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A CRÔNICA DE CINEMA

NO RECIFE DOS ANOS 50

LUCIANA ARAÚJO
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Aos meus pais, Mário e Maria Alice


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AGRADECIMENTOS

Este livro foi escrito originalmente como dissertação de mestrado, defendida na


Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, em maio de 1994. Para
publicação, mantive o texto original, com algumas poucas modificações.

Agradeço

a Maria Rita Galvão - pela orientação precisa e tranquilizadora

aos amigos Maria Bacellar, Arthur Autran, Fernando Trevas Falcone e Kátia Halbe -
pelas conversas, correções e total apoio

aos jornalistas Alexandrino Rocha, Celso Marconi, Jomard Muniz de Britto, José de
Sousa Alencar e Luís Maranhão Filho; ao médico Rildo Saraiva; e ao cineasta Romain
Lesage (em memória) - pelos depoimentos

às instituições
CAPES e FAPESP que viabilizaram este trabalho através de bolsas de estudos;
Arquivo Público Estadual de Pernambuco; Fundação Joaquim Nabuco; Fundação de
Cultura da Cidade do Recife; TV Universitária de Pernambuco; Cinemateca Brasileira
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APRESENTAÇÃO
Jean-Claude Bernardet

Os estudos sobre a história do cinema brasileiro têm-se deslocado nos últimos


anos. Tradicionalmente, o objeto do historiador era a produção cinematográfica, ou
mais precisamente: os filmes. Os documentos encontrados à sua volta eram
capitalizados para a história dos filmes, inclusive os textos críticos que o comentavam.
Mais recentemente, o historiador tem procurado novos objetos. Um deles são
justamente os textos críticos que, há ainda pouco tempo, eram colocados a serviço dos
filmes. A novidade é que se busca entender o pensamento referente a cinema, e mais
particularmente referente a cinema brasileiro. Os estudos sobre tais textos são trabalhos
sobre a ideologia cinematográfica produzida no Brasil.
Mas por que estudar críticas de filme para pensar a ideologia cinematográfica no
Brasil? Em outros países não se procederia necessariamente dessa forma. É que o Brasil
é um fraco produtor de teoria do cinema. Daí a necessidade de rastrear essa ideologia
nos textos em que ela está sendo aplicad, na crítica cinematográfica, nas entrevistas, nas
crônicas, onde a ideologia e as idéias teóricas nem sempre - digamos até, raramente -
são clara e explicitamente formuladas. Elas e suas contradições estão em atuação de
forma latente e subjacente. O pensamento cinematográfico tem então ue ser caçado, é a
análise que o faz aflorar. O que exige um trabalho lento, minucioso, em que o analista
vira por vezes um detetive.
É esse trabalho que Luciana Sá Leitão Corrêa de Araújo faz maravilhosamente
sobre a crítica cinematográfica do Recife nos anos 50, evidenciando as idéias referentes
a cinema naquele período.
Esse tipo de análise é recente e a bibliografia é das mais escassas. A crônica de
cinema no Recife dos anos 50 enquadra-se assim numa linha de ponta das pesquisas
relativas a cinema brasileiro. Ele é relevante, não apenas por nos informar sobre a
ideologia cinematográfica vigente nos Recife dos anos 50 mas porque nos informa
também sobre o pensamento cinematográfico brasileiro em geral, e também porque, no
quadro ainda incipiente desses estudos no Brasil, ele faz uma proposta metodológica
que terá de ser levada em consideração.
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ORELHA
Celso Marconi

Embora que hoje seja, quase, uma atividade sem muito prestígio, pelo menos
quando feita com maior aprofundamento, o estudo de Luciana Araújo sobre a crônica
cinematográfica dos anos 50 do Recife, apresenta, sem dúvida, um especial interesse
àqueles que buscam conhecer a realidade cultural pernambucana.
Mesmo nos anos 50, a atividade de comentar cinema nos jornais teve uma
dubiedade entre o pensamento reflexivo e o simples noticiar fatos amenos, que se
interligavam no mundo mítico tanto do filme europeu quanto do hollywoodiano. E
Luciana passeia, com muita propriedade, na sua pesquisa, entre as figuras que
apresentavam suas crônicas buscando uma realidade ou outra.
O cinema traz nele mesmo uma dimensão que comporta praticamente todos os
níveis. Do onírico ao realismo. E nos anos 50 era um autêntico facho de luz atraindo
aqueles menos acadêmicos. E podemos sentir que todos os cronistas apresentados na
pesquisa possuíam (ou estavam possuídos de) dilemas ideológicos para decifrar. Até
uma Renata Cardoso, por dentro de suas brincadeiras, não ficava só no inconsciente. O
estudo de Luciana Araújo consegue, por isso mesmo, documentar um momento rico da
atividade cultural do Recife, numa área restrita e definida do jornalismo.
É expressivo que jovens como Luciana Araújo, Alexandre Figueirôa, Diana
Moura e outros, em seus estudos acadêmicos, se voltem para atividades pernambucanas
não acadêmicas. Principalmente em regiões como o Recife, pobres, mesmo hoje o
cinema continua a ser um objeto pouco definido para o contexto cultural/social. E
Luciana consegue marcar sua pesquisa por uma visão pessoal. Não assume um lado,
nunca. Todos os figurantes têm o seu espaço, mas ela, como espectadora privilegiada,
esboça a sua visão. E abre ao leitor a melhor compreensão do período. Do que foi o
Recife cultural nesses anos estudados.
Certamente que após a publicação dessa tese sobre a crônica cinematográfica
recifense dos anos 50 muitos passarão a compreender melhor porque o nosso Estado é
marcado, no panorama brasileiro, como de vocação para a produção do cinema. E como
está retomando esse caminho, com a realização de curtas e até de um longa. O estudo
de Luciana é a teoria que serve para dar embasamento à prática.
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..............................................................................................07

Capítulo 1:
A CENA CINEMATOGRÁFICA DA “3ª URBE” ....................................16

Capítulo 2:
O CINEMA COMO DEVE SER ..................................................................50

Capítulo 3:
O CINEMA BRASILEIRO VISTO DA PROVÍNCIA ..............................67

Capítulo 4:
O CANTO DO MAR: ALBERTO CAVALCANTI NO RECIFE .............91

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................126

ANEXO

1. COELHO SAI ...............................................................................................131


2. TRANSCRIÇÕES ........................................................................................136
3. CRÔNICAS SOBRE O CANTO DO MAR .................................................150

BIBLIOGRAFIA.............................................................................................169
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INTRODUÇÃO
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O movimento inicial da pesquisa se deu na direção de abordar as atividades do


cineasta Alberto Cavalcanti no Recife, em 1952 e 1953, quando filmou na região O
Canto do Mar. Mas o levantamento de informações nos jornais diários da época revelou
uma crônica cinematográfica ativa e relativamente numerosa. O que acabou por
modificar substancialmente o trabalho.
O objetivo tornou-se, então, o levantamento da produção da crônica
cinematográfica nos jornais diários do Recife nos anos 1952/53. A partir daí não só
rastreamos a repercussão do trabalho de Cavalcanti na cidade como também
procuramos compreender as concepções sobre cinema que marcam o pensamento dos
cronistas locais, e quais as posturas diante da produção estrangeira, da estética e da
linguagem cinematográfica, do cinema brasileiro, e da própria função da crítica de
cinema. Além disso, levantamos informações sobre a cena cultural do Recife da época
no que diz respeito às manifestações ligadas ao cinema, desde os cineclubes e círculos
de estudos até a produção de cinejornais e dos cineastas amadores, sem deixar de lado a
atuação da Igreja Católica.

Alguns jornalistas em textos dos anos 50 chegam a apontar o ano de 1949 como
o marco do “reaparecimento” da crônica cinematográfica no Recife. Jovens
colaboradores e veteranos que voltam à ativa restabelecem o vigor da crônica -
praticamente estagnada desde meados dos anos 40 -, estimulados pelo neo-realismo
italiano, pelas produções hollywoodianas do pós-guerra, pelas experiências de cinema
industrial no Brasil, Vera Cruz à frente.
Tal retomada acontece num contexto diferente dos anos anteriores em relação
aos novos procedimentos implantados na imprensa. Na década de cinquenta começa a
se consolidar o jornalismo especializado, que coloca em xeque a tradicional figura do
cronista de assuntos gerais, que transita com desenvoltura e com maior ou menor
propriedade entre diversas áreas. Por outro lado, o cinema deixa de ser mero
passatempo e passa a ser encarado com “seriedade”, falando-se até em “cultura
cinematográfica”. Cria-se, então, um campo específico, com repertório e vocabulário
próprios.
Um interessante testemunho dessas mudanças é dado pelo jornalista Mário
Melo, figura tradicional da imprensa pernambucana, em atividade desde o começo do
século, que assina diariamente a “Crônica da Cidade”, no Jornal do Commercio:

“Depois da invenção do que intitulam ‘imprensa especializada’ - jornalistas com


exclusividade para tratar de desportos, ou de cinema, ou de teatro, ou de música,
para o que abusam alguns do vocabulário estrangeiro, em desprezo completo ao
vernáculo - é até perigoso para os que não fazem parte das panelinhas, nem
pretendem exibir erudição bestialógica, entrar na seara deles. Confesso que não
sei o que, em cinematografia, é ‘close-up’ de que tanto falam os ‘especializados’
e por isso ignoro se qualquer dos dois filmes [Melo dedica a crônica do dia ao
comentário de O Canto do Mar e Sinhá Moça] tem defeito de ‘close-up’ ou de
‘close-down’.” (JC, 09/out/53, p.2)

E Melo está cercado de ‘especializados’. Os seis jornais diários que circulam no


Recife ostentam pelo menos um cronista cinematográfico regular, sem contar os
colaboradores - alguns assíduos, outros um tanto bissextos. São essas colunas de cinema
que interessam ao nosso trabalho. Deixamos de lado o material da tradicional página
cinematográfica publicada nos suplementos dominicais, porque na grande maioria das
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vezes não traz textos de cronistas, mas simplesmente reproduz o material de divulgação
enviado pelas distribuidoras. Trata-se de um espaço bem mais publicitário do que
propriamente jornalístico, opinativo. Uma exceção que merece registro é a página
dominical do Diário de Pernambuco, com textos assinados de diversos colaboradores,
comentando os filmes em cartaz ou abordando temas e personalidades ligados ao
cinema.
A seguir, elaboramos uma rápida apresentação dos jornais pesquisados e seus
cronistas e colaboradores entre 1952 e 1953 1:

DIÁRIO DA NOITE (DN) - vespertino fundado em 1946, de propriedade da Empresa


Jornal do Commercio S.A., dirigida por Francisco Pessoa de Queiroz. Na primeira
página, ao lado do nome do jornal, segue-se a frase: “Um jornal do Nordeste a serviço
do povo”. Orgulha-se de ser um jornal de todas as classes, desde o usineiro até o
operário, afirmando não se alinhar com nenhum partido. Em 1949, o jornal promove
uma polêmica com a Folha da Manhã, criticando as atividades de Agamenon
Magalhães, então a maior força política no estado, do qual foi Interventor na época do
Estado Novo e governador de 1951 até sua morte no mês de agosto do ano seguinte.
Não circula aos domingos. Cronistas e colaboradores:
- Duarte Neto: advogado formado em 1952. Colabora regularmente na coluna “Para o
Diário da Noite escreve”, publicada na terceira página. Em março de 1953,
aproximadamente, transfere-se para a Folha da Manhã (Vespertina).
- Jorge Abrantes: editorialista, escreve também sobre assuntos gerais na coluna “Boa
Tarde”. Dedica diversas crônicas e editoriais a assuntos cinematográficos.
- Luiz Vieira: chefe de publicação, assina a seção “Cinelândia”, em 1952, na qual
mistura comentários pessoais e reproduções de releases dos filmes em cartaz. Em
meados do ano seguinte, Vieira reaparece com a seção “Cinema”.
- André Gustavo Carneiro Leão: engenheiro, um dos programadores do Cine Clube do
Recife, responsável pela seção “Cinelândia” no segundo semestre de 1952. Colabora
também na página cinematográfica do suplemento dominical do Diário de
Pernambuco.
- Paulo Fernando Craveiro: colabora no jornal a partir do segundo semestre de 1953 na
coluna “Para o Diário da Noite escreve”.

DIÁRIO DE PERNAMBUCO (DP) - o “jornal mais antigo em circulação na América


Latina”, fundado em 1825. Em junho de 1931, passa a fazer parte dos “Diários
Associados Ltda.”, de propriedade de Assis Chateaubriand. O suplemento dominical
dedicado à literatura, cinema, rádio e assuntos femininos começa a circular em maio de
1952. Não circula às segundas-feiras. Cronistas e colaboradores:
- José de Sousa Alencar: advogado formado em 1952, colega de turma de Duarte Neto.
No suplemento, assina a coluna “Sétima Arte”, da página cinematográfica “Mundo de
luz e som”, na qual comenta um ou mais filmes em cartaz, seguido de suas respectivas
cotações. Colabora também no Jornal do Commercio - e, eventualmente, no Diário da
Noite -, com o pseudônimo “Ralph”.
- L. : pseudônimo de Luís de Andrade, que também escreve como Luiz Ayala (em outras
fontes: Luís Aiala) para o Diário da Noite a coluna de assuntos gerais “Na linha média”.

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Aqui nos valemos especialmente das informações sobre os jornais diários do Recife
In: NASCIMENTO, Luiz do. História da imprensa de Pernambuco, v.III. Recife,
Imprensa Universitária - Universidade Federal de Pernambuco, 1967.
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Editor da página de artes e espetáculos da Folha da Manhã (Vespertina). Depois de ter


abandonado a crônica cinematográfica, que exerceu nos anos 40, ele retorna no início
de 1951, escrevendo diariamente na coluna “Mundo de luz e som”, publicada na página
seis (aos domingos, encontramos duas “Mundo de luz e som”: a coluna de L. e a página
de cinema do suplemento). Com frequência, abre espaço em sua coluna para outros
colaboradores, como Valdir Coelho, Jomard Muniz de Britto e Renata Cardoso, ou
transcreve textos do Serviço de Cinema da Liga Operária Católica.
- Valdir Coelho: militante católico, membro da Ação Católica e diretor do cineclube
Vigilanti Cura. Responsável pelo material sobre cinema da “Seção Religiosa” publicada
no Jornal do Commercio, que entre outros serviços oferece a “cotação moral” dos
filmes em cartaz.
- Jomard Muniz de Britto: adolescente de 15 anos, em 1953, membro do “Conselho
Deliberativo” do Vigilanti Cura e um dos organizadores do “Cine-Forum”.
- Renata Cardoso: pseudônimo de Alexandrino Rocha. A “cronista” comenta não só os
filmes em cartaz mas principalmente a atuação de seus colegas, numa crônica de
bastidores marcada pelo humor provocativo. A ideia de criar o personagem surgiu em
conversas com L. e Duarte Neto. Com esse último, Alexandrino escrevia as crônicas de
Renata “praticamente, a quatro mãos” 2.
- Juvenal Félix: poeta, colabora esporadicamente na página de cinema do suplemento
dominical.
- André Gustavo Carneiro Leão: colaborador ocasional da página de cinema do
suplemento dominical.
- Paulo França: assina a coluna “Refletor” na página de cinema do suplemento
dominical.

FOLHA DA MANHÃ (EDIÇÃO MATUTINA) (FM/M) - fundado em 1937 pelo então


ministro Agamenon Magalhães, adotando formato pequeno, em seis colunas. Na
primeira página do primeiro número do jornal são publicadas fotos de Getúlio Vargas,
do interventor federal em Pernambuco, General Azambuja Vilanova, e de Agamenon.
Na década de cinquenta, o suplemento dominical dedica duas páginas às notícias
cinematográficas. Não circula às segundas-feiras. Publicado até 1959. Cronistas e
colaboradores:
- Mauro (Almeida): assina a coluna “Cinema”, publicada diariamente. Diretor do Jornal
do Fan, “semanário noticioso independente” que traz notícias sobre rádio e cinema.
- Alexandrino Rocha: responsável pela seção de cinema no semanário O Dia, torna-se
cronista cinematográfico da Folha a partir de novembro de 1953. Escreve também com
o pseudônimo de Renata Cardoso.

FOLHA DA MANHÃ (VESPERTINA) (FM/V): surge em 1938, impresso num formato


pequeno, em seis colunas, em papel verde-claro; conhecido como “a folhinha”. Como a
edição matutina, é também órgão de propaganda do Estado Novo, de Getúlio Vargas e
de Agamenon Magalhães, seu proprietário. Nos anos 50, transcreve regularmente
artigos sobre cinema do jornal Última Hora, que também apoia o governo Getúlio
Vargas. Não circula aos domingos. Publicado até 1959. Cronistas e colaboradores:
- Paulo Fernando Craveiro: assina a coluna diária “Ronda Cinematográfica”.
- Renata Cardoso: assina a coluna diária “Câmera Lenta”.
- Duarte Neto: a partir de março de 1953, assina a coluna diária “Cinema”.

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Depoimento de Alexandrino Rocha.
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- José Laurênio de Melo: no início de 1953, é responsável, por pouco tempo, pela
coluna de cinema.

JORNAL DO COMMERCIO (JC) - fundado em 1919 por João Pessoa de Queiroz para
defender os “interesses das classes conservadoras”. Nos anos 40, publica a coluna de
Carlos Lacerda “Tribuna da Imprensa”. Na década seguinte, o suplemento dominical
dedica entre uma e duas páginas aos assuntos cinematográficos. Não circula às
segundas-feiras. Cronistas e colaboradores:
- Ralph: pseudônimo de José de Sousa Alencar. Assina a coluna diária “Telas e Palcos”,
chamada posteriormente de “Cinema”.
- José do Rego Maciel Júnior: colaborador na página “Cinematografia” do suplemento,
a partir de setembro de 1953.

JORNAL PEQUENO (JP) - como o próprio nome indica, jornal de pequeno porte,
“órgão independente e noticioso”, com seis páginas, que ostenta na primeira, ao lado do
nome do jornal, a frase “A Verdade Nua e Crua”. Na década de quarenta, atua como
órgão das Oposições Coligadas. Não circula aos domingos. Cronista:
- Ângelo de Agostini: cronista cinematográfico e, com menor frequência, teatral, na
coluna diária “Cinemas e Teatros”.

O espaço dedicado às artes e aos espetáculos obedece a critérios semelhantes


entre os seis jornais diários que circulam no Recife nos anos de 1952/53. Nos dias da
semana, colunas de cinema, rádio e teatro ocupam apenas uma página do jornal - e nem
sempre gozam de exclusividade no espaço que lhes cabe. No Diário de Pernambuco, a
página de artes e espetáculos inclui também “Vida Religiosa” e o colunismo do “Diário
Social”; enquanto no Jornal Pequeno a coluna “Cinemas e Teatros” vem ao lado das
notícias sociais e da crônica policial.
Uma comparação com a crônica esportiva seria humilhante. Nos grandes e
abastados jornais como o Commercio ou o Diário de Pernambuco, o esporte ganha até
duas páginas inteiras, fartamente ilustradas com fotos e desenhos, numa concepção
visual arejada e atraente, que chega a contrastar com o resto do jornal. A página de
espetáculos, por sua vez, se conforma com uma diagramação “quadrada”, sem maiores
atrativos além das fotos de artistas de Hollywood e das estrelas dos programas de rádio
locais. Ou ainda, como na Folha da Manhã (Matutina), publica-se a foto do cronista
ilustrando sua coluna. O que nos permite conhecer a compenetrada fisionomia de
Mauro, metido em terno e gravata, numa fotografia estilo 3x4.
Aos domingos, o cinema ganha uma página (às vezes duas, dependendo da
época e do jornal), farta em material promocional e fotografias, nos suplementos do
Commercio e da Folha (Matutina). É o espaço privilegiado das distribuidoras, que aí
veiculam releases sobre as estreias e os filmes que permanecem em cartaz, num circuito
com mais de trinta salas de cinema na região do grande Recife. Já no suplemento
dominical do Diário de Pernambuco a página cinematográfica “Mundo de Luz e Som”
mostra-se mais opinativa, com resenhas e comentários regulares de José de Sousa
Alencar e Paulo França (que assinam as colunas “Sétima Arte” e “Refletor”,
respectivamente) e com a colaboração de Juvenal Félix e André Gustavo Carneiro Leão.
Apesar das diferentes linhas editoriais, as páginas dominicais sobre cinema
desses três jornais obedecem à mesma hierarquia editorial que rege os suplementos.
Nos três casos, o lugar de honra que é a primeira página está reservado à literatura -
críticas, resenhas, poemas - e, em menor escala, às artes plásticas. Da segunda página
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em diante, seguem-se as seções de “Cinema”, “Rádio”, “Crônica Jurídica”, “Página


Cristã”, “Economia”, “Vida Rural”, “Mundo Canino” (os títulos variam entre os
jornais, mas os temas são quase sempre os mesmos).
Na página diária de espetáculos, os assuntos cinematográficos podem ganhar até
quatro “seções” (chamaremos assim, apesar de nem todas serem colunas fixas,
regulares e com nome determinado): a crônica de cinema assinada por um jornalista
local; a coluna dos filmes em cartaz, que traz a relação das salas de cinema e suas
respectivas atrações; a reprodução de material enviado pelas agências internacionais e
companhias brasileiras; e, como já mencionamos, as fotos das estrelas do cinema
americano e europeu - às vezes em poses de estúdios outras em “flagrantes” (não menos
posados) -, acompanhadas por legendas redigidas em estilo publicitário, menos
interessadas em oferecer informações recentes sobre os astros do que em louvar suas
qualidades artísticas e pessoais.
A essas “seções”, acrescente-se outro procedimento adotado pela Folha da
Manhã (Vespertina) que é o de reproduzir material publicado originalmente no jornal
Última Hora, o que inclui artigos sobre cinema assinados por Vinicius de Moraes,
Topaze e Carmen Nícias de Lemoine. Em 1952, na página “Espetáculos” do jornal,
editada por Luiz Ayala (o “L.” do Diário de Pernambuco), encontramos as seções
“Cinema”, “Música”, “Folha nos Teatros” e “Folha no Rádio”. As colunas assinadas
trazem os nomes de Luiz Ayala (“Na Linha Média”, coluna sobre assuntos gerais,
escrita na primeira pessoa), Hermilo Borba Filho (“Fora de Cena”, teatro) e Paulo
Fernando Craveiro (“Ronda Cinematográfica”).
No ano seguinte, a Folha reestrutura a página de espetáculos e forma um
conceituado time de cronistas culturais. A coluna “Pintura” fica sob a responsabilidade
do artista plástico Aloísio Magalhães; o escritor Ariano Suassuna escreve sobre
“Literatura”; Geraldo Menucci assina “Música”; Hermilo Borba Filho e Paulo Fernando
Craveiro permanecem como colaboradores (com a diferença que “Fora de Cena” torna-
se “Teatro”).
Ao examinar a relação entre a crônica cinematográfica e a crônica voltada para
outras formas de produção cultural, percebemos como principal ponto em comum o
fato do objeto de crítica encontrar-se, quase sempre, entre as atrações oferecidas ao
público pelo circuito local. Na grande maioria dos casos, comenta-se o filme ou a peça
em cartaz, o concerto apresentado, as obras de arte em exposição. Mas justamente aí
encontra-se a principal diferença. Enquanto o circuito teatral, musical ou de artes
plásticas é frequentado majoritariamente por produções locais, o circuito
cinematográfico não exibe qualquer longa-metragem pernambucano (com exceção da
apresentação em cineclubes dos filmes do Ciclo do Recife), pela simples razão de não
haver uma produção cinematográfica no estado, além dos cinejornais.
Claro que na crônica teatral, por exemplo, há espaço para o comentário de peças
encenadas no Recife por grupos teatrais de outros estados ou para informações sobre a
obra de Pirandello ou Maeterlinck. Assim como nas colunas de literatura e artes
plásticas encontramos textos críticos sobre Flaubert e Picasso (para citar os temas de
duas crônicas de Ariano Suassuna e Aloísio Magalhães, respectivamente). Mas nada
comparável à proporção de títulos estrangeiros presentes no circuito de cinema local e,
consequentemente, objeto da crônica especializada.
Ao contrário da produção crítica literária que também pode ser encontrada em
revistas como Resenha Literária e Presença, a crítica - impressa - de cinema concentra-
se essencialmente nos jornais diários. Outras publicações voltadas para assuntos
cinematográficos resumem-se ao Jornal do Fan - que circula apenas durante algumas
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semanas de 1953, trazendo as últimas do cinema e do rádio - e a Cine-Filme, órgão


oficial da Associação de Cinegrafistas Amadores (A.C.A.). Apesar de entrar tantas
vezes no rol de promessas e projetos dos cineclubes locais, textos impressos seja na
forma de revista ou de programas mais extensos não chegam a ser produzidos.
Se escaparmos da esfera da mídia impressa, nos deparamos com o “Cine-
Forum”, promovido pelo Cine Clube Vigilanti Cura, onde a crítica de cinema é
exercitada através de debates e discussões. E também não podemos deixar de chamar
atenção para a crônica cinematográfica exercida nos programas de rádio como
“Cinelândia” e “Epopeia do Cinema”, que apresentam não só comentários sobre os
filmes da semana como também realizam entrevistas com cronistas locais. Essas
entrevistas, por sua vez, ganham a mídia impressa quando reproduzidas nas colunas
especializadas.
É o jornal, portanto, o campo de ação por excelência da crítica cinematográfica
local. Na classificação informal de Renata Cardoso, existem os cronistas diários - L.,
Ralph, Mauro, Paulo Fernando Craveiro, Agostini - e os bissextos - ela mesma, Duarte
Neto, Alexandrino Rocha, Juvenal Félix, André Gustavo Carneiro Leão (FM/V,
28/out/52, p.7; cf. ANEXO). A regularidade pode variar entre cada caso, mas no que se
refere ao critério de escolha da pauta a variação é mínima. Todos escrevem,
basicamente, sobre os filmes em cartaz. Este ou aquele perfil de diretor, produtor ou
artista é quase sempre motivado pelas produções exibidas naquele momento pelos
cinemas. Movimento semelhante se dá em relação às considerações em torno do cinema
nacional e estrangeiro.
A se julgar pelo material pesquisado, o próprio cronista define a pauta, o que na
prática significa escolher, entre os filmes do circuito, aquele que irá comentar. Uma
orientação editorial mais definida talvez não permitisse que em um mesmo jornal dois
cronistas comentassem na mesma semana um ou dois filmes iguais - o que acontece,
por exemplo, nas colunas de Paulo Fernando Craveiro e Renata Cardoso na Folha
(Vespertina); ou, ainda, podemos supor que com um maior controle editorial talvez não
houvesse espaço para textos onde domina a subjetividade do cronista, por vezes
completamente desvinculada de temas cinematográficos. Como é o caso de certas
crônicas de Craveiro e Duarte Neto, que adotam um estilo literário e “impressionista”,
no sentido de traduzir suas impressões e humores pessoais, sem remeter
necessariamente a fatos e notícias da área.
Apesar de exercida por um grupo composto por vários jovens, a crônica de
cinema da época não deixa de manter uma característica tradicional da imprensa
pernambucana: o gosto pela polêmica. Sobre esse ponto, o historiador Antônio Brasil
constata:

“Outro fator preponderante no desenvolvimento e na forma de expressão do


espírito crítico entre nós é, sem dúvida, o costume da polêmica, dando à crítica
que deveria ser erudita, um sabor de verrinas, mais em tom jornalístico, que
essencialmente analítico.” 3

No caso, Brasil se refere à crítica literária no Recife dos anos 40, mas o
parágrafo não poderia definir melhor - excetuando, é verdade, a exigência de erudição -
o aspecto polêmico que se verifica na crônica cinematográfica dos anos 1952/53. Brasil

3
Cf. BRASIL, Antônio e outros. Um Tempo do Recife. Recife, Arquivo Público
Estadual/Secretaria da Justiça, 1978.
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credita boa parte do espírito polêmico da produção crítica literária à tradição


bacharelesca com sua “linguagem candente” e “crítica verrinosa” formada na Faculdade
de Direito do Recife.
Também entre os cronistas de cinema encontramos bachareis. Dos advogados
formados pela Faculdade de Direito que se destacam na produção crítica
cinematográfica, Luiz Ayala (o L.), Jorge Abrantes, José de Sousa Alencar e
Alexandrino Rocha fazem carreira na imprensa, enquanto Duarte Neto, posteriormente,
deixa o jornalismo para se tornar Juiz de Trabalho. Fazendo jus a outra tradição da
imprensa da época, dificilmente encontramos um cronista colaborando apenas na área
de cinema e trabalhando para um só jornal. Abrantes, que não se define como crítico
especializado, nem assina coluna de cinema, trabalha no Diário da Noite e no Jornal
Pequeno; L. divide suas atividades entre a Folha da Manhã, o Diário de Pernambuco e
um emprego público estadual; Mauro chega a dirigir por algum tempo um Jornal do
Fan; Alexandrino alterna revisão no Diário de Pernambuco, crônica de cinema em
diversos jornais e até atua como locutor na Rádio Tamandaré. Quando se fala em crítica
especializada, portanto, entenda-se especializada de acordo com os padrões da época,
que não exclui a atuação do cronista em outras áreas.
A especialidade do cronista define-se por outros critérios que não o da
exclusividade. E um dos pontos diferenciadores é certamente o acesso a textos sobre
cinema produzidos no Brasil e no exterior. Numa época em que tanto se afirma a
importância de uma “cultura cinematográfica”, as informações são valiosas porque
garantem desde a intimidade com o vocabulário específico até o acompanhamento das
principais tendências do cinema mundial.
Na década de cinquenta, uma rápida lista das leituras obrigatórias entre os
cronistas de cinema do Recife inclui O Cinema, sua técnica, sua economia, de George
Sadoul, a Cartilha do Cinema de Carlos Ortiz e, entre as revistas, a mineira Revista de
Cinema, a francesa Cahiers du Cinéma e a britânica Sight and Sound - as duas últimas,
vale frisar, “obrigatórias” mas não necessariamente lidas, já que nem todos dominam
línguas estrangeiras. Complementando a lista, vêm as colunas de cinema dos jornais e
revistas brasileiros, assinadas por profissionais de peso como Moniz Viana (Correio da
Manhã), Almeida Salles (O Estado de S. Paulo), Pedro Lima (O Cruzeiro) e Salvyano
Cavalcanti de Paiva (Manchete).

Optamos por delimitar o trabalho aos anos de 1952/53. Antes de tudo, porque é
esse o período de filmagem de Canto. As atividades de Cavalcanti no Recife
representam um poderoso estímulo à crônica cinematográfica local, colocando questões
importantes no que se refere à produção brasileira e pernambucana. Apesar de se deixar
levar inúmeras vezes por preconceitos e rivalidades pessoais, a crônica não se furta a
abordar tais questões. Canto é um momento privilegiado porque aproxima a crônica da
esfera da produção. Aqui, não se trata de comentar “de camarote” um filme estrangeiro
ou mesmo nacional, mas de acompanhar de perto as etapas de realização de um produto
que trabalha com profissionais e temas “da terra”.
Ainda insistindo no estímulo gerado pela produção, desta vez em nível nacional,
vale a pena lembrar que em 1952/53 a Vera Cruz conhece seu período de maior
prestígio. Lança com regularidade seus filmes no mercado brasileiro e conquista
prêmios internacionais para O Cangaceiro e Sinhá Moça, mobilizando ainda mais a
crônica em torno do cinema industrial paulista. No final de 1953, a crise financeira da
companhia vem à tona e daí por diante a situação não melhora.
15

O recorte temporal efetuado motiva-se também pela repetição de temas e


abordagens que observamos na crônica especializada da época. Como nos anos 1952/53
a crônica local se encontra particularmente estimulada e aborda uma significativa
variedade de tópicos, o período escolhido nos parece dar conta das preocupações da
época, ao mesmo tempo em que nos permite um olhar que, se perde em extensão, ganha
com um exame mais próximo e detalhado.
Por outro lado, isso não impede de traçarmos, eventualmente, pontes de ligação
com outros momentos da década, seja para trazer informações complementares a
determinadas trajetórias, seja para estabelecer sugestivos contrapontos.
Com relação ao material pesquisado, em alguns momentos optamos pela
designação genérica de “texto” ou, nos casos mais específicos, indicamos se se trata de
entrevista, reportagem, nota ou material publicitário (release). Mas na maioria das
vezes utilizamos os termos “crônica” e “cronista”, no lugar de “crítica” e “crítico” -
mais comuns hoje em dia. Os primeiros nos parecem definir melhor a natureza do
material não só porque correspondem ao vocabulário da época (basta lembrar que o
órgão da classe chamava-se Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos) mas
também porque dão conta do caráter imediato, voltado para o momento, que norteia as
atividades dos profissionais estudados. Eles escrevem comentários diários ou semanais
impulsionados pelos assuntos do dia, pelos filmes em cartaz, e uma de suas funções é
orientar o público quanto às opções oferecidas no circuito. A reflexão histórica, a
preocupação em analisar aspectos que vão além da informação imediata, acontecem
inseridas no espaço da crônica diária e quase sempre tomam como ponto de partida
filmes recém-lançados.
No final, apresentamos um Anexo, dividido em três partes. A primeira traz
informações coletadas na imprensa e em depoimentos sobre Coelho Sai, o único longa-
metragem de ficção produzido em Pernambuco entre o Ciclo do Recife e O Canto do
Mar. Na segunda parte, transcrevemos na íntegra crônicas publicadas em 1952 e 1953,
optando, geralmente, entre aquelas que não ganharam maior destaque no corpo do
trabalho, mas são o que poderíamos chamar de textos “característicos” de cada cronista.
A reprodução das crônicas publicadas na imprensa recifense por ocasião da pré-estreia
e do lançamento em circuito de O Canto do Mar constituem a terceira parte do Anexo.

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