A moderna tradição brasileira, de Renato Ortiz. São
Paulo, Brasiliense, 1988, 222 p.
Lúcia Lippi Oliveira
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A publicação do livro de Reoato O próprio título do livro é signifi·
Ortiz, A moderna tradição brlJ1iileira, cativo na medida em que agrega duas merece aplausos. � bem escrito, toca palavras, dois conceitos comumente em questões importantes, é bem do entendidos como pólos antagônicos: cumentado e está vendendo bem (o modernidade e tradição. Sair do muno que mostra que,a lógica do mercado do tradicional para entrar no moderno não é incompatível com o critério de foi ideal politico e questão teórica dos qualidade). O livro possibilita um de últimos cem anos no Brasil. Tradi· bate sobre a sociedade brasileira de cional era identificado como rural, hoje através da implantação da indús· atrasado, familiar, afetivo, religioso tria cultural no país, e isto é muito e lento. Moderno era urbano, adian importante. tado, individual, racional, científico Renato Ortiz é um dos autores que e rápido. Superando esta dicotomia, estão na linha de frente do debate Ortiz vai mostrar que no Brasil o sOÍlre o papel da cultura no Brasil. esforço para construir a modernidade, RESENHAS 311 •
ou seja, o processo de modernização, se transforma em ação polJtica junto
já faz parte da nossa tradição, já faz às classes populares. Diferentes grupos parte da nossa história. ideológicos procuraram criar, através A mode",,, tradição brasileira cer da cultura popular, uma consciência tamente se beneficiou do sucesso da crítica dos problemas sociais, visando recente publicação de Tudo que é a constituição do povo-nação. Tanto sólido desmancha no ar, de Berman, a versão tradicional quanto a versão assim como do livro de Wilson, Rumo politizadora relacionam cultura popu à estação Finlândia. Esses textos to lar com expressão da nação, no pri cam igualmente no problema da mo meiro caso cuidando em preservá-la, dernidade, tópico central do livro de no segundo, utilizando-a como base Ortiz. O que este autor deseja dis da transformação social. cutir é o processo de mudança ocor A questão nacional tem sido assim rido na sociedade brasileira, e para O denominador comum de todos os tanto elege a implantação da indústria autores, independentemente das dife cultural no pais. Este processo de rentes posições adotadas. Do Esta transformação é debatido através de do Novo, passando pelo ISEB, pelos uma análise histórico-comparativa de CPC. e pelo método de alfabetização dois momentos da vida nacional, os de Paulo Freire, os intelectuais esti anos 40/50 e os anos 60/70. A dis veram sempre discutindo a construção cussão cultural ainda hoje estaria cir de uma identidade nacional. E en cunscrita à temática do nacional e quanto este tem sido o eixo do debate do popular, e esta temática ultrapas intelectual, houve 11m grande silêncio sada guiaria as análises sobre a cul sobre a constituição de uma cultura tura. Daí Ortiz retomar a expressão de massa, assim como sobre o rela tão cara a Mário de Andrade, pro cionamento entre a produção cultural pondo "acertar o relógio" da dis e o mercado. cussão cultural. Nos anos 60 o eixo do debate entre No capítulo denominado "O silên os intelectuais ainda era a questão cio", Ortiz procura mostrar como nacional, então acrescida de uma nova a questão da identidade se encontra dimensão - a luta contra o autori relacionada ao problema da cultura tarismo. Nesse período o Estado pas popular e à questão do Estado, já que sou a ser visto como campo de luta falar em cultura brasileira é discutir ideológica, e, sob a influência do pen os destinos políticos do país. Duas samento de Gramsci, os intelectuais tradições guiaram o pensamento inte se auto-identificam como agentes da lectual sobre o nacional-popular. A luta antiautoritária. Enquanto isso, a primeira está relacionada' aos estudos consolidação de uma cultura de mer e preocupações folclóricas tomadas cado no país passou despercebida ao enquanto manifestações culturais das debate intelectual. Podemos discordar classes populares. Este pensamento aqui e ali, podemos lembrar de 11m ou está associado à questão nacional na outro autor que tenha escrito sobre a medida em que as tradições populares indústria cultural, mas, como tendên encarnam O que seria o espírito de cia, creio que Ortiz está correto. um povo. A descoberta das manifes Concordando com sua observaçijo tações da cultura popular permitiria sobre um certo silêncio, eu apenas a identificação e a construção da iden complementaria suas reflexões lem tidade nacional. brando que a cultura de massa não A segunda tradição liga a cultura era discutida também porque o con popular à questão política. A cultura ceito de massas não tinha a menor 312 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1988/2
sociais. O conceito de "massas" era cipal é de ordem estética." Assim, a considerado como ideologicament.e criação de um campo especlfico é uma comprometido com uma perspectiva das chaves que permitiriam reconhe teórica da "direita". Não se dIspunha cer os sinais da modernidade. assim de instrumental teórico para A outra noção central é a de peri ver e refletir o que estava aconte feria. Tomando Florestan Fernandes cendo, ou melhor, o instrumental teó como referência, Ortiz vai assumir a rico em uso não permitia ver uma perspectiva de que "a burguesia Dão indústria cultural que se organizava possui Da periferia o papel civilizador para o mercado, para um público que que desempenhou na Europa". Nos não se diferenciava segundo as cisões países de periferia, e conseqüentemen de classe. te no Brasil, houve lima defasagem Por outro lado, no universo de entre os níveis de modernidade, "de questões sobre a cultura popular, hou fasagem entre modernização aparente ve discussão em torno da penetração e a realidade". O conceito de moder dos meios de comunicação. E aqui, nismo "antecipa" uma realidade que mais do que um silêncio, houve uma de fato não estaria acontecendo. E recusa em aceitar a indústria cultural, neste sentido "a noção de moderni já que esta destruiria a "autentici dade está 'fora do lugar' na medida dade" das manifestações populares. em que o Modernismo ocorre no Bra O filme de Cacá Diegues, Bye, bye sil sem modernização" (p. 32). Have Brasil, pode ser tomado como protó ria então uma "inadequação de certos tipo desta posição. conceitos aos tempos em que são Para realizar sua análise sobre a enunciados". sociedade brasileira, Ortiz lança mão Apoiando-se na análise de Berman da produção teórica e historiográfica sobre São Petersburgo, Ortiz vai con referente à Europa e aos Estados Uni siderar que o modernIsmo de pa.íses dos da América. e com este quadro periféricos "é forçado a se construir de referência que ele vai montar seu sobre fantasmas e sonhos de moder esquema interpretativo. A chave de nidade" (p. 34). Como nos países de sua análise gira em tomo dos concei periferia o desejo de modernidade se tos de periferia e autonomização. Va antecipa à realidade, a modernidade mos começar pelo último. Retomando passa a estar ligada à construção da a análise de Benjamin sobre a arte e identidade Dacional. Assim se confi a vida parisiense, Ortiz observa que gura a concepção de que só se reinos a vida intelectual européia teria se modernos se formos nacionais, idéia guido um padrão onde ocorre: 1. a que no Brasil toma forma em meados autonomização de determinadas esfe dos anos 20 e que guia todas as tenta ras - arte, literatura; e 2. o surgi� tivas de construção da nação através mento de um pólo de produção orien da cultura ou da atuação do Estado. tado para a mercantilização da cul Ortiz complementa esta sua primeira tura. abordagem do tema do livro obser O exemplo mais claro de autono vando que no Brasil a modernidade mização estaria na literatura, que acabou sendo assumida como um va passa a recusar o determInismo poJ( lor em si, sem ser questionada. tico e se constitui como uma prática Aqui também tendo a concordar especffica. "Este processo de auto com o autor. Entretanto, é preciso nomização implica a configuração de lembrar, a idéia de uma coexistência um espaço institucionalizado, com re- de tempos distintos, a "coexistência RESENHAS 313
do não-coetãneo"l pertenceu também nacional o que tenha impedido os
ao arsenal de conceitos dos isebianos, intelectuais de ver os aspectos da me> como por exemplo Cândido Mendes de midade que ultrapassavam o espaço e Hélio J aguaribe. ); preciso também social da nação. Mas não se sabia que não esquecer que esta concepção se o capitalismo é transnacional? origina no contexto alemão, já que A partir do esquema interpretativo no século XVllI e parte do XIX a que destaca os conceitos de autone> Alemanha era um país atrasado, pelo mização e periferia, Ortiz se lança menos em termos políticos, uma vez à análise do material histórico refe que não tinha realizado sua unifi· rente às origens das atividades vin cação. Afora o caso inglês, com sua culadas à cultura popular de massa. revolução industrial, e francês, com Os capltulos "Cultura e sociedade" sua revolução política, OS demais paí· e "Mem6ria e sociedadeu mostram ses da Europa foram em alguma me· a precariedade da indústria cultural dida periferia. Cabe então perguntar em seus primórdios. O rádio, O cine se a burguesia dos outros palses eu ma, as publicações (jornais, revistas, ropeu� teria ou não desempenhado livros), a televisão, as agências de um papel civilizador. A burguesia vie publicidade merecem a atenção do nense em tomo de 1900 foi ou não autor. Vale ressaltar a quantidade de civilizadora? teses, livros e artigos utilizados e ci De outro lado, se "idéias fora de tados no livro, o que envolve um lou lugar" são projetos, todas as idéias vável esforço de democratização da estiveram fora de lugar por algum informação. Estas informações são tempo. Todas as utopias, no sentido utilizadas para comprovar a incipiên de Mannheim, são idéias "fora de eia da indústria cultural e de um lugar", ou melhor, fora de tempo, já mercado de bens simbólicos nos anos que, creio, a me�fora temporal preen 40 e 50 no país. ); interessante ob che melhor esta imagem. Em que si servar as ·datas de publicação dos tuações a modernidade foi projeto e textos que anali$8m os meios de CC) depois se tomou realidade, em que municação e a indústria cultural. Na situações ela SÓ se realimu em parte bibliograíia mencionada por Ortiz sob ou não se realiwu? esta c1assüicação temos: No caso do Brasil, a modernidade enquanto projeto de industrialização antes de 1970 - 4 (acndo doi. d. 1941) parece ser a versão vencedora, em d. 1970 • 1975 - 14 d. 1976 • 1981 - 29 bora também tenhamos tido outros d. 1982 • 1987- 33 projetos de modernidade: Alberto sem date - S TOlles propunha um Brasil agrícola, rural e moderno, isto durante a Pri Neste ponto, Ortiz vai se deter na meira Repúblíca. Se a versão vence questão do desenvolvimento da racie> dora acabou sendo mesmo aquela que nalidade capitalista e da mentalidade implemente a industrialização, ou me· gerencial, ou melhor, nas dificuldades Ihor, a urbanização, como padrão de deste processo. Os testemunhos de modernidade, cabe perguntar: como inúmeros agentes culturais, entre eles e por que os intelectuais nos anos 60 Renato Murse, Raul Duarte, Silvino não refletiram sobre ela exatamente Neto, Saint-Clair Lopes, Moisés Welt quando uma de suas faces nos che man, Paulo Gracindo, Wilton Franco, gava através da indústria cultural? Walter Durst, Manoel Carlos, servem Talvez seja o compromisso entre me> para apontar a incipiente especiali dernidade e construção de identidade zação, o passado amadorístico e pou- 314 F.STUDOS HISTÓRICOS - 1988/2
co profissional, ou seja, o gap entre meiro lugar, não possuíamos um pas
os objetivos empresariais e sua reali sado clássico ao qual se faria frente. zação concreta_ "A idéia de precarie Havia também uma grande indeter dade exprime esta lacuna" (p_ 94)_ minação em termos de técnicas, já Com a introdução da idéia de pre que era um tempo de precariedade cariedade Ortiz permanece dentro dos na indústria cultural e de incipiente padrões do pensamento social brasi sociedade de consumo, o que favo leiro deste século, sempre às voltas receria o experimentalismo. Mas vi com O que nos Calta. Atraso, subde víamos um período de eCervescência senvolvimento, periferia são diferen política, onde as propostas do ISEB tes expressões para significar um colocavam como central a questão na espaço de tempo que separa "eles" cional para a realização do futuro do (modernos, desenvolvidos, centrais) e país. "nós". Será que quando a indústria Assim, os anos 50 e início dos anos cinematográfica começou nos Estados 60 estiveram marcados por um sen Unidos eles não viviam uma situação timento e por uma convicção de estar de precariedade? Os especialistas na o Brasil vivendo um momento parti área já existiam, já estavam prontos cular de sua hist6ria, um momento esperando o aparecimento desta in onde seria possível o tal salto produ dústria? Em que a nossa precariedade tivo. A terceira condição para a mo foi distinta ou similar à deles? Por dernidade apontada por Anderson outro lado, não será a precariedade estaria então presente, pode-se dedu uma situação estrutural do capitalis zir da análise de Ortiz sobre o pri mo, e o ritmo de obsolescência um meiro tempo da hist6ria da indústria traço marcante da modernidade? cultural no Brasil. A situação de precariedade na fase "O mercado de bens simbólicos" do pioneirismo permitiu, por outro refere-se às décadas de 60 e 70, quan lado, o desenvolvimento da iniciativa do então se consolida uma sociedade individual. A improvisação surge co de consumo e um mercado de bens mo exigência da época. Assim, se a culturais. O advento e a consolidação precariedade envolve a improvisação da televisão serve como principal fio frente às dificuldades materiais, ela condutor do capitulo: da televisão lo possibilita a criatividade_ caI à montagem do sistema de redes, Ortiz se pergunta sobre as condi da TV Excelsior à Rede Globo, do •
ções sociais que possibilitam "saltos teleteatro à telenovela. � apresentado
produtivos" tomando um texto de um processo de complexificação da Perry Anderson sobre estas condições divisão do trabalho, de racionalização no contexto europeu. Para Anderson, empresarial envolvendo uma crescen a modernidade européia esteve asso te profissionalização e um novo tipo ciada a três coordenadas no campo de relacionamento entre a empresa social: 1.- a existência de um pas e o empregado. A cultura passa a ser sado clássico que seria a fonte de tra um bem comercial ainda que, ressalta dição e reCerência obrigat6ria para Ortiz, nunca seja inteiramente merca os críticos do academicismo oficial; doria, já que encerra um "valor de 2. - a existência de inovações tec uso" que é intrínseco à sua mani nol6gicas; e 3.- a proximidade ima festação (p. 146). ginativa da revolução social. A implantação deste sistema é re Orliz passa então a fazer suas apro sultado do investimento do Estado. ximações para o caso brasileiro neste realizado pelos governos militares sob primeiro momento analisado. Em pri- inspiração da ideologia da segurança RESENHAS 315
nacional. Os interesses do Estado são o capitalismo sejam pólos que se inte
similares aos interesses globais dos gram e se interpenetram" (p. 210). empresários da cultura, mesmo que Aqui também não discordo dos ar possam existir diferenças tópicas prin gumentos nem dos dados históricos cipalmente no que se refere à cen citados por Ortiz. IÔ certo que hoje sura. o mercado dita suas regras no campo No Brasil foi o Estado militar quem da cultura. O Ibope e a vendagem promoveu o capitalismo em sua forma é que decidem o que é ou não p0- mais avançada, fazendo com que os pular. Minhas dúvidas passam por um imperativos de ordem econômica pas pressuposto que, creio, acompanha as sassem a predominar também na es análises do autor. fera da cultura. O Estado é o agente A consolidação da indústria cul da modernização, modernização esta tural é tomada como um processo uni que é também coercitiva. linear que saiu do mais simples para A coerção do Estado através da o mais complexo, da contabilidade de censura e da eliminação de alguns armazém para o manager, do espírito contendores que lhes ofereciam resis de aventura para o cálculo previsfvel. tência (com o fechamento de Última IÔ como se determinados estágios, ao Hora e da TV Excelsior) segue a 16- serem alcançados, destruíssem neces· gica da racionalização da sociedade, sariamente os traços que davam sen lógica do mercado, lógica do desen tido às fases anteriores. Seria como volvimento do capitalismo que mar se a modernidade instaurasse um muno cha inexoravelmente para abranger do clean, racional, previsor, que deixa todos os aspectos da vida social e de lado o acaso, as paixões e o impre que leva o Brasil a integrar o mer visto. O recente choque entre a Rede cado internacional. Globo e o comediante JÔ Soares (reti rado do ar em seus anúncios dos pro Dentro desta nova situação, em que dutos Cica) pode servir como ponto a indústria cultural já está consoli de reflexão. Este comportamento da dada, "a discussão sobre o nacional mais moderna empresa de comunica· adquire uma outra feição. Até então, ção é atrasado, ou não existe aquela ela se confinava aos limites internos racionalidade sem interveniências co da nação brasileira, seja na versão tra- - mo parece pressupor a análise de dicional, seja na forma isebiana; hoje Ortiz? ela se transforma em ideologia que Estas questões, como já mencionei, justifica a ação dos grupos empresa· são derivadas da própria riqueza de riais no mercado mundial'! (p. 206). análise que nos proporciona o autor. Identidade nacional passa a ser equa· A moderna tradição brasileira reco cionada em termos de mercado, nação loca o debate em torno da moderni integrada passa a significar a inter· dade, ou, como disse José CasteUo ligação de consumidores espalhados (Idéias, Jornal do Brasil, 2.1. 1988), pelo território. Assim, hoje, popular "a modernídade, que antes era outro é O que é consumido, é o que vende. nome da utopia, já chegou. Transfor A indústria cultural - expressão da mou·se em norma, em tradição. Ser cultura brasileira, capitalista e mo moderno agora é ser conservador. Du derna - é resultante da fase mais ros tempos". E ao chegar ela trouxe avançada do capitalismo. "O movi· em seu bojo vários problemas que lhe mento de modernização da sociedade são inerentes e não derivados neces· brasileira faz com que o nacional e sariamente de qualquer tipo de atraso. 316 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1988/2
Para concluir. retomo o mesmo livro principalmente num momento em que
de Berman citado por Renato Ortiz. o mundo já vivencia o desencanta· Seu capítulo sobre o Fausto de Goethe mento deste ideal. pode ser ilustrativo das várias faces da modernidade e das contradições Ltícia Lippi Oliveira � doutora em socio que envolvem sua real implantação. logia pela USP e pesquisadora do Cpdoc.