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Thomas Mann

Dostoiévski com moderação

"O escritor e sua missão", de Thomas Mann

Aquele que se aventurou através dos colossais Doutor Fausto e A


Montanha Mágica, ou mesmo através de criações aparentemente menos
pretensiosas como Morte em Veneza, já sabe muito bem do que é capaz o
Thomas Mann ficcionista. Agora, com a publicação de O escritor e sua missão,
começa a ser disponibilizada aos leitores brasileiros uma parte da vasta
produção crítica e ensaística do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em
1929. Essa compilação de textos não-ficcionais de Mann é, na verdade, o
primeiro volume da série “Thomas Mann – Escritos & Ensaios”, que a Zahar
está organizando com o objetivo declarado de preencher uma lacuna de leitura
existente mesmo entre os fãs de Mann aqui na terra natal de Júlia da Silva
Bruhns, mãe do escritor.
Em O escritor e sua missão, temos uma grande variedade de textos,
englobando discursos, artigos de jornal, necrológios, prefácios, etc., versando
sobre as obras de autores bastante conhecidos e apreciados pelo leitor
brasileiro contemporâneo – como Goethe e Tolstói –, outros mais falados do
que lidos – como Zola e Bernard Shaw – e ainda alguns certamente obscuros –
Gerhart Hauptmann e Hugo Von Hofmannsthal, por exemplo. Essa diversidade
de formatos textuais e de escritores resenhados tornam o percurso de leitura
um tanto irregular, com significativa oscilação do nível de compreensão e do
interesse (por sorte, os ensaios mais extensos tratam, justamente, de três
autores bastante familiares e cujos referenciais estão muito bem alicerçados no
cabedal de conhecimento de qualquer pessoa que tenha verídico interesse em
literatura: Goethe, Dostoiévski e Tchekhov). Além disso, a opção editorial por
minimizar as notas de rodapé, embora acertada no intuito de evitar a poluição
do texto e de não tornar a leitura tergiversante, faz o leitor médio sentir-se, de
fato, bem abaixo da média frente à erudição de Mann, que, com habilidade e
naturalidade espantosas em uma era pré-Google, invoca autores clássicos e
contemporâneos seus, passeia por fatos históricos dos mais variados, cita de
memória e teoriza de improviso, fazendo jus à definição de “ensaio” cunhada
pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset como sendo “a ciência sem prova
explícita”. É bonito de se ver um intelectual do porte de Mann em pleno domínio
de seu ofício, construindo raciocínios insuspeitos e pontes tão sutis quanto
reveladoras entre as obras de arte que aprecia: mesmo ao produzir não-ficção,
Thomas Mann escreve de modo apaixonado e tendo por público alvo os
apaixonados por literatura.
O artigo que abre o volume intitula-se “Sobre Heinrich Heine”. Trata-se
de um pequeno texto em que Mann elogia a obra desse poeta alemão de
origem judaica que foi, provavelmente, o primeiro sujeito a receber a alcunha
de “último dos românticos” e que foi celebrizado pela musicalização que
compositores como Schumann, Brahms e Schubert fizeram de seus versos. O
artigo visava defender a construção de um monumento em homenagem a
Heine, projeto que, na época, estava atravancado pelo furor antissemita que
grassava na Alemanha. O segundo texto é “Ibsen e Wagner”. Nele, Mann
estabelece um paralelo entre as obras do compositor Richard Wagner, famoso
por “O Anel dos Nibelungos”, seu ciclo operístico megalomaníaco (no melhor
dos sentidos), e a dramaturgia de Henrik Ibsen, partindo de uma observação
casual de Hermann Levy, um famoso regente de Bayreuth, que, ao assistir pela
primeira vez a uma peça de Ibsen, teria dito: “Ou bem isto é ridículo, ou é tão
grandioso quanto Wagner.” Mann advoga que Ibsen e Wagner, na comédia de
costumes e na ópera, respectivamente, foram capazes de transcender os
gêneros que cultivaram, criando, a partir de sua matéria bruta, algo novo e
perfeito.
A seguir, o ensaio “Tolstói – no centenário do seu nascimento” apresenta
um retrato semiliterário do romancista russo. Mann o enaltece como um
homem de fibra e personalidade, representante dos melhores valores e do
espírito épico da segunda metade do século XIX, uma espécie de profeta que,
mesmo quando tencionava deixar a arte de lado para transmitir lições e
opiniões, escrevia com criatividade e imensa lucidez, tanto que, nas palavras
de Mann, foi capaz de conceber “o romance social mais poderoso da literatura
mundial”: Anna Karenina.
O necrológio “In memoriam Hugo von Hofmannsthal” focaliza muito mais
a relação de amizade de Mann com o poeta e dramaturgo austríaco do que a
obra deste, a qual, pelo menos no Brasil, é mais conhecida através dos libretos
que ele escreveu para várias óperas de Richard Strauss. Não deixa de ser
interessante apreciar, através dos relatos de Mann, um pouco dos bastidores
da cena literária alemã do começo do século XX, da camaradagem e das
trocas entre os autores de então, e ainda deparar com percepções preciosas
de Mann, como a seguinte descrição da pessoa de Hofmannsthal:
Ele tinha uma maneira de compreender antes que o próprio interlocutor
compreendesse, de aperfeiçoar e dar sequência a coisas que capturava no ar,
fazendo com que a conversação transcorresse com leveza onírica e
jocosamente inteligente.
O quinto texto, “Discurso sobre Lessing”, é um ensaio caudaloso no qual
Mann disserta sobre a obra de Gotthold Ephraim Lessing, poeta, dramaturgo,
crítico de arte e filósofo, autor de Laocoonte, ou Sobre as fronteiras da pintura
e da poesia, um clássico da teoria estética, enaltecendo-o como um tipo
“fundador, em que vidas futuras se reconhecem”, um dos espíritos “mais
crentes, bondosos e esperançosos que já viveram e se preocuparam com o
humano”. Mann defende o status de poeta muitas vezes negado a Lessing pela
crítica, aborda sua tendência à polêmica (descrevendo um célebre embate
teológico em que Lessing se envolveu e ao final do qual acabou proibido de
publicar textos sobre religião) e ainda traça um instigante paralelo entre ele e
Lutero, tendo ambos como exemplos de personalidades libertárias,
questionadoras e à frente de seus tempos.
Em “Goethe como representante da era burguesa”, Mann parte de três
possíveis maneiras de avaliar a significância e o impacto de Goethe na cultura:
a primeira, mais modesta, seria considerá-lo como o mestre do classicismo
alemão que, de fato, forjou a noção de uma cultura alemã; a segunda,
gradiloquente mas não necessariamente exagerada, consistiria em colocá-lo
entre os “grandes vultos que já passaram pela Terra”, um desses expoentes
cuja influência se estende por milênios e que, por isso, acabam adquirindo aura
mítica; a terceira, uma espécie de meio-termo entre as duas primeiras
abordagens, seria alçar Goethe à condição de representante da “era
burguesa”, isto é, o período histórico que se estende desde o século XV até a
virada do século XIX. A partir daí, Mann busca retratar o autor
de Werther e Fausto como um típico burguês, de “modos simples e educados”,
amante da boa comida e da bebida, que se agradava da rotina e do fato de
pertencer a um estrato social confortavelmente mediano, o qual seria propício
ao talento, pois, nas palavras do próprio Goethe, “encontramos todos os
grandes artistas e poetas nas classes médias”. Levando-se em conta o
contexto histórico, é plenamente justificado o esforço de Mann para retratar
Goethe dessa forma: trata-se de uma resposta aos nazistas que, na época, em
1932, ganhavam cada vez mais poder e buscavam legitimar seus ideais e suas
doutrinas deturpando a imagem de grandes pensadores germânicos, como
Goethe, o qual, não raro, era convenientemente descrito por eles como
populista e ultranacionalista.
O sétimo ensaio que compõe o volume é “Dostoiévski, com moderação”,
um prefácio redigido por Mann para uma coletânea de romances do autor
russo publicada nos Estados Unidos. Aqui, Mann demonstra seu fascínio pela
condição de epilético e pelo estigma de homem doente sob o qual vivia o autor
de Os Demônios, condição essa que abarcaria a “grandeza religiosa dos
amaldiçoados, do gênio como doença e da doença como gênio, do tipo do
atormentado e do possesso, no qual o santo e o criminoso se tornam um só”.
Analisa, então, a repercussão dessa doença de êxtases e convulsões sobre a
personalidade marginal de Dostoiévski e sobre a sua produção literária,
chegando, em certos momentos, a tecer saborosas (porém equivocadas)
especulações sobre uma eventual origem psíquica da epilepsia:
Em minha opinião ela indubitavelmente tem suas raízes no campo
sexual e é uma forma selvagem e explosiva de sua dinâmica, um ato sexual
deslocado e transfigurado, uma devassidão mística.
A partir da convicção nietzscheana de que as situações de exceção
condicionam o artista, “todas as situações que são profundamente aparentadas
e entretecidas com sintomas doentios”, e da pré-existência do conceito de
“super-homem” na obra de Dostoiévski (mais especificamente nas falas da
personagem Kirilov, em Os Demônios), Mann estabelece ainda um diálogo
entre o romancista russo e o filósofo niilista alemão.

Segue-se o texto congratulatório “Hermann Hesse – homenagem ao seu


70º aniversário”. Nesse artigo, mais uma vez, Mann apoia-se na sua relação
pessoal com o escritor comentado para tratar de assuntos universais – aqui,
mais especificamente, o conflito entre a visão crítica de certos intelectuais
alemães (ele próprio e Hesse inclusos) e a tacanhice ideológica e estultice
patriota dos diversos setores sociais que serviram de substrato ao crescimento
do nazismo ou que por ele se deixaram contaminar. Um dos primeiros pontos
de contato que Mann apresenta para ilustrar sua proximidade com Hesse é o
fato de ambos terem sido chamados de “miseráveis” por um certo compositor
de Munique porque ambos não compactuariam com a crença de que os
alemães seriam “o maior e mais nobre dos povos, ‘um canário entre rolinhas’”.
A visão compartilhada de Mann e Hesse acerca da presunção e do
provincianismo germânico é sintetizada em uma sentença no melhor estilo “pá
de cal”: “Na Alemanha, aliás, os insatisfeitos com a cultura alemã foram sempre
os mais alemães de todos.”
Em “Bernard Shaw”, mais um necrológio contido na compilação, Mann
escreve sobre aquele que, sem dúvidas, foi seu dramaturgo favorito,
ressaltando o apreço que o autor dublinense tinha pela Alemanha, esse país
que reconheceu sua importância para o teatro antes mesmo dos países de
língua inglesa, muito embora a influência da cultura germânica sobre a obra
de Shaw fosse mínima e mesmo que seu conhecimento nesse âmbito fosse
“fragmentário e casual”. Outro aspecto abordado por Mann é o influxo da
música na obra de Shaw, socialista radical capaz de se dedicar com idêntica
paixão ao estudo de O Capital ou da partitura de “Tristão e Isolda”. Shaw era
um homem austero, dado a banhos frios, vegetariano, que gostava de escrever
em uma cabana de simplicidade franciscana, e essas características, que se
poderiam chamar de tendência ascética de Shaw, não passam incólumes à
leve (mas constante) acidez de Mann, como mostra o trecho a seguir, um
excerto particularmente divertido quando lido por olhos vegetarianos:
Na imagem de Shaw (…) há algo de magro, de vegetariano e de frígido
que, para mim, não combina com a imagem de grandeza. (…) A batalha
pesada (que lembra o titã Atlas) e a carga muscular e moral de um Tolstói;
Strindberg, que passou pelo inferno; a morte de Nietzsche como mártir na cruz
do pensamento nos insuflam esse respeito trágico. Nada disso no caso de
Shaw.
E lança, então, uma pergunta provocadora, cuja resposta deixa
propositalmente em aberto: “Estaria ele acima disso ou não estaria ele à altura
disso?”.
O décimo artigo, “Gerhart Hauptmann”, versa sobre o vencedor do
Prêmio Nobel de Literatura em 1912, um romancista e dramaturgo alemão cuja
obra, inicialmente de tendências naturalistas (vide as peças “Antes da aurora”
ou “Os tecelões”), converteu-se em algo muito mais próximo de um simbolismo
metafísico de forte inspiração religiosa (a novela Herege de Soana é um
exemplo). Mann gasta um bom pedaço do artigo para explicar que o fato de ter
se inspirado em Hauptmann para criar o cativante mas desajeitado
e naïf Mynheer Peeperkorn de A Montanha Mágica foi uma homenagem, e não
uma traição. Porém, ao tratar da concepção dessa caricatura, Mann não está
se justificando ou pedindo escusas de qualquer tipo à opinião pública; ele está,
em realidade, tratando de um tema fundamental na arte da escrita: a
modelagem de personagens literárias. O penúltimo texto, “Fragmento sobre
Zola”, é uma das raras referências ao escritor francês dentro da obra ensaística
de Thomas Mann. Embora ele defenda a proposta estética de Zola,
considerando que seu naturalismo “se alça ao plano do simbólico e se vincula
intimamente ao mítico”, é o engajamento social do autor de Germinal que o
fascina sobretudo, especialmente sua intervenção no famoso caso Dreyfus, em
que um oficial judeu do exército francês, em flagrante manifestação de
antissemitismo, foi injustamente acusado de traição à pátria.
Encerrando a compilação O escritor e sua missão, está o belíssimo
“Ensaio sobre Tchekhov”. Certa vez, no começo de sua carreira literária,
quando a fama do escritor já eclipsava a do médico, Tchekhov, eternamente
modesto, insatisfeito e desconfiado do próprio talento para as letras, escreveu:
“Será que estou ludibriando o leitor, já que não sou capaz de responder às
questões mais importantes?”. E foi essa frase que tocou fundo no espírito de
Mann a ponto de fazê-lo se debruçar sobre a biografia de Tchekhov. E, de fato,
o ensaio de Mann elenca e esmiúça várias passagens da vida do russo,
buscando, pelo veio biográfico, explicar a gênese e a importância de sua obra,
essa obra que, ao contrário das criações de Tolstói e Dostoiévski, “abriu mão
da monumentalidade épica” e, mesmo assim, conseguiu encerrar em si “toda a
vasta Rússia de antes da revolução, com sua natureza eterna e suas eternas
condições sociais ‘desnaturadas’”.
Esse caleidoscópio de ensaios, um bem temperado aperitivo da obra
não-ficcional de Mann, certamente atrairá escritores (e candidatos a escritores)
em busca de “conselhos” desse gigante da literatura universal sobre o ofício
(até mesmo por causa do título escolhido para a coletânea, que parece insinuar
algo nessa direção). Tais leitores poderão se desapontar, porque, de fato, o
livro está longe de ser um “manual de criação literária” ou coisa parecida.
Contudo, para quem tem sede de colher alguma dica sobre o assunto, é
possível sim garimpar algumas delas entre as observações do próprio Mann e
citações que ele busca em outros autores para ilustrar suas argumentações.
Eis algumas delas, transcritas em uma salada proposital, sem delimitar
claramente o que é original de Mann e o que é invocado por ele a partir de
outros:
A genialidade na arte seria então o elemento da surpresa e do encanto
que causa pasmo, o elemento da ousadia que só pode ser conhecido em suas
realizações.
(…) como ensina a estética de Schopenhauer (…) as obras mais
elevadas se contentam com um mínimo de ação.
Há a dolorosa constatação de que a palavra apenas consegue elogiar a
beleza física, nunca reproduzi-la, há o desafio aos poetas de abrir mão da
descrição, da narrativa da beleza, para, em seu lugar, pintar para nós o bem-
estar, o afeto, o amor, o encanto que a beleza causa, pois com isso, diz
Lessing, “tereis pintado a beleza ela mesma”.
Uma obra-prima não pode parecer obra-prima.
Apesar de tudo, parece que um artista, um criador (…), não tem como
não afirmar a vida e lhe ser fiel.
Literatura nacional já não quer dizer muita coisa; é chegada a hora da
literatura mundial (…).
Sinto que, sobre o demoníaco, deve-se “poetar” e não apenas escrever.
Foi o pintor e escultor francês Degas quem afirmou que um artista deve
se aproximar de sua obra como um criminoso executa seu ato.
Pois a única forma de lidar com o que é poético, irracional, é por meio da
literatura, e não por intermédio da palavra que analisa e dissocia.
A insatisfação consigo mesmo constitui um elemento básico de todo
talento genuíno.

O escritor e sua missão ::: Thomas Mann (trad. Kristina


Michahelles) :::
::: Zahar, 2011, 208 páginas :::
::: compre na Livraria Cultura :::

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