mas Ordella não tinha
nenhum tipo de contemplação sobre a posição hierárquica das
pessoas. Para ela, todos eram seres humanos, ponto final. Nada de
apelidos grandes ou árvores genealógicas longas.
—Tahír Al-Muhabitti —disse o príncipe com o seu encanto
habitual. Não lhe apetecia apresentar-se com o título real, além que
—sendo a mãe da Beatriz— preferia manter as coisas num nível
informal. Com os guarda-costas não podia fazer nada, esperavam
por ele fora da casa de dois andares e com um precioso jardim à
frente —imaginava que seria obra de Bea— com uma cerca branca.
—Por favor, entrem. Bea disse-me que vinham buscar uma mala
de viagem. Onde vão…? —perguntou enquanto fechava a porta e
fazia um gesto para sentarem-se na sala.
—Vamos a Azhat —respondeu com um gesto afável—. Propus
um trabalho à Beatriz e ela aceitou.
—Claro que aceitou, não é parva. Ela sabe que as boas
oportunidades laborais escasseiam, ultimamente.
—Mãe, por favor! Que formas, a sério! —exclamou fechando os
olhos—. Onde está o pai?
—Foi ter com uns amigos, antigos colegas, porque querem
oferecer-lhe um contrato temporário no Ministério do Ambiente.
O olhar de Beatriz iluminou-se.
—Que bom! Vai fazer-lhe bem ter uma nova oportunidade de
trabalho.
Ordella não resistiu a dizer ao Tahír uma ou duas coisas. Ela não
seria uma boa médium se ignorasse as visões que lhe surgiam.
Assim que apertou a mão do príncipe, viu que o que ia acontecer
mais tarde ou mais cedo ia magoá-la profundamente, mas não podia
impedir as leis do destino.
O simples facto de alterar um acontecimento, tendo a
capacidade de antecipar o seu desenvolvimento, podia gerar mais
caos do que sorte. Com os seus clientes costumava ser diferente,
porque eles pagavam para saber algo em particular e cabia a eles o
que faziam ou não depois de terem ouvido. Ordella não dizia às
pessoas como deviam viver ou fazer, limitava-se a expressar o que
via. Era o trabalho dela. Mas Bea era a sua única filha, e a dor que
sentia pelo destino tinha guardado para ela deixou-a inquieta —
Quer beber alguma coisa, Tahír? —perguntou ao elegante príncipe
—. Tenho chá e café. Soda, se prefer.
—Um café está bem, obrigado.
—Já venho. E chame-me Ordella.
—OK, Ordella. Obrigada.
Beatriz olhou para a mãe, vestida com um lindo vestido azul
celeste que combinava com os olhos, movendo-se com a sua
elegância inata. Era uma mulher especial e Bea adorava-a. Era uma
pena que o pai não estivesse em casa, teria gostado muito de tê-lo
apresentado a Tahír. Ao contrário de Ordella, Nixon Fisher possuía
uma maneira de ser mais cautelosa e menos exuberante. Eram dois
pólos opostos e complementavam-se Tahír olhou à volta. A casa
parecia-lhe muito bem preservada. Achou curioso que a sala onde
estavam tinha decoração esotérica. Talvez fosse uma peculiaridade
na Austrália, disse para ele mesmo, anotando mentalmente. Os
ornamentos não pareciam ter sido colocados ao acaso, pelo
contrário, o arranjo parecia estudado e, no conjunto, harmonioso.
Dava uma sensação de calma e bem-estar. Como se ao fechar a
porta atrás deles tivessem entrado num lugar onde nada pudesse
perturbar a paz.
—Tudo bem? —perguntou ao vê-lo tão calado. Não era algo fora
do comum no Tahír, mas pelo facto da atitude ter lugar na casa dos
seus pais punha-a mais nervosa.
Ele olhou para ela. Sorriu.
—Claro. Pergunto-me o que significam aquelas letras
emolduradas que parecem ter fios de ouro. Em Azhat não temos
nada parecido.
Beatriz sabia a que se estava a referir. Há uns anos, os pais
tiveram uma grande discussão, quando Ordella disse que precisava
colocar o Arcano Maior do Cavaleiro Waite Tarot numa espécie de
copo especial. Não era um grupo qualquer de cartas de Tarot, mas
Ordella tinha investido mais de dez mil dólares para decorar as
bordas externas e certos detalhes internos das cartas com fio de
ouro comprado num país distante, Equador.
Afinal, o pai cedeu. Não a surpreendia, o que a surpreendia é
que não tivesse lutado mais pelo que defendia —como às vezes
fazia— para deixar claro o seu ponto de vista. Nesta ocasião havia
um problema, o dinheiro do fio de ouro não era reembolsado. O que
iam fazer ao que tinham comprado aos artesãos equatorianos?
Assim que o pai teve de se consciencializar que dez mil dólares das
suas poupanças estavam naquelas cartas em miniatura.
—Oh, isto —disse Bea nervosa—. Bom, a verdade é que em
cada cultura há coisas e crenças diferentes. —Tahír olhou para ela
como se ela estivesse a contar que as folhas das árvores eram
verdes—. Claro, é óbvio, mas contextualizando, e…
E foi neste preciso momento que Ordella decidiu voltar à sala
com uma bandeja de chá e café. Tahír levantou-se para ajudá-la,
esquecendo-se das cartas douradas.
Começaram a falar do tipo de vida que o príncipe levava, dos
costumes do seu povo e também das extenuantes visitas de Estado
que fazia quando um dos seus irmãos não podia, devido a qualquer
inconveniente. Também falaram sobre o dia do mergulho na Grande
Barreira de Coral.
—Tahír, acreditas no destino? —perguntou de repente Ordella,
com uma mudança de assunto de 360 grados.
Beatriz quase cuspiu o chá. Tahír bateu-lhe nas costas e passou-
lhe um guardanapo de papel. Bea olhou para a mãe, mas ao ver-lhe
no rosto que estava determinada, não teve outra escolha senão
pedir ao universo que inibisse a capacidade de Ordella de se
comunicar durante os próximos trinta minutos.
—É uma pregunta simples —insistiu a mãe da Bea.
«Não. O universo não a tinha ouvido», pensou Bea a conter a
respiração. O que vinha a seguir já não podia controlar e seria
inevitável.
— Acho que sou o tipo de pessoa que está mais apegada aos
factos do que às hipóteses. E considero esse tipo de questões como
meras fantasias.
Ordella inclinou a cabeça para um lado.
—Mãe, por favor… — disse Bea quando percebeu como o olhar
de Ordella deixava de estar ali para se instalar naquele em que via
além das outras pessoas.
Tahír franziu o sobrolho ao notar que Beatriz estava de repente
muito tensa, e que a sua mãe tinha mudado de uma expressão
calma para outra mais concentrada e aguda.
—Perdeste a tua mãe muito pequeno, não foi, Tahír?
Durante um longo, longo minuto, o príncipe segurou a chávena
de café a meio caminho do pires à boca. Depois colocou-a na mesa.
Encostou-se à poltrona, cruzou os braços e observou a mãe de Bea
com um gesto de gozo. Ele sentia o coração a martelar contra o
peito e todas as cenas de rejeição do rei Safir, bem como a falta de
compreensão a que tinha sido submetido, passaram como rajadas
de luz pela memória. Pensava que recordar aqueles tempos da sua
infância solitária, à mercê dos rigores do palácio, já não o podiam
afetar. Mas as palavras da mulher à sua frente tinham trazido tudo
isso de volta. Tudo de uma vez. Ele sentiu-se vulnerável. Zangado.
Que direito tinha ela de falar assim com ele?
—Minha senhora, eu não sei ao que está a jogar, mas…
—Achas que o teu pai te ignora porque és uma deceção para
ele. Enganas-te. —continuou Ordella— ele está orgulhoso de ti. A
tua mãe olha por ti com muito amor. Enviou-te um presente, mas
ainda não és plenamente consciente de que já o tens. Vais passar
por um momento difícil na vida quando te deres conta do que estás
a ponto de perder, novamente, mas se ouvires o teu coração vais
conseguir corrigir um grave erro de juízo.
Tahír levantou-se. Nervoso.
Ordella regressou ao presente. Ao notar o nervosismo de Tahír e
a expressão preocupada de Beatriz, soube que tinha acabado de ter
uma visão. As visões aconteciam com naturalidade, e como estava
em casa não tinha de tentar controlar a informação de outros planos
que podia ter.
—Desculpa, há coisas que não consigo evitar… —murmurou
com calma.
O príncipe olhou para a Bea de forma acusatória. Ele estava de
pé a andar de um lado para o outro. Parecia uma pantera cercada e
podia atacar a qualquer momento.
—O que é isto? Durante todo este tempo esteve a investigar-
me? —perguntou mordaz—. Foi o que estiveste a fazer, Beatriz?
Talvez não quisesses que eu viesse contigo aqui para buscar a mala
porque temias que a tua mãe falasse mais da conta, tal como
acabou de fazê-lo, não é?
Beatriz levantou-se lentamente e percebeu que a mãe tinha
acabado de revelar algo tremendamente pessoal e sensível para
ele. Podia mandá-lo para o inferno pelo tom com que falava com
ela, e não podia dizer que não estava desapontada com as
acusações dele, mas tentou colocar-se no seu lugar,
autocontrolando-se.
—Tahír, entendo a tua surpresa, mas devias acalmar-te antes de
continuar a falar — disse como se estivesse a falar com um animal
selvagem cercado por veterinários que tentavam apaziguá-lo antes
de injetar a medicação —. Vais acabar por dizer coisas que não
sentes. Se te sentares e me deixares, eu posso explicar o que se
passa.
Tahír estava a suar. Ninguém sabia da relação tensa que ele
tinha com o pai. Karim podia intui-lo, mas ele nunca lhe contou as
suas mais íntimas inseguranças. Muito menos falou sobre a mãe.
Nunca.
Ele sentia-se preso. Precisava de fugir. Olhou para a mãe de
Beatriz, que o observava com uma mistura de preocupação e
também compreensão. Como se prevesse qualquer reação dele.
—Quem é você? —perguntou à Ordella, contendo o tom de voz
e ignorando completamente a Beatriz, quem lhe tinha colocado uma
mão no braço com o objetivo de acalmá-lo.
—Tahír… A minha mãe não te quer fazer mal. E eu menos…
Ele ignorou-a e manteve os olhos fixos na mulher. Depois do que
se passou com Dexter, o seu lado desconfiado apareceu como um
monstro das sombras do passado. Só foi preciso um pequeno
arranhão na sua frágil tentativa de acreditar nos verdadeiros motivos
de uma mulher para o seu lado cínico emergir.
—Eu sou uma pessoa que, às vezes, tem a capacidade de ver o
passado, o presente e o futuro. Ninguém andou a vasculhar a sua
vida, Tahír. Eu nem sabia que vinha aqui. Só soube esta manhã e
tive um pressentimento, porque tenho uma forte ligação com a
minha filha, quer eu queira quer não. E soube que, caso tivesse uma
premonição enquanto estivesse aqui, devia contar-lhe que o seu pai
não está desapontado consigo, e que a sua mãe lhe enviou algo
especial da realidade em que ela agora se encontra. Pareceu-me
justo que soubesse. O mais correto. Ter a capacidade de “ver” um
pouco mais do comum dos seres humanos não é algo que se
aprenda, é hereditário. É um dom que tem sido passado através do
ramo feminino de toda a minha família de geração em geração. E
assim continuará até ao fim da minha descendência e da dela.
—No meu país podiam enforcá-la ou lapidá-la —respondeu ao
mesmo tempo que se sentia um completo idiota por citar as tão
velhas leis de Azhat.
Beatriz não conseguiu conter-se e deu-lhe um empurrão. Por fim,
deixava de olhar chocado para Ordella e fixou-se em Bea. Os olhos
verdes nascidos no árido deserto de Azhat pareciam atormentados
e furiosos, como um ciclone prestes a tocar na terra.
—Acalma-te. A minha mãe tem visões. Trabalha a ajudar outros
que vêm aqui. Não planifica o que faz porque as visões vão e vêm.
Eu também… eu também tenho visões —tossiu— mas aprendi a
controlá-las. Não sabia que existias até ao dia em que nos
cruzámos acidentalmente em Port Douglas. Não costumo falar
sobre isto com ninguém. Durante a minha adolescência tive uma
época muito má, era horrível saber sempre mais do que os outros
por poder ouvir pensamentos que não me interessavam ou que
eram depreciativos ou mal intencionados aos quais não podia
responder para não parecer uma louca —comentou ao recordar
esses momentos.
—Não, claro, é trágico —disse sarcástico.
—Poucas pessoas sabem disto —continuou—, a escola primária
e secundário foram um inferno porque podia ver cosas terríveis sem
filtra-las. O meu único amigo foi Dexter, e no tempo da universidade
Surka. Eles entendem-me, não me julgam, não se aproveitam que
possa ajudá-los vendo um pouco mais além do que os outros nos
seus respetivos negócios ou carreiras profissionais e, assim, tirar
partido. Isto foi sempre uma maldição para mim. Se o que queres
fazer é unir-te à quantidade de gente que sempre me julgou ou
gozaram comigo quando souberam do que era capaz, força!
Tahír olhou à sua volta. Agora tudo tinha sentido.
—Vocês são bruxas —disse repudiando—. Na minha terra, são
consideradas o pior tipo de mulher. —Passou as mãos pela cara—.
Não sei o que terão feito, nem como souberam da minha rota, mas
não me vão fazer de parvo.
—Sai da minha casa, por favor —disse Beatriz com dureza. Viu
pelo canto do olho que Ordella não parecia nada chocada. Como se
já estivesse à espera disto. Beatriz não tinha dúvidas que ela já
sabia. Não ia deixar o Tahír insultar a mãe e muito menos a ela.
Bastou-lhe o que se passou na adolescência.
Ele ficou a olhar para ela.
—Esta manhã assinaste um contrato comigo. Se me for embora,
tu vens comigo. Talvez possas provar que isto —fez um círculo
depreciativo com as mãos indicando o espaço que incluía os três—
serve para alguma coisa. E se disseres a verdade, então posso
utilizar-te para tirar partido dos meus concorrentes e antecipar-me a
eventos que ameacem a segurança do meu país.
Beatriz suspirou.
—Isto não funciona assim. Não podes forçar-me. Além que
acabaste de dizer que somos o pior tipo de mulher. Qual é o teu
interesse em continuar a relacionar-te com duas mulheres tão más?
—Cruzou os braços. Estava vermelha de tão chateada que estava,
doia-lhe ao respirar e os punhos pareciam que queriam ter vida
própria para dar-lhe um murro. Para que ele sentisse exactamente o
que uma mulher inculta da pior espécie poderia fazer.
— Se quiseres cumprir com o contrato de trabalho, agora as
condições mudaram. Talvez os teus serviços de jardinagem sejam
temporários, e entretanto possas encarregar-te de tentar entender
como outros têm mais dinheiro ou melhores armas de guerra do que
nós. Podes até desvendar alguma conspiração —disse sarcástico.
—Não exageres, Tahír. Eu não quero saber se és um príncipe ou
um lacaio. Para mim não é nenhum problema mandar-te dar uma
volta.
Ele pairou com toda a sua altura sobre ela.
—Se recusares, só vais confirmar que a tua intenção foi sempre
encontrar-me para conseguir benefícios. Que estar com esse
Dexter, talvez tenha sido apenas mais uma armadilha para me fazer
ciúmes e para descobrir o quanto és dispensável para mim.
Ela abriu e fechou a boca. Como é que ele se atrevia?
—Achas que te queria fazer ciúmes? És parvo? —perguntou fora
de si.
—Estava ciumento! Já estás contente? — respondeu ignorando
completamente o facto de estarem em casa da Beatriz e que Ordella
estava a observá-los.
—Se calhar é melhor que comeces a escrever uma novela negra
porque a tua imaginação não tem nada de romântica —disse Bea
furiosa—. Além disso, quais teriam sido esses benefícios para mim,
se é que posso saber, se tivesse planeado conhecer-te, investigar-te
ou usar a mente para isso? Porque neste momento continuo sem o
meu negócio, e não aceitei nenhum tipo de dávida de ninguém.
— Eu não gosto de caça-fortunas — disse agarrando-se à sua
teimosia.
—E eu não gosto de homens estúpidos que montam um
espetáculo por nada —contra-atacou levantando o queixo,
desafiante.
—Por favor —interveio Ordella pondo-se de pé— precisam de
tempo para se entenderem. Quando entender —olhou para Tahír—
que se exaltou talvez seja demasiado tarde, por isso tente acalmar-
se. Nesta casa, ninguém quer o seu dinheiro nem os seus
contactos. Ouça o seu coração, príncipe do deserto, e ponha de
lado a soberbia ou o ressentimento injustificado.
—Não tenho coração, Ordella — disse antes de se virar para
sair daquele ambiente sufocante. Ele precisava de fugir, sentia-se
vulnerável, a sensação não era nada agradável.
Beatriz enfrentou-o.
Bloqueou a distância entre ele e a porta.
—Vou a Azhat cumprir o meu trabalho, Tahír. Quando termine o
contrato volto para Melbourne. E é tudo. Quando decidires pedir-me
desculpas, vou aceitá-las, mas não quero saber mais de ti.
Tahír olhou para Ordella, a mulher continuava a enviar ondas de
calor, como se fosse um campo magnético suave e acolhedor. Ele
abanou a cabeça, não queria ter nada a ver com aquele bando de
malucas. Viam o futuro? Claro que sim! Ia mandar investigá-las.
Naquele momento, não ia largar a Beatriz. Ia obrigá-la a cumprir o
contrato e a aprender que com um príncipe não se brincava. Graças
a Deus que as tinha descoberto a tempo. Caça-fortunas. Que raio!
—Tenho de fechar um negócio importante com o meu irmão
Amir. Vais ter de pôr à prova a tua capacidade psíquica —disse
gozão— e se não encontrares uma maneira deste negócio
complicado sair a favor do meu país, vou encarregar-me de arruinar-
te a vida, e a da tua mãe também.
—Não me ameaces!
Tahír agarrou-lhe no rosto, como se quisesse destruí-la, como se
quisesse devorá-la, como se quisesse levá-la e nunca mais deixá-la
ir. Olharam um para o outro, e então ele largou-a lentamente.
—Amanhã à noite vem buscar-te um motorista.
—Não preciso que me envies um motorista. Sei perfeitamente
onde ficam os hangares privados no aeroporto. Encontramo-nos ali.
—Vais num voo comercial, não no meu jet privado. Não assumas
nunca uma posição ou importância comigo. —Ele fez um gesto
cordial de despedida a Ordella e depois saiu da casa dos Fisher
deixando Beatriz com um sentimento amargo na garganta e Ordella
com grande pesar no coração porque não tinha dito à filha, que este
poderia ser o início do fim da sua vida, e que o relógio começaria a
bater contra ela quando pisasse Azhat pela primeira vez.
Beatriz sentia a cara a arder e os olhos a queimarem-se devido à
inútil tentativa de conter as lágrimas. Olhou para a mãe, que lhe
estendeu os braços.
—Ordella, porque fizeste isto? Porque deixaste que a tua
intuição fosse tão forte? —murmurou no ombro da mãe.
—Era necessário, meu amor, já sabes que não consigo evitá-lo.
E ele tem de saber quem és, só assim é que te vai entender e amar-
te com liberdade.
—Este teimoso muito dificilmente me amará…
—Já te ama, mas ainda não sabe.
CAPÍTULO 14

Beatriz ficou impressionada com a calorosa receção que recebeu


ao chegar ao Aeroporto Internacional de Tobrath, há uma semana. A
viagem de Melbourne foi cansativa e sofreu de jet-lag durante três
dias. Acostumar-se ao clima seco e ensolarado não custou muito.
Embora os costumes fossem, é claro, muito diferentes dos da
Austrália.
No aeroporto notou como a estrada deserta começava a dar
lugar a estradas bem construídas, em perfeitas condições e
marcadas com eficiência. O céu azul sulcado por nuvens brancas
dava a impressão de ser benevolente com a temperatura, mas era
apenas uma farsa. A temperatura média do país era de trinta graus
Celsius. Exceto nas estações do ano frias em que a temperatura
caia consideravelmente para cinco graus durante as primeiras horas
do dia.
Ela esperava, ingenuamente, que Tahír lhe apresentasse a
equipa que ia orientar para reajustar as áreas botânicas do palácio.
Em vez disso, conheceu o conselheiro do príncipe, Karim. O homem
parecia sério, embora gentil e respeituoso. Acompanhou-a num tour
pelos arredores, deixando-a sem palavras diante do esplendor e da
riqueza da decoração.
— Pode instalar-se facilmente na ala que a falecida rainha
Dhalilah usou como suíte de costura. Foi reabilitada para si —
explicou-lhe Karim ao recebê-la na entrada do palácio real Al-
Muhabitti—. Espero que desfrute da sua estadia connosco. Estou à
sua disposição. Caso precise de alguma coisa, tem um telefone com
um guia das extensões de todas as salas administrativas do palácio
real. A cozinha está aberta 24 horas por dia e nossos chefs podem
preparar qualquer tipo de comida.
—Uau, que simpático.
—Pode chamar-me Karim, se for mais fácil para si. Tenho ordens
do príncipe Tahír para fazê-la sentir-se em casa. Espero que este
quarto atenda as suas expetativas. Caso contrário, avise-me e
enviarei uma equipa de redecoração completa que deixará tudo ao
seu gosto.
—Oh, não. Obrigada, Karim. Uma pergunta…
—Claro.
—Onde está Tahír?
—A atender os assuntos do principado que lhe correspondem,
menina Fisher.
E assim, diplomaticamente, terminou a conversa.
Beatriz ficou sem ar quando entrou na suíte. Era espaçosa, com
piso de ladrilho, tetos abobadados, um fresco de mosaico tapava as
paredes de gesso, os tons dourados, azuis e pinceladas de vinho
tinto misturavam-se lindamente. Havia uma enorme cama moderna
no centro e uma grande janela com vista para o deserto. O palácio
real ficava nos arredores da cidade. A parte da frente dava para a
avenida que dava para o centro da cidade e a parte de trás para o
deserto.
As fundas das almofadas pareciam feitas à mão. O bordado era
intrincado e era fácil reconhecer que a dedicação e a paixão pelo
artesanato revelavam-se em cada ponto. Sob todas aquelas
almofadas havia uma colcha de aparência suave em tom malva.
Desde aquela conversa, Bea não precisou de demasiados guias
para estar ali. Muriel, uma jovem de dezoito anos, trabalhava como
tradutora para funcionários que não falavam inglês - que eram muito
poucos - e ajudava com qualquer dúvida que tivessem. Muriel
também a acompanhava nos passeios pela praça central para
conhecer um pouco melhor os arredores. Tobrath era uma cidade
pitoresca e encantadora.
Bea estava surpreendida, porque esperava, como tinha visto na
televisão, uma cidade perdida das mãos de Deus, com pessoas
mal-humoradas, mulheres tapadas como uma tenda de
acampamento ou homens a gritar enquanto se brigavam por alguma
coisa absurda na rua. Que erro. Talvez não fosse uma cidade
moderna como Dubai ou Melbourne, mas parecia-se muito. Estava
claro que o progresso estava para ficar.
—Onde quer ir esta tarde? —perguntou Muriel, interrompendo os
seus pensamentos.
Eram quase cinco da tarde. Bea passou todo o dia a dar aulas
de botânica, agricultura e perspetiva de projeto de jardins. O seu
objetivo não era plantar sementes, tratar plantas ou mostrar o óbvio
às suas alunas, as meninas do harém. Também não queria refazer a
equipa de jardineiros do palácio, o seu segundo grupo de trabalho,
porque era evidente que sabiam o que estavam a fazer. Beatriz
queria transmitir, até aquele dia e tinha conseguido, informações
úteis para que os alunos tivessem uma visão de como ela
trabalhava, a partir da experiência. A maneira como tinha trabalhado
no Royal Botanic Gardens em Melbourne gerou grande interesse,
pelo menos para a equipa de jardineiros. As meninas do harém não
eram tímidas e pouco ou nada estavam interessadas em aprender.
Mas ela tinha um contrato e estava determinada a cumprir, por mais
absurdo que fosse ensinar jardinagem no deserto.
Perguntava-se quando seria o tal encontro para o qual Tahír
queria que ela o ajudasse. Ou melhor, que ele exigia que ela o
ajudasse. Tentou concentrar-se para antecipar o que podia
acontecer, mas o sexto sentido não estava do seu lado. Não "via"
nada. Quando mais precisava das suas habilidades psíquicas, mais
elas preferiam ir de férias. Que ironia.
—Gostava de ir nadar um pouco. Sinto falta das ondas do mar e
deslizar-me nelas. Já viste surf na televisão, não? —perguntou
enquando tocava nas calças brancas e na blusa bege. Tinha umas
sandálias sem salto em tom turquesa, e o cabelo apanhado ao alto.
—Sim. Gosto de ver desporto, mas não tenho muito tempo livre
—murmurou—. Entre a universidade e o trabalho aqui, sobra-me
pouco tempo.
— Entendo. Eu sei onde fica a piscina, por isso, não te
preocupes, Muriel. Se tens coisas para fazer por aqui ou na
universidade, é melhor que que o faças, assim até podes apanhar o
autocarro.
—A sério? —perguntou. Tinha uns olhos vivos cor de chocolate.
—Totalmente a sério. Já quase toda a gente se foi embora. É o
meu tempo livre. Sabes se há outra piscina, por exemplo, mais
privada além daquela na área central do palácio?
—Cada príncipe tem o seu riad pessoal —informou— mas agora
nenhum deles está no palacio. Essas são as únicas zonas com
piscinas privadas, mas ninguém tem acesso a essas instalações.
Beatriz assentiu.
—Sabes onde estão os príncipes…? Ainda não tive oportunidade
de conhecer os irmãos do príncipe Tahír —perguntou sem se conter.
Onde estava Tahír? Porque a punha de lado? Preferia ver os olhos
verdes furiosos a estar naquele silêncio. De facto, custava-lhe a
desconfiança dele de um modo que não conseguia descrever.
— Não sei se devo dizer-lhe, não é que desconfie de si, mas
entre os funcionários do palácio não damos esse tipo de
informação…
—Oh.
Muriel ajustou o hijab. Ela gostava de usá-lo, e gostava de mudar
a cor do cabelo, mas como isso custava uma fortuna, preferia mudar
as cores do hijab.
— Não te preocupes — Bea respondeu com óbvio desconforto.
—Se não disser a ninguém que eu lhe dei essa informação —
disse muito baixinho— posso contar-lhe.
Beatriz sorriu.
—Podes confiar em mim, Muriel. Em cinco semanas volto para
casa. Tudo o que me disseres vai ficar entre nós.
—Errr… Bom. O príncipe Amir está em Barcelona. O príncipe
Bashah em Londres. E o príncipe Tahír em Paris. Ignoro o que
fazem em cada cidade, mas viajam constantemente e costuma ser
por assuntos de Estado. Ou de saias —disse a última parte com um
sorriso discreto. Isto não contribuiu para melhorar o estado de ânimo
de Beatriz. A ideia de Tahír estar com outras mulheres era
equivalente a derramar álcool numa ferida aberta.
—Obrigada, Muriel —comentou com fingida indiferência—.
Agora vou para a piscina.
— Lembre-se que estão a reformar o corredor que leva à área
da piscina e do jacuzzi. Tem de ir pelo corredor lateral que passa
pela área administrativa.
—Entendido, obrigada novamente.
—Até amanhã, menina Fisher.
—Até amanhã, Muriel.
O sol da tarde estava a pôr-se, e Bea aproveitou a piscina para
dar dez voltas. Depois foi para o quarto e recostou-se numa linda
cadeira de balanço e começou a ler um livro, que estava na estante,
sobre a história do país. O silêncio imperava. O sono apareceu de
repente.
Estava a pôr o livro de lado para dormir quando a calma foi
interrompida por uma série de passos frenéticos que vinham e
saíam pela porta do seu quarto. Franziu a testa e levantou-se da
cama.
Saiu para o corredor e encontrou um caos de idas e vindas. Toda
a gente falava ao mesmo tempo. Algumas pessoas estavam em
lágrimas. Beatriz foi procurar Karim, embora não achasse que o
encontraria tão facilmente. Viu Ehian, um dos guardas reais que
trabalhava no final do corredor onde ficava sua suíte. O homem
parecia chateado, com expressão contrita, mas não se afastava do
seu lugar. Essa era a função dele. Contra todas as probabilidades,
Beatriz aprendeu que os funcionários do palácio nunca deixavam os
seus deveres até ao último momento.
—Ehian, o que se passa? — perguntou ao aproximar-se do
homem, que vestia o uniforme de oficial de segurança. Azul marinho
com ouro e branco.
—O rei morreu.
***
Paris, França.

Com o peito nu, musculoso e escuro, o príncipe Tahír Al-


Muhabitti era um espécime de virilidade. Ao contrário do seu irmão
mais velho, ele não tinha interesse em ocupar uma posição de lider.
Ele odiava a diplomacia. Odiava as convenções sociais estúpidas.
Tinha pena do Bashah, porque durante toda a sua vida tinha sido
forçado a guiar-se por um protocolo, sempre com um objetivo:
reinar. Que vida complexa a do irmão dele.
—Tahír? — perguntou a mulher com seios grandes e cintura
estreita deitada na cama dele. Ele não se lembrava do nome dela,
porque tinha data de validade: aquela mesma noite —. Está tudo
bem?
Os olhos verdes do príncipe brilharam com interesse antes de
tirar o lençol que, até alguns momentos atrás, tapava o seu corpo nu
e musculoso. Ele estava duro novamente com a imagem sensual da
sua amante. "É a última vez", disse para si mesmo.
Em Paris, a cidade do prazer e do amor, não era complicado
encontrar uma mulher disposta a estar com um príncipe. Embora,
pensando nisso, nunca uma mulher se tinha resistido a ele. Até
conhecer Bea. Mas não queria lembrar-se da mulher que agora
pagava a afronta de trabalhar para ele em Azhat.
—Sim — disse com voz firme, antes de pôr-se em cima da
coqueta loira, acariciando-lhe a púbis com os dedos para depois
esfregar aqueles lábios macios e íntimos —. Estás húmida — disse
com prazer quando as pernas da mulher se abriram mais para ele.
Tahír deixou de acariciá-la para inclinar-se e chupar um dos
mamilos rosados e duros. Foi um prazer primitivo, onde a única
emoção era a luxúria.
—Por ti —sussurrou a mulher com um ronronar acolhendo-o no
seu corpo. Não houve beijos, nem carícias sem desejo, apenas um
som selvagem de necessidade sexual que encheu o quarto de hotel
com vista para o Sena.
Tahír penetrou-a de uma vez com o seu membro duro e longo.
Ela era a sexta mulher que levava para a cama numa semana.
Sentia um prazer retorcido ao deixar-se levar daquela maneira.
Como se estivesse a castigar Bea pelo que tinha feito... Quando, na
verdade, ele sentia que o castigo era ele quem o estava a receber,
porque enquanto entrava no corpo daquela mulher desconhecida, a
única coisa em que pensava era no dia em que Bea o tinha traído.
Desde que se conheceram, ela mentiu-lhe durante o tempo todo.
Invadiu a privacidade dele. Não sabia como tinham dado com as
informações que tinham sobre a sua mãe... Karim estava envolvido?
Não... Impossível. Aquele homem salvou-o de uma morte certa.
Precisava de encontrar a pessoa que podia ter fornecido aqueles
dados.
A imagem de Freya veio-lhe à mente. Mas não conseguia ligar
Freya a Beatriz. Elas estavam a quilómetros de distância e a anos-
luz de realidades territoriais. Já tinha apagado as memórias com
Freya, especialmente as conversas que tiveram durante o affaire.
Merda! Sentia que lhe tinham partido a armadura dura que
mantinha há anos, para que ninguém, jamais, pudesse entrar no
espaço frio onde lhe bombeava o coração. Era por isso que também
sentia raiva. Porque ia acreditar em algo que não podia comprovar?
A imagem de Bea nua, a sensação da vagina dela à volta dele
enquanto lhe tirava a virgindade, parecia querer invadir o quarto
parisiense e substituir os pensamentos cínicos depois de ter
conhecido Ordella. Conversou com Karim, ele disselhe que Bea se
dava bem com a equipa a quem dava aulas - algo que Tahír não
duvidou por um momento - e que se estava a adaptar muito bem ao
novo ambiente. Também lhe disse que ela tinha perguntado por ele,
mas que não lhe respondeu porque não lhe correspondia fornecer
essas informações. Tahír pediu a Karim para fazê-la sentir-se em
casa.
—Tahír… volta a mim —murmurou a mulher que estava debaixo
do corpo dele.
Ele sentia que estava a ser infiel a uma mulher que não era a
sua esposa. Que nunca foi e nunca será. Com esse pensamento a
rasgar-lhe o corpo como uma faca, Tahír voltou ao que estava a
fazer com uma força poderosa e implacável. Ouviu a amante a pedir
mais daquela dor agradável. Mais do corpo dele. Ele não sabia em
que momento, a mente tinha sido vencida pela luxúria. Permaneceu
estático. Suado. Chateado com ele mesmo.
—O que se… passa, Tahír?
Ele afastou-se da mulher, apoiando-se nas palmas das mãos
colocadas em cada lado do corpo voluptuoso, olhou para ela,
ofegante. Saiu da cama chateado. Pôs o preservativo vazio no
caixote do lixo. Respirava com dificuldade.
— Veste-te e sai daqui. A noite foi divertida, mas acabou. O meu
motorista leva-te onde quiseres.
—Não… Não entendo —expressou sem se preocupar de estar
nua.
—Quando sair do duche não te quero ver aqui — disse sem
olhar para trás e sem responder, antes de bater com a porta e entrar
na banheira.
Horas mais tarde, Tahír recebeu um telefonema urgente.
Num piscar de olhos, a sua equipa recolheu os pertences e
organizou a logística de segurança. O príncipe deixou o centro de
Paris para ir ao hangar que a família real de Azhat tinha no
aeroporto Charles de Gaulle.
Durante o trajeto manteve a cabeça noutro lugar. Apesar das
suas conhecidas aventuras sexuais e escândalos criados ao longo
da juventude, nesta ocasião Tahír sentiu um grande vazio. Não
podia olhar a Bea nos olhos depois daquela semana em Paris.
Depois de todas as mulheres com quem ele tinha sido fotografado...
Sentia-se sujo e malvado. Acabava de cometer o maior erro da sua
vida.
Depois de todas aquelas mulheres, festas e reuniões
insuportáveis de Estado às quais teve de comparecer, agora só
tinha uma certeza absoluta. Ele estava apaixonado por Beatriz e
não lhe podia contar o que tinha acontecido. Era impossível que ela
descobrisse, e ele sentia-se como um filho da puta por não querer
dizer-lhe. Embora não lhe devesse nada, a consciência gritava-lhe o
contrário.
Apertou os punhos com firmeza. Até o cómodo assento do jet
parecia-lhe pesado. Karim estava em Azhat e viajava com o seu
secretário substituto, Buckers. O homem era mais sério e mais ácido
que a laranja podre, mas muito eficiente. Tahír queria deixar Bea em
boas mãos, e Buckers teria afugentado-a com seus modos ásperos.
Queria ligar ao Karim, mas ele não era o seu pai. O rei acabava
de morrer... Tahír engoliu em seco. Já tinha consumido alguns copos
de licor desde que levantaram voo, mas não pareciam suficientes.
—Tudo bem, Alteza? —perguntou a comissária de bordo quando
voavam sobre a Europa —. Deseja beber mais alguma coisa?
Tahír observou os quatro copos vazios de whisky.
—Não. Por agora és suficiente.
CAPÍTULO 15

—Já sabíamos que o rei estava prestes a morrer. Nas últimas


semanas o seu estado de saúde tinha piorado muitíssimo —
murmurou Muriel com a pena de uma moça que tinha crescido
perante uma imagen de um reinado forte e estável. Beatriz, não
assistiu ao funeral porque não ser nativa do país, naquele momento
tomava o pequeno-almoço—. Foi por isso que o príncipe Bashah
tomou as rédias do reino quando o rei Zahír abdicou a seu favor. E
agora o peso total da coroa está nos ombros dele. Ele terá de ter
uma esposa, porque eles têm de garantir a continuidade da linha
dinástica.
—Nunca conheci o rei, mas pela fama que tem deve ter sido um
grande monarca.
—Sim —baixou os olhos— agora que já terminaram as
homenagens funerárias, a casa real deve retomar o seu ritmo de
trabalho e empreender com brio o caminho deste barco.
Beatriz sorriu. Era a primeira vez que via Muriel tão tagarela. O
afeto do povo pela família real era evidente. Isso comoveu Bea, que
cada vez estava mais consciente da difícil tarefa que os príncipes
tinham para manter o nome da sua família elevado. Cada um à sua
maneira e no seu campo. Bea tinha aprendido um pouco sobre a
história de Azhat. Esperava, algum dia, conhecer os irmãos do Tahír.
Imaginava que fossem tão espetaculares fisicamente como tinha
visto nas fotografias que circulavam pela Internet ou nas belas
pinturas a óleo que decoravam a parede dos antepassados, como
Karim costumava chamar-lhe.
O funeral tinha sido há três dias.
—Obrigada pela companhia. Hoje é o meu dia livre, por isso fico
por minha conta. Não te preocupes comigo, Muriel, vai para casa.
—Só é sexta-feira, menina Fisher.
—Claro que não, também é o teu dia livre, por isso não fiques
aqui por mim. Já me ajudaste muito e já me movimento pelo palácio
mais à vontade. Vou à cidade, a uma galeria.
—De acordo…
Beatriz sabia que Tahír estava no palácio, e pelo que percebeu,
ele ia ficar por algum tempo. Chegou a esta conclusão pelas leituras
entre as linhas que tinha feito das breves conversas com Karim.
Enquanto Muriel arrumava a pequena mesa da suite, Bea aplicou
bálsamo protector nos lábios. O sol lá fora era intenso.
Naquela manhã, levava calças azuis claras, sapatos baixos e
elegantes e uma blusa branca de gola alta sem mangas. Dava-lhe
um aspecto fresco, discreto e elegante. No dia anterior as melhores
flores do jardim tinham sido podadas para um belo buquê que agora
se encontrava no túmulo do rei, e outro, igualmente belo, repousava
no túmulo da rainha. Eles foram enterrados um ao lado do outro.
Ela desceu as escadas de mármore. Os passos fizeram eco na
sala. Às sextas-feiras, o pessoal costumava sair mais cedo do que o
habitual. Nos fins-de-semana, havia menos gente no palácio,
embora isso não significasse pouca eficiência.
Beatriz escolheu um hijab a combinar com as calças. Ela
gostava dessa peça de roupa, porque era fácil de usar e protegia do
sol. Estava ansiosa para visitar a galeria Shimeth, porque a
exposição dos próximos dez dias consistia numa mistura de culturas
do Médio Oriente e da Ásia. Uma combinação interessante.
Bea devia sair por uma porta lateral que dava acesso imediato à
rua, mas devido a reparos internos em alguns setores do palácio,
teve de ir por outro corredor. Contudo, à medida que avançava o
espaço parecia-lhe menos familiar. Nem podia acreditar que estava
perdida, porque pensava que sabia o caminho como a palma da
mão... o certo é que tinha o coração partido e muitas saudades dos
amigos. Ela tinha falado com Dexter e Surka, mas não era a mesma
coisa que vê-los. A relação com Dex estava num ponto delicado, e
ela preferiu dar-lhe algum tempo E agora por onde vou?, pensou ao
observar as grandes salas que se abriam em ambos os lados dos
corredores de mármore.
—Acho que não és a filha perdida do falecido rei Zahír.
Quase saltou de susto. Beatriz virou-se para o estranho atrás
dela. Não usava um uniforme de trabalho, como alguns funcionários,
nem o alfinete que determinava as áreas de especialização de cada
funcionário do palácio e do edifício onde trabalhava.
—Porque o rei não tinha filhas —respondeu Beatriz desconfiada.
O homem que tinha à frente possuía um carisma inato. Com o
cabelo muito loiro e olhos azuis. O maxilar era ligeiramente
quadrado e o porte elegante. Ele era, pelo menos, uma cabeça mais
alto que ela. Vestia como um ocidental, um claro indício e
confirmação de que não pertencia ao grupo de empregados.
—Sou Bassil Ashummi, sou empresário canadiano, e velho
amigo dos Al-Muhabitti. Pensei que fosse uma boa maneira de pôr
conversa, não a queria assustar —disse sorrindo ao mesmo tempo
que dava um aperto de mão à Bea. Ela olhou para ele desconfiada,
mas aceitou.
—Bassil —assintiu, disse amavelmente— eu sou Beatriz Fisher
—disse com cautela. Que o homem possuía encanto ninguém podia
negar, mas ela sentia uma leve agitação na barriga que não tinha
nada a ver com emoção ou ilusão. Talvez se devesse à surpresa de
ser interrompida por alguém desconhecido, assim de repente.
—O que faz uma australiana neste país? —perguntou ao mesmo
tempo que fazia um gesto com a mão para que ela caminhasse ao
seu lado—. Eu também me costumo perder por esta imensidão,
principalmente agora que estão a fazer remodelações, e por não vir
aqui muitas vezes —manteve o sorriso— acabei agora a reunião
com Tahír.
«Então é amigo de Tahír», pensou Bea. A ideia do príncipe
dedicar tempo aos outros, e nem um segundo para se interessar por
ela, caiu-lhe como um balde de água fria. Parecia que era assim que
as coisas iam ser a partir de agora. Ela ainda precisava de entender
a premonição, e não pretendia sair de lá sem antes resolver o
assunto. Tivesse o coração triste ou não.
—Como sabe de onde sou?
—O meu pai era diplomata e eu sou muito bom a reconhecer
sotaques. Sou um homem de negócios, para o caso de estar a
pensar. E como está sozinha por aqui, e não tem laços com a
família real, então acho que não há problema se eu me atrever a
convidá-la para tomar algo hoje à noite…
—Ela trabalha aqui, Bassil —disse Tahír avançando na direção
deles.
Ele ouviu vozes perto da área onde Karim costumava trabalhar e
desviou-se do seu rumo habitual, o riad, para ver o que se passava,
já que a essa hora o seu conselheiro normalmente estava fora do
palácio a coordenar a agenda com entidades externas. Como não
era habitual que alguém estivesse a espreitar por ali, ele decidiu
saber quem era para exigir uma explicação. Não esperou encontrar
o velho rival de tempos de adolescente louco com a mulher que
levava impregnada nas veias. Vê-la com o Bassil, e este a exibir as
suas artes de Don Juan, fê-lo sobressair.
—E porque me convidas poucas vezes a vir ao teu palácio, Al-
Muhabitti —disse Bassil calmamente e muito consciente que o
amigo tinha denunciado o interesse ou relação, isso ia descobrir,
com a beleza que tinha em frente dele. Devido à tensão no ar,
achava que Beatriz não estava particularmente feliz em ver Tahír.
Isto estava a começar a ser interessante. Como nos velhos tempos,
quando não só competia com o príncipe como também gostava de
provocá-lo. Os anos tinham pasado, mas o espírito indomável que
sempre os enfrentou continuava latente.
—Tal como eu andas sempre de viagem por algum sítio do
mundo, Bassil —expressou Tahír encolhendo os ombros. Não
gostava de vê-lo tão perto de Beatriz—. Por isso, na minha agenda
cada vez tenho menos tempo para encontros sociais.
—Ninguém duvida. Será um bom negócio.
—Imagino que sim. Temos de ver os termos e condições.
Partilhamos a área mineira com Ushuath, por isso também depende
das condições que tenha o rei desse país. De qualquer forma,
encontramo-nos amanhã às sete da manhã no hangar. Vamos dar
uma volta pelas minas. O meu irmão Amir vem connosco, como
falámos em Montecarlo. —Olhou a Beatriz nos olhos pela primeira
vez—: Menina Fisher, também está convidada! O seu trabalho é
observar e dar-me a sua opinião no final do dia.
Beatriz afastou a atenção do homem loiro e fixou-se em Tahír.
Ela olhou para ele, absorvendo cada um dos seus traços. Não
tinha notado a presença dele, porque estava a tentar entender a
corrente energética contraditória que o Bassil emanava.
—Claro —respondeu ela. Ia tratá-la como se não a conhecesse?
A ausência do Tahír doia-lhe, mas ainda lhe doia mais a estúpida
desconfiança nela e na mãe dela. Mesmo com esse antecedente, o
corpo dela reagiu imediatamente ao dele. Ela sentiu seus seios
pesados, seus mamilos eretos contra o tecido do sutiã, e um leve
estremecimento tomou conta de suas partes mais femininas.
Sentia ter voltado de uma longa caminhada por terras áridas e
depois descobrir que um poço de água doce estava à sua
disposição, mas não conseguia chegar a ele para matar a sede. Era
assim que se sentia em relação a Tahír. Ele era capaz de acalmar o
desejo que tinha no coração, se quisesse, e também de apagar o
ardor que o corpo não conseguia fazer frente.
—Tem dificuldades em movimentar-se dentro do palácio? —
perguntou sarcástico Tahír a Bea—. Amanhã é sábado, tem de
trabalhar, menina Fisher. Eu pago-lhe um extra, claro. Às seis e
meia da manhã deve encontrar-se com o Karim na entrada.
Ele sabia que ela tinha uma péssima orientação espacial.
Embora noutras circunstâncias se tivessem rido sobre isso, agora
parecia apropriado usá-lo para afastar a culpa de ter estado com
tantas mulheres quando nenhuma, jamais, poderia substituir o que
ele e Bea tinham partilhado. Ele era um idiota arrogante e egoísta...
E em vez de tentar resolver a situação, estava a piorá-la. Nunca
tinha passado por esta situação, porque nenhuma mulher lhe
importou o suficiente para se preocupar ou se sentir culpada com
respeito a ela ou pelos seus sentimentos.
Beatriz sorriu. Um sorriso cheio de desdém. Os dois podiam
jogar aquele jogo, pensou ela.
—Não há problema. E sobre a maneira de sair do palácio, Bassil
já me disse onde devo ir, uma vez que já terminou o meu dia de
trabalho. Mas obrigado, alteza —comentou com tom de gozo antes
de dar meia volta e afastar-se dos dois amigos.
***
Sábado amanheceu ensolarado. Como era normal no deserto.
As minas de Vahymad ficavam a 70 km de distância, fazendo
fronteira com a parte norte de Ushuat, um país cujo rei despótico era
Hassam Al-Pakrith. O monarca era ex-cunhado do agora Rei
Bashah Al-Muhabitti. A relação entre as duas casas reais era tensa.
Apesar da intenção de Bassil fosse assinar um contrato que
beneficiasse as suas empresas, não podia ignorar os interesses
nacionais dos dois países que partilham uma percentagem da
propriedade das minas virgens. Sabia que precisava de um acordo
justo se queria alcançar o seu objetivo.
Das conversas com seu irmão Amir, Tahír ficou um pouco
preocupado porque, embora o negócio tenha tido um sucesso com
Bassil, ainda havia uma relação frágil com um povo nómada e
milenar que fazia fronteira com Azhat a oeste, Phautaja. Esse país
de oito milhões de pessoas era rico em agricultura e tinha produtos
que começavam a ser demasiado caros para serem importados
para Azhat, aumentando assim o valor da cesta básica familiar e ao
mesmo tempo gerando dificuldades na economia das famílias,
especialmente daquelas com recursos limitados.
Embora Tahír não fosse responsável por esses assuntos, mas
sim Amir, não deixava de ser uma preocupação para os príncipes
que alguns desses produtos não pudessem crescer em terra
azhana. O rei Bashah estava muito preocupado com a situação.
"Uma coisa de cada vez" disse Tahír a si mesmo. Ele ia tentar
ajudar, embora não fosse um dever seu. O resto já ficava a cargo do
irmão mais novo.
—Vá com cuidado —expressou o guia à Beatriz.
Os arredores da mina eram muito rochosos e algumas áreas
eram íngremes. A equipa que supervisava a visita era composta por
dez pessoas, para além do grupo de segurança do príncipe. Houve
uma instrução técnica sobre perfuração, profundidade, tempo de
extração, etc., dada por Bassil como presidente da Lammond
Monde, a divisão mineira do seu vasto império empresarial que
abriu apenas há uns meses. Estava acompanhado por três
engenheiros de solos, e vários especialistas em minerio, proteção e
gestão de áreas mineiras. Tahír e Amir ouviam com atenção.
Ninguém se surpreendeu que a comitiva do rei de Ushuat fosse
duas vezes maior do que a de Azhat. Hassam Al-Pakrith tinha a
reputação de ser um homem ambicioso com um desejo de
superação. Embora não o suficiente para assistir pessoalmente à
visita de inspeção. Ele tinha enviado um dos seus representantes.
Duas horas depois, Karim avisou a Beatriz que iam começar a
retirar-se. O conselheiro de Tahír tinha-se tornado num guia para
ela, além da Muriel, em questões de como se comportar se
houvesse alguma interação com certos membros da família real. No
caso desta visita, ela não foi autorizada a dar a sua opinião sobre
nenhum assunto, a menos que o príncipe Tahír ou o príncipe Amir
lhe pedissem para o fazer. E, claro, Beatriz pensou que afinal não
tinha conhecimentos sobre o assunto para dar opinião.
Bea começou a descer a ladeira quando escorregou e perdeu o
equilíbrio, quase caindo de cara se não fosse o Bassil e os seus
reflexos rápidos.
—Apanhei-te — disse, segurando-a pela cintura, enquanto ela,
num ato reflexivo apoiou as mãos nos ombros masculinos —. Esta
zona é um pouco mais rochosa do que as anteriores.
—Obrigada — murmurou a corar, porque tinha chamado a
atenção de todos os homens presentes. Ela era a única mulher.
Mas Bassil não a largou, levantou-a ao colo, como se ela tivesse
magoado o pé ou a perna, e desceu com ela até chão firme, longe
da grande altura que tinha Vahymad.
—Não devias ter feito isso. Deste nas vistas —disse ela a
fulminar o Bassil com os olho.
Indolente, o bonitão canadiano encolheu os ombros.
Beatriz poderia dizer que o olhar de Tahír, que estava atrás com
o resto dos membros das empresas e países, lhe estava a perfurar
a parte de trás do pescoço. Pelo menos, todos pareciam pensar que
ela estava ferida. Claro, todos, exceto o príncipe de olhos verdes.
Agora Bea sabia perfeitamente como tinha sido o acidente de Tahír,
e também a relação tensa e competitiva que existia entre aqueles
dois Casanovas e homens de negócios. Ela viu.
Os exercícios de relaxamento que fazia todas as manhãs
começavam a devolver-lhe a capacidade de "ver". Pôde ver o
acidente de Tahír naquela corrida de carros anos antes. Só
esperava que depois fosse capaz de dissecar em fragmentos, e
entender a premonição em que tem as mãos manchadas de sangue
e um homem está deitado no chão numa poça de sangue.
—Deves-me um jantar, e acho que ter-te salvo a vida é razão
suficiente para ser merecedor de um «sim» —sussurrou—. Se
negares, é provável que te ponha ao colo novamente e te leve até
ao carro.
—De acordo —disse contrariada.
Tahír não perdeu de vista o que se estava a passar. Ele não
tinha outra opção que não fosse fingir que, tal como os outros
imbecis pensavam, Beatriz tinha magoado o pé. Ele não conhecia
nenhuma mulher mais teimosa do que ela, por isso era pouco
improvável que tivesse uma lesão grave para que o burro e
aproveitador de Bassil a levasse ao colo. Tahír sentiu uma vontade
incontrolável de agarrá-lo pelo pescoço e dar-lhe um murro por
ousar tocá-la.
—Podias parar de praguejar em voz baixa, Tahír? —perguntou o
príncipe Amir, dando uma cotovelada dissimulada ao irmão.
Lideravam o grupo, que por razões de hierarquia ia atrás deles, por
isso podiam falar entre eles dessa maneira.
—Não é assunto teu.
—Claro, idiota, e controla-te. Toda a gente se vai dar conta que
só te falta babar por essa mulher. É praticamente uma visita de
Estado, não um desfile de moda. A mulher está completamente
vestida e tu pareces estar a ver uma Vénus nua!
Tahír sussurou um palavrão.
—O que é que tu sabes? Negocia bem esta merda com Bassil.
Ele é muito astuto.
—Isso já notei, porque se não fosse não teria descuberto o teu
calcanhar de Aquiles para chatear-te e fazer com que não te
concentres.
—Está tudo controlado. Pelo menos os de Ushuat estão de
acordo com a parte que lhe calha —disse Tahír ao entrar no carro
com o irmão. Não sem antes dizer adeus a todos os presentes com
um firme aperto de mão. Bassil estava noutro carro, assim como
Beatriz, que viajava sob a proteção de Karim. De facto, esta tinha
sido uma excelente ideia sua. O sangue ainda lhe fervia pela
ausadia do amigo ao tocá-la.
Amir era conhecido como um príncipe tranquilo e equânime.
Raramente perdia a compostura, e tinha um encanto inato para lidar
com todos. Por isso, era tão bom nos negócios.
—Bashah tem de dar OK. E falta a junta final com os advogados
para a assinatura do convénio.
—Primeiro preciso da opinião de outra pessoa… Não te
precipites, Amir. — O Tahír queria saber se a Beatriz tinha
conseguido, de alguma maneira, prever o que os outros
empresários tinham pensado. Não dizia ser vidente? O trabalho
dela, além dos jardins, era dar-lhe provas para fechar o negócio que
fosse mais benéfico para Azhat. E se conseguisse, ele estaria
disposto a tentar acreditar que ela era capaz de prever o futuro e ler
o pensamento. Embora, o último não se pudesse aplicar a ele,
porque se fosse possível e ela soubesse o que ele tinha feito em
Paris, tê-lo-ia mandado para o diabo.
—Quem leva os negócios sou eu. E independentemente de onde
Bashah tenha a cabeça, vai ter de participar. Estamos a falar dos
recursos naturais virgens do país, e como rei ele deve dar uma
opinião, embora eu tenha o poder e a autoridade para decidir por
mim mesmo.
—O nosso irmão já tem problemas suficientes com a paternidade
recém descoberta —disse Tahír—. O nosso sobrinho Samir é um
miúdo muito esperto. Sinto pena da Adara... Ele não esteve bem
tratando-a como tratou.
—Não gosto de me meter em assuntos de casais. Allá Bashah e
Adara. O meu foco não são as relações sentimentais —disse gozão
—, a minha prioridade são os negócios. Ponto final.
—Pelo menos os teus negócios têm bons resultados, e não te
sequestram graças às minhas habilidades para criar protocolos de
segurança infalíveis —expressou Tahír rindo-se.
—Tenho de atender esta chamada —murmurou Amir, sem olhar
para o irmão, antes de responder ao quarto toque do telemóvel.
Enquanto voltavam ao palácio, Tahír pensou que era um maldito
egoísta. Ele não merecia Beatriz, muito menos estar zangado por
alguém ter olhado para ela com desejo ou tocado nela. Mesmo
sabendo disso, ele queria deixar claro que ninguém atravessava o
seu território. Onde estava a modernidade quando o seu
pensamento parecia atacá-lo impiedosamente com este tipo de
disparates típicos do Neanderthal? perguntava-se com raiva.
***
Beatriz não gostava de ter de se submeter a pressões externas
para tomar uma decisão. No entanto, foi isso que aconteceu com
Bassil. Não tinha nada a ver com o facto de ele ser um homem
muito bonito, como uma fantasia feminina de um romance de época,
ou de ter uma conta bancária que pudesse comprar um país inteiro
ou pagar a dívida externa de algum país da América Central. Ela
não queria saber de dinheiro, e talvez já fosse hora de ele começar
a entender isso —Estás muito calada. Imagino que tenhas muitas
perguntas na cabeça.
—Não, Bassil, não tenho perguntas. Eu só não gosto de ser
chantageada. Agradeço-te que me tenhas ajudado a não cair nos
arredores da mina, mas isso não te dava o direito de me colocar
numa situação embaraçosa à frente de todos aqueles homens. Em
particular…
— Um homem tem de alcançar o seu mais nobre propósito de
jantar com uma bela mulher a qualquer preço —respondeu
interrompendo-a com um sorriso de dentes perfeitos— e já que
mencionas, qual é o tipo de relação que tens com Tahír?
O empregado de mesa serviu a sobremesa, o que permitiu uma
trégua de vários segundos, e Beatriz conseguiu acalmar o desejo de
lhe dizer que não era da sua conta. Uma voz sussurante disselhe
que a última coisa que devia fazer era provocar um homem que
aceitasse qualquer comentário dela como um desafio. Nas minas de
Vahymad, ela notou que entre Tahír e Bassil havia um espírito
altamente competitivo. Com a visão que teve, ratificou-a. Quando
via o passado, não lhe doía a cabeça nem tinha vontade de se
deitar para descansar. Por outro lado, quando as premonições
tinham a ver com o futuro, a situação era diferente. E era
precisamente este tipo de premonições que Tahír esperava dela
para o seu negócio, mas também eram o tipo de imagens que a sua
cabeça não queria trazer à tona.
Durante a tarde, Bea conseguiu evitar a possibilidade de
encontrar-se com Tahír. E só por isso, agora podia desfrutar de um
jantar com o Bassil. Se se tivesse encontrado com o príncipe, o
mais provável é que ele a tivesse submetido a um interrogatório
tentando forçar uma informação que, pelo menos para ela, fluía
melhor num estado de relaxamento do que pressionada ou inquieta.
Mas sabia que mais cedo ou mais tarde, o príncipe ia pedir-lhe uma
resposta. Porque simplesmente não se punha a investigar sobre a
clarividência ou premonição ou videntes, e assim deixava de
considerar isso como uma experiência científica estranha?
Detestava sentir-se assim.
—Estou a trabalhar num projeto com as pessoas do palácio. Sou
especialista em decoração de jardins. E sim, eu também tenho um
QI alto que pode executar operações matemáticas sem problemas.
Caso se esteja a perguntar, eu não sou uma mulher para fazer
imagem, nem que vai atrás do dinheiro ou dos contactos de algum
ser humano do sexo oposto.
Bassil franziu o sobrolho. Provou um pouco da sobremesa.
—É assim tão profundo o que têm?
Beatriz fulminou-o com o olhar.
—Escuta, Bassil, não sei ao que pensas que estás a jogar, mas
entre o príncipe e eu não há nada.
—Só te vou dar um conselho, porque és uma mulher linda.
—As mulheres lindas também têm capacidade para pensar por
elas mesmas. Obrigada pelo conselho, mas não preciso.
—Agora já entendo o que é que o Tahír vê em ti. Beleza e
desafio —disse inclinando a cabeça para um lado—. Tem cuidado
com ele.
—Podias levar-me de volta ao palácio, por favor? —pediu—.
Aborrecem-me as conversas paternalistas com um homem que
umas horas antes queria ter uma relação com as minhas
cuequinhas e não com o meu cérebro.
Bassil deu uma gargalhada.
—Tahír não tem hipótese de se livrar de nenhum feitiço que, sem
pensar, tenhas lançado sobre ele. És requintada, e tenho a certeza
que única. E quanto ao teu pedido, vamos voltar para o palácio real
agora mesmo.
Ela não confiava no tom da voz daquele homem. Ele estava a
tramar alguma coisa, mas não sabia o que era exatamente. A ideia
de que pudesse ser perigoso para Tahír vinha e volta-lhe sempre à
mente por mais que tentasse convencer-se do contrário, pois as
correntes de energia emitidas pelo campo áurico de Bassil eram
contraditórias. Teria gostado de ter a mãe por ali. Muito
provavelmente, Ordella já teria descoberto o que era aquilo tudo.
Quando saíram do restaurante, localizado numa zona bastante
tradicional da cidade, ele perguntou-lhe se estaria interessada em
parar nas pequenas bancas de doces típicos do campo. Ela
respondeu que seria uma boa oportunidade para andar. E era
verdade. Antes de voltar para o palácio precisava de apanhar ar.
Não era que não simpatizasse com Bassil, mas sentia que as suas
contradições a estavam a deixar esgotada. O engraçado de tudo
isto era que ele não fazia ideia porque é que ela às vezes ficava tão
à defensiva. Era curioso como a energia de uma pessoa podia
influenciar outra sem sequer ter consciência disso. Tem de se ser
muito sensível para reparar... ou ter um dom.
—É uma zona segura — disse Bassil guiando-a por um
pequeno beco bem iluminado. Era vibrante, cheio de cores e
aromas diversos.
—Espera — pediu a Beatriz pondo a mão no braço de Bassil.
Ela olhava para uma mulher que lhe parecia familiar. Franziu o
sobrolho. De onde a conhecia? Do palácio, claro!
—O que se passa, Bea? — perguntou ele, tentando ver entre
tantas pessoas o que lhe chamava à atenção.
—Acho que conheço esta moça —respondeu.
Avançou com um passo decidido até uma modesta banca onde
se vendiam castanhas. O cheiro era delicioso. Além disso, havia
uma espécie de bebida cor-de-rosa de fruta que parecia apetitosa.
Não queria parecer uma lunática, mas precisava de se livrar da
dúvida. Um palpite incentivava-a, e desde que tinha pisado Azhat
estava decidida a seguir a intuição a todo a custa.
Vestida com um hijab verde claro e um vestido simples que
cobria os dedos dos pés, a mulher que Beatriz tinha visto reparou
nela desde a caixa da pequena banca. Com pele cor de azeitona e
traços delicados, a mulher chamava à atenção. Amavelmente, Bea
sorriu.
—Desculpe, acho que a conheço de algum sítio —disse Bea—.
Eu trabalho, há pouco mais de uma semana, no palácio real. Sou
um pouco curiosa, por isso…
Bassil olhava para uma e para outra. Já sabia a identidade da
mulher que Beatriz tinha visto à distância. Permaneceu em silêncio.
—Chamo-me Freya, e trabalho no edifício ao lado do palácio…
Talvez me tenha visto por ali.
Ambas permaneceram em silêncio. Cada uma consciente da
outra. Cada uma a juntar cabos soltos. A ex-amante de Tahír sorriu.
Bea notou que era muito bonita, não era difícil de imaginar porque o
príncipe se tinha apaixonado por ela. Claro que agora estava mais
madura, mas em jovem não devia ter sido menos impressionante.
Ela sentiu vontade de voltar atrás no tempo. Era a última vez que se
deixava guiar pela sua própria curiosidade, pensou ela, tentando
conter os ciúmes que sentia.
—Queria uma saquinho de castanhas, por favor? —pediu
Beatriz.
—Aqui tem. Talvez, noutra ocasião, nos encontremos no palácio.
—Talvez —respondeu Bea com um sorriso estudado.
Assim que lhe pagou, começaram a afastar-se do posto que a
Freya tinha aos fins de semana. Para a ex-amante de Tahír era
importante poupar dinheiro e não se preocupava pela quantidade de
dias que tivesse de trabalhar. Poupar era essencial, porque quando
encontrasse a irmã poderia sustentá-la de forma humilde, mas
decente.
Beatriz caminhou em silêncio ao lado de Bassil. Este não disse
nada até entrarem no espetacular carro branco. Um BMW último
modelo.
—Sabes quem ela é, não sabes? —perguntou ao ligar o ar
condicionado—. Caso contrário não terias essa expressão no rosto.
Beatriz virou a cabeça para olhar para ele.
—Disse que se chamava Freya…
—Ela foi amante do Tahír durante várias semanas. Embora não
a tenha conhecido, o caso deles era discreto mas conhecido nos
altos círculos sociais. Ninguém sabe realmente como ou porque
acabou. Surpreende-me saber que trabalha no palácio. Tahír
sempre foi um túmulo em relação à sua vida pessoal, e quanto ao
seu conselheiro, Karim, mesmo torturando-o, acho que não
conseguiria tirar nenhuma informação dele —disse conduzindo de
bom humor.
—Não me interessa a vida privada do príncipe.
—Pela forma como ele olha para ti, acho que ele tem uma
opinião diferente.
—Foi por isso que me convidaste para jantar…? Queres ter um
desses estúpidos encontros rápidos entre homens para ver quem
ganha o imaginário jogo de delimitação de poderes e capacidades?
Bassil deu uma franca gargalhada.
—És refrescante. Dizes o que pensas. É uma pena que Al-
Muhabitti seja tão estúpido e pense noutras mulheres.
—O que queres dizer? Nós não temos nada…
—Tiveram algo, caso contrário não te sentirias exposta quando
soubeste a identidade dessa mulher que vende castanhas.
Beatriz suspirou.
—Quando se realiza a reunião em Ushuat para assinar o acordo
mineiro? A menos, claro, que aches que não se pode concretizar
esse acordo.
—Tens de perguntar a Tahír. A propósito, o que fazias ali esta
manhã connosco? Uma engenheira agrónoma não pinta muito numa
região mineira…
—Acho que já conversámos muito hoje, Bassil. Por favor, para a
próxima vez tenta arranjar um encontro como toda a gente faz: sem
chantagens.
—Complicado. De qualquer forma, linda Bea, desejo-te muita
sorte com Tahír.
—Porque dizes isso com esse tom como te estivesse resignada
ao fracasso?
—Talvez penses que vai ser diferente, mas não vai…
—Eu pensava que estes assuntos intrigantes eram para velhos
coscuvilheiros, não para um homem que é filho de diplomatas e que
também detém as rédeas de um império multimilionário —espetou.
Bassil encolheu os ombros e estacionou fora das instalações do
palácio, não sem primeiro passar pelos rigorosos filtros de
segurança. Ele saiu do carro e acompanhou a Beatriz até à entrada.
—Foi um prazer jantar contigo —disse Bassil—. Espero ver-te
em breve.
— Talvez, mas não para sairmos juntos, isso de certeza. És
simpático, mas sinto que estás a tramar alguma coisa, e isso não
me agrada. Acho que somos adultos para jogos parvos. Não achas?
—Se gostas de ser tão direta, então que saibas que eu te desejo
e quero ir para a cama contigo, mas eu tenho meu código de honra.
Embora goste de complicar a vida ao Tahír, os meus negócios são
uma prioridade para expansão corporativa. Por isso, se continuar a
esforçar-me contigo se calhar posso sair mal parado. És demasiado
encantadora para não cair na tua rede. O jogo não consiste em fingir
que gosto de ti, porque eu acho-te maravilhosa. O meu jogo é irritar
o Tahír, mas já te disse, priorizo o meu negócio.
Desta vez foi Beatriz quem se riu.
—Que cinismo. Agora sinto-me usada —expressou cruzando os
braços.
—Impossível. Acho que não és o tipo de mulher que sente isso.
Boa noite, menina Fisher —disse antes de se inclinar e beijá-la na
face. Depois murmurou demoradamente ao ouvido de Beatriz—: E
por falar em coscuvilheiros, deixa-me dizer-te que há um com título
de príncipe que neste momento nos está a espiar.
Beatriz riu-se novamente e negou com a cabeça.
***
A Freya fechou o seu negócio de fim-de-semana por volta das
23:00h. A polícia deixava de vigiar a área a partir daquela hora,
então, como estava sozinha, preferia evitar problemas. A cidade não
era perigosa, mas era melhor estar alerta.
Enquanto recolhia os seus pertences e os carregava num carro
velho, que um vizinho lhe emprestava aos fins-de-semana para
levar o que fazia falta para o negócio das castanhas, Freya pensou
que tinha acabado de encontrar uma maneira de Tahír a ouvir.
Perante a ideia sorriu.
Apesar da naturalidade com que se tratou a chegada de Beatriz
Fisher ao palácio real, Freya conhecia Tahír e sabia que ele jamais
levaria uma mulher para o palácio. Isso significava que a mulher
devia de ser importante de uma forma muito pessoal. Não tinha
nada contra a australiana. Contudo, priorizava os seus sentimentos,
não os dos outros. O importante era encontrar a irmã. Ela não
queria saber se no meio do plano alguém saísse a perder.
«Tahír ia ouvi-la. Oh se ia!»
—Pronta? —perguntou um dos homens que costumava ajudá-la
a recolher os elementos em que consistiam o negócio dela.
A Freya pôs os pensamentos de lado e sorriu para o homenzinho
com a barba branca e os olhos cinzentos salientes. Ele era um
vigarista de primeira, vendia falsificações de alta-costura. De facto,
boas cópias. Não vendia os produtos à vista de todos, como era o
caso dos pequenos negócios ambulantes de alimentos. Ele vendia
numa rua pequena um pouco mais longe, onde conheceu outros
vendedores de falsificações de vários produtos. Todos ganhavam a
vida como podiam. Ela não era ninguém para julgar.
—Claro que sim. Hoje és tu quem põe preço à gasolina.
—Oh, menina! De acordo. Amanhã vai ser um domingo agitado,
porque também vêm os vendedores de cerâmica da China.
—É verdade. Ainda bem que eu vendo castanhas. Ali os que têm
outro tipo de mercadoria —disse a gozar enquanto entravam no
carro com caminho a uma das zonas menos luxuosas de Tobrath.
CAPÍTULO 16

Quando viu a Beatriz subir as escadas, Tahír teve dúvidas se


aproximar-se ou não dela. Sentia-se como um ladrão na sua própria
casa. O que estava a fazer espiando como um idiota, enquanto o
Bassil falava ao ouvido dela?
Ela foi para a ala onde estava a sala de costura que tinha sido da
sua mãe, a Rainha Dhalilah. Ele viu-a parar.
—Quem está aí? —perguntou Beatriz baixinho.
Aquela área era privada. Não havia ninguém por perto. Os
seguranças mudavam de lugar e muitas vezes deixaram o corredor
desolado, mas não desprotegido. Ela sabia que um dos guardas
estava parado no final do corredor, tinha-o cumprimentado com um
aceno de mão quando chegou.
Abriu a porta, mas a voz de Tahír deteve-a em seco.
—Suponho que esta noite te divertiste muito.
Ela afastou lentamente a mão da maçaneta da porta e virou-se.
—Está a falar comigo, alteza? —perguntou com altivez. Não lhe
toleraria que falasse com ela como se fosse um dos seus lacaios. E
que depois de tanto tempo, quando finalmente se dignava a falar
com ela, a primeira coisa que lhe saísse da boca fosse reprovações,
não ia deixar passar por alto.
Ele aproximou-se em dois passos rápidos. Apenas o suficiente
para ela inalar o aroma masculino que conhecia tão bem, misturado
com um delicioso perfume que devia custar centenas de dólares.
—Precisamente.
— Ah, nesse caso, supõe bem. Diverti-me muito com o Bassil.
Um homem encantador e conhecedor do mundo. —Agarrou-a pelo
braço—. Perdeste o direito de tocar-me —disse ao afastar-se dele—
no preciso momento em que decidiste tratar-me como se fosse
ninguém no teu palácio; quando decidiste insultar-me a mim e à
minha mãe. Tahír, faz-nos um favor a ambas, esquece que existo tal
como tens feito com bastante eficiência até agora.
—Beijou-te — respondeu-lhe, com os olhos fixos nela,
absorvendo a sua essência, os traços de seu rosto, a raiva que lhe
brilhava nos olhos.
—Inacreditável! — exclamou Beatriz levantando os braços em
direção ao céu, como se algum membro de outra dimensão
estivesse a testemunhar a situação —. Adeus, Tahír…
—Beatriz —Chamou-a com firmeza na voz. Quando ela olhou
para ele acrescentou—: Eu não te mereço, mas a ideia de te ver
com outro homem dá cabo de mim.
A ferida devido à indiferença estava aberta, pensou Bea, e essas
palavras acariciaram-lhe o ego, mas não compensaram os danos da
ausência e da desconfiança. Felizmente, esteve ocupada, nem teve
tempo para navegar na Internet ou ver televisão, preferindo ficar
longe de qualquer coisa que a pudesse tentar a saber mais sobre
Tahír.
—Estou há mais de uma semana neste palácio. Graças a Karim
e Muriel, a menina que me ajuda e me faz companhia, não me senti
perdida ou sozinha numa terra com uma cultura e um modo de vida
diferente ao que estou acostumada. Da tua parte, porém, nenhuma
mensagem, nenhuma palavra durante todo este tempo. Nem tiveste
a cortesia de me mostrar o teu palácio quando cheguei. Esperas
que eu fique comovida com as tuas palavras? Esperas que eu fique
impressionada com as tuas palavras? Tahír, eu sei que não me
mereces... Não tens de explicar nada.
—Bea… Desculpa. —As últimas palavras foram tão suaves que
ela pensou ter imaginado—. Fui um estúpido —esticou a mão e
acariciou-lhe a face—. Comportei-me como um imbecil — corrigiu.
Ela não se afastou, mas pelo olhar não dava para entender que
a tinha convencido.
—Porquê?
Ele baixou o olhar.
—Fiz coisas das quais não estou orgulhoso. Não tem nada a ver
contigo.
—Que tal o pequeno pormenor de me considerares uma caça-
fortunas e à minha mãe uma maluca pelo que te disse sobre o teu
passado?
Tahír ficou em silêncio durante um bocado.
—Já imaginava —murmurou Bea afastando-se.
—Sou um príncipe, Beatriz. Antes disso, também treinei como
soldado nas fileiras do meu país. Ter em conta os sentimentos dos
outros foi uma habilidade que não me ensinaram e que não
desenvolvi, mas contigo é diferente.
— Ainda achas que a Ordella e eu estamos em pulgas para
conseguir algo de ti. Estás cego, príncipe do deserto.
Ele segurou-a pelos braços, aproximando-a do seu peito.
—Não, não estou cego, Beatriz. Talvez não me perdoes pelas
minhas necessidades ou teimosia, mas se eu tiver de juntar à minha
lista de pecados estar pendente de ti, penso fazê-lo. — Isso foi a
última coisa que lhe saiu da boca antes de baixar a cabeça e beijá-
la.
Finalmente, o desejo delirante de saboreá-la acabou. Perdeu-se
na doçura da sua boca, nos seus gemidos quando o recebeu e
conseguiu enfiar a língua dentro dela para saboreá-la como a mais
requintada das iguarias. Desde o primeiro momento em que lhe
tocou, o mundo parou de girar numa direção monótona. Ele gostava
de saber que havia algo intocável nela, uma parte muito inocente,
que lhe era incrivelmente atraente Beatriz sentia a cabeça às voltas,
estava intoxicada pelo sabor dos lábios de Tahír. E por mais que
tentasse afastar-se dele, uma vozinha gritava: "Aproveita mais um
bocadinho. Só mais um bocadinho." Ela baixou as mãos, deliciando-
se com o contato dos músculos, gemendo em voz alta, perdida
naquele beijo. Sentiu como Tahír lhe acariciava ferozmente o peito,
beliscava os mamilos com força e contorceu-se.
—Odeio-te… — murmurou ela. Numa tentativa patética de
afastá-lo com as palavras, quando era evidente que ele estava tão
perdido naquele beijo quanto ela.
Naquele momento reviveu a cena na sala de estar. Os homens
reunidos. Momentos confusos. Uma dor no peito e uma poça de
sangue.
Tomando um sopro de ar, ela finalmente afastou-se dele.
—Bea…
—Não. Não, Tahír. Tenho de decifrar isto… —disse para si
mesma—. Tu não acreditas em mim. E mesmo que o meu corpo
traiçoeiro tente ficar fora de controlo com os teus beijos, o meu
cérebro precisa de se organizar. Boa noite.
—Espera —disse agarrando-lhe na mão—. Espera —insistiu
com suavidade.
—O quê?
—Estive em Paris —começou a dizer imediatamente como se as
cordas vocais tivessem vontade própria— a tratar dos negócios da
minha família.
—Tahír…
—Não estou orgulhoso de muitas coisas que aconteceram.
—A sério, eu não quero saber o que aconteceu em Paris. Só
quero dormir um pouco. Foi um dia complicado. Não piores as
coisas.
—Podias ouvir-me?
—Agora não sou capaz de discernir uma coisa da outra.
Falamos amanhã de manhã, depois de organizar as aulas de moças
do harém sobre como utilizar as ferramentas de jardinagem
caseiras. Está bem?
Não ia mencionar que tinha conhecido o seu amor de
adolescente numa rua a vender castanhas, e que Bassil era
testemunha disso.
Tahír olhou para ela com atenção. Vê-la com o antigo rival de
corridas e festas femininas despertou nele uma consciência
adormecida de como necessitava a Beatriz e de se desculpar.
Parecia que tinha nascido para pedir desculpas àquela mulher. Não
sabia como contar-lhe o que tinha acontecido em Paris, mas fazia
um escândalo por causa de um beijo que Bassil lhe deu na cara. Se
ele a quisesse ter de volta, voltar a vê-la sorrir, teria de abrir-lhe o
coração. Um coração que tinha sucumbido ao degelo diante do calor
e da inocência de Bea.
Nem todas as missões com o exército, nem todos os testes de
segurança a que tinham submetido o seu país inúmeras vezes,
eram tão complexos como a ideia da Beatriz não querer nunca mais
ouvir falar dele. Aquele beijo que lhe tinha acabado de roubar,
graças à sua resposta entusiasta, trouxe-lhe esperança. Ele não
podia estragar tudo com uma mentira, e por isso sentiu-se obrigado
a confessar-lhe o que fez durante a semana em Paris. Ele, no lugar
dela, não a perdoaria, porque ele era um estúpido egoísta…
Não queria saber como é que ela o tinha encontrado em Port
Douglas ou na selva mais longínqua. Nem se importava se ela tinha
planeado tudo com a mãe ou não. O único que lhe interessava
agora era que Beatriz Fisher tinha conseguido quebrar o gelo que
continha as suas emoções, e o que ele mais queria era que ela se
abrisse para ele e lhe dissesse que o amava. Era-lhe indiferente se
via o futuro ou não. Ele só a queria a ela. E se o destino já estivesse
escrito? Talvez. Em qualquer caso, ele pretendia escrever o seu
com aquela bela mulher de espírito independente.
—OK… Então amanhã falamos.
A resposta dela foi fechar-lhe a porta na cara. Tahír sabia que o
merecia. Pelo menos, havia uma possibilidade de se redimir. Ele ia
tentar. Na altura certa, ia confessar-lhe que estava apaixonado por
ela. "Sim", pensou com otimismo. Era o que ia fazer.
***
—Desculpe, menina Wahmuh — disse Karim com o seu tom
paciente e próprio de um diplomático palaciano —, o príncipe não
pode recebê-la. Ele está muito ocupado.
— Karim, esta é a última oportunidade. A menos que queira que
o seu amado príncipe perca a única razão que parece causar-lhe
qualquer reação alegre que não seja o exército ou protocolos de
segurança enfadonhos —expressou Freya abanando um envelope
diante do secretário de Tahír.
Freya tinha decidido agarrar o touro pelos cornos. Depois de
encontrar Beatriz cara a cara, sentiu que a oportunidade de Tahír a
ouvir eram mais remotas que possíveis. Ela achava que mesmo que
o encontrasse sozinho ele a ia ignorar. O facto de Beatriz se ter
aproximado talvez fosse um sinal do destino.
— Menina, não me faça chantagens, ou qualquer consideração
por si acabará neste preciso momento.
Freya sorriu com malícia.
—Não é uma chantagem, Karim.
— Se não é chantagem, então não estou a perceber—
expressou sem qualquer emoção no rosto.
—Só quero falar com o Tahír. Ele pode ajudar-me a encontrar a
minha irmã.
—Os problemas pessoais do staff não interessam aos príncipes.
E eles também não têm a responsabilidade de resolvê-los.
—Ele deve-me isso! Todos merecemos uma oportunidade.
—Ninguém lhe deve nada, menina. Agora, por favor, não perca
tempo a pensar na casa real Al-Muhabitti como um espaço para
favores, esmolas, ou pior, uma agência de detetives. Guarde o seu
salário, ou faça o que considerar correto, e encontre a sua irmã por
conta própria.
—As informações sobre o paradeiro da minha irmã são
confidenciais! Não posso entrar no sistema social para investigar,
porque o meu caso foi tratado pelos mais altos níveis de
inteligência, onde, incluíram a adoção da minha irmã.
— Não há nada que eu possa ou queira fazer por si. Agora, vai
permitir-me continuar a trabalhar ou devo chamar os seguranças?
A Freya sentiu o fel a correr-lhe pelas veias. Olhou para ele com
desprezo.
— De qualquer forma, fique a saber que eu tinha intenção de
fazer as coisas a bem, Karim —abanou o envelope—, mas evitou
que isso aconteça. Vou voltar para o meu posto de trabalho.
—E tente mantê-lo —disse Karim antes de Freya fechar a porta.
Karim não era um piegas, e ser enfrentado por uma mulher na
casa dos trinta anos era absurdo. Ele tinha conhecido inimigos reais.
E já sabia que Tahír era um príncipe mulherengo, mas a presença
de Beatriz Fisher era uma clara indicação de que talvez houvesse
absolvição para um rapaz que não ousava acreditar em que era
digno de ser amado por ele mesmo, sem título real ou riquezas.
Ele estava a par da história de Freya. Porque, antes de a
designar para o edifício da administração na área da
correspondência, ele entrevistou-a. Ela pediu-lhe que a ouvisse e
acreditasse na sua história sobre uma suposta irmã dada para
adoção quando entrou na prisão, e na dura vida que ela tinha
levado. Karim nunca justificou as traições. Ele não tinha pena de
ninguém. Apesar de acreditar na história de Freya, porque tinha
mandado fazer uma investigação minuciosa, nunca justificaria que
por ela quase matassem o príncipe.
Ignorava o que ela estava a tramar, mas a sua estadia no palácio
tinha acabado de chegar ao fim. Ele não queria saber do contrato
assinado, usaria os seus contactos legais para anular o acordo legal
e expulsá-la. Karim agarrou no telefone e começou a tratar de tudo.
***
O beijo era impossível de esquecer e as palavras de Tahír
menos, pensou Bea. Ele conseguiu trazer à tona um lado que ela
não conhecia sobre si mesma. Ficar de pé nos cantos a chorar
como uma mulher imatura não ia contribuir para o seu progresso
emocional. Por isso, era melhor virar a página. Sentia que ele tinha
sido sincero... sentia isso profundamente, como também sentia que
se falassem sobre o que ele lhe queria dizer sentir-se-ia muito
magoada. Parecia-lhe difícil penetrar na mente do príncipe, e não
quis tentar. Talvez por medo do que pudesse encontrar, ou talvez
porque estava a invadir um espaço demasiado pessoal.
Olhou para o relógio. Já tinha passado meia hora e o Tahír não
aparecia. Podia pedir à Muriel para ver onde ele estava, mas não
faria isso. Ele que fizesse o que lhe parecesse melhor. De qualquer
forma, ela tinha planos caso ele não aparecesse nos próximos cinco
minutos.
Beatriz dava-se conta de que o ambiente no palácio estava um
pouco tenso. Contava-se que o Rei Bashah e o seu amor de
juventude tiveram um filho há alguns anos, mas só agora é que ele
sabia disso. O rapaz, e futuro rei, chama-se Samir. Bea já o tinha
visto uma vez pelo canto do olho, e podia dizer que ele era cara
chapada do pai. Ela não tinha a certeza se queria ter filhos, ainda
era muito jovem para pensar nisso. Tinha uma vida profissional à
sua frente. Como poderia coordenar o amor com o trabalho? Muitas
mulheres faziam-no, mas ela não era como as outras. Quando se
apaixonava por algo, dava tudo de si, mas não sabia se poderia dar
com a mesma intensidade numa relação e na sua carreira ao
mesmo tempo.
—Muriel, achas que podemos pedir umas bebidas para
refrescar-nos? Com o calor que está o ar condicionado não faz
efeito.
—Sim, claro. —A moça saiu sorridente.
Nas veias de Bea havia outra preocupação. Precisa de saber em
que dia era a reunião em Ushuath. Tinha de estar presente. O corpo
tremia só com a ideia de perder aquela reunião. Sentia que era uma
questão de vida ou morte, e não se conseguia controlar.
Minutos depois bateram à porta.
Ela foi abrir. De certeza que era a Muriel ou Tahír. Respirou
profundamente e sorriu. Ficou sem palavras ao ver a pessoa que
tinha à sua frente.
—Freya? O que estás a fazer aqui? —perguntou muito
surpreendida.
—Vou fazer-te uma grande favor. Depois de veres o conteúdo
deste envelope, talvez decidas que é o momento de voltares ao teu
país. —Entregou-o à Bea que olhava para ela com uma expressão
de dúvida—. Na tua alegria para conhecer o máximo possível da
minha cidade, acho que não estiveste atenta aos meios de
comunicação social.
Bea franziu o sobrolho e agitou o envelope.
—Porquê?
—Chama-se karma —respondeu Freya, muito satisfeita com ela
mesma—. E agora acho que se fez justiça. Que sejas feliz. Longe
do Tahír vais ser de certeza.
—Espera…
Freya levantou o rosto à Beatriz.
—Antes de abrir o envelope… Porque não me contas qual é a
tua história?
A ex-amante de Tahír não estava à espera que alguém lhe
perguntasse sobre a sua história. Muito menos a mulher que tinha à
frente. A altivez esfumou-se. Inclinou a cabeça para o lado e
pareceu-lhe interessante que alguém, para além do tolo do Karim,
ou do indiferente Tahír, soubesse a sua versão do que se passou.
—De acordo. — Bea pediu-lhe para entrar e Freya caminhou até
uma cadeira de veludo bege —. De certeza que tens tempo?
—Não te teria perguntado se não fosse o caso —respondeu.
Convidou-a a entrar porque considerou isso correto.
Sentaram-se uma à frente da outra. Duas mulheres totalmente
opostas. Quando Muriel chegou, não escondeu a surpresa mas
manteve-se calada enquanto servia as bebidas, depois saiu da sala.
Beatriz abriu o envelope antes de ser impedida por Freya.
Um cocktail Molotov teria sido menos nocivo. Era o Tahír. Em
todas as fotografias estava com uma mulher diferente. Ela olhou
para a data na legenda. A semana em Paris. Enquanto via as fotos,
Bea sentiu um nó na garganta. Não olhou para Freya. As últimas
três fotografias pareciam ter sido tiradas com uma lente teleobjetiva.
Era o Tahír na cama... Apeteceu-lhe vomitar. Fechou os olhos
durante alguns segundos, voltou a pôr as fotografias dentro do
envelope e colocou-o de lado.
A única coisa que desejava era deitar-se e dormir para não
chorar. Achava que não poderia conter o choro. Havia algo pior do
que a dor da traição? Havia algo pior do que a dor da mentira e da
cobardia? Se tivesse sido apenas um jogo para ele, ele podia ter-lhe
dito. Ele não precisava de gozar com ela. Porque não era
necessário que o mundo soubesse da sua existência, nem da
relação que ela tinha tido com Tahír. Claro que não era necessário.
Só era necessário que ela soubesse... e ele. Mas ele não se
preocupou com isso. Então porque a beijou na noite anterior, as
palavras... o olhar dele? Talvez a intuição começasse a falhar-lhe.
—Beatriz… — murmurou Freya com um ligeiro arrependimento
por ter magoado Bea. Mas era mais um dano colateral, o objetivo
era encontrar Elmahi —. Eu não te queria fazer mal, só ao Tahír,
através de ti.
Por fim a australiana olhou para ela.
—Isso não ia ser possível, ele nem se preocupa comigo.
—Nesse sentido enganaste. Nunca trouxe ninguém ao palácio.
Sempre fomos todas uma aventura na vida dele.
—Tu não foste, Freya. Ele amou-te. Ele disse-me isso. Talvez
não verbalmente, mas os olhos de Tahír são muito eloquentes
quando quer.
— Isso significa que conseguiste ver mais do que ele mostra,
porque eu nunca soube como vê-lo —suspirou.
—De qualquer forma, alcançaste o teu objetivo com as fotos.
Não quero ter nada a ver com o Tahír... Mas quero conhecer a tua
história —disse com firmeza. O coração estava em pedaços,
embora isso não a fosse impedir —. Quero saber o que te motivou a
odiá-lo e chegar até aqui —apontou para o envelope.
Freya assentiu.
Freya começou a contar-lhe a sua história familiar. Sobre como
ela conseguiu fazer malabarismos económicos para ficar com a
irmã, Elmahi, que era tudo o que ela tinha no mundo. Contou-lhe as
condições precárias em que vivia, e como numa noite tudo mudou
quando uma amiga de classe alta a convidou a uma festa. Foi no dia
em que conheceu Tahír e o dia em que os homens que tentaram
raptar o príncipe, sem sucesso, a intercetaram e ameaçaram.
Com um ritmo narrativo monótono, como se estivesse noutra
época, Freya continuou a contar a sua história, enquanto as
lágrimas corriam pela face de Beatriz.
— Eu amei-o com todo o meu coração, mas tinha que escolher
entre uma garota para quem eu era tudo e um homem que tinha o
mundo nas mãos. Compreendes que a escolha foi difícil e fácil ao
mesmo tempo…
—Agora já entendo tudo, Freya —disse com tristeza—. Imagino
a dor que deves ter sentido, a angústia, a prisão e a incerteza de
não conseguir encontrar a tua irmã, porque a informação é
confidencial e só alguém do nível de Tahír te poderia dar acesso a
ela. Até o Karim, mas não creio que o conselheiro do príncipe atinja
um nível de acesso tão elevado. Não posso culpar o Tahír, também
não te posso culpar a ti. Vocês foram ambos vítimas das
circunstâncias. E se achas que ao mostrar-me estas fotografias me
estavas a ajudar, ajudaste. Se também achas que o príncipe sente
algo por mim, diferente do que ele pode sentir por outras mulheres,
então talvez haja esperança que Tahír um dia encontre a mulher
ideal para ele.
—És demasiado boa para ele —murmurou. De repente, meteu a
mão num dos bolsos e retirou uma faca em forma de lua crescente.
A Beatriz olhou para ela espantada —. Obrigada por ouvir-me e
chorar um pouco—disse com um sorriso— podia ter pena de ti, mas
não sobrevivi às tentativas de violação na prisão nem à língua cruel
da sociedade por ser amável.
Beatriz engoliu em seco.
—O que estás a fazer…? —perguntou em voz baixa quando a
Freya praticamente se atirou a ela e apontou-lhe a faca na garganta.
Freya tinha-a pressionada contra a parte atrás da cadeira. Já não
havia uma cadência monótona na sua voz, mas o seu rosto tinha-se
transformado numa dor cheia de ódio—. E agora porque me queres
fazer mal?
—Quero que faças uma promessa. Ou vou encontrar uma
maneira da tua existência acabar nas areias deste maldito deserto.
—Não posso prometer nada quando tenho uma faca na garganta
a ponto de cortar-me o pescoço —disse cuidadosamente, porque
começou a sentir um fiozinho de sangue a descer pelo pescoço.
Muriel, que naquele momento tinha ido ver a Bea para ver se ela
precisava de alguma coisa, ao ver a cena deu um grito horrorizado.
Freya assustou-se e roçou a faca com a parte mais afiada no
pescoço da Bea, fazendo um corte superficial, mas começou a
sangrar em abundância.
Alguns segundos depois, quando a Freya tentava fugir,
chegaram os guardas e impediram-na. O escândalo foi-se tornando
maior, enquanto Muriel aplicava desinfetante à Beatriz e tentava
acalmá-la.
De seguida chegou Tahír.
—Que raios…? —pronunciou quando viu a Freya sair algemada.
Ele não queria saber da sua ex tonta namorada, tinha a atenção
posta na mulher com a blusa cor-de-rosa manchada de sangue e
com uma expressão de terror absoluto.
Ele sentou-se ao lado dela, deu-lhe ordens que ela não ouvia. A
Muriel aplicou-lhe uma gaze e a pequena ferida já não sangrava.
—O que é que essa mulher estava a fazer aqui? —perguntou
Tahír a olhar para Bea.
—Freya… —murmurou—. Foi uma conversa entre mulheres.
Ele pediu a Muriel e aos restantes para saírem do quarto. Em
menos de um minuto o espaço estava vazio. Em silêncio.
—Bea…
—Tenho aqui isto para ti —disse ao esticar a mão para lhe dar o
envelope—. Imagino que com uma foto basta, mas como sou
curiosa vi todas.
Tahír apressou-se em ver o conteúdo. Ele viu as fotografias, uma
a uma. Depois colocou-as de lado e olhou nos olhos da Beatriz.
Ambos sabiam que eram verdadeiras. Aquela semana em Paris
tinha sido uma semana de desgraça para ele. Tahír pôs as mãos
entre o cabelo, despenteando-o.
—Bea…
—Parece que os papéis se inverteram, e o tipo dos monólogos
és tu. Interessante, não achas?
—Bea…
—Só estás a confirmá-lo — disse com uma gargalhada que
soou partida —. De qualquer forma, o meu trabalho termina no dia
da reunião em Ushuath. Sinto que tenho de lá estar, aconteça o que
acontecer. Quando é que vai ter lugar o encerramento da
negociação mineira?
— Não tens de ir. A verdade é que não me interessa se mentiste
sobre como nos conhecemos, se realmente vês o futuro ou não.
Beatriz, eu amo-te. Estou apaixonado por ti... Não quero estar sem ti
— disse com veemência —. Dá-me uma oportunidade de te mostrar
que te amo realmente e compensar os meus erros. Aquela semana
em Paris foi apenas um despertar... Para ver o que estava a perder
sem ti. E quando voltei, não consegui olhar-te na cara.
«Estava a chamar-lhe mentirosa? Continuava a insistir que ela
tinha orquestrado um encontro com ele em Port Douglas? Será que
ele estava a ser condescender porque não acreditava que ela ou a
mãe dela fossem realmente psíquicas?" pensou Beatriz furiosa,
afastando-o com um empurrão.
—Imagino —disse sem emoção.
—Esta manhã tive de sair, mas vim o mais rápido que pude —
continuou ele, segurando as mão de Beatriz com firmeza. Desolado
por ver o que tinha feito àquela linda mulher. O brilho que
costumava ter no seu olhar quente, agora não existia. As
características claras e o sorriso fácil desapareceram. Ele era o
único culpado—. Bea, eu ia contar-te o que aconteceu em Paris e
como, depois de tentar tirar-te da minha cabeça, me senti um
palhaço por tentar substituir-te. Por te ter traído, porque, embora
não houvesse uma promessa formal, nem era necessária, porque o
meu coração é teu. Não sei o que fazer para ser o ar à sua volta,
para me redimir aos teus olhos. Diz-me o que devo fazer para
ganhar o direito de te pedir uma segunda oportunidade Ela ficou em
silêncio por um longo momento. As palavras eram apenas isso,
palavras, e mais se não fossem acompanhadas de ações não
serviam para nada. Ela não acreditava em Tahír. Ela não acreditava
nas palavras de amor dele. Era areia entre os dedos dela.
Mas isso agora não era importante. Havia um assunto pendente
que ia continuar a fazer estragos se não se fizesse nada a respeito.
O passado tinha de ser resolvido. As contas tinham de ser pagas
pelo destino.
Embora se sentisse traída, não podia deixar de lado o que sabia
ser o correto. Só havia uma vítima naquela confusão toda. Não era
ela. Era uma menina que aos seis anos foi entregue para adoção,
Emhali. Ela era aquela criança, que agora seria uma jovem, a
verdadeira vítima das brincadeiras de adultos e de uma paixão febril
de adolescente.
Aquilo tinha de acabar.
— Quero que vás ver a Freya à prisão, onde certamente estará
agora, e lhe perguntes como podes ajudá-la a encontrar a irmã.
Tahír ficou sem palavras. Estava a pedir-lhe para ajudar a mulher
que quase lhe cortou a garganta? A mulher que lhe deu as provas
fazendo com que terminassem a relação entre eles, sem antes ele
ter tido a oportunidade de falar sobre isso e preparar o terreno para
ser sincero? Ele nunca poderia merecer o amor de uma mulher
como Beatriz. Ela surpreendeu-o.
—Mas…
— Realiza-lhe o seu maior desejo. Dá-lhe a paz que ela procura,
e que tu também queres —disse finalmente—. Já não me apetece
falar contigo. Avisa-me quando a reunião for em Ushuath e leva-me
contigo para cumprir a minha parte do acordo.
A Beatriz não queria continuar a respirar o mesmo ar que o Tahír.
Doía muito, e já eram demasiadas emoções para um dia. Ela
levantou-se, precisava apanhar ar fresco. Ele imitou o gesto dela.
—Beatriz, por favor, não quero que te vás embora zangada.
Vamos falar.
— Isso é o que nós, mulheres, costumamos dizer —gozou, e
não se importou que o seu comentário parecesse machista. Naquele
momento, não queria saber de nada. Só queria encontrar uma
garrafa de bom uísque e esquecer-se de tudo. Nunca tinha feito
isso, mas para tudo havia uma primeira vez.
—Bea…
—Fala só com ela. Ajuda-a. E com isso ficamos em paz—disse
desde a porta.
—Isso significa que me dás uma nova oportunidade?
Ela soltou o ar que estava a conter.
—Adeus, Tahír. —dito isto, saiu e deixou o Tahír sozinho com os
seus pensamentos e com a sensação de ter destruído a única
chance de ser feliz com alguém que não estava interessado na sua
conta bancária ou na sua linhagem.
CAPÍTULO 17

Beatriz acordou toda suada. Agora tinha claro o que ia acontecer


em Ushuath. Apressada saiu da cama e foi à casa de banho. Como
era um evento à noite, um jantar-reunião, ela não podia ir com
calças de ganga. Procurou um vestido no armário. O primeiro que
encontrou. Era azul, chegava-lhe até aos joelhos e só tinha um
ombro.
Mal teve tempo para se preparar. Ela descuidou-se ao ponto de
confiar que Tahír ia avisá-la para irem a Ushuath juntos, quando
estava claro que ele queria confirmar o ponto de que ia duvidar dela.
Tão tonta.
Depois do que tinha descoberto enquanto sonhava, o mais
provável é que a vida dele estivesse em perigo. Ela estava zangada
com ele, e magoada, é claro, mas não ao ponto de lhe desejar a
morte. Isso nunca.
Chamou a Muriel, que apareceu após cinco minutos, exatamente
quando o relógio bateu as dez da manhã. Contava em apanhar um
voo comercial urgente. Demorava pelo menos seis horas para
chegar ao país vizinho. E a reunião, se eu não tivesse ouvido Bassil
dizer em algum momento da sua nomeação falhada, era às cinco da
tarde. Não tinha muito tempo.
—Muriel, necessito de fazer alguma coisa neste cabelo —
assinalou.
—Não se preocupe, eu sou especialista em penteados
ocidentais —disse a sorrir. E 20 minutos depois, Bea tinha um
penteado ao estilo dos anos 40 dos Estados Unidos, com ondas de
água.
Quando ficou pronta foi à procura do rei de Azhat.
Esteve à espera 15 longos minutos até que, finalmente, lhe foi
concedida uma audiência urgente.
—Majestade —disse inclinando a cabeça.
Bashah, alto e imponente, destilava não só elegância, mas
também uma aura de inegável poder. Ele nasceu para ser um rei.
— O meu secretário disse-me que tem um assunto urgente para
me comunicar sobre a segurança do meu irmão Tahír.
Ela assentiu. Estava contrarrelógio.
— Sei que isto pode parecer-lhe uma loucura, Majestade, mas
tenho a capacidade de prever o futuro, de ouvir pensamentos... Não,
não o vou fazer consigo — apressou-se a limpar a expressão
sombria que começou a ver-se em Bashah — só lhe estou a dizer.
Há muitos anos que tenho uma premonição que me assombra. Uma
premonição que nunca foi clara até esta manhã, e é por isso que
estou no seu país. Tenho de salvar a vida do Tahír... Príncipe Tahír
— Apressou-se a corrigir, mas já era demasiado tarde. O rei não
era um idiota. Por isso, tão diplomático como sempre, Bashah fez
um sorriso estudado.
—Compreendo. Pode dizer-me o que acha que vai acontecer?
— Vão dar-lhe um tiro antes de fechar o negócio em Ushuath.
—Quem?
— Não consegui ver a cara do homem que ia cometer o crime.
Talvez porque não seja ninguém que eu conheça…
—O que sugere fazer?
—Tem de dizer ao príncipe Tahír para adiar a reunião.
Bashah chamou o secretário, e através do telefone pessoal
tentou contactar o irmão. Ele fez todas as chamadas possíveis e pôs
a trabalhar freneticamente a equipa durante vinte longos minutos.
Beatriz estava a começar a perder a compostura. Era um grande
avanço que o rei não a tivesse achado louca e a tivesse mandado
para um manicómio. Não sabia porque tinha acreditado nela, mas
não ia questioná-lo. O importante era que ele estava a tentar
contactar o Tahír para o avisar —Majestade —disse tossindo para
limpar a garganta—. Preciso ir a Ushuath. Por favor, deixe-me
assistir mesmo sem convite. É uma cruzada pessoal. É uma coisa
que tenho de fazer. Faz parte do meu destino fazê-lo. Se deixarmos
passar o tempo, será demasiado tarde.
—Muito bem, Miss Fisher. Se a vida do meu irmão está em jogo,
então eu estarei em dívida consigo para sempre. Se estiver a
preparar um truque com algum propósito desconhecido que afete
meu país, aviso-a que terá um futuro sombrio à sua frente.
—Obrigada, muito obrigada, Majestade.
Meia hora mais tarde, Bea estava a caminho de Ushuath.
O tempo estava a esgotar-se. Ela ia chegar tarde. A Muriel ia ao
lado dela. Só tinha de avisar o Tahír. O que é que custava a este
príncipe ter o maldito telemóvel ligado?
***
Tahír pensava que devia ter avisado Beatriz, como ela pediu,
mas não a quis acordar para ir a Ushuath. Essa era uma das
razões, porque também pensava que não queria que ela sentisse
que ele a estava a usar. Ele tinha de terminar o negócio com o irmão
Amir, o cretino do rei Hassam e o ambicioso Bassil. Ia tirar o melhor
partido disso para Azhat.
Lá estavam eles reunidos: príncipes, representantes legais, um
casal de homens que Tahír não tinha visto antes e uma grande
equipa de segurança. A exploração mineira estava a começar a
tornar-se numa das áreas com mais potencial para impulsionar a
economia do Médio Oriente. Contudo, a maioria das minas estava
localizada nas fronteiras dos dois países.
Na grande sala de reuniões no palácio da família Al-Pakrith, foi
servido um requintado catering.
—Senhores, obrigado pela vossa presença aqui hoje —começou
o rei Hassam—. Os nossos advogados elaboraram os acordos e
contratos. Contudo, gostava de fazer um pedido adicional ao reino
de Azhat, antes do Sr. Bassil Ashummi assinar o acordo, sobre os
limites fronteiriços, assim como as cláusulas ambientais e a partilha
das percentagens de lucro para ambos os reinos irmãos.
Amir olhou disfarçadamente para o irmão, quem notou a forma
como Tahír fechou os punhos de lado, ligeiramente, e depois
relaxou os dedos. Ambos sabiam que o ex-cunhado de Bashah não
jogava limpo. E não esperavam que o fizesse naquela ocasião.
—Que tipo de pedido é esse? —perguntou Tahír sem poder
conter-se.
O rei Hassam sorriu com malícia.
—O príncipe Amir deve contrair matrimónio com a minha irmã,
Moesha. —Os irmãos Al-Muhabitti ficaram de boca aberta, mas o rei
Hassam continuou—: Devido aos laços que foram rompidos entre os
dois países há dois anos, em virtude de acontecimentos infelizes e
mal compreendidos, gostava que os nossos laços económicos
ficassem ligados não só por um contrato comercial, mas pelo mais
antigo dos nossos povos: o casamento.
—Acho que perdeste a cabeça —disse Amir sem poder conter-
se.
Os advogados de ambos os lados começaram a discutir. Os
príncipes sentiam-se desrespeitados com a proposta insultante do
rei Hassam, considerando-os uma mercadoria a ser comercializada
como gado ou camelos, e o pior é que Moesha tinha sido esposa de
Bashah anos antes. Eles não iam permitir.
Tahír estava furioso. Afinal não era o Bassil quem lhe queria dar
cabo da paciência naquele dia, mas o próprio Hassam.
—Estás a passar dos limites — disse Tahír, tratando por tu o rei
de Ushuath, como era o hábito entre as pessoas da mesma
linhagem real, enquanto olhava para ele com desprezo —. Estás a
insultar a honra da minha família.
—É apenas um mero intercâmbio…
— Bem, é melhor que engolas as tuas próprias palavras, porque
não estamos aqui para cair nas tuas distorcidas ideias dinásticas —
respondeu Tahír, antes de encurtar os passos para alcançar
Hassam, que estava a olhar para ele com um sorriso pérfido.
Ninguém parecia prestar atenção ao que se estava a passar, pois
cada um estava envolvido numa discussão. O único que, atordoado,
observava tudo era o Bassil.
Quando Tahír estava prestes a dar um murro no queixo de
Hassam, um dos guarda-costas do rei de Ushuath sacou uma
pistola.
As portas abriam-se de repente, interrompendo a discussão
acesa, em câmara lenta. Ou foi assim que pareceu a Tahír, quando
viu a mulher que amava correr para dentro. Ela estava tão bem
vestida que lhe tirou o fôlego.
—Tahír! — gritou Bea quando o guarda-costas do Hassam
puxou o gatilho e disparou.
***
Beatriz percorreu a distância restante até chegar ao salão com
um coração a mil. Era exatamente como tinha visto anos atrás,
quando tinha apenas oito anos, e mais nítido do que no seu sonho
matinal. Desta vez era real.
Na sala, a mão do guarda-costas parecia mover-se em câmara
lenta quando apontou ao Tahír. Não podia perder tempo. Gritou para
que se afastasse, mas nada parecia capaz de acelerar as coisas.
Ela correu para empurra-lo, para o afastar do alcance do homem
que agora via claramente, mas o último que viu foi que tinha as
mãos cheias de sangue.
Olhou para baixo. Era ela quem estava a sangrar.
Ela estava no chão, enquanto tudo à sua volta estava em
tumulto. Ouvia gritos. Coisas a partirem-se. Virou a cabeça para o
lado. Estava um homem deitado no chão numa poça de sangue. Na
mão direita, o tipo tinha duas tarântulas. Duas tatuagens.
—Quem é… ele? — perguntou num sussurro a ninguém em
particular. A imagem parecia-lhe um pouco confusa.
— O homem que ia matar o príncipe Tahír... tente não falar,
menina Fisher. A equipa médica está prestes a chegar.
—Karim —reconheceu ela. Era o conselheiro do príncipe—.
Onde… Onde está Tahír?
— Ele foi à procura de uma maneira de chamar um helicóptero
para a transportar para Azhat imediatamente —disse reticente— já
está aqui.
Tahír afastou Karim sem contemplações, e viu Bea com o
coração em punho. Agarrou-lhe nas mãos.
—O que fazes aqui, minha vida? Porque vieste aqui? —
perguntou desolado. Ela estava pálida. As pernas sujas de sangue,
assim como o vestido.
—Tinha… —engoliu em seco. Doía-lhe a garganta. Tinha sede—
tinha de avisar-te ou morrias. Eu vi-te… Eu vi-te no meu sonho…
Preci… Precisava de avisar-te… Não atendias o telemóvel. Se não
viesse morrias…
Os olhos do príncipe nunca estiveram tão cheios de lágrimas
sem derramar. Nem mesmo no dia em que perdeu a mãe. Ele
estava a passar uma grande aflição, e tinha um medo profundo de
perder a Beatriz. Ela não podia morrer. Ela não podia.
—Ai, Bea… Por favor, aguenta, minha vida. Resiste —
sussurrou quando os paramédicos finalmente começaram a aplicar-
lhe os procedimentos de primeiros socorros e providenciaram que
fosse levada para o helicóptero.
O rei Hassam ficou consternado com a forma como as coisas
tinham corrido na sua tentativa de persuadir Amir a casar com a sua
irmã, a muito tola que tinha estragado tudo em Azhat com as suas
indiscrições. Amir, com sua mente fria e disposição calma, foi exigir
a Hassam e pedir a Bassil que assinassem o maldito contrato de
uma vez por todas. E assim foi feito.
***
Doía-lhe tudo.
Ela abriu os olhos com dificuldade. A luz incomodou-a durante
longos segundos. Pestanejou. Estava rodeada de aparelhos e
estava a oxigénio. Fechou os olhos novamente e lembrou-se de
tudo. Pelo menos, tinha salvo a vida de Tahír, pensou ela, cumpriu
com a missão que o destino lhe tinha reservado e esperava voltar
para casa em breve. Não precisava de mais dor. Nem emocional
nem física.
Tinha sede.
—Água… —sussurrou.
Esperava que alguma enfermeira a tivesse ouvido. Embora
talvez fosse improvável, porque nem sequer ela tinha ouvido a
própria voz.
—Meu amor —murmurou a inconfundível voz de Tahír—. Estás
acordada. Oh, meu Deus, já estás acordada. —Ela sentiu os lábios
dele tocarem nos dela, num beijo suave e rápido—. Aqui tens —
ajudou-a a beber água por uma palhinha.
—Durante quanto tempo…?
Antes de responder, Tahír carregou num botão para chamar o
médico de família. A Beatriz estava instalada no riad. Ele exigiu que
o espaço fosse reajustado com todo o equipamento médico mais
recente.
Tahír foi irascível durante o tempo que ela lutou pela vida. Ele
recusou-se a sair da sala de operações. Quase se brigou com os
irmãos, como se tivesse quinze anos, quando lhe disseram que não
podia assistir à operação. Por fim, os médicos desistiram de lhe
dizer não e Tahír assistiu. Bea teve de ser operada, porque a bala
ficou alojada no corpo, e ela perdeu a consciência —Cinco dias,
Bea. Estiveste cinco dias inconsciente. Pensei que te ia perder.
Nunca me senti tão aterrorizado como quando te vi no chão cheia
de sangue. Nena, deste-me um grande susto… — acariciou-lhe
face com infinita doçura. Nos olhos verdes havia alívio e emoção —.
A equipa médica dentro de um momento vem ver-te.
Ela só assentiu.
Vinte minutos depois, o médico de família informou Tahír que
Bea tinha de ficar mais dois dias para observação, mas que o
progresso era positivo, embora tivessem de ser pacientes.
Tahír voltou para ao pé de Bea. Ela olhou para ele com uma
mistura de inquietação e desconfiança, mas sem criticas. Ele
conseguiu ver o seu reflexo nos olhos de Beatriz, porque ela fazia
com que ele se sentisse completo e aceito por simplesmente ser
ele. Esse foi o maior presente que alguém já lhe tinha dado.
—Paris… —murmurou Bea ao lembrar-se das fotografias que a
Freya lhe tinha dado—. Quero esquecer tudo. Quero ir para casa…
—Bea…
—Por favor, Tahír… Este lugar não é para mim. Porque, mesmo
que te ame, eu já não tenho nada para fazer aqui… Deixa-me ir
para casa —pediu com voz rasgada e virou a cabeça para o lado,
partindo o coração do príncipe, que não sabia como reconquistar
aquela mulher maravilhosa, a única capaz de fazer bombear o seu
coração com o ritmo único de quem sabe que é verdadeiramente
valorizado.
Em breve, a respiração da Bea voltou ao normal e ela
adormeceu outra vez. Tahír estava feliz porque ela estava a
recuperar. Antes de continuar a cruzada para reconquistá-la, tinha
de fazer uma coisa no cemitério da família.
Inclinou-se para dar-lhe um beijo longo e sincero na face, e saiu.
Atravessou vários corredores até chegar ao mausoléu onde os pais
foram enterrados, protegidos por uma árvore verdejante que foi uma
das poucas que floresceram e sobreviveram no deserto.
Desde a morte do rei Zahir era a primeira vez que o príncipe
visitava o mausoléu. O vento da tarde do deserto soprava quente e
constante. Tahír aproximou-se do túmulo, passou a ponta dos dedos
sobre a inscrição do nome do seu pai esculpida na pedra.
—Conheci uma mulher que amo tanto como tu amaste a mãe —
disse em voz alta —. Ela é uma mulher maravilhosa que fiz sofrer
por ser estúpido e imaduro, mas já aprendi a lição. Vou fazer tudo o
que puder para que ela me perdoe. Mas primeiro, eu queria
despedir-me de ti... pai. Não há rancor nem ressentimentos. Deixei-
te ir em paz, e esta será a última vez que penso que não me
querias. Talvez eu não fosse um filho modelo, ou aquele que
esperavas, mas sempre tentei que te sentisses orgulhoso de mim...
Adeus, pai. —Com uma sensação de calma e um peso fora dos
ombros, Tahír saiu do mausoléu, enquanto uma neblina se levantou
atrás dele.
***
— Devias reconhecer que ele tem dado tudo por tudo nos
últimos dez dias —disse Ordella Fisher à filha.
O Príncipe Tahír convidou ao palácio as pessoas que Bea
considerava mais importantes para ela. Até os seus dois melhores
amigos, Dexter e Surka. Karim foi quem providenciou as viagens de
ida e volta.
Era o último dia de Ordella em Azhat.
—Mas antes esteve com muitas mulheres…
—Se o amas, acho que tens de tomar uma decisão, filha. Ele
não te vai pressionar, mas a auto-estima dele não pode ser minada
e também não vai esperar por ti para sempre. São contos de fadas e
sabes que as fadas não vivem neste plano, e duvido muito que
vivam em algum.
—Tu e as tuas filosofias —disse a sorrir.
Elas estavam sentadas em lindas cadeiras de vime no riad
privado de Tahír. Ele insistiu para ela ficar nas redondezas. Ela tinha
criados à sua volta para tudo. Se espirrasse, tinha cinco marcas de
lenços para assoar o nariz. Era um exagero. No entanto, além de
falar com ela sobre tudo menos da relação deles, Tahír não a
pressionou. Limitava-se a falar e contar-lhe anedotas. Falou-lhe da
mãe e abriu-lhe o coração sobre o pai. E, aturdida, ela viu como ele
pediu desculpas sinceramente a Ordella por ter gozado com as suas
crenças e capacidades. Ter estado com a família e os melhores
amigos em Azhat foi um presente inesperado... Até o próprio rei
Bashah, junto com a mãe de seu filho, Adara, assim como Amir,
tinham vindo visitá-la.
—Lembras-te que te disse que o destino estava escrito nas
estrelas?
—Mãe… —suspirou—, sim. Lembro-me.
—A estrela mais brilhante é o teu coração. É a força que move a
tua vida e faz com que tudo à tua volta assuma uma nova dimensão.
Ouve essa estrela e acaba de escrever o teu destino com o homem
que te ama.
Beatriz já tinha recuperado da lesão, embora ainda andasse com
alguma dificuldade. Passou-lhe as mãos pelos cabelos.
—O que posso fazer?
—Fala com o Tahír. Diz-lhe que o amas e que queres tentar
novamente, ou diz-lhe que não podes amá-lo nem confiar nele
novamente para que ele se possa ir embora e encontrar o amor
noutro lugar. Tal como tu.
A Bea olhou para a mãe dela com uma cara carrancuda.
—Nesse caso…
—Interrompo, senhoras? — perguntou Tahír com um sorriso,
embora sentisse que tinha acabado de interromper um momento
crucial de uma conversa entre mãe e filha.
Vestido com o seu traje real, devido a uma reunião no centro da
cidade, a sua beleza viril era de tirar o fôlego. Ele causava sensação
entre as mulheres, mas só tinha olhos e coração para uma.
Os empregados do riad deram ao príncipe uma bebida fresca.
Ele sentou-se em frente da Bea e Ordella.
—Olá, Tahír — murmurou Beatriz. As palavras da sua mãe
rondavam-lhe pela mente e não era capaz de deixá-las ir. Tinha de
pensar em muitas coisas. Sozinha.
—Hoje estás muito bonita, Bea —disselhe. Depois olhou para
Ordella e acrescentou—: Tal mãe tal filha.
Ordella riu-se.
— Bem, vou deixá-los a sós para que possam conversar. Vou
fazer as malas. O meu marido deve estar a enlouquecer sem as
minhas profecias — disse com um riso suave, antes de piscar o
olho à filha e dizer adeus a Tahír.
Gerou-se um estranho silêncio entre o príncipe e a Bea.
—O que se passa? —perguntou ele.
—Preciso de pensar… —levantou-se—, espero que tenhas tido
um bom dia.
—Bea, espera —pediu. Aproximou-se e colocou as mãos nos
ombros dela —. Fala comigo… Porque estás tão tensa?
Ela olhou-o nos olhos. Podia perder-se na forma como o verde
se tornava mais intenso ou mais ténue, dependendo das emoções
de Tahír. O cheiro e a confiança inata daquele homem perturbaram-
na.
— Eu tenho de tomar decisões. E eu não posso tomá-las se
estiveres por perto.
—O que queres dizer? —perguntou. A ideia de ela querer fugir
para sempre deixava-o à beira de um ataque de nervos. Isto não
acontecia com ele, mas depois de tudo, o que tinha de normal a sua
vida desde o dia em que Beatriz chocou com o carro dele?
Bea tocou-lhe na face, precisava do contacto dele tal como uma
planta precisa do sol para se fortalecer. Quando tirou as mãos
abraçou-se a ela mesma.
—Preciso de ir para o quarto e pensar na minha vida.
—Isso é bom ou mau?
—Ainda não sei, Tahír.
Ele ficou de pé no meio do seu milionário riad a vê-la ir-se
embora. Não podia forçar a situação, nem as decisões dela. Agora
tinha de fazer o que mais detestava: ser paciente e manter a calma.
Tahír era um homem de ação e decisões, mas esta situação virou
tudo do avesso e o destino já não estava nas mãos dele.
***
Uma semana mais tarde…

Quando chegou a hora do jantar, como de costume, Tahír


apareceu com a sua atitude imparcial, principalmente porque Bea
lhe deu uma sensação de calma. Sempre que podia, também
aproveitava para coquetear com ela, adorava como ela corava.
Naquela noite, o príncipe estava vestido com o seu traje
tradicional. Bea sentou-se ao lado dele e ele sorriu-lhe. Ele não lhe
ia dizer que mal se conseguia concentrar à espera do que ela tinha
para dizer. Não era um jantar normal. Consciente e
inconscientemente, ele tinha falhado com Beatriz, com ambos, e
agora tinha de encontrar uma maneira de se redimir. Se assim
estivesse a forjar a sua parca paciência, fá-lo-ia... já o estava a fazer
Depois de terem dado alta a Bea, Tahír sentiu um grande alívio por
a bala não ter perfurado nenhum órgão vital. Contudo, tiveram de
retirar a bala. Mas não foi só isso, a perda de tanto sangue colocou
a Bea numa situação delicada. Agora já estava melhor e de
regresso à vida dela. Ele não a podia deixar escapar. Ele era um
competidor nato, o que mais queria era reconquistá-la, ganhar a sua
confiança e ser digno do seu amor —Boa noite, linda —disselhe a
sorrir.
Ela já se tinha habituado ao facto de Tahír ser sempre afectuoso,
sem insistir em receber o mesmo dela. Essa falta de pressão
ajudou-lhe a tomar, por fim, uma decisão.
—Tahír… —murmurou ao respirar profundamente— queria
agradecer-te por teres trazido a minha família, pela tua paciência e
por todos os cuidados médicos que me proporcionaste.
Ele sorriu. «Ai, este sorriso…»
—Salvaste-me a vida, amor, literalmente —respondeu—. Como
é que não me ia preocupar por ti?
Beatriz não sabia como puxar a conversa. Fechou os olhos por
um momento. Abriu-os para se fixar nele.
—Sobre nós… Eu… Tahír, continuo a amar-te, mas tenho medo
que me voltes a falhar. A verdade é esta.
O príncipe sorriu ao ouvir as palavras que mais desejava que
saissem da boca de Beatriz. Ele esticou a mão e agarrou na dela,
levando-a aos lábios para beijá-la, sempre olhando-a com
intensidade.
—Desculpa a dor que te causei. Fui estúpido por não te valorizar
e ter desperdiçado o meu tempo quando era contigo que mais
queria estar. Tu foste, e és, a dona do meu coração. Por favor, não
deixes de acreditar em mim... em nós.
—Eu não vou deixar de acreditar em nós —disse com convicção.
Custou-lhe várias noites de insónia a dar-lhe voltas às ideias,
reflexões e pensamentos, decidir falar com Tahír e expressar-lhe a
vontade de lutar pelo amor que sentiam—. E tu tens de entender
que talvez a minha habilidade psíquica possa aparecer de vez em
quando, nos momentos que menos esperares.
—És especial, Bea, eu não quero que sejas diferente. Sei que
respeitas a privacidade dos meus pensamentos, e isso é suficiente
para mim.
—Nunca invadiria a tua mente, Tahír, nem que pudesse fazê-lo,
nem que me pedisses. Há linhas que não se cruzam.
—Eu sei. Admiro a tua integridade.
—Então —tossiu— é isto o que te queria dizer ao jantar. Quero
que tentemos.
Tahír sorriu abertamente com uma alegria que lhe saltava pelos
poros.
Com cuidado abraçou-a e levantou-a no ar.
—Estás a falar a sério? —perguntou enquanto a Beatriz se ria.
—Sim, Tahír, vou ficar ao teu lado. Amo-te.
Ele abaixou-a lentamente até o chão, e agarrou-a pela cintura.
Ela tinha perdido algum peso, mas mesmo assim mantinha aquelas
curvas deliciosas que não acariciava há tanto tempo.
—E tu não sabes o quanto eu te amo a ti. Vem aqui, meu amor,
beija-me.
EPÍLOGO

Três meses depois.

Ganhar a confiança da Beatriz não foi fácil. Tahír tinha


trabalhado no seu projeto mais importante: o amor da mulher que
queria ao seu lado. Acostumado a fazer as coisas como gostava, a
ideia de partilhar e consultar era uma das situações com que ele
mais se debatia. Mas a Bea valia o esforço. Todos os esforços.
Beatriz tinha começado a dividir o tempo entre Azhat e Austrália,
já que planeava mudar-se para Tobrath e iniciar ali o seu negócio,
ao mesmo tempo que fortalecia a relação com Tahír. Eles tinham
feito tudo como se fosse a primeira vez. A ela pareceu-lhe
maravilhoso conhecer o homem por trás da máscara da indiferença.
Tahír era todo amor, devoção e doçura. Dentro e fora da cama. Eles
divertiam-se juntos, mas também faziam coisas sozinhos, até
porque ela não considerava saudável invadir os espaços mútuos.
Uma questão de saúde emocional e de crescimento —Sabes onde
está Bea, Karim? —perguntou Tahír.
O homem, sempre inclinado a favor do príncipe, parecia ter
desenvolvido o mesmo interesse por Beatriz e punha-se ainda mais
a favor da mulher que tinha conseguido fazer o príncipe indomável
encontrar o seu lado sensato.
—Não sei, Alteza.
Tahír murmurou "bisbilhoteiro" ao passar por Karim. Tahír teve de
viajar a Lyon com o General Abdul Kamal, e passado quatro dias
estava de volta a Tobrath. Pelo menos, na sua posição, não tinha
que lidar com os velhos idiotas que faziam parte dos Conselheiros
do Destino, pensou ele.
Foi à procura da Bea como um louco por todo o lado. E se ela o
tivesse abandonado, pensou ele milhares de vezes com o coração
nas mãos. Acelarou o passo. Ela não estava no riad que
partilhavam. Tanto quanto ele sabia, ela só ia para Melbourne dentro
de seis dias. Onde é que ela estava? Decidiu ir até ao quarto que
Bea usava como um pequeno escritório enquanto liderava a equipa
de jardinagem ou aceitava tarefas dos diplomatas da cidade para
redecorar os seus jardins. Nada. Ali também não estava.
Estava prestes a sair da varanda quando ao observar o exterior
do palácio com vistas para o deserto viu uma figura absolutamente
familiar recortada pelo pôr-do-sol que começava a dar lugar aos
últimos raios de sol.
Desceu as escadas a correr, mas primeiro foi ao cofre que um
dia invadiu para pedir a Freya em casamento. Tahír fez as pazes
com a sua ex-amante, e conseguiu ajudá-la a encontrar a irmã. Elas
agora viviam noutra cidade em Azhat, e ele encarregou-se de
encontrar-lhe um bom emprego para que ela pudesse cuidar Elmahi.
Saiu da sala e caminhou com grandes passos o longo caminho
para o pátio exterior. A Beatriz tinha a cabeça baixa. Ela estava a
chorar? O que se estava a passar? Enquanto se dirigia até ela, dava
voltas à cabeça sobre o que tinha feito mal... falaram todos os dias.
Todas as noites. Escrevia-lhe mensagens ou enviava-lhe
mensagens de voz a contar tudo. Estava a perder o juízo, não se
lembrava de nada errado. Ela pareceu dar-se conta da presença
dele, porque levantou o rosto na sua direção.
Tahír correu pela areia até ela.
—Bea, deste-me um suste de morte —disse sem fôlego pelo
esforço.
Ela olhou para ele. Tinha olhos de choro.
—Olá…
—O que se passa? —perguntou ao secar-lhe as lágrimas—. Diz-
me o que se passa, por favor.
Beatriz descobriu que nem todos os planos iam como ela
esperava. A sua carreira, a sua vida pessoal, tudo parecia ir bem.
Até essa manhã.
—Acho que não vais gostar da resposta.
—Põe-me à prova — disse com um sorriso, sentando-se ao lado
dela com as dunas à frente a receberem os últimos raios de sol da
tarde.
—Estou grávida —murmurou.
Tahír abriu e fechou a boca. Deu uma gargalhada, estava
exultante. Abraçou-a.
—Isso é maravilhoso, meu amor.
A Bea levantou o olhar à procura de um indício de ele estar a
brincar, mas não o encontrou. O sorriso de Tahír era genuíno.
Finalmente, ela também sorriu.
—Pensei que isto pudesse ser um inconveniente, tendo em
conta que o teu irmão Amir parece estar em conflito com um país
vizinho e tem de se casar. E para além disso, a situação económica
não é a melhor. Os problemas já se começam a sentir, vão precisar
que estejas a 100%…
— Isso é um problema do tolo do Amir por andar a brincar aos
homens de negócios —disse feliz—. É uma notícia maravilhosa,
Bea! O mais importante para mim és tu, e agora o bebé —acariciou-
lhe o ventre ainda plano— que começa a crescer dentro de ti. De
quanto tempo estás?
—Um mês… —corou— quando estivemos na tenda que tens no
deserto, imagino…
—Eu disse-te que estas terras não são completamente áridas —
comentou com uma gargalhada—. Quero perguntar-te uma coisa.
—Como se vai chamar caso seja menino ou menina? —
perguntou na brincadeira.
—Tu não és uma mulher convencional. Adoro que sejas
diferente, curiosa, inteligente e com a maior capacidade para amar
que conheço. Não te quero deixar ir, não te vou deixar ir, e não
quero passar mais nenhum dia sem te poder chamar minha mulher.
— Do saco que tinha na mão, retirou o que tinha tirado do cofre
onde as joias da família estavam guardadas —. Esta pulseira
pertenceu à minha mãe. Ela foi sempre a mulher mais importante da
minha vida. E agora, essa mulher és tu. — Ele entregou-lhe a linda
pulseira de ouro com safiras e diamantes e um pequeno olho de
Hórus —. Beatrice Fisher, dás-me a honra de casar comigo e de
sermos felizes —pôs a mão no ventre de Bea— os três para
sempre?
—Oh, Tahír… — riu-se com lágrimas nos olhos e abraçou o
homem que amava. O dono do seu coração —. Claro que sim.
Aceito casar-me contigo.
Ele pôs-lhe a pulseira suavemente. Ficava-lhe perfeitamente!
Mas como às vezes ele gostava de ser um homem de tradições,
também lhe deu um anel comprado em Lyon. O horizonte já tinha
esgotado os últimos raios do sol.
—Casamo-nos aqui em Tobrath e também em Melbourne. O que
achas?
—Os teus planos são excelentes — disse ela ao acariciar-lhe a
face, antes que ele a beijasse e um cobertor de estrelas começasse
a brilhar no horizonte.

*** Não perca o próximo e último romance da série Maktub: O


Chamamento do Deserto. A história de Amir Al-Muhabitti e
Molly Reed-Jones ***
SOBRE A AUTORA

Kristel Ralston, escritora equatoriana de novela romântica e


ávida leitora do género, é apaixonada por histórias que decorrem
em palácios e castelos na Europa. Embora gostasse da sua
profissão como jornalista, decidiu dar uma viragem na carreira e ir
para o velho continente fazer um mestrado em Relações Públicas.
Durante o período que viveu na Europa leu várias novelas
românticas que a cativaram e a incentivaram a escrever o seu
primeiro manuscrito. Desde então, nem na sua variada biblioteca
pessoal nem na sua agenda semanal faltam livros deste género
literário.
A novela "Laços de Cristal", foi um dos cinco manuscritos
finalistas anunciados no II Concurso Literário de Autores Indie
(2015), pomovido por Amazon, Diario El Mundo, Audible e Esfera de
Libros. Este concurso recebeu mais de 1200 manuscritos de
diferentes géneros literários de expressão hispana de
37 países. Kristel foi a única latino-americana e a única autora de
romances entre os finalistas.
A autora também foi finalista do concurso de novela romântica
Leer y Leer 2013, organizado pela Editorial Vestales da Argentina, e
é co-administradora do blog literário “Escribe Romántica”. Kristel
Ralston publicou várias novelas como Entre as Areias do Tempo,
Antes da Meia-noite, Mientras no estavas, Punto de quiebre, La
venganza equivocada, O Preço do Passado, Un acuerdo
inconveniente, Laços de Cristal, Bajo tus condiciones, El último
risco, Regresar a ti, Um Capricho do Destino, Desafiando ao
Coração, O Brilho do Luar, Un orgullo tonto, entre outros.
Atualmente, Kristel vive em Guayaquil, Equador, e acredita
firmemente que os sonhos se tornam realidade. Durante o tempo
livre diverte-se a escrever novelas que convidam os leitores a não
deixarem de sonhar com finais felizes.
Mais informação sobre a autora na página web:
www.kristel-ralston.com

Contacte a autora através do seguinte email:


kristelralstonwriter@gmail.com

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