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Murillo Pocci
Copyright © 2019 Editora Skull
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Esta é uma obra de ficção.
POCCI, Murillo.
A Casa - 1ª Ed São Paulo – SP, 2019 - Editora Skull
ISBN: 978-85-53037-68-1
1- Literatura Brasileira. 2. Ficção. 3. Título
Boa leitura.
Murillo Pocci, 15 de Agosto de 2018.
Memória Zero: Como Cheguei Aqui
***
— Respire.
— Quem é você?
— Respire.
— O que tá acontecendo? Que porra foi essa?
— Por favor, respire.
— Cala a sua boca, eu não vou respirar! O que tá acontecendo? Quem é
você, o que tá acontecendo aqui dentro, eu, eu, eu…
— Você está hiperventilando. Se continuar assim você vai desmaiar. E eu
sei que você sempre esquece de respirar durante o pânico, então por favor me
escute.
Uma pausa. Eu comecei a respirar fundo, mas meu corpo continuava tão
tensionado que a o ar emitia um som agudo ao passar pelo céu da minha
boca.
— Isso. Melhor. Continue. Olhe para a minha mão, acompanhe ela.
Olhei para a mão dela, fechada em um punho à minha frente.
— Respire.
A mão começou a se abrir lentamente até se estender totalmente.
— Segure. Agora solte.
A mão começou a fechar até voltar ao punho fechado.
— Continue a fazer isso.
— Quem é você?
— Por enquanto, basta dizer que sou alguém mais amigável do que o que
estava no outro lado da porta. Eu estou aqui para te ajudar, confie em mim.
— O que tá acontecendo? O que era aquilo?
— Aquilo era… Bem, como eu posso explicar? Creio que você já pode
saber disso: Aquilo era um pesadelo.
Houve mais uma pausa enquanto continuei a respirar, segurando e
soltando minha respiração com mais tempo. Desta vez o ar não fez mais um
ruído agudo, apenas entrou e saiu pesado pela minha garganta.
— Como assim, um pesadelo?
— Bem, um pesadelo, sabe? Daqueles que se tem quando você dorme…
— Eu sei o que é um pesadelo, mas aquilo era real!
— Realidade é um conceito distorcido nesta casa. Quero dizer, vai me
dizer que você ainda não percebeu? As coisas não fazem muito sentido aqui
dentro. Como está se sentindo? Mais calmo?
— Sim. Um pouco. Obrigado.
— Foi você mesmo que conseguiu se tranquilizar, lembre-se disso. Eu
não fiz nada aqui. Agora vamos, precisamos sair daqui.
Ela se levantou e estendeu a mão para que eu a pegasse. Meu corpo ainda
estava encolhido, e precisei de esforço para conseguir esticá-lo. Parecia que
não o fazia há anos, de tão duro que meus músculos estavam. Utilizando a
mão da mulher como apoio levantei, mas não sem enfrentar a resistência de
um corpo que ao mesmo tempo que estava tenso não tinha forças para se
manter. Busquei apoio na parede.
— Tudo bem?
— Sim. Só estou me sentindo fraco. Para onde vamos?
— Precisamos sair daqui antes que os corredores mudem novamente e eu
perca o caminho de volta. Você disse que quer saber o que está acontecendo
aqui dentro, não é? Pois bem, eu não posso te contar direito, mas conheço
alguém que pode e sei chegar até o cômodo onde ela está. Consegue andar?
— Consigo.
— Ótimo, então vamos. — Ela começou a andar, e eu decidi que era
melhor segui-la o mais próximo que pudesse.
— Qual o seu nome?
— Bem… No momento pode me chamar de Thisi.
— Thisi?
— Sim.
— Mas esse não é seu nome real, é? Que nome esquisito!
— Bem, como eu disse, realidade é um conceito confuso nesta casa.
— Você conhece esse lugar? Está aqui há muito tempo?
— O tanto quanto você.
— Mesmo? Parece saber bem mais do que eu sobre tudo isso.
— Porque vivemos este lugar de forma diferentes. Podia ser eu aí no seu
lugar, e você aqui na frente, me guiando.
— O que é você?
— Como assim?
— Como posso saber que também não é um pesadelo?
Thisi virou-se e me olhou nos olhos. Sua expressão era séria e fria, mas
ela foi se abrindo lentamente para um sorriso de boca fechada leve e doce.
— Bem, você está com medo?
— Não.
— Então pode acreditar, eu não sou um pesadelo.
Ficamos em silêncio até Thisi dar uma risada leve e virar-se novamente
para continuar seu caminho pelos corredores. Agora, com mais tranquilidade
e firmeza, não precisava me apoiar mais na parede e consegui acompanhá-la
lado a lado. Tínhamos a mesma altura e ela vestia uma calça jeans branca,
camisa da mesma cor e uma bota de couro. Seu cabelo castanho era comprido
e estava preso em uma trança.
— Estamos longe?
— Creio que não. Logo vamos chegar.
— Como você me encontrou? Seguiu meu som? Ou os berros do
pesadelo?
— Bem, não é como se eu estivesse te procurando, nós apenas nos
encontramos. Pode ser que eu nunca tivesse te encontrado.
— O que você disse lá atrás, sobre eu sempre esquecer de respirar…
Como você sabe disso?
Thisi ficou por um tempo em silêncio, mas respondeu:
— Creio que você já percebeu que as coisas por aqui sabem mais sobre
sua vida do que até mesmo você saiba. Eu sou uma dessas… coisas... e
apenas reparei em algo que você não costuma reparar.
— Mas nós já nos encontramos antes?
— Acredite, mais do que você imagina.
— E por que eu não me lembro de você?
— Porque você nunca parou para reparar em mim. Apenas por isso.
Continuei a andar mas não parei mais de reparar em Thisi. De onde eu a
conhecia? Existia algo familiar em sua feição, em seu jeito de falar e andar,
mas eu não conseguia descrever de onde eu reconhecia aqueles trejeitos. Mas
ela sabia sobre minhas crises de pânico, algo que pouquíssimas pessoas já
tinham visto de perto. Tenho certeza que poderia contar todas que viram isso
de perto e teria certeza de que Thisi não estaria na contagem. Mas de algum
jeito ela sabia.
— Chegamos — ela disse, quando paramos de frente a uma porta
localizada no meio de um corredor. Thisi colocou a mão em um bolso de seu
manto e pegou uma chave de prata, que colocou na maçaneta e girou,
emitindo um som seco da tranca sendo aberta. — Vamos, você tem algumas
explicações para receber.
***
Eu não esperava me deparar com uma sala cheia de livros como a que
entramos naquele momento dentro da casa. O ambiente, diferente de todos os
outros cômodos pelo qual havia passado, parecia extremamente acolhedor e
bem cuidado, como um porto seguro no meio daquela tempestade. Todas as
suas paredes eram repletas de livros estocados em estantes que possuíam
diversas cores de capas e brochuras diferentes, alguns maiores do que outros,
alguns grossos, outros finos. No meio da sala havia um tapete circular
vermelho com detalhes dourados que combinavam com o piso de madeira
marrom. Duas poltronas estavam posicionadas no meio do cômodo, viradas
de frente para a parede oposta à minha que tinha, bem no seu meio, uma
lareira de aço pintado. Próximo à lareira, havia outra mulher de branco.
Diferente de Thisi, essa mulher se portava de forma mais folgada,
encostada na parede de livros. Seu cabelo, diferente da mulher que me
guiava, era ruivo e solto pelos ombros. Apesar disso, a expressão dela era
mais séria do que a de Thisi, que ia sentando na poltrona à esquerda.
— Então você realmente o encontrou? — A voz dela era mais grave e ela
falava com mais calma. — Estou surpresa.
— Não deveria. Uma hora isso ia acontecer.
— Quem é você? — perguntei, mas logo me corrigi. — Quero dizer, qual
é o seu nome?
— Nome? O meu nome? — Ela deu uma rápida olhada severa para a
minha guia, que sorria. — Ela por acaso disse o nome dela para você?
— Ela me disse que se chamava Thisi.
— Thisi? Ah! Um jogo de deusas então, minha irmã?
Thisi continuava sorrindo sem mostrar os dentes, de forma prazerosa com
aquela situação. Me aproximei da poltrona direita e sentei confortavelmente
nela, relaxando um pouco mais, olhando para o rosto daquelas duas mulheres
misteriosas.
— Pois bem, por que não me chama de Sia então?
— Sia? — Thisi esticou seu corpo na poltrona. — Você desenterrou essa,
hein?
— Bem, você disse para ele que tenho respostas, não disse?
— Eu poderia ter explicado tudo a ele no caminho e ele nem teria tido o
prazer de te conhecer.
— Desculpem — cortei a discussão das duas —, o que está acontecendo
aqui? Alguém pode por favor me explicar que lugar é esse?
Thisi se calou enquanto Sia suspirou e virou-se para mim.
— Bem, por onde você quer que eu comece?
Olhei para Thisi para buscar apoio, mas ela se distraía olhando os livros
das estantes. Engoli em seco e virei para encarar os olhos azuis e fortes de
Sia.
— Primeiramente, isso tudo é real?
— Em parte sim. Quero dizer, tudo que você experimentou até aqui, e
creio eu que ainda não chegou a ver metade da casa, considerando que te
encontramos em pouco tempo, é real em certo aspecto.
— Como assim, em certo aspecto?
— Nem tudo que você considera real é de fato nesta casa, assim como
muitas coisas que você considera ilusões são, na verdade, reais.
As palavras de Sia entraram confusas na minha mente e me trouxeram
aquela cena horrível do banheiro na mente.
— A minha irmã… Eu a vi… Aquela coisa…Matou ela.
— Sua irmã não está morta.
— Como?
— Se essa coisa que você se refere era um pesadelo, ou uma ilusão, ou
qualquer coisa provinda da casa, então sua irmã não morreu. Pesadelos não
são capazes de matar nada que é totalmente real, do lado de fora da casa. Essa
“coisa”, você já a viu antes, não viu?
— Sim, mas apenas em meus… — Fiquei em silêncio, começando a
conectar os fatos com minhas lembranças mais remotas. — Espera um pouco,
quer dizer que aquele monstro é o mesmo com o qual eu tinha pesadelos na
infância? Como isso é possível?
— Eu vou explicar. Essa casa é diferente de qualquer lugar ao qual você
já entrou. Ela existe, mas não totalmente como você entende a questão de
existência. Mas ela é real. Nós somos reais, assim como aqueles pesadelos,
embora eles não possam matar nada que seja real “fora da casa” e não só
“dentro da casa”. Você está me acompanhando até aqui?
— Sim. — Não estava.
— Bem, vamos continuar então. Essa casa… Bem, ela é um ser vivo. Ela
não é só um lugar, ela é “A Casa”, entende? Possui consciência, vida própria,
vontades e desejos tangíveis. Ela viaja por diversos canais próprios no espaço
e visita cada ser vivo que existe, pois ela existe em cada um deles. Em um
momento ou outro, todos recebem a visita da Casa.
— E por que ela faz isso?
— Porque nós… nós não, porque vocês, seres de “fora da casa”, a
alimentam. Ela consome vocês.
— Vocês não são de fora da casa? Thisi me disse que está aqui dentro há
tanto tempo quanto eu.
— Porque você nos criou. Bem, não foi você de fato, mas a Casa nos
criou de acordo com você. No momento que ela escolheu visitá-lo, nós fomos
idealizadas. Eu, Thisi, o homem de branco que foi ao seu encontro para lhe
trazer aqui, todos nós surgimos no momento que a Casa decidiu te tragar. E
não só nós, mas tudo que você vê nesse lugar: os corredores, as mobílias e os
pesadelos. Tudo foi “personalizado” para a sua visita. A Casa conseguiu se
adaptar à sua realidade e a você.
— Isso tudo parece tão impossível… Eu não consigo entender tudo isso.
Ou melhor, não consigo aceitar tudo isso.
— Bem, aceitando ou não, esta é a verdade.
Sia em nenhum momento parou de me olhar. Thisi continuava a olhar
para outros lugares que não fosse para mim, mas sua expressão agora era tão
séria quanto a da outra mulher de boné preto.
— Minha família está segura aqui então?
— Não necessariamente. Sim, sua família e pessoas queridas estão aqui
dentro e estão seguras, mas elas estão cercadas pelos pesadelos que a Casa
produziu através de você. Eles são a única barreira entre você e seus entes
queridos.
— E como posso salvá-los?
— Você precisa enfrentar esses pesadelos.
— Você tá brincando, né? Você sabe o que tem lá fora? Aquele monstro,
ele… ele é invencível! Não dá para enfrentar aquilo.
— Sim, dá sim! Lembre-se! Eles vieram da sua mente, eles foram criados
através de seus pesadelos passados. Você pode domá-los, ter o controle sobre
eles e fazê-los desaparecer, basta você querer isso.
— E se eu não conseguir?
— Bem, aí vai ser o contrário. — Sia finalmente desviou o olhar durante
dois segundos para suspirar. — Infelizmente, se você não os domar, eles vão
te controlar.
— E, consequentemente — disse Thisi —, controlar a todos nós.
— Então vocês estão me dizendo que essa casa está repleta de pesadelos
que tive durante toda a minha vida e que para salvar a mim e a todos que eu
amo, eu preciso enfrentar cada um desses devaneios?
— Exatamente — disse Sia, com um peso em sua voz. — É a única porta
de saída daqui.
— E você precisa sair antes que a Casa te destrua. — Thisi
complementou — A crise que você teve lá atrás — Thisi olhava para mim
agora —, aquilo foi um momento de prazer para a Casa. Ela venceu aquela
rodada e te deixou muito fragilizado. Quanto mais fraco você ficar, mais a
Casa vai te consumir. Você precisa resistir e encontrar a força que você tem
aí dentro de si mesmo. Mas para isso, só enfrentando esses pesadelos.
— Vocês podem vir comigo, não é? Quero dizer, três contra um tem mais
chances de vitória!
— Não, nós não podemos. — Sia, que durante todo esse tempo estava
agachada na minha frente, explicando-me tudo, levantou. — Esse caminho
tem que ser trilhado por você.
— Mas dificilmente essa vai ser a última vez que nos veremos dentro
dessa casa.
— Vocês realmente não podem vir comigo?
— Ouça, meu querido garoto. — Sia pousou a sua mão sobre meu ombro
que relaxou na hora. — Você precisa compreender o que a Casa quer de
você. Existe um motivo por você estar aqui, existe um passado por trás disso
tudo. A Casa corre atrás das pessoas que estão atrás dela sem nem mesmo
perceber. Você precisa percorrer esses corredores e entender o que a trouxe
até você, compreender como você vai vencer os seus pesadelos. Eu queria ser
capaz de usar minha empatia e trilhar esse caminho por você, mas essa é a
“sua casa” no momento, e nem mesmo eu tenho todas as respostas. Você
compreende?
— Sim… Eu acho... Você disse que os pesadelos não podem me matar,
não é? Isso me tranquiliza… um pouco.
— Calma lá rapaz. — Thisi levantou-se de sua poltrona. — Não é porque
a Casa não mata que ela não te machuca. Pois ela pode, e vai, tentar te
machucar muito ainda. Mas você precisa ser forte e continuar.
— Quanto mais perto você estiver de alcançar aquilo que você está atrás
— complementou Sia —, mais forte a Casa vai te atacar, até chegar ao
máximo que ela pode. Seja forte, garoto, durante todos esses momentos,
porque esse é o único jeito de salvar a você e a todos nós, você entendeu?
Assenti positivamente com a cabeça. Havia entendido que aquela situação
era mais complexa e mais perigosa do que eu imaginava, embora algumas
coisas não fossem surpresas. Não havia saída fácil e nem forma de desistir.
Eu estava num labirinto que se fechava atrás de mim a cada momento.
Precisava fazer uma jornada com um desafio enorme à minha frente e sem
ninguém para me guiar pelos corredores da Casa. Eu já pensava nela como
um ser vivo, como uma grande mansão assustadora, com braços e pernas,
balançando de um lado para o outro atrás de alguma pessoa para consumir.
Eu não entendia por que ela tinha vindo atrás de mim, não compreendia o que
tinha feito no meu dia a dia para merecer isso. Mas estando ali, eu precisava
atravessar meus pesadelos e medos para conseguir sair. O grande problema
era este: eu não estava andando sozinho naquele lugar.
Eu andava de mãos dadas com o meu medo pelos corredores da Casa.
Memória Três: Laura
***
***
Aquele corredor da Casa não era familiar por acaso. Suas paredes brancas
não me traziam nenhuma lembrança específica, até porque minha mente
estava focada nas pessoas que eu precisava salvar. Mas existia algo de
semelhante naquele ambiente e eu descobri o que era ao chegar no final do
corredor.
Tinha uma fotocopiadora encostada na parede. Ela estava desligada, mas
na bandeja de despejo dela havia folhas sobre a Mesopotâmia e o Código de
Hamurabi, as mesmas do livro que lia no dia em que conheci Laura. Peguei
as folhas e entre elas encontrei uma das leis que dizia:
“Se alguém arrombar uma casa, ele deverá ser condenado à morte na
frente do local do arrombamento e ser enterrado.”
Avancei durante o que pareceram horas por corredores similares uns aos
outros. As velas do candelabro já quase alcançavam a base de apoio e sua luz
diminuía com o derreter da cera. Embora a longa caminhada, meus pés não
estavam tão doloridos devido aos sapatos confortáveis. Após o corredor do
departamento de estudos com a fotocopiadora não houve nenhuma outra
ocorrência de ilusões ou pesadelos por parte da Casa. Ela se mantinha em
total silêncio. Às vezes, até meus próprios passos não faziam um som sequer.
Em dado momento, virei em um corredor à direita, mais largo do que os
outros. A luz das velas iluminava até parte do caminho, mas da escuridão eu
conseguia ouvir passos lentos e arrastados. Pareciam mais de um par de pés.
Avancei com cuidado para frente, a área escura do corredor sendo iluminada
pela penumbra projetada pelas velas do candelabro.
Então eles apareceram. Eram três, um atrás do outro, em fila indiana.
Seus passos eram sincronizados, soavam quase como um único caminhar. Os
três usavam mantos negros e sujos, com rasgos que exibiam a tez negra por
baixo das roupas. Seus rostos estavam escondidos por capuzes grossos. O
primeiro do trio, que conduzia o grupo, carregava à frente do seu corpo uma
lamparina com uma chama tão fraca que não conseguia nem iluminar o
caminho deles. Os outros dois caminhantes cobriam suas mãos por dentro das
largas mangas de seus mantos.
Mantive-me parado enquanto a caravana avançava pesadamente em sua
procissão. O assoalho rangia e crepitava cada vez mais próximo de mim.
Observando-os, questionava se eram pesadelos ou seres como Sia e Thisi.
Procurei dentro de mim entender como me sentia com a presença deles, se
tinha medo ou angústia de suas presenças. Embora desconfortantes, eles não
me transmitiam ameaça de nenhum tipo. Ao passarem pelo meu lado,
nenhuma das três figuras chegou a notar minha presença, mas eu não pude
deixar de reparar no cheiro de tecido queimado e combustível, algo
semelhante a gasolina.
Assim como surgiram, os três peregrinos sumiram ao atravessar a
penumbra do candelabro. Me mantive imóvel, ainda procurando entender que
tipo de movimento a Casa estava planejando. Não possuía uma memória
sequer relacionada àquilo passando pela minha cabeça, assim como não
houve medo e nem uma sensação de tranquilidade transmitida pela sala dos
livros. Era uma incógnita, algo que não compreendia e que eu precisava
entender. Dei meia volta no largo corredor e fui atrás do trio.
Encontrei-os parados ao virar a curva do corredor. Formavam um
triângulo com todos voltados ao meio, onde um deles estendia o lampião com
a chama pequena, quase por apagar. Outro deles levava até a chama uma
garrafa com um pano que ia até o meio do interior da garrafa e se projetava
para fora através da boca. Dentro dela, existia um líquido transparente.
A ponta do pano, ao entrar em contato com o fogo, incandesceu na hora,
iluminando o ambiente e aqueles três seres. Quando um deles me percebeu,
pude notar, agora iluminados, que seus rostos eram inteiramente
carbonizados, torrados, enquanto seus olhos eram amarelos e sem íris. Ao me
verem observando suas ações, um deles, o que carregava o lampião, apontou
seu dedo chamuscado para mim e soltou um berro gutural:
— Peguem-no!
Desesperado, virei rapidamente para a esquerda e corri pelos corredores,
ouvindo os passos pesados e crepitantes como tambores de guerra atrás de
mim, acompanhados de gritos roucos. Aquilo, afinal, era um pesadelo, um
blefe da Casa pelo qual fui capturado. Ao virar uma curva para a esquerda,
ouvi um grande estrondo vindo de minhas costas e então uma extrema
queimação no meu braço direito. Um dos incendiários lançara a garrafa que
estourou na parede do corredor atrás de mim, espirrando líquido inflamado
sobre meu ombro e braço. O impacto das chamas me lançou contra a parede,
gritando de dor, deixando o candelabro cair e apagando as velas quase
derretidas por completo. Os três pesadelos atravessaram o fogo como se não
existisse nada pelo seu caminho e avançaram em minha direção. A Casa toda
tremia e rangia por todos os lados.
O líder me ergueu pela gola do manto branco e levemente chamuscado,
colocando-me contra a parede. Seu rosto exibia raiva e ódio através do crânio
queimado. Ele lançou seu punho para trás, envergando o corpo, berrando, e
atirou seu soco em direção ao meu rosto. Fechei meus olhos e aguardei o
golpe.
***
Um estrondo ocorreu à esquerda da minha cabeça. Não senti nenhuma
dor para a minha surpresa, não senti nenhum golpe. Ouvi outro baque, agora
no lado direito de meu corpo. Lentamente fui ganhando coragem para abrir os
olhos, com medo de um futuro soco em meu rosto. O incendiário estava
inclinando o corpo e lançando diversas vezes o seu punho, mas sempre
acertando apenas a parede ao redor de meu corpo. Mesmo movimentando
minha cabeça, o pesadelo continuava a errar os golpes. Encarei a criatura,
enquanto me lembrava do que Sia dissera para mim.
— Você é um pesadelo. Você pode me ferir, mas não pode me matar…
Você não pode me vencer.
O incendiário interrompeu o soco que estava lançando. Seu rosto não
expressava mais nenhuma raiva, mas apenas uma expressão de quem foi
derrotado e não aceitava o fato. Ele largou a lapela de meu manto e se
afastou. Junto dos outros dois, deu meia volta, passando pelas chamas que
pareciam adentrar os mantos dos incendiários, trazendo-as para dentro de
suas vestes. Eles viraram a curva do corredor e agora, sem candelabro e sem
fogo, eu estava novamente no meio da escuridão dos corredores da Casa.
Mais uma vez ela estava em silêncio.
Memória Quatro: A Primeira Vez
***
Era domingo, na casa da minha mãe. Não a nova, na qual ela mora agora
depois que todos seus filhos mudaram de residência. Estávamos na primeira
casa, na qual vivi durante toda minha infância e juventude junto ao meu
irmão, minha irmã e meus pais. Aquele era mais um almoço de domingo, um
momento especial para minha família, quase como um ritual fraternal para
nós, pelo menos enquanto todos morávamos juntos… Mas esse não era um
domingo qualquer, pois aquele almoço era de celebração pelo conclusão do
meu terceiro ano no ensino médio. Estava me formando, e todos ali me
congratulavam, dando abraços, dizendo como tinha tido sucesso em meus
estudos.
Finalmente sentamos para almoçar. O menu: macarrão ao molho
bolonhesa, carne enrolada, maionese caseira e batatas assadas. De sobremesa,
uvas, pêssegos, sorvete e mousse de morango. Todos riam e gargalhavam
com os episódios cômicos de nossa semana, mas também oferecíamos
suporte às dúvidas e situações complicadas que enfrentávamos. Dentro de
minha família, cada um de nós cuidava com muito carinho um do outro,
sempre procurando ajudar da melhor forma possível, sempre desejando o
melhor.
Conversa vai, conversa vem e finalmente chega-se ao tópico da conclusão
de meu ensino médio. Minha família me parabeniza mais uma vez e faz a
festa pelo fechamento do ciclo, enquanto eu respondo com sorrisos tímidos,
encabulado com a situação. Estava orgulhoso pela minha conquista, mas não
estava acostumado em ser o foco da atenção da minha família nestes
almoços.
Logo começamos a falar sobre o que viria a seguir do ensino médio e esse
talvez tenha sido o momento na montanha-russa onde chega-se ao ápice de
altura, seguido de uma queda enorme em alta velocidade.
O assunto “faculdade“ surgiu, acompanhado do tema “emprego”, e
subitamente descobri que minha família parecia ter vários planos relacionado
ao meu futuro. De repente eu faria cursos, uma faculdade ou universidade,
entraria numa empresa, com uma carreira bem sucedida assim como meu
irmão, planejando a compra de uma casa como minha irmã até mesmo
encontrando alguém para ter uma relação, um namoro. Eu tinha terminado o
ensino médio e agora minha família narrava na mesa os próximos passos de
minha vida. Nada daquilo que eles diziam estava em meus próprios planos,
mas falavam com tanta firmeza, tanta certeza que não iria decepcioná-los e
seguiria os passos de acordo com a dança…
Queria dizer que as coisas não iriam funcionar desta forma. Queria dizer
que tinha meus próprios anseios, queria explicar os próximos passos que eu
mesmo idealizava para mim, que iam contra muitos dos quais eles haviam
citado. Queria explorar meus próprios desejos, descobrir mais sobre mim
mesmo e não seguir uma linha sem fim de acordo com um sonho
americanizado de arranjar um bom emprego, uma boa esposa e uma boa casa
para minha família. Eles nem sabiam que eu era bissexual naquela época. Um
namoro homoafetivo cortaria metade dos anseios deles.
Mas falavam com tanta alegria, com tanta esperança e expectativa... O
que eu poderia fazer? Cortá-los acabaria com todo aquele momento feliz, e eu
não queria ser um obstáculo naquele almoço, um causador de debates
acalorados contra suas esperanças sobre meu futuro. Comecei a sentir um
peso sobre meus ombros que me empurrava para baixo enquanto minha
respiração começou a ficar travada. Só queria que parassem de planejar tudo
aquilo, queria que saíssem do meu futuro e voltassem ao presente, mas nem
eu mesmo estava no agora, pois suas falas tinham colocado meus
pensamentos nos anos a seguir.
E era assustador. Era desesperador.
Olhei para minha frente, para a mesa do almoço, e comecei a pescar
batatas assadas da travessa, enfiando-as inteiras na minha boca, ainda
quentes, mastigando e sentindo o salgado do tempero. Precisava sair do
futuro, precisava tirar aquela conversa da minha cabeça, as vozes que diziam
o que eu faria e como minha família ficaria decepcionada se não desse certo
nesse plano.
Peguei mais uma colher farta de macarrão com molho e outra de
maionese. Não ouvia mais as vozes de meus parentes na mesa, apenas
pensava na comida à minha frente. Coma. Não ouça, apenas sinta. Gostos,
paladar, foque nisso. Não escute as vozes. Em transe, não parava de mastigar
e de beber suco, com um olhar focado no meu prato e no meu copo. Ao meu
redor, minha família ria e se orgulhava do futuro à minha frente.
Continuei a praticar o pecado da gula quando as sobremesas foram postas
à mesa. Comi até o último momento do almoço, até levantarmos para lavar a
louça ou assistir televisão. Ao sair da mesa, corri para meu quarto em busca
de isolamento, em busca de uma concha para me esconder das vozes, de meu
próprio futuro que me assustava.
O assunto não foi mais comentado no resto do dia. Eu e minha família
nos distraímos com filmes e programas de TV, mas em minha mente não
consegui deixar o episódio para trás tão facilmente. A sensação de falta de ar,
a paranoia com a comida, isso tudo se apresentou como um comportamento
muito fora de meu normal. Sempre fui uma pessoa muito controlada
relacionado ao meu corpo e meus pensamentos, mas naquele almoço eu perdi
as rédeas, não consegui achar um freio para o trem de pensamentos que corria
insanamente em minha mente. Pensei naquilo durante o dia inteiro.
Aquela foi minha primeira crise, embora pequena. Aquele dia, como eu
disse, foi o ápice de uma montanha russa que se inclinava em direção a uma
queda em alta velocidade. Outras crises foram se desenvolvendo durante os
próximos anos da minha vida. A falta de ar começou a ser algo comum nas
crises mais intensas, e meu pensamento nunca mais conseguiu abandonar
estes episódios de extremo medo do próximo segundo, do instante a seguir.
Naquela noite da primeira crise eu fui escondido para o banheiro, fazendo
o máximo de silêncio possível. Vomitei todo o exagero daquela manhã. Junto
ao alimento, lágrimas gotejavam no vaso sanitário.
Memória Cinco: Ponto Crítico
***
***
Fechei a porta ao sair do quarto, e ainda chocado com tudo que havia
presenciado e ouvido naquele relato, olhava pasmo para a porta e para os
gritos da mulher que vinham por detrás dela.
— Bizarro, não é mesmo? — disse uma voz ao meu lado.
Quando olhei para a esquerda, ao final do corredor, iluminada pelo luar
que entrava pelas janelas daquele corredor novo para mim, havia uma
criança. Ela estava totalmente vestida de branco.
Visão Três: A Cidade Que Nós Perdemos
A lua emanava uma luz pálida pelo corredor de madeira verde enquanto
eu olhava para aquele ser no outro extremo do caminho. Nos encaramos
durante um bom tempo depois que ela falou, estudando um ao outro,
analisando, gravando. Continuei de costas pelo corredor e não tirei os olhos
dela, sem saber do que se tratava.
— Você é um pesadelo? — eu perguntei.
— O que você acha?
— Me responda.
— Bem… Você é um pesadelo?
— Não.
— Tudo bem. Eu também não sou.
— Como posso saber?
— Se era para duvidar de mim, por que quis que eu te respondesse?
Ninguém piscava, ninguém se movia.
— Certo — eu disse. — Acredito que você não seja um pesadelo. Então
você é outra guia? Como Thisi e Sia?
— Que porcaria de nomes são esses? — Fui pego de surpresa pela
grosseria da jovem.
— Você não as conhece?
— Conheço, mas não por essas ridicularidades que elas chamam de
nomes.
— Quais são os nomes verdadeiros então?
— Eu não posso lhe dizer. Assim como não posso dizer o meu.
— Então como devo lhe chamar?
— Eu preferia não ser chamada.
— Por quê?
— Porque… Ah, tudo bem então! Quer me chamar de algo? Pode me
chamar de Frey.
— Por que Frey?
— E isso importa? Tenho certeza que não perguntou para “Thisi” ou
“Sia” porque elas escolheram esses nomes para si.
— Não. Tudo bem, sinto muito por perguntar.
— Tanto faz. — Frey olhou para a porta da qual eu tinha saído, ou para a
porta pela qual eu havia entrado no corredor, pois já havia perdido minha
orientação. Era tudo muito bilateral naquela situação. — Então, bizarro, não
é? Eu costumo chamá-la de “A Mulher dos Três Filhos”. A história dela me
fascina por sua figuração toda. Sabe, ela vai acabar comendo o natimorto
devido a fome e quando ela fizer isso o bebê que ainda está vivo vai morrer.
Mas ao mesmo tempo o filho que está na barriga dela vai nascer, e meses
depois ela irá ficar grávida novamente para o ciclo continuar a se repetir. Fui
eu que a criei.
— Você criou isso?
— Bem, vamos dizer que eu a descobri.
— E por que isso é interessante para você?
— Eu não sei, tem um quê de moral nessa história. Sobre como morte e
vida sempre estão ligadas, sobre como alimentamos coisas dentro de nós
através dos outros. Você vê, esse pesadelo não é somente seu, ele é comum
para várias pessoas, pois diz algo sobre o que é ser humano, eu acho. É
interessante. Pelo menos até a parte onde ela quer te devorar. Nesta hora o
pesadelo perde sua beleza e assume sua condição de assassino.
— Beleza?
— Eu vejo a beleza nessas tristezas. Admiro-as, quase idolatro... — Frey
olhava para fora, para a janela, olhando para baixo. — … Assim como
idolatrava a Cidade.
— Que cidade?
— Olhe para trás, pela janela.
Virei-me e olhei pela janela para fora da Casa. O que vi não fazia sentido.
Não era mais a minha cidade, a cidade da qual tinha sido levado até aquela
casa. Em vez disso, estava olhando para um outro lugar totalmente diferente.
O céu era escuro e esporadicamente iluminado por raios que nunca
chegavam a tocar o chão, no qual diversos prédios cilíndricos erguiam-se em
direção às nuvens, mas todos pareciam completamente abandonados, em
ruínas, com grafites e pinturas descascadas. As ruas abaixo não estavam em
estados melhores, eram deploráveis, cheias de buracos, regiões inundadas por
água negra ou incendiadas por chamas que não se apagavam. A Casa parecia
flutuar por aquele cenário, sem tocar o chão, a centenas de metros de altura.
Vendo a altura podia até mesmo sentir um leve solavanco que a estrutura
dava, de um lado para o outro, como um barco navegando nuvens negras.
— Esta não é minha cidade. Como viemos parar aqui?
— Aqui é de onde a Casa veio. Essas são as terras dela. Ela nos trouxe
para o próprio terreno, para ter vantagem, entende? No combate entre vocês
dois.
— Lá fora, aquelas ruas, são reais?
— Você ainda não desistiu da ideia de realidade? Bem, vejamos: aquela
cidade lá fora é real, mas não pertence ao seu domínio da realidade. Veja
desta forma: ela é real, mesmo você não querendo.
— Assim como esta casa.
Pude sentir a casa balançando um pouco mais ao falar isso.
— Essa cidade nem sempre foi assim. — Frey olhava para fora e, mesmo
à distância, podia ver que ela estava extremamente triste. — Ela já foi bela, o
céu já foi mais claro e ensolarado no lugar destas nuvens pesadas e
relampiosas. Os prédios lá embaixo possuíam mil cores e mil texturas, e
naquela época até mesmo essa casa era um lugar bom e feliz para se viver. Os
pesadelos e sonhos viviam juntos e em harmonia na cidade, e se os maus
agouros do sono existiam, eram apenas para enaltecer os aparecimentos dos
sonhos e lidar com questões mais pesadas que os devaneios não eram capazes
de lidar. Os pesadelos sempre foram mais responsáveis.
“Mas a partir da partida de uma das minhas irmãs, que também era irmã
de Thisi e Sia, algo começou a consumir a cidade sem que nós pudéssemos
perceber. Primeiro, começou nas periferias, de forma silenciosa, dilacerando
um sonho ali, corrompendo um pesadelo lá, distorcendo ideias e derrubando
prédios. Quando notamos o que estava acontecendo também percebemos que
já era tarde demais para tomarmos qualquer atitude. A cidade estava
morrendo, os sonhos estavam se esfarelando e sendo caçados por pesadelos
que não tinham mais sentido ou vontade nenhuma de dever. Tudo que sobrou
veio para cá, para a Casa, fugir da destruição e da escuridão que se estendeu
por aquelas ruas, mas até mesmo a Casa foi invadida pelo cinismo, terror,
medo e descontrole. Agora vivemos assim, sem terra definida, como
nômades. E a Casa precisa de energia, ela precisa de alguém para se
alimentar e continuar a fugir. Não podemos deixar que os pesadelos nos
peguem. Ela não pode desistir.”
— É por isso que ela quer se alimentar de mim? Para continuar fugindo?
— Para nos manter vivos. Sim.
— Mas eu não posso. Eu não posso deixar esse lugar me consumir e
consumir tudo que eu amo.
— Eu sei, eu compreendo. Mas as vezes faz sentido, entende? Abandonar
tudo e entregar nossas energias para a Casa.
Frey desencostou da parede e começou a andar para perto de mim. A cada
passo que ela dava, sentia uma pontada em meu próprio peito.
— Às vezes seria tão mais fácil entregar tudo… Permitir que ela nos
consumisse para continuar fugindo…
As pontadas no peito se tornaram travas, e comecei a sentir minha
respiração vacilando. Sugar o ar era mais difícil a cada passo que Frey dava
em minha direção.
— E não doeria nada. A solidão, sabe, ela é passageira, você se acostuma
a ela. Os parentes viram memórias cada vez mais parcas.
Ajoelhei, sentindo-me sufocado e cada vez mais sem ar. Estendia um
braço em direção a Frey, pedindo-lhe que parasse e se afastasse.
— Você só teria que dizer “eu desisto” e pronto, tudo ficaria escuro. E
não teria dor, não teria tristeza, apenas o escuro, a solidão, a falta de calor no
peito e… Ah não, desculpe!
Frey rapidamente correu para trás, voltando ao lado oposto do corredor, e
meus pulmões sentiram-se livres novamente. Traguei o ar com vontade e
soltei lentamente.
— O que aconteceu? — perguntei, assim que recuperei o fôlego.
— Me desculpe. — Frey parecia envergonhada. — Eu faço isso sem
querer às vezes, minha presença muitas vezes deixa as pessoas sem ar, com
peso em suas costas. Eu não quis causar isso de propósito, sinto muito
mesmo.
— Frey… Eu não vou me entregar.
— Eu sei.
— Minha família e meus amigos são mais importantes para mim do que a
Casa.
— Claro.
— Sinto muito por fazer isso com seu lar.
— Tudo bem. Não tem mais nada que possamos fazer. A cidade está
morta, e logo todos nós iremos morrer também.
— Eu sinto muito.
— Tudo bem. — Frey olhava pela janela com um olhar que agora eu
detectava como saudosista. — É o caminho de todos nós morrer um dia, não
é? A Mulher Dos Três Filhos e tal…
— Você sabe para onde devo seguir agora?
— Não posso lhe mostrar o caminho. Mas se você quiser eu posso lhe
acompanhar. À distância, é claro.
— Não vejo por que te dizer não a isso. Será bem melhor fazer esse
caminho acompanhado do que sozinho.
— Mesmo? Você… Você quer minha companhia? — Frey parecia
extremamente surpresa com isso.
— Sim, eu quero — respondi firmemente, levantando-me e
simbolicamente estendendo minha mão a Frey. — O que me diz?
— Bem, tudo bem então. Você vai na frente, claro.
— Sim.
Virei-me de costas para Frey e comecei a avançar pelo corredor que
estava iluminado pela luz pálida de um luar fraco. Atrás, pude ouvir Frey
sussurrando:
— Mas claro que você vai cansar de mim. Todos cansam.
Memória Seis: Companhias
***
Eu passava pelos corredores pálidos pelo luar e atrás de mim podia ouvir
os passos de Frey rangendo a madeira.
— Você não pode me dar nenhuma dica sobre onde minha família está?
— perguntei para ela, sem olhar para trás, sem desviar minha atenção de
qualquer detalhe à minha frente.
— Você tem que traçar o seu caminho. Eu somente estou lhe fazendo
companhia.
— Uma companhia bem silenciosa. Se não fosse por seus passos, poderia
jurar que estou sozinho.
— Eu não sabia que você queria conversar. — A voz de Frey, por um
breve momento, pareceu mais animada. — Sobre o que gostaria de
conversar?
— Eu não sei. Qualquer coisa que não envolva essa casa ou a cidade lá
embaixo.
Algo sobre você ou sobre mim. Qualquer coisa para nos deixar mais
tranquilos.
— Bem… No que você está pensando?
Ao ouvir isso, sorri, pois estava lembrando daquela manhã.
***
***
***
***
***
***
— Ela foi embora. Pegou suas roupas e bolsa e saiu de casa, chorando.
— Você acha que a perdeu?
Uma pausa em extremo silêncio. A casa nem parecia mais flutuar.
— Eu não sei.
— Eu acho que você a perdeu.
— O quê?
— Quero dizer, não é fácil conviver com isso sabe? Estresse, mudanças
súbitas de humor, reações extremas a situações desconfortáveis. Eu não
ficaria surpreso se ela não voltasse e acho que você deveria ter a mesma
noção disso.
— E por que você acha que pode falar sobre isso? Você não me conhece,
você não a conhece. Você é apenas uma criança.
— Uma criança que viveu tanto quanto você, se não mais! — Frey
pareceu bem ofendida com minha reação. — E além do mais, eu a entendo.
Ninguém gosta de ficar perto disso. Todo mundo vai embora e nós afastamos
as pessoas por sermos assim, como eu e você. Somos muito parecidos nisso e
sabe por quê?
— Por quê?
— Porque ambos sufocamos as pessoas.
Eu olhava para fora, ouvindo o que Frey dizia e querendo acreditar que
ela falava bobagens infantis sem saber do que se tratava, mas parte de mim
não podia deixar de acreditar que ela falava verdades. Não podia negar que a
situação deveria ser extremamente exaustiva para Laura, conviver com
minhas crises e surtos e que não seria de se surpreender se caso ela realmente
fosse embora. Mas ao mesmo tempo outra parte de mim sabia que ela estava
errada, que eu e Laura nos amávamos e que podíamos enfrentar aquilo juntos.
E para minha sorte, era este lado que estava no controle da situação agora.
— Você está errada — eu disse. — Quero dizer, você está certa, mas não
todo certa. Sim, é complicado lidar com isso, mas nós lutamos sempre contra
isso, eu e ela. Eu fui extremamente agressivo no nosso último encontro, e
agora eu devo mais do que antes encontrá-la. Encontrá-la para pedir
desculpas, para dizer que aquilo não era minha verdade e sim minha crise
falando mais alto. Encontrá-la para pedir mais uma chance a nós e para
vencermos isso juntos.
— Isso se ela ainda lhe quiser, depois dessa última noite.
— Cala a boca.
— Afinal, você ficou por um triz de fazer uma grande besteira.
— Quieta.
— Não com ela, mas com você mesmo, sabe?
— Cala a sua boca! — eu gritei, e meu grito ecoou pela casa, que pareceu
voltar a se mover. Frey ficou paralisada, olhando para mim com olhos
arregalados. — Cala. A sua. Boca. Você fala exatamente o que minha crise
está gritando em minha mente, Frey, e acredito que é melhor seguirmos sem
conversar. Eu não irei ouvir mais nenhuma fala sua sobre isso, você não sabe
de nenhuma verdade sobre mim e Laura, e agora você vai…
Então eu ouvi o grito. Aquele grito novamente, que penetrou o meu peito
e me fazia chorar apenas de ouvi-lo. Aquele grito mortal que parecia uma
faca em meu coração, e que arrepiava minha alma. Aquele grito que havia
matado minha irmã.
— Acho que você acordou alguma coisa — Frey sussurrou.
Pesadelo Quatro: Irmandade
— Olá.
Ela vestia uma calça jeans clara e uma jaqueta de couro sobre uma camisa
preta. Já havia visto ela usar essa roupa diversas vezes, tanto na faculdade
quanto no meu apartamento. Seu rosto era tranquilo e sereno, embora sua
expressão fosse rígida. O aroma que havia me levado até lá exalava dela.
Mantive-me em silêncio enquanto a encarava, buscando entender se ela
era real ou alguma outra ilusão da casa. Foi ela que cortou o silêncio.
— Acho que você tem que sentar aqui. Precisamos conversar.
Fui até a mesa e me sentei na cadeira vaga, diante de Laura. Observei
enquanto ela me olhava de todo e dava um sorriso irônico.
— Você tá um desastre com essa roupa branca.
— Bem, eu não estou lá no melhor dos meus dias — respondi.
— Não mesmo. O que está acontecendo com você?
— Eu sinto que eu estou perdendo toda minha esperança de salvar você e
todo o resto.
— Acredite. — Laura sorriu nesse momento. — Você ainda nem
encontrou a esperança.
— Como assim? Me disseram algo parecido uns minutos atrás.
— Não importa. Não é sobre isso que devemos falar. Ela me colocou aqui
para falar sobre outra coisa.
— Ela?
Laura olhou ao redor, e compreendi que ela se referia a Casa também
como uma entidade.
— Ah sim — continuei. — Sobre o que ela quer que conversemos?
— Talvez seja algo que você não queira lembrar.
— E eu tenho escolha? Não dá para fugir dela estando aqui, não é?
— Você está certo. — Laura abaixou os olhos e suspirou. Sua expressão
agora era de alguém que se sentia desconfortável. — Tudo bem então. É
sobre nossa última discussão...
— O que tem nossa última discussão?
— Sério? Você não se recorda?
— Do quê? Nós só tivemos uma briga.
— Só uma briga? Não, aquilo não foi só uma briga. Você realmente não
percebeu?
— Perceber o quê?
— Como você saiu do controle naquela noite?
***
***
Senti o calor sobre meu rosto e por cima de meu peito. No escuro, era
incapaz de dizer de onde vinha aquela sensação, se advinda de algo físico ou
até mesmo de uma fonte invisível. Senti o peso sobre meu corpo, como se
algo me abraçasse e envolvesse quase como se estivesse enclausurado dentro
de algo. Senti um arrepio passar pelo meu corpo enquanto tinha a sensação de
estar nu, não mais com mantos e calças, mas sem nada, ou pelo menos com o
corpo mais livre de cordões e elásticos. Senti meu corpo inclinado, quase que
completamente na horizontal, levado por uma força que não era minha, mas
do espaço que eu ocupava.
Então abri os olhos.
Acima de mim havia o teto pintado de branco, e pelo canto do olho
observava uma janela de metal pela qual passava um fino traço de luz solar
que passava pelo meu rosto. Por cima do meu corpo, meu edredom verde
pesava e dificultava meus movimentos. A cama de colchão duro na qual eu
deitava me trazia um conforto muito agradável à coluna.
Levantei subitamente e meu corpo se arrepiou ao sentir o ar do ambiente
na minha pele nua, coberta apenas por um samba-canção. Ao meu redor,
vários móveis se espalhavam pelo meu quarto: um guarda-roupa, uma
escrivaninha com meus livros e computador, estantes com mais escritos e
outras peças de decoração. O ventilador de teto estava ligado e emitia um
som repetitivo enquanto arejava o ambiente.
Pulei de minha cama e olhei para meu próprio corpo. Olhei para minhas
mãos em busca de sujeira, para meus braços em busca de marcas de
queimado ou machucados. Toquei em tudo ao meu redor para crer que aquele
ambiente era tangível, real, palpável.
Senti os cheiros de minhas roupas, dos livros há muito jogados na estante,
da minha cama (que possuía um aroma misto de vários perfumes juntos) e até
mesmo meus calçados.
Ouvi um som que vinha de fora do quarto, para além da porta. Algo
sendo frito, som de líquidos fervendo e utensílios raspando um no outro.
Havia alguém em casa. De pé e a passos trôpegos fui até a porta do quarto e
atravessei a passagem para entrar no corredor que dava para a sala e, além
dela, à cozinha americana.
— Olha só, achei que não ia acordar mais! — Laura estava segurando
uma frigideira e vestia uma camisa social minha, abotoada apenas na metade
superior. Olhando para minha expressão de espanto ela soltou uma leve
risada. — O que foi? Viu um fantasma? Amor, tá tudo bem?
Me mantive parado durante segundos que me pareceram eternos
observando-a no meio do apartamento completamente mobiliado. Observei-a
como se fosse a primeira vez que estivesse olhando para seu rosto,
observando cada detalhe, o caimento do cabelo sobre os ombros, as curvas
que minha camisa desenhavam sobre o corpo dela e todos os outros
pormenores possíveis de se analisar. Então, movido por um sentimento de
reconquista de mim mesmo, avancei até a cozinha pela sala, cheguei ao lado
de uma Laura confusa e coloquei meus lábios sobre os dela, agarrando seu
diminuto corpo com meus dois braços, envolvendo-a em um abraço apertado
que desejava nunca mais soltar.
— Amor, calma, eu não vou fugir — ela falava enquanto ria e enquanto
eu distribuía beijos por toda a superfície do rosto dela. — O que deu em
você?
— Você é real, não é? — perguntei a ela, olhando-a nos olhos como se
aquela fosse uma das questões mais vitais para se responder no momento. —
Você existe? Isso tudo aqui é real, existe mesmo?
— Claro que sim amor! Calma, o que aconteceu?
— Eu… Eu não sei, eu… Eu tive um sonho? Mas aquilo tudo era tão real,
era tão material. Não, sonho não, pesadelo. Um pesadelo? Mas… Era
tangível…
— Amor, respira. Olha, você deve ter tido um sonho lúcido ou algo do
tipo que deve ter te dado essa sensação. Senta, pega um banquinho.
Puxei para baixo de mim um banquinho que se encontrava ao lado da
passagem entre a sala e a cozinha e sentei. Olhei para Laura enquanto ela
continuava a preparar a comida.
— Fiquei sem sono um pouco mais cedo e você estava dormindo tão
profundamente que decidi levantar e preparar nosso café. Ovos mexidos, do
jeito que você gosta pela manhã. Eu ia levar para você no quarto, mas você
pelo jeito decidiu estragar a surpresa, não é mesmo?
— Laura. Esse pesadelo foi horrível.
— Você quer falar sobre ele?
— Sim… Não, melhor não. Mas você estava nele. Você morria nele.
— Que horror!
— Foi quando eu acordei. Isso foi a última coisa que aconteceu. Laura,
parecia tão real e assustador.
— Tudo bem amor, relaxe. Você está aqui agora, no mundo real
novamente e eu não vou deixar nada machucar meu bem. Muito menos na
hora do nosso café. Vamos para a sala?
Laura serviu os ovos em dois pratos separados e colocou café em duas
canecas até a metade do volume. Ajudei a levar a refeição até o sofá, onde
sentamos um do lado do outro. Durante o percurso e até ao sentar no sofá,
não conseguia mais parar de olhar para ela, em seu movimentar, em suas
expressões felizes. Ao sentarmos, enquanto ela ligava a TV e escolhia um
canal para assistirmos, observei como ela parecia concentrada em sua
escolha.
— É tão bom ver você viva.
— Que bom. — Ela deu uma risada tímida e sorriu para mim. — É muito
bom estar ao seu lado, sabia?
Permiti me dar um sorriso também, agora mais confortável na situação
toda.
— Sabe, eu tenho pensado nessas minhas crises.
— E aí?
— Acho que vou procurar ajuda.
— Como assim, está falando de terapia e tudo mais?
— Sim.
— Ah meu amor, eu fico tão feliz de ouvir isso!
De lado, Laura se aproximou e me deu um abraço, finalizando-o com
mais um beijo curto sobre meus lábios.
— Acho que isso vai fazer muito bem para você — disse.
— Eu também acho. E para nós também, eu não quero que você tenha
que aguentar isso tudo e carregar como um peso nas costas. Afinal, na noite
passada você foi…
— Fui?
— Embora. Você foi embora na noite passada, não foi?
— Bem, eu atravessei a porta, sim.
— Porque eu estava tendo uma crise.
— Estava.
— Então você voltou? Laura, o que aconteceu nessa noite?
Laura manteve-se em silêncio, mas ainda sorria para mim como se eu
estivesse encenando alguma peça na frente dela.
— Você não lembra?
— Não, eu não me lembro. E não me lembro nem de você acordar mais
cedo do que eu em finais de semana. Tem algo de errado aqui.
— Amor, para com isso.
— Júpiter! — Chamei pelo gato, mas não tive resposta nenhuma. —
Júpiter! Laura, onde está o meu gato?
Quando olhei para ela novamente, seu rosto não carregava mais um
sorriso aberto, apenas uma expressão de apaziguamento, de empatia. Ela me
olhava com dó.
Um arrepio passou sobre minha espinha e fez com que minhas mãos que
seguravam o prato e a caneca de café tremessem. Senti minha garganta
travada, como se o choro estivesse a caminho.
— Isso aqui não é real, não é?
Laura não disse nada, apenas mordeu o lábio inferior e balançou sua
cabeça em um gesto negativo. Calmamente ela pousou sua refeição no sofá e
levantou-se, indo até a porta do apartamento. Tudo parecia tremer junto com
as minhas mãos enquanto eu observava ela virando a maçaneta e abrindo a
porta. Antes de sair, ela se virou para mim e com sua voz disse-me da forma
mais delicada:
— Eu fiz isso por você, amor.
Então ela atravessou a saída, fechando a porta atrás de si. Senti como se
todo o apartamento tremesse junto com minhas mãos e segundo a segundo vi
o ambiente ao meu redor ficar mais escuro até voltar ao breu onde não faz
diferença estar de olho aberto ou fechado. Meu corpo sentia frio novamente
e, além disso, havia, mais uma vez, o peso de mantos e o aperto de sapatos
brancos. A superfície onde estava sentado não era mais confortável como
meu sofá, mas dura novamente como madeira velha.
Havia um cheiro de fumaça de pólvora no ar novamente. Lentamente o
ambiente no qual eu estava foi ganhando luzes vindas da parede. Não era
mais o pequeno cômodo de antes, mas agora era um espaço mais aberto. Não
havia imagem de olho na parede, mas o corpo de Laura continuava imóvel no
chão, com o revólver ao lado.
Levantei da cadeira e me ajoelhei ao lado do corpo, olhando para os
restos da face da minha amada e para seu corpo, que não se movia mais do
jeito curvo que se movimentava no meu apartamento e que não tinha mais
cheiro de flores, mas de chumbo e ferro. Tive medo de tocá-la, mas consegui,
e ao fazer isso senti o frio de sua pele rígida.
Inclinei minha cabeça para frente até encostar no busto dela. O coração
não batia.
Comecei a chorar sobre o seu corpo.
Visão Cinco: O Jardim
Não sentia dores e nada se ouvia ou via. Nem mesmo minha própria
respiração podia sentir, isso se eu ainda estava respirando. O único
sentimento era uma paz advinda da conclusão, do encerramento daquele
momento e de todos os que houveram antes. Era a gratificação de fazer o que
se devia fazer e que, apesar dos estados finais, algumas pessoas ainda sairiam
de lá, mesmo que não estivesse junto a elas.
Havia apenas um sorriso.
Mas então, subitamente, houve algo a mais. Algo surpreendente da
posição na qual eu estava, que não esperava ou que não acreditava ser
possível naquela situação. Incompreensível, esse algo a mais se manifestou
claramente e ignorando qualquer fé que eu pudesse ter.
Esse algo a mais era uma voz, doce, serena, feminina e simples que dizia:
— Vamos lá então. Levante.
O sorriso sumiu do rosto, e com alguma força que acreditei não possuir
mais, arqueei uma sobrancelha. Não sabendo como, lentamente abri frestas
mínimas das minhas pálpebras. Acima de mim não existiam nuvens do
paraíso ou os vulcões de um possível inferno. Apenas um teto de madeira, do
qual pendia um lustre de cristais. Abaixo deste lustre, mais próximo de meu
rosto, havia outra face, com dois olhos, boca, nariz, enfim, humana como a
minha. Uma jovem, de cabelos curtos até o pescoço cortados acima dos
ombros, olhava para mim com um meigo sorriso em seu semblante.
— O quê? — Foi o som que soltei através de minha garganta, por meio
de meus lábios, usando minha voz fraca e rouca, como que desperto de um
sono profundo de madrugada. Me assustei com a existência da minha própria
voz.
— Vamos lá. — A jovem olhava para mim de forma irônica, brincalhona.
— Você nem mesmo está machucado. — Não estava? — Pode checar.
E então ela se afastou, e quando ela saiu de minha visão, comecei a sentir.
Não havia dores, mas havia um corpo, e o tato despertava de seus extremos
até o centro. Como um formigamento, senti meus braços e pernas
despertarem, extremamente leves, como se um peso enorme tivesse sido
retirado deles. Com minhas mãos comecei a verificar meu tórax, coxa,
barriga e outras partes. Sem ferimentos, sem perfurações a não ser os rasgos
nas roupas. Meu corpo estava intacto.
Eu só poderia estar morto.
Levantei-me e fiquei sentado no chão, olhando agora para uma porta
aberta à minha frente que dava para um corredor extenso. As cores eram
negras, tons de verde musgo junto com marrons de madeiras. Era a mesma
Casa, o mesmo local.
— O que aconteceu? — Minha boca ainda parecia dormente e dessa vez
senti um leve arranhão em minha garganta, um pigarro profundo.
— Bem, acho que você ganhou, não é? — A voz dela vinha direto de trás
de mim, e ao me virar olhei a jovem sentada em uma cadeira de madeira ao
lado de uma larga mesa de tampo fino. Uma toalha de mesa branca longa
estava ao chão, abaixo da estrutura longilínea.
Levantei-me mais rápido do que esperava, usando mais força do que o
necessário nas pernas. Meus ombros pareciam leves, os braços pareciam
levitar do busto, os pés não faziam esforço para sustentar o resto do corpo.
Aquela leveza me era estranha, supus que fosse algo mórbido. Afinal, a única
resposta para estar de pé ali, ao meu ver, era que havia desencarnado.
— Eu morri? — perguntei para a jovem, esperando que ela tivesse uma
resposta. Dela, porém, ouvi uma risada larga.
— Morto? Não, não, muito pelo contrário! Talvez você esteja mais vivo
do que há muitos anos.
— Mas… Aquilo… Aquilo tinha me assassinado, ele tinha destruído o
meu corpo.
— Olha, pelo que eu estou vendo, você está de pé e vivo. E não sobrou
uma gota daquela outra coisa para contar história. Mas até eu mesma fiquei
com dúvidas se você ia voltar à vida.
— Você viu tudo?
— Eu estava torcendo. Por você, claro.
Olhei para o lugar do qual tinha levantado. Nenhuma marca de
perfuração, nenhuma tábua quebrada e nem gosmas negras pelo chão. Ao
lado do local, uma faca de prata estava cravada no chão. Embora tudo
parecesse não ter acontecido, as imagens estavam claras em minha mente: o
rastejar até a mesa, o confronto com a criatura, cada um dos ataques
infligidos ao meu corpo, o único golpe mortal dado em sua testa. Eu
lembrava até da voz juvenil que clamava por socorro em meio a tudo aquilo.
— O que era aquilo? — Olhando para a jovem, apontei para o local do
confronto. — O que era aquele monstro?
— Aquilo… — A jovem parecia ter dificuldades para explicar. — Bem,
acho que você já sabe, não é? Era você.
— Como assim?
— Ou pelo menos uma faceta de você. Um dos seus perfis, ou algo assim.
Mas era você mesmo.
— Não, isso não é possível. — Minha cabeça doía, embora o corpo
continuasse leve. — Aquilo, aquela coisa, queria me machucar!
— Ora, e quantas vezes você mesmo não quis se machucar?
— Aquilo ia me matar!
— E quantas vezes você mesmo não quis fazer isso? — A jovem parecia
desacreditar das minhas perguntas, como se tudo aquilo fosse óbvio. —
Olha… Senta aqui, deixa eu explicar as coisas para você.
Puxando uma cadeira próxima, virei para ficar frente a frente com ela. A
jovem começou a descrever para mim tudo o que ocorria e enquanto fazia
isso procurava gesticular o máximo possível, acrescentando nuances a sua
fala. Isso foi o que ela me contou:
— Essa casa, esse lugar, é você. No momento que você entrou na Casa,
ela se tornou você, é isso que ela faz. Os corredores e quartos se contorceram
e remodelaram-se à figura de sua mente. Os pesadelos se transformaram e
tornaram-se os seus próprios pesadelos. Durante todo este tempo você esteve
dentro de sua própria cabeça, lidando com todos os terrores que existem
dentro dela. Correndo, fugindo ou enfrentando-os, você viu os cantos mais
obscuros do seu consciente aqui dentro. É isso que a Casa revela para aqueles
que decidem se aventurar em seu interior.
“E ela não faz isso com quem ela quer. Houve um chamado, um chamado
feito por você mesmo. A escolha que você nem percebeu ter feito lhe trouxe
aqui. A Casa acolhe para dentro de si aqueles que estão prestes a perder tudo
que lhes é querido, importante, devido a eles mesmos. Crises, momentos de
dúvida, medos, desesperos, são chamados para que a Casa tome alguém para
si. Foi assim que você veio parar aqui.
“E aqui dentro, a Casa faz com que você lide com tudo que precisa para
seguir adiante e para salvar tudo aquilo que lhe importa. Ela faz você
enfrentar tudo que você precisar enfrentar, mas nada disso é criado de forma
externa. Todos os pesadelos, todos os corredores, são produtos do seu próprio
psicológico. Essa mesa, a cadeira na qual você está sentado, o lustre acima de
nós. Tudo isso vem do mesmo lugar: de você.
“Mas e quanto a mim? Enquanto as outras que você deve ter encontrado
que não eram pesadelos? E quanto a esse monstro que te perseguiu até o
último segundo? Isso tudo também é parte de sua mente, mas diferente dos
pesadelos, que são projeções do que existe dentro de você, nós somos você de
fato. Facetas diferentes de um mesmo objeto, como um prisma separado em
partes. Provavelmente cada uma das suas guias tinha uma característica mais
realçada, como coragem, sabedoria ou até mesmo tristeza. Cada uma de nós
foi uma parte do seu ser lhe ajudando na jornada, a continuar nesse caminho.
Mas entre todas nós havia aquela criatura, que nada mais era do que a sua
visão de si mesmo como algo repulsivo, intragável e incômodo. Você se
projetou dentro daquele monstro desde sua adolescência, negativando-se,
isolando a si mesmo e afastando as pessoas, considerando a sua imagem
como algo repugnante, falho e defeituoso. E isso se tornou tão grande que
começou a consumir todo o resto. O monstro estava tentando destruir tudo e
todos dentro desta Casa não porque ele queria escapar, mas porque ele odiava
a si mesmo e queria acabar com tudo. E ele quase conseguiu, se você não o
tivesse enfrentado. ”
— Creio que é isso. — A jovem estava sem ar, ofegante, depois das mais
diversas gesticulações. — Espero que tenha ficado mais claro.
Era complexo dizer o que se passava em minha mente naquele momento.
Um misto de uma confusão maior com uma abrangência mais clara de tudo
circulava e não me trazia respostas.
A Casa era minha mente. Os pesadelos eram meus, produtos de tudo que
havia aqui dentro. As guias, Thisi, Sia, Frey e aquela menina, eram facetas da
minha própria personalidade. E até mesmo aquele monstro era uma
representação da minha personalidade. Mas eu o havia derrotado, havia
cortado essa imagem de mim depois de enfrentar meus pesadelos, depois de
Thisi e Sia me trazerem coragem e sabedoria, depois de ver Frey, minha
própria tristeza, ser digerida por aquela criatura. Depois de todos esses
desafios e dores, depois de ver e lidar com todas essas dificuldades, eu pude
dar um fim para a imagem que me envolveu desde a adolescência.
— Mas.. E agora? — Era a única questão que me rodeava. — Eu
enfrentei isso. O que acontece agora?
— Agora? Bem, agora você vai embora. — A menina sorria e ria, de pé,
pulava de animação. — Você conseguiu fazer o que a Casa queria, você se
tornou forte o suficiente aqui dentro para enfrentar o monstro que vivia
dentro de sua cabeça. A Casa está te dando alta, te devolvendo tudo que lhe é
querido e importante. Sua família está viva e bem, assim como Laura, todos
esperando-lhe lá, do lado de fora.
— Então… Está tudo salvo?
— Sim. Você se salvou.
— Entendo.
— Você pode ir embora agora. Eu não deveria ajudar, assim como as
outras… Mas eu não me aguento: É só você pegar a porta à esquerda e ir reto.
A jovem sorria para mim, um sorriso aberto e orgulhoso, como se tivesse
concluído uma jornada na qual ela tinha torcido durante todo o tempo. Não
pude evitar de sorrir de volta para ela. O primeiro sorriso que havia dado
dentro da Casa. O primeiro de verdade que dava há anos.
Comecei a andar em direção à porta da esquerda, corrigindo minha
postura, de peito aberto, com passos mais confiantes e leves, respirando com
uma plenitude maior, sentindo cada corrente de ar que entrava em meus
pulmões. Antes de abrir a porta e passar para o outro lado, virei-me
novamente para a jovem. Ela olhava para mim ansiosa, tremendo de euforia,
ainda com o sorriso extenso no rosto.
— Thisi era minha coragem — disse. — Sia, minha sabedoria, minha
racionalidade. Frey representava minha tristeza e melancolia. E você? Depois
de tudo, o que sobrou para eu encontrar depois de enfrentar aquilo?
Ouvindo minha questão, ela deu uma risada tímida e percebi a maçãs de
seu rosto ficarem rosadas. Então ela disse:
— A Esperança.
Olhando para seu sorriso, retribuí um sorriso maior ainda para Esperança.
Após anos, eu estava novamente de encontro com ela.
— Eu estava com saudades.
— Eu também — ela respondeu. — Agora vá! Existe um mundo inteiro
te esperando lá fora! Eu vou continuar aqui, com você.
Balancei positivamente a cabeça como resposta. Voltando-me à porta,
rodei a maçaneta redonda e passei para o quarto seguinte.
No cômodo seguinte, havia um espelho.
Eu sabia onde estava.
Visão Sete: O Outro Lado do Espelho
Era como se estivesse no fim de um espetáculo, por trás das cortinas, nos
bastidores, enquanto os atores começam a retirar as perucas e vestimentas e
vão para seus camarins. Passei pelos corredores e múltiplos salões e andares
da Casa e o que vi foi uma multidão de seres, dos mais diversos moldes e das
mais diversas cores. Passavam por mim como se estivessem apressados em
chegar nos seus destinos, exaustos e sem paciência. Alguns eram minúsculos
e precisava tomar cuidado para não pisar neles, enquanto outros eram
enormes e ocupavam o espaço de um corredor completo. Os pesadelos
estavam indo para seus cômodos. O espetáculo havia acabado e eles estavam,
por fim, dispensados de seus postos.
Enquanto eu caminhava, conseguia reconhecer muitos deles. Alguns eram
pesadelos comuns, como vultos sem rostos e cabeças sem corpos; alguns
eram manifestações amórficas de colorações e texturas enquanto outros eram
aberrações dignas de contos de terror para crianças. Havia, falando nisso,
pesadelos de minha infância, criaturas de desenhos animados desfiguradas,
velhos adversários de escola, e até manifestações indescritíveis dos sonhos de
queda, de vontade ir ao banheiro, de corpo queimado e tantos outros
estímulos corporais que ocorrem durante o sono.
Reconheci pesadelos como o trio de incendiários que adentravam a um
quarto com sua chama apagada e vi, no meio da multidão, uma mulher
grávida com dois berços, um negro e um branco, ambos vazios. As narrativas
haviam se dado por fim e não eram mais necessárias, assim tais alegorias se
desvaneciam enquanto a Casa se movimentava de volta à realidade.
Algo que não percebi durante toda a viagem, ou que não tive o prazer de
encontrar pelo caminho, foram os sonhos. Agora eles também se
organizavam aos montes, indo desde figuras humanas extremamente belas até
criaturas que transpiravam felicidade, conforto, saudades que por fim seriam
passado e outros sentimentos bons. Exalavam aromas doces ao passar por
perto de mim e seus carinhos e gracejos demonstravam gratidão. Creio que,
entre tanta escuridão, os próprios sonhos recuaram com medo de serem
engolfados pelo breu e pela noite eterna, mas agora a Casa estava a salvo e
eles sentiam-se livres para sair e ambientá-la novamente. Sentia que iria
voltar a sonhar mais nas noites seguintes.
Quanto mais prosseguia, menos manifestações de sonhos e pesadelos
apareciam enquanto todos se metiam em seus dormitórios e recintos. Os
corredores e as salas se tornavam mais factíveis, de alguma forma mais
tangíveis e semelhantes ao real. Em certo momento me encontrei sozinho e
em silêncio. A Casa dormia, finalmente, após uma longa madrugada de
pesadelos assustados, sonhos reclusos e a escuridão assassina.
Continuei meu caminho ouvindo apenas o som na madeira dura e sem
falhas do assoalho que emitia um grave sonoro a cada passo que eu dava. Não
houve medo em nenhum momento da caminhada, nem mesmo quando os
próprios pesadelos passavam ao meu lado.
Mas agora, próximo ao fim, sentia uma sensação estranha na minha
barriga. Um arrepio pelo meu corpo, um medo do que viria a seguir. A
felicidade era prometida, mas até mesmo a própria felicidade era por si
assustadora. Eu não sabia se estava preparado para crer em tudo de positivo
que poderia acontecer de agora em diante. As coisas ruins eram esperadas,
mas as boas seriam fruto daquela jornada? E se isso tudo acabasse ao sair da
Casa?
Mas quando essas questões vieram à minha cabeça, automaticamente
lembrei-me do sorriso da Esperança e de suas palavras. Fosse o que estivesse
além daquelas paredes, eu estaria pronto para receber e lidar com a situação.
Eu não era mais aquele que havia entrado na casa.
Ao final do corredor, virei à esquerda e me encontrei de frente com
aquela primeira porta que havia passado para entrar na Casa. Estava no
primeiro cômodo que tinha entrado, do qual me perdi no labirinto de minha
própria mente. Ao fim, a porta possuía uma vidraça ao meio e a luz da manhã
irradiava através dela. Senti aqueles raios chegarem ao meu peito e me enchi
com aquela sensação térmica, aquecido por um sol que não entrava em meu
plexo fazia anos.
Em passos de um homem leve e sem escuridão em seu ser, eu caminhei
até a porta da frente. Respirando calma e tranquilamente, ergui meu braço até
a maçaneta redonda, que pareceu deslizar pelo feixe. Abri a porta de saída
confiante de que um dia iria nascer e que as coisas seriam diferentes a partir
dali. Sentindo a brisa do vento e o canto de pássaros do bosque, me permiti
sorrir alegremente.
E então, eu saí.
Epílogo: Temet Nosce
Quando abri a porta, me deparei com ela. Usava um vestido longo, até
os pés, de cor bege, assim como o chapéu grande que cobria seus cabelos
rosados. Quando olhou para mim, seus olhos eram de um vermelho claro
como morango. Carregava uma mala junto ao seu corpo.
— Oh, você já está indo?
Me peguei surpreso pela beleza daquele ser e de sua voz.
Automaticamente me senti encantado pelo seu rosto, sua postura, seu cheiro,
sua voz, por tudo.
— Sim — disse. — Você mora aqui?
— Moro. Bem, quer dizer, alguns anos atrás eu fui embora, mas senti que
era hora de voltar. Pelo jeito as coisas não estão tão bagunçadas quanto
estavam antes.
— Quem é você?
— Eu? Eu sou Paixão.
Meu rosto corou ao ouvir o nome. Era por isso que estava tão encantado.
— Eu conheci suas irmãs lá dentro.
— Jura? E como elas estão?
— Não estavam tão bem no começo, mas acho que agora estão melhores.
Me disseram que você estava voltando.
— Bem, aqui estou eu. — Quando ela sorriu, não resisti e sorri de volta
na hora.
— Por que você chegou a ir embora?
— Eu estava desiludida. Sentia que jamais encontraria alguém e que
nunca seria capaz de ser feliz. Por isso fui embora e passei esses anos fora,
morando de casa em casa, buscando algum lugar que me acolhesse e onde
não me sentisse triste.
— E deu certo?
—Durante um tempo sim. Mas parecia que sempre faltava algo. E de fato,
faltava.
— O quê?
— Eu mesma. Percebi que para que pudesse ser feliz em qualquer outro
lugar, precisava fazer as pazes comigo mesma. Antigamente eu buscava o
Amor e ele nunca vinha. Mas no final acabei encontrando-o no lugar mais
óbvio de todos: aquele do qual eu tinha ido embora. E hoje tenho essa coisa
dentro de mim que ainda não sei bem como chamar…
— Amor próprio — disse, sorrindo.
— Hm, acho que pode ser. Esse é um belo nome para esse sentimento. —
Paixão deu uma batidinha na mala na lateral do seu corpo. — Decidi trazê-lo
para mostrar para minhas irmãs e voltar para meu lar. Você quer dar uma
olhada?
— Sim.
Então Paixão ergueu sua mala e abriu, revelando seu interior. Dentro, não
havia roupas, perfumes e nenhum tipo de pertence. Havia apenas uma coisa,
que deduzi ser o amor próprio.
Era um espelho, e nele, meu rosto se refletia, sorrindo.
— É lindo — disse.
— Não é? Estou ansiosa para mostrar para elas.
— Bem, eu não vou te prender mais então. Creio que você conheça os
caminhos aí dentro, não é? É uma casa bem grande.
— Tudo bem. Faz tempo que não passo por aqui, mas acho que ainda
posso lidar com as coisas.
— Boa sorte então e tenha um bom dia.
— Você também, meu rapaz.
“Meu rapaz”, foi o que ela disse. Exatamente como minha mãe me
chamava, da forma mais carinhosa e amável possível.
Trocamos sorrisos antes que ela fechasse a porta da Casa. Quando virei,
percebi que as flores do quintal tinham voltado a florescer.
***
Por trás do bosque, o nascer-do-sol lançava sua luz sobre a copa das
árvores e nas telhas brancas da Casa. O vento suave corria pelo meu rosto e
trazia consigo o aroma dos pinheirais e das flores escondidas na mata e no
quintal. Pássaros despertavam junto ao dia e ao longe eu podia ouvir até
mesmo o som de carros cruzando a estrada que ia em direção à minha cidade.
O Homem de Branco estava esperando após as cercas do jardim,
encostado em seu carro branco. Ele sorria sem mostrar os dentes, e eu retribuí
com um sorriso aberto, indo em direção a ele.
— Diga-me: Sia era a sabedoria; Thisi, a coragem; Frey, a alegria e a
tristeza; e por fim, Esperança e Paixão. Quem é você?
Ele respirou fundo antes de responder. Sua voz grave e encorpada agora
possuía uma tom alegre, amigável.
— Eu sou a Escolha — ele respondeu, e eu não pude evitar de soltar uma
gargalhada.
— Claro, o que mais?
Escolha abriu a porta, e eu entrei cheio de energia dentro do veículo.
Fechando a porta, ele contornou o carro, entrando e sentando no assento do
motorista. O homem também parecia animado, e batucava o volante enquanto
ligava o motor.
— E então? Para onde vamos?
— Para onde? Eu não sei… — Então olhei para frente, através do vidro
do carro, para o dia que nascia, ensolarado. Um bando de pássaros saiu do
meio dos pinheiros e voou em círculos e outros movimentos. Queria contar
aquilo para alguém, queria contar sobre toda minha vida para as pessoas que
a ela faziam parte.
— Veja — eu disse, finalmente. — Está um dia lindo. Que tal fazer
algumas visitas antes de ir para casa?
— Pois vamos, então. Familiares ou amigos primeiro?
— Me surpreenda. Te dou o dom de decidir.
O homem sorriu para mim e ambos rimos. Escolha pisou no acelerador e
o carro começou a andar em direção à ladeira para descer aquele penhasco, de
volta à realidade.
***
***
Esta, no entanto, não foi a única vez em que visitei a Casa. Pelo contrário,
foi apenas a primeira de muitas visitas que realizaria nos anos vindouros.
Sempre começar-se-ia da mesma forma: com uma escolha. Então, levado por
ela, chegaria até aquele mesmo penhasco no qual seria recebido e guiado pela
minha tristeza. Dentro, porém, encontraria a coragem, paixão, sabedoria e
esperança necessários para lidar com o que quer que me esperasse naquela
visita.
Os problemas, a cada passagem pela Casa, se tornaram menores. Às
vezes passava por lá apenas para reencontrar tais virtudes, sem nada para
resolver, apenas para se admirar. Com o tempo a Casa foi ficando mais bela,
arrumada, iluminada e arejada.
Durante todos os anos seguintes da minha vida, dediquei-me a deixá-la
cada vez mais confortável e agradável para aqueles que nela habitavam.
Quanto mais a explorava, mais sonhos, pesadelos e virtudes eu encontrava.
Algumas, com o tempo, sumiram de vista, reclusas em seus próprios quartos
para que pudessem descansar. Durante minha vida a Casa tornou-se mais
silenciosa e tranquila, mas, mesmo assim, um bom lugar para se viver, graças
a todo o trabalho feito durante os anos passados.
Certa manhã, anos e décadas após a primeira visita, quando a idade já nos
permite falar coisas e contar histórias sem sermos julgados como loucos e
excluídos da sociedade (pois a vida já tratou de fazer isso), descrevi toda essa
jornada para minha esposa Laura, que agora também se encontrava em uma
idade na qual permitimos novamente acreditar em contos de fadas e coisas
além da nossa vã realidade. Ela ouviu com atenção, e com a paciência de um
anjo, suportou todos meus arabescos e superlativos durante a narrativa de
minha jornada. Ao final, não se demonstrou cética, mas também não declarou
crença total ao meu relato. Não poderia pedir mais dela, pois nem eu mesmo
conseguia dar crédito de veracidade a tudo que lhe contei. Sendo ou não
sendo real tudo aquilo que contei, após terminar, Laura me perguntou se eu
me arrependia de alguma escolha feita durante essa jornada, se teria feito
alguma decisão de forma diferente ou em outra ordem, se teria me precavido
mais ou arriscado menos e questionou se eu mudaria qualquer detalhe que
fosse de tudo aquilo que havia vivido. Eu fiquei em silêncio durante o tempo
no qual toda esta história passou pela minha mente, e por fim pude responder
com um sorriso no rosto:
— Não. Eu não mudaria nada.
O vento gelado passou e levou minhas palavras junto a ele. Para nos
protegermos, demos meia-volta e entramos por fim em casa.
Fim
Modelos