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Algumas noções básicas de lingüística: os níveis descritivos da linguagem

A língua pode ser estudada sob diferentes perspectivas (descritiva, social, cognitiva,
etc). Cada língua pode ser estudada como um sistema fechado, ou seja, focando o
conjunto da sua gramática e de seu léxico, assim como podemos achá-los nas descrições
gramaticais e nos dicionários, ou pode ser analisada em seu uso concreto, que é em boa
medida diferente, mais complexo e dependente de muitas variáveis não estritamente
linguísticas.

Geralmente, o estudo descritivo da linguagem é divido em vários níveis. Aqueles


tradicionalmente tidos como os principais são: o nível fonético-fonológico, o nível
morfológico, o nível sintático. Esses três níveis constituem a gramática de uma língua.
A esses níveis deve-se acrescentar o léxico, ou seja, o conjunto das palavras que
compõem uma língua e que são usadas respeitando as regras da gramática. O estudo dos
significados das palavras e das frases (ou dos enunciados) é objeto da semântica e da
pragmática, dependendo se o foco está no estudo do significado puramente lingüístico
ou da língua inserida em seu uso concreto.

Langue e parole

O fundador da linguística geral, o suíço Ferdinand de Saussure, propõe uma distinção


entre langue, a língua como sistema abstrato, mental e social, e parole, a língua como
conjunto de elementos concretos realizados pelos indivíduos. A langue lida com a
competência mental do sistema linguístico que os falantes compartilham entre eles. É o
fato que uma determinada comunidade compartilha a competência de um código (ou
seja, de uma langue) que faz com que os indivíduos daquela comunidade se entendam.
A langue é, portanto, um sistema estruturado e em equilíbrio, que sofre lentas
mudanças, mas que antes de tudo fica estável. Se assim não fosse, não poderíamos nos
entender. Por outro lado, as realizações concretas da língua, como a pronúncia de um
som, de uma palavra ou de uma frase, pertencem à parole. Elas são manifestações
concretas perceptíveis através dos sentidos (o ouvido percebe a fala e a vista percebe a
escrita) e mensuráveis como realizações físicas. São os indivíduos enquanto pessoas
concretas que realizam os atos de parole. Em uma interação oral ou escrita, os
indivíduos são seres concretos que falam (ou escrevem) elementos concretos da língua.
É importante manter distintos os níveis do sistema abstrato e estruturado (langue) e da
realização concreta da língua como comunicação (parole), por muitas razões que
veremos.

Fonética e fonologia

Comecemos por uma explicação básica do primeiro nível descritivo da lingugem: o


nível fonético-fonológico. Olhemos logo para a diferença entre a fonética e a fonologia.

A fonética é a disciplina que estuda os sons humanos assim como eles se manifestam
concretamente, ou seja, como são concretamente executados pelo aparato fonatório
humano ou recebidos pelo aparato acústico humano. Eles podem também ser medidos
por equipamentos apropriados. Os sons de uma língua podem ser representados segundo
o alfabeto fonético entre colchetes e o símbolo ’ indica que a sílaba seguinte possui
acento. A transcrição fonética das palavras casa e vasa é [’kaz´] e [’vaz´].
A fonologia é a disciplina que estuda como os sons são representados mentalmente e
como eles se agrupam pela capacidade de atribuir distinções de significado às palavras.
Para compreender isso, examinemos as palavras chocar e tocar, que são representadas
foneticamente como [So’kah] e [to’kah]: o primeiro som de chocar (que na escrita é
representado com dois símbolos gráficos, ch) é transcrito pelo símbolo [S] do alfabeto
fonético. O primeiro som de tocar, por outro lado, é representado no alfabeto fonético
por [t] e no alfabeto gráfico por t. Uma comparação entre a transcrição dessas palavras –
[So’kah] e [to’kah], respectivamente – nos mostra que elas se distinguem unicamente por
um som e possuem a mesma estrutura acentual. Por esse motivo, chocar e tocar
constituem um par mínimo, ou seja, um conjunto de palavras com significados
diferentes que se diferem por um único som. Note que a alternância entre esses sons é
suficiente para distinguir o significado dessas palavra. O par mínimo formado por
chocar e tocar mostra que os fones [S] e [t] têm representações mentais diferentes e,
portanto, correspondem a fonemas distintos: o /S/ e o /t/. Note também que a
representação fonológica de um som ou de uma palavra é feita entre barras oblíquas,
como em /So’kah/ (chocar) e /to’kah / (tocar).

Observemos agora os sons [t] e [tS]. O primeiro é o som inicial de teto; o segundo o som
inicial de tchau. Em português, com a exeção dessa palavra de origem estrangeira, o
som [tS] não distingue significados. Uma prova disso é o fato de que a palavra tia é
pronunciada como [‘tiª´] em algumas partes do Brasil e como [‘tSiª´] em outras partes,
mas são sempre entendidas como variações da mesma palavra. De fato, apesar da
evidente diferença de pronúncia entre elas, nenhum falante de português pensa que
[‘tSiª´] e [‘tiª´] têm significados diferentes. Isso mostra que os sons [t] e [tS] possuem, em
português, a mesma representação mental, apesar da diferença acústica entre eles. Ao
contrário, a diferença entre [p] e [b] – que do ponto de vista acústico é bem menor que a
diferença entre [t] e [tS] – é mentalmente uma diferença mais significativa. Assim,
[‘pikU] e [‘bikU], [‘past´] e [‘bast´] são entendidas como palavras diferentes (e não como
variações da mesma palavra) somente porque no lugar de um [p] há um [b].

O objeto da fonética são os fones. Um fone é um som concreto. O objeto da fonologia é


o fonema, ou seja, uma representação mental de um som que é capaz de distinguir
significados. A fonologia estuda, por assim dizer, a dimensão cognitiva do som. De
fato, apesar de todos os seres humanos terem as mesmas potencialidades fisiológicas
para produzir e escutar sons, sabemos que um brasileiro, um italiano ou um chinês não
conseguem com a mesma facilidade produzir todos os sons nem decodificá-los quando
os escutam. O que acontece é que tanto o aparato fonatório quanto o aparato acústico
são comandados pela nossa cognição, e essa cognição é “moldada”, a partir do nosso
nascimento, de diferentes maneiras, em diferentes lugares. A cognição de um brasileiro
é moldada diferentemente daquela, por exemplo, de um chinês. Assim, a cognição
brasileira é moldada para diferenciar claramente os sons [r] e [l], enquanto a cognição
de um chinês não o é. A cognição de um italiano é moldada para diferenciar claramente
as consoantes intensas (ou consoantes longas) das simples (ou consoantes curtas), e,
com isso, diferenciar o significado da palavra /‘palla/ (bola) do significado de /‘pala/
(pá), enquanto um estrangeiro geralmente não consegue nem perceber acusticamente
essa diferença, nem mesmo executá-la foneticamente. Portanto, ainda que o aparato
fonatório e acústico de todos os seres humanos consiga a princípio produzir e receber os
mesmos sons (sendo, portanto, uma capacidade da espécie), nem todos são de fato
realizados e percebidos com a mesma facilidade. Os falantes de uma língua produzem
com maior facilidade certos sons do que outros e percebem mais facilmente certas
diferenças de sons do que outras. Um brasileiro, por exemplo, não tem dificuldade em
perceber a diferença entre /‘pãu/ e /‘pau/ mas para um estrangeiro essas duas sequências
podem parecer iguais, exatamente como para um brasileiro podem parecer iguais as
sequências italianas /‘kasa/ (casa) e /‘kassa/ (caixa) ou as sequências inglesas /‘tin/ (lata)
e /‘θin/ (magro, fino).

Também é importante notar que as diferentes línguas não possuem os mesmos fonemas.
Em outras palavras, um som que é fonema em uma língua pode não ser fonema em
outra língua. Assim, enquanto o português considera os sons [ t] e [tS] (o som inicial nas
duas pronúncias de tia) como duas realizações possíveis do mesmo fonema, o italiano
considera esses dois sons como dois fonemas diferentes, e a partir deles diferencia os
pares mínimos /‘tinZere/ (tingere, que em português significa ‘tingir’) e /‘tSinZere/
(cingere, que significa ‘cercar’). Enquanto em português ou em italiano a substituição
do som [t] pelo som [θ] em uma palavra não muda o seu significado, em inglês essa
substituição tem o poder de mudar o significado de várias palavras.

Ainda com relação à distinção entre fones e fonemas, vale ressaltar que os fones que o
ser humano pode produzir são infinitos, ao passo que os fonemas de cada língua são
limitados: por volta de 30 em boa parte das línguas. Os fonemas são decididos
autonomamente em cada comunidade de falantes, ou seja, em cada língua. Enquanto o
português diferencia como fonemas /ã/ e /a/, por exemplo, o italiano percebe os sons [a]
e [ã] como diferentes realizações do mesmo fonema /a/. Ao contrário, enquanto o
italiano percebe como diferentes fonemas /t/ e /tS/, o português não atribui aos sons [t] e
[tS] o poder de diferenciar significados. Essa é uma das razões que torna difícil aprender
uma língua estrangeira quando o cérebro de um falante está já moldado e portanto
acostumado a agrupar cognitivamente os fones em fonemas. As distinções que são
importantes na língua que queremos aprender e que não são importantes na língua que
falamos são as distinções mais difíceis. Por esse mtoivo, é comum ouvir um brasileiro
ou um italiano que pronunciam a palavra think do inglês como se fosse tink ou sink. Isso
deve-se ao fato de que tanto o português quanto o italiano possuem os fonemas /t/ e /s/
mas não possuem o fonema /θ/ do inglês.

Mesmo dentro da mesma língua, um fonema pode ser realizado por mais de um fone,
em função de fatores diversos. Entre os mais importantes, há o fator diatópico
(geográfico) e o fator contextual (o contexto fonético criado pelo som imediatamente
antes e imediatamente depois daquele que queremos pronunciar). É sabido que em, Belo
Horizonte, a palavra tia é pronunciada como [‘tSiª´], ao passo que, em outros lugares do
Brasil, pronuncia-se [‘tiª´]. Essa é uma diferença diatópica, ou seja, geográfica. Outro
exemplo de variação diatópica é a pronuncia carioca do s em final de sílaba ou de
palavra. No Rio de Janeiro, o s em posição final é realizado como [S], da mesma
maneira que primeiro som da palavra chocar [So‘kah]. Quando dois fones são usados
para realizar o mesmo fonema, são chamados alofones. O [S] final da pronúncia do Rio,
assim como o [s] usado em Belo Horizonte, são alofones de /s/, assim como os fones [tS]
e [t] são alofones de /t/.

Os exemplos anteriores mostram a variação em função do fator diatópico. Examinemos


agora a variação em função do contexto fonético de ocorrência de um som. Em primeiro
lugar, note-se que, o fonema /s/ é pronunciado como [S] no Rio somente em contextos
fonéticos específicos: em final de palavra (asas, paz, etc) ou em posição final de sílaba
seguido de consoante (amigos, casca, etc). Por outro lado, quando em início de palavra,
o fonema /s/ é pronunciado sempre como [s] (são, sinal, etc). Assim, a variação entre [s]
e [S] na pronúncia carioca trata-se de uma variação contextual.

Também na pronúncia de Belo Horizonte podem-se notar variações em função do


contexto fonético em que um som ocorre. O fonema /t/, por exemplo, é pronunciado
como [tS] somente quando é seguido pelo fone [i] (tia, Sebastião, leite, etc). Por outro
lado, quando se encontra diante das demais vogais, o mesmo fonema é realizado como
[t] (tatu, tomar, até). A explicação para isso é a de que a vogal [i] é pronunciada com a
língua muito próxima ao palato duro (o ‘céu da boca’) e na parte anterior da boca
(próximo aos dentes). Assim, em palavras como tia, forte, arte e tirar, em que o fonema
/t/ é imediatamente seguido por um [i], o /t/ assimila uma das características do som que
o segue, sendo realizado pelo som [tS], que se pronuncia colocando a língua em contato
com o palato. Esse processo chama-se assimilação. A palatalização do /t/ diante do fone
[i] é um caso de assimilação regressiva, porque o som posterior gera um efeito no som
anterior. Também há casos de assimilação progressiva, em que o som anterior
influencia na realização do som posterior.

O grafema

Quando escrevemos uma palavra, usamos uma escrita que, em português e muitas
outras línguas, é uma escrita alfabética. Uma escrita alfabética é aquela que possui mais
ou menos (em certas línguas mais e em outras menos) uma correspondência entre os
caracteres e os sons. Tanto o português como o italiano, o inglês e outras línguas
adotam uma variedade da escrita alfabética que é o alfabeto latino. O russo, que também
adota o sistema alfabético, prefere o alfabeto cirílico, assim como o grego prefere outro
alfabeto. Todavia, mesmo se baseando na correspondência entre elemento gráfico e
som, com poucas exceções, esses sistemas não possuem uma correspondência total
entre ortografia e pronúncia. Em alguns casos, como o inglês e o francês, a distância é
muito grande. Em outros casos, principalmente o italiano e o espanhol, a distância é
pequena. Isso tem motivos históricos, como veremos adiante.

Nesse momento, é importante afirmar que o grafema não é o correspondente escrito de


um fone, mas sim o correspondente escrito de um fonema. Na palavra nhoque, por
exemplo, temos quatro fonemas: /ˉ/, /ç/, /k/, /i/. Assim, o nh deve ser considerado um
único grafema, uma vez que representa um único fonema. O mesmo ocorre com o
grafema qu na palavra aqui, com ch na palavra chorar e com lh na palavra folha. Cada
um desses grafemas identifica um único fonema.

Ao compararmos a palavra nhoque com a palavra casa, percebemos que o fonema /k/
pode ser representado na escrita pelo o grafema <qu>, como em nhoque e com <c>,
como em casa. Isso é verdade também para outros fonemas: no caso do fonema /s/
temos os grafemas <ss>, <ç>, <c> e <x>. A razão dessa e de outras incoerências é
histórica. O fonema /ˉ/, por exemplo, existe tanto em italiano, quanto em português e
espanhol. No entanto, as três línguas usam símbolos diferentes para representá-lo: nh
em português, gn(i) em italiano e ñ em espanhol. Isso se deve ao fato de que o latim
(língua da qual o português, o italiano e o espanhol derivaram o próprio alfabeto) não
possuía o fonema /ˉ/. Assim, cada língua adotou a sua estratégia para representá-lo.

Também por motivos históricos há uma grande distância entre o sistema gráfico do
inglês e a pronuncia da língua. Em primeiro lugar, deve-se considerar que a língua
falada muda constantemente, enquanto a escrita tende a permanecer estável. De fato,
ainda que a palavra tia seja pronunciada como [‘tSi´], não se cogita fazer uma adaptaçao
da grafia da palavra em função da sua pronúncia.

O que explica a grande distância que caracteriza o sistema gráfico do inglês e a sua
pronúncia é o fato de que o seu sistema de escrita se desenvolveu antes do
desenvolvimento de várias mudanças fonéticas que caracterizam o inglês atual e, por
esse motivo, as mudanças fonéticas não foram registradas graficamente.

A demonstração de que o grafema representa o fonema e não o fone pode ser feita pelos
exemplos seguintes: as pronúncias [‘tʃia] e [‘tia] realizam de maneira diferente o
primeiro fonema, o seja, o primeiro fonema é realizado com dois alofones diferentes;
mas isso não gera alguma diferença na grafia, que apenas representa o fonema e não sua
realização fonética. Do mesmo jeito, as pronúncias [‘pasta] e [‘paʃta] realizam o terceiro
fonema com diferentes alofones, mas essa diferença não gera diferentes grafias.

Morfologia

Anteriormente, vimos a importância de se estabelecer a distinção entre unidades


concretas e unidades abstratas para uma análise linguística. Assim, no âmbito da
fonética e da fonologia, observamos a diferença entre os fones (as menores unidades
sonoras de uma língua) e os fonemas (as representações mentais dos sons, as quais
distinguem significados). Os fones são unidades concretas, enquanto os fonemas são
unidades abstratas.

A divisão entre os níveis concreto e abstrato também é pertinente para a morfologia, que
se ocupa do estudo das partes das palavras e dos significados associados a elas. Assim,
o objeto de estudo da morfologia são os morfemas, as menores unidades de significado
da língua, e os morfes, que são as formas com que esses significados se realizam.

Para compreender melhor a diferença entre morfes e morfemas, observemos alguns


exemplos: em português, uma palavra como meninos pode ser segmentada em 3 morfes,
sendo que cada um deles está associado a um significado: {menin} carrega o significado
lexical; {o} carrega o significado de gênero masculino; {s} carrega o significado de
número plural. Nesse caso, cada forma, ou seja cada morfe, carrega um único
significado. Todavia, em línguas como o português, e em geral nas línguas indo-
européias (chamadas de flexivas ou fusivas), o mais comum é que tenhamos mais de um
significado, ou seja, mais de um morfema, para um morfe. Podemos perceber isso
claramente comparando a palavra meninos do português com o equivalente do italiano,
bambini. No caso do italiano, temos o morfe que carrega o morfema lexical {bambin}
seguido por um único morfe que carrega dois morfemas. De fato, nesse caso, a forma
{i} associa-se tanto ao significado de gênero {masculino} quanto ao significado de
número {plural}.

Em português, a morfologia verbal não deixa dúvidas de que um único morfe pode estar
associado a mais de um morfema. A forma (nós) amávamos, por exemplo, pode ser
segmentada nos morfes {am}, {a}, {va} e {mos}. O morfe {am} carrega o morfema
lexical também presente em amor, amante, amigo, etc. O morfe {a} constitui a vogal de
ligação e tem, portanto, valor gramatical. O morfe {va}, por sua vez, carrega três
morfemas: o de modo indicativo (assim, amava se contrapõe, por exemplo, a amaria),
de tempo passado (assim, amava se contrapõe, por exemplo, a amo ou amarei), e de
aspecto vebal (assim, amava se contrapõe, por exemplo, a amei, que também é passado,
mas tem um signficado diferente daquele de amava). Por fim, o morfe {mos} carrega o
morfema de primeira pessoa (em contraposição a amavas etc.) e o morfema de número
plural (em contraposição a amava). Um exemplo extremo é o caso da palavra é, do
verbo ser. Em é, com um único fonema, e portanto um único morfe, nós indicamos uma
série de morfemas entre os qais pelo menos os seguintes: morfema lexical, morfema de
modo, morfema de aspecto, morfema de tempo, morfema de terceira pessoa, morfema
de número singular.

Esses exemplos mostram que é importante distinguir a noção de morfema (o significado


abstrato que é carregado por uma forma) da noção de morfe (a forma segmentável de
uma palavra que carrega um ou mais significados). Além disso, deixam claro que um
único morfe pode carregar vários morfemas.

Também é importante notar que um mesmo morfema (ou seja, um mesmo significado)
pode ser representado por mais de um morfe. Em português, isso é muito evidente no
significado {plural}. Nós não podemos dizer que o morfe do plural é sempre {s},
porque o plural de mar é mares, o plural de caracol é caracois, o plural de caminhão é
caminhões. Tanto {s}, quanto {es}, quanto {is}, quanto {ões} são morfes do morfema
{plural}. Quando vários morfes são realizações concretas domesmo morfema, são
chamados de alomorfes.

Morfologia gramatical e morfologia flexional

A morfologia se divide em morfologia gramatical (também chamada de morfologia


flexional) e morfologia derivacional. Todos os exemplos acima são de morfologia
gramatical. A morfologia gramatical ocupa-se de processos que fornecem significados
gramaticais do mesmo lexema, ou seja, do mesmo significado lexical da palavra. As
palavras menina e menino, por exemplo, são duas formas gramaticais do mesmo
lexema. A única distinção entre elas é o gênero da palavra, que constitui uma diferença
gramatical. Da mesma maneira, todas as formas do verbo amar (amo, amamos, amei,
tenho amado, amaria, etc.) são formas diferentes do mesmo lexema.

Já a morfologia derivacional ocupa-se de processos de formação de novas palavras (ou


seja, novos lexemas) a partir de um lexema que serve como base. Nesse sentido, não
podemos dizer que comum, que é um adjetivo, e comunidade, que é um nome, são o
mesmo lexema. O segundo, contudo, é derivado do primeiro através de um processo de
sufixação, por meio da colocação do morfema (-idade) que tem a capacidade de fazer
com que um adjetivo vire nome, criando uma nova palavra.

A derivação é uma estratégia extremamente comum para enriquecer o vocabulário das


línguas. Além disso, é considerada um processo muito transparente, visto que os
sufixos e os prefixos possuem significados interpretáveis com facilidade, sendo possível
compreender o significado da nova palavra a partir do significado da palavra da qual ela
deriva. Analisemos os termos feliz e o seu contrário, infeliz, formado por processo de
derivação. Para compreender o significado de infeliz, é suficiente saber o que significa
feliz e que o prefixo in indica a ideia de negação. Dessa maneira, sabemos
automaticamente que muitas palavras que são prefixadas com in significam o contrário
das palavras das quais derivam. Em contrapartida, analisemos as palavras jovem e velho.
Nesse caso, é necessário sabermos o significado de ambas as palavras, pois não há
nenhum elemento nelas que indica que uma é o contrário da outra. Apesar da derivação
constituir um processo transparente de formação de palavras, pode ocorrer que os
falantes percam a percepção que uma palavra é derivada de uma outra. Um exemplo
disso é a palavra amigo, a qual constitui uma derivação da mesma base de amar, mas
frequenemente não é percebida como tal.

Há três principais processos de derivação:

1. derivação por afixação, ou seja, pela colocação de um morfema antes (prefixo),


depois (sufixo) ou em certas línguas dentro (infixo) da raiz da palavra;
2. derivação por composição, em que morfemas lexicais são combinados na
formação de uma nova palavra, como em terremoto (composto de dois nomes,
terra e moto) e guardachuva (composto de um verbo e de um nome);
3. derivação por conversão, em que uma forma passa a ser usada com funções
morfológicas diferentes e passa a constituir lexemas diferentes. Esse é um
mecanismo muito comum nas línguas com morfologia muito pobre, como o
inglês. O português, com morfologia mais rica que o inglês, também faz uso da
conversão. A palavra poder, por exemplo, pode ser verbo (eu não posso fazer
isso), mas pode ser também nome (a bancada ruralista tem muito poder). Da
mesma maneira, a palavra rápido pode ser adjetivo e também advérbio (ela
corre rápido). Em inglês, a palavra back pode ser advérbio (look back!),
preposição (I go back home), nome (I have a pain in my back), verbo (please,
back the car), adjetivo (the back door). Também em inglês, a palavra round
pode ser adjetivo (a round table), nome (rounds of paper), advérbio (the earth
goes round), preposição (to travel round the world) e verbo (to round a figure).
Muito frequentemente, há conversão para transformer verbos em nomes e verbos
em adjetivos (to look e give a look; to nail e give me a nail; the good e a good
man; to slow e a slow student; down the street e come down; the game is over e
over the table e look over, etc).

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