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Editorial

Caros colegas,
A Escola de Veterinária e o Conselho Regional
de Medicina Veterinária de Minas Gerais têm a sa-
tisfação de encaminhar à comunidade veterinária e
zootécnica este número do Cadernos Técnicos de
Veterinária e Zootecnia.
O presente Cadernos Técnicos trata, de for-
ma objetiva, a temática sobre Epidemiologia e
Conservação de Animais Silvestres, abordando os
aspectos relacionados à interface das relações en-
tre Seres Humanos, Animais e Ambiente. O tema
apresenta alta importância, já que a Medicina da
Conservação é uma área de grande relevância na
medicina veterinária, demandando uma atualiza-
ção constante de veterinários e profissionais de áre-
as correlatas. Desse modo, este volume representa
uma contribuição para o entendimento e aprofun-
damento nesta área do conhecimento.
Com este número do Cadernos Técnicos espe-
ramos contribuir tanto para a conscientização quan-
to para a informação de colegas, auxiliando para que
Universidade Federal possam construir melhores opções para a conserva-
de Minas Gerais
ção aos animais no contexto em que estão inseridos.
Escola de Veterinária
Fundação de Estudo e Pesquisa em Portanto, parabéns à comunidade de leitores
Medicina Veterinária e Zootecnia
- FEPMVZ Editora que utilizam o Cadernos Técnicos para aprofundar
Conselho Regional de seu conhecimento e entendimento sobre a medici-
Medicina Veterinária do
Estado de Minas Gerais na veterinária da conservação, em benefício dos ani-
- CRMV-MG mais e da sociedade.
www.vet.ufmg.br/editora
Correspondência:
Prof. Antonio de Pinho Marques Junior - CRMV-MG 0918
Editor-Chefe da FEMVZ-Editora
FEPMVZ Editora Prof. José Aurélio Garcia Bergmann - CRMV-MG 1372
Caixa Postal 567 Diretor da Escola de Veterinária da UFMG
30161-970 - Belo Horizonte - MG
Telefone: (31) 3409-2042 Prof. Marcos Bryan Heinemann - CRMV-MG 8451
Editor Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia
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editora.vet.ufmg@gmail.com Prof. Nivaldo da Silva - CRMV 0747
Presidente do CRMV-MG

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Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de Minas Gerais
- CRMV-MG
Presidente:
Prof. Nivaldo da Silva
E-mail: crmvmg@crmvmg.org.br
CADERNOS TÉCNICOS DE
VETERINÁRIA E ZOOTECNIA
Edição da FEPMVZ Editora em convênio com o CRMV-MG
Fundação de Estudo e Pesquisa em Medicina Veterinária e
Zootecnia - FEPMVZ
Editor da FEPMVZ Editora:
Prof. Antônio de Pinho Marques Junior
Editor do Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia:
Prof. Marcos Bryan Heinemann
Editores convidados para esta edição:
Danielle Ferreira de Magalhães Soares
Pedro Lúcio Lithg
Revisora autônoma:
Ângela Mara Leite Drumond
Tiragem desta edição:
9.100 exemplares
Layout e editoração:
Soluções Criativas em Comunicação Ldta.
Impressão:
O Lutador

Permite-se a reprodução total ou parcial,


sem consulta prévia, desde que seja citada a fonte.

Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia. (Cadernos Técnicos da Escola de Veterinária da


UFMG)
N.1- 1986 - Belo Horizonte, Centro de Extensão da Escola deVeterinária da UFMG, 1986-1998.
N.24-28 1998-1999 - Belo Horizonte, Fundação de Ensino e Pesquisa em Medicina Veterinária e
Zootecnia, FEP MVZ Editora, 1998-1999
v. ilustr. 23cm
N.29- 1999- Belo Horizonte, Fundação de Ensino e Pesquisa em Medicina Veterinária e
Zootecnia, FEP MVZ Editora, 1999¬Periodicidade irregular.
1. Medicina Veterinária - Periódicos. 2. Produção Animal - Periódicos. 3. Produtos de Origem
Animal, Tecnologia e Inspeção - Periódicos. 4. Extensão Rural - Periódicos.
I. FEP MVZ Editora, ed.

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Prefácio
Pedro Lúcio Litgh Pereira - CRMV-MG 1981
Danielle Ferreira de Magalhães Soares - CRMV-MG 7296
Professores de Epidemiologia da Escola de Veterinária da Universidade Federal
de Minas Gerais

No século passado, pioneiros, como Samuel


Pessoa e Eugeny Pavlovsky, sustentavam que,
na emergência das doenças infecciosas, além de
suas inquestionáveis bases biológicas, as trans-
formações antropogênicas da natureza tinham
um papel fundamental como desencadeantes
de novas epidemias nas populações humanas
e de animais domésticos, como as arboviroses,
as leishmanioses, as tripanossomíases, entre ou-
tras. Ambos os autores associavam os surtos de
doenças infecciosas a ambientes geográficos de-
terminados, como consequência do avanço do
homem sobre regiões naturais.
O Brasil ostenta uma das maiores biodiver-
sidades mundiais, continuamente ameaçada
por processos antrópicos incontroláveis, que
avançam sobre os ambientes naturais com total
independência da magnitude dos impactos que
geram efetiva ou potencialmente, direta ou indi-
retamente. Transformações antropogênicas do
ambiente natural, sintetizadas na destruição e
na fragmentação de habitat naturais obrigam os
animais silvestres a refúgios cada vez menores,
descontínuos, mais vulneráveis e, pior ainda,
fronteiriços com entornos urbano-industriais.
EssSa aproximação expõe inexoravelmente o
contato entre a fauna silvestre, as populações
humanas e as de animais domésticos, cujas con-
sequências, ainda pouco dimensionadas, são
igualmente ameaçadoras às espécies de animais
envolvidas, silvestre e doméstica, e à espécie hu-
mana, nos âmbitos da atividade produtiva e da
saúde pública.

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Nesse sentido, a Epidemiologia torna-se
uma ferramenta fundamental nos processos
conservacionistas de espécies silvestres, tanto
na identificação de perfis sanitários e de vul-
nerabilidades das espécies silvestres, frente à
ocorrência e à distribuição de doenças infec-
ciosas emergentes e reemergentes no ambiente
natural, como na vigilância epidemiológica de
eventos sanitários e outros agravos relacionados
à saúde pública e à saúde ambiental.
Esta edição do Cadernos Técnicos visa
aprofundar a discussão sobre a Medicina da
Conservação, a legislação referente à fauna sil-
vestre e importantes exemplos de ações conser-
vacionistas realizadas de forma conjunta, apro-
ximando pesquisas e pesquisadores, técnicos,
ambientalistas e a sociedade, de um modo geral,
na busca de medidas cientificamente pensadas,
ambiental e socialmente sustentáveis que, de
fato, mudem ideias e atitudes para a preservação
real das espécies naturais.

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Sumário

1 Unidades de Conservação e espécies ameaçadas........................................7


Etiene Andrade Vilela dos Santos
Bruno Marques Teixeira
A importância do estabelecimento de áreas protegidas para o conhecimento,
o manejo da biodiversidade e a elaboração de medidas prioritárias para
conservação de espécies no Brasil.

2 Medicina da Conservação:
a ciência da saúde do ecossistema.............................................................16
Júlia Angélica Gonçalves da Silveira
Mirella Lauria D’Elia
A desafiante interface que integra as saúdes humana, animal e ambiental e a
crescente demanda de pesquisadores atuantes no Brasil.

3 Implicações epidemiológicas
da interface entre humanos, animais domésticos e
silvestres....................................................................................................28
Nelson Henrique de Almeida Curi
Conheça os fatores epidemiológicos mais importantes na área da medicina da
conservação.

4 Fauna brasileira: a evolução das Leis........................................................36


Ana Maria de Santis Pugliese Yagelovic
Cecilia Barreto
Ana Claúdia Parreira de Freitas
Etiene Andrade Vilela dos Santos
Danielle Ferreira de Magalhães Soares
Pedro Lucio Lithg Pereira
Um breve histórico do ordenamento jurídico de proteção à fauna no Brasil.

5 Centros de triagem e o recebimento de animais silvestres provenientes do


tráfico em Minas Gerais.............................................................................48
Ana Cláudia Parreiras de Freitas
Érika Procópio Tostes Teixeira
Daniel Ambrózio da Rocha Vilela
Ana Maria Pugliese Santis Yagelovic
Etiene Andrade Vilela dos Santos
Pedro Lúcio Lithg Pereira
Danielle Ferreira de Magalhães Soares
Conheça o histórico, os avanços e os desafios dos órgãos que atuam na linha de
frente na tentativa de reintegrar a fauna à natureza.

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6 Desafios e perspectivas para a soltura de aves pelos CETAS no Brasil.....54
Vincent Kurtlo
Os possíveis benefícios e os surpreendentes resultados que podem ser obtidos
quando os devidos cuidados e critérios são adotados na soltura de aves.

7 Elaboração e implementação de projetos de conservação.......................65


Patrícia Medici, PhD
Renata Carolina Fernandes-Santos
Conheça sua história e os componentes foco da INCAB para promover o
desenvolvimento e efetiva implementação de estratégias de conservação.

8 Ampliação da gestão participativa em áreas protegidas – o manejo do pira-


rucu como estudo de caso.........................................................................71
Tatiana Maria Machado de Souza
Leonardo da Silveira Rodrigues
Saiba como a participação da sociedade em todas as partes do processo de
gestão ambiental é decisiva para o sucesso das Unidades de Conservação (UC)
e a conservação de espécies ameaçadas pela pressão humana.

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Unidades de Conservação
e espécies ameaçadas

Mirella D'Elia, 2010


Etiene Andrade Vilela dos Santos - CRMV-MG 8877
Bruno Marques Teixeira - CRMV-MG 7092
Departamento de Medicina Veterinária Preventiva (DMVP), Escola de Veterinária, UFMG.

1. Introdução ameaçado. As mudanças das paisagens


induzidas pelo homem associadas com
A fauna tem papel fundamental na a perda e fragmentação do habitat co-
manutenção do meio ambiente saudá- locam populações de animais selvagens
vel, pois, por meio da sua interação com em risco. Poucos ecosssistemas per-
a vida humana, produz serviços am- manecem inalterados, imperturbáveis,
bientais imprescindíveis por alguma forma de
à manutenção dos seres As mudanças das modificação antrópica
vivos, tais como alimen- paisagens induzidas (Vitousek et al., 1997;
to, polinização e disper- pelo homem Sanderson et al., 2002;
são de plantas, manu- associadas com a Foley et al., 2005), sen-
tenção do equilíbrio de perda e fragmentação do que alguns ambientes
populações e controle do habitat colocam estão sob sério risco, com
de pragas. Porém, esse populações de animais a maior parte de suas
papel está cada vez mais selvagens em risco. coberturas originais des-
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truídas (Myres et al., 2000). Essas mu- estratégias de conservação comprova-
danças levaram a um declínio da biodi- damente eficientes (Drummond et al.,
versidade em todo o planeta, com 37,8% 2005). É importante ressaltar que, neste
dos animais selvagens do mundo iden- início de século XXI a biodiversidade de
tificados como ameaçados na lista ver- vários ambientes pode não ser capaz de
melha da IUCN, União Internacional persistir sem efetiva proteção (Bruner et
para a Conservação da Natureza, 2008 al., 2001). No Brasil, com a finalidade
(Vié, Hilton-Taylor & Stuart 2009). A de resguardar espaços representativos
supressão da vegetação, a exploração dos recursos naturais do país, no ano
madeireira, as queimadas, a conversão de 2000, foram criadas as Unidades de
dos campos em pastagens, as monocul- Conservação.
turas, a poluição dos rios e oceanos, a Ainda há uma imensa lacuna sobre o
transformação dos ambientes através de conhecimento da nossa fauna. Estudos
construções, a introdu- nas áreas protegidas com
ção de espécies exóticas É importante ressaltar espécies que ainda pre-
invasoras, a caça, a pesca que neste início servam suas característi-
predatória e o comércio do século XXI a cas originais, ou parte de-
ilegal de espécies foram biodiversidade de vários las, podem nos fornecer
as principais causas rela- ambientes pode não ser informações fundamen-
cionadas com o processo capaz de persistir sem tais para sua conservação.
de extinção (Machado efetiva proteção. Os instrumentos utiliza-
et al., 2008; van der Ree dos para avaliar a situação
et al., 2011; Butler et al., da fauna, bem como os
2004; Manor e Saltz, 2004; Cleaveland objetivos e o funcionamento das unida-
et al., 2000; Lehrer et al., 2010). Sendo des de conservação, são temas importan-
assim, as interações diretas e indiretas tes para os profissionais que trabalham
dos animais selvagens com as atividades com os animais silvestres, em especial
humanas, ambientes modificados, colo- os que se dedicam às espécies ameaça-
cam as populações em riscos de declí- das de extinção. As informações sobre o
neo devido tanto ao aumento das taxas status de conservação das espécies e do
de mortalidade quanto à queda de fe- ambiente fornecem o fundamento para
cundidade (Ferreras et al., 2001; Naves a tomada de decisões sobre a conserva-
et al., 2003; Rhodes et al., 2011). ção da biodiversidade. O presente texto
O estabelecimento das áreas prote- tem como objetivo fornecer informações
gidas, unidades de conservação (UC), básicas sobre: unidades de conservação
que garantam a persistência de espécies brasileiras e espécies ameaçadas, com
ameaçadas em longo prazo, é uma das foco no estado de Minas Gerais.
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2. Unidades de cursos naturais; a segunda categoria tem
Conservação como objetivo básico compatibilizar a
conservação da natureza com o uso sus-
Unidade de conservação (UC) é de- tentável de parcela de seus recursos na-
finida como o espaço territorial e seus turais (Lei nº 9.985). Em Minas Gerais
recursos ambientais, incluindo as águas podem ser encontradas as seguintes
jurisdicionais, com características na- categorias de UC de proteção integral:
turais relevantes, legalmente instituído Estação Ecológica, Reserva Biológica,
pelo Poder Público, com objetivos de Parques, Monumento Natural, Refúgio
conservação e limites definidos, sob regi- da Vida Silvestre; e de uso susten-
me especial de administração, ao qual se tável: Área de Proteção Ambiental,
aplicam garantias adequadas de proteção. Florestas Extrativistas, Reserva de
A regulamentação dessas áreas se deu a Desenvolvimento Sustentável e
partir da instituição do Sistema Nacional Reservas Particulares do Patrimônio
de Unidades de Conservação (SNUC), Natural. As Áreas de Proteção Especial
Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Estaduais referem-se a locais destinados
Existem duas categorias de manejo à proteção de mananciais, do patrimô-
da UC: de proteção integral e de uso nio cultural, histórico, paisagístico e ar-
sustentável. A primeira tem como obje- queológico, assim definidos por legisla-
tivo básico preservar a natureza, sendo ção estadual ou federal. (Drummond et
admitido apenas o uso indireto dos re- al, 2009.) Na Tabela 1 é apresentado o

Tabela 1. Número de Unidades de Conservação em Minas Gerais


GRUPO CATEGORIAS QUANTIDADE
Parque 27
Estação Ecológica 10
Reserva Biológica 9
Proteção Integral
Refúgio da Vida Silvestre 2
Monumento Natural 1
Total Uso Integral 49
Área de Proteção Ambiental 12
Floresta Extrativista 2
Uso Sustentável
Reserva de Desenvolvimento Sustentável 1
Total Uso Sustentável 15
Área de Proteção Especial Área de Proteção Especial Estadual 20
Total 84
Fonte: adaptação de Drummond et al., 2009

Unidades de Conservação e espécies ameaçadas 9

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número de unidades de conservação do planejamento. Para Drummond et al.
estado de Minas Gerais. (2005), a falta de avaliação, monitora-
A gestão das UC é feita com a par- mento e gestão das UC ainda são metas
ticipação das três esferas do poder pú- a serem alcançadas.
blico: federal, estadual e municipal. Na
esfera federal, os órgãos responsáveis 3. Espécies ameaçadas
são o Ministério do Meio Ambiente, A perda da biodiversidade é uma
o Conselho Nacional do Meio questão mundialmente importante
Ambiente (CONAMA), o Instituto que necessita de uma atenção urgen-
Chico Mendes de Conservação te. Muitas espécies estão declinando
da Biodiversidade para níveis criticamente
(ICMBio) e o IBAMA. Muitas espécies estão baixos com um número
Na esfera estadu- declinando para níveis significante de espécies
al, a gestão é reali- criticamente baixos com extintas. Governos e a
zada pelo Instituto um número significante sociedade civil respon-
Estadual de Florestas de espécies extintas. dem ao desafio estabele-
(IEF) e em alguns ca- cendo metas de conser-
sos pela COPASA- vação, tentando reduzir a taxa atual de
MG. (Camargos & Lanna, 1996; perda da biodiversidade (Vié, Hilton-
Drummond et al., 2005). Taylor & Stuart 2009).
Existem vários instrumentos que Neste contexto, a lista de espécies
orientam a criação e a gestão das UC. ameaçadas de extinção, também co-
Dentre eles está o plano de manejo, um nhecida como Lista Vermelha, é um
documento técnico mediante o qual se claro apelo para uma efetiva ação e
estabelecem o zoneamento, as normas um dos instrumentos que fornecem
que devem presidir o uso da área de informações essenciais utilizados para
uma UC e o manejo dos recursos natu- se avaliar o estado de conservação
rais, inclusive da fauna. Porém, a maio- da biodiversidade. As Listas e Livros
ria das UC do estado de Minas Gerais Vermelhos são publicações periódicas
ainda não apresenta plano de manejo. da União Mundial para a Conservação
De acordo com LIMA et al. (2005), (IUCN), uma das mais antigas e im-
as unidades nacionais presentes em portantes organizações não governa-
Minas Gerais apresentavam, em média, mentais ambientalistas, em que cons-
resultados melhores que as estaduais, tam as espécies ameaçadas em todo
ressaltando-se que, do total, 87% (34 o mundo, incluindo as espécies brasi-
unidades) não possuíam plano de ma- leiras. As categorias e critérios usados
nejo, nem se encontravam em fase de pela IUCN são amplamente aceitos

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Ex nta (EX)

Ex nta na Cri camente


natureza (EW) em perigo (CR)

Com dados Ameaçada Em perigo (EN)


adequados

Quase Vulnerável
ameaçada (NT) (VU)
Avaliada
Não ameaçada
(LC)

Espécie Com dados Deficiente em


insuficientes Dados (DD)

Não avaliada

Figura 1 - Esquema para avaliação das espécies segundo a IUCN. Fonte: Machado
et al., 2008
pelas autoridades e comunidade cientí- Além da lista da IUCN, existem
fica (Machado et al., 2008; Vié, Hilton- também as listas nacionais e estadu-
Taylor & Stuart 2009). As espécies são ais. A lista estadual tem como objetivo
organizadas em diferentes categorias, de principal o de proteger aquelas espé-
acordo com critérios da IUCN (Figura cies que não constam nas listas nacio-
1). As categorias Vulnerável (VU), Em nais por serem abundantes em alguma
Perigo (EN) e Criticamente em Perigo parte do país, mas são representadas
(CR) representam, respectivamente, ní- por populações pequenas ou isoladas
veis crescentes de risco de extinção em em alguns Estados, enquadrando-se na
escalas de tempo cada vez menores, e as categoria Regionalmente Ameaçadas.
espécies classificadas em qualquer uma Como exemplo, pode ser citado o caso
delas são consideradas “ameaçadas” da anta, que está na lista de Minas
(Mace & Lande, 1991). Gerais, mas não está na lista nacio-
Unidades de Conservação e espécies ameaçadas 11

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nal por ser abundante na Amazônia tinção e, portanto, elas foram incluídas
(Machado et al., 2008). na categoria Dados Deficientes. A cate-
De acordo com a última lista da goria “Não Avaliada + Não Aplicável”
fauna brasileira publicada, 627 táxons refere-se a casos onde a avaliação não
da fauna estão ameaçados de extinção pode ser realizada. Quase metade das
(Tab. 2), distribuídos entre os grupos espécies foi considerada não ameaçada,
de invertebrados e vertebrados – pei- entre os invertebrados e vertebrados
xes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos (peixes, anfíbios, répteis, aves e ma-
(Machado et al., 2008). míferos) avaliados (Drummond et al.,
2008.) (Tab. 3).
Tabela 2. Número de espécies
ameaçadas de extinção da fauna Tabela 3. Status da fauna de Minas
brasileira por grupo taxonômico nas Gerais quanto às categorias de
listas nacionais oficiais ameaça

NÚMERO DE CATEGORIAS DE NÚMERO


GRUPO AMEAÇA ESPÉCIES
TÁXONS
Mamíferos 69 Extinta (EX) 0

Aves 160 Regionalmente Extinta (RE) 1

Répteis 20 Extinta na Natureza (EW) 0

Anfíbios 16 Ameaçada 273

Peixes 154 Quase Ameaçada (NT) 29

Invertebrados 208 Dados Deficientes (DD) 868

Total 627 Não Ameaçada (LC) 1033


Fonte: adaptação de Machado et al., 2008 Não Avaliada (NE) + Não
119
Aplicável (NA)
Na lista mais recente de MG, um Total 2323
total de 2.323 espécies de animais com- Fonte: adaptação de Drummond et al., 2008
pôs a avaliação do status da fauna. Desse
total, 273 foram consideradas amea- Com relação à situação de ameaça
çadas e uma espécie foi considerada por grupo taxonômico em MG, o Estado
extinta regionalmente. De acordo com apresentou uma espécie de mamífe-
os critérios da IUCN, 12% das espécies ro classificada como Regionalmente
foram avaliadas como Ameaçadas e 29 Extinta. O grupo das aves apresentou o
enquadraram-se na categoria Quase maior percentual de espécies ameaçadas
Ameaçada. Para cerca de 40% das espé- (41,24%), seguido pelos invertebrados
cies não foi possível avaliar o risco de ex- (31,94%), peixes (17,88%) e mamífe-
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ros (16,42%). No grupo dos anfíbios bem aquém do mínimo de 10% suge-
e répteis foram encontrados os meno- rido para a conservação e manutenção
res percentuais de espécies ameaçadas da biodiversidade. Assim, observamos
(Tab. 4). a necessidade de criação de UC: que
tenham possibilidade de conexão com
4. Considerações finais áreas protegidas já existentes e que apre-
No Brasil o número de reservas e sentam grande porte.
áreas protegidas vem crescendo nos úl- Dentro de cada Unidade de
timos anos, representan- Conservação, o plano de manejo é o
do um avanço na área de que irá direcionar as ati-
O aumento na vidades. Sua elaboração
conservação no país. De
proporção de áreas é um requisito obriga-
qualquer maneira, temos
protegidas, apesar de tório e deve ser revisado
que analisar o quanto es- significativo, ainda está a cada cinco anos para
sas unidades são efetivas bem aquém do mínimo mudanças necessárias.
para o cumprimento de de 10% sugerido
suas funções. O aumen- Importante ressaltar que
para a conservação
to na proporção de áre- poucas são as unidades
e manutenção da
as protegidas, apesar de que apresentam plane-
biodiversidade.
significativo, ainda está jamentos atualizados da

Tabela 4. Resultado da avaliação da fauna ameaçada de


Minas Gerais por grupo taxonômico

CATEGORIAS IUCN TOTAL


GRUPO TOTAL¹ RELATIVO
EX RE EW CR EM VU (%)
Invertebrados 0 0 0 8 18 25 51 31,94%

Peixes 0 0 0 37 6 6 49 17,88

Anfíbios 0 0 0 3 0 7 10 3,65

Répteis 0 0 0 1 1 4 6 2,2

Aves 0 0 0 51 39 23 113 41,24

Mamíferos 0 1 0 7 21 16 45 16,42

TOTAL 0 1 0 107 85 81 274 100

EX: Extinta, RE: Regionalmente Extinta, EW: Extinta na Natureza, CR: Criticamente em Perigo, EM: Em
Perigo, VU: Vulnerável.¹ Excluindo-se as espécies classificadas nas categorias Quase Ameaçadas (29),
Deficientes de Dados (686), Não Ameaçadas (1.033), Não Aplicável (113) e as indicadas, mas não ava-
liadas (6). Fonte: adaptação de Drummond et al, 2008.

Unidades de Conservação e espécies ameaçadas 13

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área de proteção no estado de Minas Chalmers, W. S. K.; Chillingworth, C.;
Kaare, M. & Dye, C. Serological and demogra-
Gerais, o que dificulta muito a efetivida- phic evidence for domestic dogs as a source of cani-
de dessas na conservação das espécies. ne distemper virus infection for Serengeti wildlife.
Veterinary Microbiology, v.72, p.217-227, 2000.
Além disso, o grau de conhecimento
da fauna da maioria das Unidades de 5. DRUMMOND, G. M.; MARTINS, C. S.;
Conservação tanto do estado de Minas MACHADO, A. B. M.; SEBAIO, F. A.;
ANTONINI, Y. Biodiversidade em Minas Gerais:
Gerais quanto no país é ainda incipien- um atlas para a sua conservação. Belo Horizonte,
te, e não apresentam levantamentos de Fundação Biodiversitas, 222, 2005.
fauna necessários para a compreensão 6. DRUMMOND, G. M. et al. Listas vermelhas das
do real padrão de ocorrência das espé- espécies da fauna e da flora ameaçadas de extin-
ção em Minas Gerais, 2 edição, Belo Horizonte,
cies nas UC. Fundação Biodiversitas, 2008.
Para a proteção dos recursos natu-
7. DRUMMOND, G. M. et al. Biota Minas: diagnós-
rais e uma conservação eficaz das espé- tico do conhecimento sobre a biodiversidade no
cies brasileiras, é necessária a intensifi- Estado de Minas Gerais – subsídio ao Programa
Biota Minas. Fundação Biodiversitas, 624 p, 2009.
cação de pesquisas para o levantamento
8. Ferreras, P.; Gaona, P.; Palomares, F. &
da fauna existente. A atualização dos Delibes, M. Restore habitat or reduce mortality?
planos de manejos dessas unidades é Implications from a population viability analysis of
primordial. Lembrando-se que com- the Iberian lynx. Animal Conservation, v.4, p.265-
274, 2001.
preendemos que a conservação está re-
9. Foley, J. A.; DeFries, R.; Asner, G. P.;
lacionada com o manejo sustentável de Barford, C.; Bonan, G.; Carpenter, S.
toda a paisagem e, sendo assim, as áre- R.; Chapin, F. S.; Coe, M. T.; Daily, G. C.;
as protegidas devem ser tratadas como Gibbs, H. K.; Helkowski, J. H.; Holloway,
T.; Howard, E. A.; Kucharik, C. J.;
parte dessa paisagem. Monfreda, C.; Patz, J. A.; Prentice, I. C.;
Ramankutty, N.; & Snyder, P. K. Global
5. Referências consequences of land use. Science, v.309, p.570-
574, 2005.
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14 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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Unidades de Conservação e espécies ameaçadas 15

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Medicina da conservação:
a ciência da saúde do
ecossistema
Mirella D'Elia, 2013

Júlia Angélica Gonçalves da Silveira1 - CRMV/MG 8185,


Mirella Lauria D’Elia2
1
Instituto de Ciências Biológicas (ICB), UFMG
Email para contato: juliaags@yahoo.com.br
2
Departamento de Medicina Veterinária Preventiva (DMVP), Escola de Veterinária, UFMG
Email para contato: mirelladelia@gmail.com

1. Introdução e tivas de caráter antrópico. Essa pressão


importância econômica com o consequente desequilíbrio am-
biental tem promovido a emergência
da conservação de patógenos, como parasitos, bactérias,
Os ecossistemas naturais encon- fungos e vírus, em todo o mundo. A pre-
tram-se sob forte e crescente pressão hu- sente ameaça que as doenças emergen-
mana, sofrendo fragmentação, redução tes representam à população humana e
e destruição de grandes áreas nativas em à vida selvagem constitui um indicador
decorrência do avanço da agricultura, alarmante da saúde ecológica, com gra-
pecuária entre outras atividades produ- ves mudanças nos ecossistemas e cujos
16 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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impactos ambientais po- para a sociedade, pois
Dentro desse contexto
dem ser locais e globais. dão base à vida e dos
de desequilíbrio
Dentro desse con-
ecológico, surgiu a ideia quais a humanidade de-
texto de desequilíbrio pende. Igualmente, con-
de que precisamos
ecológico, surgiu a ideia sidera que a consciência
olhar para além das
de que precisamos olhar da população acerca da
espécies e considerar
para além das espécies e perda da biodiversidade
o funcionamento dos
considerar o funciona- está aumentando, o que
ecossistemas como um
mento dos ecossistemas leva a mudanças signifi-
todo, já que animais,
como um todo, já que cativas nas preferências
vegetais e o homem
animais, vegetais e o ho- do consumidor e nas
coabitam um mesmo
mem coabitam um mes- decisões sobre o consu-
ambiente.
mo ambiente. mo. Como reflexo dessa
No meio ambiente demanda, os setores in-
ocorre um fluxo contínuo de patógenos dustriais e de serviços estão começando
entre o ser humano, animais domésti- a se preocuparem com a biodiversidade,
cos e silvestres, de forma que essa troca os ecossistemas e a sua conservação.
apresenta um caráter dinâmico, ocor- Finalmente, o PNUMA ressalta a neces-
rendo alterações constantes. Sendo as- sidade de olharmos para além das espé-
sim, é esperado que o surgimento de en- cies e considerar o funcionamento dos
fermidades e seus efeitos sobre
a saúde humana, animal e vege-
tal também sejam dinâmicos e
dependentes entre si (Mangini
SAÚDE
e Silva, 2006) (Fig. 1). ANIMAL
Em 1972 foi criado o
PNUMA – Programa das SAÚDE SAÚDE
Nações Unidas para o Meio VEGETAL AMBIENTAL

Ambiente – com o intuito de


quantificar os prejuízos cau- SAÚDE
sados pela degradação am- HUMANA

biental e os possíveis ganhos


gerados pela preservação da
biodiversidade e o uso de pro-
dutos certificados. O Programa Figura 1. Interação entre as saúdes vegetal, animal e humana
considera que os serviços ecos- que compõem a saúde ambiental
sistêmicos são fundamentais Ilustração: Mirella Lauria D’Elia e Júlia Silveira.

Medicina da conservação: a ciência da saúde do ecossistema 17

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ecossistemas como um todo, reforçan- pouco significativas em razão de seu
do a importância da medicina da con- desconhecimento e as epidemias eram
servação (Balmford et al., 2002; Bishop fatores aleatórios, já que em um ambien-
et al., 2010). te preservado esses fatores são compo-
Como exemplo do ganho econô- nentes naturais da dinâmica populacio-
mico relativo às áreas preservadas, foi nal. Com o passar do tempo, o aumento
quantificada a contribuição das áreas do interesse e do conhecimento sobre a
protegidas brasileiras para a economia vida selvagem somado à quantificação
nacional e constatou-se que dez áreas dos valores monetários dos bens na-
preservadas na Amazônia movimen- turais provocou a observação de que o
taram em torno de US$ 1,76 milhões/ uso inadequado de áreas naturais po-
ano e geraram 218 empregos diretos deria ocasionar prejuízos econômicos.
no ano de 2003 (Amend et al., 2003). Nesse contexto de crise pela perda da
Levando-se em consideração que os diversidade biológica, os biólogos e
animais silvestres habitam tais áreas pre- outros profissionais começaram a atu-
servadas, torna-se imprescindível, para ar em uma nova área de conhecimento
a manutenção da biodiversidade, o co- denominada biologia da conservação
nhecimento das múltiplas interações e (Primack e Rodrigues, 2001).
inter-relações possíveis entre os agentes No final da década de 1980, houve
etiológicos, os hospedeiros, o ambiente um aumento do número de epidemias
e, consequentemente, as doenças. graves em ambientes diversos e as do-
enças tornaram-se grandes obstáculos
2. História da medicina da ao equilíbrio ecológico, sendo os pro-
conservação blemas de saúde populacional citados
A importância dada à conservação como importantes no surgimento da
da natureza e de ambientes naturais pre- medicina da conservação: a ocorrência
servados vem se modificando ao longo de morbiliviroses em mamíferos ma-
dos anos. Nas décadas de 1960 e 1970 rinhos; o declínio global de anfíbios
acreditava-se que os re- por múltiplas causas; o
cursos naturais eram Nas décadas de 1960 surgimento da pneumo-
inesgotáveis e a manu- e 1970 acreditava-se nia asiática em humanos
tenção de áreas nativas que os recursos naturais e a chegada da Febre
indenes era sustentada eram inesgotáveis e a do Nilo à América do
apenas pelo seu valor manutenção de áreas Norte (Mangini e Silva,
existencial. Nessa época, nativas indenes era 2006). Em populações
as doenças em popula- sustentada apenas pelo humanas, também re-
ções de vida livre eram seu valor existencial. gistraram-se, naquela
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época, graves epidemias causados por No Brasil, as primeiras iniciativas
patógenos de caráter zoonótico, como em medicina da conservação acontece-
o enterovírus EV-70, responsável pela ram no início dos anos 2000. Em 2004,
conjuntivite hemorrágica aguda (CHA) foi criado o Instituto Brasileiro para
e originária, provavelmente, da mutação a Medicina da Conservação (IBMC-
de um vírus que infecta normalmente Tríade). Três anos depois, o Instituto
populações animais (Karnauchow et al., de Ensino, Pesquisa e Preservação
1996). Na transição do século XX para Ambiental Marcos Daniel - IMD (www.
o XI, várias mudanças imd.org.br) promoveu o
ambientais significati- O aumento da I Encontro Internacional
vas ocorreram, como o circulação de pessoas, de Medicina da
aumento da degradação animais e produtos, em Conservação em parceria
ambiental, das altera- âmbito mundial, como com o Tríade (www.tria-
ções climáticas e da per- resultado da progressiva de.org.br) e a Faculdade
da de biodiversidade. O globalização, facilitou de Saúde e Meio
aumento da circulação o acesso a áreas Ambiente (FAESA).
de pessoas, animais e
geograficamente Esse evento foi marcado
produtos, em âmbito
distantes e isoladas, pela produção da “Carta
mundial, como resulta-
contribuindo para
de Vitória”, com diretri-
a disseminação de
do da progressiva globa- zes para a medicina da
espécies exóticas,
lização, facilitou o acesso conservação na América
incluindo patógenos e
a áreas geograficamen-
seus carreadores, além Latina (disponível em
te distantes e isoladas,
de outras consequências www.imd.org.br/eimc).
contribuindo para a dis- O segundo fruto des-
socioambientais.
seminação de espécies se trabalho pioneiro na
exóticas, incluindo pató- América Latina veio em
genos e seus carreadores, além de outras 2009, com o II Encontro Internacional
consequências socioambientais. Nesse de Medicina da Conservação que, além
cenário, a importância da conservação do Tríade e do IMD, contou com a par-
de uma espécie-alvo, passou a dar lugar ceria da Universidade Federal Rural de
à importância da conservação de um Pernambuco e do Instituto Brasileiro
conjunto composto pela espécie-alvo do Meio Ambiente e dos Recursos
e seu entorno, o ambiente, as espécies Naturais Renováveis (IBAMA). Na
vegetais e animais coabitantes, surgindo oportunidade, a médica veterinária
assim uma nova área de conhecimento argentina Marcela Maria Uhart da
multidisciplinar denominada medicina Wildlife Conservation Society (WCS)
da conservação. apresentou diversos trabalhos acerca
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do monitoramento de zoonoses emer- biologia da conservação e o manejo de
gentes pelo mundo do programa “One vida silvestre, já vinham produzindo um
World One Health”, com trabalhos in- extenso material acerca dessa relação,
clusive no Brasil. Na época, a WCS em mas cada um sob seu prisma investiga-
parceria com a empresa Cargill finan- tivo, de maneira isolada. Por esse moti-
ciava projetos de pesquisa sobre saúde, vo, o grande diferencial da medicina da
produção de alimentos e meio ambien- conservação é que se trata de uma ciên-
te no Brasil (www.oneworldonehealth. cia focada na interseção entre ambiente,
org). Atualmente mais de vinte e cin- hospedeiros humanos e não humanos e
co instituições desenvolvem projetos patógenos (Fig. 2), necessitando da in-
na área da medicina da conservação, tegração e parcerias multidisciplinares
como, por exemplo, o IBMC-Tríade, o entre diversos profissionais, como veteri-
Instituto de Pesquisas Ecológicas (www. nários, biólogos, médicos, ecólogos, epi-
ipe.org.br), o Instituto Onça Pintada demiologistas, zootecnistas, engenheiros
(www.jaguar.org.br), o Instituto Pró- ambientais, etc.
Carnívoros (www.procarnivoros.org. Recentemente os pesquisadores
br), a Associação Mata Ciliar (www. brasileiros Mangini e Silva (2006) defi-
mataciliar.org.br), o Instituto Oswaldo niram medicina da conservação como “a
Cruz (FIOCRUZ) e universidades, ciência para a crise da saúde ambiental e
como a UNESP, a USP, a UEL e, mais a consequente perda da diversidade bio-
recentemente, a Escola de Veterinária lógica, desenvolvida por meio da trans-
da UFMG (www.ecoas.org). disciplinaridade na execução de pesqui-
3. Conceito sas, ações de manejo e políticas públicas
O termo “medicina da conservação” ambientais voltadas à manutenção da
foi introduzido por Koch em 1996, de- saúde de todas as comunidades biológi-
finido como “um amplo contexto ecoló- cas e seus ecossistemas”.
gico, no qual a saúde das espécies está Como podemos observar, a medi-
interconectada aos pro- cina da conservação, se
cessos ecológicos que O grande diferencial é que conseguiremos
governam a vida”. Apesar da medicina da algum dia defini-la em
de ser um termo relativa- conservação é que se uma única sentença, é
mente novo, o interesse trata de uma ciência o resultado da conver-
dos pesquisadores sobre focada na interseção gência de três campos
o complexo conserva- entre ambiente, de atuação que, por si
ção-doença não é recen- hospedeiros humanos só, são desafiantes o su-
te e diversas áreas, como e não humanos e ficiente em termos de
a ecologia parasitária, a patógenos. complexidade: a saúde
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humana, a saúde animal e a saúde am- existente dentre cada grupo, possibilita
biental. Sendo assim, faz-se necessária a manutenção de um fluxo contínuo de
a análise das relações existentes entre agentes com diferentes níveis de pato-
diversos fatores, como as mudanças nos genicidade. Contudo, fatores de caráter
habitat de animais silvestres e no uso da antrópico relacionados a cada uma des-
terra, a emergência e reemergência de sas esferas (Fig. 2), e que ocorrem sem
agentes infecciosos e a manutenção da as devidas avaliações de risco e impacto
biodiversidade e das funções dos ecos- no meio, podem favorecer a adaptação
sistemas que sustentam a saúde das co- de diversos agentes potencialmente pa-
munidades vegetais e animais, incluin- togênicos a novos hospedeiros e a novas
do o ser humano. situações de desafio.
Dois processos distintos se desta-
4. Causas e manutenção cam pela sua importância na manuten-
de enfermidades em um ção desses no ambiente, denominados
ambiente spill-over e spill-back. De acordo com
A crescente proximidade entre seres Schloegel e Daszak (2004), spill-over
humanos, animais domésticos e ani- trata-se de uma situação epidemiológica
mais silvestres, além da interação já na qual um agente etiológico adaptado a
Globalização - Urbanização
Manipulação biomédica

Invasão humana HUMANOS Alimento


Manipulação ecológica Pecuária
Contato em caveiro Indústria

AMBIENTE
SILVESTRES DOMÉSTICOS
Migração Intensificação
Soltura da pecuária
Translocação Trânsito de animais

Introdução, invasão
Spill-over e Spill-back
Figura 2. Fatores relacionados ao fluxo de agentes potencialmente patogênicos entre as esferas huma-
nos, animais silvestre e animais domésticos.
Ilustração: Mirella Lauria D’Elia e Júlia Silveira. Adaptado de Daszak et al., 2000.

Medicina da conservação: a ciência da saúde do ecossistema 21

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um hospedeiro X (hospedeiro original) gico internacional; a coabitação entre
infecta um hospedeiro Y adaptando-se a espécies nativas e cultivadas devido à
esse novo hospedeiro. Já spill-back está intensificação da agricultura e pecuária;
relacionado ao retorno ao hospedeiro X a negligência epidemiológica no trân-
desse agente etiológico, anteriormente sito, translocação e soltura de animais
adaptado ao hospedeiro (Fig. 3). Esse selvagens.
trânsito de patógenos pode ter conse-
quências imprevisíveis para os novos 5. Papel dos animais
hospedeiros e para os hospedeiros ori- silvestres na manutenção
ginais, em razão das possíveis mudanças de patógenos em um
na patogenicidade e na virulência dos ambiente
agentes.
Além do trânsito de patógenos, As pesquisas sobre a sanidade de
diversas são as alterações ambientais animais silvestres podem auxiliar na
relacionadas à emergência de agentes identificação, no ambiente natural, de
etiológicos potencialmente patogêni- hospedeiros preferenciais e de possí-
cos, tais como: o aumento da população veis reservatórios de agentes etiológicos
humana; o desmatamento e o avanço com potencial patogênico e, igualmen-
do espaço urbano sobre ambientes na- te, identificar o papel desses animais na
turais; o aumento do turismo ecoló- manutenção de patógenos no ambiente
Spill-over

Spill-back
Figura 3. Exemplo de ocorrência de spill-over e spill-back entre cervídeos e bovinos. Imagens: Mirella
D’Elia, 2012; Paula Senra, 2012.

22 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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e nas cadeias de transmissão e de dis- assim, auxiliando na detecção precoce
persão de doenças. Por outro lado, al- de perturbações ambientais através da
gumas espécies de animais silvestres sua capacidade de refleti-las. Os diag-
podem atuar como espécies sentinelas nósticos laboratoriais são importantes
na epidemiologia de certas doenças ou no monitoramento da saúde da espécie
infecções, pois, mediante o seu monito- sentinela e do seu ecossistema, devendo
ramento, podem indicar a atividade e a estar associados aos estudos de campo
circulação de agentes etiológicos espe- desenvolvidos pelas equipes de pes-
cíficos ou potencialmente ameaçadores quisa (Caro e O’Doherty, 1999; Tabor
no ambiente e, concomitantemente, na e Aguirre, 2004). Como exemplos de
circulação de patógenos entre animais espécies sentinelas, temos animais que
silvestres e domésticos e o homem. exercem a função de hospedeiros de um
As espécies silvestres sentinelas são patógeno transmitido por vetor, mas
espécies selecionadas para exercerem a não desenvolvem doença crônica, sendo
função de indicadoras da qualidade de assim improvável fonte de infecção para
saúde do ambiente em que estão inse- novos vetores. É o caso das suçuaranas
ridas, fornecendo informações sobre o (Puma concolor) (Fig. 4) em relação ao
estado de saúde de um ecossistema e, agente (Anaplasma phagocytophilum)

Figura 4. Exemplar de Puma concolor, da instituição NEX (No Extinction). Paula Senra, 2013.

Medicina da conservação: a ciência da saúde do ecossistema 23

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transmitido por carrapato e responsável a população-alvo (por meio de infecção
pela anaplasmose granulocítica, sendo experimental); além da caracterização
considerada uma zoonose (Foley et al., genética do patógeno em diferentes po-
2004). pulações e a delimitação da população-
Já os animais silvestres reservatórios -alvo (Haydon et al., 2002; Lanfranchi
apresentam diferentes definições na lite- et al., 2003). Temos como exemplo
ratura, sendo considerados espécies que prático para definir uma dada espécie
mantêm a infecção em um ambiente. como reservatório a probabilidade de
Segundo Haydon et al. (2002), trata-se um ruminante selvagem, como o vea-
de “uma ou mais populações conecta- do campeiro (Ozotocerus bezoarticus),
das epidemiologicamente ou ambien- atuar como reservatório do protozoário
talmente nas quais o patógeno pode ser Babesia bovis, transmitido pelo carrapa-
mantido permanentemente e a infecção to Riphicephalus microplus e responsável
transmitida para a população alvo”. É por grande impacto econômico na pe-
importante considerar a condição de cuária nacional. Essas duas espécies ru-
reservatório como temporal e espacial minantes coabitam o mesmo ambiente
e ainda sob uma abordagem sistêmica, em algumas regiões brasileiras, como o
pois a interação entre os patógenos e as Pantanal. Para considerarmos o veado
espécies susceptíveis apresenta um ca- como reservatório do agente, é preciso
ráter dinâmico devido às variadas pres- observar se, excluindo o contato entre
sões seletivas. Essas interações entre gado e cervo, o agente deixaria de es-
parasito e hospedeiro podem provocar tar presente no rebanho bovino. Nesse
mudanças no perfil epidemiológico de caso, o veado campeiro seria considera-
diversas parasitoses, além da emergên- do reservatório de B. bovis e, para a eli-
cia de novas doenças ou de outras consi- minação da infecção, seriam necessárias
deradas controladas (Abdussalam, 1959 medidas de controle direcionadas para
Ávila-Pires, 1989). Para a identificação esses cervídeos.
de um reservatório, deve-se incluir: o
acúmulo de evidências epidemiológicas 6. A interdisciplinaridade
que associam o potencial reservatório na medicina da
com a população-alvo; a evidência da conservação: o papel do
infecção natural na população não alvo
(por meio da identificação prévia da
médico veterinário e do
infecção por detecção de anticorpos,
zootecnista
pelo isolamento do agente infeccioso Apesar de ser um evento cada vez
ou, ainda, pela detecção do seu gene no mais comum, a transmissão de doenças
hospedeiro) somada à transmissão para infecciosas entre o ser humano, os ani-
24 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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mais domésticos e os animais silvestres vigilância epidemiológica (Mangini e
pode assumir um papel transcendental Silva, 2006).
do ponto de vista epidemiológico, e
ameaçador, do ponto de vista da con- 7. Conclusão
servação das espécies. Populações re- Podemos notar que a medicina da
duzidas ou em declínio, em situação de conservação não envolve apenas mé-
má nutrição, submetidas à endogamia e dicos veterinários especializados em
ao estresse contínuo em seu habitat na- animais selvagens, mas especialistas
tural, são tremendamente vulneráveis e de diferentes áreas que levam em con-
altamente predispostas a sucumbirem sideração o cenário global da conser-
durante a emergência ou reemergên- vação. Apesar da diversidade da fauna
cia de doenças infecciosas (Furtado e brasileira, os estudos sobre o papel
Filoni, 2008). das espécies nativas na epidemiologia
A investigação e o manejo da saúde das doenças infecciosas, os impactos
animal tornam-se uma vertente impor- dos patógenos nas populações silves-
tante na manutenção do tres e a morbidade e
equilíbrio do ecossiste- Apesar de ser um mortalidade de do-
ma, sendo o médico ve- evento cada vez mais enças tropicais nes-
terinário um profissional comum, a transmissão sas espécies ainda são
imprescindível nessa in- de doenças infecciosas escassos.
vestigação, tanto da saúde entre o ser humano, os Contudo, as ini-
de animais domésticos animais domésticos e ciativas de insti-
quanto de animais silves- os animais silvestres tuições de ensino,
tres. Essa linha de atuação pode assumir um papel grupos de pesquisa
realiza estudos relacio- transcendental do ponto e organizações não
nados à epidemiologia de vista epidemiológico, governamentais na
das doenças nas espécies e ameaçador, do ponto área de medicina
selvagens in-situ e ex-situ; de vista da conservação da conservação no
impactos de agentes etio- das espécies. Brasil têm alcançado,
lógicos nas populações a cada ano, maior vi-
de animais selvagens; im- sibilidade. Em 2012,
portância do trânsito de doenças entre o instituto Tríade em parceria com a
espécies domésticas e selvagens; im- Fundação Oswaldo Cruz promoveu
pactos de zoonoses e agentes estressan- a 1a Conferência Brasileira em Saúde
tes nas populações animais; doenças Silvestre e Humana. Em 2013, a USP
prevalentes que afetam as populações sediou a 1a Reunião da Wildlife Disease
animais; saúde pública veterinária e Association – Latin America. Eventos
Medicina da conservação: a ciência da saúde do ecossistema 25

ctimpresso 72.indb 25 24/04/2014 20:31:59


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Benefícios econômicos locais de áreas protegidas
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expressa a crescente demanda de ve-
4. BALMFORD, A.; BRUNER, A.; COOPER.;
terinários e zootecnistas na área, com COSTANZA, R.; FARBER, S.; GREEN, R.E.;
intuito de ampliarmos e auxiliarmos JENKINS, M.; JEFFERISS, P.; JESSAMY, V.;
MADDEN. J.; MUNRO, K.; MYERS, N.; NAEEM,
outros profissionais nesse grande que- S.; PAAVOLA, J.; RAYMENT, M.; ROSENDO,
bra-cabeças em um país com imensas S.; ROUGHGARDEN, J.; TRUMPER, K.;
extensões territoriais e, em mesma TURNER, R.K. 2002. Economic reasons for con-
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L.H., LAURENSON, M.K., 2002. Identifying re-

26 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

ctimpresso 72.indb 26 24/04/2014 20:31:59


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Medicina da conservação: a ciência da saúde do ecossistema 27

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Implicações epidemiológicas
da interface entre humanos,
animais domésticos e
silvestres
Nelson Henrique de Almeida Curi -
CRMV-MG 6454
Programa de Pós-Graduação em Ecologia
Aplicada – UFLA
Projeto Mesopredadores / Cães na Mata
Atlântica, Projeto Javalis na Mantiqueira

1. Introdução
Desde mais de duas dé-
cadas atrás a importância
bilateral das doenças para a
conservação da biodiversi-
dade e para a saúde humana
é bem reconhecida (Daszak
et al., 2000). Desde então
existem questionamentos
sobre o que ocorre quan-
to à transmissão de doen-
ças e parasitas em áreas de bigstockphoto.com

interface entre humanos,


animais domésticos e silvestres. Mas o nários tais como propriedades rurais
que é a interface entre humanos, ani- no entorno de fragmentos da Mata
mais domésticos e silvestres? Quais são Atlântica, ou vilas de ribeirinhos que vi-
seus componentes e quais interações vem de caça e pesca na Amazônia, mas
ocorrem nela? A imagem dessa interface que também criam animais domésticos
pode ser diferente para muitas pessoas. para complementar sua dieta. Todas as
Alguns podem pensar em aves invadin- visões estão corretas e representam a in-
do uma granja de produção, outros em terface, porém muitas facetas permeiam
peões e rebanhos em suas rotas anuais tais paisagens. Questões culturais, eco-
pelo Pantanal, e alguns imaginam ce- nômicas, ecológicas, conservacionistas
28 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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e de saúde estão envolvi- agrícola como o Brasil,
A interface é um
das, desde que humanos tal interface representa
ambiente dinâmico
e seus animais domésti- um espaço significati-
onde convivem
cos começaram a fazer
elementos antrópicos e vo, apesar de ainda ter
parte da paisagem do sido pouco estudado na
naturais.
planeta (Cleaveland et maioria de seus aspectos.
al., 2001; Kock, 2005). Nessa faixa existe
A interface é um ambiente dinâmico a possibilidade de infinitas interações
onde convivem elementos antrópicos e ecológicas. A proximidade entre hu-
naturais. Pessoas, espécies domésticas, manos, espécies domésticas e silvestres
silvestres e o próprio ambiente coexis- oferece inúmeras oportunidades para a
tem, interagem e têm contato frequente. ocorrência de interações interespecífi-
Os limites da interface não são nítidos, cas importantes. Por exemplo, cães do-
devido à mistura de seus componentes mésticos (Canis familiaris) rurais, além
em diferentes graus: o homem e as espé- de predar, podem competir em três di-
cies domésticas conectam áreas antropi- ferentes níveis com espécies silvestres
zadas e naturais quando adentram ma- de pequeno e médio tamanho corporal
tas e áreas “preservadas”, em áreas de interface:
enquanto espécies sil- A proximidade entre 1. Competição por ex-
vestres fazem o mesmo humanos, espécies ploração, que provavel-
quando se aproximam de domésticas e silvestres mente ocorre em menor
fazendas e áreas periur- oferece inúmeras extensão, exceto quando
banas em busca de comi- oportunidades para a densidades de cães são
da, abrigo, conspecíficos ocorrência de interações altas e as de presas são
ou de áreas para disper- interespecíficas baixas; 2. Competição
são, acompanhados de importantes. por interferência, quan-
seus patógenos. Vetores do cães afastam ou des-
de parasitas, como mos- locam espécies de pe-
quitos e carrapatos, ocorrem tanto em queno e médio porte por perseguição
ambientes naturais quanto antropiza- e afugentamento; e 3. Competição apa-
dos nessas áreas. Então, provavelmente rente, quando um parasita compartilha-
existem faixas de interface, ao invés de do tem menor impacto na população de
simples linhas dividindo ambientes na- cães do que em espécies nativas simpá-
turais e antropizados. Ambientes rurais tricas com menor imunidade (Vanak e
estão frequentemente inseridos nessas Gomper, 2009). Mudanças ambientais
faixas, e em um país notável tanto pela nessa interface também podem influen-
biodiversidade quanto pela produção ciar profundamente seus componentes

Implicações epidemiológicas da interface entre humanos, animais domésticos e silvestres 29

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(humanos, animais do- aumentar a transmissão
A epidemiologia
mésticos e silvestres, e de doenças para espé-
e as relações
seus patógenos) em seu cies mais raras (Bradley
entre o ambiente,
comportamento, abun- e Altizer, 2006). Embora
hospedeiros, vetores
dância e distribuição. a prevalência de doenças
e parasitas podem
Consequentemente, na vida silvestre tenda a
ser extremamente
a epidemiologia e as re-
complexas na interface ser maior em paisagens
lações entre o ambiente, antropizadas, os efeitos
hospedeiros, vetores e de mudanças antrópicas
parasitas podem ser extremamente com- na paisagem na ocorrência de doenças
plexas na interface e estão no foco desta ainda são pouco conhecidos (Brearley
palestra. Como objetivo, et al., 2012). A criação
pretendo provocar re- A presença humana de novas interfaces com
flexões apresentando e está se intensificando a expansão da ocupação
exemplificando fatores em praticamente humana pode ser con-
importantes para a dinâ- todos os ambientes, e siderada como um tipo
mica epidemiológica em a urbanização pode agressivo de invasão bio-
áreas de interface, e mos- alterar a biologia de lógica. Espécies domés-
trando algumas de suas hospedeiros, vetores e ticas são componentes-
consequências para a patógenos. -chaves na interface e
saúde de humanos e ani- podem ser ecologicamen-
mais domésticos, e, por te consideradas como
fim, para a saúde de populações silves- invasoras em áreas onde não são nativas
tres e a conservação da biodiversidade.
e foram introduzidas pelo homem, que
por sua vez também é um invasor por ex-
2. Dinâmica da celência. Embora boa parte dos animais
transmissão de parasitas que criamos vive em regime de confi-
em interfaces namento ou restrição de movimentos,
A presença humana está se intensifi- muitos são criados livres, por exemplo,
cando em praticamente em sistemas agropastoris
todos os ambientes, e a A criação de novas e de criação extensiva, ou
urbanização pode alterar interfaces com a animais errantes e ferais
a biologia de hospedei- expansão da ocupação (ou asselvajados). Nos
ros, vetores e patógenos. humana pode ser últimos casos, a interação
Hospedeiros adaptados considerada como com espécies silvestres é
a áreas antropizadas po- um tipo agressivo de provavelmente maior. E
dem ser competentes e invasão biológica. mesmo os animais con-
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finados podem ser “visitados” por ani- depende também de outros inúmeros
mais silvestres, em eventos de predação fatores, e podem ocorrer três tipos de si-
ou compartilhamento de alimentos pro- tuações quando uma espécie introduzida
vidos pelo homem. Existe atualmente traz seus parasitas e entra em contato com
uma grande preocupação com a partici- espécies nativas (Tompkins et al. 2011):
pação de espécies invasoras nas cadeias 1. A perda de parasitas pode beneficiar o
de transmissão de doenças na interface, invasor e pode ocorrer devido ao acaso
porém a direção da transmissão (de do- (quando indivíduos não parasitados são
mésticos para silvestres ou vice-versa) é introduzidos), ou por restrições ecológi-
quase sempre desconhecida. A literatu- cas ao ciclo do parasita na nova área (por
ra mostra que a transmissão pode ocor- exemplo, falta de espécies de hospedeiros
rer em ambas as direções, dependendo intermediários); 2. A introdução de para-
de peculiaridades dos hospedeiros, dos sitas (spill-over) ocorre quando a espécie
agentes e do ambiente. introduzida dissemina o agente para espé-
O número reprodutivo básico dos cies nativas; e 3. A aquisição de parasitas
parasitas (R0) representa o número de (spill-back) ocorre quando a espécie inva-
infecções secundárias após a infecção de sora adquire parasitas do novo ambiente.
um hospedeiro inicial. A transmissão se Se a espécie invasora for um hospedeiro
sustenta quando a densidade de hospedei- menos competente, ocorrerá a diluição
ros é suficiente para o contato (e R0 > 1). da abundância e do impacto dos parasi-
Então, podemos concluir que boa parte tas, mas, se o invasor for um hospedeiro
das populações de espécies Neotropicais, competente e favorecer a reprodução do
que ocorrem em densidades relativamen- parasita, pode ocorrer uma amplificação
te baixas, não permite a persistência de da infecção, e os hospedeiros nativos po-
patógenos (principalmente aqueles com dem ser mais afetados. Evidências recen-
transmissão dependente da densidade). tes mostram que eventos de spillback são
Contudo, especialmente para patógenos mais comuns do que se pensava na natu-
generalistas, a presença e o influxo cons- reza (Kelly et al., 2009).
tante de populações frequentemente
densas de animais domésticos simpátri-
3. Fatores
cos pode garantir a transmissão. Isto já foi epidemiológicos
demonstrado na natureza, principalmen- importantes em interfaces
te com doenças de ungulados africanos
e seus vizinhos, os bovinos domésticos 3.1 Fatores ambientais
introduzidos (Lyles e Dobson, 1993. Em um ecossistema, a complexida-
Hudson et al., 2002). de, a quantidade e a força das interações
Porém, a transmissão de doenças entre espécies compreendem também
Implicações epidemiológicas da interface entre humanos, animais domésticos e silvestres 31

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as relações com e entre espécies de pa- de hospedeiros, onde a transmissão de
rasitas. Ecossistemas que possuem suas doenças dependerá de fatores, como
comunidades de hospedeiros e parasitas a densidade dentro das populações e a
mais diversificadas são mais resilientes frequência de contatos entre as popula-
(Hudson et al., 2006), e a biodiversidade ções (Hudson et al., 2002; Ward et al.,
funciona como uma barreira contra in- 2009).
vasões ecológicas (Kenedy et al., 2002). A topografia e a presença de bar-
Existe um consenso na literatura, após reiras físicas no ambiente também são
intenso debate, quanto à relação nega- determinantes para a movimentação e
tiva entre biodiversidade e as doenças, deslocamento de hospedeiros e parasi-
ou seja, quanto maior a biodiversidade, tas. Por exemplo, barreiras, como rios e
menor o risco de doenças (Keesing et estradas, podem limitar a disseminação
al., 2006), ou que a preservação de ecos- da peste suína clássica em javalis (Sus
sistemas intactos e sua biodiversidade scrofa) (Rossi et al., 2005). Ambientes
funciona como proteção contra doen- fragmentados podem ambiguamente
ças inclusive para humanos (Keesing et favorecer a ocorrência de doenças pelo
al., 2010), o que é também um excelente aumento de densidade e contatos en-
argumento conservacionista. tre indivíduos dentro dos fragmentos,
A estrutura da paisagem também in- ou a matriz pode funcionar como uma
fluencia fortemente a rede de contatos barreira para a transmissão. Corredores
entre hospedeiros e, consequentemen- ecológicos podem promover a dissemi-
te, a dinâmica de transmissão de para- nação e a persistência de doenças entre
sitas em populações silvestres (Ward et populações. De acordo, a persistência
al., 2009). A heterogeneidade espacial e de peste suína clássica em javalis é mais
temporal do ambiente influencia a trans- provável em grandes metapopulações
missão de patógenos, e a distribuição de da espécie conectadas por corredores
habitat e recursos favoráveis interfere na (Rossi et al., 2005).
dinâmica de hospedeiros, vetores e pa- Um dos fenômenos mais interessan-
rasitas. Portanto, sistemas heterogêneos tes que podem ocorrer em interfaces é
oferecem maior complexidade ambien- a chamada zooprofilaxia. A presença de
tal e maior diversidade de nichos (no animais silvestres, ou mesmo domésti-
sentido de oportunidades ou escolhas) cos, pode reduzir ou mesmo evitar as ta-
tanto para espécies de vida livre como xas de infecção em humanos. Isso pode
para parasitas. Como implicação impor- ocorrer com doenças transmitidas por
tante para a transmissão de doenças, a vetores. Por exemplo, foi mencionado o
heterogeneidade da paisagem também efeito zooprofilático de galinhas (Gallus
favorece a dinâmica de metapopulações gallus) contra a infecção humana por
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Leishmania sp. (Alexander et al., 2002). por doenças perto de vilas pastorais,
A presença de suínos e galinhas pode es- onde existem maiores taxas de contato
tar relacionada com menor prevalência com cães domésticos que vivem soltos
de leishmaniose visceral em cães rurais (Alexander e McNutt 2010, Woodroffe
de zonas de interface (Curi et al., dados et al. 2012). Atividades agrícolas po-
não publicados). A principal explicação dem alterar a abundância de espécies
biológica para o fenômeno nesses casos de vetores invertebrados e parasitas
reside no fato de que as espécies “zoo- como consequência da irrigação e do
profiláticas” provavelmente são alvos ou controle de pragas. Como exemplo, o
fontes de alimento preferidas pelos ve- aumento da incidência de malária em
tores, e sua presença reduz a quantidade áreas com manejo deficiente dos sis-
de picadas e a transmissão do parasita temas de irrigação, provendo acúmulo
para outras espécies de hospedeiros. de água que favoreceu a reprodução
do vetor na África (Ward et al. 2009).
3.2 Fatores humanos Portanto, o tipo e a qualidade do ma-
Como aspecto de um dos com- nejo e do grau de sanidade dos animais
ponentes principais das interfaces, o domésticos são fundamentais para de-
comportamento humano interfere for- terminar a presença e persistência de
temente na transmissão de doenças. patógenos e sua transmissão entre hu-
As atividades humanas e o uso da terra manos, animais domésticos e silvestres
interferem drasticamente na paisagem em interfaces.
e alteram a distribuição e a dinâmica O manejo de plantas também pode
de hospedeiros e parasitas. Primeiro, influenciar a dinâmica de hospedeiros
a atitude dos humanos frente à vida e parasitas, desde que a vegetação fun-
silvestre é crucial para a sobrevivência ciona como substrato para a sobrevi-
de populações. Em áreas onde há caça, vência de várias espécies de hospedei-
populações de hospedeiros podem ros, vetores e parasitas envolvidas nas
ser reduzidas enquanto seus compe- cadeias de transmissão. Por exemplo,
tidores aumentam em número. Além a aplicação de herbicidas ou a queima
disso, os humanos entram em contato de comunidades vegetais alteram a ri-
direto com os patógenos de suas caças queza de espécies, a abundância e a
nessas situações. Em segundo lugar, o prevalência de helmintos em ratos do
comportamento humano pode afetar algodão (Sigmoidon hispidus), prova-
a dinâmica da transmissão de doenças velmente por afetar os estágios de vida
entre espécies domésticas e silvestres. livre dos parasitas (Ward et al., 2009).
Por exemplo, cães selvagens africa- O manejo ambiental pode ser e já
nos (Lycaon pictus) são mais afetados foi usado para o controle de doenças.
Implicações epidemiológicas da interface entre humanos, animais domésticos e silvestres 33

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Um exemplo foi o controle de ratos 4. Considerações finais
(Rattus rattus e R. norvegicus) e da peste
bubônica (Yersinia pestis) em fazendas
da Europa, USA e Austrália, por meio de
A
s dinâmicas ecológicas e epi-
demiológicas na interface são
complexas, multifacetadas e requerem
aplicação de rodenticidas em conjunto estudos caso a caso. Por outro lado, a
com remoção de vegetação e limpeza de interface oferece excelentes oportuni-
instalações. Outros exemplos incluem a dades de pesquisa para parasitólogos,
construção de cercas e o uso de cães de epidemiologistas e conservacionistas,
guarda para separar ungulados domés- podendo responder muitas questões
ticos e silvestres e reduzir a transmissão interessantes sobre a
de tuberculose bovina transmissão entre, e o
e febre aftosa na África
As dinâmicas ecológicas impacto das doenças em
e epidemiológicas na populações de huma-
e América do Norte
interface são complexas, nos, animais domésticos
(Ward et al., 2009). multifacetadas e
Por fim, a interface e silvestres. Aspectos
requerem estudos caso epidemiológicos como
não é livre de poluição a caso. fatores de risco para in-
por estar próxima a áreas
fecções em humanos,
naturais. Infelizmente,
animais domésticos e silvestres devem
mesmo essas áreas “preservadas” já es-
ser levantados, para direcionar ações de
tão contaminadas, por exemplo, por
manejo preventivo. Finalmente, como
metais pesados (Curi et al., 2012). Em componente-chave da interface, os hu-
interfaces, teoricamente pode existir manos devem ser envolvidos em ações
poluição originada de resíduos urbanos, de prevenção e pesquisa, se queremos
agrícolas e industriais. A situação eco- realmente entender e prevenir possíveis
toxicológica da interface deve interferir consequências negativas deste cenário
diretamente na transmissão de parasitas tão intrigante de múltiplas interações.
entre seus componentes, porque a con-
taminação e outros agentes estressores 5. Referências
diminuem a função imune favorecendo bibliográficas
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34 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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Fauna brasileira: a
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bigstockphoto.com

Ana Maria de Santis Pugliese Yagelovic - CRBio 49776/04-D,


Cecilia Barreto - CRMV-MG 8193,
Ana Claúdia Parreiras de Freitas - CRMV-MG 12582,
Etiene Andrade Vilela dos Santos - CRMV-MG 8877,
Danielle Ferreira de Magalhães Soares - CRMV-MG 7296,
Pedro Lucio Lithg Pereira - CRMV-MG 1981

A história legislativa do Brasil não faz o animal, trazendo à norma o seguinte


referência a normas legais de proteção à texto: “A palavra animal, da presente Lei,
fauna, senão a partir de 1934, quando, compreende todo ser irracional, quadrú-
através do Decreto nº 24.645, editado pede ou bípede, doméstico ou selvagem,
pelo Governo Vargas, regulamentam- exceto os daninhos”. Esse decreto, não
-se as medidas de proteção aos animais obstante sua antiguidade, vem sendo
e se estabelece que todos utilizado até hoje na pro-
eles passem a ser tutela- “A palavra animal, teção da fauna, em parti-
dos pelo Estado (Sereno, da presente Lei, cular a fauna doméstica.
2007). Observa-se, nes- compreende todo ser Posteriormente à sua edi-
se decreto, em seu artigo irracional, quadrúpede ção outras normas relati-
17, a primeira tentativa ou bípede, doméstico vas à proteção da fauna
de conceituar o objeto ou selvagem, exceto os silvestre foram criadas
a ser tutelado, no caso daninhos.” dando ao tema consi-
36 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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deração particularizada
Os instrumentos legais representante da Divisão
(Brasil, 1934).
sancionados na década de Caça e Pesca, um zo-
Em 12 de abril de ólogo, um representante
de 40 ainda estavam
1939, foi sancionado o
voltados à organização dos caçadores da caça
Decreto-Lei nº 1.210, do comércio ou das de pelo, um represen-
no qual o conceito de atividades amadoras ou tante dos caçadores da
animais silvestres não é profissionais do ato de caça de pena, um repre-
estabelecido, mas sim o caçar e a preocupação sentante do Ministério
conceito de caça, como com fauna estava da Guerra – oficial do
se tratando de “o ato de relacionada aos seus Estado Maior –, um re-
perseguir, surpreender possíveis impactos presentante da Indústria
ou atrair os animais sil- negativos nas atividades e Comércio, um repre-
vestres, a fim de apanhá- agrícolas. sentante do Ministério
-los vivos ou mortos”. A da Justiça, um professor
regulamentação buscada de Direito, de instituto
referia-se à fiscalização e ao controle da oficial ou reconhecido. As penalidades
caça, dos caçadores, profissionais ou dadas aos caçadores que não obedeces-
amadores, ou do comércio oriundo da sem às determinações e cometessem in-
caça e não a proteção direta da fauna. frações são tipificadas no código de caça
Mesmo impondo alguns limites à caça, de 1939, regulamentadas pelo decreto-
como a proibição de “apanha e, tam- -Lei n 1.768, de 11 de novembro de
bém, a destruição de ninhos, esconderi- 1939, sujeitando “os contraventores, em
jos naturais, ovos e filhotes de animais qualquer caso, à cassação de licença para
silvestres” (Brasil, 1939a), mantém o caçar, à apreensão e perda das armas e
texto original do decreto de 1934, no instrumentos venatórios e dos animais
qual os animais silvestres podem ser ob- caçados, à pena pecuniária e, em caso
jeto de caça regulamentada pelo gover- de segunda infração, até prisão celular
no federal, o que pode ser confirmado (Brasil, 1939b).”
em seu artigo 4º. Em 1940, o conselho de caça foi al-
A preocupação do corpo jurídico terado pelo dispositivo legal de núme-
nacional na formulação das Leis era a ro 2.772, de 11 de novembro, e passa
normatização da caça, como pode-se a ser composto por, apenas, um repre-
observar no texto do decreto de 1939, sentante da Divisão de Caça e Pesca
em que figura a formação do conselho do Ministério da Agricultura, um re-
de caça, a fim de deliberar sobre as ques- presentante do Serviço de Economia
tões relativas a essa prática em território Rural do Ministério da Agricultura,
nacional. Em sua composição estão um um zoólogo, professor de um dos ins-
Fauna brasileira: a evolução das Leis 37

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titutos do Ministério da negociações de compra,
O Decreto-Lei 5.894
Agricultura e um jurista. venda e transporte inter-
permite que sejam
Essa nova composição,
capturados e mantidos no de produtos, além de
assim como a presen-
em cativeiro quaisquer taxações nas exportações
ça de termos tais como animais silvestres de toda natureza de itens
“nocivos à agricultura” originários da fauna sil-
ou “grandes carniceiros” vestre brasileira (Brasil,
(Brasil, 1940) no texto legal, corrobo- 1941b). O selo pro-fauna, dependendo
ra a ideia de que os instrumentos legais do objeto a ser taxado, como aves orna-
sancionados na década de 40 ainda esta- mentais, coleópteros, lepidópteros ou até
vam voltados à organização do comércio a exportação de mamíferos, podia variar
ou das atividades amadoras ou profis- de $020 (vinte réis) a 200$0 (duzentos
sionais do ato de caçar e a preocupação mil réis) (Brasil, 1941b).
com a fauna estava relacionada aos seus Até 1943 os Decretos-Leis supraci-
possíveis impactos negativos nas ativida- tados eram as ferramentas utilizadas nas
des agrícolas. Apesar disso, uma luz na questões legais que envolviam a fauna
percepção legislativa sobre o tema pa- silvestre brasileira. No entanto, todos
rece apresentar-se quando nesse instru- esses instrumentos normativos regulató-
mento regulatório aparece pela primeira rios seriam revogados de uma vez quando
vez a ideia de que somente a União tem neste ano, em 20 de outubro, foi editado,
competência para legislar sobre a caça e no ordenamento jurídico, o Decreto-Lei
a sua exploração e incentiva os estados a 5.894. Essa Lei não oferece muitas mu-
criarem áreas de refúgio para os animais danças na ideia de uso da fauna como
silvestres (Brasil, 1940). objeto de caça e exploração, ao contrário,
O texto do Decreto-Lei nº 3.622, de a reafirma, uma vez que mantém a estru-
17 de setembro de 1941, por outro lado, tura do conselho nacional de caça, como
dispõe sobre a taxação de serviço de co- previsto no decreto predecessor de 1940,
mércio de produtos de caça, o que faz crer e reconhece como órgão competente para
que a visão da fauna como objeto ou bem execução e aplicação do então chamado
tangível de uso do homem ainda regia as código de caça a Divisão de Caça e Pesca
regulamentações legais (Brasil, 1941a). do Departamento Nacional da Produção
Ainda em 1941, em 17 de dezembro, o Animal, do Ministério da Agricultura.
Decreto-Lei 3.942 cria o “selo pro-fauna” Mantém, entretanto, a proibição da caça,
que figuraria como moeda de taxação apenas, de animais úteis à agricultura, de
dos serviços relativos às licenças de caça, pombos correios, de pássaros e aves or-
aos pagamentos de multas de infrações namentais ou de pequeno porte, exceto
contra o código de caça e também nas aqueles nocivos à agricultura, e das es-
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pécies raras, permitindo ra traga nova ótica à ma-
Em 3 de janeiro de
ainda que sejam captura- téria, ainda seria até hoje
1967, é sancionada
dos e mantidos em cati- conhecida como código
a Lei nº 5.197, que,
veiro quaisquer animais
embora traga nova ótica de caça e, não obstante
silvestres” (Brasil, 1943) à matéria, ainda seria sua desatualização, é a
Ainda sobre o até hoje conhecida como norma vigente no legis-
Decreto-Lei de 1943, código de caça lativo nacional utilizada
apoiando a ideia de uso nas questões relativas à
da vida silvestre como conservação, preserva-
bens de consumo, seja o próprio animal ção e proteção da fauna silvestre brasi-
para consumo e como animais ornamen- leira. A Lei nº 5.197/67 dispõe, não obs-
tais, ou pelo uso de seus produtos e sub- tante, sobre a proteção à fauna e em seu
produtos no mercado interno e externo, Art. 1º estabelece o entendimento legal
nada foi agregado ao compêndio legisla- do que constitui a fauna silvestre (Brasil,
tivo que possa ser compreendido como 1967), dando assim ferramenta para
ato de proteção direta à fauna, senão pela os órgãos executores compreenderem
presença no texto do dispositivo (artigo seu escopo de atuação. Embora a fauna
1º, § 1º) que estabelece que a caça pode- continue a ser entendida como recurso
ria ser “transitória ou permanentemente natural ou como bens que podem ser
proibida nas terras de domínio público apropriados economicamente, a norma
ou privado” e da já observada indicação ratifica a proibição da caça: “os animais
da intenção do Governo Federal de que de quaisquer espécies, em qualquer fase
os Estados criem em seus territórios “re- do seu desenvolvimento e que vivem
fúgios da vida silvestre” (Brasil, 1943). naturalmente fora do cativeiro, consti-
Sendo assim, nada garante, pelo menos tuindo a fauna silvestre, bem como seus
até esse momento da história do direito ninhos, abrigos e criadouros naturais
sobre a fauna, um instrumento que pos- são propriedades do Estado, sendo proi-
sa ser utilizado para a efetiva proteção, bida a sua utilização, perseguição, des-
conservação ou preservação da fauna truição, caça ou apanha (Brasil, 1967).”
silvestre. Numa perspectiva positiva, de que
Desta maneira, per- a sociedade agora tem
manece inalterado o en- A Lei nº 5.197/67, além outros olhos para a im-
tendimento legal sobre o de elucidar o conceito de portância da fauna no
tema até a década de 60 fauna silvestre, dispõe contexto ambiental, a
quando, em 3 de janeiro em seus artigos 2º e 3º a Lei nº 5.197/67, além
de 1967, é sancionada a proibição do exercício da de elucidar o conceito
Lei nº 5.197, que, embo- caça. de fauna silvestre, dispõe
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em seus artigos 2º e 3º (Brasil, 1981). À pri-
A palavra proteção
a proibição do exercício meira vista, parece in-
ligada à vida silvestre
da caça profissional, do
aparece, pela primeira compreensível o lapso
comércio de espécimes temporal de quase 15
vez, no arcabouço
da fauna silvestre e de jurídico brasileiro. anos sem legislar sobre
produtos e objetos que o assunto, mas, pesqui-
impliquem sua caça, per- sando a fundo, é possí-
seguição, destruição ou apanha (Brasil, vel compreender por que as questões
1967). Essa Lei se torna um marco relativas à preservação do meio am-
histórico no ordenamento jurídico de biente e da fauna no Brasil permanece-
proteção à fauna, pois, munidos desse ram sem alteração durante 14 anos.
instrumento operadores do direito e Em 4 de novembro de 1971, na
profissionais envolvidos com a prote- vigência do mandato presidencial de
ção da fauna podem, a partir daí, atuar Emílio Garrastazu Médici, o gover-
na conservação, proteção ou preser- no federal lançou o I Plano Nacional
vação dos animais da fauna silvestre de Desenvolvimento. Nele figura-
brasileira, com a sustentação do arca- vam projetos como o PIN – Plano de
bouço legal. Não menos importante Integração Nacional, do qual a cons-
que a proibição da caça e a inclusão, trução da transamazônica foi um dos
nos dispositivos legais, do conceito de pilares; o PROTERRA, cujo objetivo
fauna silvestre é o fato dessa normativa era incentivar o crescimento da ati-
instituir, em seu artigo 36, o Conselho vidade agrícola, principalmente no
Nacional de Proteção à Fauna, como Norte e Nordeste; e, finalmente, o
órgão consultivo e normativo da políti- Provale, que objetivava a ocupação das
ca de proteção à fauna do país. Assim a áreas “desocupadas” às margens do Rio
palavra proteção ligada à vida silvestre São Francisco (Almeida, 2004). Nessa
aparece, pela primeira vez, no arcabou- época cresceram significativamente, no
ço jurídico brasileiro. Brasil, atividades industriais, como a
A próxima norma legal a vigorar no siderurgia, a metalurgia, a mineração
país incorporada à gestão da fauna só e também a habitação (Dalla-Costa,
seria sancionada em 1981 – Lei 6.938 2011).
–, e, mesmo assim, com uma referência Estendendo-se por toda a década
indireta à fauna. Isso, porém, não a des- de 70 esses programas governamentais
titui de importância, pois seus efeitos fomentaram legal e economicamente
se fizeram sentir sobre a preservação ações de expansão territorialista que
e conservação da biodiversidade, pela seriam motivo de grande degradação
abrangência de sua atuação ambiental ambiental e perda de biodiversidade
40 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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(Cunha & Nunes, 2008).
“À visão governamental, ambiente, identificar as
O II Plano Nacional de ocorrências adversas na
da época, em que a
Desenvolvimento foi natureza e tentar corri-
proteção ambiental
lançado em 1974, em 4 gi-las e apoiar a especia-
não deveria sacrificar
de dezembro, durante o o desenvolvimento lização de órgãos, pes-
governo do presidente econômico do país”. soas e normas voltadas
Ernesto Geisel, e tinha à preservação do meio
como finalidade esti- ambiente.
mular a produção de insumos básicos, Uma das grandes mudanças obser-
bens de capital, alimentos e energia vadas nesse momento é a compreensão
(Silva-Neto, Ramos-Filho, 2013). Nele de que a fauna é parte do contexto am-
estava estampada: “à visão governa- biental, indissociavelmente, tornando
mental, da época, em que a proteção as normativas legais sancionadas, a
ambiental não deveria sacrificar o de- seguir, voltadas para a preservação do
senvolvimento econômico do país”. ambiente como um todo, no qual a fau-
Com isso, as questões voltadas aos in- na, como parte integrante do ambien-
teresses da preservação não eram, até te natural, estaria, assim, igualmente
então, inseridas nos planos e progra- protegida.
mas governamentais (Delgado, 1997; O próximo, III Plano Nacional
Medeiros, 2007). de Desenvolvimento, de 1979, já im-
Em 1972, em Estocolmo, na Suécia, buído desse contexto, traz a seguinte
a Primeira Conferência Mundial sobre perspectiva: “A ênfase na preservação
o Homem e o Meio Ambiente, orga- do patrimônio histórico, artístico,
nizada pela ONU e com ampla parti- cultural e dos recursos naturais do
cipação da comunidade científica de Brasil, bem como na prevenção, con-
várias nações, promoveu uma discus- trole e combate da poluição em todas
são profunda sobre as preocupações as formas estará presente em todos os
globais dos efeitos da ação do homem desdobramentos da política nacional
na natureza (Behrends, 2011). É pos- de desenvolvimento e em sua execu-
sível inferir que o efeito imediato des- ção.” Essa determinação governamen-
se evento no Brasil foi a criação, em tal e os demais fatores apresentados
1973, da Secretaria de Meio Ambiente, acima teriam importantes repercus-
através do Decreto nº 73.030, de 30 de sões no direito ambiental (Nogueira,
outubro, órgão ligado ao Ministério 2013), refletidas na Política Nacional
do Interior (Brasil, 1973). As atribui- de Meio Ambiente, contida na Lei
ções da recém-criada Secretaria eram: nº 6.938, de 31 de agosto de 1981
acompanhar as transformações do (Brasil, 1981).
Fauna brasileira: a evolução das Leis 41

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A Política Nacional
A Política Nacional do liberdade, comutativas a
do Meio Ambiente traz,
Meio Ambiente traz ao pagamentos pecuniários
entre outras inovações, ou prestação de serviços
ordenamento jurídico
instrumentos de preser-
ambiental ferramentas à comunidade. No en-
vação e de conservação de preservação da fauna tanto, em 12 de fevereiro
do meio ambiente e de e da flora, os estudos de 1988, foi sancionada
seus recursos naturais, de impacto ambientais a Lei nº 7.653, que re-
e a criação do Sistema (EIA) gulamenta a proteção à
Nacional de Meio fauna, através da altera-
Ambiente (SISNAMA), ção da redação dos arti-
do qual o Conselho Nacional de Meio gos 18, 27, 33 e 34 da Lei nº 5.197/67,
Ambiente (CONAMA) é o organismo tornando os crimes previstos nessa Lei
consultivo e deliberativo e o IBAMA, o inafiançáveis e apuráveis mediante pro-
órgão executor. O artigo 10 da Lei 6.938, cesso sumário (Brasil, 1988a).
o qual define que toda “construção, ins- A Constituição da República
talação, ampliação e funcionamento de Federativa do Brasil, promulgada em 5
estabelecimentos e atividades utiliza- de outubro de 1988, estabelece em seu
dores de recursos ambientais, efetiva artigo 23 que é competência comum da
ou potencialmente poluidores ou ca- União, dos Estados, do Distrito Federal
pazes, sob qualquer forma, de causar e dos Municípios preservar as florestas, a
degradação ambiental dependerão de fauna e a flora (inciso VII). E mais, com-
prévio licenciamento ambiental”, traz pete à União, aos Estados e ao Distrito
ao ordenamento jurídico ambiental Federal legislar concorrentemente so-
ferramentas de preservação da fauna bre florestas, caça, pesca, fauna, conser-
e da flora, os estudos de impactos am- vação da natureza, defesa do solo e dos
bientais (EIA) e seus respectivos rela- recursos naturais, proteção do meio am-
tórios de impactos ambientais (RIMA) biente e controle da poluição (artigo 25
(Brasil, 1981). inciso VI) (Brasil, 1988b).
Mesmo em face de tais mudanças Em seu artigo 225, a Constituição
não havia no ordenamento jurídico, até Federal assume categoricamente que
o momento, nenhuma previsão legal “todos [os brasileiros] têm direito ao
que tipificasse os crimes contra a fauna meio ambiente ecologicamente equi-
e o ambiente. Os instrumentos legais librado, bem de uso comum do povo
vigentes tratavam os atos lesivos à fauna e essencial à sadia qualidade de vida,
silvestre brasileira apenas como contra- impondo-se ao Poder Público e à coleti-
venção, com sansões na esfera adminis- vidade o dever de defendê-lo e preservá-
trativa e penas, quando privativas de -lo para as presentes e futuras gerações"
42 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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(Brasil, 1988b). A men- direito ambiental, mas
Notoriamente, o fato
ção da coletividade na igualmente no direito
de pessoas jurídicas
norma legal é uma das
serem responsabilizadas penal (Brasil, 1998).
mudanças inseridas pela A Lei nº 9.605/98 ex-
penalmente é um
Constituição que reper- marco, não só no clui a obrigatoriedade da
cutiram positivamente direito ambiental, mas existência do nexo causal
no âmbito da fiscalização igualmente no direito ligado ao dano, inclui a
e do entendimento da penal. responsabilidade penal
sociedade sobre sua par- das pessoas jurídicas, não
cela de responsabilidade exclui a das pessoas físi-
na promoção da conservação e defesa cas, autoras, co-autoras ou partícipes do
da fauna silvestre brasileira. Por outro mesmo fato, e estabelece que pode ser
lado, incumbe ao Poder Público a efeti- desconsiderada a pessoa jurídica sempre
vidade do direito do povo brasileiro ao que sua personalidade for obstáculo à
ambiente natural e, para assegurar esse reparação dos prejuízos causados à qua-
direito, expressa no inciso VII do artigo lidade do meio ambiente, fazendo uma
225 a obrigação do Estado em proteger análise objetiva, independentemente da
“a fauna e a flora, vedadas, na forma da existência de dolo ou culpa, e não mais
lei, as práticas que coloquem em risco subjetiva, qual é a práxis no direito penal
sua função ecológica, provoquem a ex- brasileiro (Brasil, 1998).
tinção de espécies ou submetam os ani- A Lei nº 9.605/98 traz um capítulo
mais a crueldade (Brasil, 1988b).” inteiro no qual tipifica os crimes contra a
Dez anos depois da criminalização fauna esclarecendo, principalmente, que
dos atos lesivos à fauna, mediante a apli- não só a caça fica proibida, mas também
cação da Lei nº 7.653/88, entra em vi- “matar, perseguir, apanhar, utilizar espé-
gor, em 12 de fevereiro de 1998, a Lei cimes da fauna silvestre, nativos ou em
nº 9.605. Nela o legislativo federal trata, rota migratória, sem a devida permissão,
em caráter impositivo, tais atos como licença ou autorização da autoridade
crimes contra a fauna, uma vez que seu competente, ou em desacordo com a li-
texto expressa formalmente essa con- cença obtida” (artigo 29, lei 9.605/98):
dição. E assim, a partir de então, quem Assim o IBAMA, órgão executor da
os pratica, na medida da sua culpabili- Política Nacional do Meio Ambiente,
dade, fosse pessoa física ou jurídica, fica utilizando sua prerrogativa de gestor
sujeito às sanções penais e administra- dos recursos naturais, rege o controle
tivas cabíveis. Notoriamente, o fato de sobre o uso da fauna silvestre brasileira,
pessoas jurídicas serem responsabiliza- com base nesses instrumentos legisla-
das penalmente é um marco, não só no tivos, sejam eles federais, como Leis e
Fauna brasileira: a evolução das Leis 43

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decretos, ou mesmo Leis complementa- normativas, as portarias, resoluções, etc.
res estaduais e municipais. Além do que (Tab. 1), baixados pelo CONAMA, ou
conta com uma série de outros instru- demais órgãos consultivos e deliberati-
mentos regulatórios, como as instruções vos pertencentes ao SISNAMA.

TABELA 1 – Normas principais vigentes no ordenamento jurídico nacional sobre a


fauna silvestre brasileira (Cronologia inversa)

Identificação Data Situação Ementa

Fixa normas, nos termos dos incisos iii, vi e vii do


Não consta caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição
LCP
08/12/2011 revogação Federal, para a cooperação entre a união, os estados, o
140/2011
expressa distrito federal e os municípios nas ações administrati-
vas decorrentes.

Estabelece critérios e padroniza os procedimentos rela-


IN Nº tivos à fauna no âmbito do licenciamento ambiental de
11/01/2007
146/2007. empreendimentos e atividades que causam impactos
sobre a fauna silvestre.

Regulamenta artigos da Lei nº 9.985, de 18 de julho


Não consta
DEC de 2000, que dispõe sobre o Sistema Nacional de
22/08/2002 revogação
4.340/2002 Unidades de Conservação da Natureza - SNUC, e dá
expressa
outras providências.

Dispõe sobre a implementação da Convenção


Não consta
DEC sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora
21/09/2000 revogação
3.607/2000 e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção - CITES, e dá
expressa
outras providências.

Regulamenta o art. 225, par. 1º, incisos i, ii, iii e vii da


Não consta
Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de
LEI 9.985/2000 18/07/2000 revogação
Unidades de Conservação da Natureza e dá outras
expressa
providências.

IN Nº 01 Estabelece os critérios para o Licenciamento Ambiental


(Renomeada de empreendimentos e atividades que envolvam
15/04/1999
para IN manejo de fauna silvestre exótica e de fauna silvestre
003/99) brasileira em cativeiro.

Não consta Dispõe sobre as sanções penais e administrativas


LEI 9.605/1998 12/02/1998 revogação derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio
expressa ambiente, e dá outras providências.

Continua

44 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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Identificação Data Situação Ementa

São obrigadas ao registro no Cadastro Técnico


PORTARIA Nº Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras ou
25/09/1997
113/97-N Utilizadoras de Recursos Ambientais, ... como de mine-
rais, produtos e subprodutos da fauna, flora e pesca
Estabelece e uniformiza os procedimentos de expedição
de licença de pesquisa para realização de atividades
IN Nº 109/97 12/09/1997 científicas em unidades de conservação federais de uso
indireto, definidas como parques nacionais, reservas
biológicas, estações ecológicas e reservas ecológicas
Dispõe sobre a manutenção e a criação em cativeiro da
fauna silvestre brasileira com finalidade de subsidiar
PORTARIA Nº
04/03/1994 pesquisas científicas em Universidades, Centros de
016/94
Pesquisa e Instituições Oficiais ou Oficializadas pelo
Poder Público.
Não consta
DEC Dispõe sobre o Conselho Nacional de Proteção
10/04/1989 revogação
97.633/1989 a Fauna - CNPF, e dá outras providências.
expressa
Não consta Promulga a emenda ao artigo xxi da convenção sobre o
DEC
07/03/1986 revogação comércio internacional das espécies da fauna e da flora
92.446/1986
expressa em perigo de extinção
Aprova o texto da emenda ao artigo XXI da Convenção
Não consta sobre o Comercio Internacional das Espécies
DLG 35/1985 05/12/1985 revogação da Fauna e Flora Selvagens em Perigo de Extinção,
expressa de 1973, aprovado pela conferência das partes, em
reunião.
Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente,
LEI Nº 6.938 31/08/1981 seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e
dá outras providências.
Não consta
Dispõe sobre a proteção à fauna e dá outras
LEI 5.197/1967 03/01/1967 revogação
providências.
expressa
Aprova a Convenção para a Proteção da Flora, da
Fauna e das Belezas Cênicas Naturais dos Países da
DL N° 03/48 13/02/1948
América, assinada pelo Brasil, em 27 de dezembro de
1940.

Fonte: Modificado de http://www.ibama.gov.br/index.php?view=article&catid=92&id=496&tmpl=co


mponent&print=1&layout=default&page=&option=com_content&Itemid=432 e de https://legislacao.
planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/fraWeb?OpenFrameSet&Frame=frmWeb2&Src=/legisla/legisla-
cao.nsf%2FFrmConsultaWeb1%3FOpenForm%26AutoFramed

Fauna brasileira: a evolução das Leis 45

ctimpresso 72.indb 45 24/04/2014 20:32:01


Norma máxima http://www.lexml.gov.br/urn/
Todos os setores da ur n:lex :br : federal :decreto.
do direito brasileiro, a
sociedade brasileira lei:1939-04-12;1210.
já citada Constituição
como responsáveis em 5. ______. Decreto-Lei nº 1.768,
Federal de 1988, em seu de 11 de Novembro de 1939.
defender, conservar Estabelece penalidades para as
artigo 23 inclui todos
e preservar a fauna infrações do Código de Caça em
os setores da sociedade http://www2.camara.leg.br/
nativa. legin/fed/declei/1930-1939/
brasileira como respon- decreto-lei-1768-11-novem-
sáveis em defender, con- bro-1939-411519-publicacaoori-
servar e preservar a fauna nativa, e im- ginal-1-pe.html.

põe ainda, nas ações administrativas de 6. ______. Decreto-Lei nº 2.772, de 11 de


Novembro de 1940. Modifica a constituição do
gestão da fauna, que o exercício seja co- Conselho Nacional de Caça. Disponível em www.
mum entre União, os Estados, o Distrito lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:federal:decreto.
lei:1940-11-11;2772.
Federal e os Municípios (Brasil, 1988).
Esse propósito se concretiza, finalmen- 7. ______. Decreto-Lei nº 3.622, de 17 de
Setembro de 1941. Dá nova redação ao art. 54
te, em 8 de dezembro de 2011, quando é do Código de Caça. Disponível em http://www.
sancionada a Lei complementar nº 140, lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:federal:decreto.
lei:1941-09-17;3622
que fixa normas de cooperação para que
8. ______. Decreto-Lei nº 3.942, de 17 de
os executivos federal, estadual e munici- Dezembro de 1941. Institui o selo “Pro-fauna”.
pal exerçam a competência comum re- Disponível em http://www.lexml.gov.br/urn/
urn:lex:br:federal:decreto.lei:1941-12-17;3942.
lativa “à proteção das paisagens naturais
notáveis, à proteção do meio ambiente, 9. ______. Decreto Lei nº 5.894, de 20 de outu-
bro de 1943. Aprova e baixa o Código de Caça.
ao combate à poluição, em qualquer de Disponível em: <http://www.senado.gov.br>.
suas formas, e à preservação das flores- Acesso em: 4 dez. 2013.
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Dispõe sobre a proteção a fauna e dá outras
providências. D.O.U. de 5 de janeiro de 1967.
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Núcleo de Assuntos Estratégicos. Projeto Brasil 3 Interior, a Secretaria Especial do Meio Ambiente
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12. ______ Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981.
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da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação
Senado, 1998 e aplicação, e dá outras providências. Disponível
3. ______. Decreto nº 24.645, de 10 de julho de em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em:
1934. Estabelece medidas de proteção aos animais. 16 nov. 2013.
Disponível em: <http://www.lei.adv.br/24645-
13. ______. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de
34.htm>. Acesso em: 3 dez. 2013.
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4. ______. Decreto-Lei nº 1.210, de 12 de Abril trativa derivadas de condutas e atividades lesi-
de 1939. Aprova e baixa o Código de Caça em vas ao meio ambiente e dá outras providências.

46 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

ctimpresso 72.indb 46 24/04/2014 20:32:01


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. 19. COSTA, Ricardo Dalla. Economia Brasileira: de
Acesso em: 20 dez. 2013. 1930 aos dias de hoje. 1ª ed. Cornélio Procópio,
2005. (1ª ed.rev. 2007)
14. ______. Lei nº 7.653, de 12 de fevereiro de 1988.
Altera a redação dos arts. 18, 27, 33 e 34 da Lei 20. CUNHA, L. H.; NUNES, A. M. B. Proteção am-
nº 5197,de 03 de janeiro de 1967, que dispõe so- biental e conflitos ambientas em assentamentos
bre a proteção à fauna, e dá outras providências. rurais. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 18,
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. p. 27-38, jul./dez. Editora UFPR. 2008.
Acesso em: 20 Dez 2013.
21. Dalla Costa, M. R. FATORES
15. ______. Lei nº 7.797, de 10 de julho de 1989. MULTIFACETÁRIOS DA
Cria o Fundo Nacional de Meio Ambiente e dá ou- SUSTENTABILIDADE COMO INSUMOS DO
tras providências. Disponível em: <http://www. CAPITAL SOCIAL. DIÁLOGO E INTERAÇÃO
planalto.gov.br>. Acesso em: 16 nov. 2013. Volume 5 (2011) - ISSN 2175-3687 http://www.
faccrei.edu.br/dialogoeinteracao/
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Regulamenta o art. 225, §1º, incisos I, II, III e VI da 22. DELGADO, G. C. Capital e Política Agrária no
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17. ______ Lei Complementar Nº 140, DE 8 DE construção. RDE-Revista de Desenvolvimento
DEZEMBRO DE 2011. Fixa normas, nos termos Econômico, v. 6, n. 9, 2007.
dos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo
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único do art. 23 da Constituição Federal, para a
de inclui preservação ambiental. Revista Consultor
cooperação entre a União, os Estados, o Distrito
Jurídico, 6 de setembro de 2013.
Federal e os Municípios nas ações administrativas
decorrentes do exercício da competência comum 25. SERENO, HG Legislação de fauna no Brasil: con-
relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, textualização e análise. Monografia Orientador:
à proteção do meio ambiente, ao combate à polui- José de Arimatéa Silva. Seropédica-RJ.
ção em qualquer de suas formas e à preservação das Março/2007.76p
florestas, da fauna e da flora; e altera a Lei no 6.938,
de 31 de agosto de 1981. Disponível em: <http:// 26. SILVA NETO, MR & RAMOS FILHO, HS:
www.planalto.gov.br>. Acesso em: 16 nov. 2013. Padrão locacional e reestruturação da indústria pa-
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tal. EDIPUCRS, 2011.

Fauna brasileira: a evolução das Leis 47

ctimpresso 72.indb 47 24/04/2014 20:32:01


Centros de triagem
e o recebimento de
animais silvestres
provenientes do
tráfico em Minas
Gerais
bigstockphoto.com

Ana Cláudia Parreiras de Freitas * - CRMV-MG 12582,


1

Érika Procópio Tostes Teixeira2 - CRMV-MG 13342,


Daniel Ambrózio da Rocha Vilela3 - CRMV-MG 6581,
Ana Maria Pugliese Santis Yagelovic1 - CRBio 49776/04-D,
Etiene Andrade Vilela dos Santos1 - CRMV-MG 8877,
Pedro Lúcio Lithg Pereira1 - CRMV-MG 1981,
Danielle Ferreira de Magalhães Soares1 - CRMV-MG 7296
* Email para contato: anaclaudiaparreiras@yahoo.com.br
1
Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais
2
Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais
3
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

A Lei n° 5.197, de 3 de janeiro de passou a ser considerada um bem de


1967, é considerada o marco inicial uso comum do povo, sob a titularidade
da proteção à fauna no Brasil (Brasil, imediata da União, sendo proibida a sua
1967). Antes de sua promulgação os utilização, perseguição, destruição, caça
animais eram considerados objetos e, ou apanha (Stifelman, 2006).
portanto, passíveis de apropriação. Os A proibição do comércio de ani-
delitos contra a fauna eram tratados mais silvestres no Brasil e as ações de
como crimes contra a propriedade e os fiscalização e combate aos crimes con-
animais eram avaliados com base nos tra a fauna geravam um contingente de
valores de mercado. Após o estabele- animais que necessitavam de cuidados
cimento da legislação, a fauna silvestre e destinação adequados (Vilela, 2012).
48 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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Os Centros de Triagem de Animais nidos por essa IN (IBAMA, 2008a).
Silvestres (CETAS) surgiram devido Os animais recebidos no CETAS
à crescente demanda das atividades são classificados de acordo com a cate-
exercidas pelos órgãos ambientais fis- goria de entrada: a) apreensão, repre-
calizatórios. Além disso, tornaram-se sentada pelos animais decorrentes da
essenciais também para o recebimento ação fiscalizatória das Polícias Militares
de animais entregues pela população ou de Meio Ambiente (PMMA), Polícia
recolhidos em situações de risco em am- Federal, Polícia Rodoviária Federal,
bientes urbanos. Polícia Civil, entre outros, com lavratura
Os CETAS já existiam em algu- de Boletim de Ocorrência (BO) ou de
mas superintendências do Instituto ação de fiscalização do próprio IBAMA
Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos com lavratura de Auto de Infração (AI);
Naturais Renováveis (IBAMA) desde b) recolhimento, resultado da captura
a década de oitenta, porém apenas em de animais pelo IBAMA ou Polícia após
2008 eles foram institucionalmente cria- solicitação da população; c) entrega vo-
dos (Vilela, 2012). Essa formalização se luntária, feita pelo cidadão que esponta-
deu por meio da Instrução Normativa neamente procura o órgão competente
(IN) nº 169, de 20 de fevereiro de 2008, para entregar o animal que mantinha ile-
que instituiu e normatizou as categorias galmente sob sua guarda (Borges et al.,
de fauna silvestre em cativeiro e definiu 2006; Pagano et al., 2009).
os CETAS como todo empreendimen- Os Centros de Reabilitação de
to autorizado pelo IBAMA, somente Animais Silvestres (CRAS) também
de pessoa jurídica, com finalidade de: foram definidos pela IN 169. Eles são
receber, identificar, marcar, triar, ava- definidos como todo empreendimen-
liar, recuperar, reabilitar e destinar ani- to autorizado pelo IBAMA, somente
mais silvestres provenientes da ação da de pessoa jurídica, com finalidade de:
fiscalização, resgates ou entrega volun- receber, identificar, marcar, triar, ava-
tária de particulares. Essa IN também liar, recuperar, criar, recriar, reproduzir,
dividiu os CETAS em três categorias, a manter e reabilitar espécimes da fauna
saber: CETAS “A”, aqueles que recebem silvestre nativa para fins de programas
acima de 800 animais por ano; CETAS de reintrodução no ambiente natural
“B”, que recebem até 800 animais por (IBAMA, 2008a).
ano; e os CETAS “C”, que são estrutu- A Lei Complementar nº 140, de 8
ras exclusivas do IBAMA. A infraestru- de dezembro de 2011, regulamenta o
tura necessária para cada categoria e os Art. 23 da Constituição Federal e define
procedimentos para a sua implantação e as competências de cada ente federativo
operacionalização também foram defi- nas ações relativas à proteção das paisa-
Centros de triagem e o recebimento de animais silvestres provenientes do tráfico em Minas Gerais 49

ctimpresso 72.indb 49 24/04/2014 20:32:02


gens naturais notáveis,
Ao avaliarem o tráfico da fauna e da flora para
à proteção do ambiente,
de animais silvestres no o Estado (IEF, 2013a).
ao combate à poluição
Brasil de 2005 a 2010 No acordo foi definido
em qualquer de suas for-
registraram MG como o que os CETAS presentes
mas e à preservação das Estado de maior volume em MG seriam compar-
florestas, da fauna e da de animais apreendidos. tilhados entre o IBAMA
flora (Brasil, 2011). Essa e o IEF, e que o Estado
Lei define, em seu Art. construiria estruturas
8º, que é de competência dos Estados próprias para a triagem e reabilitação de
aprovar o funcionamento de criadouros animais silvestres em prazo estabelecido.
de fauna silvestre, ou seja, a emissão de Além das competências dos CETAS
autorizações de empreendimentos de estabelecidas em Lei, eles também po-
fauna silvestre em cativeiro que eram es- dem atuar como excelentes fontes de
tabelecidos pela IN 169 como compe- pesquisa devido ao recebimento de um
tência exclusiva do IBAMA, passa a ser grande número de animais de diversas
de responsabilidade dos Estados. espécies. Com o intuito de normatizar
O IBAMA e os órgãos estaduais as pesquisas que são realizadas com ani-
se reuniram para estabelecer critérios, mais oriundos de CETAS, foi publicada
procedimentos e firmar acordos de co- a Portaria IEF nº148, de 4 de outubro de
operação técnica que facilitassem a im- 2013 para MG, a fim de regulamentar os
plantação da Lei Complementar e pos- procedimentos necessários à autoriza-
sibilitassem a transição coordenada das ção e à execução de trabalhos científicos
competências. Em dezembro de 2013, nesses estabelecimentos (IEF, 2013b).
o acordo já havia sido assinado por 25 Em MG os CETAS estão localiza-
Estados restando apenas Pernambuco e dos nos municípios de Belo Horizonte
Amapá (IBAMA, 2013). (BH), Juiz de Fora e Montes Claros.
No Estado de Minas Gerais (MG), Destro et al. (2012), ao avaliarem o trá-
foi formalizado no dia 5 de junho de fico de animais silvestres no Brasil de
2013 o acordo de cooperação técnica 2005 a 2010, registraram MG como o
entre o IBAMA e o Governo de MG, Estado de maior volume de animais
por intermédio da Secretaria de Estado apreendidos. Os autores também en-
de Meio Ambiente fatizaram a grande atu-
(SEMAD) e do Instituto As aves representaram ação da Polícia Militar
Estadual de Florestas a maioria dos animais Ambiental de MG, pois
(IEF), para a gestão recebidos originados o Estado foi responsável
compartilhada e trans- do tráfico no Brasil de pelo maior número de
ferência das atribuições 1992 a 2000. multas aplicadas.
50 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

ctimpresso 72.indb 50 24/04/2014 20:32:03


Freitas et al. (2012), em pesquisa As aves representaram a maioria dos
realizada com os animais recebidos no animais (53,28%), seguidas dos répteis
CETAS de Belo Horizonte no ano de e dos mamíferos. Grande variedade de
2011, identificaram que a principal pro- espécies ameaçadas foram identificadas
cedência de entrada dos animais no es- de acordo com as listagens estadual e
tabelecimento foi por apreensão, espe- mundial de animais sob risco de extin-
cialmente realizadas pela PMMA. Nesse ção. Os autores ressaltam a importância
estudo, as aves representaram a maioria da construção de CETAS que recebam
dos animais recebidos, assim como na adequadamente os animais, pois, na au-
pesquisa de Giovanini (2001), com sência dessas estruturas, as atividades
animais originados do tráfico no Brasil de fiscalização podem ficar prejudica-
de 1992 a 2000. Destro et al. (2012) das. Por outro lado, Freitas et al. (2012)
também identificaram as aves como as salientaram a necessidade de atividades
espécies mais traficadas no país, princi- de educação ambiental para sensibilizar
palmente Sicalis flaveola e Saltator simi- a população quanto à ilegalidade da ma-
lis. Essas duas espécies também foram as nutenção de animais silvestres em cati-
mais recebidas no CETAS-BH de acor- veiro desautorizado e à importância da
do com Freitas et al. (2012). preservação da fauna silvestre.
Souza e Vilela (2013), em estudo re- Finalmente, nos últimos anos, é
alizado no CETAS-BH referente às aves possível identificar certo avanço na
ameaçadas de extinção, de 1992 a 2012, conscientização da população brasileira
encontraram 34 espécies com 9.465 sobre a preservação e a necessidade da
exemplares. preservação ambiental. Não obstante,
No estudo de Franco et al. (2012) considerando o volume conhecido de
na macrorregião de Montes Claros, MG, animais apreendidos oriundos majorita-
sobre os animais apreendidos de 2002 a riamente do tráfico e do comércio ilegais
2007, foram contabilizados 10.597 ani- de animais silvestres, como apresentado
mais. As aves representaram 93% desses acima, denota-se a distância que ainda
animais e a principal espécie identifi- é necessário percorrer para que real-
cada foi Cyanoloxia brissonii. A mesma mente a flora, a fauna e os monumentos
quantidade de mamíferos e répteis foi naturais, patrimônio do povo brasilei-
recebida nesse estudo. ro, sintam-se efetivamente protegidos.
Borges et al. (2006), em estudo so- Não restam dúvidas de que iniciativas
bre os animais apreendidos e recolhi- fiscalizatórias, de vigilância e monitora-
dos pela PMMA no município de Juiz mento ambientais, entre outras medidas
de Fora, MG, de 1998 a 1999, identifi- socioambientais, sejam absolutamente
caram 1.629 animais, de 135 espécies. necessárias para corrigir e, sobretudo,
Centros de triagem e o recebimento de animais silvestres provenientes do tráfico em Minas Gerais 51

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Araras canindés (Ara ararauna) em vida livre Érika Procópio

coibir ações depredatórias de qualquer 1. BORGES, R. C.; OLIVEIRA, A.; BERNARDO,


N. et al. Diagnóstico da fauna silvestre apreendida
natureza sobre o ambiente natural no e recolhida pela Polícia Militar de Meio Ambiente
país. Porém, a educação é o fundamento de Juiz de Fora, MG (1998 e 1999). Revista
Brasileira de Zoociências, v. 8, n. 1,, p. 23–33, 2006.
indissociável da preservação ambiental
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presente e futura, e a chave infalível no sobre a proteção à fauna e dá outras providências.
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52 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

ctimpresso 72.indb 52 24/04/2014 20:32:06


Fixa normas, nos termos dos incisos III, VI e 9. INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO
VII do  caput  e do parágrafo único do art. 23 da AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS
Constituição Federal, para a cooperação en- RENOVÁVEIS. Acre e IBAMA assinam acor-
tre a União, os Estados, o Distrito Federal e os do para gestão de fauna.2013. Disponível em:
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tes do exercício da competência comum relati- -e-acre-assinam-acordo-para-gestao-de-fauna>
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proteção do meio ambiente, ao combate à polui- 10. INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO
ção em qualquer de suas formas e à preservação AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS
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Centros de triagem e o recebimento de animais silvestres provenientes do tráfico em Minas Gerais 53

ctimpresso 72.indb 53 24/04/2014 20:32:06


Desafios e
perspectivas
para a soltura
de aves pelos
CETAS no
Brasil
Vincent Kurtlo - CRBio 10.950/01 bigstockphoto.com

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, São Paulo.
Email para contato: vkurtlo@gmail.com

nação (Instrução Normativa IBAMA


Aspectos legais das
IN 28/2009; Bertogna e Lo, 2011) e a
solturas própria Constituição Federal de 1988
A captura irregular de animais sil- fornece o embasamento legal, citan-
vestres encontra-se, infelizmente, ainda do, em seu artigo 225 parágrafo 1º, a
difundida pelo Brasil. À luz da legis- incumbência do Poder Público de “...
lação ambiental, depreende-se que o restaurar os processos ecológicos essen-
retorno dos animais silvestres aptos ao ciais”. O artigo Fauna Brasileira: Aspectos
habitat natural é a prioridade de desti- Técnicos, Legais e Éticos do Cativeiro
54 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

ctimpresso 72.indb 54 24/04/2014 20:32:07


Domiciliar de Animais Resta claro, portan-
Considerando a
Silvestre (Bertogna e Lo, to, que o legislador, em
importância da fauna
2011), apresenta deta-
nos processos ecológicos, atendimento às dispo-
lhadamente o arcabouço
o sistema de reparação sições legais e consti-
legal e jurídico sobre o de danos ambientais tucionais, estabeleceu
assunto, aglutinando re- está previsto no sistema uma prioridade no
ferências bibliográficas, jurídico pátrio, desde a encaminhamento dos
sucintamente explana- Carta Magna. animais para soltura.
das abaixo. Somente no caso de a
Pesquisadores es- soltura se tornar impos-
timam que cerca de 80% das espécies sível é que os animais serão entregues
vegetais de florestas tropicais e 50% das a jardins zoológicos, criadouros ou as-
espécies de florestas subtropicais se- semelhados. Isso porque a soltura dos
jam disseminadas pela fauna (Galetti & animais em seu habitat natural atende
Guimarães, 2002). Considerando a im- ao princípio da tentativa de retorno
portância da fauna nos processos ecoló- ao status quo ante, que deve permear a
gicos, o sistema de reparação de danos recuperação de todo dano ambiental.
ambientais está previsto no sistema ju- Em conclusão, da análise da legisla-
rídico pátrio, desde a Carta Magna. Se ção exposta, resta claro que qualquer
o ordenamento jurídico prioriza o retor- interpretação divergente, no sentido
no ao status quo ante, por via da especí- de não se dar prioridade à soltura dos
fica reparação, a destinação de animais animais apreendidos e, consequente-
silvestres apreendidos quando da ocor- mente, à tentativa de restauração do
rência de infração administrativa e/ou status quo ante, afronta a lei da política
crimes ambientais deve seguir também nacional do meio ambiente e a própria
a referida prioridade. Assim sendo, as Constituição Federal.
normas contidas na Lei nº 9.605/98 e A grande pressão de caça e captura
no Decreto nº 6.514/08 somente po- de animais e sua ameaça de extinção em
dem ser analisadas dentro desse contex- vários locais, associadas ao imprescindí-
to, o que significa a priorização da sol- vel papel ecológico da fauna no ambien-
tura dos animais em seu habitat natural, te natural (dispersão, polinização, con-
desde que, logicamente, verificada sua trole de pragas, etc.), à necessidade de
adaptação às condições de vida silvestre. recomposição das populações naturais
Configura-se, desse modo, a tentativa e à existência de vários trabalhos cien-
de retorno ao status quo ante, salientado tíficos com sucessos de reintroduções,
acima e prescrito pelo ordenamento ju- ressaltam a importância que deveria ser
rídico pátrio. atribuída à destinação de animais apre-
Desafios e perspectivas para a soltura de aves pelos CETAS no Brasil 55

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endidos, bem como sua pilhados de seus atores
A retirada constante
reabilitação e reintegra- faunísticos.
e massiva de espécies
ção à natureza. Um recente artigo
visadas pelo tráfico
(Souza e Vilela, 2013)
promove a depleção de
Contexto populações naturais de contabilizou o núme-
A retirada constan- aves silvestres. ro de aves ameaçadas
te e massiva de espécies de extinção recebidas
visadas pelo tráfico pro- pelo CETAS em Belo
move a depleção de populações naturais Horizonte/MG, no período de 1992 a
de aves silvestres. Não é difícil se cons- 2012. Totalizaram-se 9.465 exempla-
tatar a rarefação em vida livre de alguns res recebidos de espécies ameaçadas,
passeriformes, outrora comuns nas seja no âmbito nacional ou estadual.
matas e áreas verdes do O trabalho conclui que
estado, tais como trinca- o elevado número de
O Brasil se destaca exemplares de espécies
-ferro, azulão, canário-
como o segundo em ameaçadas registrado
-da-terra, curió e bicudo,
riqueza de espécies ali confirma o impacto
que são espécies comu-
de aves, entretanto, do tráfico sobre o grupo
mente apreendidas do
antagonicamente, é o
tráfico e encontradas em país com maior número das aves, alertando para
cativeiro irregular. a ameaça de extinção de
de espécies de aves
O aumento da lista ameaçadas de extinção. determinadas espécies,
de aves ameaçadas de lembrando que a retira-
extinção é um indicador da dos espécimes de seus
dessa situação. O Brasil se destaca como ambientes naturais é a segunda maior
o segundo em riqueza de espécies de ameaça às aves, ficando atrás apenas
aves, entretanto, antagonicamente, é o da eliminação e degradação do habitat
país com maior número de espécies de (Marini & Garcia 2005).
aves ameaçadas de extinção. Além da Somente no Estado de São Paulo,
perda de habitat, a captura para o tráfico o número de animais silvestres apreen-
representa forte impacto didos ou entregues pela
às populações naturais. Somente no Estado população chega a cerca
O clássico artigo de Kent de São Paulo, o de 30 mil por ano. No
Redford “The Empty número de animais país, portanto, pode-se
Forest” (Redford, 1992) silvestres apreendidos estimar aproximadamen-
já nos alertava, há dé- ou entregues pela te 80 a 100 mil animais
cadas, sobre a proble- população chega a cerca silvestres recebidos por
mática de ambientes de 30 mil por ano. ano. É importante regis-
56 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

ctimpresso 72.indb 56 24/04/2014 20:32:07


trar que essa quantidade turas de fauna silvestre
A soltura de um
representa apenas uma no Brasil acabam crian-
animal silvestre
pequena parcela do total do entraves ao próprio
requer procedimentos
de animais retirados da aprimoramento desses
cuidadosos.
natureza, pois, em decor- trabalhos. Ironicamente,
rência dos métodos de a tendência internacio-
captura e transporte, uma boa parte dos nal é o aumento dos projetos e ações de
animais vão a óbito e, portanto, os sobre- reintrodução e translocação de animais
viventes resgatados devem ser minoria. apreendidos. Seddon (2007) compilou
Entretanto, apesar de, anualmente, os trabalhos/artigos publicados sobre
milhares ou, mais provavelmente, mi- reintrodução de animais silvestres des-
lhões de espécimes de animais silvestres de 1942 até 2005, demonstrando um
serem caçados ou capturados de seu recente crescimento vertiginoso dos tra-
ambiente natural, muitas vezes a reinte- balhos sobre reintrodução de animais
gração não ocorre com aqueles que con- silvestres (Fig. 1) desenvolvidos em
seguem ser confiscados. diversos países. Infelizmente, poucos
A soltura de um animal silvestre ainda são os autores brasileiros, pois o
requer procedimentos cuidadosos. A Brasil ainda é incipiente nesses projetos.
Instrução Normativa IBAMA 179/08
arrolou uma série de exigências para Benefícios possíveis
projetos de soltura, com requerimen- e surpreendentes
tos e exames considerados por muitos resultados
como exacerbados. Está atualmente Dentre os diversos trabalhos que
em revisão para avaliar sua aplicabili- mostram resultados bem-sucedidos de
dade. Além de todo custo e trabalho ações de soltura, alguns são com papa-
necessários, os projetos de soltura ain- gaios e araras criados em cativeiro (Sanz
da enfrentam algumas resistências, pro- e Grajal, 1998; Collazo et al., 2003;
vavelmente advindas de preconceitos, White et. al., 2005; Brightsmith et al.,
motivados por solturas aleatórias des- 2005). Tais artigos demonstram que
criteriosas, comuns no passado, ou por mesmo animais nascidos em criadou-
confundirem tais projetos com a intro- ros ou zoológicos têm possibilidade de
dução de espécies exóticas invasoras. retornar à natureza, desde que realizado
Ressalta-se que solturas aleatórias in- um processo cuidadoso de reabilitação
devidas ou introdução de espécies exó- e exames. Outros artigos apresentam
ticas são procedimentos bem distintos papagaios resgatados do tráfico e do ca-
dos projetos de soltura aqui expostos. tiveiro domiciliar que conseguiram esta-
Infelizmente, posições refratárias às sol- belecimento em vida livre, com porcen-
Desafios e perspectivas para a soltura de aves pelos CETAS no Brasil 57

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80 -

70 -

60 -
Número de argos

50 -

40 -

30 -

20 -

10 -

0-

Ano
Figura 1. Aumento exponencial do número de trabalhos/artigos relacionados à reintrodução de ani-
mais silvestres entre 1942 e 2005 (Seddon, 2007)

tagens de sobrevivência de pelo menos cação de animais apreendidos do tráfi-


60% após 13 meses (Seixas e Mourão, co de volta à natureza, com o apoio de
2000) e mais de 50% após dois anos ONGs e proprietários particulares atra-
de sua soltura (IBAMA, 2009). Merece vés de parcerias, áreas de soltura cadas-
referência uma ação de reintrodução de tradas e ações de repatriação de fauna
papagaios que levou ao que não ocorre nesse
aumento da germinação estado, com muitos re-
e dispersão de importan- Merece referência uma sultados positivos, e al-
tes árvores de uma região ação de reintrodução guns casos servem para
do Piauí, auxiliando na de papagaios que o aprendizado e o apri-
recomposição de pro- levou ao aumento da moramento (IBAMA,
cessos ecológicos (Silva germinação e dispersão 2006; IBAMA, 2009;
e Oliveira, 2005), abaixo de importantes árvores IBAMA, 2010; IBAMA,
detalhado. Em São Paulo de uma região do 2012). A própria IUCN,
o IBAMA tem procurado Piauí, auxiliando com critérios rigorosos,
desenvolver e aprimorar na recomposição de apresenta dados positi-
os trabalhos de recolo- processos ecológicos vos quanto a tais proje-
58 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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Fracasso: 6% Altamente bem-sucedido: 12%

Parcialmente bem-sucedido: 36% Bem-sucedido: 46%

Figura 2. Número de projetos de reintrodução com fracassos ou sucessos em 2010, de acordo com
relatório da IUCN (SOORAE, P. S., 2010)

Fracasso: 1% Altamente bem-sucedido: 14%

Parcialmente bem-sucedido: 22% Bem-sucedido: 14%

Figura 3. Número de projetos de reintrodução com fracassos ou sucessos em 2011, de acordo com
relatório da IUCN (SOORAE, P. S., 2011)

Fracasso: 1% Altamente bem-sucedido: 13%

Parcialmente bem-sucedido: 25% Bem-sucedido: 28%

Figura 4. Número de projetos de reintrodução com fracassos ou sucessos em 2013, de um total de 67,
de acordo com relatório da IUCN (SOORAE, P. S., 2013)

Desafios e perspectivas para a soltura de aves pelos CETAS no Brasil 59

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tos. As Figuras 2 a 4, obtidas dos rela- DE ESTUDOS ORNITOLÓGICOS –
tórios da IUCN, mostram em três anos Bolm. CEO, 1986, p. 7);
os resultados dos trabalhos/artigos de 2) Retorno de processos ecológicos
reintrodução no mundo, quanto ao seu (polinização, dispersão, controle de pra-
sucesso ou fracasso. Diferentemente do gas, etc.) comprometidos pela depleção
que muitos acreditavam, a porcentagem da fauna local. Cerca de 80% das espé-
dos que falharam se revelou muito baixa. cies vegetais de florestas tropicais, e em
Cuidados e critérios são certamen- torno de 50% das espécies de florestas
te necessários. Além da avaliação sa- subtropicais são disseminadas pela fau-
nitária, etológica e fisiológica às quais na (= zoocoria) (Galetti & Guimarães,
os animais são submetidos, as áreas de 2002). Esses dados demonstram o pa-
soltura interessadas em se cadastrar no pel fundamental da fauna na manuten-
IBAMA/SP devem apresentar respon- ção da estrutura e diversidade florestal.
sável técnico, levantamento de fauna, Fernando Fernandez (Fernandez, 2009)
fisionomia da vegetação, mapas de uso assevera que, em vastas áreas de florestas
do solo, proposta de viveiros de am- tropicais, muitas espécies de animais já
bientação, de educação ambiental e de foram exterminadas. Diz ainda que po-
monitoramento, e entregar relatórios demos imaginar que numa bela floresta
anuais. Por outro lado, pode-se mostrar vista por uma imagem de satélite deva
alguns dos benefícios que projetos de haver muitos bichos, mas que essa é uma
reintegração de fauna silvestre podem expectativa cada vez mais ingênua. Sem
proporcionar. Citamos alguns: os animais, também não há os processos
1) Reforço populacional de espécies ecológicos que dependem deles. Pilhas
que sofrem continuamente a pressão de de sementes apodrecem no solo, porque
captura pelo tráfico, gerando redução seus dispersores – mamíferos e aves de
de populações e ameaças de extinção médio e grande porte – já foram exter-
nacional e local. Por exemplo, Helmut minados localmente. Sem a dispersão
Sick, em seu trabalho “Aves brasileiras das sementes, a própria floresta não tem
ameaçadas de extinção e noções gerais futuro, pois não há mais reprodução das
de conservação de aves no Brasil” (An. grandes árvores. O mundo está cheio de
Acad. de Ciên. 41-supl. 205-299), já florestas vazias, especialmente nas regi-
relatava o desaparecimento nos arre- ões tropicais ricas em biodiversidade,
dores do Rio de Janeiro, em 1969, por nas quais interações ecológicas estão
conta da captura, de aves antes comuns, esperando para serem restauradas pe-
como o bicudo, o canário-da-terra, o las mesmas espécies para as quais essas
curió, o azulão, a patativa, a graúna e interações um dia evoluíram. Por fim,
mesmo o trinca-ferro (In CENTRO a proposta apresentada por Fernandez
60 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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para a conservação no século XXI é en- propriedades particulares, etc.;
cher as florestas vazias, por refaunação 6) Incentivo à pesquisa e estudos
com espécies nativas. Um simples, mas de fauna e flora, através dos levanta-
interessante estudo (Silva e Oliveira, mentos e monitoramentos, e enrique-
2005) realizado após a reintrodução de cimento florístico nas áreas de soltura.
papagaio-verdadeiro, Amazona aestiva, Aliando-se aos quesitos legais e téc-
em um parque do Piauí, coletou e ana- nicos, cremos ainda que os preceitos
lisou as sementes cuspidas pelos papa- éticos não devem ser desprezados,
gaios reintroduzidos, concluindo que as oferecendo aos animais silvestres o seu
mesmas apresentaram uma maior taxa direito à vida e à liberdade, dentro dos
de germinação, gerada pela quebra da parâmetros não apenas antropocêntri-
dormência. Os animais estavam ocasio- cos, mas cumprindo seu papel corre-
nando a maior dispersão e o aumento to com os demais elementos da biota.
da germinabilidade de algumas árvores Assim, projetos experimentais de rein-
nativas, como a maria-preta, Myrcia cf troduções monitoradas de espécimes
torta, comprovando a contribuição da (e espécies) provindos dos CETAS
refaunação, reconhecida nos modelos tornam-se fundamentais, não só por
teóricos. atender a urgente demanda do IBAMA
3) Desenvolvimento de conhe- nas destinações adequadas de espé-
cimento para os futuros projetos de cies silvestres apreendidas, mas por
reintrodução com espécies ameaçadas. ter a finalidade de auxiliar na conser-
Tomaz obteve resultados positivos na vação das espécies. O repovoamento
soltura de Aratinga leucophtalma (Melo, e a reintrodução de formas ameaçadas
2013) oriundos de CETAS, provenien- de desaparecimento em lugares onde
tes de apreensão e conclui que “embora agora escasseiam, ou já foram extermi-
A. leucophthalma seja uma espécie co- nadas, são iniciativas importantes para
mum em boa parte de sua distribuição, se preservar a diversidade biológica
esta experiência positiva na recolocação e colaborar para minimizar os efeitos
na natureza incentiva iniciativas seme- causados pelo desequilíbrio ecológico
lhantes que auxiliarão a conservação de regional (Coimbra-filho, 1998). Além
espécies ameaçadas”; disso, a execução dessa proposta pode
4) Aumento da divulgação da pro- representar uma oportunidade ao esta-
blemática e consequências do tráfico, e belecimento de uma cultura de ações
da necessidade de proteção à fauna; subsidiadas pela ciência e ao acúmulo
5) Articulação e estabelecimento de experiências a serem utilizados em
de parcerias entre instituições públicas, outros programas de recomposição de
órgãos de pesquisa, empresas privadas, espécies, principalmente para aquelas
Desafios e perspectivas para a soltura de aves pelos CETAS no Brasil 61

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ameaçadas de extinção. O IBAMA/ realização de solturas de aves. A gestão
SP organizou quatro revistas já cita- da maioria dos CETAS encontra-se sob
das (IBAMA, 2006; IBAMA, 2008; responsabilidade do IBAMA e a devi-
IBAMA, 2010; IBAMA, 2012) so- da priorização dos recursos materiais e
bre os trabalhos desenvolvidos pelos humanos, para tais empreendimentos,
CETAS e Áreas de Soltura, as quais es- não se mostram suficientes. Diversos
tão disponíveis para download em pdf. trabalhos e resultados, muitos deles
7) Retorno de carga genética. Animais bem-sucedidos, são frutos da iniciati-
sobreviventes do tráfico se revelam fisiolo- va e dedicação pessoal de profissionais
gicamente resistentes e podem representar nesses centros, e das áreas de soltura.
importante componente genético para A necessidade de parcerias é premen-
retorno às populações nativas. A ação an- te, seja pelo apoio da iniciativa pri-
trópica de fragmentação dos ambientes vada, seja de universidades. Vivemos
tem ocasionado o isolamento artificial uma época em que os
de algumas populações, poucos preocupados
o que tem incentivado Os projetos de soltura com o meio ambiente
a implantação de corre- possibilitam não e a fauna devem se unir
dores biológicos, visan- apenas a sobrevivência e trabalhar conjunta-
do reconectar os fluxos dos animais, mas um mente, pois a pressão
gênicos. A reintegração conjunto de ações que
para um sistema preda-
de animais em suas áre- contribuem para a
tório é grande. Com a
as de ocorrência natural conservação como um
Lei Complementar LC
pode também auxiliar todo.
140/2011, a autoriza-
em tais revigoramentos ção de fauna em cati-
genéticos. veiro passou a ser competência esta-
Desse modo, os projetos de soltura dual. Desse modo, o entendimento é
possibilitam não apenas a sobrevivência que o controle também dos CETAS
dos animais, mas um conjunto de ações seja realizado pelos órgãos estaduais
(proteção de áreas, restauração de pro- de meio ambiente. A descentralização
cessos ecológicos, educação ambiental, em algumas unidades da federação está
geração de conhecimento, pesquisa, ocorrendo de forma abrupta. A desti-
etc.) que contribuem para a conserva- nação para a fauna resgatada e reabili-
ção como um todo. tada está em novas mãos. Alguns esta-
dos possuem uma Secretaria de Meio
Desafios e perspectivas Ambiente estruturada, como o Estado
Diversos são os desafios enfrenta- de São Paulo. A esperança é de que o
dos pelos Centros de Triagem para a trabalho seja continuado e aprimorado.
62 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

ctimpresso 72.indb 62 24/04/2014 20:32:08


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Desafios e perspectivas para a soltura de aves pelos CETAS no Brasil 63

ctimpresso 72.indb 63 24/04/2014 20:32:09


criação ilegal de animais silvestres. Atualidades
Ornitológicas On-line, n. 176. Nov/Dez 2013.

21. SOORAE, P. S. (ed.) (2010) Global


Reintroduction Perspectives: Additional case-
-studies from around the globe. IUCN/ SSC Re-
introduction Specialist Group, Abu Dhabi, UAE,
xii + 352 pp.

22. SOORAE, P. S. (ed.) (2011). Global Re-


introduction Perspectives: 2011. More case stu-
dies from around the globe. Gland, Switzerland:
IUCN/SSC Re-introduction Specialist Group
and Abu Dhabi, UAE: Environment Agency-
Abu Dhabi. xiv + 250 pp.

23. SOORAE, P. S. (ed.) (2013). Global Re-


introduction Perspectives: 2013. Further case stud-
ies from around the globe. Gland, Switzerland:
IUCN/ SSC Re-introduction Specialist Group
and Abu Dhabi, UAE: Environment Agency-
Abu Dhabi. xiv. + 282 pp

24. White, T.H.; Collazo, J.A. e Vilella, F.


Survival of Captive-reared Puerto Rican Parrots
Released in the Caribbean National Forest. The
Condor 107, 2005, p. 424-432.

64 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

ctimpresso 72.indb 64 24/04/2014 20:32:09


Elaboração e
implementação de
projetos de conservação
Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira

Figura 1. Anta (Tapirus terrestris) com colar - autoria: Patrícia Medici

Patrícia Medici1, PhD


Renata Carolina Fernandes-Santos 2 - MSc - CRMV-PR 8232
www.tapirconservation.org.br
1
Coordenadora
2
Veterinária

Anta Brasileira, Tapirus tribuição geográfica, que se estende


terrestris desde o Norte da Colômbia, a Leste
da Cordilheira dos Andes, seguindo
A Anta Brasileira por toda a América do
(Fig. 1) é o maior A Anta Brasileira (Fig. Sul tropical por 11 paí-
mamífero terrestre da 1) é o maior mamífero ses, incluindo Argentina,
América do Sul. A es- terrestre da América do Bolívia, Brasil, Colômbia,
pécie tem ampla dis- Sul. Equador, Guiana, Guiana
Elaboração e implementação de projetos de conservação 65

ctimpresso 72.indb 65 24/04/2014 20:32:10


Francesa, Paraguai, Peru, aças: Fragmentação
A Anta Brasileira está
Suriname e Venezuela. já existente no bioma,
globalmente classificada
Ocorre primordialmen- causando o isolamen-
pela Lista Vermelha
te em florestas tropicais to de populações de
da IUCN como
baixas e ambientes ri- Anta Brasileira pela
VULNERÁVEL À
pários, mas pode tam- falta de conectividade
EXTINÇÃO.
bém ser encontrada em
A recuperação de uma da paisagem; atropela-
habitat mais secos, tais
população impactada é mentos em rodovias;
como o Chaco Boliviano Pantanal - quase amea-
bastante lenta.
e Paraguaio. No Brasil, çada - Principais ame-
a Anta Brasileira ocorre aças: Transformação
principalmente nos biomas Amazônia, do sistema tradicional pantaneiro de
Cerrado, Mata Atlântica e Pantanal. pecuária extensiva em formas mais
A Anta Brasileira está globalmen- intensivas de produção, envolven-
te classificada pela Lista Vermelha da do substituição de pastagens nativas
IUCN como vulnerá- por pastagens exóticas
vel à extinção. A Lista A anta desempenha e impacto de maiores
Vermelha Nacional do um papel de extrema quantidades de gado
ICMBIO – Instituto importância nos nas florestas; doenças
Chico Mendes de processos de formação infecciosas provenientes
Conservação da e manutenção da de animais domésticos,
Biodiversidade – clas- biodiversidade, atuando sobretudo equinos e
sifica o estado de con- de forma crítica para bovinos.
servação da espécie por processos ecológicos- De maneira geral,
biomas da seguinte ma- chave, tais como a a anta apresenta baixas
neira: Amazônia - quase dispersão de sementes. densidades populacio-
ameaçada - Principais nais e taxas reproduti-
ameaças: Caça, em ge- vas também intrinsica-
ral de subsistência, realizada em gran- mente baixas. A recuperação de uma
de escala pelas comunidades locais população impactada é bastante lenta.
de forma não sustentável; desmata- Quaisquer impactos, seja desmatamen-
mento; Caatinga - localmente extinta; to, caça, atropelamento (Fig. 2), fogo,
Cerrado - ameaçada - Principais ame- etc., têm efeitos drásticos nas popula-
aças: desmatamento/fragmentação ções. A anta desempenha um papel de
para fins de produção agropecuária; extrema importância nos processos de
atropelamentos em rodovias; Mata formação e manutenção da biodiver-
Atlântica - ameaçada - Principais ame- sidade, atuando de forma crítica para

66 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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Figura 2. Atropelamentos em rodovias - autoria: Patrícia Medici

processos ecológicos-chave, tais como br. Esse programa de pesquisa e conser-


a dispersão de sementes. Declínios po- vação foi inicialmente estabelecido na
pulacionais e extinções locais podem Mata Atlântica da região do Pontal do
desencadear efeitos adversos nos ecos- Paranapanema, Município de Teodoro
sistemas, afetando esses processos eco- Sampaio, Estado de São Paulo, mais es-
lógicos e eventualmente comprometen- pecificamente no Parque Estadual Morro
do a integridade e biodiversidade desses do Diabo.
ecossistemas. Entre 1996 e 2007, o Programa Anta
Mata Atlântica teve como foco principal a
Iniciativa Nacional para obtenção de dados e informações ecoló-
a Conservação da Anta gicas básicas sobre as populações de anta
Brasileira na região do Pontal do Paranapanema.
A Iniciativa Nacional para a Trinta e cinco (35) antas foram captura-
Conservação da Anta Brasileira das durante esse período e 25 delas foram
(INCAB) foi estabelecida em 1996 por equipadas com transmissores de teleme-
Patrícia Medici, pesquisadora sênior e tria (Fig. 3) e monitoradas ao longo dos
uma das fundadoras do IPÊ – Instituto anos.  Resultados desse monitoramento
de Pesquisas Ecológicas, www.ipe.org. de longo prazo incluem informações
Elaboração e implementação de projetos de conservação 67

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Figura 3. Captura de espécime de anta brasileira - autoria: Patrícia Medici

sobre ecologia espacial formação sobre o perfil


(tamanho de área de O Programa Anta epidemiológico e sobre a
uso, tamanhos de áreas Mata Atlântica do IPÊ genética da espécie, bem
de maior intensidade de foi a primeira iniciativa como sobre aspectos de
uso), interações intraes-
de longo prazo para a ecologia alimentar e dis-
pecíficas (sobreposição
pesquisa e conservação persão de sementes.
de área de uso e de áre-
da anta no Brasil. O Programa Anta
as de maior intensidade Mata Atlântica do IPÊ
de uso, aspectos de organização social foi a primeira iniciativa de longo prazo
e reprodução), uso e seleção de habitat, para a pesquisa e conservação da anta
padrões de atividade e padrões de mo- no Brasil e gerou um enorme banco de
vimentação pela paisagem fragmentada, dados de mais de uma década de in-
entre outras. Adicionalmente, centenas formações sobre a espécie, levando ao
de amostras biológicas foram coletadas, desenvolvimento de uma série de estra-
processadas e analisadas, gerando in- tégias e recomendações para a conserva-
68 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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ção da mesma no bioma Mata Atlântica. conservação de longo prazo e subsidiar
A abordagem principal do programa foi a formulação de recomendações para a
a pesquisa das antas no contexto de uma conservação da espécie na região.
paisagem fragmentada, usando esses Com enfoque principal nos con-
animais como “detetives ecológicos” no ceitos de Medicina da Conservação, o
processo de identifica- componente de saúde da
ção e mapeamento das Buscamos um INCAB procura avaliar
principais rotas de movi- entendimento mais de que forma os impac-
mentação pela paisagem, profundo sobre esses tos antrópicos e o cres-
e consequentemente animais em diferentes cente estreitamento da
as áreas potenciais para biomas, com diferentes interface entre as antas
o estabelecimento de matrizes de paisagem e e os animais domésticos
corredores e/ou tram- sob diferentes níveis de podem influenciar a con-
polins ecológicos como distúrbio ambiental. servação da espécie, bem
ferramentas de restabe- como determinar quais
lecimento de conectividade do habitat. parâmetros sanitários
Adicionalmente, essas informações fo- ilustram melhor esse cenário, em dife-
ram utilizadas para o desenvolvimento rentes biomas.
de um Plano de Ação Regional para a Depois do Pantanal, a INCAB esta-
Pesquisa, Conservação e Manejo da belecerá programas similares nos bio-
Anta Brasileira na Mata Atlântica no mas Amazônia e Cerrado. Por meio do
Pontal do Paranapanema, plano este estabelecimento de programas de pes-
que vem sendo implementado. quisa e conservação da anta em diferen-
Em 2008, a equipe considerou ter tes biomas, a INCAB espera criar uma
chegado o momento de utilizar a expe- perspectiva comparativa para a conser-
riência acumulada durante o Programa vação da espécie, investigando sua eco-
Anta Mata Atlântica para expandir os logia e ameaças em diferentes regiões
esforços de pesquisa e conservação da do país. Dessa forma, buscamos um
espécie para outros biomas brasilei- entendimento mais profundo sobre es-
ros. Foi então estabelecido o Programa ses animais em diferentes biomas, com
Anta Pantanal, com a meta primordial diferentes matrizes de paisagem e sob
de obter informações de demografia, diferentes níveis de distúrbio ambiental.
genética e saúde das antas nesse bio- Com essas informações seremos capa-
ma, bem como informações de uso de zes de compreender melhor a ecologia
habitat e do mosaico de fragmentos na- da espécie e suas demandas em termos
turais característicos da região, visando de conservação, bem como avaliar a
estabelecer um programa de pesquisa e importância e magnitude dos fatores
Elaboração e implementação de projetos de conservação 69

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ecológicos afetando as diferentes popu- 6. Comunicação, Conscientização,
lações existentes no país. Finalmente, Marketing: Aplicação e divulgação
teremos todas as ferramentas necessá- dos resultados obtidos de diferentes
rias para promover o desenvolvimento e maneiras, tanto para a comunidade
efetiva implementação de estratégias de científica quanto para o público em
conservação e manejo para populações geral: palestras, cursos, conferên-
específicas de anta por toda a sua área de cias, publicações científicas, web-
distribuição. sites, mídia social, folders, pôsteres,
arte, fotografia e veículos de comu-
Componentes Foco da nicação (mídia) entre outros.
INCAB 7. Turismo Científico:
Oportunidades para voluntários e
1. Pesquisa: Ecologia, demografia,
grupos de ecoturistas nacionais e
saúde, genética.
internacionais interessados em par-
2. Análises de Viabilidade ticipar das atividades de campo da
Populacional: Análise do estado INCAB.
de conservação da espécie e poten-
cial risco de extinção sob diferentes
cenários de ameaça e manejo.
3. Planejamento de Ações:
Desenvolvimento de Planos de
Ação regionais para cada bioma de
ocorrência da espécie. Futuramente
será desenvolvido um Plano de
Ação Nacional.
4. Educação Ambiental: Utilizando
a anta como espécie bandeira para a
conservação dos biomas onde ela se
encontra.
5. Treinamento e Capacitação:
Preparando os conservacionistas
do futuro. Estudantes, profissionais,
voluntários, nacionais e internacio-
nais; cursos de curta-duração sobre
tópicos relacionados; oportunida-
des para a realização de programas
de pós-graduação.

70 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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Ampliação da gestão
bigstockphoto.com

participativa em áreas
protegidas – o manejo
do pirarucu como
estudo de caso
Tatiana Maria Machado de Souza¹ - CRMV-MG 8916;
Leonardo da Silveira Rodrigues² - CRBio 49892/04-D
1
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
Email para contato: tatimsouza@gmail.com
2
Educador Ambiental

Introdução mos notar uma interessante evolução no


que diz respeito à maneira de gerenciar
A importância das áreas protegidas as áreas protegidas. As visões mais tra-
para a conservação da biodiversidade é dicionais tendem a dissociar o homem
amplamente reconhecida. Escolha de da natureza, propondo áreas naturais
áreas prioritárias, delimitação e decre- protegidas intocadas, viés preservacio-
to de áreas protegidas são o começo de nista. Por outro lado, visões mais ho-
todo um processo de implementação lísticas defendem que o envolvimento,
dessas áreas em busca da concretização cooperação e suporte de diversos atores
dos seus objetivos como instrumento de sociais, incluindo as populações locais,
gestão ambiental. Nas discussões entre promovem o sucesso da gestão das mes-
os atores envolvidos na temática, pode- mas, viés conservacionista.
Ampliação da gestão participativa em áreas protegidas – O manejo do pirarucu como estudo de caso 71

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A participação da so- sários, moradores das
A participação da
ciedade em todas as par- UC e do entorno, etc.
sociedade em todas
tes do processo de gestão Porém, nível de escola-
as partes do processo
ambiental é decisiva para ridade, poder financeiro
de gestão ambiental é
o sucesso das Unidades decisiva para o sucesso e político, nível de orga-
de Conservação (UC) das Unidades de nização e outros fatores
como estratégia de con- Conservação (UC) trazem consideráveis
servação. Idealmente, a diferenças na influência
participação deve acon- quando a questão é de-
tecer desde a escolha das áreas prioritá- fender seus interesses de classe. As re-
rias e da categoria mais adequada para gras da gestão ambiental são de caráter
cada área, passando pela priorização de jurídico e nem todos os atores envolvi-
atividades a serem executadas na UC e, dos na unidade dominam esse linguajar.
inclusive, a participação efetiva em sua É comum a dificuldade de compreen-
execução. Ou seja, desde a criação da der os diferentes pontos de vista de-
UC até sua implementação é fundamen- fendidos pelos diferentes atores devido
tal a participação social (SNUC art.5º, às diferenças de linguagem utilizadas
2000). pelos mesmos. Assim, esse desnível na
Como exemplos de instrumentos influência e capacidade de participação
participativos na gestão das UC, po- de certos grupos sociais pode levar a
demos citar o Plano de Manejo, docu- tomadas de decisão que beneficiem mi-
mento que apresenta caracterização da norias em detrimento de grupos sociais
unidade e as diretrizes e planejamento numerosos.
para os próximos anos; os Conselhos Nesse cenário, é necessário consi-
Gestores, em que planejamentos de derar a diversidade de grupos sociais e
atividades, prestações de contas, divi- suas particularidades, visando promo-
são de tarefas em planos de ação são ver condições igualitárias à participação.
construídos com participação da socie- A educação ambiental e as estratégias de
dade, incluindo atividades de proteção, gestão participativa são importantes fer-
monitoramento, manejo de recursos ramentas para alcançarmos uma robusta
naturais, etc.; os Acordos de Gestão; os gestão socioambiental.
Termos de Compromisso e as Pesquisas Segundo Sérgio Abranches
Participantes, dentre outros. (Abranches, 2014), há uma relação di-
Do ponto de vista de eficiência na reta entre miséria e destruição ambiental.
gestão das UC, todas as parcelas da so- São sintomas do mau funcionamento da
ciedade devem ser ouvidas nos espaços ordem social e do regime de governança.
de participação: pesquisadores, empre- (...) onde não há respeito pelo ser humano,
72 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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dificilmente haverá cuidados com a natu- cional de unidades de conservação,
reza e o meio ambiente. Que a destruição e consequentemente maior eficiên-
da natureza é previsível quando há des- cia na gestão do patrimônio natural.
prezo pela vida humana foi a conclusão a Assim, a participação social é um forte
que chegou Warren Dean ao estudar a des- promotor da manutenção da biodiver-
truição da Mata Atlântica no Brasil, que sidade, pois leva em consideração um
começou na colonização. leque de conhecimentos entre cientí-
Outro grupo de pensadores que fico, tradicional, cultural, ecológico,
desvelou as relações diretas entre aumentando a proteção desses terri-
pobreza e desequilíbrios ambientais tórios das tomadas de decisão equi-
foi o Movimento Justiça Ambiental vocadas e distanciadas da realidade
transformado na Rede Brasileira regional.
de Justiça Ambiental (RBJA) no Nos graus mais altos da “escada”
Colóquio Internacional sobre Justiça apresentada por Arnstein, quando os
Ambiental, Trabalho e Cidadania, atores sociais se sentem empoderados
realizado em setembro de 2001 na em seus papéis na gestão do patrimô-
Universidade Federal Fluminense. nio natural público, o sentimento de
A RBJA, que reúne setores da acade- responsabilidade e de pertencimento
mia, ONGs, organizações sindicais, modificam sua postura, promovendo
populares e representantes de atin- o protagonismo e o fortalecimento da
gidos, demonstra em seus estudos e gestão desse tipo de território (UC).
pesquisas que os grupos sociais mais A diversidade de representação en-
vulneráveis estão justamente em áreas riquece os processos participativos,
de maior risco ambiental e são os que pois “muitas cabeças pensam melhor
mais sofrem a desigualdade e o racis- que uma”. E a gestão participativa é
mo ambiental (Leroy, 2011). forma de controle social que fortalece
No texto “A escada da Participação” a democracia.
Sherry R. Arnstein classificou 8 níveis Se observarmos a legislação brasi-
de participação cidadã, aos quais ela leira, a participação social é preconiza-
chamou: manipulação, terapia, infor- da desde o artigo 225 da constituição
mação, consulta, pacificação, parceria, brasileira (1988). “Todos têm direito
delegação de poder e controle cida- ao  meio ambiente ecologicamente
dão (Arnstein, 2002). Desdobrando equilibrado, bem de uso comum do
essa teoria, a gestão socioambiental, povo e essencial à sadia qualidade de
quanto mais alto o degrau na “escada vida, impondo-se ao Poder Público e
da participação”, maior robustez ao à coletividade o dever de defendê-lo
processo de gestão e ao sistema na- e preservá-lo para as presentes e futu-
Ampliação da gestão participativa em áreas protegidas – O manejo do pirarucu como estudo de caso 73

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ras gerações”. Chama atenção o artigo nacional;
apresentar que o dever de defender e VIII - assegurem que o processo de criação
preservar o meio ambiente é, além do e a gestão das unidades de conserva-
poder público, da coletividade. ção sejam feitos de forma integrada
O Sistema Nacional de Unidades com as políticas de administração
de Conservação (Lei do SNUC, 2000) das terras e águas circundantes, con-
traz avanços ainda maiores explicitan- siderando as condições e necessida-
do a participação social como essencial des sociais e econômicas locais;
para a gestão pública da biodiversida- IX - considerem as condições e necessida-
de, como mostra abaixo os incisos que des das populações locais no desen-
tratam da gestão participativa do artigo volvimento e adaptação de métodos
quinto dessa lei. e técnicas de uso sustentável dos re-
Art. 5o O SNUC será regido por di- cursos naturais;
retrizes que: X - garantam às populações tradicio-
II - assegurem os mecanismos e procedi- nais cuja subsistência dependa da
mentos necessários ao envolvimento utilização de recursos naturais exis-
da sociedade no estabelecimento e tentes no interior das unidades de
na revisão da política nacional de conservação meios de subsistência
unidades de conservação; alternativos ou a justa indenização
III - assegurem a participação efetiva pelos recursos perdidos:
das populações locais na criação,
implantação e gestão das unidades
Estudo de caso:
de conservação; o manejo do pirarucu e a
IV - busquem o apoio e a cooperação de gestão participativa
organizações não governamentais, Para ilustrar a importância da par-
de organizações privadas e pessoas ticipação social na gestão ambiental
físicas para o desenvolvimento de es- utilizaremos o exemplo do manejo
tudos, pesquisas científicas, práticas do pirarucu na Reserva Extrativista –
de educação ambiental, atividades RESEX – do Baixo Juruá. A RESEX
de lazer e de turismo ecológico, mo- do Baixo Juruá, criada em 1º de agosto
nitoramento, manutenção e outras de 2001, está localizada no estado do
atividades de gestão das unidades Amazonas, compreendendo partes dos
de conservação; municípios de Juruá e Uarini. Possui
V - incentivem as populações locais e área de 187.982,31 hectares. Teve o
as organizações privadas a estabe- Conselho Deliberativo formado em
lecerem e administrarem unidades 2008 e Plano de Manejo publicado em
de conservação dentro do sistema 2009.
74 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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Figura 1. Pirarucu de manejo da RESEX do Baixo Juruá - autoria: Tatiana Souza

O pirarucu (Arapaima gigas – bida durante todo o ano no estado do


Fig. 1) é o maior peixe de escama da Amazonas, exceto em áreas de manejo
Amazônia. Essa espécie possui grande com autorização do órgão responsável
relevância alimentar, cultural e econô- (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
mica na região. Porém, devido à sobre- e dos Recursos Naturais Renováveis
-exploração e diminuição dos estoques - IBAMA).
pesqueiros, atualmente sua pesca é proi- O manejo do pirarucu foi desen-
Ampliação da gestão participativa em áreas protegidas – O manejo do pirarucu como estudo de caso 75

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volvido através de pesquisas realizadas de Conservação da Biodiversidade /
pelo Instituto de Desenvolvimento ICMBio, IBAMA etc) com o papel de
Sustentável Mamirauá – IDSM (Amaral, apoio, acompanhamento e fiscaliza-
2009). Pesquisadores e pescadores co- ção. Hoje, o manejo do pirarucu está
munitários das reservas Mamirauá e sendo replicado em regiões do esta-
Amanã desenvolveram um roteiro téc- do do Amazonas e de outros estados
nico para o manejo in situ do pirarucu. (Amaral, 2011).
O manejo, conforme preconizado pelo Na RESEX do Baixo Juruá, com
IDSM, recupera estoques pesqueiros, intuito de promover a exploração sus-
gera alternativa de renda e fortalece a tentável dessa espécie e recuperar seus
organização social e cultural local. Ao estoques, gerar alternativa de renda
recuperar os estoques pesqueiros ge- para as populações locais e permitir o
rando alternativa de renda e seguran- consumo desse apreciado e importan-
ça alimentar, funciona como atividade te recurso, em 2006 foi iniciado pro-
que, além de promover a conservação jeto específico para o manejo comu-
do próprio A. gigas, diminui a pressão nitário do Pirarucu. Para tanto, foram
sobre diversas outras espécies da fauna envolvidos o IBAMA, a Associação
e flora locais. de Trabalhadores Rurais de Juruá
O manejo do pirarucu foi adota- (ASTRUJ), o IDSM e, a partir de
do pelo IBAMA, que exige uma série 2007, o ICMBio. Essa iniciativa partiu
de procedimentos administrativos e dos comunitários que se organizaram e
técnicos, de acordo com o que foi pre- buscaram parcerias para implementa-
conizado pelas pesquisas do IDSM, ção da ideia.
para emitir a autorização. Assim, são Acordos de pesca foram construí-
necessários acordos de pesca, zonea- dos através de reuniões comunitárias,
mento de lagos, proteção comunitá- com participação de instituições afins.
ria de áreas de manejo, contagem de Esses acordos estão oficializados atra-
pirarucus, estimativa de cota de pes- vés da publicação do acordo de gestão
ca, monitoramento do pescado, co- no Plano de Manejo da UC. Nessas
mercialização, emissão de relatórios. reuniões foi feito o zoneamento dos
Excetuando-se o cálculo da cota de lagos de acordo com seu potencial e
pesca e emissão de guias de transpor- necessidade de uso da população ribei-
te, atualmente realizados pelo IBAMA, rinha. Alguns lagos foram destinados
os comunitários recebem treinamento à procriação do pescado, outros, para,
para coordenar e executar todos os ou- subsistência da comunidade, outros
tros passos do manejo, ficando os ór- para manejo, respeitada a lógica do
gãos (IDSM, Instituto Chico Mendes conceito ecológico da “fonte-sumidou-
76 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

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ro” (Barret & Odum, 2007). Os lagos pescado, anotando peso, sexo, tamanho
de manejo são destinados à pesca cole- e lacrando cada peixe. Finalmente, de-
tiva, obedecendo a acordos comunitá- vem relatar todo o processo. Enviando
rios, como o manejo do pirarucu. os dados de contagem ao IBAMA, este
Infelizmente os órgãos responsáveis emite uma cota de pesca para cada am-
ainda estão muito aquém de realizar a biente de manejo.
perfeita proteção das áreas protegidas. Os manejadores enfrentam grandes
Operações de fiscalização exigem recur- dificuldades relacionadas à infraestru-
sos humanos e financeiros além da capa- tura e apoio especializado, dificultando
cidade dos órgãos competentes, sendo a agregar valor ao produto (através de be-
vigilância comunitária permanente im- neficiamento ou selos) e a autonomia na
portantíssima para coibir invasões de la- comercialização (pois muitas vezes fi-
gos. Para isto, os comunitários envolvi- cam “reféns” de atravessadores). Devido
dos com manejo se dividem em grupos aos fatores citados, apesar de haver um
que se revezam durante todo o ano na aumento no preço por quilo comerciali-
vigilância das áreas de manejo para que zado, esse valor ainda está muito aquém
estas sejam vigiadas permanentemente. do preço justo. A comercialização é feita
Nos lagos de manejo onde há vigilân- através da associação que faz a divisão
cia comunitária contínua, observou-se do lucro em reuniões com a presença
grande aumento nas contagens de pira- dos manejadores. Em reuniões são re-
rucu, conforme as planilhas de conta- alizadas também avaliações de todo o
gem enviadas anualmente ao IBAMA. processo, em busca de adequações para
O envolvimento dos moradores das UC os próximos anos. Após a pesca, a asso-
no manejo do pirarucu fez diminuir, ciação produz o relatório de atividades
apesar de não ter cessado por completo, que é enviado ao IBAMA.
as invasões de lago e pesca predatória. O manejo trouxe recuperação dos
Todas as ocorrências são registradas e estoques pesqueiros, não só de pira-
os órgãos competentes, comunicados. rucu, mas das demais espécies presentes
A cada ano, no início da época seca, nos ecossistemas de manejo. Os mane-
inúmeras reuniões acontecem para or- jadores relatam (comunicação pessoal)
ganizar a pesca coletiva anual. Os ma- diminuição no esforço de captura e ob-
nejadores, através da coordenação da servaram maior abundância de diver-
ASTRUJ, precisam realizar a contagem, sas espécies de peixes, além de jacarés,
organizar toda a logística, providenciar o ariranhas, etc. Os pescadores de fora da
material para a pesca, negociar a comer- UC costumam pescar próximo de seus
cialização do pescado. Durante a pesca limites, pois a RESEX está funcionando
devem fazer o monitoramento de todo o como um “berçário de peixes”, uma vez
Ampliação da gestão participativa em áreas protegidas – O manejo do pirarucu como estudo de caso 77

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que os lagos de manejo ficam protegi- organizadas. A autonomia das comuni-
dos da pesca predatória. dades na definição de regras de vigilân-
O manejo trouxe também alternati- cia e na organização de todo o processo
va de renda para as famílias envolvidas do manejo estimula a participação, leva
e fortalecimento do laço entre comuni- em consideração o conhecimento co-
tários e entre comunitários e a reserva, munitário e protege a UC das comuns
criando um forte sentimento de perten- trocas de gestores que muitas vezes fra-
cimento e responsabilidade com a efe- gilizam a continuidade e as atividades
tividade da Unidade de Conservação. de gestão. Por outro lado, esse tipo de
O manejo do pirarucu está presente na proposta exige compromisso, trabalho
pauta de no mínimo 50% das reuniões em grupo, organização, disciplina e
de Conselho Deliberativo da UC e é planejamento.
uma das ações que mais contribuem Comunidades organizadas e em-
na efetiva conservação da biodiversi- poderadas, com respaldo institucio-
dade e do estilo de vida extrativista da nal, são a base para a sustentabilidade.
RESEX do Baixo Juruá. Modelos sociais que levam em consi-
deração as vulnerabilidades e poten-
Conclusões cialidades sociais, econômicas e am-
bientais são caminhos mais seguros e
Ainda há muitos entraves a serem robustos para vencermos os desafios
superarados no que diz respeito à infra- socioambientais contemporâneos com
estrutura, capacitação técnica, fiscali- justiça social.
zação, estudos de cadeia produtiva, etc. As Unidades de Conservação, en-
Porém, para uma iniciativa tão nova e quanto territórios que têm como obje-
que, apesar dos entraves, já apresenta tivo a conservação da biodiversidade,
tantos resultados é de se esperar (e é têm o potencial de ser um verdadeiro
necessário) que essas demandas sejam laboratório de iniciativas sustentáveis.
superadas através do esforço coleti- Iniciativas que, como o manejo do pi-
vo e investimento técnico, científico e rarucu, com sucesso demonstrado,
financeiro. podem ser replicadas para o restante
O estudo de caso do manejo do pi- do território de acordo com as vulne-
rarucu na RESEX do Baixo Juruá ilus- rabilidades e potencialidades de cada
tra o sucesso na conservação de espé- região. É um laboratório de um novo
cies através da transferência de poder modelo de relação e de interação com
na tomada de decisões a comunidades nossa casa, Terra.

78 Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia, nº 72 - março de 2014

ctimpresso 72.indb 78 24/04/2014 20:32:13


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br/2014/01/09/a-barbarie-do-maranhao/ da República Federativa do Brasil. Brasília,
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gigas) em lagos de várzea de uso exclusivo 203p.
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ência do Instituto Mamirauá junto a Colônia 9. INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO
de Pescadores Z-32 de Maraã na cogestão do SUSTENTÁVEL MAMIRAUÁ – IDSM/
complexo de Lagos do Pantaleão, na Reserva OS/MCT. Série: protocolos de manejo dos
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naturais, 1). 2011. 36p.
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ção cidadã. Revista da Associação Brasileira 10. LEROY, J. P. 2011. Justiça Ambiental. IN:
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PARTICIPE, Porto Alegre/Santa Cruz do Sul, geral/anexos/txt_analitico/LEROY_Jean-
2002. Pierre_-_Justi%C3%A7a_Ambiental.pdf

Ampliação da gestão participativa em áreas protegidas – O manejo do pirarucu como estudo de caso 79

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