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FICHA 21 24 de dezembro de 2007

O MISTÉRIO QUER FALAR!

Por uma liturgia mais silenciosa

Frei José Ariovaldo da Silva e Pe. Carlos Gustavo Haas

Temos o imenso prazer de trazer aqui um texto esplêndido do teólogo e escritor


dominicano Frei Betto, publicado no Boletim on line ADITAL, que pode (direta ou
indiretamente) questionar também nossas ruidosas celebrações litúrgicas. Se Liturgia é
celebração do Mistério profundo que nos pervade de amor sem medida, não seria o caso de
pensar uma maneira mais silenciosa de celebrá-la?
Escreve Frei Betto:
“Há demasiados ruídos à nossa volta. O coração sobressalta, os nervos afloram, a
mente atordoa-se. É o televisor ligado quase o tempo todo, o fluxo incessante de imagens
sugando-nos num carrossel de flashes.
O rádio em monólogo inclemente, a música rítmica desprovida de melodia, o som
alojado nos orifícios auditivos, o telefone trinando supostas urgências, o celular a invadir
todos os espaços, suas musiquetas de chamada destoando em teatros, cinemas, templos,
cerimônias e eventos, seus usuários nele dependurados pelas orelhas, publicitando em voz
alta conversas privadas.
De todos os lados sobem ruídos: da construção civil vizinha, do latido dos cães, dos
carros na rua e das aeronaves que cortam o espaço, das motos estridentes, do anunciante
desaforado em seu carro de som, do apito fabril disciplinando horários.
Tantos ruídos causam tamanho prejuízo à saúde humana que o Exército usamericano
criou, em sua sanha assassina, um arsenal de "projéteis sonoros", capazes de produzir som de
140 decibéis. Bastam 45 para impedir o sono. O rumor do tráfego na esquina de uma avenida
central atinge 70 decibéis. Aos 85 produz-se uma lesão auditiva. Elevado para 120, o som
provoca dor aguda nos ouvidos. Imagine-se, pois, o que significa essa tecnologia de tortura a
140 decibéis!
Nosso silêncio não é quebrado apenas por ruídos auditivos. Agridem-nos também os
visuais. Assim como o silêncio da zona rural ou de uma igreja nos impregna de paz, levei um
choque ao visitar, anos atrás, Praga antes da queda do Muro de Berlim. Não havia outdoors.
A cidade não se escondia atrás de anúncios. A poluição visual era zero, permitindo
contemplar a beleza barroca da terra de Kafka.
Nas cidades brasileiras, subjugadas pelo império do mercado, somos vorazmente
engolidos pela proliferação de propagandas, exceto a capital paulista, agora em fase de
despoluição visual por iniciativa da prefeitura.
Sem silêncio, ficamos vulneráveis, expostos à voracidade do mercado, a subjetividade
esgarçada, a epiderme eriçada em potencial violência. Contra esse estado de coisas, o
professor Stuart Sim, da Universidade de Sunderland, na Inglaterra, acaba de lançar
Manifesto pelo silêncio, contra a poluição do ruído. O autor enfatiza que a cacofonia de sons
que nos envolve ameaça a saúde, provoca agressividade, hipertensão, estresse, problemas
cardíacos.
Todos os grandes bens infinitos da humanidade - arte, literatura, música, filosofia,
tradições religiosas - exigiram, como matéria-prima, o silêncio. Sem ele perdemos a nossa
capacidade de raciocinar, ouvir a voz interior, aprofundar a vida espiritual, amar além do
jogo erótico meramente epidérmico.
Quando um casal de noivos me procura, interessado em preparar-se para o
matrimônio, costumo indagar se os dois são capazes de ficar juntos uma hora, em silêncio,
sem que um se sinta incomodado. Caso contrário, duvido que estejam em condições de uma
saudável vida a dois, pois o respeito ao silêncio do outro é um dos atributos da confiança
amorosa.
Assisti ao filme O grande silêncio, do diretor alemão P. Gröning, que nos convida a
penetrar a vida de uma comunidade cartuxa nos Alpes franceses. Nenhuma palavra no
decorrer de três horas de filme, exceto o canto gregoriano das liturgias monásticas e o bater
do sino. Um convite à mais desafiadora viagem: ao mais profundo de si mesmo.
Quem ousa, sabe que lá se desdobra um Outro que, por sua vez, espelha nossa
verdadeira identidade. Viagem que tem como veículo privilegiado a meditação. Na fase
inicial, é tão árduo quanto escalar montanha para quem não está acostumado ao alpinismo.
Porém, em certo momento, é como se u’a mão invisível nos elevasse, tornando a subida
suave e agradável.
Só então se descobre que, no imponderável do Mistério, não se sobe, se desce,
mergulha-se em si mesmo para vir à tona, do outro lado de nosso ser, naquele Outro
silenciosamente presente em nossas vidas e na tecitura do Universo. Aqui a palavra se cala e
o silêncio se faz epifania”.
Obrigado, Frei Betto.

Perguntas para reflexão pessoal e em grupos:

1. Nas celebrações litúrgicas de sua comunidade, até que ponto há espaço para o
Mistério falar e se manifestar?
2. Há ruídos (sonoros e visuais) que abafam a “fala” da silenciosa presença do Mistério?
Quais são e como são?
3. O que fazer para que nossas celebrações litúrgicas sejam mais “saudáveis” do ponto
de vista sonoro e visual?

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