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Contudo, é menos que perfeita. Uma de suas falhas diz respeito não
tanto a questões políticas, sociológicas ou econômicas, mas à matéria
simbólica. Pode-se resumi-la assim: não temos um correlato nacional
da tela Progresso Americano.
A expansão do território norte-americano produziu uma épica que se
espalhou mundo afora. Nós a conhecemos muito bem. Diligências,
ferrovias, fortes militares, cavalos, apaches, desertos, pradarias,
bisontes, bandidos, John Wayne, carabinas, flechas, xerifes, saloons.
É uma epopeia que principalmente o cinema ajudou a fixar na
imaginação moderna, mas não só ele; a música, as artes visuais e a
literatura, tanto a popular como a erudita, também contribuíram para
essa construção. A paisagem do Oeste se tornou parte do patrimônio
comum da nação. É uma geografia que confere pertencimento. A
beleza e a escala da topografia se converteram em atributos espirituais
que imantaram a identidade nacional. Ser um cidadão dos Estados
Unidos da América é saber que aquela paisagem corre dentro de você
– ela é sua.
O contraste com o Brasil não poderia ser maior. Onde estão nossas
construções simbólicas da Amazônia? Que papel a floresta ocupa na
economia mental da nação? As respostas não são boas. Temos muito
mais lacunas do que ideias potentes sobre o nosso maior patrimônio
natural. Não desenvolvemos uma épica amazônica para compartilhar
entre nós.
A BR-163 corta o Brasil de Sul a Norte. Partindo do Rio
Mas seria errado dizer que nada existe ali. De quando em quando,
alguns pontos brancos se destacam contra o solo marrom no qual o sol
bate como um punho. São os bois. Parecem poucos para o tamanho da
paisagem. Reúnem-se sempre em formações determinadas menos por
instinto gregário ou hierarquias sociais do que pela existência de
sombras. Se uma castanheira solitária sobreviveu no meio do
descampado – a castanheira é uma espécie protegida, requer
autorização do Ibama para ser cortada –, então a manada estará
debaixo de sua copa. Se um renque de arbustos cresce à beira de um
corpo d’água, os animais se perfilarão ao longo da vegetação. Em
certo ponto da estrada, o tronco de uma árvore morta era a única
estrutura vertical à vista. A risca escura que projetava no chão
lembrava um relógio de sol. Sete bois faziam fila indiana em cima
dessa sombra, o focinho de um no rabo do outro. Olharam com
indiferença quando o carro diminuiu a velocidade para observá-los. O
essencial era não se mexer. Pareciam uma trupe de equilibristas.
οἶνοψ πόντος
ָָארץ
ֶ וְאֵת ה, אֵת הַּׁשָ מַ י ִם, ּב ָָרא אֱ ֹלהִים,ּב ְֵראׁשִית
Destruir a floresta é destruir também a chuva que cai longe dela. “[Na]
principal área desmatada da Amazônia – que começa no Maranhão,
desce pelo Pará e vai até o Norte do Mato Grosso –, o período de seca
já dura de uma a duas semanas a mais do que no resto da Amazônia”,
diz Ricardo Galvão. “Outro efeito grande é a interferência no regime
pluviométrico em todo o Brasil e na América do Sul, afetando
fortemente a nossa agricultura. Até o governo agora entende que os
chamados ‘rios voadores’ de umidade que se formam na Amazônia e
vão para o Sul e o Sudeste são essenciais para os agricultores
brasileiros.” As observações de Galvão reforçam as conclusões do
modelo desenvolvido em Princeton.
A capacidade que tem a floresta de regular o clima é outro aspecto a
ser levado em conta por quem faz cálculos utilitários. Como não
parece haver dúvida de que a preservação da Amazônia é condição
necessária para evitar os efeitos mais agudos do aquecimento global,
mantê-la de pé significa preservar um ativo cujo valor não fará senão
aumentar diante das crescentes emergências climáticas.
E m Os Subterrâneos, ensaio publicado na piauí de maio de