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A língua pode ser estudada sob diferentes perspectivas (descritiva, social, cognitiva,
etc). Cada língua pode ser estudada como um sistema fechado, ou seja, focando o
conjunto da sua gramática e de seu léxico, assim como podemos achá-los nas descrições
gramaticais e nos dicionários, ou pode ser analisada em seu uso concreto, que é em boa
medida diferente, mais complexo e dependente de muitas variáveis não estritamente
linguísticas.
Langue e parole
Fonética e fonologia
A fonética é a disciplina que estuda os sons humanos assim como eles se manifestam
concretamente, ou seja, como são concretamente executados pelo aparato fonatório
humano ou recebidos pelo aparato acústico humano. Eles podem também ser medidos
por equipamentos apropriados. Os sons de uma língua podem ser representados segundo
o alfabeto fonético entre colchetes e o símbolo ’ indica que a sílaba seguinte possui
acento. A transcrição fonética das palavras casa e vasa é [’kaz´] e [’vaz´].
A fonologia é a disciplina que estuda como os sons são representados mentalmente e
como eles se agrupam pela capacidade de atribuir distinções de significado às palavras.
Para compreender isso, examinemos as palavras chocar e tocar, que são representadas
foneticamente como [So’kah] e [to’kah]: o primeiro som de chocar (que na escrita é
representado com dois símbolos gráficos, ch) é transcrito pelo símbolo [S] do alfabeto
fonético. O primeiro som de tocar, por outro lado, é representado no alfabeto fonético
por [t] e no alfabeto gráfico por t. Uma comparação entre a transcrição dessas palavras –
[So’kah] e [to’kah], respectivamente – nos mostra que elas se distinguem unicamente por
um som e possuem a mesma estrutura acentual. Por esse motivo, chocar e tocar
constituem um par mínimo, ou seja, um conjunto de palavras com significados
diferentes que se diferem por um único som. Note que a alternância entre esses sons é
suficiente para distinguir o significado dessas palavra. O par mínimo formado por
chocar e tocar mostra que os fones [S] e [t] têm representações mentais diferentes e,
portanto, correspondem a fonemas distintos: o /S/ e o /t/. Note também que a
representação fonológica de um som ou de uma palavra é feita entre barras oblíquas,
como em /So’kah/ (chocar) e /to’kah / (tocar).
Observemos agora os sons [t] e [tS]. O primeiro é o som inicial de teto; o segundo o som
inicial de tchau. Em português, com a exeção dessa palavra de origem estrangeira, o
som [tS] não distingue significados. Uma prova disso é o fato de que a palavra tia é
pronunciada como [‘tiª´] em algumas partes do Brasil e como [‘tSiª´] em outras partes,
mas são sempre entendidas como variações da mesma palavra. De fato, apesar da
evidente diferença de pronúncia entre elas, nenhum falante de português pensa que
[‘tSiª´] e [‘tiª´] têm significados diferentes. Isso mostra que os sons [t] e [tS] possuem, em
português, a mesma representação mental, apesar da diferença acústica entre eles. Ao
contrário, a diferença entre [p] e [b] – que do ponto de vista acústico é bem menor que a
diferença entre [t] e [tS] – é mentalmente uma diferença mais significativa. Assim,
[‘pikU] e [‘bikU], [‘past´] e [‘bast´] são entendidas como palavras diferentes (e não como
variações da mesma palavra) somente porque no lugar de um [p] há um [b].
Também é importante notar que as diferentes línguas não possuem os mesmos fonemas.
Em outras palavras, um som que é fonema em uma língua pode não ser fonema em
outra língua. Assim, enquanto o português considera os sons [ t] e [tS] (o som inicial nas
duas pronúncias de tia) como duas realizações possíveis do mesmo fonema, o italiano
considera esses dois sons como dois fonemas diferentes, e a partir deles diferencia os
pares mínimos /‘tinZere/ (tingere, que em português significa ‘tingir’) e /‘tSinZere/
(cingere, que significa ‘cercar’). Enquanto em português ou em italiano a substituição
do som [t] pelo som [θ] em uma palavra não muda o seu significado, em inglês essa
substituição tem o poder de mudar o significado de várias palavras.
Ainda com relação à distinção entre fones e fonemas, vale ressaltar que os fones que o
ser humano pode produzir são infinitos, ao passo que os fonemas de cada língua são
limitados: por volta de 30 em boa parte das línguas. Os fonemas são decididos
autonomamente em cada comunidade de falantes, ou seja, em cada língua. Enquanto o
português diferencia como fonemas /ã/ e /a/, por exemplo, o italiano percebe os sons [a]
e [ã] como diferentes realizações do mesmo fonema /a/. Ao contrário, enquanto o
italiano percebe como diferentes fonemas /t/ e /tS/, o português não atribui aos sons [t] e
[tS] o poder de diferenciar significados. Essa é uma das razões que torna difícil aprender
uma língua estrangeira quando o cérebro de um falante está já moldado e portanto
acostumado a agrupar cognitivamente os fones em fonemas. As distinções que são
importantes na língua que queremos aprender e que não são importantes na língua que
falamos são as distinções mais difíceis. Por esse mtoivo, é comum ouvir um brasileiro
ou um italiano que pronunciam a palavra think do inglês como se fosse tink ou sink. Isso
deve-se ao fato de que tanto o português quanto o italiano possuem os fonemas /t/ e /s/
mas não possuem o fonema /θ/ do inglês.
Mesmo dentro da mesma língua, um fonema pode ser realizado por mais de um fone,
em função de fatores diversos. Entre os mais importantes, há o fator diatópico
(geográfico) e o fator contextual (o contexto fonético criado pelo som imediatamente
antes e imediatamente depois daquele que queremos pronunciar). É sabido que em, Belo
Horizonte, a palavra tia é pronunciada como [‘tSiª´], ao passo que, em outros lugares do
Brasil, pronuncia-se [‘tiª´]. Essa é uma diferença diatópica, ou seja, geográfica. Outro
exemplo de variação diatópica é a pronuncia carioca do s em final de sílaba ou de
palavra. No Rio de Janeiro, o s em posição final é realizado como [S], da mesma
maneira que primeiro som da palavra chocar [So‘kah]. Quando dois fones são usados
para realizar o mesmo fonema, são chamados alofones. O [S] final da pronúncia do Rio,
assim como o [s] usado em Belo Horizonte, são alofones de /s/, assim como os fones [tS]
e [t] são alofones de /t/.
O grafema
Quando escrevemos uma palavra, usamos uma escrita que, em português e muitas
outras línguas, é uma escrita alfabética. Uma escrita alfabética é aquela que possui mais
ou menos (em certas línguas mais e em outras menos) uma correspondência entre os
caracteres e os sons. Tanto o português como o italiano, o inglês e outras línguas
adotam uma variedade da escrita alfabética que é o alfabeto latino. O russo, que também
adota o sistema alfabético, prefere o alfabeto cirílico, assim como o grego prefere outro
alfabeto. Todavia, mesmo se baseando na correspondência entre elemento gráfico e
som, com poucas exceções, esses sistemas não possuem uma correspondência total
entre ortografia e pronúncia. Em alguns casos, como o inglês e o francês, a distância é
muito grande. Em outros casos, principalmente o italiano e o espanhol, a distância é
pequena. Isso tem motivos históricos, como veremos adiante.
Ao compararmos a palavra nhoque com a palavra casa, percebemos que o fonema /k/
pode ser representado na escrita pelo o grafema <qu>, como em nhoque e com <c>,
como em casa. Isso é verdade também para outros fonemas: no caso do fonema /s/
temos os grafemas <ss>, <ç>, <c> e <x>. A razão dessa e de outras incoerências é
histórica. O fonema /ˉ/, por exemplo, existe tanto em italiano, quanto em português e
espanhol. No entanto, as três línguas usam símbolos diferentes para representá-lo: nh
em português, gn(i) em italiano e ñ em espanhol. Isso se deve ao fato de que o latim
(língua da qual o português, o italiano e o espanhol derivaram o próprio alfabeto) não
possuía o fonema /ˉ/. Assim, cada língua adotou a sua estratégia para representá-lo.
Também por motivos históricos há uma grande distância entre o sistema gráfico do
inglês e a pronuncia da língua. Em primeiro lugar, deve-se considerar que a língua
falada muda constantemente, enquanto a escrita tende a permanecer estável. De fato,
ainda que a palavra tia seja pronunciada como [‘tSi´], não se cogita fazer uma adaptaçao
da grafia da palavra em função da sua pronúncia.
O que explica a grande distância que caracteriza o sistema gráfico do inglês e a sua
pronúncia é o fato de que o seu sistema de escrita se desenvolveu antes do
desenvolvimento de várias mudanças fonéticas que caracterizam o inglês atual e, por
esse motivo, as mudanças fonéticas não foram registradas graficamente.
A demonstração de que o grafema representa o fonema e não o fone pode ser feita pelos
exemplos seguintes: as pronúncias [‘tʃia] e [‘tia] realizam de maneira diferente o
primeiro fonema, o seja, o primeiro fonema é realizado com dois alofones diferentes;
mas isso não gera alguma diferença na grafia, que apenas representa o fonema e não sua
realização fonética. Do mesmo jeito, as pronúncias [‘pasta] e [‘paʃta] realizam o terceiro
fonema com diferentes alofones, mas essa diferença não gera diferentes grafias.
Morfologia
A divisão entre os níveis concreto e abstrato também é pertinente para a morfologia, que
se ocupa do estudo das partes das palavras e dos significados associados a elas. Assim,
o objeto de estudo da morfologia são os morfemas, as menores unidades de significado
da língua, e os morfes, que são as formas com que esses significados se realizam.
Em português, a morfologia verbal não deixa dúvidas de que um único morfe pode estar
associado a mais de um morfema. A forma (nós) amávamos, por exemplo, pode ser
segmentada nos morfes {am}, {a}, {va} e {mos}. O morfe {am} carrega o morfema
lexical também presente em amor, amante, amigo, etc. O morfe {a} constitui a vogal de
ligação e tem, portanto, valor gramatical. O morfe {va}, por sua vez, carrega três
morfemas: o de modo indicativo (assim, amava se contrapõe, por exemplo, a amaria),
de tempo passado (assim, amava se contrapõe, por exemplo, a amo ou amarei), e de
aspecto vebal (assim, amava se contrapõe, por exemplo, a amei, que também é passado,
mas tem um signficado diferente daquele de amava). Por fim, o morfe {mos} carrega o
morfema de primeira pessoa (em contraposição a amavas etc.) e o morfema de número
plural (em contraposição a amava). Um exemplo extremo é o caso da palavra é, do
verbo ser. Em é, com um único fonema, e portanto um único morfe, nós indicamos uma
série de morfemas entre os qais pelo menos os seguintes: morfema lexical, morfema de
modo, morfema de aspecto, morfema de tempo, morfema de terceira pessoa, morfema
de número singular.
Também é importante notar que um mesmo morfema (ou seja, um mesmo significado)
pode ser representado por mais de um morfe. Em português, isso é muito evidente no
significado {plural}. Nós não podemos dizer que o morfe do plural é sempre {s},
porque o plural de mar é mares, o plural de caracol é caracois, o plural de caminhão é
caminhões. Tanto {s}, quanto {es}, quanto {is}, quanto {ões} são morfes do morfema
{plural}. Quando vários morfes são realizações concretas domesmo morfema, são
chamados de alomorfes.