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A Casa

Murillo Pocci
Copyright © 2019 Editora Skull
Copyright © 2019 Murillo Pocci

Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados:
eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação, ou quaisquer outros, sem autorização prévia, por escrito, da editora.
Esta é uma obra de ficção.

Editor Chefe: Fernando Luiz


Produção Editorial: Editora Skull
Capa: Henrique Morais
Revisão: Nadja Moreno
Diagramação: Erisvaldo Correia
Fotógrafo: Robson Dobler

POCCI, Murillo.
A Casa - 1ª Ed São Paulo – SP, 2019 - Editora Skull
ISBN: 978-85-53037-68-1
1- Literatura Brasileira. 2. Ficção. 3. Título

Todos os direitos reservados, incluindo os direitos de reprodução integral ou em qualquer forma


Agradecimentos

Tive duas grandes motivações para escrever e publicar esse livro.


Provavelmente sem o apoio de minha querida mãe, Maria Aparecida, e de
minha amada namorada, Mariana Marques, esse livro jamais teria chegado à
sua conclusão.
Agradeço também à minha psicóloga, Dr.ª Angela Maria Marsal, por ter
me ajudado a lidar com meus próprios pesadelos e atravessar minha própria
casa.
Agradeço a Fernando Luiz e toda a equipe da Editora Skull, por confiar
no meu projeto e ajudar a transformar esse sonho em realidade.
Agradeço também a todos os apoiadores que colaboraram com a
campanha de financiamento coletivo no Catarse, em especial à Mariana
Marques, Giovanna Marques, Ana Alves Rodrigues, Gabriel Durynek, meu
querido irmão Vinícius Pocci, Thainara Oliveira, Carlos Alberto Chiapetta,
Natália Fukuda Rocha, Helena Zenidarchetz, Humberto Marchezini e
Wellington Budim.
A mais, agradeço a todos que leram o livro durante sua formação e
ajudaram oferecendo suas opiniões, críticas, elogios e motivações. Se não
fosse pela força de todos nós juntos, isso jamais teria se concretizado. Meu
eterno agradecimento a todos vocês.
Introdução

O poeta Criolo já dizia em música: por que as pessoas sadias adoecem?


Bem alimentadas ou não, por que perecem? Tudo está guardado na mente.
De fato, esta caixinha de surpresas, esta bolsa de joias coberta por uma
caixa craniana é um grande labirinto. Palco das mais alegres comédias, dos
mais puros amores e das mais dramáticas tragédias. A mente pode ser nossa
ferramenta para moldar toda a realidade ao nosso redor, mas também pode
ser nossa maior inimiga.
Este livro é exatamente sobre isso.
Escrevendo A Casa, percebi que possuía em mãos algo além de apenas
uma ficção. Leitores mais atentos reconhecerão uma jornada de
transformação descrita entre os terrores deste enredo e perceberão as
mudanças pelas quais passei ao escrever esse texto.
Decidi publicar a história pois acredito que juntos podemos melhorar o
todo, e que A Casa pode ser minha contribuição para um mundo melhor.
Torço para que esta história possa ser uma luz, um farol no meio de um mar
tenebroso, uma estrela durante uma noite escura, que possa guiar os viajantes
da vida pelos caminhos mais felizes.
O mesmo poeta citado acima também diz que as pessoas não são más.
Elas só estão perdidas. Pois acredito que ninguém seja mal consigo mesmo
por querer, e que aqueles que se machucam estão apenas perdidos como eu já
estive quando comecei esta narrativa. Que esse livro em suas mãos possa
ajudar a todos nós encontrarmos o caminho.

Boa leitura.
Murillo Pocci, 15 de Agosto de 2018.
Memória Zero: Como Cheguei Aqui

O ponto é que: eu não sabia. Não houveram dúvidas, nenhum peso de


prós e contras. Houve apenas uma decisão, uma escolha que me levaria à
única trilha que eu podia caminhar. E eu estava nela.
Eu acordaria como nos outros dias, me vestiria como outrora e tudo
pareceria caminhar em direção à rotina de sempre. Iria estudar, trabalhar,
talvez encontrar Laura durante a tarde e me distrair antes de retomar o foco e
voltar morto de cansaço para meu lar. A noite prosseguiria tranquila enquanto
sonharia com formas geométricas que me lembrariam pessoas ou sentimentos
e no dia seguinte tudo se apagaria e daria lugar ao borrão do olhar recém-
desperto.
Seria mais uma dia normal, apenas mais uma noite.
Se não fosse o fato de acordar no chão, sem nada ao meu redor.
Primeiramente o tato que acusou, pois sentia frio e rigidez contra meu
braço direito no lugar do conforto de uma cama. Depois, com a visão, notei
que realmente não estava na cama, mas no chão de madeira fria de meu
apartamento. Estava nu e minhas roupas não estavam em lugar algum do
quarto, que estava totalmente vazio, sem mobília, quadros na parede ou
iluminação no teto. Até a porta havia sumido, deixando uma passagem aberta
para o corredor. O cômodo estava completamente vazio.
Levantei e fui em disparada para a entrada, tropeçando em minhas pernas.
Saí do meu quarto e o estranho continuou a me acompanhar quando notei que
a inexistência dos meus pertences se estendia por todo apartamento. Senti
uma forte tontura e escorei na parede para não desfalecer, lentamente
deslizando as costas na parede até me sentar. Havia apenas o silêncio
entrecortado pela minha respiração trêmula enquanto tentava recordar-me da
noite anterior.
Memórias. Memórias era tudo que restava daqueles móveis que um dia
preencheram aquele apartamento, e era o que eu explorava, tentando
compreender o que acontecia. Mas as memórias, além de vagas e fúteis, eram
distorcidas por uma névoa cinza de confusão. Não havia vida naquelas
memórias, perdia-se algo que lhes trouxesse movimento, clareza, mas eu não
sabia dizer ao certo o quê.
Aquelas paredes agora pareciam brancas demais sem os outros móveis.
Duras demais. Solitárias demais.
A noite anterior era um branco em minha mente e nada que eu lembrasse
escapava da rotina clássica do dia a dia: acordar, banho, café, ônibus, metrô,
faculdade, metrô, trem, trabalho, trem, ônibus, casa, jantar, assistir seriado,
ler, alimentar o gato… O gato.
— Júpiter? — O menor som era ecoado pelo vazio da casa, mas não havia
resposta ao meu chamado. Tentei mais uma vez. — Bichano, cadê você?
E o apartamento continuou em silêncio sem resposta do animal de pelo
branco e amarelo que vivia comigo. Não podia acreditar que tinham levado
até ele. Mas o que é um gato para alguém que furta portas? Eu estava sozinho
e procurava qualquer sentido, qualquer lógica por trás daquele
acontecimento, mas não havia razão nenhuma nem qualquer forma para que
tudo fosse retirado de meu apartamento sem consenso, e ninguém jamais
poderia fazê-lo de forma tão silenciosa e limpa a ponto de não me despertar e
nem deixar marcas. Eu olhava para todos os cantos em busca de uma
resposta, de uma dica do que acontecera durante a madrugada.
E então, ao olhar para a porta de entrada (a única que tinha sido poupada),
eu vi uma caixa. Era cúbica, com uns cinquenta centímetros de altura e não
possuía nada escrito nas laterais de fora que eu pudesse identificar. Chegando
mais perto, foquei minha atenção em busca de um som que pudesse vir do
interior, mas não havia nenhum ruído sequer. Assim, sentei-me ao lado e abri
a caixa com a delicadeza de quem desarma uma bomba.
Dentro havia uma muda de roupa composta por uma camisa branca, uma
calça jeans desbotada, roupas de baixo, meias da mesma cor da camisa e, por
fim, uma jaqueta marrom e um calçado de couro sintético. Abaixo de tudo
isso havia um cartão retangular no qual em um verso estava escrito a frase:
“Vista-se de forma confortável”
Olhei o outro lado em busca de alguma informação e havia apenas uma.
Abaixo da instrução “vá para…”, um endereço o qual eu nunca tinha ouvido
falar. Não havia mais nada na caixa, e agora tudo que me constituía era um
corpo fraco, algumas roupas de segunda mão e um endereço.

***

Ao descer do meu apartamento, reparei que em frente à portaria do meu


prédio um carro antigo branco estava estacionado e um homem de terno na
mesma cor estava de pé, apoiado no veículo. Ele não parava de me encarar
pelo outro lado da rua. Não havia mais ninguém ao redor e nem outros
veículos. Minha carteira tinha desaparecido junto com todo o resto (o termo
“furtado” ou “roubado” não se encaixavam bem na situação. Tudo parecia ter
sido simplesmente obliterado). Até a chave de casa fora junto aos meus
pertences. E agora este homem assustador junto ao seu veículo igualmente
intimidador.
Decidi continuar meu caminho sem retribuir o olhar direto enquanto
descia a rua do prédio. Iria atrás de todas as pessoas com as quais tivera
contato recentemente para entender o que poderia ter acontecido na última
noite. Devido à falta de acesso ao transporte, não pude chegar até o trabalho
que ficava distante da minha casa, mas pude ir até minha universidade, que
ficava perto de casa. Pode ser até pelo fato de não ser lá uma das figuras mais
carismáticas da faculdade, mas não vi nenhum dos meus amigos passarem
por aquelas catracas durante todo o período e nem mesmo Laura. Ao tentar
criar um acesso provisório, meus dados haviam sido “surpreendentemente”
deletados do sistema da faculdade, segundo o atendente.
Decidi então recorrer aos meus pais. Não nos falávamos há muito, mas
neste momento eu já estava desesperado por ver um rosto conhecido, familiar
no meio de tantos estranhos. Mas, ao bater na porta e clamar pelos meus pais
na entrada, ninguém atendeu a meus chamados. O pânico começou a subir
em minha mente e em meio a isto tomei a decisão de lançar meu corpo contra
a porta e forçar meu caminho para dentro da casa. E foi aí que vi, ou melhor,
não vi: aquela casa também estava vazia.
O temor subiu sobre minha espinha e o coração saltava à boca.
Desesperado, pensei em correr para a delegacia mais próxima pedir por
socorro, mas o que diria? Como diria que tudo meu e dos meus pais teriam
sumido, junto a eles? Poderia até virar o primeiro suspeito de tudo aquilo.
Mas um arrepio passou pelo meu corpo quando eu enfiei a mão no bolso da
jaqueta e senti o cartão lá dentro. Eu sabia onde eles estavam. Eu tinha o
endereço, mas todos os táxis e serviços diziam desconhecer tal endereço ou
que talvez fosse de uma outra cidade ou região.
Comecei a voltar para casa quando a noite começou a subir. Parei em
todas as casas de amigos meus ou da família pelo caminho, mas sempre tinha
o mesmo resultado: portas trancadas, casas vazias. E então, ao chegar na rua
da minha casa, vi que o homem de branco e seu carro continuavam na
calçada de meu prédio, na mesma posição. Ao me aproximar, encarei os
olhos do homem, que eram de um cinza com leve tom de lilás.
— Com licença, posso lhe ajudar? — Foi o que ele disse, com uma voz
pesada. Sem paciência para esquisitices, rapidamente respondi:
— Não, muito obrigado.
— Tem certeza? Creio que posso ser de muito valor.
— Pois eu não. Passar bem, meu amigo.
Comecei a subir as escadas da portaria do meu prédio, ao passo que o
homem foi atrás de mim.
— Sinto muito, mas preciso insistir em meu pedido. Afinal, sei onde eles
estão.
— Quem?
— Seus pais.
Senti meu corpo se eriçar com a resposta daquela figura misteriosa.
— Quem é você?
— Ah, meu caro, isso eu não posso lhe responder.
— Onde estão meus pais?
— Você sabe.
Sem paciência para jogos de enigmas, avancei para cima do homem e
agarrei as golas de seu terno. Ele não reagiu contra o gesto e continuou a me
olhar de forma firme.
— O que vocês fizeram com eles? Me responda! — Estava com os nervos
à flor da pele e não me responsabilizava pelo que poderia fazer àquele
homem.
— Por enquanto, nada. — O homem não pôde deixar de soltar um sorriso
sádico em minha direção. — Mas daqui pra frente depende de você.
— Do que você tá falando?
— Estou falando que se você quiser seus pais, amigos e tudo de volta,
precisa vir comigo.
— Ir aonde?
— Eu já disse, você sabe onde. — Então o homem abaixou seus olhos em
direção ao bolso da jaqueta de couro.
— E se eu não quiser?
— Então eu sinto muito pelo que vai acontecer aos seus entes queridos.
Nós estamos com a Laura também, sabia?
Enfurecido, estendi um dos braços e fechei o punho para lançar um golpe
contra aquele homem até que ele me dissesse de fato o que acontecia, mas em
movimentos extremamente rápidos o homem desprendeu-se da mão que o
segurava, agarrando meu braço e imobilizando-o, indo para minhas costas e
me pressionando contra a lateral do carro. Meus dois braços estavam
imobilizados, e o homem falava ao meu ouvido.
— Você pode escolher não ir, tudo bem se fizer essa escolha. Mas saiba
que você vai perder tudo se fizer isso. E então, garoto? Como vai ser?
— Tudo bem, tudo bem. Me solta e eu vou com você.
— Se você tentar me agredir mais uma vez, eu juro que quebro o seu
braço, você entendeu?
— Sim.
O homem me soltou e entrou pela porta do motorista.
— Entre. Estamos com pressa.
Entrei pela porta traseira no veículo e senti meus ombros doloridos pelo
golpe do sequestrador.
— E então? — ele disse. — Para onde vamos?
— Como assim? Você sabe para onde vamos.
— Talvez. Mas eu ainda preciso que você faça a escolha. Me diga, para
onde vamos?
Eu lhe disse o endereço do cartão e o carro começou a andar.
Memória Um: No Carro

O veículo se movia lentamente, pegando velocidade ao entrar na avenida.


O vidro esfumaçado e a noite escura dificultavam a visão do lado de fora e
em certo momento perdi a orientação por quais ruas seguíamos.
— Onde fica esse lugar? — perguntei, já não reconhecendo minha
própria cidade. Como esperado, não tive resposta, então decidi mudar a
pergunta. — Por que vocês estão fazendo isso comigo? Com minha família?
— Porque foi necessário. — O homem de branco não mudou seu tom e
nem virou para me responder. — Foi preciso fazer isso com você.
— Por quê? — Novamente sem resposta. — Vocês são alguma máfia ou
coisa do tipo?
— É, você pode dizer que sim. Precisamos de algo nesse endereço, algo
que pertence a você.
— Pertence a mim?
O homem de branco apenas me olhou pelo retrovisor do carro, sem
expressão, no máximo o resquício de um sorriso irônico e controlado.
— Eu não conheço esse lugar.
— Não. Mas ele te conhece.
Olhei novamente para fora e pelo pouco que vi, reparei que não
estávamos mais na cidade, e sim numa estrada de asfalto velho e esburacado.
— Não conheço essa estrada — disse.
— Ela é da sua infância. — Foi a resposta curta que tive do homem de
branco e que estranhei. Jamais tinha passado por aquela região da cidade.
— O que sabem sobre mim? Por que isso tudo está relacionado a mim?
Por que toda essa coisa sem sentido está acontecendo e o que você pensa que
sabe sobre minha infância?
— Sua mãe que nos disse — e dessa vez o homem de branco não
escondeu seu sorriso sarcástico. — Que essa estrada é da sua infância.
Me encostei no banco e comecei a pensar o que eles teriam feito à minha
família. A gama de situações que surgiam na minha mente em certos
momentos me tranquilizava e a maioria dos outros me deixava à beira do
pânico. Enquanto isso tudo passava em minha mente, minha ansiedade
percorria o meu corpo através da perna agitada, da mão que cutucava a
própria pele e da boca que mordia e tirava peles dos lábios. Para evitar que
essa sensação crescesse em mim, comecei a focar meus pensamentos nos
meus irmãos e meus pais, então me lembrei da última vez que tinha visto
minha mãe.
Facilmente eu conseguia projetar as imagens em minha mente, e assim
consegui me recordar do último feriado, quando eu e meus irmãos fomos
visitar nossos pais. Nos últimos anos eram apenas nos feriados que tínhamos
a oportunidade para visitarmos juntos e reunir toda a família para celebrar.
Nem os aniversários eram mais em família.
Mas eu lembrava de minha mãe, sentada na poltrona próxima à varanda,
com meu gato no colo, tomando uma xícara de café e feliz de estar vendo a
família unida mais uma vez. Ela me perguntava sobre o trabalho, e eu
respondia que estava bem. Ela me perguntava sobre os amigos e eu dizia que
estava tudo certo. Só que nada estava bem naquela época, todos estes
aspectos estavam próximos do fim e eu deveria ser mais aberto e falar mais
sobre meus problemas com ela, mas não queria preocupá-la. Uma pessoa que
já tinha três filhos e um marido velho e doente para cuidar. O que eu estava
vivendo na minha vida naquele momento era nada em comparação com estes
desafios da rotina de minha querida e tão batalhadora mãe.
Mas talvez ela tivesse respostas.
Talvez ela pudesse me aconselhar nisso tudo, em todas essas
dificuldades…
Talvez…
Olhei para fora novamente e nos vi em um bosque. Repentinamente uma
memória antiga e esquecida reapareceu, e me lembrei de uma trilha coberta
de árvores altas e que cobriam o caminho com sombras frescas. Ventava de
forma leve naquela manhã, e eu era uma criança de apenas oito anos de idade
e sem medo das coisas, segurando firme a mão de uma mãe que sorria,
usando um vestido leve e branco, de alças finas e que brilhava ao passar por
raios escassos que venciam as sombras. O cabelo curto de minha mãe
esvoaçava, sua risada era um som doce e que me envolvia carinhosamente.
De dentro do carro eu acreditava até mesmo sentir o aroma dela.
Aquele sorriso era um tesouro, e nos anos seguintes aos problemas de
saúde do meu pai, eles se tornaram diamantes cada vez mais raros. Aquela
mulher, que com uma mão segurava meu punho e com a outra segurava um
ramo de flores colhidas no bosque, era uma deusa. Uma mulher para se
venerar, idolatrar e para se descrever em histórias.
Mas quanto mais eu me lembrava deste momento perdido em minha
cabeça, menos sentido aquele bosque que nos rodeava fazia sentido.
— Eu lembro — disse ao motorista do carro —, eu lembro desse bosque e
de quando vim com minha mãe aqui, mas é impossível que esse seja o
mesmo. Aquele bosque era na Europa, e não nesta cidade. Esse lugar não é
daqui.
— Tudo está aqui. — Foi a única resposta que ouvi, e não fui capaz de
compreender o que o homem de branco queria dizer com isso. Me afundei
novamente em silêncio no banco estofado e continuei a olhar para o bosque
enquanto ele se abria cada vez mais.
Depois de um tempo, o homem retornou a falar:
— Chegamos.
O carro parou silenciosamente após subir uma estrada longa e estreita,
que terminava em um penhasco.
Pesadelo Zero: Este Lugar Não Existe

O homem de branco não me deu nenhuma ordem, apenas olhou para


mim com o rabo do olho, como se não houvesse nada mais a fazer além de
sair do carro. Pelo vidro embaçado, eu avistava a estranha estrutura da casa.
Não havia asfalto, apenas terra coberta com uma grama rala e escassa
crescendo em tufos. Atrás e nas bordas do penhasco haviam diversas árvores
finas que cresciam enfileiradas como eucaliptos. Uma trilha bem desgastada
levava à casa, e à noite só consegui observá-la quando forcei a visão.
No fim da trilha uma cerca baixa e branca cingia a casa, com um portão
entreaberto cheio de marcas de arranhões, provavelmente de animais dos
bosques que atravessamos para chegar. Enquanto andava pela trilha, guiado
por um instinto que me puxava àquele lugar, percebi que ela continuava além
do portão. Uma caixa de correio aberta estava ao lado da portinhola da cerca,
mas sem cartas no seu interior.
Parei ao chegar na frente da casa e levantei a cabeça para contemplar sua
altura. O prédio era confuso e não sabia ao certo quantos andares a residência
tinha. Não era uma casa que ascendia aos céus de forma retilínea, mas um
andar equilibrava-se mais à direita, outro mais à esquerda, outros mais à
frente ou para trás. Era um verdadeiro milagre da arquitetura que aquela
estrutura não tombava sobre si mesma. Mas nada possuía de moderna: suas
paredes eram de chapas de madeira alinhadas na horizontal, pintadas com
uma tinta branca que já estava desgastada, e graças a isso e pela sujeira e
abandono, aquele lugar era coberto em seu exterior por diversos tons de cores
negras, do marrom ao cinza, até o preto de madeira podre e chamuscada. As
janelas, em sua maioria retangulares, estavam todas fechadas com cadeados,
correntes ou tábuas, e velhas cortinas esburacadas tapavam a visão do
sombrio interior. A coloração original das janelas era de um azul-naval, mas
que devido ao tempo e aos maus cuidados, também se apresentava gasta e
mais escura do que a pintura original. No topo da estrutura medonha, um
telhado pontiagudo de telhas de barro isolava o interior da residência. Pelo
que era possível enxergar na noite clara, o telhado era do mesmo tom de azul
das janelas. Branco e azul, duas das minhas cores favoritas, mas que, naquele
momento, traziam-me agonia ao observar aquela estrutura sobrenatural.
Virei-me para perguntar ao homem de branco se deveria bater na porta
para alguém abrir, mas quando olhei para trás, tanto o homem quanto o carro
não estavam mais no penhasco, e me encontrava sozinho diante da casa.
Decidi verificar a lateral da residência para encontrar alguma porta dos
fundos, janela aberta ou qualquer outro acesso, mas a porta da frente parecia
ser o único meio. Antes de voltar, olhei pela beira do penhasco para a cidade
que, de noite, exibia seus pontos de luz como sardas no rosto de uma criança.
Eu podia observar toda a extensão da cidade ali: cada prédio, cada casa e
avenida. Passei toda minha vida nesse lugar, conhecendo cada rua, cada
esquina, perambulando por todas as regiões possíveis. Ainda no penhasco era
possível ouvir: os motores de carros e motocicletas, as fábricas que jamais
paravam de produzir, o som da vida se espalhando por aquela rede urbana. O
cheiro também estava presente. O clássico aroma de poluição das cidades,
porém misturado com o aroma dos pinheiros e carvalhos do bosque atrás.
Tudo era vivo ali. Tudo existia.
Porém, eis aqui o grande problema deste lugar: ele não era real. Nunca
houvera um penhasco nos arredores da cidade. Algo como aquele terreno,
como aquela casa na ponta do abismo seria visível a qualquer um que
passasse pela região. Só que não era, pois não existia e eu não conseguia
compreender onde os meus pés pisavam. Se aquele lugar era ilusório, eu
deveria estar caindo ou algo parecido. Em minha mente, o chão abaixo não
existia, pelo menos em todas as minhas memórias daquela cidade.
— Isso é a porra de um pesadelo — disse para mim mesmo.
Mas fosse pesadelo ou não, aquela casa alta estava em minha frente e
aquele era o endereço onde tudo que eu possuía e estimava, família e amigos,
estava. Fui até a porta da frente e dei três batidas na madeira fria que soou de
forma seca. Ninguém atendeu, então bati mais algumas vezes.
— Olá? Tem alguém aqui? Eu vim buscar minhas coisas. As pessoas que
vocês sequestraram, sabe? — Não houve resposta.
Decidi que iria entrar na casa e agarrei a maçaneta de bronze redonda. Era
fria e pesada. Ao girar e tentar abrir a porta, encontrei-a emperrada, então
com a outra mão empurrei-a até conseguir entrar, impulsionando com a
lateral do meu corpo. Cada vez mais a porta foi cedendo, centímetro por
centímetro, até abrir-se de todo, fazendo com que eu entrasse aos tropeços na
casa.
O que veio primeiro ao meu corpo foi o cheiro. Era uma mistura única de
tudo que eu sentia nojo com tudo que ainda desconhecia ter, e por isso quase
dei meia volta ao respirar aquele ar podre, mas continuei entrando, colocando
a mão em frente a boca para tentar filtrar ao menos um pouco daquele ar
empesteado. Após isso, a visão que tive foi de um ambiente extremamente
escuro, iluminado apenas pela luz da lua que entrava pelas janelas da casa e
algumas lamparinas de óleo nas laterais, que refletiam a cor verde das
paredes.
Era possível ver o mofo e pó que flutuava pelo ar dentro daquele espaço.
O único som que eu ouvia era o da minha própria respiração.
De acordo que minha visão foi se adaptando ao ambiente, consegui
separar melhor os elementos que compunham minha visão. A porta de
entrada dava para um corredor extenso que ia até o fundo da casa. Havia
quatro acessos neste corredor, que não possuíam portas, e aquele ambiente
todo, se não fosse pelas paredes intermediárias, poderia ser considerado um
cômodo só. Espremida na lateral direita do final do corredor principal havia
uma escada que levava ao andar superior, onde era possível ver a penumbra
de uma iluminação parca.
No meio daquele silêncio, arrisquei novamente chamar por alguém:
— Mãe? Pai? Laura? Tem alguém aí?
Minha voz apenas passou seca pelo ambiente, sem reproduzir eco,
absorvida pelas paredes de madeira. O chão rangia enquanto eu andava o
mais delicadamente possível pelo corredor, e passando pelos acessos
identifiquei uma sala de estar, um escritório, uma cozinha e uma sala de
jantar. Acreditava que o segundo andar estaria preenchido com quartos e
banheiros, e enquanto subia os degraus barulhentos da escada sem encostar
no corrimão cheio de teias de aranha, me questionava sobre o motivo para
estarem fazendo isso comigo e com a minha família. Não tínhamos nenhum
parente ou conhecido que guardasse rancor da família, embora eu guardasse
mágoa de muitos, e ninguém seria capaz de arrancar toda a mobília da minha
casa sem que eu sequer percebesse. Mas para alguém que já estava em uma
casa que não deveria existir, num penhasco que de fato não existia, acordar
em casa sem mobília não parecia mais a coisa mais absurda daquele dia. A
realidade estava em dúvida na minha mente.
Cheguei ao último degrau da escada sem vislumbrar o que existia em
frente, olhando para baixo a todo momento, e dei meia volta no corredor para
ver o que me aguardava. Acreditava que em minha frente enxergar-se-ia
outro corredor extenso como o do andar de baixo, com as portas dos quartos e
banheiros. Mas nada disso me esperava. O que me esperava não fazia sentido
algum.
Eu estava em um salão enorme, mais extenso e largo do que o andar de
baixo era e, por isso mesmo, maior do que a casa aparentava ser segundo o
que tinha visto pelo lado de fora. Não havia quartos ou banheiros, mas duas
escadas longas davam acesso a um mezanino e tudo era coberto por um teto
em formato de cúpula, muito diferente do telhado pontiagudo que havia
observado do lado de fora. Este salão era mais iluminado, com janelas
maiores, mas pelo exterior não tinha visto nada disso, assim como de dentro
da casa não enxergava o lado de fora, nenhuma árvore do bosque que
precedia o penhasco e nem as luzes da cidade. Aquele lugar não tinha lógica
de estar ali, e meu cérebro tentava, mais uma vez naquele dia, tentar
processar o surreal dentro das leis do possível.
Decidi abandonar aquela abominação da física e desci para o térreo, mas
meu corpo parou de descer a escada quando percebeu que a situação era
agora pior do que eu imaginava. Não havia mais um corredor com acesso à
cozinha, salas e escritório. Ao invés disso, eu estava em um caminho muito
mais estreito e cercado de celas de ferro. As paredes eram de pedra rústica, e
o caminho todo era iluminado por lampiões nas paredes. Rapidamente decidi
reverter o caminho e voltar para o salão, que embora não fizesse mais sentido
do que o cenário atual, era pelo menos mais seguro. Mas quando virei, bati a
cabeça contra a porta de um alçapão que estava trancado, e tropecei escada
abaixo pelo corredor de pedras. Minha mente não conseguia processar as
mudanças, e dentro daquele ambiente meu corpo se arrepiava a cada
esqueleto ou corpo podre que eu observava enquanto corria pelo caminho.
Ratos corriam entre meus pés e mordiscavam as peles dos falecidos que
estavam presos.
Enquanto corria rápido, não prestava atenção ao meu redor, mas quando a
fadiga foi me vencendo, consegui reparar em alguns corpos que não tinham
suas carnes ingeridas por completo pelos animais. E isso foi o mais
assustador daquele lugar. Pulei para trás soltando berros ao discernir quem
estava ali, trombando na cela atrás de mim, abrindo-a, tropeçando dentro
daquele espaço até cair sobre um corpo apodrecido. Reconheci o rosto deste
outro também, e me afastei arrastando-me pelo chão, berrando e arregalando
meus olhos.
Ali, deitados no chão, mortos e devorados por camundongos, estavam
tios, tias e primos que não via há anos. Sobrinhas que haviam acabado de
nascer estavam com metade de suas faces comidas, exalando odores
insuportáveis que me ardiam os olhos. Meus berros de horror assustavam os
animais da carceragem, que disparavam em todas as direções e corriam pelos
meus calcanhares. Tremendo de pânico, voltei a correr pelo corredor
enquanto minhas lágrimas escorriam pelo rosto.
Uma curva para a esquerda me levou de volta à casa que eu havia
adentrado, na região da sala de estar, mas ao dar meia volta para o corredor
extenso, fui transportado para o mezanino de um salão galante, e ao descer a
escada deste me encontrei em um corredor espelhado de ambos os lados,
gerando infinitas imagens de mim mesmo, onde via-me chorando e
desesperado para sair daquele lugar. As transições e mudanças absurdas
queimavam minha visão com mudanças rápidas de cores e luminosidade.
Mais uma curva, e agora eu estava em um escritório muito semelhante ao
meu trabalho, mas de ponta cabeça, andando pelo teto.
Minha mente se contorcia para adequar cada mudança e eu andava em
passos tortos como os de um bêbado, pois não tinha noção do sentido e
direção do ambiente. O que era em cima, o que era embaixo? Esquerda?
Direita? A ordem estava fora de si. Caí diversas vezes, e a cada queda, o
ambiente mudava novamente: shoppings, prisões, casas comuns das mais
diversas cores e casas abandonadas há mais de século. Comecei a berrar
ensandecidamente por socorro, clamando para quem quer que estivesse
controlando aquilo, que parasse imediatamente. Aquilo que via só podia ser
efeito de alguma droga, talvez naquele cheiro horrível que senti ao entrar na
casa houvesse alguma substância alucinógena, ou quem sabe alguma
tecnologia que estivesse causando todas aquelas ilusões em mim. Parte da
minha mente buscava o sentido naquilo tudo para que eu pudesse escapar
daquela armadilha, mas ela ficava cada vez menor enquanto a outra parte de
minha mente sucumbia aquele labirinto sem saída. Aquilo tudo não era real,
aquela casa não existia, aquele endereço não era genuíno.
Mas eu era real, assim como as dores e sensações que sentia. Minha
mente era real, então aquilo precisava ser tangível de certa forma. Estava
acontecendo, querendo ou não, e eu estava vivendo aquele pesadelo, mesmo
que contra minha vontade e mesmo que não fizesse sentido. Se era real, ficar
parado não me levaria a lugar nenhum. Se era um sonho, eu iria acordar. Mas
e se não fosse nem um nem outro?
Voltei a me concentrar no caminho e decidi atravessar apenas portas. A
cada porta havia uma transição diferente, mas minha mente estava mais
preparada para cada uma delas. Comecei a aumentar o ritmo e corri pelos
cenários, o que talvez não tenha sido a melhor ideia, pois as mudanças foram
ficando mais rápidas e eu perdi o controle sobre mim mesmo. Não levava
mais meus pés, eles que me moviam, e meu cérebro agora só servia para
controlar o resto do corpo. Ele havia desistido, e eu não ia reparar em nada
mais além da próxima porta, e na próxima, e na próxima.
Meus passos eram cada vez mais cansados e o tempo se perdia em minha
mente. Os minutos viraram horas e as horas se transformaram em dias, mas
meu corpo continuava correndo no seu modo automático enquanto minha
mente berrava com as alucinações que estava presenciando naquele lugar. E
então, depois de perder a conta do tempo e do espaço, meus pés pararam, pois
pisaram em um lugar comum. Pararam porque meus olhos encontraram o céu
e o bosque. Pararam porque eu senti o cheiro do orvalho da manhã e o vento
no meu rosto.
Eu estava fora da casa novamente.
Visão Zero: O Lado de Fora

A primeira coisa na qual reparei foi o céu: colorido, com um azul


matinal que se encontra apenas nas primeiras horas do dia, quase que cinza.
O orvalho das flores liberava um cheiro adocicado no ar, evocando hortelãs e
camomilas, e um vento frio batia no meu rosto, raspando-me as bochechas de
leve. O carro que tinha me deixado na noite anterior naquele penhasco estava
parado no mesmo local onde havia estacionado, e lá dentro o homem de
branco me olhava, sempre fixo e inexpressivo. Apenas após isso que
consegui perceber com detalhes as figuras que estavam à minha frente. Seus
rostos, corpos e formas familiares vinham-me como um refúgio de paz após o
tempo quase que infinito andando por aqueles corredores.
— Você demorou, meu filho.
Minha mãe, meu pai, Laura e até eu mesmo vestíamos branco. Um casaco
curto e estreito e uma saia longa que brilhava com as primeiras luzes da
manhã cobriam minha mãe. Não soube em qual momento que minhas roupas
também mudaram para um conjunto de sapato, calça, camisa e um manto,
todos pálidos. Ao lado de minha mãe, Laura sorria.
— Achamos que você nunca mais ia sair daí de dentro!
— Mas o que aconteceu? Acabou? Quero dizer, eu estava… estava
perdido lá dentro, procurando vocês, e agora do nada eu saio e vocês estão
aqui… É isso? Ou melhor, o que foi isso tudo?
— Sim, meu filho. — Meu pai vestia um paletó pálido com uma gravata
vermelha. Muito elegante, mais do que de costume. — Você conseguiu
passar pelo desafio que eles haviam programado para você!
— Mas como? A única coisa que fiz foi correr pelos corredores e ficar em
pânico! O que aconteceu lá dentro? O que foi tudo aquilo que eu vi?
— Não importa mais, querido! Essa casa é um labirinto, algo que não nos
cabe compreender, e o seu desafio era ter a coragem e persistência para
continuar andando pelos corredores.
— Coragem? Eu quase enlouqueci lá dentro!
— E o que isso importa agora? — Laura, de todos os três, era a mais
graciosa de todos, com um vestido curto de alças e rendas nas bordas. —
Vem logo, vamos sair desse lugar! Os outros estão te esperando!
— Todos estão salvos?
Sorrindo, feliz por ter resgatado, sabia-se lá como, meus parentes,
comecei a descer os degraus da varanda daquela casa esquisita e cheguei ao
gramado alto. Continuei andando, ora olhando para baixo, para meus pés, ora
olhando para Laura e meus familiares, procurando o sentido em tudo aquilo.
Enquanto corria, o vento batia contra meu rosto e trazia-me os aromas de
todo o bosque, enchendo-me de alegria. Não pude deixar de sorrir para Laura
quando ela me deu aquele sorriso animado que ela sabia que preenchia todo
meu coração. Todos estavam salvos agora e todos me esperavam! Tudo
voltaria ao normal e eu faria questão de visitar mais os meus pais e amigos,
de passar mais tempo com Laura e até mesmo cuidaria melhor de Júpiter,
para que ele fosse o gatinho mais feliz desse mundo! Eu tinha vencido o
desafio que aquele homem de branco tinha colocado à minha frente. Aquilo
havia acabado e eu passara pela provação para resgatar minha família. Fixei
meu olhar no de meu pai e levantei a tranca da portinhola para atravessar a
cerca. Vi minha mãe, em seus trajes de pérola, avançando para me abraçar e a
envolvi nos meus braços, sentindo o cheiro de seu cabelo perfumado. Meu
pai veio logo depois, me abraçando e dando batidas nas minhas costas, rindo
daquele jeito abafado que ele ria. Lágrimas vinham-me aos olhos por estar
abraçando aquelas pessoas depois de imaginar que podia perdê-las para
sempre, ficando preso dentro daquela casa infernal.
Mas quando Laura vinha me abraçar, dei meia volta para fechar a
portinhola da cerca da casa, e ao fazer isso, o grito desesperado dela ecoou
em minha mente. O susto que levei fez com que eu puxasse rápido a
portinhola enquanto me virava, fazendo-a bater na cerca, fechando o trinco
com o impacto.
Todo o ambiente ao meu redor se escureceu, e minha vista falhou diante
dessa transição. Foi como se alguém tivesse desligado o sol, como se o tempo
tivesse retornado para a noite anterior. Quando dei por mim, não estava mais
em um espaço aberto e minha mão segurava uma maçaneta ao invés de uma
tranca simples de cerca. Havia paredes ao meu redor, um assoalho de madeira
velha abaixo e um teto acima de mim. Eu estava dentro da casa novamente.
Ou será que na verdade eu nunca havia saído? Aquilo fora um sonho, um
pesadelo, uma ilusão? Meu pai não era real, nem minha mãe, nem Laura. Eu
estava apenas em mais um quarto da casa, e o vento frio entrava por uma
abertura alta na parede direita, oferecendo um clima gélido ao ambiente. Era
noite, mas eu não saberia dizer se ainda era a mesma noite na qual havia
entrado na casa ou se já estava nela há meses…
Pisquei rapidamente diversas vezes, firme e forte, torcendo para que em
algum momento eu voltasse para aquele cenário externo, onde tudo estava
resolvido e minha família estava sã e salva. Mas esse momento não vinha, e
eu tremia por ter sido enganado de forma tão fria. Meu corpo demorou
instantes para conseguir se virar para enfrentar o que havia atrás de mim.
Estava preparado para mais portas, para mais corredores, mas não via mais
nenhum sentido nisso. Eu continuava perdido, sem avanço nenhum, apenas
com mais uma ilusão em minha mente. Mas para minha surpresa, o que havia
no outro lado do cômodo não era mais um corredor.
Era um espelho.
Visão Um: Reflexo

A lua cheia iluminava parcialmente o ambiente e meu reflexo no espelho


que cobria a parede posterior inteira possuía uma expressão de
desnorteamento, a mesma que eu, obviamente, carregava em meu semblante.
O manto que eu vestia esvoaçava delicadamente devido ao vento que entrava
por cima e circulava pelo cômodo.
Fora o espelho, aquela sala possuía apenas uma poltrona com armações
douradas e estofados de um vermelho bordô que também apareciam
refletidos no espelho. Minha mente encontrava-se tão confusa com aquela
sequência de acontecimentos sem explicações que eu duvidava até mesmo da
própria existência do espelho. Eu o fitava com uma descrença em seu
materialismo, perguntando-me se estava sonhando novamente. Lentamente,
como se aguardasse uma nova surpresa ou um monstro que aparecesse do
vazio para me matar do coração, comecei a me aproximar do espelho. Senti o
frio da superfície prateada ao tocá-lo.
Reparei em cada traço da minha feição que era refletida, notando como o
desespero e a confusão passeavam pelo meu olhar, por minhas sobrancelhas
arqueadas, pelo meu maxilar tensionado. Desci o olhar e vi minhas roupas
refletidas, ainda sem compreender de onde aquela vestimenta pálida tinha
aparecido e como tivera ido parar em meu corpo. Minha postura era uma
mistura de exaustão e tensão devido a todas essas situações ilusórias. Meu
olhar era vazio, perdido, em busca de respostas no meio do caos.
Minha roupa estava suja e rasgada em diversas partes do tecido, embora
momentos antes parecesse bem conservada. Tirei a mão do espelho e alisei a
calça, depois a camisa, seguida pelo manto. Sentia a sujeira por cima do
tecido e o pó incrustado. Subi a mão por um pedaço da roupa que apresentava
um rasgo, próximo ao meu ombro direito.
Mas não senti nenhum rasgo naquela parte da roupa.
Desci o olhar até meu próprio ombro direito e confirmei que de fato,
diferente do que visualizava no meu reflexo, o tecido naquela parte estava
intacto e nem um pouco sujo.
Aquilo não fazia sentido e novamente meu corpo se tencionava. Senti os
ombros enrijecerem e a dor que isso ocasionava. Queria levantar meu rosto
para olhar para o reflexo que não representava minha imagem real, mas o
medo me congelava ali. Meus olhos estavam mais abertos e meus ouvidos
ficaram atentos para qualquer som que ocorresse.
Então ouvi o crepitar da madeira velha e o som de uma maçaneta virando
e abrindo uma porta. Rapidamente me virei para confrontar o que viria a
entrar naquela sala, mas a porta atrás de mim continuava fechada enquanto eu
continua a ouvir passos correndo em um chão podre. Foi aí que virei
novamente para meu reflexo e vi que ele corria por um corredor após
atravessar a porta atrás dele.
— Ei! — eu gritei, estendendo a mão e não esbarrando com nenhum
espelho pelo trajeto dela. Xinguei silenciosamente minha própria ignorância
por acreditar fielmente na ideia de um espelho dentro daquele local enquanto
ficava surpreso ao mesmo tempo. Dei um passo um pouco desconfiado à
frente, mas quando meu pé pousou adiante, tirando todas as parcas suspeitas
de um espelho de verdade ali, comecei a correr no corredor atrás daquela…
daquele…
O que era aquilo, senão meu reflexo? Mais uma ilusão? Não, eu tinha
tocado aquele ser, sentido-o fisicamente. Então o que era? Um clone? Um
fantasma? Um disfarce? Todas as três alternativas eram aceitas dentro
daquele lugar que a cada cômodo fugia mais da realidade. Eu precisava
alcançá-lo para obter pelo menos uma resposta de qualquer uma das dezenas
de questões que me passavam pela cabeça naquele momento.
Continuei correndo atrás da imagem por um número incontável de
corredores. A cada curva, ela se distanciava mais e mais, chegando ao ponto
de conseguir segui-la apenas pelo som dos passos pesados no assoalho de
madeira, e após isso, apenas seguindo reto e adiante, sem nenhum tipo de
orientação no ambiente iluminado por parcos lampiões de parede. Avancei
desta forma incansável até fazer uma curva que dava para uma reta e que
acabava em uma porta. Naquele corredor estreito, não havia outro lugar no
qual aquele ser pudesse ter ido parar senão esse.
Confiante, avancei cada vez mais rápido naquela reta, lançando meu
corpo com força contra a porta, escancarando-a e entrando violentamente em
um cômodo desconhecido.
Eu não estava preparado para o que viria a seguir.
Pesadelo Um: Irmã

Jamais serei capaz de descrever com clareza esta cena. Se possível,


removeria todas essas memórias de minha mente para sempre. O que escrevo
aqui são apenas as minhas poucas percepções rasas do que ocorreu.
Começo descrevendo o ambiente: após lançar-me contra a porta no final
do corredor, entrei em um pequeno banheiro, não mais de quatro metros
quadrados. O piso era de azulejo branco desenhado e as paredes eram
cobertas de ladrilhos rosa-salmão. Havia vapor espesso no cômodo e o som
de água caindo dava sinais de que alguém se banhava ali. Enquanto o vapor
saía pela porta aberta, minha visão do interior do recinto ficava mais clara.
Primeiro, consegui ver uma pia branca e um espelho oval pendurado sobre
ela, depois, a banheira branca coberta por uma cortina que permitia enxergar
a silhueta feminina e jovem, uma mulher que lavava seus cabelos compridos
que caíam pelas costas. Por trás do som do chuveiro elétrico eu conseguia
ouvi-la cantarolando. A música, eu não reconhecia. Mas reconhecia a voz.
Aquela era a voz da minha irmã e aquela silhueta era de seu corpo de
vinte anos tocado pelas gotas do chuveiro. Cogitei de imediato que aquilo era
mais uma ilusão, produto de quem estivesse por trás daquela casa. Minha
família, mantida em cativeiro naquele lugar, não estaria recebendo boa
estadia ou preocupada em se banhar. Cauteloso, comecei a me aproximar da
banheira e cogitei chamar minha irmã pelo seu nome. Mas enquanto me
aproximava, parei ao olhar para cima e reparar no que havia no teto sobre a
banheira.
A palavra monstro define hoje em dia um ser disforme, fantástico e
ameaçador. Uma coisa contrária à natureza, uma anomalia, uma deformidade.
Aquilo era um monstro. Seu corpo era uma massa disforme e metamórfica,
que se alterava a cada segundo que eu olhava para ela. Sua cabeça, ou aquilo
que eu acreditava ser um crânio, era envolvida por dezenas de espinhos. Ele
era a escuridão, sem forma, sem contornos. Um pedaço da noite roubado
dela, uma mancha no canto do olho que não desaparece.
Meu corpo retesou e parou, inclinando-se para trás. A massa que cobria o
teto do banheiro escorreu e ficou balançando por trás das costas de minha
irmã, com a cabeça para baixo. Alongando um membro semelhante a um
braço, pude ver que seu final se curvava e afinava como uma longa foice. O
corpo se movia em total silêncio e até o chuveiro parecia ter parado de fazer
barulho. O único som era o cantar de boca fechada de minha irmã, que não
perdia sua calma nem por mim, nem pelo monstro.
Me afastando, continuei a olhar fixo para a imagem daquelas silhuetas.
Prestei atenção em cada movimento do monstro, em como ele, parecendo
uma gota gigante prestes a cair do teto, se endireitava de cabeça para baixo.
Não consegui tirar os olhos de quando seu corpo esticou os braços para trás,
duas lâminas curvas, perfeitas. E então, em um rompante, esses membros
lançaram-se à frente, e o cantar incessante de minha irmã silenciou-se de
forma abrupta.
Meu corpo perdeu os movimentos naquele momento, e não sei se cheguei
a gritar ou se apenas minha boca se escancarou em uma expressão de terror.
A silhueta do corpo da minha irmã estava erguida reta, trespassada por duas
lâminas. A cabeça aparecia acima da região coberta pela cortina, e aquele
rosto era o de minha irmã, com os olhos arregalados e a boca semiaberta,
queixo mole e sem vida.
Uma das lâminas foi retirada lentamente do corpo e enquanto ela saía era
possível ouvir o sangue escorrendo na banheira junto com a água do
chuveiro. O movimento foi apenas para o braço afiando se esticar e apunhalar
novamente minha irmã pelas costas até a ponta afiada sair por entre os peitos.
Sangue bordô espirrou nos ladrilhos rosados, mas o que ficava retido na
lâmina era tão escuro quanto a arma que invadia o corpo.
A outra lâmina foi retirada e lançada novamente contra o corpo, acertando
o chuveiro e liberando a água agora de forma torrencial pelo encanamento. O
apunhalamento continuou incessante, cada vez mais rápido e feroz,
desfigurando mais e mais o corpo de minha querida irmã, tão jovem, tão
delicada e outrora cheia de vida. Da monstruosidade assassina, um
burburinho grave era emitido, como se fossem palavras recitadas de boca
fechada, com tonalidades de raiva, revolta e violência. Investidas incessantes
mancharam as paredes, teto e chão com o sangue que espirrava do corpo. Até
mesmo minha roupa foi respingada com o sangue fraterno. O monstro parecia
cada vez mais ensandecido em sua matança, errando golpes que cortavam a
cortinas, as parede e tudo que estivesse ao seu redor.
Os murmúrios foram crescendo e crescendo até o momento no qual o
monstro lançou o corpo desfalecido de minha irmã na banheira repleta de
sangue e atacou tudo ao seu redor, arranhando, perfurando ladrilhos e
derrubando a cortina que cobria parcialmente a imagem que eu observava.
Quando a cortina caiu, revelando a banheira ensanguentada e a totalidade
daquela massa escura, o monstro virou-se para mim. Seu rosto tinha
cavidades vazias onde deveria existir olhos e nariz, como se isso tivesse sido
retirado dele. No lugar de dentes, espinhos negros se projetavam da boca e na
região ocular do rosto aquela escuridão parecia vibrar em frenesi.
Ele gritou para mim. Um grito tão alto que não atingiu apenas meus
ouvidos de forma violenta, mas foi capaz de rachar minha alma ao meio. Um
grito de puro desespero e dor, um pedido de socorro há muito perdido e que
agora era apenas um suplício pelo cessar de uma tortura crônica. Um berro
que na verdade era um espinho afiado, invisível, que me trespassava de forma
dolorosa e incessante. Um som que fez com que meu corpo despertasse com
o único intuito de fugir por qualquer caminho que fosse.
Virei e parti correndo no corredor pelo qual eu havia entrado no banheiro,
mas aquele não era mais o caminho de antes. A criatura quebrou a banheira,
espalhando água e sangue quente pelo azulejo, e se botou em perseguição a
mim pelo corredor. Quando olhava para trás, via que ela se movimentava em
quatro membros afiados e que parecia mais com uma sombra viva e sem
dono que me perseguia com um berro incessante.
Deixei de olhar para trás, tapei meus ouvidos e foquei nas direções que
tinha para correr por aquele caminho desconhecido, mas o som daquele berro
ainda era capaz de me atingir. Era como se meu coração pulasse para sair do
próprio corpo. Minhas pernas ignoravam tudo e me levavam pelo labirinto.
Esquerda, direita, direita, esquerda, esquerda, esquerda, direita, direita,
esquerda, frente. Adiante, adiante e mais a longo possível daquele horror.
Corri até meus tímpanos chegarem próximos de estourar, corri até meu
corpo pedir para desistir e deixar aquela criatura saciar sua insanidade
comigo. Corri até encontrar uma porta, pela qual passei e fechei, fazendo uma
questão idiota de trancar, como se isso pudesse parar aquele ser.
Me afastei da porta sem tirar os olhos dela, ouvindo a criatura se debater
com a porta de madeira que de alguma forma realmente impedia que ela
avançasse. Me afastei até encostar minhas costas em uma parede e então
sentei, encolhido, com olhos arregalados em direção àquela porta e ouvindo o
som vindo de trás dela.
Tentei respirar, mas o ar não conseguiu alcançar meus pulmões. Minhas
mãos se fecharam, meus punhos se tornaram duros e encolhi meu corpo ao
máximo, aninhando minhas pernas em um abraço apertado até me machucar.
Eu não conseguia esticar nenhuma membro de meu corpo e até minha cabeça
abaixou, mas meus olhos continuavam abertos ao máximo e o som da porta
continuava a estourar em meu ouvido. Meu corpo tremia violentamente,
minhas respirações ofegantes faziam um grunhido agudo, como se o canal
pelo qual o ar passava estivesse completamente fechado, restando apenas um
fio de espessura pelo qual o oxigênio podia passar. Eu estava em pânico, em
pânico por tudo que havia acontecido desde a manhã, ao acordar sem nada e
sem ninguém. Pânico ao entrar em um carro desconhecido com um alguém
desconhecido para um lugar que nunca tinha ouvido falar. Estava
hiperventilando por tudo que tinha acontecido desde o momento que virei a
maçaneta da porta e adentrei este inferno. Minha irmã tinha sido assassinada,
e seu executor batia sem parar na porta, cada batia parecia travar mais meu
corpo, cada tragada de ar que não chegava aos pulmões travava mais os meus
punhos, cada pensamento que passava pela minha mente me deixava mais e
mais desesperado. Lágrimas escorriam pelo meu rosto em uma torrente
incessante. Aquilo era o fim. Caso o monstro não quebrasse a porta e cortasse
minha jugular com sua lâmina, a própria falta de ar iria me sufocar e me
desestabilizar no lugar mais perigoso e violento pelo qual passei em toda
minha vida.
Mas quando eu menos esperava, quando estava tomando para mim
mesmo um desses dois destinos certos, eu senti aquela mão em meu ombro,
quente, macia e surpreendentemente amigável. Ouvi os barulhos da porta
diminuírem até cessar, e fiquei apavorado ao ver em minha frente um rosto de
um ser humano vivo, que me segurava pelos ombros e dizia com uma voz
doce e tranquila:
— Respire.
Memória Dois: A Noite Que Acordei Chorando

Eu estava me debatendo, lutando contra mim mesmo para abrir os olhos


e escapar daquele pesadelo. Meu corpo suava durante a luta e se revirava na
cama. Minha boca estava fechada com os dentes cerrados enquanto eu
murmurava por socorro naquele sonho ruim.
Tudo era tão real em meio ao devaneio que suspeitava, aterrorizado, de
que ele poderia até ser real. O sangue tinha sabor ao respingar em meus
lábios, os berros eram intensos e pareciam ecoar em meu quarto e os
machucados ardiam de verdade em meu corpo. Eu precisava sair, eu
precisava despertar antes que aquele pesadelo me dominasse e causasse dores
que ultrapassassem a barreira entre sonho e realidade. Entre os movimentos
bruscos de meu corpo e meus murmúrios de socorro, eu finalmente consegui
despertar.
Mas o que acontece quando o corpo e a mente continuam em devaneio?
Pois apesar de estar acordado, de olhos abertos e cheios de lágrimas, aquelas
imagens ainda eram reais para mim. Eu ainda via o sangue, ainda ouvia os
gritos, ainda sentia as dores. Meu corpo estava paralisado e tudo ocorria na
minha frente como um filme que eu não podia pausar e nem deixar de
assistir.
Comecei a gritar de medo e desespero, ainda me debatendo por dentro,
mas sem conseguir mexer meu corpo por fora. Gritei por ajuda enquanto
minhas lágrimas caíam pelo rosto e meu nariz escorria em um fluxo
ininterrupto. O ambiente escuro e sem contornos servia perfeitamente para
projetar o meu pesadelo na minha frente, como uma grande tela de cinema.
Minha mãe entrou apressada no quarto ao ouvir os berros e nesse
momento a paralisia cedeu, deixando meu corpo todo mole. As lágrimas
acumuladas sobre os olhos escorreram pela lateral do meu rosto e o choro
continuou enquanto eu respirava ofegante e sem ritmo. Minha mãe sentou-se
ao meu lado na beira da cama e me acolheu com seu abraço, perguntando o
motivo de meu choro. Eu, uma criança de apenas sete anos, frágil diante a
todas aquelas imagens, abracei com força o corpo de minha mãe para que ela
não fugisse, para que ela não sumisse e saísse de perto de mim, pois senão
estaria em perigo. Todos eles estavam em perigo, ela, meu pai, minha irmã,
meu irmão, todos foram vítimas e todos precisavam de proteção.
Minha mãe me deu sua mão e como já era próximo da manhã, me levou
até a cozinha, onde começou a esquentar a leiteira e aquecer uma frigideira
para fazer um pão-na-chapa para mim. Fui me recompondo com o tempo,
voltando a respirar profundamente e soltando o ar de forma bem tranquila.
Mais calmo, consegui contar a ela de meu sonho. Consegui descrever
claramente como vi uma criatura negra como a noite atacá-la e atacar a todos
da minha família, até chegar em mim. Mas no momento que ela ia me atacar,
no momento em que sua boca se direcionava para me atacar, eu… Eu...
Ela disse para mim naquela manhã que sonhar com mortes era algo bom,
que significava transformações para todos aqueles envolvidos. Falava como
se meu sonho fosse profético, como se algo realmente fosse mudar depois
dele. Pode até ser que ela estivesse certa na época, mas aquelas imagens das
mortes jamais saíram de minha mente.
Na noite seguinte, dormi com a luz do abajur ligada, para afastar a
escuridão.
Visão Dois: Explicações

— Respire.
— Quem é você?
— Respire.
— O que tá acontecendo? Que porra foi essa?
— Por favor, respire.
— Cala a sua boca, eu não vou respirar! O que tá acontecendo? Quem é
você, o que tá acontecendo aqui dentro, eu, eu, eu…
— Você está hiperventilando. Se continuar assim você vai desmaiar. E eu
sei que você sempre esquece de respirar durante o pânico, então por favor me
escute.
Uma pausa. Eu comecei a respirar fundo, mas meu corpo continuava tão
tensionado que a o ar emitia um som agudo ao passar pelo céu da minha
boca.
— Isso. Melhor. Continue. Olhe para a minha mão, acompanhe ela.
Olhei para a mão dela, fechada em um punho à minha frente.
— Respire.
A mão começou a se abrir lentamente até se estender totalmente.
— Segure. Agora solte.
A mão começou a fechar até voltar ao punho fechado.
— Continue a fazer isso.
— Quem é você?
— Por enquanto, basta dizer que sou alguém mais amigável do que o que
estava no outro lado da porta. Eu estou aqui para te ajudar, confie em mim.
— O que tá acontecendo? O que era aquilo?
— Aquilo era… Bem, como eu posso explicar? Creio que você já pode
saber disso: Aquilo era um pesadelo.
Houve mais uma pausa enquanto continuei a respirar, segurando e
soltando minha respiração com mais tempo. Desta vez o ar não fez mais um
ruído agudo, apenas entrou e saiu pesado pela minha garganta.
— Como assim, um pesadelo?
— Bem, um pesadelo, sabe? Daqueles que se tem quando você dorme…
— Eu sei o que é um pesadelo, mas aquilo era real!
— Realidade é um conceito distorcido nesta casa. Quero dizer, vai me
dizer que você ainda não percebeu? As coisas não fazem muito sentido aqui
dentro. Como está se sentindo? Mais calmo?
— Sim. Um pouco. Obrigado.
— Foi você mesmo que conseguiu se tranquilizar, lembre-se disso. Eu
não fiz nada aqui. Agora vamos, precisamos sair daqui.
Ela se levantou e estendeu a mão para que eu a pegasse. Meu corpo ainda
estava encolhido, e precisei de esforço para conseguir esticá-lo. Parecia que
não o fazia há anos, de tão duro que meus músculos estavam. Utilizando a
mão da mulher como apoio levantei, mas não sem enfrentar a resistência de
um corpo que ao mesmo tempo que estava tenso não tinha forças para se
manter. Busquei apoio na parede.
— Tudo bem?
— Sim. Só estou me sentindo fraco. Para onde vamos?
— Precisamos sair daqui antes que os corredores mudem novamente e eu
perca o caminho de volta. Você disse que quer saber o que está acontecendo
aqui dentro, não é? Pois bem, eu não posso te contar direito, mas conheço
alguém que pode e sei chegar até o cômodo onde ela está. Consegue andar?
— Consigo.
— Ótimo, então vamos. — Ela começou a andar, e eu decidi que era
melhor segui-la o mais próximo que pudesse.
— Qual o seu nome?
— Bem… No momento pode me chamar de Thisi.
— Thisi?
— Sim.
— Mas esse não é seu nome real, é? Que nome esquisito!
— Bem, como eu disse, realidade é um conceito confuso nesta casa.
— Você conhece esse lugar? Está aqui há muito tempo?
— O tanto quanto você.
— Mesmo? Parece saber bem mais do que eu sobre tudo isso.
— Porque vivemos este lugar de forma diferentes. Podia ser eu aí no seu
lugar, e você aqui na frente, me guiando.
— O que é você?
— Como assim?
— Como posso saber que também não é um pesadelo?
Thisi virou-se e me olhou nos olhos. Sua expressão era séria e fria, mas
ela foi se abrindo lentamente para um sorriso de boca fechada leve e doce.
— Bem, você está com medo?
— Não.
— Então pode acreditar, eu não sou um pesadelo.
Ficamos em silêncio até Thisi dar uma risada leve e virar-se novamente
para continuar seu caminho pelos corredores. Agora, com mais tranquilidade
e firmeza, não precisava me apoiar mais na parede e consegui acompanhá-la
lado a lado. Tínhamos a mesma altura e ela vestia uma calça jeans branca,
camisa da mesma cor e uma bota de couro. Seu cabelo castanho era comprido
e estava preso em uma trança.
— Estamos longe?
— Creio que não. Logo vamos chegar.
— Como você me encontrou? Seguiu meu som? Ou os berros do
pesadelo?
— Bem, não é como se eu estivesse te procurando, nós apenas nos
encontramos. Pode ser que eu nunca tivesse te encontrado.
— O que você disse lá atrás, sobre eu sempre esquecer de respirar…
Como você sabe disso?
Thisi ficou por um tempo em silêncio, mas respondeu:
— Creio que você já percebeu que as coisas por aqui sabem mais sobre
sua vida do que até mesmo você saiba. Eu sou uma dessas… coisas... e
apenas reparei em algo que você não costuma reparar.
— Mas nós já nos encontramos antes?
— Acredite, mais do que você imagina.
— E por que eu não me lembro de você?
— Porque você nunca parou para reparar em mim. Apenas por isso.
Continuei a andar mas não parei mais de reparar em Thisi. De onde eu a
conhecia? Existia algo familiar em sua feição, em seu jeito de falar e andar,
mas eu não conseguia descrever de onde eu reconhecia aqueles trejeitos. Mas
ela sabia sobre minhas crises de pânico, algo que pouquíssimas pessoas já
tinham visto de perto. Tenho certeza que poderia contar todas que viram isso
de perto e teria certeza de que Thisi não estaria na contagem. Mas de algum
jeito ela sabia.
— Chegamos — ela disse, quando paramos de frente a uma porta
localizada no meio de um corredor. Thisi colocou a mão em um bolso de seu
manto e pegou uma chave de prata, que colocou na maçaneta e girou,
emitindo um som seco da tranca sendo aberta. — Vamos, você tem algumas
explicações para receber.

***

Eu não esperava me deparar com uma sala cheia de livros como a que
entramos naquele momento dentro da casa. O ambiente, diferente de todos os
outros cômodos pelo qual havia passado, parecia extremamente acolhedor e
bem cuidado, como um porto seguro no meio daquela tempestade. Todas as
suas paredes eram repletas de livros estocados em estantes que possuíam
diversas cores de capas e brochuras diferentes, alguns maiores do que outros,
alguns grossos, outros finos. No meio da sala havia um tapete circular
vermelho com detalhes dourados que combinavam com o piso de madeira
marrom. Duas poltronas estavam posicionadas no meio do cômodo, viradas
de frente para a parede oposta à minha que tinha, bem no seu meio, uma
lareira de aço pintado. Próximo à lareira, havia outra mulher de branco.
Diferente de Thisi, essa mulher se portava de forma mais folgada,
encostada na parede de livros. Seu cabelo, diferente da mulher que me
guiava, era ruivo e solto pelos ombros. Apesar disso, a expressão dela era
mais séria do que a de Thisi, que ia sentando na poltrona à esquerda.
— Então você realmente o encontrou? — A voz dela era mais grave e ela
falava com mais calma. — Estou surpresa.
— Não deveria. Uma hora isso ia acontecer.
— Quem é você? — perguntei, mas logo me corrigi. — Quero dizer, qual
é o seu nome?
— Nome? O meu nome? — Ela deu uma rápida olhada severa para a
minha guia, que sorria. — Ela por acaso disse o nome dela para você?
— Ela me disse que se chamava Thisi.
— Thisi? Ah! Um jogo de deusas então, minha irmã?
Thisi continuava sorrindo sem mostrar os dentes, de forma prazerosa com
aquela situação. Me aproximei da poltrona direita e sentei confortavelmente
nela, relaxando um pouco mais, olhando para o rosto daquelas duas mulheres
misteriosas.
— Pois bem, por que não me chama de Sia então?
— Sia? — Thisi esticou seu corpo na poltrona. — Você desenterrou essa,
hein?
— Bem, você disse para ele que tenho respostas, não disse?
— Eu poderia ter explicado tudo a ele no caminho e ele nem teria tido o
prazer de te conhecer.
— Desculpem — cortei a discussão das duas —, o que está acontecendo
aqui? Alguém pode por favor me explicar que lugar é esse?
Thisi se calou enquanto Sia suspirou e virou-se para mim.
— Bem, por onde você quer que eu comece?
Olhei para Thisi para buscar apoio, mas ela se distraía olhando os livros
das estantes. Engoli em seco e virei para encarar os olhos azuis e fortes de
Sia.
— Primeiramente, isso tudo é real?
— Em parte sim. Quero dizer, tudo que você experimentou até aqui, e
creio eu que ainda não chegou a ver metade da casa, considerando que te
encontramos em pouco tempo, é real em certo aspecto.
— Como assim, em certo aspecto?
— Nem tudo que você considera real é de fato nesta casa, assim como
muitas coisas que você considera ilusões são, na verdade, reais.
As palavras de Sia entraram confusas na minha mente e me trouxeram
aquela cena horrível do banheiro na mente.
— A minha irmã… Eu a vi… Aquela coisa…Matou ela.
— Sua irmã não está morta.
— Como?
— Se essa coisa que você se refere era um pesadelo, ou uma ilusão, ou
qualquer coisa provinda da casa, então sua irmã não morreu. Pesadelos não
são capazes de matar nada que é totalmente real, do lado de fora da casa. Essa
“coisa”, você já a viu antes, não viu?
— Sim, mas apenas em meus… — Fiquei em silêncio, começando a
conectar os fatos com minhas lembranças mais remotas. — Espera um pouco,
quer dizer que aquele monstro é o mesmo com o qual eu tinha pesadelos na
infância? Como isso é possível?
— Eu vou explicar. Essa casa é diferente de qualquer lugar ao qual você
já entrou. Ela existe, mas não totalmente como você entende a questão de
existência. Mas ela é real. Nós somos reais, assim como aqueles pesadelos,
embora eles não possam matar nada que seja real “fora da casa” e não só
“dentro da casa”. Você está me acompanhando até aqui?
— Sim. — Não estava.
— Bem, vamos continuar então. Essa casa… Bem, ela é um ser vivo. Ela
não é só um lugar, ela é “A Casa”, entende? Possui consciência, vida própria,
vontades e desejos tangíveis. Ela viaja por diversos canais próprios no espaço
e visita cada ser vivo que existe, pois ela existe em cada um deles. Em um
momento ou outro, todos recebem a visita da Casa.
— E por que ela faz isso?
— Porque nós… nós não, porque vocês, seres de “fora da casa”, a
alimentam. Ela consome vocês.
— Vocês não são de fora da casa? Thisi me disse que está aqui dentro há
tanto tempo quanto eu.
— Porque você nos criou. Bem, não foi você de fato, mas a Casa nos
criou de acordo com você. No momento que ela escolheu visitá-lo, nós fomos
idealizadas. Eu, Thisi, o homem de branco que foi ao seu encontro para lhe
trazer aqui, todos nós surgimos no momento que a Casa decidiu te tragar. E
não só nós, mas tudo que você vê nesse lugar: os corredores, as mobílias e os
pesadelos. Tudo foi “personalizado” para a sua visita. A Casa conseguiu se
adaptar à sua realidade e a você.
— Isso tudo parece tão impossível… Eu não consigo entender tudo isso.
Ou melhor, não consigo aceitar tudo isso.
— Bem, aceitando ou não, esta é a verdade.
Sia em nenhum momento parou de me olhar. Thisi continuava a olhar
para outros lugares que não fosse para mim, mas sua expressão agora era tão
séria quanto a da outra mulher de boné preto.
— Minha família está segura aqui então?
— Não necessariamente. Sim, sua família e pessoas queridas estão aqui
dentro e estão seguras, mas elas estão cercadas pelos pesadelos que a Casa
produziu através de você. Eles são a única barreira entre você e seus entes
queridos.
— E como posso salvá-los?
— Você precisa enfrentar esses pesadelos.
— Você tá brincando, né? Você sabe o que tem lá fora? Aquele monstro,
ele… ele é invencível! Não dá para enfrentar aquilo.
— Sim, dá sim! Lembre-se! Eles vieram da sua mente, eles foram criados
através de seus pesadelos passados. Você pode domá-los, ter o controle sobre
eles e fazê-los desaparecer, basta você querer isso.
— E se eu não conseguir?
— Bem, aí vai ser o contrário. — Sia finalmente desviou o olhar durante
dois segundos para suspirar. — Infelizmente, se você não os domar, eles vão
te controlar.
— E, consequentemente — disse Thisi —, controlar a todos nós.
— Então vocês estão me dizendo que essa casa está repleta de pesadelos
que tive durante toda a minha vida e que para salvar a mim e a todos que eu
amo, eu preciso enfrentar cada um desses devaneios?
— Exatamente — disse Sia, com um peso em sua voz. — É a única porta
de saída daqui.
— E você precisa sair antes que a Casa te destrua. — Thisi
complementou — A crise que você teve lá atrás — Thisi olhava para mim
agora —, aquilo foi um momento de prazer para a Casa. Ela venceu aquela
rodada e te deixou muito fragilizado. Quanto mais fraco você ficar, mais a
Casa vai te consumir. Você precisa resistir e encontrar a força que você tem
aí dentro de si mesmo. Mas para isso, só enfrentando esses pesadelos.
— Vocês podem vir comigo, não é? Quero dizer, três contra um tem mais
chances de vitória!
— Não, nós não podemos. — Sia, que durante todo esse tempo estava
agachada na minha frente, explicando-me tudo, levantou. — Esse caminho
tem que ser trilhado por você.
— Mas dificilmente essa vai ser a última vez que nos veremos dentro
dessa casa.
— Vocês realmente não podem vir comigo?
— Ouça, meu querido garoto. — Sia pousou a sua mão sobre meu ombro
que relaxou na hora. — Você precisa compreender o que a Casa quer de
você. Existe um motivo por você estar aqui, existe um passado por trás disso
tudo. A Casa corre atrás das pessoas que estão atrás dela sem nem mesmo
perceber. Você precisa percorrer esses corredores e entender o que a trouxe
até você, compreender como você vai vencer os seus pesadelos. Eu queria ser
capaz de usar minha empatia e trilhar esse caminho por você, mas essa é a
“sua casa” no momento, e nem mesmo eu tenho todas as respostas. Você
compreende?
— Sim… Eu acho... Você disse que os pesadelos não podem me matar,
não é? Isso me tranquiliza… um pouco.
— Calma lá rapaz. — Thisi levantou-se de sua poltrona. — Não é porque
a Casa não mata que ela não te machuca. Pois ela pode, e vai, tentar te
machucar muito ainda. Mas você precisa ser forte e continuar.
— Quanto mais perto você estiver de alcançar aquilo que você está atrás
— complementou Sia —, mais forte a Casa vai te atacar, até chegar ao
máximo que ela pode. Seja forte, garoto, durante todos esses momentos,
porque esse é o único jeito de salvar a você e a todos nós, você entendeu?
Assenti positivamente com a cabeça. Havia entendido que aquela situação
era mais complexa e mais perigosa do que eu imaginava, embora algumas
coisas não fossem surpresas. Não havia saída fácil e nem forma de desistir.
Eu estava num labirinto que se fechava atrás de mim a cada momento.
Precisava fazer uma jornada com um desafio enorme à minha frente e sem
ninguém para me guiar pelos corredores da Casa. Eu já pensava nela como
um ser vivo, como uma grande mansão assustadora, com braços e pernas,
balançando de um lado para o outro atrás de alguma pessoa para consumir.
Eu não entendia por que ela tinha vindo atrás de mim, não compreendia o que
tinha feito no meu dia a dia para merecer isso. Mas estando ali, eu precisava
atravessar meus pesadelos e medos para conseguir sair. O grande problema
era este: eu não estava andando sozinho naquele lugar.
Eu andava de mãos dadas com o meu medo pelos corredores da Casa.
Memória Três: Laura

Deixei Sia e Thisi na sala de livros agora munido de um candelabro para


iluminar meu caminho. Perguntei para elas para qual lado deveria ir, mas
ambas não souberam me responder. Sendo assim, dei as costas e segui reto
pelo corredor que não era mais o mesmo de quando eu havia entrado no
cômodo. Ouvi a porta fechando atrás de mim e imaginei que agora não havia
mais volta. Sia, Thisi e os livros não estariam naquele lugar. Tudo teria
mudado, seria uma outra sala.
Segui pelos corredores silenciosamente. Não havia nenhum barulho na
Casa. Nada que pudesse me referenciar por qual caminho seguir. Não sabia
se queria fugir ou encontrar meus pesadelos para escapar logo dali. Decidi
não pensar sobre tudo isso e continuei adiante pelos caminhos. Cheguei a um
corredor branco e com a luz das velas do candelabro percebi que havia algo
no final do caminho. Decidi andar até ele.

***

Eu estava estudando até mais tarde naquele dia na universidade. Sentava


em uma das mesas do departamento de pesquisas científicas, onde tinha
tranquilidade para leitura e para realizar alguns exercícios. A semana de
provas se aproximava sorrateiramente mas queria estar preparado
antecipadamente para o que eu teria que enfrentar nos testes. Era a primeira
vez que eu tinha entrado no departamento. Meu curso era de História e não
um das áreas de exatas, mas ninguém tinha me proibido o uso das instalações
para estudo, então continuei durante toda a tarde naquela mesa com meus
livros emprestados da biblioteca e minhas anotações.
O tópico que lia era referente a Mesopotâmia e as sociedades antigas da
região do atual Oriente Médio: persas, hebreus, fenícios e outras menos
conhecidas. Essa matéria sempre me foi muito atraente devido às culturas
destes povos e suas bases para diversos conceitos da sociedade atual. O
Código de Hamurabi, as negociações fenícias, a adoração hebraica. O Oriente
Médio antigo era um lugar onde a fantasia era real, onde não havia
impossibilidades para o homem em sua realidade. Claro que não era o melhor
ambiente para se sobreviver e nem a melhor sociedade já vista, mas me
interessava demasiadamente, de modo que estava lendo conteúdos que nem
iam cair nas provas seguintes.
Decidi que desejava guardar uma cópia daquele conteúdo do livro.
Provavelmente não ajudaria em nenhuma prova futura ou trabalho, mas meu
íntimo desejava aquelas informações por perto. Como já estava prestes a ir
embora, recolhi todo meu material e fui a caminho da máquina de fotocópias
do departamento, que ficava para uso livre dos alunos. Havia alguém
operando a máquina quando eu cheguei. Embora estivesse de costas, pude
reconhecer que era uma mulher, com um cabelo comprido que passava um
pouco dos ombros preso em um rabo-de-cavalo alto. De salto pequeno ela
possuía a minha altura e o resto do seu corpo estava coberto por um jaleco
branco cuidadosamente limpo.
Ela reparou em minha presença atrás dela olhando rapidamente para trás.
Com esse movimento ligeiro pude apenas perceber alguns detalhes de seu
rosto: usava óculos por cima de olhos de um azul escuro, quase cinza e a
frente de seu corte de cabelo era composto de uma franja reta cobrindo a
testa. Suas bochechas eram levemente rosadas e seu rosto aparentava ser
macio. Quando ela virou novamente, olhando meu livro, pude reparar com
mais tempo detalhes do seu rosto que encarava a capa do meu livro.
— Você não é daqui né? — ela disse.
— Do departamento? Não, eu curso História. Vim para cá porque é mais
silencioso e pude me concentrar melhor.
— Boa escolha. Eu faço o mesmo quase todos os dias para me concentrar
em minha pesquisa.
— E o que você está pesquisando?
— Bem… É algo muito complexo para se explicar em curto tempo para
alguém que não está acompanhando desde o início.
— Ah é? Tente.
Ela riu, e seu sorriso era meigo, mesmo irônico.
— Olhe, acredite… — Ela se virou. A máquina de fotocópias continuava
a cuspir folhas. — É difícil até mesmo para mim, que sou a dona do projeto e
o conheço de cabo a rabo. Por que não falamos do seu estudo sobre, deixe-me
ver, Mesopotâmia? Me diga algo interessante sobre a sociedade de lá.
— Além de terem criado uma constituição onde qualquer crime era digno
de morte? — Foi minha vez de rir. — Bem, as sociedades que viveram na
região eram muito ligadas às ciências. Matemática, Medicina, essas coisas.
— Interessante. Matemática, você disse? Acho que precisava consultar
alguém de lá então, para acharem os problemas dos meus cálculos.
Dessa vez ambos sorrimos, em sintonia, em harmonia, até mesmo
parando ao mesmo tempo. Ela continuou a olhar para mim mesmo após a
fotocopiadora terminar de entregar as folhas dela.
— Acho que seu trabalho está pronto.
— O que? Ah, sim, claro! Desculpe, eu tava perdida em pensamentos do
Oriente Médio Antigo. — Ela se virou, atrapalhada, pegando as folhas
originais e as cópias da bandeja de despejo da máquina. Carregando todo o
material à frente do corpo, passou pelo meu lado para ir embora. Enquanto eu
me preparava para copiar, ouvi a sua voz, dizendo:
— Olha, fique à vontade para estudar aqui mais vezes, quando você
quiser. Quem sabe algum dos seus fatos históricos me ajuda nessa bagunça
aqui, ou vice-versa?
— Claro. Obrigado, acho que virei mais vezes para cá sim.
— Ótimo. Bons estudos então. — Ela virou-se novamente para ir embora
e antes de virar o corredor ela disse: — E, aliás, o meu nome é Laura.
— Muito prazer, Laura — respondi, sorrindo.
Foi a primeira vez que nos vimos.

***

Aquele corredor da Casa não era familiar por acaso. Suas paredes brancas
não me traziam nenhuma lembrança específica, até porque minha mente
estava focada nas pessoas que eu precisava salvar. Mas existia algo de
semelhante naquele ambiente e eu descobri o que era ao chegar no final do
corredor.
Tinha uma fotocopiadora encostada na parede. Ela estava desligada, mas
na bandeja de despejo dela havia folhas sobre a Mesopotâmia e o Código de
Hamurabi, as mesmas do livro que lia no dia em que conheci Laura. Peguei
as folhas e entre elas encontrei uma das leis que dizia:

“Se alguém arrombar uma casa, ele deverá ser condenado à morte na
frente do local do arrombamento e ser enterrado.”

Aquele era o mesmo corredor do departamento de pesquisa da


universidade e a Casa sabia disso, pois eu estava com Laura em minha mente.
A Casa estava dentro do meu consciente, usando o que eu sabia contra mim
mesmo. Isso era um jogo para ela, uma caçada onde ela só estava esperando o
momento certo para me atacar. Olhei para o ambiente e depois para a frase
novamente.
Era uma ameaça.
“Você me adentrou, e daqui você não sairá vivo”, era o que ela dizia.
Pesadelo Dois: Incendiários

Avancei durante o que pareceram horas por corredores similares uns aos
outros. As velas do candelabro já quase alcançavam a base de apoio e sua luz
diminuía com o derreter da cera. Embora a longa caminhada, meus pés não
estavam tão doloridos devido aos sapatos confortáveis. Após o corredor do
departamento de estudos com a fotocopiadora não houve nenhuma outra
ocorrência de ilusões ou pesadelos por parte da Casa. Ela se mantinha em
total silêncio. Às vezes, até meus próprios passos não faziam um som sequer.
Em dado momento, virei em um corredor à direita, mais largo do que os
outros. A luz das velas iluminava até parte do caminho, mas da escuridão eu
conseguia ouvir passos lentos e arrastados. Pareciam mais de um par de pés.
Avancei com cuidado para frente, a área escura do corredor sendo iluminada
pela penumbra projetada pelas velas do candelabro.
Então eles apareceram. Eram três, um atrás do outro, em fila indiana.
Seus passos eram sincronizados, soavam quase como um único caminhar. Os
três usavam mantos negros e sujos, com rasgos que exibiam a tez negra por
baixo das roupas. Seus rostos estavam escondidos por capuzes grossos. O
primeiro do trio, que conduzia o grupo, carregava à frente do seu corpo uma
lamparina com uma chama tão fraca que não conseguia nem iluminar o
caminho deles. Os outros dois caminhantes cobriam suas mãos por dentro das
largas mangas de seus mantos.
Mantive-me parado enquanto a caravana avançava pesadamente em sua
procissão. O assoalho rangia e crepitava cada vez mais próximo de mim.
Observando-os, questionava se eram pesadelos ou seres como Sia e Thisi.
Procurei dentro de mim entender como me sentia com a presença deles, se
tinha medo ou angústia de suas presenças. Embora desconfortantes, eles não
me transmitiam ameaça de nenhum tipo. Ao passarem pelo meu lado,
nenhuma das três figuras chegou a notar minha presença, mas eu não pude
deixar de reparar no cheiro de tecido queimado e combustível, algo
semelhante a gasolina.
Assim como surgiram, os três peregrinos sumiram ao atravessar a
penumbra do candelabro. Me mantive imóvel, ainda procurando entender que
tipo de movimento a Casa estava planejando. Não possuía uma memória
sequer relacionada àquilo passando pela minha cabeça, assim como não
houve medo e nem uma sensação de tranquilidade transmitida pela sala dos
livros. Era uma incógnita, algo que não compreendia e que eu precisava
entender. Dei meia volta no largo corredor e fui atrás do trio.
Encontrei-os parados ao virar a curva do corredor. Formavam um
triângulo com todos voltados ao meio, onde um deles estendia o lampião com
a chama pequena, quase por apagar. Outro deles levava até a chama uma
garrafa com um pano que ia até o meio do interior da garrafa e se projetava
para fora através da boca. Dentro dela, existia um líquido transparente.
A ponta do pano, ao entrar em contato com o fogo, incandesceu na hora,
iluminando o ambiente e aqueles três seres. Quando um deles me percebeu,
pude notar, agora iluminados, que seus rostos eram inteiramente
carbonizados, torrados, enquanto seus olhos eram amarelos e sem íris. Ao me
verem observando suas ações, um deles, o que carregava o lampião, apontou
seu dedo chamuscado para mim e soltou um berro gutural:
— Peguem-no!
Desesperado, virei rapidamente para a esquerda e corri pelos corredores,
ouvindo os passos pesados e crepitantes como tambores de guerra atrás de
mim, acompanhados de gritos roucos. Aquilo, afinal, era um pesadelo, um
blefe da Casa pelo qual fui capturado. Ao virar uma curva para a esquerda,
ouvi um grande estrondo vindo de minhas costas e então uma extrema
queimação no meu braço direito. Um dos incendiários lançara a garrafa que
estourou na parede do corredor atrás de mim, espirrando líquido inflamado
sobre meu ombro e braço. O impacto das chamas me lançou contra a parede,
gritando de dor, deixando o candelabro cair e apagando as velas quase
derretidas por completo. Os três pesadelos atravessaram o fogo como se não
existisse nada pelo seu caminho e avançaram em minha direção. A Casa toda
tremia e rangia por todos os lados.
O líder me ergueu pela gola do manto branco e levemente chamuscado,
colocando-me contra a parede. Seu rosto exibia raiva e ódio através do crânio
queimado. Ele lançou seu punho para trás, envergando o corpo, berrando, e
atirou seu soco em direção ao meu rosto. Fechei meus olhos e aguardei o
golpe.

***
Um estrondo ocorreu à esquerda da minha cabeça. Não senti nenhuma
dor para a minha surpresa, não senti nenhum golpe. Ouvi outro baque, agora
no lado direito de meu corpo. Lentamente fui ganhando coragem para abrir os
olhos, com medo de um futuro soco em meu rosto. O incendiário estava
inclinando o corpo e lançando diversas vezes o seu punho, mas sempre
acertando apenas a parede ao redor de meu corpo. Mesmo movimentando
minha cabeça, o pesadelo continuava a errar os golpes. Encarei a criatura,
enquanto me lembrava do que Sia dissera para mim.
— Você é um pesadelo. Você pode me ferir, mas não pode me matar…
Você não pode me vencer.
O incendiário interrompeu o soco que estava lançando. Seu rosto não
expressava mais nenhuma raiva, mas apenas uma expressão de quem foi
derrotado e não aceitava o fato. Ele largou a lapela de meu manto e se
afastou. Junto dos outros dois, deu meia volta, passando pelas chamas que
pareciam adentrar os mantos dos incendiários, trazendo-as para dentro de
suas vestes. Eles viraram a curva do corredor e agora, sem candelabro e sem
fogo, eu estava novamente no meio da escuridão dos corredores da Casa.
Mais uma vez ela estava em silêncio.
Memória Quatro: A Primeira Vez

Tateei a parede enquanto caminhava pelo breu dos corredores da Casa.


Sem luz, o caminho era mais tortuoso, cada final de parede era uma surpresa
inesperada, algo nem um pouco animador em um local que deseja te engolir
por inteiro. Mesmo na escuridão, mantive meus olhos abertos na esperança de
alguma fonte de luz, mas ao mesmo tempo com medo de que poderia ser esta
fonte. Afinal de contas, a última quisera me matar.
Não demorou muito para que eu começasse a ouvir um barulho grave
próximo de onde eu estava, similar a um rosnado profundo. Seguindo o som,
a luz também foi aparecendo novamente, iluminando meu caminho estreito,
primeiro na penumbra e então na luz plena. Segui a luz e os sons até suas
origens.
O corredor terminava em um grande salão iluminado, um hall no meio do
caminho. Supus, devido a mesa branca forrada de alimentos, que se tratava de
uma sala de jantar. Não estava sozinho lá. Existia um outro ser no lado
oposto da mesa, que fez um frio percorrer minha espinha e meu estômago
tremer enjoado.
Seu corpo era enorme, facilmente alcançando os três metros de altura,
chegando próximo ao teto do salão. Além de alto, era largo, parrudo. Não
possuía membros ou face, olhos, nariz ou orelhas sequer. Era apenas uma
massa vermelha com uma boca enorme cheia de dentes que se encaixavam
perfeitamente, como um triturador de alimentos monstruoso.
O ser não direcionava sua bocarra para mim, mas sim para a mesa.
Inclinava seu corpo para baixo, em direção aos alimentos, engolindo em um
único mastigar uma porção inteira de carne enrolada. Mais uma mastigada e
lá se ia uma travessa inteira de macarrão, incluindo a própria porcelana. Mais
outra, e uma bacia de frutas foi engolida, junto com um pedaço da toalha de
mesa.
Fiquei parado encarando a criatura em sua refeição, sentindo uma leve
náusea com a situação, lembrando-me daquele almoço no qual tudo começou.

***
Era domingo, na casa da minha mãe. Não a nova, na qual ela mora agora
depois que todos seus filhos mudaram de residência. Estávamos na primeira
casa, na qual vivi durante toda minha infância e juventude junto ao meu
irmão, minha irmã e meus pais. Aquele era mais um almoço de domingo, um
momento especial para minha família, quase como um ritual fraternal para
nós, pelo menos enquanto todos morávamos juntos… Mas esse não era um
domingo qualquer, pois aquele almoço era de celebração pelo conclusão do
meu terceiro ano no ensino médio. Estava me formando, e todos ali me
congratulavam, dando abraços, dizendo como tinha tido sucesso em meus
estudos.
Finalmente sentamos para almoçar. O menu: macarrão ao molho
bolonhesa, carne enrolada, maionese caseira e batatas assadas. De sobremesa,
uvas, pêssegos, sorvete e mousse de morango. Todos riam e gargalhavam
com os episódios cômicos de nossa semana, mas também oferecíamos
suporte às dúvidas e situações complicadas que enfrentávamos. Dentro de
minha família, cada um de nós cuidava com muito carinho um do outro,
sempre procurando ajudar da melhor forma possível, sempre desejando o
melhor.
Conversa vai, conversa vem e finalmente chega-se ao tópico da conclusão
de meu ensino médio. Minha família me parabeniza mais uma vez e faz a
festa pelo fechamento do ciclo, enquanto eu respondo com sorrisos tímidos,
encabulado com a situação. Estava orgulhoso pela minha conquista, mas não
estava acostumado em ser o foco da atenção da minha família nestes
almoços.
Logo começamos a falar sobre o que viria a seguir do ensino médio e esse
talvez tenha sido o momento na montanha-russa onde chega-se ao ápice de
altura, seguido de uma queda enorme em alta velocidade.
O assunto “faculdade“ surgiu, acompanhado do tema “emprego”, e
subitamente descobri que minha família parecia ter vários planos relacionado
ao meu futuro. De repente eu faria cursos, uma faculdade ou universidade,
entraria numa empresa, com uma carreira bem sucedida assim como meu
irmão, planejando a compra de uma casa como minha irmã até mesmo
encontrando alguém para ter uma relação, um namoro. Eu tinha terminado o
ensino médio e agora minha família narrava na mesa os próximos passos de
minha vida. Nada daquilo que eles diziam estava em meus próprios planos,
mas falavam com tanta firmeza, tanta certeza que não iria decepcioná-los e
seguiria os passos de acordo com a dança…
Queria dizer que as coisas não iriam funcionar desta forma. Queria dizer
que tinha meus próprios anseios, queria explicar os próximos passos que eu
mesmo idealizava para mim, que iam contra muitos dos quais eles haviam
citado. Queria explorar meus próprios desejos, descobrir mais sobre mim
mesmo e não seguir uma linha sem fim de acordo com um sonho
americanizado de arranjar um bom emprego, uma boa esposa e uma boa casa
para minha família. Eles nem sabiam que eu era bissexual naquela época. Um
namoro homoafetivo cortaria metade dos anseios deles.
Mas falavam com tanta alegria, com tanta esperança e expectativa... O
que eu poderia fazer? Cortá-los acabaria com todo aquele momento feliz, e eu
não queria ser um obstáculo naquele almoço, um causador de debates
acalorados contra suas esperanças sobre meu futuro. Comecei a sentir um
peso sobre meus ombros que me empurrava para baixo enquanto minha
respiração começou a ficar travada. Só queria que parassem de planejar tudo
aquilo, queria que saíssem do meu futuro e voltassem ao presente, mas nem
eu mesmo estava no agora, pois suas falas tinham colocado meus
pensamentos nos anos a seguir.
E era assustador. Era desesperador.
Olhei para minha frente, para a mesa do almoço, e comecei a pescar
batatas assadas da travessa, enfiando-as inteiras na minha boca, ainda
quentes, mastigando e sentindo o salgado do tempero. Precisava sair do
futuro, precisava tirar aquela conversa da minha cabeça, as vozes que diziam
o que eu faria e como minha família ficaria decepcionada se não desse certo
nesse plano.
Peguei mais uma colher farta de macarrão com molho e outra de
maionese. Não ouvia mais as vozes de meus parentes na mesa, apenas
pensava na comida à minha frente. Coma. Não ouça, apenas sinta. Gostos,
paladar, foque nisso. Não escute as vozes. Em transe, não parava de mastigar
e de beber suco, com um olhar focado no meu prato e no meu copo. Ao meu
redor, minha família ria e se orgulhava do futuro à minha frente.
Continuei a praticar o pecado da gula quando as sobremesas foram postas
à mesa. Comi até o último momento do almoço, até levantarmos para lavar a
louça ou assistir televisão. Ao sair da mesa, corri para meu quarto em busca
de isolamento, em busca de uma concha para me esconder das vozes, de meu
próprio futuro que me assustava.
O assunto não foi mais comentado no resto do dia. Eu e minha família
nos distraímos com filmes e programas de TV, mas em minha mente não
consegui deixar o episódio para trás tão facilmente. A sensação de falta de ar,
a paranoia com a comida, isso tudo se apresentou como um comportamento
muito fora de meu normal. Sempre fui uma pessoa muito controlada
relacionado ao meu corpo e meus pensamentos, mas naquele almoço eu perdi
as rédeas, não consegui achar um freio para o trem de pensamentos que corria
insanamente em minha mente. Pensei naquilo durante o dia inteiro.
Aquela foi minha primeira crise, embora pequena. Aquele dia, como eu
disse, foi o ápice de uma montanha russa que se inclinava em direção a uma
queda em alta velocidade. Outras crises foram se desenvolvendo durante os
próximos anos da minha vida. A falta de ar começou a ser algo comum nas
crises mais intensas, e meu pensamento nunca mais conseguiu abandonar
estes episódios de extremo medo do próximo segundo, do instante a seguir.
Naquela noite da primeira crise eu fui escondido para o banheiro, fazendo
o máximo de silêncio possível. Vomitei todo o exagero daquela manhã. Junto
ao alimento, lágrimas gotejavam no vaso sanitário.
Memória Cinco: Ponto Crítico

O episódio do almoço não foi o único, apenas o primeiro de uma série de


episódios que iriam se repetir nos próximos anos, nas mais diversas situações.
Nem sempre envolviam comida, às vezes minhas válvulas de escape eram
outras, como sons, sensações táteis, qualquer estímulo físico que pudesse me
desfocar de minha mente. Mas a falta de ar era constante, algo que sempre
ocorria, junto com o arregalar dos olhos, como se buscasse alguma resposta
inexistente ou invisível.
Normalmente essas situações começavam durante as discussões ou
tomadas de decisões. Situações extremas me colocavam nesse estado, não
importando se fossem experiências positivas ou negativas. A tristeza me
abalava, mas a euforia também me desregulava e iniciava crises de descrença
na realidade, de desconfiança nos fatos como se tudo que estava acontecendo
não pudesse ou não devesse acontecer por algum motivo obscuro.
O modus operandi era sempre o mesmo. Meu olhar fixava-se em algum
objeto, mas minha mente estava em tudo, menos naquele objeto. Ela voava
por pensamentos de tempos verbais inexistentes e preocupações futuras que
nem sequer tinham base para existir. O mundo inteiro acontecia dentro de
minha própria cabeça e eu era apenas um espectador de como isso esmagava
meus neurônios. Então, como um mecanismo de autodefesa, meu corpo
começava a agir sobre meu consciente, procurando sons repetitivos, gestos
mecânicos nos quais eu poderia me agarrar a realidade que escapava pelos
meus dedos. E quando nada disso funcionava, eu apelava para a educação de
pedir licença, me isolando e me derramando em prantos, as mãos fechadas, o
canal de ar cada vez mais apertado e tenso, os olhos enxergando milhões de
cores mesmo quando fechados.
As crises, a partir daquele domingo fatídico, nunca mais pararam e se
tornaram cada vez mais frequentes. Invadiram o espaço de tempo do meu
trabalho e da minha faculdade sem pedir licença e me tornei refém daquelas
sensações, das hiperventilações e das tensões musculares.
Certo dia, na faculdade, cheguei ao ponto da montanha-russa onde o trem
alcança o extremo do vale de sua parábola, com a maior velocidade, com a
maior força e maior impacto. Mas nesse caso, o trilho desencarrilhou.
Estava nas escadas próximas do departamento de pesquisa, à noite, em
um ambiente praticamente desértico e em plena crise. Havia tido uma
discussão séria referente aos trabalhos para entregar para o dia seguinte e os
quais estavam extremamente atrasados. Não só isso, a falta de descanso e
meu descuido com meu próprio bem-estar levaram-me ao esgotamento das
minhas forças, rendendo minha mente aos pensamentos sombrios. Meu corpo
simplesmente travou na escada. Sentia que se eu tentasse dar mais um passo,
hiperventilando do jeito que estava, perderia a circulação de ar e ia desmaiar,
caindo degraus abaixo. Minhas mãos estavam travadas ao lado do meu corpo,
fechadas em punhos cerrados que machucavam minha própria palma. Sentei
enquanto meu olhar se fixava à frente. Um vagão passou a mais de duzentos
quilômetros por hora em minha mente, trazendo as mais variáveis
preocupações, não apenas com o trabalho a entregar, mas acerca de todas as
situações que circulavam minha vida e das quais eu não possuía mais
controle algum. Não havia nenhum objeto por perto no qual eu poderia fixar
meu pensamento, nenhum objeto para fazer sons repetidos, nada para engolir,
nada para tocar, e eu forçava ao máximo meu corpo para levantar meus
braços. Parecia que uma larga cinta estava amarrada aos meus braços e meus
troncos, como se vestisse uma camisa de força, me impossibilitando de
mover um músculo sequer. A respiração estava cada vez mais ríspida e a
imagem em minha frente começava a ficar turva. Então consegui mover
bruscamente o meu braço.
Mas o movimento foi intenso demais, e minha mão, fechada em punho,
voou em direção a minha bochecha, acertando-a e fazendo meu rosto virar ao
lado. Não senti dor, minha mente não estava mais em meu corpo para sentir
algo, mas aquilo me desestabilizou a ponto de recuperar um pouco o controle.
Embora fosse algo agressivo, pelo menos era algo que eu dominava em meu
corpo. Movimentei meu outro braço e acertei outro murro, agora na bochecha
direita. O trem descarrilhou da montanha-russa. Salvem-se os pensamentos
que puderem.
Os socos começaram a se repetir, não apenas no rosto, mas em meus
braços, tórax, pernas, barriga e outras partes do corpo. Cada soco, além do
tato, trazia um som seco e grave, que também me trazia de volta a realidade.
Era um modo extremamente doloroso e perigoso de voltar, mas se não fosse
por isso eu ainda estaria lá, no mundo de mil pensamentos, na confusão de
tudo e todos.
Meu corpo começou a ficar duro e dolorido, mas o mesmo corpo
continuou com os socos em diversas partes, parando apenas no rosto por
serem deveras dolorosas as investidas. Os sons agora eram tão rápidos que
meus murros pareciam batidas em tambores tribais, e meu corpo se
encontrava em um estado de mutilação quase que ritualístico.
E então, subitamente, eu senti algo segurando meus pulsos, como
correntes que interromperam os próximos ataques. Surpreso, olhei para frente
e vi o rosto indignado e preocupado de Laura, a menina que havia conhecido
na máquina de fotocópias. Meus pulsos tremiam nas mãos dela, mas ela os
mantinha sob seu controle. Quando ela falou, sua voz era doce e tranquila,
que dizia:
— Respire.

***

Injeções de calmante são cavalares.


Laura me acompanhou até o pronto-socorro próximo à faculdade, mas
cada passo deste caminho foi um extremo desafio. Em diversos momentos
precisei parar de andar para respirar, buscar calma e não deixar a minha
mente escapar de meu controle novamente. Em um caminho que
demoraríamos normalmente dez minutos, precisamos de quase meia hora.
Chegando lá, fui prontamente atendido e medicado com uma dose que me
deixou quase que instantaneamente mole, sentado na cadeira do pronto-
socorro. Laura manteve-se ao meu lado durante todo este processo, no qual
sua atenção era plena sobre mim.
— Por que você estava fazendo aquilo?
— Era uma crise.
— Mas isso é comum?
— Ultimamente, sim. Mas nunca cheguei ao ponto de me machucar.
— Você não pode fazer isso. — Senti a mão dela pousar sobre as minhas
em meu colo. — É algo muito perigoso. Não quero ver você assim.
— Eu também não.
O remédio me trouxe extremo sono, o qual me deixou com dificuldades
de raciocinar ou até mesmo me manter consciente.
— Você está bem?
— É só que isso é extremamente forte, essa medicação.
— Você nunca tomou um remédio para essas crises?
— Eu nunca precisei. Nunca tive que lidar com isso de forma tão intensa
como estou lidando agora.
— Isso é preocupante.
— Eu vou dar um jeito.
Caí no sono após esta conversa, mas apenas por alguns minutos. Ao
acordar, Laura continuava a me olhar preocupada.
— Você mora com alguém?
— Não. Quer dizer, meus pais moram por perto, mas que horas são agora,
uma da manhã? Acho que estão dormindo.
— Você pode acordar eles, é uma questão emergencial.
— Não quero que eles saibam que eu passei por isso.
— Mas isso é algo sério, você podia ter…
— Laura, para. — Ela ficou em silêncio. — Eu não quero que eles
saibam.
— Tudo bem. Então eu vou te acompanhar até a sua casa.
— Você não precisa fazer isso.
— Preciso sim, olha o seu estado. Do jeito que você tá, se alguém não te
segurar você cai duro de cara no chão. Você mora longe daqui?
— Não. Algumas quadras.
— Então eu vou e te ajudo a chegar, depois vou para minha casa.
— Está tarde, você pode dormir lá em casa se achar melhor.
Laura pensou durante alguns instantes na possibilidade. Continuei
piscando pesadamente, com muito sono devido ao remédio até ela responder.
— Pode ser, então. Vamos?
— Sim.
Ela me ajudou a levantar e, apoiado em seu braço, começamos a sair do
pronto-socorro. Os passos que eram interrompidos antes pela falta de ar e
tensão muscular agora eram lentos e arrastados pela rua naquela noite escura.
Em minutos chegamos ao meu apartamento, naquela noite, plenamente
mobiliado. Laura foi pega de surpresa com o miado do meu gato que havia
esquecido de mencionar a ela, causando uma cena engraçada ao meu ver.
Mas com o tempo, Júpiter foi se aconchegando a ela.
Ela me ajudou a preparar nossa janta, algo que foi novo e incomum para
mim, pois sempre vivi sozinho naquele apartamento (tirando a companhia de
meu gato, é claro) e juntos cozinhamos arroz, feijão, peixe e até mesmo uma
salada temperada para acompanhar. Discutimos sobre nossos cursos e
experiências na faculdade durante o preparo e a refeição e após isso sentamos
para assistir a programas na televisão. Não resisti durante muito tempo, pois
o medicamento e a refeição deliciosa me deixavam cada vez mais sonolento.
Ao despertar, Laura ainda estava acordada, assistindo um programa sobre
vida animal selvagem. Ofereci meu banheiro para ela tomar banho e
emprestei uma camisa e um shorts largo para que pudesse dormir confortável.
Embora minha insistência, ela disse que não iria dormir em outro lugar que
não fosse o colchão inflável na sala.
— A varanda até me dá uma vista agradável da lua nessa noite. — Foi um
dos diversos argumentos que ela utilizou.
Cedi aos desejos dela e ajudei a preparar o espaço para ela. Coloquei
Júpiter dentro de meu próprio quarto para que não a incomodasse durante o
sono e após tudo pronto, continuamos conversando. Embora os efeitos do
calmante, Laura me despertava por estar tão interessado em suas histórias e
pontos de vistas, por conhecer mais e mais sobre aquela menina que antes era
só mais uma estudante de ciências da faculdade. Rimos muitos, debatemos
sobre os mais diversos pontos de vista sobre os mais diversos assuntos e a
noite foi se estendendo sem que eu percebesse. Em algum momento da
madrugada, decidimos abrir uma garrafa de vinho esquecida no fundo da
geladeira e colocar algum filme para assistirmos e falarmos sobre os erros de
gravação ou pontos sem lógica do enredo.
Naquela noite nos beijamos. Primeiro delicadamente, mas depois com
intensidade e atração. Sua boca era macia e sua língua carregava o sabor doce
de uvas, açúcar e álcool. Seu corpo era quente e parecia frágil, mas possuía
força. Ela se arrepiava fácil quando eu passava meus dedos pelas suas costas,
perto da nuca. Ela era leve, e não foi difícil carregá-la ao quarto enquanto ela
tirava minha roupa e deixava espalhada pelo caminho. Espantei o gato do
quarto e fechei a porta, nos trancando naquele momento de prazer e de
entrega.
Deitamos na minha cama, com seu corpo leve sobre o meu, e enquanto
ela ficava sentada sobre meu colo, com o seu quadril subindo e descendo, a
lua iluminava, através da persiana aberta, o corpo nu de Laura, deixando-a
com uma silhueta branca ao redor do corpo. Entre suspiros e gemidos,
chamávamos um ao outro em sussurros com luxúria e desejo. Deitei Laura
sobre a cama e comecei a beijar cada pedacinho do seu corpo quente e macio.
Minha língua passeou pela sua vagina enquanto Laura se contorcia e
pressionava minha cabeça entre suas coxas. Subi pelo corpo de Laura e,
erguendo sua perna, penetrei seu corpo lentamente, acelerando o ritmo do
quadril de acordo com os suspiros de prazer que aquela mulher maravilhosa
soltava. Em seu ápice, Laura surpreendentemente virou o corpo, ficando
novamente por cima de mim. Sentei, ainda com ela sobre meu colo, e cobri
seus seios de beijos, puxando seu cabelo, tirando o seu fôlego. Ela, em troca,
cingia minha cintura com suas pernas e enchia minhas costas de arranhões,
puxando meu rosto cada vez mais para o meio de seu busto. Subi meus beijos
para seu pescoço, dando-lhe chupões que deixariam marcas difíceis de
camuflar no dia seguinte, mas que não ligamos nem um pouco no momento,
pois estávamos entregues ao tesão e ao desejo de um pelo outro. Do pescoço,
voltei a beijar novamente sua boca, sentindo sua língua doce passear pela
minha, brincando apenas com a ponta dela, levando-me à loucura. Nossos
quadris se mexiam cada vez mais fortes e mais rápidos, acompanhados de
nossos gemidos e de nossas respirações ofegantes. Chegamos juntos ao
orgasmo, ficando imóveis por um momento onde nossos corpos enrijeceram
completamente. Então, como se a música mudasse de um a batida agitada
para uma melodia calma, deitamos juntos na cama, cobertos apenas por uma
manta, com a luz da lua adentrando o quarto pela janela. Laura repousou
sobre meu peito e fiquei acariciando seu cabelo enquanto olhava para a
janela, pensando nas viradas de trama que tinha passado durante aquele dia
inteiro, onde jamais poderia dizer que terminaria com uma mulher tão
maravilhosa quanto Laura sobre meu corpo, nua e esgotada após o sexo.
Com o cheiro de seu cabelo e de sua pele doce, caí no sono e tive sonhos
calmos como não tinha há muitos anos. Naquela noite ninguém dormiu na
sala.
Pesadelo Três: Uma História de Nascimento

Roubei uma vela do canto da mesa na qual aquela figura estranha se


empanturrava e com a parca luz do pavio, prossegui pela casa. Passei por
diversos corredores cheios de portas, diferente dos anteriores, lisos, e tentei
abrir cada uma delas, mas todas estavam trancadas. Todas menos uma, à
direita, no final de um corredor.
Ao adentrar a sala pareceu que minha vela perdeu mais ainda sua
capacidade de iluminar o ambiente. Mas pelo que conseguia ver forçando a
vista, aquele cômodo era um quarto de dormir. Possuía um tapete no meio e,
no lado oposto ao que eu estava, existiam dois berços de ninar bebês. Ambos
pareciam ocupados. Entre os dois, havia uma cadeira de balanço e alguém se
sentava lá.
Mantive-me quieto e comecei a tatear as minhas costas em busca da
maçaneta, mas antes de alcançá-la, a voz da mulher que estava sentada na
cadeira começou a soar e magicamente não conseguia mais movimentar meu
corpo. Sua voz era cortada por uma respiração que vibrava de acordo com o
bater e ranger de seus dentes. Comecei a ouvir o que ela tinha a dizer, pois
não restava nenhuma escolha.
— Então, você finalmente veio. Veio escutar minha história, não é? Eu
sabia que você viria, eu preparei tudo para você, meu querido. Espero que
fique acomodado enquanto eu narro meu relato à você e por favor, não
interrompa. Eu tomarei medidas cautelares para você não me intrometer uma
segunda vez, isso eu posso lhe garantir. Vamos à história então...
“Eu tinha um marido maravilhoso, sabia? Ele era alfaiate, um dos
melhores da cidade. Ele me oferecia tudo que eu sempre quis: Um corpo
quente e macio para me esquentar na cama, uma casa maravilhosa para
assegurar como minha própria fortaleza… E ele me deu a coisa mais preciosa
que eu poderia receber e conceder na minha infame vida. Ele me engravidou
de dois bebês gêmeos maravilhosos, os tesouros de toda a minha vida.
“A gestação foi longa, de dezoito meses, nove para cada uma das minhas
joias. O primeiro que nasceu era tão belo, meu querido! Se você puder se
aproximar mais, verá ele dormindo no berço à minha direita. Veja só como
ele é lindo, quente, macio, doce como um anjo, como o próprio cristo na
terra. Agora o outro... veja como é calmo, como carrega a paz e tranquilidade
em seu semblante… Veja como é maravilhosa a paz de espírito que carrega
em si… Veja como é lindo, veja como é silencioso, veja como… Veja como
ele está morto, descansando em paz, na glória do Senhor...
“Morto! Eu dei luz a um ser que nunca pôde ver a luz! Um dos meus
tesouros estava eternamente silenciado, ele nunca cresceria, ele nunca poderia
sentir o meu beijo e eu nunca sentiria o som delicioso de sua risada! Morto!
Ah, como essa foi a desgraça, como essa foi a angústia!
“Mas o meu marido, aquele humilde e ridículo homem, quis fazer todo o
possível para recuperar meu sorriso para o nosso lar. E ele, em sua doce
inocência, declarou que iria me entregar um presente que seria o mais belo, o
mais amado e querido de todos os presentes possíveis. Ele pegou meu
natimorto querido e o envolveu dentro de couros, transformando-o num
boneco de um pequeno menino sorridente e cheio de cabelos coloridos… Ah,
aquele homem… Aquele maldito!
“Ele envolveu o meu falecido tesouro em um caixão de couro! Como meu
filho iria me enxergar com olhos de botão? Como ele iria me beijar com uma
boca de pano? Aquele idiota trancou meu anjo em um invólucro maldito e
imperfeito! Ele não ia sair ileso dessa traquinagem. À noite, com a mesma
agulha que ele usou para costurar nosso filho, eu espetei seus olhos! Perfurei
suas duas orelhas e seu coração, da mesma forma que ele havia feito com
meu querido anjinho! Eu estava me vingando, eu estava vingando aquela
minha querida criação, e acabando com a vida do homem que havia prendido
meu bebê em seu caixão!
“Oh meu deus, e agora? O que eu iria fazer com aquele corpo? Eu
precisava me livrar de algum jeito, ficar limpa daquela catástrofe
sanguinolenta e macabra. Então eu… Bem… Eu comecei a colocá-lo dentro
de mim, mastigando seu corpo esquartejado, me alimentando daquele que eu
havia matado. E o Senhor não é milagroso e justo àqueles que o seguem?
Veja só, aquela refeição fez com que eu engravidasse novamente! Veja, olhe
só minha barriga, como está enorme! Eu consigo senti-lo chutando e se
remexendo! Pelo menos aquele inútil alfaiate serviu de algo no final, para
alimentar e dar vida à minha criança!
“Mas agora a fome começa a bater à porta de minha casa novamente.
Ouve meus dentes rangendo e batendo, em busca de algo para petiscar? Eu
preciso me alimentar, não por mim, mas por ele, sabe? Pense nessa criança
abençoada, nesse filho de Cristo! O corpo que ingeri estava com olhos
danificados, orelhas e coração perfurado. Não queremos que essa criança
nasça cega ou surda, não é mesmo? Esse anjo precisa de um coração para
bater e fazê-lo quente e macio! E é por isso que você veio aqui, não é
mesmo? Vamos, o que você me diz, apenas um pedaço da orelha, apenas uma
válvula de seu coração. Eu tenho a agulha aqui em minha mão, basta que se
aproxime.
“Mas o que, por que está indo embora? Onde você vai? Volte aqui agora,
seu maldito, você precisa alimentar esta criança! Seu desgraçado, não me
deixe aqui, não abandone o filho de Cristo! Me alimente! ME ALIMENTE!”

***

Fechei a porta ao sair do quarto, e ainda chocado com tudo que havia
presenciado e ouvido naquele relato, olhava pasmo para a porta e para os
gritos da mulher que vinham por detrás dela.
— Bizarro, não é mesmo? — disse uma voz ao meu lado.
Quando olhei para a esquerda, ao final do corredor, iluminada pelo luar
que entrava pelas janelas daquele corredor novo para mim, havia uma
criança. Ela estava totalmente vestida de branco.
Visão Três: A Cidade Que Nós Perdemos

A lua emanava uma luz pálida pelo corredor de madeira verde enquanto
eu olhava para aquele ser no outro extremo do caminho. Nos encaramos
durante um bom tempo depois que ela falou, estudando um ao outro,
analisando, gravando. Continuei de costas pelo corredor e não tirei os olhos
dela, sem saber do que se tratava.
— Você é um pesadelo? — eu perguntei.
— O que você acha?
— Me responda.
— Bem… Você é um pesadelo?
— Não.
— Tudo bem. Eu também não sou.
— Como posso saber?
— Se era para duvidar de mim, por que quis que eu te respondesse?
Ninguém piscava, ninguém se movia.
— Certo — eu disse. — Acredito que você não seja um pesadelo. Então
você é outra guia? Como Thisi e Sia?
— Que porcaria de nomes são esses? — Fui pego de surpresa pela
grosseria da jovem.
— Você não as conhece?
— Conheço, mas não por essas ridicularidades que elas chamam de
nomes.
— Quais são os nomes verdadeiros então?
— Eu não posso lhe dizer. Assim como não posso dizer o meu.
— Então como devo lhe chamar?
— Eu preferia não ser chamada.
— Por quê?
— Porque… Ah, tudo bem então! Quer me chamar de algo? Pode me
chamar de Frey.
— Por que Frey?
— E isso importa? Tenho certeza que não perguntou para “Thisi” ou
“Sia” porque elas escolheram esses nomes para si.
— Não. Tudo bem, sinto muito por perguntar.
— Tanto faz. — Frey olhou para a porta da qual eu tinha saído, ou para a
porta pela qual eu havia entrado no corredor, pois já havia perdido minha
orientação. Era tudo muito bilateral naquela situação. — Então, bizarro, não
é? Eu costumo chamá-la de “A Mulher dos Três Filhos”. A história dela me
fascina por sua figuração toda. Sabe, ela vai acabar comendo o natimorto
devido a fome e quando ela fizer isso o bebê que ainda está vivo vai morrer.
Mas ao mesmo tempo o filho que está na barriga dela vai nascer, e meses
depois ela irá ficar grávida novamente para o ciclo continuar a se repetir. Fui
eu que a criei.
— Você criou isso?
— Bem, vamos dizer que eu a descobri.
— E por que isso é interessante para você?
— Eu não sei, tem um quê de moral nessa história. Sobre como morte e
vida sempre estão ligadas, sobre como alimentamos coisas dentro de nós
através dos outros. Você vê, esse pesadelo não é somente seu, ele é comum
para várias pessoas, pois diz algo sobre o que é ser humano, eu acho. É
interessante. Pelo menos até a parte onde ela quer te devorar. Nesta hora o
pesadelo perde sua beleza e assume sua condição de assassino.
— Beleza?
— Eu vejo a beleza nessas tristezas. Admiro-as, quase idolatro... — Frey
olhava para fora, para a janela, olhando para baixo. — … Assim como
idolatrava a Cidade.
— Que cidade?
— Olhe para trás, pela janela.
Virei-me e olhei pela janela para fora da Casa. O que vi não fazia sentido.
Não era mais a minha cidade, a cidade da qual tinha sido levado até aquela
casa. Em vez disso, estava olhando para um outro lugar totalmente diferente.
O céu era escuro e esporadicamente iluminado por raios que nunca
chegavam a tocar o chão, no qual diversos prédios cilíndricos erguiam-se em
direção às nuvens, mas todos pareciam completamente abandonados, em
ruínas, com grafites e pinturas descascadas. As ruas abaixo não estavam em
estados melhores, eram deploráveis, cheias de buracos, regiões inundadas por
água negra ou incendiadas por chamas que não se apagavam. A Casa parecia
flutuar por aquele cenário, sem tocar o chão, a centenas de metros de altura.
Vendo a altura podia até mesmo sentir um leve solavanco que a estrutura
dava, de um lado para o outro, como um barco navegando nuvens negras.
— Esta não é minha cidade. Como viemos parar aqui?
— Aqui é de onde a Casa veio. Essas são as terras dela. Ela nos trouxe
para o próprio terreno, para ter vantagem, entende? No combate entre vocês
dois.
— Lá fora, aquelas ruas, são reais?
— Você ainda não desistiu da ideia de realidade? Bem, vejamos: aquela
cidade lá fora é real, mas não pertence ao seu domínio da realidade. Veja
desta forma: ela é real, mesmo você não querendo.
— Assim como esta casa.
Pude sentir a casa balançando um pouco mais ao falar isso.
— Essa cidade nem sempre foi assim. — Frey olhava para fora e, mesmo
à distância, podia ver que ela estava extremamente triste. — Ela já foi bela, o
céu já foi mais claro e ensolarado no lugar destas nuvens pesadas e
relampiosas. Os prédios lá embaixo possuíam mil cores e mil texturas, e
naquela época até mesmo essa casa era um lugar bom e feliz para se viver. Os
pesadelos e sonhos viviam juntos e em harmonia na cidade, e se os maus
agouros do sono existiam, eram apenas para enaltecer os aparecimentos dos
sonhos e lidar com questões mais pesadas que os devaneios não eram capazes
de lidar. Os pesadelos sempre foram mais responsáveis.
“Mas a partir da partida de uma das minhas irmãs, que também era irmã
de Thisi e Sia, algo começou a consumir a cidade sem que nós pudéssemos
perceber. Primeiro, começou nas periferias, de forma silenciosa, dilacerando
um sonho ali, corrompendo um pesadelo lá, distorcendo ideias e derrubando
prédios. Quando notamos o que estava acontecendo também percebemos que
já era tarde demais para tomarmos qualquer atitude. A cidade estava
morrendo, os sonhos estavam se esfarelando e sendo caçados por pesadelos
que não tinham mais sentido ou vontade nenhuma de dever. Tudo que sobrou
veio para cá, para a Casa, fugir da destruição e da escuridão que se estendeu
por aquelas ruas, mas até mesmo a Casa foi invadida pelo cinismo, terror,
medo e descontrole. Agora vivemos assim, sem terra definida, como
nômades. E a Casa precisa de energia, ela precisa de alguém para se
alimentar e continuar a fugir. Não podemos deixar que os pesadelos nos
peguem. Ela não pode desistir.”
— É por isso que ela quer se alimentar de mim? Para continuar fugindo?
— Para nos manter vivos. Sim.
— Mas eu não posso. Eu não posso deixar esse lugar me consumir e
consumir tudo que eu amo.
— Eu sei, eu compreendo. Mas as vezes faz sentido, entende? Abandonar
tudo e entregar nossas energias para a Casa.
Frey desencostou da parede e começou a andar para perto de mim. A cada
passo que ela dava, sentia uma pontada em meu próprio peito.
— Às vezes seria tão mais fácil entregar tudo… Permitir que ela nos
consumisse para continuar fugindo…
As pontadas no peito se tornaram travas, e comecei a sentir minha
respiração vacilando. Sugar o ar era mais difícil a cada passo que Frey dava
em minha direção.
— E não doeria nada. A solidão, sabe, ela é passageira, você se acostuma
a ela. Os parentes viram memórias cada vez mais parcas.
Ajoelhei, sentindo-me sufocado e cada vez mais sem ar. Estendia um
braço em direção a Frey, pedindo-lhe que parasse e se afastasse.
— Você só teria que dizer “eu desisto” e pronto, tudo ficaria escuro. E
não teria dor, não teria tristeza, apenas o escuro, a solidão, a falta de calor no
peito e… Ah não, desculpe!
Frey rapidamente correu para trás, voltando ao lado oposto do corredor, e
meus pulmões sentiram-se livres novamente. Traguei o ar com vontade e
soltei lentamente.
— O que aconteceu? — perguntei, assim que recuperei o fôlego.
— Me desculpe. — Frey parecia envergonhada. — Eu faço isso sem
querer às vezes, minha presença muitas vezes deixa as pessoas sem ar, com
peso em suas costas. Eu não quis causar isso de propósito, sinto muito
mesmo.
— Frey… Eu não vou me entregar.
— Eu sei.
— Minha família e meus amigos são mais importantes para mim do que a
Casa.
— Claro.
— Sinto muito por fazer isso com seu lar.
— Tudo bem. Não tem mais nada que possamos fazer. A cidade está
morta, e logo todos nós iremos morrer também.
— Eu sinto muito.
— Tudo bem. — Frey olhava pela janela com um olhar que agora eu
detectava como saudosista. — É o caminho de todos nós morrer um dia, não
é? A Mulher Dos Três Filhos e tal…
— Você sabe para onde devo seguir agora?
— Não posso lhe mostrar o caminho. Mas se você quiser eu posso lhe
acompanhar. À distância, é claro.
— Não vejo por que te dizer não a isso. Será bem melhor fazer esse
caminho acompanhado do que sozinho.
— Mesmo? Você… Você quer minha companhia? — Frey parecia
extremamente surpresa com isso.
— Sim, eu quero — respondi firmemente, levantando-me e
simbolicamente estendendo minha mão a Frey. — O que me diz?
— Bem, tudo bem então. Você vai na frente, claro.
— Sim.
Virei-me de costas para Frey e comecei a avançar pelo corredor que
estava iluminado pela luz pálida de um luar fraco. Atrás, pude ouvir Frey
sussurrando:
— Mas claro que você vai cansar de mim. Todos cansam.
Memória Seis: Companhias

Naquela noite ninguém dormiu na sala.


Levantei da cama sem acordar Laura, deslizando pelo seu abraço. Queria
lhe servir café da manhã na cama, então deixaria ela dormir por mais alguns
minutos. Antes de sair do quarto, porém, fiquei a olhar para seu rosto que
dormia em tranquilidade, iluminado apenas por um raio de sol diminuto que
adentrava por uma fresta da janela. Mechas do cabelo solto caíam sobre seu
rosto, dando-lhe um ar bagunceiro, tranquilo e preguiçoso. Aquela imagem
era delirante, fazia-me querer voltar para a cama e encher aquele ser
novamente com beijos por todo o corpo.
Mas segurei minha tentação e virei para sair do quarto. Ainda teria muito,
muito tempo para beijá-la.

***

Eu passava pelos corredores pálidos pelo luar e atrás de mim podia ouvir
os passos de Frey rangendo a madeira.
— Você não pode me dar nenhuma dica sobre onde minha família está?
— perguntei para ela, sem olhar para trás, sem desviar minha atenção de
qualquer detalhe à minha frente.
— Você tem que traçar o seu caminho. Eu somente estou lhe fazendo
companhia.
— Uma companhia bem silenciosa. Se não fosse por seus passos, poderia
jurar que estou sozinho.
— Eu não sabia que você queria conversar. — A voz de Frey, por um
breve momento, pareceu mais animada. — Sobre o que gostaria de
conversar?
— Eu não sei. Qualquer coisa que não envolva essa casa ou a cidade lá
embaixo.
Algo sobre você ou sobre mim. Qualquer coisa para nos deixar mais
tranquilos.
— Bem… No que você está pensando?
Ao ouvir isso, sorri, pois estava lembrando daquela manhã.
***

Eu ouvi a porta do quarto sendo aberta enquanto preparava ovos mexidos.


Laura vestia a camisa que eu tinha usado na noite anterior e que ficara pelo
caminho até o quarto. Ficava longa nela e cobria seu corpo até o início das
coxas, deixando um decote aberto também.
— Você acordou.
— O que você está cozinhando?
— Ovos. Eu ia levar pra você na cama.
— Mesmo? Você é uma graça. — Laura sorria meigamente, o cabelo
preso novamente em um rabo de cavalo alto. — O que mais tem aí?
— Café, leite, bolachas, manteiga e pão. Tem algumas frutas também na
fruteira.
Laura foi até atrás do balcão da minha cozinha e pegou uma maçã,
lavando-a na pia, secando e dando uma mordida grande e ruidosa no fruto. A
imagem dela usando apenas minha camisa era um deleite aos olhos.
— Sobre essa noite — eu disse.
— Sim?
— Foi… Bem, foi muito boa, não foi?
Laura riu.
— Claro que foi! Eu gosto de você.
— Eu também gosto de você.
Ela se inclinou, e apoiando-se em meus ombros me deu um beijo suave,
mas longo.
— E isso? — Ela sorria enquanto falava. — Foi bom também?
— Foi. — O sorriso dela se estendia até meu rosto.
— Vamos comer na sala?
— Claro. Eu já estou terminando.

***

— Estou pensando em Laura — disse para Frey.


— O que ela é sua? Namorada?
— Mais ou menos.
— Como assim?
— É complexo.
— Eu sou inteligente. — A resposta de Frey vinha com um tom de
ignorância.
— Eu nunca a pedi em namoro, mas temos uma relação bem próxima.
— E por que nunca a pediu?
— Eu ia pedir.
— E o que aconteceu?
Parei de andar ao ouvir a pergunta de Frey.

***

Sentamos um de frente ao outro no sofá da sala, sem ligar a televisão,


apenas olhando sorrindo um ao outro, iluminados pela luz do sol que entrava
pela varanda do apartamento.
— O que foi? — ela me perguntou.
— Nada — eu respondi, alegre. — Só estou feliz por você estar aqui.
Laura sorriu e mordiscou um pedaço de pão com mel. Mais sério agora,
continuei:
— Olha, eu sinto muito por ontem à noite. Por ter me visto daquele jeito.
— Nu?
— Não. — Não pude evitar rir. Ela era contagiante. — Em crise.
— Ah, entendi. Não tem problema, não precisa pedir desculpas por isso.
Mas você já procurou ajuda?
— Como assim? Como terapia ou algo do tipo?
— Isso.
— Não. Nunca quis lidar com a balbúrdia que isso daria na minha
família, sabe? O filho perfeito tendo problemas mentais.
— Entendo. Eu não vou forçá-lo, mas só acho que seria interessante
procurar por uma ajuda.
— Eu vou procurar.
Eu nunca iria procurar.

***

— Nós brigamos — eu disse, com uma voz baixa.


— Por quê? — Frey mantinha-se afastada. Caso contrário, eu ficaria sem
ar para conversar.
— Porque…
— Por sua culpa, não foi?
— Sim. Como você sabe?
— O que você fez?
— Eu tive uma crise. Fiquei extremamente abalado e acabei descontando
nela.
— Você a agrediu?
— Não… Fisicamente, pelo menos. Eu disse muitas coisas das quais me
arrependo, sobre ela ser culpada por eu estar daquele jeito, que ela sempre
estava por perto quando eu começava a ficar assim e que logo isso tudo
estava ligado a ela. Falei que ela me fazia muito mal e que deveria se afastar
de mim para ela ser e feliz e eu também. Falei que não aguentava mais me
sentir daquele jeito. Eu bati em paredes, eu lancei objetos pela casa. Eu surtei.
— E ela?

***

Passamos o resto da manhã e a tarde juntos, conversando sobre nossas


vidas, infâncias, adolescências e escolhas até chegarmos naquela manhã,
naquele apartamento. Assistimos mais filmes e dois episódios de seriado até
dar o horário no qual ela precisava ir embora para sair com sua família. Antes
de ir embora, ela olhou para mim e, sorrindo, foi andando para meu quarto
enquanto desabotoava a camisa na minha frente, de modo provocante. Fui
seguindo-a até ela deixar a camisa pelo caminho e chegarmos na minha cama,
onde transamos novamente. Dessa vez, o sexo foi mais descontraído, focado
em nossa felicidade de estarmos ali, juntos, com nossos corpos colados um
no outro. Após isso, devido ao atraso ocasionado pela nossa farra, ela se
trocou rapidamente e eu a conduzi até a porta do apartamento. Combinamos
fazer isso mais vezes e nos despedimos com um longo e doce beijo.

***

— Ela foi embora. Pegou suas roupas e bolsa e saiu de casa, chorando.
— Você acha que a perdeu?
Uma pausa em extremo silêncio. A casa nem parecia mais flutuar.
— Eu não sei.
— Eu acho que você a perdeu.
— O quê?
— Quero dizer, não é fácil conviver com isso sabe? Estresse, mudanças
súbitas de humor, reações extremas a situações desconfortáveis. Eu não
ficaria surpreso se ela não voltasse e acho que você deveria ter a mesma
noção disso.
— E por que você acha que pode falar sobre isso? Você não me conhece,
você não a conhece. Você é apenas uma criança.
— Uma criança que viveu tanto quanto você, se não mais! — Frey
pareceu bem ofendida com minha reação. — E além do mais, eu a entendo.
Ninguém gosta de ficar perto disso. Todo mundo vai embora e nós afastamos
as pessoas por sermos assim, como eu e você. Somos muito parecidos nisso e
sabe por quê?
— Por quê?
— Porque ambos sufocamos as pessoas.
Eu olhava para fora, ouvindo o que Frey dizia e querendo acreditar que
ela falava bobagens infantis sem saber do que se tratava, mas parte de mim
não podia deixar de acreditar que ela falava verdades. Não podia negar que a
situação deveria ser extremamente exaustiva para Laura, conviver com
minhas crises e surtos e que não seria de se surpreender se caso ela realmente
fosse embora. Mas ao mesmo tempo outra parte de mim sabia que ela estava
errada, que eu e Laura nos amávamos e que podíamos enfrentar aquilo juntos.
E para minha sorte, era este lado que estava no controle da situação agora.
— Você está errada — eu disse. — Quero dizer, você está certa, mas não
todo certa. Sim, é complicado lidar com isso, mas nós lutamos sempre contra
isso, eu e ela. Eu fui extremamente agressivo no nosso último encontro, e
agora eu devo mais do que antes encontrá-la. Encontrá-la para pedir
desculpas, para dizer que aquilo não era minha verdade e sim minha crise
falando mais alto. Encontrá-la para pedir mais uma chance a nós e para
vencermos isso juntos.
— Isso se ela ainda lhe quiser, depois dessa última noite.
— Cala a boca.
— Afinal, você ficou por um triz de fazer uma grande besteira.
— Quieta.
— Não com ela, mas com você mesmo, sabe?
— Cala a sua boca! — eu gritei, e meu grito ecoou pela casa, que pareceu
voltar a se mover. Frey ficou paralisada, olhando para mim com olhos
arregalados. — Cala. A sua. Boca. Você fala exatamente o que minha crise
está gritando em minha mente, Frey, e acredito que é melhor seguirmos sem
conversar. Eu não irei ouvir mais nenhuma fala sua sobre isso, você não sabe
de nenhuma verdade sobre mim e Laura, e agora você vai…
Então eu ouvi o grito. Aquele grito novamente, que penetrou o meu peito
e me fazia chorar apenas de ouvi-lo. Aquele grito mortal que parecia uma
faca em meu coração, e que arrepiava minha alma. Aquele grito que havia
matado minha irmã.
— Acho que você acordou alguma coisa — Frey sussurrou.
Pesadelo Quatro: Irmandade

Minha mão tremia.


— Podemos voltar — eu disse para Frey. — Podemos dar a volta e seguir
pelo outro caminho.
— Voltar por onde, pelo caminho que viemos? Nada disso, não havia
nada para trás! Além disso esse corredor é muito estreito, você não vai
conseguir passar por mim sem ficar sem ar novamente.
— Você pode ir na frente.
— Não, eu não posso. O caminho é seu, você que deve ir na frente.
— Quem liga para isso agora, Frey? Você não ouviu? Aquele monstro
está logo à frente, eu não vou até lá!
— Me desculpe, mas você não tem escolha. Não vamos voltar.
Se eu fosse capaz de chegar até Frey, esse seria o momento no qual eu a
empurraria até fora do meu caminho e sairia correndo pelo corredor para o
mais longe possível daquele grito. Mas ela tinha razão, eu não ia alcançar ela
com ar suficiente para me manter de pé, quem diria atravessar seu caminho
antes de desmaiar. Eu precisava ir adiante, avançar por aquele corredor em
direção ao som daquele monstro assassino.
Meus passos tentaram ser os mais silenciosos possível enquanto ia à
frente no corredor. Frey tentava fazer o mesmo esforço e ao olhar para trás
pude perceber que ela também estava com expressões de medo do que viria a
seguir.
Ao chegar no final do corredor, fiz a única escolha de virar à esquerda, e
quando virei, senti um arrepio passar por todo o meu corpo, dos calcanhares à
nuca.
Havia uma parede de vidro ao final deste curto corredor. No outro lado
deste muro, estava aquilo. Seu corpo parecia uma massa escura maior ainda
do que antes, como se tivesse crescido. Apoiava-se em quatro membros,
sendo os dois da frente lâminas curvas e afiadas que penetravam o chão de
madeira. O crânio coberto de espinhos olhava fixamente para frente, mas não
era para mim que aquilo olhava, e sim para além da curva à esquerda no final
do corredor adiante.
Frey, que ainda não tinha visto a figura, estranhou minha pausa no
caminhar.
— O que foi?
— Shiu — eu disse, rapidamente e abrindo o mínimo possível a minha
boca.
— Ele te viu?
— Fique quieta! — dessa vez fiz mais movimentos e falei mais alto, mas
o monstro continuou a olhar para frente, sem nem ao menos se mexer. —
Acho que ele não pode nos ver. Tem uma parede de vidro entre nós.
— Ainda dá para avançar?
— Sim, tem uma curva à esquerda.
— Então vamos.
— Certo. — Mantive meus olhos fixos na criatura. — Mas com muito,
muito cuidado.
A cada passo que dava, ficava segundos esperando qualquer reação da
criatura, mas ela continuava imóvel, como se inanimada ou dormindo. A cada
avanço eu me aproximava mais daquilo, e comecei a ouvir sua respiração
pesada e arfante. Em certos momentos ele ficava em extremo silêncio,
travado, apenas para bufar de ódio logo depois. Caminhei até ficar frente a
frente com a enorme criatura, separados apenas por uma fina camada de vidro
transparente, mas que parecia fazer toda a diferença entre estar vivo e estar
morto. Fiz a curva à esquerda e entrei em um corredor iluminado por
lamparinas e que terminava, ao longe, em uma porta fechada.
— Tem uma porta ao final do corredor — sussurrei.
— Acha que chegamos nela antes dele nos atacar?
— Acho que ele nem tem noção de que estamos aqui. É como se esse
vidro não o deixasse nos perceber.
— Avançamos então?
— Sim. Avançamos.
Então, quando dei meu primeiro passo no corredor, a criatura se mexeu,
movendo a lâmina esquerda adiante. Parei no momento que vi seu
movimento e senti meu coração na garganta, com o medo à flor da pele.
Aguardei por um novo movimento da criatura, mas ela continuou estática
após esse pequeno passo. Quando senti segurança para avançar novamente,
movi minha perna posterior adiante com calma, e a criatura fez o mesmo, na
mesma velocidade, no outro lado do espelho.
— Ela está me imitando?
— Como assim? — perguntou Frey.
— Ela só anda quando eu ando. Que estranho.
— Não perca tempo com isso, precisamos fugir! O mais rápido possível!
— Certo.
Dei mais um passo, acompanhado da criatura ao outro lado do vidro.
Comecei a andar e ela veio ao meu lado. Mesmo assim, não tirava os olhos
dela, desviando rapidamente apenas para ver se a porta continuava distante,
como se a criatura fosse me atacar no momento que eu desse brecha na
atenção a ela.
Enquanto meus passos ficavam mais tranquilos e confiantes, os da
criatura ficavam mais intensos, perfurando mais profundamente o chão, o que
não permitia que meu medo fosse embora. O arrepio continuava constante em
minhas costas, mas a cada olhada que dava para a porta percebia que
estávamos mais perto dela.
E então, ao olhar de relance para a porta percebi que, do outro lado do
vidro, do lado do monstro, próximo à distância da porta a mim, havia uma
cama. Parei de andar no momento e fiquei a olhar o leito de lençóis brancos.
Havia alguém deitado ali, mas não conseguia distinguir quem era. Mas assim
como eu encarava com curiosidade, pude perceber que a criatura olhava com
desejo. Seu corpo parecia se mexer mais, vibrar, tremer ao avistar sua futura
presa, porém ela continuava posicionada no mesmo local, sem ir para frente
ou para trás.
Caso eu continuasse a avançar, o monstro iria avançar até a cama e tenho
certeza que iria assassinar quem estivesse ali sem pensar duas vezes, fosse
quem fosse. Eu não podia deixar isso acontecer. Não podia avançar mais
sabendo que a criatura também avançaria.
— Frey — eu disse. — Frey, precisamos voltar.
— O quê? Por quê?
— Tem alguém ali na frente do monstro, eu não posso deixar essa pessoa
morrer.
— Nós não temos como e nem para onde voltar! Eu não posso liderar o
caminho!
— Frey, pode ser qualquer um ali!
— Você precisa avançar! Talvez seja alguém que você nem conheça.
— A Casa está na minha mente, Frey! Eu tenho certeza que é alguém que
eu conheço, só não sei quem.
— Não vamos voltar por causa de uma intuição sua! Ou você avança ou
eu vou pra frente e te forço a andar!
Então o corpo na cama levantou-se, ficando sentado sobre o colchão, e eu
reconheci aquele rosto que, de fato, era familiar. Ele olhava para frente
forçando a vista, tentando enxergar algo no meio da escuridão que se
encontrava no outro lado do vidro. Meu corpo travou e meu coração voltou a
bater descontrolado ao vê-lo, e do outro lado da parede a criatura começou a
sibilar, tremer e vibrar mais do que já estava fazendo antes. Seus espinhos
todos se eriçaram e ela arqueou seu corpo como se fosse pular para dar o
bote, mas ela não poderia fazer isso já que estávamos sincronizados. Mas ela
fez. Seu corpo voou baixo em direção à cama, e eu automaticamente comecei
a correr para frente, em direção à porta, em direção a meu irmão que não saía
da cama.
— Fuja! Sai daí! Corra! — Comecei a berrar enquanto via a criatura
cavalgando em direção à cama. Corri o mais rápido que pude, com Frey ao
meu encalço, mas não consegui vencer a corrida e vi o monstro chegando ao
pé da cama, levantando seu corpo e arqueando sua lâminas, esticando-as em
direção ao céu.
— Não! Não, por favor, não!
Os dois braços caíram rapidamente sob a cama, e pude ver um líquido
espirrando ao redor e manchando o vidro entre nós. Era sangue.
Quando cheguei à porta, pude ver em clara luz a cena. A criatura se
encontrava no pé da cama. Meu irmão jazia morto, cheio de cortes e
perfurações pelo seu corpo seminu abaixo dos lençóis. A cabeça do monstro
se enfiou por dentro da barriga de meu irmão, mastigando seu interior. Eu
olhei aquela cena e minha raiva se inflou.
— Sua filha da puta! — Comecei a bater meus punhos contra o vidro. —
Seu monstro desgraçado, eu quero matar você! Eu quero que você queime
inteiro, merda! Quero que você vá para o inferno! Tira a sua cabeça daí, sua
desgraça! Tire a cabeça de dentro do meu irmão!
— Pare de gritar! — Frey, por si só, berrava para ser ouvida,
amedrontada. — Ele vai te notar!
— Foda-se! Olhe para mim, seu demônio! Olhe para mim, pare de comer
meu irmão!
Continuei a bater forte na parede, até que subitamente o monstro virou
seu rosto para me encarar, berrando, e avançou contra a parede de vidro,
lançando todo o seu corpo em minha direção, gritando de raiva e irritação.
Fez esse movimento mais uma vez, e mais uma vez, e comecei a ver o vidro
trincar entre nós. Meus olhos começaram a se arregalar e meu coração bateu
em desespero. Ao mesmo tempo, comecei a sentir uma grande falta de ar e ao
olhar para trás vi que Frey corria em minha direção berrando.
— Abre a porta! Fuja! Corra! Abre a porta e saia daqui!
Orientado por seus berros, Virei para a porta e torci sua maçaneta até
abri-la completamente. A criatura continuava a se bater contra o vidro,
trincando-o cada vez mais.
— O que você tá fazendo? — Frey continuava a correr.— Fecha a porta,
fuja!
— E você?
— Eu não importo! É você que a Casa quer! Fuja!
— Eu não vou te deixar!
O vidro trincou mais.
— Vai sim! Todo mundo deixa, lembra? Corra!
— Eu não sou todo mundo!
Pedaços de vidraria caíam enquanto a criatura berrava entre nós dois.
— Pare de ser teimoso e fecha essa porta logo!
Um dos braços da criatura passou pela abertura da parede.
Fechei a porta e me afastei, colocando as mãos sobre a boca. Ouvi o
momento em que o vidro se estilhaçou e, então, as palavras de Frey entre os
berros daquele monstro:
— Ele não precisa mais de você, não está vendo? Ele não vai mais te
carregar com ele! Ele é livre e você não é mais bem-vindo! Ele vai se livrar
de você e isso tudo vai acabar. Ele é forte, vai sair daqui, vai te deixar para
trás, e não há nada que você possa… — E então um sibilo.
E a voz de Frey não foi mais ouvida.
Visão Quatro: Cheiro de Flores

Me mantive parado enquanto ouvia a criatura saciar sua fome sobre o


corpo de Frey e de meu irmão. Ela não tentou avançar contra a porta em
nenhum momento, satisfeita com suas duas últimas presas. Após se
alimentar, soltou um rugido agudo e começou a se distanciar, embora seus
passos continuassem audíveis mesmo ao longe.
No cômodo onde eu me encontrava não havia luz alguma e meu corpo
continuava estático como uma estátua. Eu reconstituía em minha mente tudo
que havia ocorrido naquele corredor: as imagens de meu irmão
ensanguentado, a criatura se debatendo contra a parede em minha direção, a
morte de Frey. Tudo aquilo tinha acontecido na minha frente e a culpa toda
era minha. Eu havia escolhido aquele caminho, eu havia berrado contra o
vidro e eu tinha abandonado Frey para sua própria morte. Eu deveria estar lá,
a criatura deveria ter me tomado em suas lâminas. Talvez esse fosse o
caminho mais fácil, de fato. Ninguém mais precisaria sofrer, eu só tinha que
abrir a porta à minha frente e ir atrás daquela aberração.
No escuro, minha sensação interior era de que essa era a única escolha
racional, o melhor trajeto. Já havia visto a morte de minha irmã e meu irmão,
meus pais e Laura não precisavam sofrer o mesmo destino, eu só precisava
me render e suplicar à Casa pela vida deles. Ela não precisava de todos nós,
talvez apenas a minha energia já fosse o suficiente para ela. Eu poderia me
tornar um pesadelo da Casa até, algo perturbador como aquela velha mulher e
seus filhos ou me juntar a criatura enorme na mesa de jantar. Era só abrir
aquela porta. Só atravessá-la, e tudo poderia acabar em um piscar de olhos.
Comecei a estender minha mão em direção à maçaneta. As lágrimas
caíam desesperadas sobre meu rosto, mas eram lágrimas confusas, ao mesmo
tempo de liberdade e tristeza, como se fosse um passo muito doloroso me
entregar para fazer aquilo acabar logo. Mas então, quando meu braço estava
por todo estendido, pude sentir uma mão a segurar meu pulso de forma firme.
— Não faça isso.
A voz era conhecida. Thisi. Não podia enxergá-la, mas o seu tom
expressava alerta. Sua mão agarrava meu pulso como uma algema e parecia
me puxar para trás, para longe da porta. Entre suspiros, consegui falar, com
uma voz entrecortada.
— Por que não? Eles não precisam mais sofrer por minha causa.
— Se você fizer isso, tudo acaba. A Casa não vai poupá-los por sua
atitude, ela vai tomar tudo para ela de uma vez só. E acredite, você não vai
querer ser transformado em um pesadelo. Não há vida mais dolorosa para se
ter do que ser um pesadelo deste lugar.
— Eu já perdi a esperança, Thisi.
— Não. Você nem a encontrou ainda.
— Como assim?
— Ouça… Por favor, confie em mim, você precisa continuar. Desistir
não vai facilitar nada para quem ficar, só vai trazer mais dor. Você não quer
fazer isso, você não quer ferir a todos nós ao se entregar. Você precisa chegar
ao fim de tudo isso e sair deste inferno.
— Como eu vou fazer isso, Thisi? Como eu vou avançar?
— Respire.
— Eu estou respirando.
— Não, respire fundo. Expire. Sinta o cheiro.
Inflei meus pulmões de ar, e então senti subitamente a pressão no meu
pulso sumir, como se Thisi jamais estivesse segurando meu pulso e me
evitando pegar a maçaneta. Enquanto respirava fundo, pude sentir
delicadamente um aroma diferente. Aquele cheiro lembrava-me flores, mas
também algo a mais.
Virei para trás e senti o cheiro vindo mais forte daquela direção. No
escuro, comecei a tatear à minha frente em busca de uma parede que não
podia ver. Acabei esbarrando minhas mãos na madeira depois de alguns
passos, mas percebi que na minha frente, de onde vinha o perfume, havia um
espaço vazio, como um caminho a seguir. Avancei e entrei nele.
Não havia nada que pudesse me orientar além daquele perfume familiar.
Havia ausência de luz, ausência de som e apenas o tato ajudava quando uma
curva se apresentava e eu virava antes de bater de frente com uma parede.
Embora nunca tivesse sido sensível a cheiros durante minha vida, aquele em
especial me orientava claramente, quase como uma voz que sussurrava “Para
frente. Siga adiante. Agora vire para a esquerda”.
Havia algo muito conhecido naquele cheiro. Tentei distinguir as flores
que compunham o seu aroma. Havia rosas ali, mas também havia tonalidades
que me lembravam orquídeas da casa de meus pais, durante a infância. No
meio de todos esses cheiros, podia sentir o perfume de um girassol brincando
em minhas narinas de vez em quando. Aquele cheiro me trazia paz, fazia-me
sentir um certo tipo de acalanto no peito, me ajudando a ficar calmo após as
cenas daquele corredor de vidro.
Continuei a seguir o perfume que a cada curva se tornava mais intenso e
envolvente, quase que banhando meu corpo com seu aroma. Era capaz de
sentir arrepios nos meus braços e de sorrir com notas novas que apareciam a
todo o momento. Sentia-me flutuando pelo caminho, de braços abertos e
carregado pelo fluxo daquele cheiro.
E então, subitamente, minhas mãos que tocava as paredes perderam o
contato com a superfície de ambos os lados, e não havia paredes nem em
meus flancos e nem adiante. O aroma também havia desaparecido, e não
havia cheiro, nem luzes e nem som.
E então, com um clique, rompeu-se o silêncio e com a luz de uma
lamparina posta sobre uma mesa quadrada no centro daquela sala, rompeu-se
a escuridão.
Havia dois assentos juntos à mesa. Um deles estava vazio.
No outro, Laura estava sentada.
Memória Sete: Sem Controle

— Olá.
Ela vestia uma calça jeans clara e uma jaqueta de couro sobre uma camisa
preta. Já havia visto ela usar essa roupa diversas vezes, tanto na faculdade
quanto no meu apartamento. Seu rosto era tranquilo e sereno, embora sua
expressão fosse rígida. O aroma que havia me levado até lá exalava dela.
Mantive-me em silêncio enquanto a encarava, buscando entender se ela
era real ou alguma outra ilusão da casa. Foi ela que cortou o silêncio.
— Acho que você tem que sentar aqui. Precisamos conversar.
Fui até a mesa e me sentei na cadeira vaga, diante de Laura. Observei
enquanto ela me olhava de todo e dava um sorriso irônico.
— Você tá um desastre com essa roupa branca.
— Bem, eu não estou lá no melhor dos meus dias — respondi.
— Não mesmo. O que está acontecendo com você?
— Eu sinto que eu estou perdendo toda minha esperança de salvar você e
todo o resto.
— Acredite. — Laura sorriu nesse momento. — Você ainda nem
encontrou a esperança.
— Como assim? Me disseram algo parecido uns minutos atrás.
— Não importa. Não é sobre isso que devemos falar. Ela me colocou aqui
para falar sobre outra coisa.
— Ela?
Laura olhou ao redor, e compreendi que ela se referia a Casa também
como uma entidade.
— Ah sim — continuei. — Sobre o que ela quer que conversemos?
— Talvez seja algo que você não queira lembrar.
— E eu tenho escolha? Não dá para fugir dela estando aqui, não é?
— Você está certo. — Laura abaixou os olhos e suspirou. Sua expressão
agora era de alguém que se sentia desconfortável. — Tudo bem então. É
sobre nossa última discussão...
— O que tem nossa última discussão?
— Sério? Você não se recorda?
— Do quê? Nós só tivemos uma briga.
— Só uma briga? Não, aquilo não foi só uma briga. Você realmente não
percebeu?
— Perceber o quê?
— Como você saiu do controle naquela noite?

***

Eu estava na casa dele novamente, após passearmos. Passamos o dia


inteiro dando voltas pelo bairro onde ele mora, visitando galerias com
diversas exposições sobre fotografias em preto e branco e artes orientais. Na
volta, passamos por uma padaria para comprar frios e outros ingredientes que
íamos usar para comermos lanches à noite. Não era a primeira vez que eu
dormia na casa dele. Desde a primeira visita, quando transamos a primeira
vez, eu sempre dormi ali, na mesma cama que ele, acolhida pelo calor do seu
abraço durante o sono.
Ele estava no balcão da cozinha enquanto eu observava-o através da
abertura entre sala e cozinha, deitada no sofá. Júpiter, o gato dele, estava
aninhando ao meu lado, descansando. Minhas pernas estavam doloridas
devido ao longo passeio que durou a tarde inteira, mas que foi muito
prazeroso pela companhia dele e por todas as coisas que havíamos visto
juntos. Eu estava feliz, sorria ao passear com ele e no final pudermos ir para a
casa juntos, jantar assistindo alguma besteira na televisão e ficar acariciando
Júpiter até pegarmos no sono (isso quando não íamos para a cama com outras
intenções).
Mas, observando-o, eu notava que havia alguma ausência em seu olhar
enquanto executava gestos mecânicos na cozinha, preparando os lanches com
os frios e legumes.
— Ei — perguntei, sem sair do sofá. — Tá tudo legal?
Ele olhou para mim e disse sim, mas seus olhos não concordavam com o
que sua boca falava. Eles estavam cabisbaixos, quase que fechados, e as
sobrancelhas se curvavam em uma expressão de tristeza e agonia, como se
algo estivesse lhe incomodando intensamente. Decidi insistir.
— Mesmo? Você me parece incomodado com algo.
— Não, amor. — Adorava quando ele me chamava dessa forma
carinhosa. — Não é nada não.
— Hm. Tudo bem então.
Parei de olhar para ele e estendi meu braço para alcançar o controle
remoto da televisão. Porém, antes que eu pudesse apertar o botão para ligá-la,
ouvi ele suspirar e dizer:
— É só que… Você está feliz, Laura?
— O quê?
— Perguntei se você está feliz.
— Que pergunta é essa amor! — Virei-me novamente para ele, sorrindo.
— Claro que estou feliz.
Olhando para o rosto dele não existia mais tranquilidade ou felicidade. A
agonia que estava escondida por trás das sobrancelhas se espalhava por todo
o rosto e até mesmo na postura dele.
— Ei, olha o dia maravilhoso que tivemos, amor. É claro que eu estou
feliz. Você não está?
— Não é isso… — ele disse. — Eu estou feliz, mas queria poder fazer
algo a mais por você.
— Não me parece que você está feliz.
— Eu estou, sim! — A agonia agora possuía a voz dele. — Eu só quero
que você fique
feliz.
— Mas eu estou feliz amor. — Não consegui evitar que uma risada
escapasse de minha boca. O momento todo era confuso e parecia atrapalhado
de uma forma boba para mim. — Eu estou bem feliz aqui.
— Eu não sei por quê.
— Como assim? Eu estou feliz porque tivemos um dia maravilhoso
juntos e agora estamos em um lugar que eu amo com alguém que eu amo.
— Não sei por que você me aguenta.
Ele não cortava mais nenhum legume e nem preparava nenhum lanche.
Estávamos apenas discutindo algo que para mim não fazia sentido algum:
minha felicidade em função dele.
— Não fale assim, amor. — Tentei falar com a voz da forma mais calma
que eu podia, o que ainda era bastante naquele momento. — Eu não tenho
que te aguentar, eu gosto de estar com você. Você não acredita nisso?
— Não é sobre acreditar! — Novamente a agonia na voz. — Eu acredito
em você, mas não sei por que alguém como você ainda quer ficar por perto
de mim com tudo isso acontecendo e…
Ele parou de falar quando começou a tropeçar nas palavras. Com as mãos
apoiadas no balcão, ele começou a respirar fundo, de forma que eu podia
ouvir sua respiração de onde eu estava. Ao soltar pela boca, o ar passava por
seus dentes que estavam cerrados. Ele sempre fazia aquilo quando uma crise
estava prestes a romper, eu já havia visto outras vezes. Eu havia ensinado a
ele isso, e durante um bom tempo foi muito útil, mas agora nem sempre era o
suficiente.
Levantei do sofá acordando Júpiter e fui até a cozinha, até ao seu lado,
onde pousei minha mão sobre seu ombro e a outra sobre seu peito.
— Ei — disse. — Vai ficar tudo bem, só respira e relaxa.
— Eu tô tentando. — A voz dele estava tensa, ele não abria os olhos e
seus punhos estavam fechados sobre o balcão. Me afastei um pouco dele e
olhei para os lanches inacabados sobre a tábua.
— Quer que eu termine de preparar os lanches?
— Não precisa.
— Tem certeza?
— Não.
A respiração dele ficou mais rápida e mais sonora. Não estava
funcionando desta vez, e eu começava a ficar preocupada com a quantidade
de vezes que isso estava falhando recentemente.
— Amor, por favor, tenta se acalmar.
— É muito fácil pra você dizer, não é?
Aquilo era novo para mim. Ele nunca tinha me dado uma resposta desse
tipo, mais agressiva, como se eu estivesse caçoando dele ou cansada de
ajudá-lo. — Amor, eu só quero que você melhore.
— E você acha que eu não quero?
— Ei, está tudo bem! Eu tô do seu lado aqui.
— Então por que você continua insistindo? Eu tô tentando melhorar, você
não tá vendo que eu estou tentando?
— Desculpe! Eu não falo mais nada então, vou deixar você melhorar…
Então ele esmurrou o balcão, e o meu corpo inteiro retesou com o barulho
do tampo ecoando na sala. Até mesmo Júpiter despertou num pulo do sofá.
— Não. Estou. Falando. Disso. — Parecia que ele tinha dificuldades para
falar cada uma das palavras que saía de sua boca, como se cada uma delas
fosse uma tortura para reproduzir. — Eu não… Quero que você vá… Vá
embora.
— Mas amor, o que eu faço então? Me diz como eu posso te ajudar, por
favor.
— Não tem como me ajudar.
— Claro que tem, tem que haver algo que eu possa fazer.
— Não dá! Não dá, nem você nem ninguém! Eu não tenho solução
Laura! — Os olhos dele continuavam fechados e lágrimas caíam de seu rosto.
— Eu não tenho como melhorar, eu sou essa merda toda dentro da minha
cabeça e é isso, não dá para melhorar!
— Amor, calma.
— Eu não consigo ficar calmo! — Ele gritava agora. — Você não tá
vendo que eu tô tentando mas não consigo? Porra Laura, não dá, eu não tô
bem e não vou ficar bem! Vai embora, eu não quero você me vendo assim.
— O quê?
— Vai. vai embora daqui Laura.
— Mas eu não quero deixar você assim aqui.
— Laura, porra, sai daqui! Chega, eu não quero mais ter que lidar com
isso, vai embora! — Ele chorava, suas lágrimas caíam continuamente sobre o
balcão e sobre os lanches. Dava constantes socos e tapas ressoantes no
balcão. Eu também chorava junto, desesperada. — Vai embora, pelo amor de
Deus, eu quero ficar sozinho! Eu mereço estar sozinho, ninguém tem que
lidar com isso, vai embora! Vai!
Fui para a sala e peguei minha bolsa junto com o celular. Não queria
deixá-lo sozinho naquela situação, mas parecia que minha presença somente
piorava tudo para ele, como se eu fosse um ferro de brasa queimando na pele
daquele pobre coitado. Eu olhava para ele distante enquanto o via chorando
sobre o balcão. Queria despedir-me dele, mas sentia que qualquer gesto que
fizesse próximo a ele poderia ser fisicamente perigoso para mim.
— Por favor amor, tenta relaxar. Eu sinto muito que você tenha chegado
nesse nível e eu queria poder fazer tudo para não te ver assim. Mas se você
acha melhor eu ir, então tudo bem… Quando você conseguir, por favor, me
manda uma mensagem, tá bom?
Não houve resposta. Apenas peguei minhas coisas e fui até a porta de
entrada do apartamento dele. Virei a maçaneta e fiquei a observá-lo durante
um tempo até fechar novamente a passagem.
Ao fazer isso, ouvi ele gritando e chorando de dor. Mas, logo depois, tudo
ficou preto.

***

— Foi nesse momento que eles me pegaram. — Laura me contava. —


Eles colocaram um saco preto no meu rosto, me levaram até um carro e só me
deram visão quando eu estava aqui dentro da Casa.
Eu ouvi o relato dela em silêncio, reparando em tudo que não havia
reparado antes sobre a noite que ela havia acabado de me narrar.
— Laura… Eu nem sei o que dizer. — Não conseguia olhar para o rosto
dela. — Eu sinto muito por tudo isso.
— Não peça desculpas, por favor. Eu que devo pedir perdão aqui.
— Como assim? Olha para as coisas que eu te falei!
— E daí? Eu fui embora, te abandonei e permiti que eles me trouxessem
para cá! Você está aqui porque eu fui fraca, amor.
— Não amor, isso não é verdade.
— Sim, é sim. Eu sei disso, eu tenho plena noção de que a culpada por
tudo isso sou eu. Suas crises só aumentaram depois que começamos a ficar
juntos, você sempre sentiu dor por eu estar junto de você nesses momentos.
Eu sou a culpada de toda essa dor e ainda por cima fui a isca para que a Casa
trouxesse você até aqui!
— Laura, para de falar essas coisas, isso tudo não é verdade.
— É sim amor, apenas você não percebe isso. Mas chega, eu não vou
deixar que isso continue. Eu vou acabar com isso tudo agora.
— Como assim?
Laura se levantou da cadeira na qual ela estava e virou para o lado. Todo
o quarto se iluminou com lamparinas nas paredes e um lustre no teto, e então
eu pude ver o olho. O desenho cobria uma parede inteira e representava um
globo ocular com uma pupila triangular no meio da íris azul-escuro. Laura
estava de frente ao olho e falava para ele.
— Você ouviu, não ouviu? Eu tomo responsabilidade por tudo isso, Casa!
Eu tomo culpa dos pesadelos dele, das ilusões e dos temores. Tomo
propriedade disso tudo para mim e estou decidindo acabar com tudo isso
agora. Vamos lá, você só tem que mandar e eu acabo com tudo isso. Você
venceu. Eu sou sua.
Um rangido vibrou por toda a casa e pude senti-la tremendo sob meus
pés. As luzes começaram a piscar e eu conseguia ver Laura se movimentando
como diversas fotografias, uma atrás da outra, devido ao efeito da luz
piscante.
Eu olhei quando ela se inclinou sobre a mesa e agarrou um revólver que
não havia percebido até então. A casa rangia, e meus gritos de “Laura” e
“Não faça isso” eram inaudíveis por entre o ranger e as vibrações. Parecia
que estava dentro de um trem que descarrilhava, rumo ao abismo. As
lâmpadas caíam da parede e o lustre balançava cada vez mais rápido. Eu
tentei levantar, mas os tremores me levaram ao chão enquanto Laura
permanecia reta e de pé, segurando o revólver com o cano encostado ao seu
queixo.
— Eu faço isso por você, amor. Eu estou terminando tudo isso por você.
— Laura, não!
O lustre tremeu e se desprendeu do teto, caindo sobre a mesa e se
estilhaçando pelo chão, deixando todo aquele ambiente escuro.
Houve um estrondo e uma luz tão rápida quanto um flash de câmera
fotográfica. No escuro eu ouvi o som de algo pesado caindo de forma dura no
chão.
E não havia mais nada.
Despertar

Senti o calor sobre meu rosto e por cima de meu peito. No escuro, era
incapaz de dizer de onde vinha aquela sensação, se advinda de algo físico ou
até mesmo de uma fonte invisível. Senti o peso sobre meu corpo, como se
algo me abraçasse e envolvesse quase como se estivesse enclausurado dentro
de algo. Senti um arrepio passar pelo meu corpo enquanto tinha a sensação de
estar nu, não mais com mantos e calças, mas sem nada, ou pelo menos com o
corpo mais livre de cordões e elásticos. Senti meu corpo inclinado, quase que
completamente na horizontal, levado por uma força que não era minha, mas
do espaço que eu ocupava.
Então abri os olhos.
Acima de mim havia o teto pintado de branco, e pelo canto do olho
observava uma janela de metal pela qual passava um fino traço de luz solar
que passava pelo meu rosto. Por cima do meu corpo, meu edredom verde
pesava e dificultava meus movimentos. A cama de colchão duro na qual eu
deitava me trazia um conforto muito agradável à coluna.
Levantei subitamente e meu corpo se arrepiou ao sentir o ar do ambiente
na minha pele nua, coberta apenas por um samba-canção. Ao meu redor,
vários móveis se espalhavam pelo meu quarto: um guarda-roupa, uma
escrivaninha com meus livros e computador, estantes com mais escritos e
outras peças de decoração. O ventilador de teto estava ligado e emitia um
som repetitivo enquanto arejava o ambiente.
Pulei de minha cama e olhei para meu próprio corpo. Olhei para minhas
mãos em busca de sujeira, para meus braços em busca de marcas de
queimado ou machucados. Toquei em tudo ao meu redor para crer que aquele
ambiente era tangível, real, palpável.
Senti os cheiros de minhas roupas, dos livros há muito jogados na estante,
da minha cama (que possuía um aroma misto de vários perfumes juntos) e até
mesmo meus calçados.
Ouvi um som que vinha de fora do quarto, para além da porta. Algo
sendo frito, som de líquidos fervendo e utensílios raspando um no outro.
Havia alguém em casa. De pé e a passos trôpegos fui até a porta do quarto e
atravessei a passagem para entrar no corredor que dava para a sala e, além
dela, à cozinha americana.
— Olha só, achei que não ia acordar mais! — Laura estava segurando
uma frigideira e vestia uma camisa social minha, abotoada apenas na metade
superior. Olhando para minha expressão de espanto ela soltou uma leve
risada. — O que foi? Viu um fantasma? Amor, tá tudo bem?
Me mantive parado durante segundos que me pareceram eternos
observando-a no meio do apartamento completamente mobiliado. Observei-a
como se fosse a primeira vez que estivesse olhando para seu rosto,
observando cada detalhe, o caimento do cabelo sobre os ombros, as curvas
que minha camisa desenhavam sobre o corpo dela e todos os outros
pormenores possíveis de se analisar. Então, movido por um sentimento de
reconquista de mim mesmo, avancei até a cozinha pela sala, cheguei ao lado
de uma Laura confusa e coloquei meus lábios sobre os dela, agarrando seu
diminuto corpo com meus dois braços, envolvendo-a em um abraço apertado
que desejava nunca mais soltar.
— Amor, calma, eu não vou fugir — ela falava enquanto ria e enquanto
eu distribuía beijos por toda a superfície do rosto dela. — O que deu em
você?
— Você é real, não é? — perguntei a ela, olhando-a nos olhos como se
aquela fosse uma das questões mais vitais para se responder no momento. —
Você existe? Isso tudo aqui é real, existe mesmo?
— Claro que sim amor! Calma, o que aconteceu?
— Eu… Eu não sei, eu… Eu tive um sonho? Mas aquilo tudo era tão real,
era tão material. Não, sonho não, pesadelo. Um pesadelo? Mas… Era
tangível…
— Amor, respira. Olha, você deve ter tido um sonho lúcido ou algo do
tipo que deve ter te dado essa sensação. Senta, pega um banquinho.
Puxei para baixo de mim um banquinho que se encontrava ao lado da
passagem entre a sala e a cozinha e sentei. Olhei para Laura enquanto ela
continuava a preparar a comida.
— Fiquei sem sono um pouco mais cedo e você estava dormindo tão
profundamente que decidi levantar e preparar nosso café. Ovos mexidos, do
jeito que você gosta pela manhã. Eu ia levar para você no quarto, mas você
pelo jeito decidiu estragar a surpresa, não é mesmo?
— Laura. Esse pesadelo foi horrível.
— Você quer falar sobre ele?
— Sim… Não, melhor não. Mas você estava nele. Você morria nele.
— Que horror!
— Foi quando eu acordei. Isso foi a última coisa que aconteceu. Laura,
parecia tão real e assustador.
— Tudo bem amor, relaxe. Você está aqui agora, no mundo real
novamente e eu não vou deixar nada machucar meu bem. Muito menos na
hora do nosso café. Vamos para a sala?
Laura serviu os ovos em dois pratos separados e colocou café em duas
canecas até a metade do volume. Ajudei a levar a refeição até o sofá, onde
sentamos um do lado do outro. Durante o percurso e até ao sentar no sofá,
não conseguia mais parar de olhar para ela, em seu movimentar, em suas
expressões felizes. Ao sentarmos, enquanto ela ligava a TV e escolhia um
canal para assistirmos, observei como ela parecia concentrada em sua
escolha.
— É tão bom ver você viva.
— Que bom. — Ela deu uma risada tímida e sorriu para mim. — É muito
bom estar ao seu lado, sabia?
Permiti me dar um sorriso também, agora mais confortável na situação
toda.
— Sabe, eu tenho pensado nessas minhas crises.
— E aí?
— Acho que vou procurar ajuda.
— Como assim, está falando de terapia e tudo mais?
— Sim.
— Ah meu amor, eu fico tão feliz de ouvir isso!
De lado, Laura se aproximou e me deu um abraço, finalizando-o com
mais um beijo curto sobre meus lábios.
— Acho que isso vai fazer muito bem para você — disse.
— Eu também acho. E para nós também, eu não quero que você tenha
que aguentar isso tudo e carregar como um peso nas costas. Afinal, na noite
passada você foi…
— Fui?
— Embora. Você foi embora na noite passada, não foi?
— Bem, eu atravessei a porta, sim.
— Porque eu estava tendo uma crise.
— Estava.
— Então você voltou? Laura, o que aconteceu nessa noite?
Laura manteve-se em silêncio, mas ainda sorria para mim como se eu
estivesse encenando alguma peça na frente dela.
— Você não lembra?
— Não, eu não me lembro. E não me lembro nem de você acordar mais
cedo do que eu em finais de semana. Tem algo de errado aqui.
— Amor, para com isso.
— Júpiter! — Chamei pelo gato, mas não tive resposta nenhuma. —
Júpiter! Laura, onde está o meu gato?
Quando olhei para ela novamente, seu rosto não carregava mais um
sorriso aberto, apenas uma expressão de apaziguamento, de empatia. Ela me
olhava com dó.
Um arrepio passou sobre minha espinha e fez com que minhas mãos que
seguravam o prato e a caneca de café tremessem. Senti minha garganta
travada, como se o choro estivesse a caminho.
— Isso aqui não é real, não é?
Laura não disse nada, apenas mordeu o lábio inferior e balançou sua
cabeça em um gesto negativo. Calmamente ela pousou sua refeição no sofá e
levantou-se, indo até a porta do apartamento. Tudo parecia tremer junto com
as minhas mãos enquanto eu observava ela virando a maçaneta e abrindo a
porta. Antes de sair, ela se virou para mim e com sua voz disse-me da forma
mais delicada:
— Eu fiz isso por você, amor.
Então ela atravessou a saída, fechando a porta atrás de si. Senti como se
todo o apartamento tremesse junto com minhas mãos e segundo a segundo vi
o ambiente ao meu redor ficar mais escuro até voltar ao breu onde não faz
diferença estar de olho aberto ou fechado. Meu corpo sentia frio novamente
e, além disso, havia, mais uma vez, o peso de mantos e o aperto de sapatos
brancos. A superfície onde estava sentado não era mais confortável como
meu sofá, mas dura novamente como madeira velha.
Havia um cheiro de fumaça de pólvora no ar novamente. Lentamente o
ambiente no qual eu estava foi ganhando luzes vindas da parede. Não era
mais o pequeno cômodo de antes, mas agora era um espaço mais aberto. Não
havia imagem de olho na parede, mas o corpo de Laura continuava imóvel no
chão, com o revólver ao lado.
Levantei da cadeira e me ajoelhei ao lado do corpo, olhando para os
restos da face da minha amada e para seu corpo, que não se movia mais do
jeito curvo que se movimentava no meu apartamento e que não tinha mais
cheiro de flores, mas de chumbo e ferro. Tive medo de tocá-la, mas consegui,
e ao fazer isso senti o frio de sua pele rígida.
Inclinei minha cabeça para frente até encostar no busto dela. O coração
não batia.
Comecei a chorar sobre o seu corpo.
Visão Cinco: O Jardim

O corpo de Laura não parecia tão pesado enquanto a carregava pelos


corredores escuros, sem ter ideia de para onde ia. A ausência de luz que antes
era indesejada agora era bem-vinda, pois assim não conseguia ver o rosto
dela desfigurado pelo disparo. Porém o cheiro de pólvora e carne não
sumiram no breu dos corredores. Eles seguiram presentes durante todo o
resto da minha jornada pela Casa.
Após o choro sobre o corpo de Laura, meu corpo não expressou mais
nenhuma sensação. Não havia medo do escuro ou daquele lugar, mas também
não havia coragem. Não sentia desespero de encontrar com pesadelos, mas
também não havia determinação em enfrentá-los. Meu corpo movia-se como
que por vontade própria, sem interferência da minha mente. Em minha
cabeça, minha consciência perdia-se ao revisitar a cena de Laura disparando
contra ela mesma.
Questionava-me se poderia ter feito algo para que a decisão dela tivesse
sido diferente. Perguntei-me se algo que eu falasse ou deixasse de falar
poderia mudar o resultado daquele encontro, mas acho difícil que isso
acontecesse. Laura parecia estar em seu próprio frenesi enquanto dizia
aquelas palavras, enquanto agarrava a pistola. Sua expressão ao me encarar
era de total devoção a sua causa própria, como um mártir que tivesse acabado
de encontrar uma espada afiada para se perfurar. Mais lágrimas caíam de meu
rosto ao pensar que não poderia ter evitado que ela fizesse o que fez, mas eu
continuava a andar e não limpava meus olhos marejados. Não havia visão
para ficar distorcida sob o meu pranto, eu andava em um limbo infinito e sem
destino dentro daqueles corredores.
Cada vez que esbarrava com uma parede à minha frente, virava para um
dos lados para continuar minha jornada sem destino dentro daquela Casa. Eu
queria encontrar algum lugar para depositar aquele corpo, para deitar Laura
sobre um canto e deixá-la lá, como se apenas estivesse descansando e fosse
acordar a qualquer momento.
Ao final do corredor que eu estava não havia curvas para direita ou
esquerda, apenas uma porta pela qual uma luz pálida passava por sua abertura
inferior. Sem soltar o corpo de Laura, forcei a porta para frente e ao passar fui
surpreendido com o fato de que meus pés não pisavam mais na madeira
barulhenta e dura, e sim em um terreno de terra batida com grama baixa
crescendo. Uma luz branca iluminava o chão e o ambiente que, ao levantar
meu rosto para observá-lo, me pegou de surpresa.
Eu havia entrado em um jardim. Na noite, a lua cheia iluminava todo o
espaço com sua clareza pálida, evocando uma sensação mórbida naquele
ambiente. Além de gramas rasteiras, diversas flores brancas, azuis e rosas
cresciam espalhadas e preenchiam o jardim com um aroma que me era
semelhante, tão semelhante quanto o perfume de Laura que havia me guiado
pelo escuro. No centro, quatro estátuas de mulheres de véu voltavam-se para
o meio do ambiente e entre elas haviam três bancos de pedra lisa.
Em um deles, Sia estava sentada, olhando para os chão, para uma pilha de
pedras amontoadas umas sobre as outras. Sua expressão era de contemplação
sem emoção, apenas pela falta do que olhar, como se tivesse visto toda aquela
paisagem durante um ano. Quando eu entrei, porém, a mulher de branco
levantou o rosto e arqueou suas sobrancelhas ao ver o corpo que eu
carregava.
— Essa… Essa é…
— Laura — eu disse.
— Ela está morta? Poxa, chegamos a este ponto então? Que
infelicidade… Eu sinto muito, rapaz, você deve estar sofrendo horrores com
isso.
— Sim — admiti para mim mesmo. — Estou.
— Claro. Venha, sente-se aqui comigo. Você pode deixá-la no chão à
nossa frente.
Caminhei até o meio do jardim e, delicadamente, quase com medo de
despertar Laura de seu sono, deitei seu corpo entre as flores que bloquearam
parte da visão que tinha de seu rosto. Porém, mesmo assim, ainda conseguia
observar seu olho aberto que agora observava as nuvens passando enquanto a
casa flutuava sobre a cidade abandonada.
Sentei-me ao lado de Sia e olhei para frente para evitar olhar o rosto
desfalecido de Laura.
— Como aconteceu, se me permite perguntar?
— Com uma pistola. Ela se matou para se oferecer em meu lugar para a
Casa.
— Não, isso não funciona. É uma pena que ela não soubesse disso.
Suspirei. Aquilo não estava fazendo bem para mim. Recostei no banco e
levantei meu rosto, olhando diretamente para a lua cheia, que parecia maior
do que o comum, como se tivesse sido puxada para mais perto.
— Minha irmã, meu irmão e agora Laura. Por que a Casa está fazendo
isso, Sia? Por que ela simplesmente não me mata logo em vez de me fazer
passar por tudo isto?
— É mais complicado do que isso, rapaz. Se a questão fosse apenas matar
não teríamos que passar por tudo isso, seria um corte rápido e simples. Mas a
Casa não quer matar você. Pelo menos não intencionalmente.
— Mas Frey tinha me dito que ela precisava fazer isso para sobreviver.
— Se Frey for a criança que eu estou pensando, e acredito que sim, ela
sempre vai ver tudo da forma mais triste e pessimista possível. Veja, não é
como se a Casa estivesse precisando fazer isso agora, ela estava bem, ela
estava estável e não precisava de nenhum sacrifício em prol dela.
— Então o que aconteceu? — Não olhava mais para a lua e sim para Sia.
Já ela olhava fixamente para baixo, para Laura, admirando a imagem daquele
rosto baleado.
— Tudo estava inanimado, descansando em silêncio recluso já que não
havia nenhuma situação intensa ocorrendo, mas então tudo isso mudou
quando você entrou. Os pesadelos foram despertados, nós acordamos e a casa
inteira voltou a ficar ativa. E como se isso não bastasse, na hora que você
entrou, outra coisa entrou junto… Algo que está disposto a destruir tudo que
vê pela frente de forma insana e sem piedade.
— Aquela criatura? — Senti um arrepio passando pelo meu corpo ao
dizer isso.
— Ela não é um pesadelo, nem uma visão, nem nada que pertence à Casa.
É algo acima disso tudo e de todas nós, assim como você. Esse monstro não
está apenas te perseguindo, ele está atacando tudo que vive aqui, destruindo a
Casa, devaneio por devaneio, quarto a quarto, sem deixar nada intacto,
apodrecendo tudo com sua escuridão. A Casa está apenas respondendo a essa
ofensiva, mas ela não é capaz de distinguir você deste monstro, e por isso ela
também te machuca, assim como machuca esse monstro. Pense em um vírus,
um agente externo que invadiu o corpo da Casa. O problema é que você
invadiu junto e parece, para este lugar, tão ameaçador quanto esse próprio
monstro. Mas existe, no meio de toda esta triste história, um ponto que nos
traz tranquilidade, que não faz ficarmos tão desesperados assim.
— E qual é? Me diga, por favor, para eu ter um pouco de fé.
— Você. Você é esse ponto.
— Como assim?
— Nós não podemos enfrentar aquilo sozinhas, pois é mais forte do que
qualquer coisa que possamos fazer. Mas aquela criatura é tão real quanto
você e tão mortal quanto você é. Ela pode ser destruída, pode ser derrotada
por alguém como você.
— Você está brincando, não é? — disse, entre risos de nervosismo. —
Você já viu aquela coisa? Eu não tenho nenhuma chance contra aquilo! Os
braços dele são lâminas, Sia, faça-me o favor!
— Então faça os seus braços serem como lâminas também! — Sia estava
erguendo a voz para mim, havia se levantado do banco e olhava para mim de
cima para baixo. — Está na hora de você entender que aqui dentro deste lugar
você é mais forte do que imagina. Os pesadelos se rebaixam a você, eles não
podem te alcançar ou ferir, e pode me considerar sábia, mas não sei nada se
comparado a tudo que você compreende deste lugar. É mais corajoso do que
Thisi, e se deixar as considerações de lado, você é capaz até de respirar perto
de Frey. Você é o único que pode nos salvar, que pode salvar a Casa e assim,
salvar a si mesmo e aos seus entes queridos.
— Sia, eu não consigo nem chegar perto daquele monstro. Quando eu
ouço aquele grito eu perco todas as forças do meu corpo, é como se algo me
perfurasse e eu já estivesse morto.
— Então grite mais alto! — Agora Sia estava sentada novamente,
segurando em minhas mãos e me olhando uma expressão quase de piedade.
— Precisamos que você continue lutando, precisamos que você seja forte e
avance contra isso. É a única forma, entende? Eu não faço ideia de como
você vai fazer isso, mas como eu disse, você é bem mais sábio do que eu
mesma sou e mais corajoso do que todos nós. Você é real.
Enquanto Sia segurava minha mão e discursava, me peguei olhando para
Laura. Não olhava para seu rosto, mas para sua mão. Ela usava o anel que eu
havia lhe dado no dedo anelar, um pequeno e delicado círculo de prata com
cristais formando um triângulo no meio. Eu sabia, embora tivesse carregado
aquele corpo, que aquela não era a Laura real, assim como minha irmã e meu
irmão também não tinham sido mortos de fato por aquela criatura. Mas caso
eu não estivesse disposto a enfrentá-la, isso poderia acontecer de fato. Eu
poderia me perder para sempre na Casa até ela me engolir por inteiro para se
livrar daquele invasor. Como Sia havia deixado bem claro, eu não era apenas
a única salvação dele e de seus pesadelos, mas também era a única salvação
para mim mesmo e para tudo que eu amava.
— Tudo bem — eu disse. — Tudo bem, eu vou tentar enfrentar isso, Sia.
— Mesmo? Meu querido, eu não tenho como lhe agradecer.
— Eu estou fazendo isso por todos nós. Eu quero me salvar e salvar as
pessoas que eu amo.
— E você irá, eu tenho certeza disso.
Levantei do banco e olhei uma última vez para o corpo que estava deitado
no meio das flores. Aquele corpo não era mais Laura, era apenas um artifício,
uma defesa que a própria Casa estava usando para se proteger de mim
mesmo.
— Você pode ir, eu posso ficar velando o corpo se quiser.
— Tudo bem Sia. Você deve ir se proteger, não queremos que esse
monstro te encontre, não é?
— Tudo bem, eu sei me cuidar. Conheço os caminhos da Casa como a
palma de minha mão.
— Justo. Devo continuar meu caminho agora, não é? Sozinho?
— Eu queria muito poder te ajudar a enfrentar isso, meu amigo, mas essa
batalha é sua. Não há nada que eu possa fazer a não ser iluminar seu
caminho.
Sia foi até uma das estátuas que apoiava um lampião de óleo e o
desprendeu de seu gancho, passando-lhe para minha mão.
— Que o caminho venha ao teu encontro. Que o vento sempre sopre às
tuas costas e a chuva caia suave sobre teus campos. E até que voltemos a nos
encontrar, meu amigo, que as deusas te sustentem na palma de suas mãos.
Levantei o lampião alto para iluminar o jardim e seus extremos. No lado
oposto do qual eu havia entrado havia outra porta, fechada. Meu destino.
— Obrigado pelas suas palavras, Sia. Tentarei honrar cada uma delas.
Mas ela não estava mais lá. Sia, assim como o corpo que já fora de Laura,
haviam sumido. Eu me encontrava sozinho no jardim, falando com o vento.
Virei-me novamente para a porta à minha frente e com passos firmes
atravessei a entrada.
Pesadelo Cinco: Confronto

Novamente estava nos corredores, nos salões de madeira podre do


interior úmido da Casa, que agora não estava tão escura graças a luz do
lampião de óleo. O assoalho parecia ranger mais e as paredes pareciam mais
molhadas, com diversas goteiras pelo caminho. Provas de como a Casa estava
sofrendo com aquilo que estava destruindo tudo que existia dentro dela, seu
corpo tremia e suava enquanto ela lutava com todas as suas forças contra os
tumores que eu e aquele monstro éramos dentro dela. Eu só queria sair
daquele lugar, mas a única forma da Casa permitir que eu escapasse era
enfrentando a criatura. Então eu prosseguia, avançava por aquele caminho.
O ponto é que: Não houveram dúvidas, nenhum peso de prós e contras.
Houve apenas uma decisão, uma escolha que me levaria à única trilha que eu
podia caminhar. E eu estava nela.
Após algumas curvas eu vi Thisi. Ela vinha em minha direção, apoiando-
se na parede, se esforçando para continuar de pé. Corri para próximo dela e a
ajudei a se sentar. Seu rosto, iluminado pelo lampião, trazia diversos cortes e
feridas, como se tivesse se deparado com um leão selvagem e lutado contra
ele. O manto branco estava coberto de sangue em diversas partes, rasgado e
perfurado. Uma das pernas tinha uma perfuração profunda na altura da coxa.
— Eu tentei ganhar algum tempo para nós. — Sua voz estava fraca. —
Eu o encontrei e tentei enfrentá-lo pelo menos para te ajudar um pouco.
— Você não deveria ter feito isso, olhe seu estado.
— É, eu sei. — Apesar das dores, ela sorria. — Mas eu não ia deixar
aquele desgraçado acabar com meu lar e ficar sem fazer nada, não é mesmo?
Essa luta é tanto sua quanto nossa, mas você é o único que pode acabá-la.
— E eu irei. Sia falou comigo sobre isso, ela tirou minhas dúvidas sobre
mim mesmo, mas… Eu sinto medo ainda, Thisi. Eu sinto que perdi toda a
esperança de sair desse lugar ao lembrar do que tenho que enfrentar.
— Não, garoto, você não perdeu a esperança. Você ainda nem a
encontrou para perdê-la.
Thisi ria de suas próprias falas, embora eu ficasse confuso com o que ela
queria dizer com isso. Novamente me falava sobre como ainda não havia
encontrado a esperança durante todo aquele percurso, e não sabia o que havia
de engraçado nessas palavras.
— Ele está por perto, garoto — ela disse. — Aquilo está atrás de você,
ele sabe que apenas um de vocês dois vai sair vivo daqui e ele está insano
atrás de te derrotar.
— Você vai sobreviver?
— O que, esses machucados? Isso não é nada, rá! — Embora os sorrisos
e risadas, Thisi parecia estar em extrema dor. — Eu vou aguentar sim, não se
preocupe com isso.
— Certo, então procure um lugar para se proteger. — Peguei o lampião e
levantei, olhando para o caminho à minha frente. — Eu vou atrás dele.
— Bem, você sabe que isso é loucura, não sabe?
— Sei. Mas eu tenho alguma escolha? E depois de tudo que eu vi nesse
lugar, não é de se surpreender que eu esteja um pouco insano no final.
Sorri para Thisi e recebi a mesma expressão alegre vindo dela.
— Boa sorte, rapaz. Que meus punhos sejam seus raios nessa batalha.
— Obrigado. Agora, se esconda.
Virei e prossegui em meu caminho, agora mais motivado ainda. Embora
tenhamos nos visto apenas dentro daquela construção, Thisi e Sia eram
figuras que tinham sido boas para mim nesses momentos, sem contar que me
pareciam extremamente familiares embora nunca tenhamos nos visto antes.
Agora, algo ameaçava a vida delas e eu era a barreira entre a vida e a morte.
Precisava lidar com isso logo.
Mudei minha postura enquanto avançava pela casa. Agora, em cada
esquina me tornava cauteloso ao virar, esperando que a qualquer momento
visse novamente aquela massa escura como a noite sem lua. Quando haviam
portas, abria apenas uma fresta inicialmente e então entrava no ambiente. Não
encontrava mais pesadelos pelo caminho, todos eles pareciam estar
escondidos, como se temessem o assassino em sua residência. Em certos
momentos eu conseguia ouvir, mais perto ou mais distante, um grito de pavor
que era cortado subitamente: mais uma vítima daquele monstro.
Cheguei a uma porta localizada no final de um corredor longo e estreito.
Segurei a maçaneta e a girei lentamente até ouvir o clique que dizia que
estava destrancada. Com o lampião à minha frente, iluminei a fresta aberta e
vi parte de uma cômoda branca e um espelho acima dela. Continuei a abrir a
porta e fui identificando aquele cômodo como um quarto. A luz da lâmpada,
misturada a tonalidade das paredes e dos objetos, fazia o quarto todo
preencher-se com uma iluminação vermelha. Além da cômoda e do espelho,
no outro lado do quarto havia uma escrivaninha também com uma lâmpada
acesa. O chão era coberto por um carpete alto e macio, fazendo com que
meus passos fossem silenciosos. No meio do quarto havia uma cama de casal
alta e larga, com um lençol de seda cobrindo o colchão, onde pétalas de rosas
estavam espalhadas por toda a extensão do leito. Deitado no colchão haviam
dois corpos estáticos, paralisados, sem movimentos.
— Mãe… Pai....
Eles não responderam a minha voz, mas ao me aproximar percebi que
ambos estavam vivos. Minha mãe usava um longo vestido branco com rendas
e desenhos decorados, muito parecido com um vestido de noiva, mas sem
cauda. Já meu pai usava uma calça amarrada por um cordão e uma camisa
branca de algodão. O casal estava descalço e continuava sem reação às
minhas cutucadas e empurrões, tentando acordá-los.
Foi quando tentei levantar a mão do meu pai que percebi que tanto ele
quanto minha mãe estavam acorrentados à madeira do estrado da cama
embaixo do colchão. O outros pulsos deles também estavam acorrentados,
um ao outro, unidos por elos de ferro.
Eu precisava tirá-los de lá de alguma forma, mas não tinha nada em
minhas mãos que pudesse ajudar nesse processo. Sendo assim, fui até a
cômoda e comecei a abrir as gavetas em busca de algo afiado, algum tipo de
serra ou alicate de corte que pudesse arrebentar aqueles elos ou pelo menos
parte do estrado que aprisionava meus pais. Não podia deixá-los daquele
jeito, tão vulneráveis, para que a criatura entrasse e cortasse a vida deles
também. Porém não havia nada dentro daquela cômoda que não fossem
roupas e cobertas.
Então eu ouvi, bem baixo, o som de um rosnado, e parei de fazer qualquer
tipo de movimento. Fiquei em total silêncio e notei que o som era contínuo, e
o pior, estava próximo. Tão próximo quanto poderia estar.
Estava dentro do quarto.
Levantei meu olhar com os movimentos mais lentos e discretos possíveis
em direção ao espelho. No reflexo podia ver todo o quarto da mesma forma
que havia visto segundos antes de me virar para a cômoda. Não havia como
ele ter se escondido ou ter passado despercebido sem que eu visse, mas o
rosnado continuava ali, presente, tenebroso. Então continuei a levantar meu
olhar até que ele chegasse ao teto e minhas dúvidas foram esclarecidas assim
como aquele lampião iluminava o quarto.
Ali, no meio do teto, havia um trecho que, apesar da luz, continuava
negro como um buraco sem fim no teto. Mas o buraco se movia, respirava e
se expandia, uma massa enorme e que estava exatamente sobre a cama de
casal onde meus pais estavam aprisionados. Quase como se espreguiçasse, eu
vi a criatura botar seu rosto e seus braços afiados para fora desta massa,
arqueando-se e estendendo-se por todo o teto, focando seu rosto e mirando
aquelas navalhas para meu pai e minha mãe, cada uma delas.
Eu o vi tomar impulso e nesse momento me virei gritando:
— Não!
Mas ele já havia tombado sobre a cama, e eu ouvi o baque seco das
lâminas atravessando o peito dos meus parentes. Não houve nenhum som
além deste, aquelas espadas cravando sobre a madeira do estrado e quase
chegando ao assoalho macio. Um minuto de silêncio imediato ao falecimento
de dois seres. Minha expressão era travada, com o queixo caído e os olhos
arregalados. Meus pais não chegaram a abrir os olhos, morrendo juntos, da
mesma forma que estavam quando vivos. No sono. Acorrentados um ao outro
em seus devaneios.
A criatura começou a se mover. Em movimentos mecânicos, como um
relógio de ponteiro se movimentando, ela apenas virou a cabeça cercada de
espinhos afiados em minha direção. Olhei dentro de seus olhos negros e sem
fim enquanto ela encarava minha expressão de assombro. Meu corpo se
arrepiou enquanto o dela se eriçava de adrenalina e enquanto meu queixo
continuava caído, a criatura começou a abrir sua bocarra em um sorriso
sádico. O rosnado veio novamente e eu já podia sentir seu grito em meu
coração, apertando-o de forma que fazia meu sangue gelar e parar de correr.
Mas enquanto isso tudo aconteceu, enquanto todo esse medo começava a
surgir novamente ao encontrar com esse demônio, a voz de Sia reverberou
em minha mente, dizendo:
— Grite mais alto.
Eu não queria cair, eu não queria deixar aquilo me derrubar novamente.
Não queria que ferisse meus pais, minha família, as pessoas queridas de
minha vida. Não queria deixar aquilo fugir da Casa após destruí-la para atacar
tudo aquilo que eu amava e que admirava. Chega de cair, chega de perder as
lutas para isso. Se ela ia gritar em minha mente, eu iria gritar mais alto. Antes
que o rosnado do monstro pudesse se tornar algo maior do que isso, eu berrei:
— Aaaaaaaaaaaah!
Em um movimento tão rápido quanto um relâmpago no meio de uma
tempestade, lancei meu braço em um arco em direção à cama. Abri minha
mão e deixei o lampião sair em disparada dela, rumo ao corpo noturno
daquela criatura. O farol encontrou a massa negra e o vidro que protegia a
chama partiu-se em pedaços. O óleo escorreu sobre aquele ser e as chamas se
projetaram onde ele caía. A criatura negra foi coberta imediatamente por uma
coroa de chamas laranjas e agitadas. O grito, no final, veio, mas não alcançou
minha alma, que queimava junto daquelas chamas. Ele foi fraco, de
sofrimento próprio, dor intensa e frustração.
O corpo negro rolou para fora da cama, caindo no lado oposto ao meu,
ainda com as chamas correndo pelo seu corpo. O monstro rolava em
desespero tentando se desvencilhar das chamas e diferente do que eu
esperava, ele não parava, nem parecia estar falecendo.
As chamas, embora dolorosas, não pareciam ser o suficiente para parar
aquele corpo, e começava a perceber que aquele ataque não seria o suficiente
para destruir o meu inimigo.
A criatura começou a se erguer, mesmo beijada pelas chamas ao seu redor
que começavam a se espalhar pelo carpete e que invadiam o lençol da cama
que nos separava. Ela olhou para mim com seus olhos vazios, uma expressão
de raiva em seu rosto e quase sem tomar impulso, a criatura investiu em
minha direção.
Alerta, desviei em direção à porta do quarto, deixando o monstro bater de
frente com o espelho e a cômoda, espalhando o incêndio por todo o quarto.
Agarrei a maçaneta, gritando ao sentir como o ferro queimava minha mão
naquele incêndio e virei, puxando a porta para fechá-la e correndo em direção
ao corredor. Atrás de mim pude ouvir o berro de revolta daquela
monstruosidade correndo em disparada atrás de mim, desengonçada devido
as queimaduras em seu corpo, mas sem hesitar em me alcançar.
Correndo, pude sentir a Casa tremendo e rangendo alto em todo o meu
redor, suas paredes choravam, o teto vibrava e o corredor, como um
organismo vivo, se torcia originando curvas espontâneas à minha frente,
dificultando meu caminho cada vez que o corredor dobrava subitamente para
a direita ou para a esquerda. Partes do teto caíam pelo meu caminho e atrás de
mim. O assoalho rachava e me fazia tropeçar, enquanto atrás a criatura
continuava a me caçar, berrando e rastejando em seus braços e pernas, de
quatro, como um lobo negro correndo atrás de um coelho branco.
Durante a perseguição, ao virar para a esquerda ou direita — tudo parecia
muito confuso — enquanto a Casa se retorcia devido ao incêndio dentro de
seu corpo, uma combustão espontânea que fazia ela sofrer, vi à minha frente
um lugar conhecido naquilo tudo. À minha frente, ao final daquele caminho,
estava novamente a sala de jantar onde o verme enorme se alimentava, só que
agora não havia verme algum, pois provavelmente tinha se escondido da
criatura assim que a pressentiu por perto.
Mas aquilo era uma mesa de jantar que poderia ter qualquer tipo de
talher, garfos ou facas, que eu poderia usar para me defender. Eu poderia
agarrar esses objetos e lançar contra o monstro para que ele não pudesse me
atacar ou até mesmo, quem sabe, enfiar uma das facas dentro dele e assim…
Meu pensamento foi interrompido quando senti o corte em meu
calcanhar. Ele havia me alcançado com uma de suas lâminas, e ela cortara o
tendão que sustentava meu passo, fazendo-me vacilar em minha corrida e cair
no chão, soltando um grito de dor ao chegar na sala de jantar. Embora a dor
fosse lancinante, por medo ou por adrenalina, comecei a me rastejar em
direção à longa mesa ao centro daquele ambiente, deixando um rastro de
sangue atrás de mim, uma trilha para que a criatura me seguisse.
Sem olhar para trás, podia ouvi-la, podia sentir a vibração de quando suas
lâminas perfuravam o chão para que ela se rastejasse mais e mais perto de
mim. Eu não poderia morrer ali, logo ali, tão perto daquela mesa, de uma
faca, de um instrumento que poderia dar fim àquela criatura. Depois de tudo
que havia passado, depois de todas as mortes assistidas, após ver aquele ser
demoníaco dilacerar cada pessoa de minha família, não podia fraquejar tão
perto de uma vitória, mesmo que fosse a mais inviável possível. E assim eu
prosseguia, assim eu avançava em direção às pernas de madeira, ignorando
qualquer dor, ignorando os gritos insanos e delirantes daquela criatura em
busca de sua saída, em busca da destruição de tudo que se vale e de tudo que
se ama.
Eu não podia desistir agora, mas ao mesmo tempo que pensava isso sentia
o chão vibrar mais forte, os gritos ficarem mais intensos, e a cada metro que
eu rastejava sentia que o meu aniquilador se aproximava mais ainda. Aquele
poderia ser o fim, e enquanto a casa se contorcesse e demolisse sobre si
mesma, a criatura degustaria de cada membro meu, deixando o torso e o
coração por fim, as partes que mais apreciaria de ingerir enquanto a casa
destruiria-se sobre sua coroa de espinhos. Talvez isso também a matasse, mas
ela morreria em sua glória, em sua liberdade e supremacia.
Finalmente cheguei até as pernas da mesa e agarrei a toalha branca que a
cobria. Mas então, ao fazer isso, senti o grito ressoar no pé da minha orelha e
me virei de costas para o chão.
Não houve ruído quando a lâmina perfurou meu ombro. Eu não berrei ao
sentir a carne rompendo contra aquele objeto externo, apenas percebi que
aquilo penetrava e atravessava meu ombro, quebrando ossos e dilacerando
carne pelo caminho, até alcançar a madeira abaixo de mim. E estranhamente,
apesar disso, parecia que meu coração havia sido atacado, e não o ombro.
Minha mão, que segurava a toalha de mesa, despencou com o meu braço,
sem que pudesse controlar, sem ação nenhuma sobre eles já que não havia
mais ombro para comandar toda a operação. O punho fechado trouxe a toalha
junto, derramando pratos, taças e talheres ao meu redor enquanto eu olhava
para meu assassino, para os olhos sem fim.
Apenas pelo baque pude sentir quando a outra garra perfurou minha
costela, abaixo do diafragma. Mas novamente, as dores eram todas
concentradas em meu coração e essa agonia me fazia chorar enquanto aquele
ser berrava sem que eu o escutasse. Abaixo de mim a casa inteira tremia,
parecia um verdadeiro terremoto. Era isso, o fim de toda a minha luta, o
desabamento da Casa, a vitória do ser tão negro quanto uma noite sem luar e
sem forma.
Mais um golpe, agora na lateral de minha barriga, e o coração apertava
mais ainda, causando mais dores e mais lágrimas. Será que pelo menos meus
parentes, ou quem sabe apenas Laura, conseguiriam sair antes que tudo
ruísse? Eu poderia ser a única vítima disso tudo, se todas aquelas mortes
fossem ilusões proporcionadas pelo sistema de defesa da própria Casa. Quem
sabe eles nunca nem tivessem entrado na Casa? Isso tudo poderia ser um
sonho de fato, daqueles em que você quase morre, mas acorda antes que o
fatal ocorra. Eu estava morrendo por dentro, mas ainda assim não acordava.
Eu ainda estava ali.
Um golpe mais próximo do coração, no pulmão direito, fez com que eu
abrisse a boca para gritar sem voz e virasse a cabeça para o lado. E ali, bem
ao meu lado, havia uma faca de prata cravada no chão. Enquanto olhava para
o objeto, mais um ataque perfurou minha coxa, embora a dor fosse
transmitida para o lado esquerdo do meu peito. Meu coração deveria estar
sangrando por dentro.
Não havia mais vitória, mas aquela faca ainda se mantinha reta e brilhante
aos meus olhos, como uma bandeira que anunciasse pelo menos um empate
naquela situação toda. Eu não sairia vivo dali, mas poderia levá-la junto,
poderia acabar com a criatura assim como ela estava acabando comigo em
cada um daqueles golpes que acertavam meu corpo mas doíam no peito.
Com o braço que ainda respondia minhas ordens, estendi minha mão e
agarrei a faca. Usando a força que ainda me restava, retirei a ponta da
madeira e virei-me para a criatura. Se eu fosse fazer isso, não poderia pensar
em segundas chances, precisaria fazer de primeira.
Eu olhei quando ela se arqueou para atingir, agora por definitivo, meu
coração. Ouvi seu grito, e por um mísero segundo pude ouvir algo inteligível
naquele grunhido. Era uma voz, um vocal quase que familiar que, atrás de
toda aquela dor, aquele desespero e terror, gritava:
— Socorro.
Quando ela desceu, pronta para atingir meu peito, ergui meu braço e senti
o choque quando o crânio da criatura encontrou com a lâmina da faca,
cravada até a base na testa dela.
A garra do monstro parou antes que pudesse penetrar meu corpo e a
massa inteira pareceu travar ao ser atingida. Seus olhos abertos não
expressavam mais ódio, mas uma tremenda surpresa, arregalados, com a boca
semiaberta. Então houve um clique, um estalido, e da boca da criatura uma
gosma negra começou a cair violentamente sobre meu rosto e meu corpo,
cobrindo-me com aquela pasta escura. A casa tinha parado de tremer.
Sem forças, não consegui evitar que aquele líquido me cobrisse e
envolvesse meu corpo. Fechei os olhos e senti o frio daquela substância
correr por entre meus braços, entrando em meus ferimentos e me
preenchendo. E dentro de minha mente, eu reconhecia aquela voz que entre
os gritos pedia socorro. Em minha mente eu sabia a quem aquela voz
pertencia. Ela pertencia a um adolescente, que em meio aos gritos, buscava
alguma ajuda, alguém que pudesse salvá-lo de tudo aquilo que o rodeava. Um
adolescente que se sentia pressionado por tudo e por todos ao seu redor, que
sentia que toda sua vida estava sobre o controle dos outros e escorria pelos
dedos dele sem que pudesse fazer nada contra isso. Aquela voz era de um
adolescente que eu conhecia muito bem. Aquela voz era a minha.
E agora havia silêncio.
Visão Seis: Encontrar

Não sentia dores e nada se ouvia ou via. Nem mesmo minha própria
respiração podia sentir, isso se eu ainda estava respirando. O único
sentimento era uma paz advinda da conclusão, do encerramento daquele
momento e de todos os que houveram antes. Era a gratificação de fazer o que
se devia fazer e que, apesar dos estados finais, algumas pessoas ainda sairiam
de lá, mesmo que não estivesse junto a elas.
Havia apenas um sorriso.
Mas então, subitamente, houve algo a mais. Algo surpreendente da
posição na qual eu estava, que não esperava ou que não acreditava ser
possível naquela situação. Incompreensível, esse algo a mais se manifestou
claramente e ignorando qualquer fé que eu pudesse ter.
Esse algo a mais era uma voz, doce, serena, feminina e simples que dizia:
— Vamos lá então. Levante.
O sorriso sumiu do rosto, e com alguma força que acreditei não possuir
mais, arqueei uma sobrancelha. Não sabendo como, lentamente abri frestas
mínimas das minhas pálpebras. Acima de mim não existiam nuvens do
paraíso ou os vulcões de um possível inferno. Apenas um teto de madeira, do
qual pendia um lustre de cristais. Abaixo deste lustre, mais próximo de meu
rosto, havia outra face, com dois olhos, boca, nariz, enfim, humana como a
minha. Uma jovem, de cabelos curtos até o pescoço cortados acima dos
ombros, olhava para mim com um meigo sorriso em seu semblante.
— O quê? — Foi o som que soltei através de minha garganta, por meio
de meus lábios, usando minha voz fraca e rouca, como que desperto de um
sono profundo de madrugada. Me assustei com a existência da minha própria
voz.
— Vamos lá. — A jovem olhava para mim de forma irônica, brincalhona.
— Você nem mesmo está machucado. — Não estava? — Pode checar.
E então ela se afastou, e quando ela saiu de minha visão, comecei a sentir.
Não havia dores, mas havia um corpo, e o tato despertava de seus extremos
até o centro. Como um formigamento, senti meus braços e pernas
despertarem, extremamente leves, como se um peso enorme tivesse sido
retirado deles. Com minhas mãos comecei a verificar meu tórax, coxa,
barriga e outras partes. Sem ferimentos, sem perfurações a não ser os rasgos
nas roupas. Meu corpo estava intacto.
Eu só poderia estar morto.
Levantei-me e fiquei sentado no chão, olhando agora para uma porta
aberta à minha frente que dava para um corredor extenso. As cores eram
negras, tons de verde musgo junto com marrons de madeiras. Era a mesma
Casa, o mesmo local.
— O que aconteceu? — Minha boca ainda parecia dormente e dessa vez
senti um leve arranhão em minha garganta, um pigarro profundo.
— Bem, acho que você ganhou, não é? — A voz dela vinha direto de trás
de mim, e ao me virar olhei a jovem sentada em uma cadeira de madeira ao
lado de uma larga mesa de tampo fino. Uma toalha de mesa branca longa
estava ao chão, abaixo da estrutura longilínea.
Levantei-me mais rápido do que esperava, usando mais força do que o
necessário nas pernas. Meus ombros pareciam leves, os braços pareciam
levitar do busto, os pés não faziam esforço para sustentar o resto do corpo.
Aquela leveza me era estranha, supus que fosse algo mórbido. Afinal, a única
resposta para estar de pé ali, ao meu ver, era que havia desencarnado.
— Eu morri? — perguntei para a jovem, esperando que ela tivesse uma
resposta. Dela, porém, ouvi uma risada larga.
— Morto? Não, não, muito pelo contrário! Talvez você esteja mais vivo
do que há muitos anos.
— Mas… Aquilo… Aquilo tinha me assassinado, ele tinha destruído o
meu corpo.
— Olha, pelo que eu estou vendo, você está de pé e vivo. E não sobrou
uma gota daquela outra coisa para contar história. Mas até eu mesma fiquei
com dúvidas se você ia voltar à vida.
— Você viu tudo?
— Eu estava torcendo. Por você, claro.
Olhei para o lugar do qual tinha levantado. Nenhuma marca de
perfuração, nenhuma tábua quebrada e nem gosmas negras pelo chão. Ao
lado do local, uma faca de prata estava cravada no chão. Embora tudo
parecesse não ter acontecido, as imagens estavam claras em minha mente: o
rastejar até a mesa, o confronto com a criatura, cada um dos ataques
infligidos ao meu corpo, o único golpe mortal dado em sua testa. Eu
lembrava até da voz juvenil que clamava por socorro em meio a tudo aquilo.
— O que era aquilo? — Olhando para a jovem, apontei para o local do
confronto. — O que era aquele monstro?
— Aquilo… — A jovem parecia ter dificuldades para explicar. — Bem,
acho que você já sabe, não é? Era você.
— Como assim?
— Ou pelo menos uma faceta de você. Um dos seus perfis, ou algo assim.
Mas era você mesmo.
— Não, isso não é possível. — Minha cabeça doía, embora o corpo
continuasse leve. — Aquilo, aquela coisa, queria me machucar!
— Ora, e quantas vezes você mesmo não quis se machucar?
— Aquilo ia me matar!
— E quantas vezes você mesmo não quis fazer isso? — A jovem parecia
desacreditar das minhas perguntas, como se tudo aquilo fosse óbvio. —
Olha… Senta aqui, deixa eu explicar as coisas para você.
Puxando uma cadeira próxima, virei para ficar frente a frente com ela. A
jovem começou a descrever para mim tudo o que ocorria e enquanto fazia
isso procurava gesticular o máximo possível, acrescentando nuances a sua
fala. Isso foi o que ela me contou:
— Essa casa, esse lugar, é você. No momento que você entrou na Casa,
ela se tornou você, é isso que ela faz. Os corredores e quartos se contorceram
e remodelaram-se à figura de sua mente. Os pesadelos se transformaram e
tornaram-se os seus próprios pesadelos. Durante todo este tempo você esteve
dentro de sua própria cabeça, lidando com todos os terrores que existem
dentro dela. Correndo, fugindo ou enfrentando-os, você viu os cantos mais
obscuros do seu consciente aqui dentro. É isso que a Casa revela para aqueles
que decidem se aventurar em seu interior.
“E ela não faz isso com quem ela quer. Houve um chamado, um chamado
feito por você mesmo. A escolha que você nem percebeu ter feito lhe trouxe
aqui. A Casa acolhe para dentro de si aqueles que estão prestes a perder tudo
que lhes é querido, importante, devido a eles mesmos. Crises, momentos de
dúvida, medos, desesperos, são chamados para que a Casa tome alguém para
si. Foi assim que você veio parar aqui.
“E aqui dentro, a Casa faz com que você lide com tudo que precisa para
seguir adiante e para salvar tudo aquilo que lhe importa. Ela faz você
enfrentar tudo que você precisar enfrentar, mas nada disso é criado de forma
externa. Todos os pesadelos, todos os corredores, são produtos do seu próprio
psicológico. Essa mesa, a cadeira na qual você está sentado, o lustre acima de
nós. Tudo isso vem do mesmo lugar: de você.
“Mas e quanto a mim? Enquanto as outras que você deve ter encontrado
que não eram pesadelos? E quanto a esse monstro que te perseguiu até o
último segundo? Isso tudo também é parte de sua mente, mas diferente dos
pesadelos, que são projeções do que existe dentro de você, nós somos você de
fato. Facetas diferentes de um mesmo objeto, como um prisma separado em
partes. Provavelmente cada uma das suas guias tinha uma característica mais
realçada, como coragem, sabedoria ou até mesmo tristeza. Cada uma de nós
foi uma parte do seu ser lhe ajudando na jornada, a continuar nesse caminho.
Mas entre todas nós havia aquela criatura, que nada mais era do que a sua
visão de si mesmo como algo repulsivo, intragável e incômodo. Você se
projetou dentro daquele monstro desde sua adolescência, negativando-se,
isolando a si mesmo e afastando as pessoas, considerando a sua imagem
como algo repugnante, falho e defeituoso. E isso se tornou tão grande que
começou a consumir todo o resto. O monstro estava tentando destruir tudo e
todos dentro desta Casa não porque ele queria escapar, mas porque ele odiava
a si mesmo e queria acabar com tudo. E ele quase conseguiu, se você não o
tivesse enfrentado. ”
— Creio que é isso. — A jovem estava sem ar, ofegante, depois das mais
diversas gesticulações. — Espero que tenha ficado mais claro.
Era complexo dizer o que se passava em minha mente naquele momento.
Um misto de uma confusão maior com uma abrangência mais clara de tudo
circulava e não me trazia respostas.
A Casa era minha mente. Os pesadelos eram meus, produtos de tudo que
havia aqui dentro. As guias, Thisi, Sia, Frey e aquela menina, eram facetas da
minha própria personalidade. E até mesmo aquele monstro era uma
representação da minha personalidade. Mas eu o havia derrotado, havia
cortado essa imagem de mim depois de enfrentar meus pesadelos, depois de
Thisi e Sia me trazerem coragem e sabedoria, depois de ver Frey, minha
própria tristeza, ser digerida por aquela criatura. Depois de todos esses
desafios e dores, depois de ver e lidar com todas essas dificuldades, eu pude
dar um fim para a imagem que me envolveu desde a adolescência.
— Mas.. E agora? — Era a única questão que me rodeava. — Eu
enfrentei isso. O que acontece agora?
— Agora? Bem, agora você vai embora. — A menina sorria e ria, de pé,
pulava de animação. — Você conseguiu fazer o que a Casa queria, você se
tornou forte o suficiente aqui dentro para enfrentar o monstro que vivia
dentro de sua cabeça. A Casa está te dando alta, te devolvendo tudo que lhe é
querido e importante. Sua família está viva e bem, assim como Laura, todos
esperando-lhe lá, do lado de fora.
— Então… Está tudo salvo?
— Sim. Você se salvou.
— Entendo.
— Você pode ir embora agora. Eu não deveria ajudar, assim como as
outras… Mas eu não me aguento: É só você pegar a porta à esquerda e ir reto.
A jovem sorria para mim, um sorriso aberto e orgulhoso, como se tivesse
concluído uma jornada na qual ela tinha torcido durante todo o tempo. Não
pude evitar de sorrir de volta para ela. O primeiro sorriso que havia dado
dentro da Casa. O primeiro de verdade que dava há anos.
Comecei a andar em direção à porta da esquerda, corrigindo minha
postura, de peito aberto, com passos mais confiantes e leves, respirando com
uma plenitude maior, sentindo cada corrente de ar que entrava em meus
pulmões. Antes de abrir a porta e passar para o outro lado, virei-me
novamente para a jovem. Ela olhava para mim ansiosa, tremendo de euforia,
ainda com o sorriso extenso no rosto.
— Thisi era minha coragem — disse. — Sia, minha sabedoria, minha
racionalidade. Frey representava minha tristeza e melancolia. E você? Depois
de tudo, o que sobrou para eu encontrar depois de enfrentar aquilo?
Ouvindo minha questão, ela deu uma risada tímida e percebi a maçãs de
seu rosto ficarem rosadas. Então ela disse:
— A Esperança.
Olhando para seu sorriso, retribuí um sorriso maior ainda para Esperança.
Após anos, eu estava novamente de encontro com ela.
— Eu estava com saudades.
— Eu também — ela respondeu. — Agora vá! Existe um mundo inteiro
te esperando lá fora! Eu vou continuar aqui, com você.
Balancei positivamente a cabeça como resposta. Voltando-me à porta,
rodei a maçaneta redonda e passei para o quarto seguinte.
No cômodo seguinte, havia um espelho.
Eu sabia onde estava.
Visão Sete: O Outro Lado do Espelho

Era irônico observar aquela minha visão, trêmula e fragilizada, do outro


lado da sala. Eu acabara de ser vítima de uma ilusão provocada pela Casa,
acreditava que estava prestes a fugir daquele pesadelo que na verdade só
estava começando. E agora, entrando naquela sala, me deparava com esse
enorme espelho que cobria a parede inteira.
Mas aqui, do outro lado do reflexo, compreendia que nada disso era
verdade. Observando a minha imagem do passado, sabia que ela estava
prestes a entrar em uma jornada intensa na qual sua mente seria levada ao
máximo, onde sua vida ficaria por um fio. Queria avisá-lo, queria alertá-lo
sobre todos esses perigos. Minha vontade era de descrever a ele cada um dos
pesadelos que enfrentaria e como deveria responder aos ataques do monstro
que era ele mesmo. Do outro lado do espelho, desejava transmitir uma
mensagem qualquer que pudesse ajudá-lo nessa jornada, para que não
sofresse o tanto que eu tinha sofrido em todo o percalço.
Mas deveria? Enquanto me aproximava dele de forma semelhante a qual
ele se aproximava de seu reflexo, questionava se uma jornada diferente teria
me trazido as mesmas conclusões que havia tido na sala anterior, junto a
Esperança. Será que um caminho orientado, guiado, teria me feito sofrer
menos? Eu poderia falar tudo para meu eu do passado, mas a Casa toda
poderia se modificar e apresentar outros pesadelos, outras ilusões. Talvez não
adiantasse nada, talvez o caminho deveria doer do jeito que doeu em mim.
Todo o sofrimento me fez mais forte, com o tempo pude enfrentar meus
pesadelos, trilhar meu caminho nos corredores escuros e até vencer a minha
própria depreciação. Não, eu não deveria entregar nenhum aviso assim como
não recebi nenhum sinal quando passei pela primeira vez nesse cômodo.
Como minhas outras facetas haviam me dito tantas vezes, quem orientou o
caminho durante todo esse período foi eu mesmo e assim deveria ser. Se ele
fosse sofrer, sofreria por suas próprias escolhas.
Mas, embora esta conclusão sombria, olhava para meu igual com um
sorriso no rosto. Sabia que, embora a jornada fosse pesada, sombria,
frustrante e desesperadora, no final ele iria sobreviver, encontrar Esperança e
estaria exatamente no mesmo lugar em que me encontro agora,
provavelmente olhando para uma versão sua do passado através de outro
ângulo. Acima de tudo aprendido durante a jornada, creio que a mudança de
ângulo tenha sido uma das lições mais importantes. A Casa mudava a mínima
variação de luz, a menor das mudanças emocionais dentro de mim. Poderia
ser isto que a Casa tentava apontar para mim ali naquela sala, mas não sabia
dizer.
Enquanto imitava os gestos de meu antecedente, sentia em minha roupa
todos os rasgos e furos conquistados durante a caminhada. Reconhecia o
tecido queimado pelo incendiário, os rasgos de tantos tropeços e esbarrões
nas paredes e cada um dos furos que meu monstro deixou na roupa.
Meu reflexo então moveu a mão até o ombro, onde, no meu lado e em
meu manto, havia um furo no buraco do tecido, e no dele não. Aquele era o
sinal, nosso breve encontro terminava ali. Embora inaudível para ele, deixei
escapar apenas duas palavras:
— Boa sorte.
Dei meia volta e corri em direção à porta do meu lado do cômodo. Ao
abri-la, não era mais o salão que existia no outro lado, mas um extenso
corredor, o que não me foi surpresa, pois não precisava mais temer cada
esquina de minha mente. Corri enquanto ouvia a voz atrás de mim, pedindo
para que eu parasse, mas não segui tal ordem. Continuei hábil e especialista
nas curvas daquele corredor, e sentia que tinha o mapa de toda a Casa dentro
da minha cabeça esse tempo todo, como soubesse exatamente onde virar,
onde acelerar o passo. Os corredores eram claros para mim, desta vez.
Chegando ao longo corredor final daquela perseguição, sabia o que
esperava meu passado atrás daquela porta, que ele teria o mesmo choque que
tive no primeiro encontro com minha própria monstruosidade, mas ao olhar
para frente reparei que, antes da porta, havia uma abertura à direita do
corredor, um caminho o qual eu não tinha percebido na minha primeira visita
àquele lugar. Novamente, a questão do ângulo e da perspectiva da visão do
todo.
Virei entrando nesta abertura e me deparei com uma porta de madeira
depois de um corredor curto. Consultando minha memória, eu sabia o que me
esperava do outro lado da passagem, e me permiti um sorriso cansado após a
corrida. Passei pela porta.
Estava, como esperava, dentro da sala de livros e da lareira acesa e
reconfortante. Mas não estava sozinho no recinto, pois Sia, Thisi, Frey e
Esperança encontravam-se sentadas em poltronas, formando um semicírculo
de frente à porta que havia atravessado. Todas olhavam para mim com
sorrisos orgulhosos em seus rostos e eu retribuía com um tão grande quanto.
— Olá — disse.
— Bem-vindo, vencedor. — Sia parecia confortável e extremamente
orgulhosa ao olhar para mim, como se visse um herói.
— Parece que estamos em mais uma reunião de família, não é mesmo,
irmãs? — Thisi estendia suas pernas apoiadas sobre um banco à frente de sua
poltrona vermelha como as outras. — Ou algo parecido com isso. Você não
teve o prazer de conhecê-la por aqui, mas tenho certeza que logo mais Paixão
vai retornar à Casa também.
— Mas sem planos para o nosso futuro dessa vez. — Até mesmo Frey
permitiu-se sorrir, mesmo representando o meu aspecto mais sombrio e triste,
e tal contraste me deixava mais empolgado, pois via que por trás da tristeza
existia, na verdade, alegria. Atrás de mim, pude ouvir passos de um antigo eu
passando reto pelo corredor, sem perceber a abertura à direita. Ouvi os
rangeres da casa se contorcendo para que ele continuasse sua jornada por esse
labirinto.
— Ele vai ficar bem?
— Tão bem quanto você, eu diria. — Esperança levantava-se e
inesperadamente vinha ao meu encontro, me abraçando de forma confortável,
roubando de mim uma risada leve.
— A sala está se movendo — disse Sia. — Logo você vai estar a caminho
de sua Casa, de sua realidade.
— E quanto ao resto? Os móveis do meu apartamento, Laura e meus
parentes?
— Tudo estará de volta ao normal. Na verdade tudo esteve no mesmo
lugar de sempre. O que mudou foi você.
Enquanto a Casa rangia e torcia, pensava nas palavras de Sia.
— Sim, você tem razão. Quando eu me olhei, quando olhei aquela
imagem de mim mesmo, havia diferenças entre nós. Não só físicas. Era como
se eu pudesse olhar dentro dele e pudesse enxergar tudo aquilo que sentia
sobre mim mesmo.
— Essa jornada, a Casa, faz exatamente isso com você: ela te transforma.
— Esperança olhava para mim e acariciava meu rosto gentilmente, um afago
quente e confortável depois de tanto sofrer. — Apesar das dores e obstáculos,
você está saindo daqui como alguém mais forte, mais capaz de aguentar as
coisas e, acima disso, você está saindo daqui pronto para o que veio buscar.
Sua casa, seu trabalho, estudos, família e até mesmo Laura.
A Casa parou de ranger com um som de clique ao final, informando que
havia concluído sua transformação. Esperança continuou:
— Tudo isso está atrás dessa porta. Você derrotou o inferno em sua
própria mente, meu querido guerreiro. Agora é hora de colher os céus.
Olhei uma última vez para cada um daqueles seres, olhando assim para
cada uma das minhas facetas. Olhei para o sorriso que Thisi dava, aberto,
firme, austero e orgulhoso. Olhei para minha própria tristeza encarnada por
Frey e vi que agora era pura alegria, e embora estivesse lá, eu podia agora
respirar perto dela, sua presença não me era mais fatal. Olhei para Sia, que
tranquilamente e de modo relaxado retribuiu meu olhar, com a consciência de
que estava saindo daquela sala um ser diferente daquele que ele encontrara
antes, afobado, desesperado e perdido.
E por fim olhei nos olhos de Esperança, que prometia vagamente para
mim mil felicitações sem nenhuma segurança ao certo. Mas dentro de mim
podia senti-la mais forte do que todos os outros, acima de qualquer virtude.
Uma chama que timidamente havia se escondido na escuridão que me
envolveu por anos e que, agora, queimava como sóis dentro de mim.
— Obrigado — eu disse a todas.
— Não. Nós que lhe agradecemos — respondeu Sia.
Virei-me e, com passos calmos, abri a porta e atravessei a passagem.
Visão Oito: Porta de Saída

Era como se estivesse no fim de um espetáculo, por trás das cortinas, nos
bastidores, enquanto os atores começam a retirar as perucas e vestimentas e
vão para seus camarins. Passei pelos corredores e múltiplos salões e andares
da Casa e o que vi foi uma multidão de seres, dos mais diversos moldes e das
mais diversas cores. Passavam por mim como se estivessem apressados em
chegar nos seus destinos, exaustos e sem paciência. Alguns eram minúsculos
e precisava tomar cuidado para não pisar neles, enquanto outros eram
enormes e ocupavam o espaço de um corredor completo. Os pesadelos
estavam indo para seus cômodos. O espetáculo havia acabado e eles estavam,
por fim, dispensados de seus postos.
Enquanto eu caminhava, conseguia reconhecer muitos deles. Alguns eram
pesadelos comuns, como vultos sem rostos e cabeças sem corpos; alguns
eram manifestações amórficas de colorações e texturas enquanto outros eram
aberrações dignas de contos de terror para crianças. Havia, falando nisso,
pesadelos de minha infância, criaturas de desenhos animados desfiguradas,
velhos adversários de escola, e até manifestações indescritíveis dos sonhos de
queda, de vontade ir ao banheiro, de corpo queimado e tantos outros
estímulos corporais que ocorrem durante o sono.
Reconheci pesadelos como o trio de incendiários que adentravam a um
quarto com sua chama apagada e vi, no meio da multidão, uma mulher
grávida com dois berços, um negro e um branco, ambos vazios. As narrativas
haviam se dado por fim e não eram mais necessárias, assim tais alegorias se
desvaneciam enquanto a Casa se movimentava de volta à realidade.
Algo que não percebi durante toda a viagem, ou que não tive o prazer de
encontrar pelo caminho, foram os sonhos. Agora eles também se
organizavam aos montes, indo desde figuras humanas extremamente belas até
criaturas que transpiravam felicidade, conforto, saudades que por fim seriam
passado e outros sentimentos bons. Exalavam aromas doces ao passar por
perto de mim e seus carinhos e gracejos demonstravam gratidão. Creio que,
entre tanta escuridão, os próprios sonhos recuaram com medo de serem
engolfados pelo breu e pela noite eterna, mas agora a Casa estava a salvo e
eles sentiam-se livres para sair e ambientá-la novamente. Sentia que iria
voltar a sonhar mais nas noites seguintes.
Quanto mais prosseguia, menos manifestações de sonhos e pesadelos
apareciam enquanto todos se metiam em seus dormitórios e recintos. Os
corredores e as salas se tornavam mais factíveis, de alguma forma mais
tangíveis e semelhantes ao real. Em certo momento me encontrei sozinho e
em silêncio. A Casa dormia, finalmente, após uma longa madrugada de
pesadelos assustados, sonhos reclusos e a escuridão assassina.
Continuei meu caminho ouvindo apenas o som na madeira dura e sem
falhas do assoalho que emitia um grave sonoro a cada passo que eu dava. Não
houve medo em nenhum momento da caminhada, nem mesmo quando os
próprios pesadelos passavam ao meu lado.
Mas agora, próximo ao fim, sentia uma sensação estranha na minha
barriga. Um arrepio pelo meu corpo, um medo do que viria a seguir. A
felicidade era prometida, mas até mesmo a própria felicidade era por si
assustadora. Eu não sabia se estava preparado para crer em tudo de positivo
que poderia acontecer de agora em diante. As coisas ruins eram esperadas,
mas as boas seriam fruto daquela jornada? E se isso tudo acabasse ao sair da
Casa?
Mas quando essas questões vieram à minha cabeça, automaticamente
lembrei-me do sorriso da Esperança e de suas palavras. Fosse o que estivesse
além daquelas paredes, eu estaria pronto para receber e lidar com a situação.
Eu não era mais aquele que havia entrado na casa.
Ao final do corredor, virei à esquerda e me encontrei de frente com
aquela primeira porta que havia passado para entrar na Casa. Estava no
primeiro cômodo que tinha entrado, do qual me perdi no labirinto de minha
própria mente. Ao fim, a porta possuía uma vidraça ao meio e a luz da manhã
irradiava através dela. Senti aqueles raios chegarem ao meu peito e me enchi
com aquela sensação térmica, aquecido por um sol que não entrava em meu
plexo fazia anos.
Em passos de um homem leve e sem escuridão em seu ser, eu caminhei
até a porta da frente. Respirando calma e tranquilamente, ergui meu braço até
a maçaneta redonda, que pareceu deslizar pelo feixe. Abri a porta de saída
confiante de que um dia iria nascer e que as coisas seriam diferentes a partir
dali. Sentindo a brisa do vento e o canto de pássaros do bosque, me permiti
sorrir alegremente.
E então, eu saí.
Epílogo: Temet Nosce

Quando abri a porta, me deparei com ela. Usava um vestido longo, até
os pés, de cor bege, assim como o chapéu grande que cobria seus cabelos
rosados. Quando olhou para mim, seus olhos eram de um vermelho claro
como morango. Carregava uma mala junto ao seu corpo.
— Oh, você já está indo?
Me peguei surpreso pela beleza daquele ser e de sua voz.
Automaticamente me senti encantado pelo seu rosto, sua postura, seu cheiro,
sua voz, por tudo.
— Sim — disse. — Você mora aqui?
— Moro. Bem, quer dizer, alguns anos atrás eu fui embora, mas senti que
era hora de voltar. Pelo jeito as coisas não estão tão bagunçadas quanto
estavam antes.
— Quem é você?
— Eu? Eu sou Paixão.
Meu rosto corou ao ouvir o nome. Era por isso que estava tão encantado.
— Eu conheci suas irmãs lá dentro.
— Jura? E como elas estão?
— Não estavam tão bem no começo, mas acho que agora estão melhores.
Me disseram que você estava voltando.
— Bem, aqui estou eu. — Quando ela sorriu, não resisti e sorri de volta
na hora.
— Por que você chegou a ir embora?
— Eu estava desiludida. Sentia que jamais encontraria alguém e que
nunca seria capaz de ser feliz. Por isso fui embora e passei esses anos fora,
morando de casa em casa, buscando algum lugar que me acolhesse e onde
não me sentisse triste.
— E deu certo?
—Durante um tempo sim. Mas parecia que sempre faltava algo. E de fato,
faltava.
— O quê?
— Eu mesma. Percebi que para que pudesse ser feliz em qualquer outro
lugar, precisava fazer as pazes comigo mesma. Antigamente eu buscava o
Amor e ele nunca vinha. Mas no final acabei encontrando-o no lugar mais
óbvio de todos: aquele do qual eu tinha ido embora. E hoje tenho essa coisa
dentro de mim que ainda não sei bem como chamar…
— Amor próprio — disse, sorrindo.
— Hm, acho que pode ser. Esse é um belo nome para esse sentimento. —
Paixão deu uma batidinha na mala na lateral do seu corpo. — Decidi trazê-lo
para mostrar para minhas irmãs e voltar para meu lar. Você quer dar uma
olhada?
— Sim.
Então Paixão ergueu sua mala e abriu, revelando seu interior. Dentro, não
havia roupas, perfumes e nenhum tipo de pertence. Havia apenas uma coisa,
que deduzi ser o amor próprio.
Era um espelho, e nele, meu rosto se refletia, sorrindo.
— É lindo — disse.
— Não é? Estou ansiosa para mostrar para elas.
— Bem, eu não vou te prender mais então. Creio que você conheça os
caminhos aí dentro, não é? É uma casa bem grande.
— Tudo bem. Faz tempo que não passo por aqui, mas acho que ainda
posso lidar com as coisas.
— Boa sorte então e tenha um bom dia.
— Você também, meu rapaz.
“Meu rapaz”, foi o que ela disse. Exatamente como minha mãe me
chamava, da forma mais carinhosa e amável possível.
Trocamos sorrisos antes que ela fechasse a porta da Casa. Quando virei,
percebi que as flores do quintal tinham voltado a florescer.

***

Por trás do bosque, o nascer-do-sol lançava sua luz sobre a copa das
árvores e nas telhas brancas da Casa. O vento suave corria pelo meu rosto e
trazia consigo o aroma dos pinheirais e das flores escondidas na mata e no
quintal. Pássaros despertavam junto ao dia e ao longe eu podia ouvir até
mesmo o som de carros cruzando a estrada que ia em direção à minha cidade.
O Homem de Branco estava esperando após as cercas do jardim,
encostado em seu carro branco. Ele sorria sem mostrar os dentes, e eu retribuí
com um sorriso aberto, indo em direção a ele.
— Diga-me: Sia era a sabedoria; Thisi, a coragem; Frey, a alegria e a
tristeza; e por fim, Esperança e Paixão. Quem é você?
Ele respirou fundo antes de responder. Sua voz grave e encorpada agora
possuía uma tom alegre, amigável.
— Eu sou a Escolha — ele respondeu, e eu não pude evitar de soltar uma
gargalhada.
— Claro, o que mais?
Escolha abriu a porta, e eu entrei cheio de energia dentro do veículo.
Fechando a porta, ele contornou o carro, entrando e sentando no assento do
motorista. O homem também parecia animado, e batucava o volante enquanto
ligava o motor.
— E então? Para onde vamos?
— Para onde? Eu não sei… — Então olhei para frente, através do vidro
do carro, para o dia que nascia, ensolarado. Um bando de pássaros saiu do
meio dos pinheiros e voou em círculos e outros movimentos. Queria contar
aquilo para alguém, queria contar sobre toda minha vida para as pessoas que
a ela faziam parte.
— Veja — eu disse, finalmente. — Está um dia lindo. Que tal fazer
algumas visitas antes de ir para casa?
— Pois vamos, então. Familiares ou amigos primeiro?
— Me surpreenda. Te dou o dom de decidir.
O homem sorriu para mim e ambos rimos. Escolha pisou no acelerador e
o carro começou a andar em direção à ladeira para descer aquele penhasco, de
volta à realidade.

***

Durante o dia, Escolha me levou para diversas casas diferentes. Visitei


primeiro meus pais e meus irmãos, comendo e conversando com cada um
deles sobre assuntos os quais há muito não falávamos. Minha mãe foi repleta
de nostalgia ao vermos álbuns de fotos antigas enquanto com meus irmãos fiz
coisas que nos eram comuns antigamente, mas não tanto agora, como assistir
a um filme e almoçar juntos em algum restaurante.
Enquanto fazíamos as visitas, meu celular me foi devolvido e através dos
grupos consegui reunir meus amigos mais próximos para encontros
emergenciais. Brincando, diziam que eu estava para morrer e queria ver a
todos antes que o dia acabasse e eu caísse duro no chão. Mal sabiam que eu
me encontrava mais vivo do que nunca. Bebemos, comemos, rimos e
compartilhamos nossas histórias, nossos momentos. Meus amigos ficaram
surpresos com o quanto não sabiam sobre mim, pois não costumava falar do
meu passado. Também fiquei admirado com o quanto descobri sobre eles em
apenas uma tarde quente de verão.
Ao pôr-do-sol, demos por fim nosso encontro e pedi para que Escolha me
levasse a um último lugar antes da minha casa: o apartamento de Laura.
Fui recebido por ela de forma paciente, porém cautelosa. Ela ainda estava
afetada por meu comportamento daquela noite, onde eu quase a perdi.
Sentamos no sofá da sala da casa dela e começamos a conversar sobre meu
comportamento. Naquele momento, tomei a decisão de começar a buscar uma
ajuda externa, alguém especializado que pudesse me ajudar a lidar com
aquelas crises e que pudesse me orientar para tratar tais síndromes. Laura
concordou e apoiou minha ideia. Nos beijamos e declaramos amor um ao
outro. Ela estava viva comigo naquele momento, e estávamos juntos.
Laura decidiu me acompanhar para casa, e ao sairmos do prédio dela,
Escolha não mais me aguardava. Não me magoei e nem reclamei, pois minha
casa não estava a muitos metros dali. A noite já iluminava a cidade com suas
estrelas e a lua no céu. De certa forma, aquela noite parecia mais clara do que
as anteriores. Não havia nuvens no céu para encobrir o brilho que de forma
pálida clareava nosso caminho junto às luzes da cidade, que fervia e
borbulhava com vida em suas ruas e avenidas.
Chegamos ao apartamento e fui recebido com o melhor dos carinhos
felino possível. Júpiter correu para minhas pernas e logo o trouxe para meu
colo. De todos os reencontros daquele dia, o dele parecia tão feliz e tão
saudoso quanto os outros. Nos alimentamos e ficamos a assistir televisão até
Laura começar a pegar no sono em meu colo. Fomos juntos para a cama, com
Júpiter se aninhando aos meus pés.
Ali, em minha cama, sentia que não me deitava há séculos em um colchão
macio e com a cabeça em um travesseiro quente. Talvez aquele fosse o tão
dito sono dos justos, que agora eu recebia com gratidão e orgulho. Ali,
abraçado com aquela que seria o amor da minha vida, fechei os olhos e
respirei tranquilamente.
A partir daquela noite eu voltei a sonhar.

***
Esta, no entanto, não foi a única vez em que visitei a Casa. Pelo contrário,
foi apenas a primeira de muitas visitas que realizaria nos anos vindouros.
Sempre começar-se-ia da mesma forma: com uma escolha. Então, levado por
ela, chegaria até aquele mesmo penhasco no qual seria recebido e guiado pela
minha tristeza. Dentro, porém, encontraria a coragem, paixão, sabedoria e
esperança necessários para lidar com o que quer que me esperasse naquela
visita.
Os problemas, a cada passagem pela Casa, se tornaram menores. Às
vezes passava por lá apenas para reencontrar tais virtudes, sem nada para
resolver, apenas para se admirar. Com o tempo a Casa foi ficando mais bela,
arrumada, iluminada e arejada.
Durante todos os anos seguintes da minha vida, dediquei-me a deixá-la
cada vez mais confortável e agradável para aqueles que nela habitavam.
Quanto mais a explorava, mais sonhos, pesadelos e virtudes eu encontrava.
Algumas, com o tempo, sumiram de vista, reclusas em seus próprios quartos
para que pudessem descansar. Durante minha vida a Casa tornou-se mais
silenciosa e tranquila, mas, mesmo assim, um bom lugar para se viver, graças
a todo o trabalho feito durante os anos passados.
Certa manhã, anos e décadas após a primeira visita, quando a idade já nos
permite falar coisas e contar histórias sem sermos julgados como loucos e
excluídos da sociedade (pois a vida já tratou de fazer isso), descrevi toda essa
jornada para minha esposa Laura, que agora também se encontrava em uma
idade na qual permitimos novamente acreditar em contos de fadas e coisas
além da nossa vã realidade. Ela ouviu com atenção, e com a paciência de um
anjo, suportou todos meus arabescos e superlativos durante a narrativa de
minha jornada. Ao final, não se demonstrou cética, mas também não declarou
crença total ao meu relato. Não poderia pedir mais dela, pois nem eu mesmo
conseguia dar crédito de veracidade a tudo que lhe contei. Sendo ou não
sendo real tudo aquilo que contei, após terminar, Laura me perguntou se eu
me arrependia de alguma escolha feita durante essa jornada, se teria feito
alguma decisão de forma diferente ou em outra ordem, se teria me precavido
mais ou arriscado menos e questionou se eu mudaria qualquer detalhe que
fosse de tudo aquilo que havia vivido. Eu fiquei em silêncio durante o tempo
no qual toda esta história passou pela minha mente, e por fim pude responder
com um sorriso no rosto:
— Não. Eu não mudaria nada.
O vento gelado passou e levou minhas palavras junto a ele. Para nos
protegermos, demos meia-volta e entramos por fim em casa.

Fim
Modelos

Thisi: Luiza Guzzoni

Sia: Tiffany Cristiá

Frey: Isabella Fernandes

Esperança: Letícia Herba

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