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Essencialismo e experiência 107
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vozes não têm sido nem ouvidas nem acolhidas, quer eles os alunos parecem menos tendentes a fazer do relato da
discutam fatos - aqueles que todos nós podemos conhecer -, experiência um lugar onde competem pela voz, se é que de fato
quer discutam experiências pessoais. Minha pedagogia foi essa competição está acontecendo. Na nossa sala de aula, os
moldada como uma resposta a essa realidade. Se não quero alunos em geral não sentem a necessidade de competir, pois o
que esses alunos usem a "autoridade da experiência'' como conceito da voz privilegiada da autoridade é desconstruído pela
meio de afirmar sua voz, posso contornar essa possibilidade nossa prática crítica coletiva.
levando à sala de aula estratégias pedagógicas que afirmem a No capítulo "Essentialism in the Classroom", Fuss centra sua
presença deles, seu direito de falar de múltiplas maneiras
discussão na localização de uma voz particular de autoridade.
sobre diversos tópicos. Essa estratégia pedagógica se baseia Aqui, essa voz é a dela. Quando ela levanta a questão de "como
no pressuposto de que todos nós levamos à sala de aula um devemos lidar" com os alunos, o uso da palavra "lidar" sugere
conhecimento que vem da experiência e de que esse imagens de manipulação. E seu uso de um sujeito coletivo
conhecimento pode, de fato, melhorar nossa experiência de "nós" implica a noção de uma prática pedagógica unificada,
partilhada por outros professores. Nas instituições onde
aprendizado. Se a experiência for apresentada em sala de
ensinei, o modelo pedagógico prevalecente é autoritário,
aula, desde o início, como um modo de conhecer que
coercitivamente hierárquico e frequentemente dominador.
coexiste de maneira não hierárquica com outros modos de
Nele, a voz do professor é, sem dúvida, a transmissora
conhecer, será menor a possibilidade de ela ser usada para
"privilegiada'' do conhecimento. Em geral, esses professores
silenciar. Quando falo sobre The Bluest Eye, de Toni
desvalorizam a inclusão da experiência pessoal na sala de aula.
Morrison, no curso introdutório sobre escritoras negras, peço
Fuss admite desconfiar das tentativas de censurar a narração de
aos alunos que escrevam um parágrafo autobiográfico sobre
histórias pessoais na sala de aula com base no fato de elas não
uma lembrança racial do início de sua vida. Cada pessoa lê
terem sido "suficientemente ‘teorizadas’”, mas indica em todo
seu parágrafo em voz alta para a classe. O ato de ouvir
esse capítulo que, lá no fundo, não acredita que a partilha de
coletivamente uns aos outros afirma o valor e a unicidade de
experiências pessoais possa contribuir significativamente com
cada voz. Esse exercício ressalta a experiência sem
as discussões em sala de aula. Se essa parcialidade informa a
privilegiar as vozes dos alunos de um grupo qualquer. Ajuda
pedagogia dela, não surpreende que a invocação da expe-
a criar uma consciência comunitária da diversidade das
riência seja usada agressivamente para afirmar um modo
nossas experiências e proporciona uma certa noção daquelas
privilegiado de conhecimento, quer contra ela, quer contra
experiências que podem informar o modo como pensamos e
outros alunos. Se.a pedagogia do professor não for libertadora,
o que dizemos. Visto que esse exercício transforma a sala de
os estudantes provavelmente competirão pela
aula num espaço onde a experiência é valorizada, não negada
nem considerada sem significado,
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Mas não podemos negá-la." Geralmente, é nos contextos onde o "especial" a ser adquirido ouvindo-se os indivíduos oprimidos
conhecimento experimental dos alunos é negado que eles se falar sobre sua experiência.- seja ela de vitimização, seja de
sentem mais determinados a provar ao ouvintes tanto o valor da resistência -, o que, em caso afirmativo, nos levaria a querer criar
experiência como sua superioridade em relação aos outros um espaço privilegiado para essa discussão. Poderíamos então
modos de conhecimento. Ao contrário de Fuss, jamais estive explorar os modos pelos quais os indivíduos adquirem
numa sala de aula onde os alunos consideram "analiticamente conhecimento sobre uma experiência que não viveram,
perguntando-nos quais questões morais se levantam quando eles
suspeitos os modos empíricos de conhecimento". Já dei cursos falam sobre uma realidade que não conhecem por experiência,
de teoria feminista nos quais os alunos exprimem raiva contra os especialmente quando falam sobre um grupo oprimido. Em
trabalhos que não esclarecem sua relação com a experiên cia classes marcadas pela extre ma diversidade, onde tentei falar
concreta, que não envolvem de modo inteligível a práxis sobre grupos explorados não negros, eu disse que, embora eu só
feminista. A frustração dos alunos se dirige contra a oferecesse à classe modos analíticos de conhecer, se alguém mais
incapacidade da metodologia, da análise e do texto abstrato oferecesse suas experiências pessoais eu acolheria esse
(acusações lançadas, frequentemente com razão, contra 0 conhecimento, porque ele incrementaria nosso aprendizado. Além
material de leitura) de ligar aquele trabalho ao esforço deles de disso, partilho com a classe a convicção de que meu conheci-
levar uma vida mais plena, de transformar a sociedade, de viver mento é limitado; e, se alguém mais oferece uma combinação de
a política do feminismo. fatos objetivos e experiência pessoal, eu me submeto e aprendo
A política de identidade nasce da luta de grupos oprimidos respeitosamente com aqueles que nos dão essa grande dádiva.
ou explorados para assumir uma posição a partir da qual possam Posso fazer isso sem negar a posição de autoridade dos
criticar as estruturas dominantes, a posição que dê objetivo e professores universitários, uma vez que, fundamentalmente,
significado à luta. As pedagogias críticas da libertação atendem a acredito que a combinação do analítico com o experimental
essas preocupações e necessariamente abraçam a experiência, as constitui um modo de conhecimento mais nco.
confissões e os testemunhos como modos de conhecimento válidos, Há anos, fiquei grata ao descobrir a expressão "a autoridade
como dimensões importantes e vitais de qualquer processo de da experiência'' nos escritos feministas, pois ela me permitiu dar
aprendizado. Cética, Fuss pergunta: "Por acaso a experiência da nome a algo que eu introduzia nas aulas feministas, algo de que eu
opressão confere uma competência especial sobre o direito de falar sentia falta mas considerava importante. Como aluna de graduação
dessa opressão?" Ela não responde a essa pergunta. Se ela me fosse em salas de aula feministas onde a experiência da mulher era
feita pelos alunos em sa de aula, eu lhes pediria que se universalizada, eu
perguntassem se existe um conhecimento
primeiro ano de faculdade, se eu tivesse tido a
oportunidade de estudar o pensamento
Ensinando a transgredir crítico afro-americano com um
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professor progressista negro, eu o
sabia, por causa da minha experiência de teria preferido à professora
mulher negra, que a realidade das mulheres progressista branca
negras estava sendo excluída. Falava a partir
desse conhecimento. Não havia corpo teórico
que eu pudesse invocar para comprovar essa
alegação. Naquela época, ninguém queria
ouvir falar da desconstrução da mulher corno
categoria de análise. A insistência no valor da
minha experiência foi crucial para que eu
ganhasse ouvintes. É certo que a necessidade
de compreender minha experiência me
motivou, ainda na graduação, a escrever Ain 't
I a Woman: Black Women and Feminism.
Hoje me sinto perturbada pelo termo
"autoridade da experiência" e tenho aguda
consciência de corno ele é usado para silenciar e
excluir. Mas quero dispor de uma expressão que
afirme o caráter especial daqueles modos de
conhecer radicados na experiência. Sei que a
experiência pode ser um meio de conhecimento e
pode informar o modo como sabemos o que
sabemos. Embora me oponha a qualquer prática
essencialista que construa a identidade de maneira
monolítica e exclusiva, não quero abrir mão do
poder da experiência como ponto de vista a partir
do qual fazer uma análise ou formular uma teoria.
Eu me perturbo, por exemplo, quando todos os
cursos sobre história ou literatura negras em
algumas faculdades e universidades são dados
unicamente por professores brancos;· me perturbo
' :' : : não porque penso que eles não conseguem
conhecer essas realidades, mas sim porque as
conhecem de modo diferente. A verdade é que, no
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com quem efetivamente fiz o curso. Embora Sei que posso assimilar esse conhecimento
tenha apren dido muito com essa professora e veicular a mensagem das palavras dela. Seu
branca, creio sinceramen te que teria sentido pode ser facil-
aprendido ainda mais com um(a) ·professor(a)
progressista negro(a), pois esse indivíduo teria
levado à sala de aula essa mistura especial dos
modos experimental e analítico de
conhecimento - ou seja, um ponto de vista
privilegiado. Esse ponto de vista não pode ser
adquirido por meio dos livros, tampouco pela
observação distanciada e pelo estudo de uma
determinada realidade. Para mim, esse ponto
de vista privilegiado não nasce da "autoridade
da experiência'', mas sim da paixão da
experiência, da paixão da lembrança.
Muitas vezes, a experiência entra na sala
de aula a partir da memória. As narrativas da
experiência em geral são contadas
retrospectivamente. No testemunho da
camponesa e ativista guatemalteca Rigoberta
Menchú, ouço a paixão da lembrança em suas
palavras: