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O processo de revisão do

DSM-5: gênero é uma categoria


cultural ou de diagnóstico?1

Em maio de 2013, a quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico


de Transtornos Mentais (DSM) foi publicada. Após cinco anos de in-
tensos debates envolvendo especialistas, ativistas de direitos humanos,
profissionais psi (psicólogos, psiquiatras e psicanalistas), profissionais
de saúde finalmente tivemos acesso às resoluções finais aprovadas na
reunião da Associação Americana de Psiquiatras (APA). Meu foco nes-
ta comunicação será o capítulo “Disforia de gênero” e o debate em tor-
no das identidades trans.
O DSM é um manual da Associação Americana de Psiquiatras. A ca-
racterística da Associação Nacional, no entanto, não impede a existência
de um desejo expresso de que os achados clínicos, por seu suposto cará-
ter científico, têm um alcance global. Como tentarei sugerir, a procura
pela verdade universal pode ser interpretada como parte de um projeto
de colonização epistemológico, uma vez que não é possível universalizar
concepções locais de gênero (que, nos Estados Unidos, estão situadas no
contexto de uma visão medicalizante e psiquiatrizante de vida) para as
mais variadas expressões de gênero globais.

1
International Conference of Critical Geography- Ramallah, Palestine, 25-30 July 2015. Título
original: The review process of the DSM-5: Is gender a cultural or diagnostic category?

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Desde que o DSM começou a ser publicado, em 1952, foram reali-
zadas cinco revisões. Ao longo desses anos, observou-se um aumento
considerável de doenças diagnosticadas como “transtorno mental”. Há
uma literatura robusta que discute as motivações ditas e não ditas des-
sa inflação de transtornos psiquiátricos, incluindo a crescente influên-
cia da indústria farmacêutica nas decisões dos membros dos Grupos
de Trabalho (GT) que compõem a Força Tarefa (FT) responsável para a
revisão. (KIRK; KUTCHINS, 1998; JANE, 2004, 2006)
A pesquisa que realizei durante 2014 teve um corte preciso: mapear
os critérios de diagnóstico de disforia de gênero (que, no DSM-IV, era
nomeado “transtorno de identidade de gênero”). As perguntas guia-
ram-me: como é possível transformar uma categoria cultural (gênero)
em uma categoria diagnóstica? Para responder a essa pergunta, outras
foram feitas: quem eram os membros do Grupo de Trabalho respon-
sável pela revisão do capítulo “Transtorno de identidade de gênero”?
Quais são as ligações institucionais desses membros? Qual literatura
foi citada e consultada pelos membros do GT? Nesta comunicação, vou
apresentar uma pequena parte dessa pesquisa.

DSM-5: O CONTEXTO DA REVISÃO

Entre a terceira (1980) e a quinta edição (2013), nota-se um considerá-


vel crescimento da organização política dos coletivos trans nos Estados
Unidos. Esse crescimento também ocorreu em vários outros países e
foi acompanhado de uma crescente diferenciação em relação à agenda
de luta da população gay e lésbica. Um forte debate sobre a retirada das
identidades trans do DSM-5 tomou a cena nos Estados Unidos e no
contexto internacional. Uma parte considerável dos artigos produzidos
nesse período foi estruturada em torno do problema: devem as identi-
dades trans permanecer no DSM?
Aqueles favoráveis à continuidade da psiquiatrização das identida-
des trans tiveram que estruturar novos argumentos para justificar a
sua manutenção no Manual. Já havia o precedente histórico da retirada
da homossexualidade do DSM. Por que o gênero continuaria como
uma categoria diagnóstica psiquiátrica?

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A definição para a atenção integral à saúde da população trans dos
Estados Unidos e da população em geral acontece no âmbito da relação
com o mercado de seguro de saúde. O plano de saúde, para fazer o
pagamento ao profissional de saúde, exige um código da doença; sem
ele, não há qualquer pagamento ou reembolso. Esse foi um dos argu-
mentos mais fortes para justificar a manutenção das identidades trans
na DSM-5. (DRESCHER, 2010; VANCE JUNIOR et al., 2011)
No entanto, as questões específicas de saúde da população trans
estão precariamente mal cobertas pelos seguros de saúde. Raros são
os planos que cobrem os custos de cirurgia de redesignação ou terapia
hormonal. Somente consultas com psiquiatras são amplamente pagas.
Em diversas reuniões com as pessoas trans em Nova York, eu pergun-
tei se elas gostariam de fazer as cirurgias de redesignação e/ou tomar
hormônios. As respostas não mudavam: “Eu adoraria, mas é muito
caro”.
A continuidade da psiquiatrização, nesse contexto, deve ser in-
terpretada como uma concessão necessária ao mercado. Essa seria a
única maneira de obter o tratamento escasso oferecido pelos planos
de saúde. O argumento para mantê-la de acordo com um imperativo
categórico do mercado pode ser interpretado como um ardil para refor-
çar a posição corporativista dos psiquiatras. Dessa forma, assegura-se
a continuidade do protagonismo dessa categoria profissional como os
detentores da verdade sobre esse tipo de “distúrbio”.
A falta de acesso à saúde pública define os próprios termos em que
todo esse processo de discussão aconteceu. Essa seria a primeira gran-
de diferença em relação ao contexto brasileiro, em que o debate sobre
a despsiquiatrização e direitos à saúde das identidades trans articula-se
na relação entre movimentos sociais/Sistema Único de Saúde (SUS).
O Estado, entre nós, é um ator central. Enquanto o neoliberalismo nor-
te-americano tira qualquer responsabilidade do Estado com a saúde
geral do cidadão, no Brasil, como um bom resquício do estado de bem
estar social que nunca existiu entre nós, é o Estado que tem a obrigação
legal com a saúde. Entre nós, o debate sobre a saúde das pessoas trans
está incluído nesse debate mais amplo sobre saúde/Estado/cidadania.

Comunicações ○ 41
E é aqui que um “nó político” interessante é estabelecido. Se no
contexto norte-americano a psiquiatrização está mais próxima de um
jogo de cena, um faz de conta em que é assumida como necessária, e
se na realidade brasileira não seria necessário reproduzir esse mesmo
teatro, eu me pergunto: qual o sentido de utilizarmos a categoria disfo-
ria de gênero entre nós?
O DSM é um texto que universaliza contextos locais, portanto, seu
modus operandi é colonizador. Mas o pensamento colonizador só faz
sentido se puder ser internalizado como verdade. A aceitação e repro-
dução das verdades do DSM é um efeito do pensamento colonizado.
O DSM é um texto que fala de um contexto econômico, social, político
e específico.

AS QUESTÕES CULTURAIS

No capítulo “Conceitos culturais do sofrimento”, afirma-se:


A linguagem cultural de sofrimentos são formas de expres-
sar o sofrimento que não pode envolver sintomas ou síndro-
mes específicas, mas oferecem maneiras coletivas e com-
partilhadas para tentar falar sobre preocupações pessoais
ou sociais. (MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE
TRANSTORNOS MENTAIS, 2013, p. 758)

Eu não teria nenhuma objeção a fazer sobre essa citação, mas


como articular as particularidades culturais com os desejos expressos
no DSM-5 da universalidade, obtido através de provas e objetividade?
Toda a “linguagem cultural do sofrimento” não é social? Como tradu-
zir a linguagem do sofrimento dos outros? Quem vai estar do outro
lado fazendo a escuta, decodificação, queixas e sintomas do paciente?
Qual a formação dos psiquiatras em Antropologia, Sociologia, História
e outras ciências humanas para ajudá-los a transformar o cenário da
consulta em um momento de “tradução cultural”? (PEREIRA, 2014)
Se estamos nos movendo no contexto da diversidade cultural, nego-
ciando conceitos de sofrimento, o primeiro passo seria estabelecer uma
relação simétrica de escuta. Quantos cientistas sociais formaram o GT

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“disforia de gênero”? Nenhum. Quantas pessoas de trans? Nenhuma.
Quais são as nacionalidades dos membros do GT? Apenas cinco países
(Estados Unidos, Canadá, Holanda, Inglaterra) que supõem esgotar as
possíveis explicações para “disfórico gênero” e “disfórico não gênero”.
Os discursos universalistas têm em comum a produção de um ou-
tro pelo esvaziamento das singularidades. Edward Said, comentando o
ensaio “O mundo árabe”, de 1972, do psiquiatra Harold W. Glidden,
afirmou:
Assim, em quatro páginas de colunas duplas, para o retrato
psicológico de mais de 100 milhões de pessoas, cobrindo um
período de 1300 anos, Glidden cita exatamente quatro fontes
de suas idéias [...]. O próprio artigo pretende revelar ‘o fun-
cionamento interno de comportamento árabe’, que, do nosso
ponto de vista é ‘aberrante’, mas para os árabes é ‘normal’.
(SAID, 2015, p. 85)

Podemos tomar emprestado o mesmo susto quando se sabe que


em dez páginas, 12 pesquisadores, distribuídos em cinco países, usan-
do apenas o inglês como língua, supõem ser possível fazer uma grande
descrição da diversidade e dos significados para as múltiplas expres-
sões dos gêneros. Talvez alguém possa argumentar contrariamente a
essa divergência, afirmando que o DSM-5 não se dedica ao gênero,
mas a um tipo de expressão de gênero. Essa é outra armadilha que os
feminismos já desmontaram: ao identificar o disfórico gênero, o DSM
está usando como parâmetros de medição aquilo que é considerado
socialmente aceitável para meninos e meninas. Foi assim no DSM-III,
continuou no DSM-IV e ficou consolidado no DSM-5. Como identificar
uma criança com “disforia de gênero”? Por definições culturais do que
é adequado para cada sexo. Não há exame clínico para encontrar a “dis-
foria de gênero”.
A resposta óbvia que poderia ser dirigida a minha consideração so-
bre a falta de pluralidade no DSM (de nacionalidades, línguas, identi-
dades, costumes) é que ele não tem nenhuma razão para o ser, porque
é um manual de uma associação profissional nacional. Mas esse ar-
gumento desaparece se perguntar se o âmbito das declarações con-

Comunicações ○ 43
tidas seriam válidas apenas para o contexto norte-americano. Nesse
momento, outra certeza pode-se afirmar: não, ele é válido para além
das fronteiras nacionais, porque é passível de verificação.
Em última análise, é uma visão única, psiquiatrizante e patologi-
zante que continuou hegemonizando o Manual. Deduzo que o capí-
tulo referente à cultura é o desejo de ser “politicamente correto”, um
exercício de retórica que visa produzir miragens sobre o caráter de con-
trole dos corpos e desejos em contexto norte-americano e colonizar a
outras culturas.

Referências

KIRK, S.; KUTCHINS, H. Aimez-vous le DSM ? Le triomphe de la


psychiatrie americaine. Paris: Institut Synthélabo, 1998.
MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS
MENTAIS. DSM-5. 5. ed. Porto Alegre, RS: ARTMED; Associação
Brasileira de Psiquiatria, 2013.
PEREIRA, P. P. G. De corpos e travessias: uma antropologia de corpos e
afetos. 1. ed. São Paulo: Annablume, 2014.
RUSSO, J. Do desvio ao transtorno: a medicalização da sexualidade na
nosografia psiquiátrica contemporânea. In: PISCITELLI, A.; GREGORI,
M. F.; CARRARA, S. Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras.
Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
RUSSO, J.; VENÂNCIO, A. T. Classificando as pessoas e suas
perturbações: a “revolução terminológica” do DSM-III. Rev. Latino Am.
de Psicopat. Fund., v. 9, n. 3, p. 460-483, set. 2006.
SAID, E. W. O orientalismo: o oriente como invenção do Ocidente.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
VANCE JUNIOR, S. R. et al. Opinions about the DSM gender identity
disorder diagnosis: resultas from an internacional survey administered
to organizations concerned with the welfare of transgender people.
International Journal of Transgenderism, v. 12, p. 1-14, 2010.
ZUCKER, K. J. The DSM diagnostic criteria for gender identity disorder
in children. Arch. Sex. Behav., v. 39, n. 2, p. 477-498, apr. 2010.

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