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REVISTA ZUM 8

Por que fotolivros são


importantes
Gerry Badger
Publicado em: 31 de agosto de 2015
! "

Organizador de uma coleção sobre a história dos fotolivros, GERRY BADGER apresenta este
tipo de publicação, em que a fotografia expressa seu verdadeiro potencial criativo: uma arte
literária e narrativa, entre o filme e o romance [matéria publicada na ZUM #8, abril de 2015].

Nos últimos anos, o fotolivro – um tipo particular de livro


fotográfico, em que as imagens predominam sobre o texto e
em que o trabalho conjunto do fotógrafo, do editor e do
designer gráfico contribui para a construção de uma
narrativa visual – vem recebendo uma atenção inaudita,
seja com o lançamento de histórias e antologias, seja com o
florescente mercado de colecionadores. Para ser notado,
todo jovem fotógrafo que pretende construir um nome
precisa publicar um fotolivro. Inúmeras carreiras
importantes foram impulsionadas por um fotolivro de
sucesso – dos americanos Alec Soth e Ryan McGinley a
Doug Rickard e a espanhola Cristina de Middel. A
tecnologia digital pôs essa possibilidade ao alcance de
qualquer um, e, ao que parece, todo mundo está
preparando um fotolivro. O interesse por esse tipo de obra
tende a persistir, a despeito de toda uma gama de
publicações ruins, dignas de esquecimento.

Por que, então, de repente o fotolivro passou a ser tão


prestigiado? Ele existe quase desde o nascimento da
própria fotografia, em 1839 – foi inventado mais ou menos
como um meio de publicação, e, já por volta de 1843,
pioneiros vitorianos como Anna Atkins e William Henry
Fox Talbot começavam a colar fotografias em álbuns e
livros. Contudo, foi apenas recentemente que se percebeu o
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Uma das razões para tanto está na natureza da própria
fotografia. Sua história é marcada pela luta para ser
reconhecida como arte, pelo empenho para ser entendida
como algo tão complexo e acabado como a pintura.

Finalmente, o momento da fotografia despontou por volta


da década de 1970, quando a tradição ocidental das artes
plásticas parecia ter chegado ao fim, afigurando-se
exaurida, sobretudo aos olhos de artistas mais ambiciosos.

Naquela década, a vanguarda já não se concentrava na


pintura, mas em diversos gêneros da arte conceitual,
incluindo os meios que usam lente e os artistas que
trabalham com fotografia.

Nos anos 1980, com a Academia de Arte de Düsseldorf e


artistas como o alemão Andreas Gursky, o triunfo da
fotografia parecia completo. Ampliada por esses artistas
para dimensões de dois metros ou mais, a humilde
fotografia parecia ter-se transformado, e adquirido a
seriedade e a importância da pintura, que ela
aparentemente havia substituído.

É o que acontece hoje. Basta entrar em uma das muitas


galerias de arte contemporânea para ver as fotografias
ocupando os espaços antes frequentados pela pintura. Hoje,
fotógrafos são tratados como artistas, e, de fato,
apresentam-se como tais; produzem imagens calculadas,
marcadas pelo reducionismo, dispostas em séries
conceituais que transmitem aos colecionadores a impressão
de uma assinatura visual coerente. Todos nós conhecemos
essa tendência. Fotografa-se algo bem restrito. Fotografa-se
de modo restrito, mas com alto impacto gráfico.

Depois, amplia-se em formato grande, e pronto: temos arte


fotográfica instantânea e um artista fotográfico
comercializável.

Mas… será mesmo? Em alguns casos, com certeza é assim.


Há fotógrafos, como o alemão Thomas Struth ou o
canadense Jeff Wall, que sabem o que estão fazendo. Com
frequência, porém, o que se vê são fotografias
superampliadas, pretensiosas, sem nada de notável,
acompanhadas, é claro, de uma ladainha teórica ilegível,
que visa ganhar o mundo para sua mediocridade.

A questão, no entanto, é: será que a própria ideia de


produzir obras de arte fotográfica singulares, únicas, não
discrepa daquilo que constitui a verdadeira força desse
meio de expressão? Em outras palavras, será que a
fotografia é arte da mesma maneira que a pintura o é? Uma
arte que, em teoria, se traduz na realização, numa única
imagem, de tudo aquilo que o artista é capaz de fazer? Ou
será a fotografia uma arte de outro tipo, uma arte seriada –
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pode ser plenamente realizado mediante uma sequência de
imagens?

Ou seja, não seria a fotografia, em essência, uma arte


literária, uma arte em que o fotógrafo não é propriamente
um manipulador de formas no interior da moldura
fotográfica, mas antes um narrador que se vale de imagens
em vez de palavras, alguém que conta uma história?

Com isso, não estou dispensando o bebê formalista junto


com a água do banho. Um fotógrafo ainda precisa dispor
formas dentro do espaço delimitado pela moldura
fotográfica, isto é, precisa fazer uma “boa” foto. O que me
parece, no entanto, é que, concentrando-se na apresentação
de seus trabalhos em forma de livro, e, além disso, com a
prodigalidade propiciada pela câmera digital, muitos
fotógrafos não estão prestando a devida atenção à feitura da
imagem.

Mesmo com uma boa “história”, inserir imagens malfeitas


em um livro pode dissipar num instante a qualidade do
trabalho como um todo. A forma é parte integrante do
conteúdo, além de fundamental na fatura de um fotolivro.

Pode-se, é claro, optar por uma abordagem antiformalista,


contanto que essa seja uma decisão consciente; penso,
porém, que muitos fotógrafos contemporâneos parecem
negligenciar a forma. Hoje, veem-se aos montes imagens
malfeitas ou desleixadas.

Em 1938, o Museu de Arte Moderna de Nova York, então


relativamente novo, dedicou sua primeira exposição
individual de fotografia a um jovem chamado Walker
Evans, que chegara à fotografia depois de estudar literatura,
sobretudo a escola realista francesa do século 19. As fotos,
ampliadas em formato pequeno e enfileiradas nas paredes
do Rockefeller Center, onde ficava então o MoMA, foram
em grande parte esquecidas (a não ser pelo fato de o museu
possuir aquela que é, provavelmente, a mais bela coleção de
fotos antigas de Evans hoje existente), mas a publicação
que acompanhava a mostra, não. Fotografias americanas
(American Photographs, 1938) pode ser considerado o
mais importante de todos os fotolivros.

Ele não só deu uma ideia do que um fotolivro era capaz de


fazer, mas também do que a própria fotografia podia ser –
um meio que não era apenas um método de documentação
ou um acessório à arte “de verdade”, e sim, ele próprio, uma
arte dotada de estrutura intricada e de coerência
intelectual.

Fotografias americanas demonstrou, como pretendia


Evans, que a fotografia era em essência uma arte literária,
na qual fotos ordenadas em uma sequência específica
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isoladas.

O chamado “fotoensaio” não era uma ideia nova – ele havia


atingido um nível sofisticado nas revistas e livros ilustrados
dos anos 1920 e 1930. Evans, contudo, elevou-o a um novo
patamar, na medida em que não se valeu apenas da relação
visual entre as imagens, mas fez uso também da metáfora e
do símbolo para introduzir no fotoensaio uma
profundidade e uma complexidade novas. Como observou o
professor e pesquisador Alan Trachtenberg, Evans “inseriu
dificuldade na fotografia moderna”. Isso já diz tudo.
Fotografias americanas definiu o padrão para todas as
publicações posteriores.

Não é, em absoluto, um livro perfeito – ele começa bem


melhor do que termina. Mas a primeira sequência de,
digamos, dez ou 12 fotos é muito significativa. Conciso
poema visual sobre o estado em que se encontrava o país e
sobre o lugar da fotografia na sociedade, essa sequência
demonstra à perfeição como a fotografia, valendo-se do
fotolivro como meio, poderia “falar” de maneira complexa e
literária.

Se Fotografias americanas não chega a ser perfeito, outro


livro inspirado no exemplo de Evans o é com certeza. Os
americanos (The Americans, 1958), de Robert Frank,
mostrava uma jornada independente pelos Estados Unidos
que casava com a atmosfera reinante em uma sociedade
pós-Segunda Guerra Mundial, em que uma prosperidade
jamais vista (pelo menos no mundo ocidental e no Japão)
se fazia acompanhar da ameaça onipresente de aniquilação
nuclear. Frank conseguiu sugerir tudo isso num livro que
também abrigava uma nova tendência da arte rumo à
expressão pessoal. Os americanos era tanto um diário das
viagens de seu autor como um documento objetivo.

Outro volume que exerceu enorme influência, Nova York


(New York, 1956), de William Klein, exemplifica
igualmente o pendor individualista e existencialista da arte
dos anos 1950, embora revele uma abordagem um pouco
diferente. Klein levou para a fotografia a energia
despreocupada da action painting – energia que, depois,
investiu numa obra que, em essência, era uma colagem
gigantesca, à maneira das assemblages que o pintor Robert
Rauschenberg fazia na mesma época, com sua mensagem
codificada que dizia respeito a tudo, de política mundial e
cultura popular às mais profundas questões pessoais.

A exuberância e complexidade dessa visão caleidoscópica


da cidade – a de Klein – era muito presente, principalmente
na grande cultura do fotolivro que é o Japão. A cidade
contemporânea aparecia como um tema caro à fotografia
japonesa, porque tinha implicações pessoais e políticas para
a arte produzida no país, provenientes do relacionamento
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que poderia ser descrito como amor e ódio. Os jovens
japoneses sentiam-se fortemente estimulados por certos
aspectos da cultura norte-americana, mas eram também
bastante críticos da política externa dos Estados Unidos (no
Vietnã, por exemplo), além de carregarem consigo a eterna
lembrança de Hiroshima e Nagasaki. Armados do estilo cru
e direto de Frank e Klein, muitos fotolivros japoneses
exploraram ativamente a atitude algo esquizoide que a
população experimentava em relação aos Estados Unidos.
Isso também se aplica a muitos fotolivros da América
Latina.

Assim, publicações como Por uma linguagem futura


(Kitarubeki kotoba no tame ni, 1970), de Takuma
Nakahira, e Adeus, fotografia (Shashin yo sayonara, 1972),
de Daido Moriyama, conduzem a linguagem expressiva de
Klein à beira da incoerência. Sua atmosfera psicológica é
incerta, borrando as fronteiras entre realidade e irrealidade,
entre júbilo e angústia. Não sabemos se estamos
experimentando a cidade em sonho ou em pesadelo. Os
dois livros são ostensivamente não políticos, mas sua
mensagem política – o compósito norte-americano de
bondade e maldade – revela-se sob a superfície ambígua de
sua expressiva poesia.

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Mas agora convém recuar. Comecei a falar do fotolivro em


termos políticos porque sinto que esse é um dos grandes
motivos pelos quais ele é tão significativo. Não
necessariamente porque ele deva ser político, no sentido
ideológico e estabelecido do termo, mas porque tem aptidão
para refletir a visão de mundo do autor. Costumo citar o
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fotolivro, que consta do primeiro volume da história dessa
publicação que organizei com o fotógrafo Martin Parr, em
2004. Gossage enumerou os quatro critérios necessários ao
sucesso no gênero: “Em primeiro lugar, o fotolivro deve
conter um excelente trabalho. Em seguida, precisa fazer que
esse trabalho funcione como um mundo conciso dentro do
próprio livro. Depois, é necessário que possua um projeto
gráfico que enalteça o que está sendo tratado. Por fim, ele
deve tratar de conteúdo que mantenha o interesse do
leitor”.

Notem que conter um “excelente trabalho” é o primeiro


critério. Com isso, concordo inteiramente. Contudo, o
último dos critérios mencionados por Gossage também é
crucial para mim: “ele deve tratar de conteúdo que
mantenha o interesse do leitor”. Em outras palavras, o
grande fotolivro não se constitui simplesmente de um
punhado de fotos feitas por um único e mesmo fotógrafo,
não importa quão boa cada uma delas seja. O grande
fotolivro precisa ter um tema, uma ideia abrangente, e deve
funcionar, como me disse Gossage numa conversa, como
“um mundo próprio”. Ou seja, ele deve mostrar uma voz
autoral única – talvez única apenas para esse volume em
particular. Indo além na definição do fotolivro, quando se
olha para trás, para os livros de Evans, Frank, Klein e para
os demais que mencionei, eles tratam: 1) do fotógrafo,
refletindo suas opiniões; 2) do meio, ajudando de alguma
forma a ampliar suas fronteiras; e 3) do mundo, das
questões que preocupam o autor.

Um dos argumentos em favor do fotolivro é que, nele, é


menor a necessidade de o fotógrafo manter aquele estilo
visual que é sua assinatura e que as galerias demandam.
Susan Sontag já argumentou que a noção de estilo
fotográfico nem sequer faz sentido, pelo menos em termos
dos critérios modernistas estritos aplicados aos pintores.
Onde está a coerência estilística nas várias obras do inglês
Eadweard Muybridge – ela se pergunta –, se tomamos
como exemplos a “reportagem” sobre o Panamá, as
paisagens do Parque Nacional de Yosemite, e seus famosos
estudos científicos sobre o movimento? Não há nada, ela
afirma, que ligue as paisagens do parque aos estudos sobre
o movimento, a não ser o fato de que sabemos que são do
mesmo autor. Portanto, o estilo em fotografia, conclui
Sontag, mais parece um subproduto do assunto abordado
do que um tratamento autoral.

É claro que, se ele assim o desejar, nada impede que um


fotógrafo pratique, em seus livros, o reducionismo típico
das galerias de arte na busca por coerência estilística.
Muitos o fazem, aliás, porque querem degustar a entrada,
representada pelo fotolivro, mas também o prato principal,
que são as galerias – e fotolivros rendem belos catálogos.

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número crescente de fotógrafos, muitos ainda o veem como
um cartão de visita, uma forma de divulgar a obra e garantir
presença nas galerias. Nos últimos anos, ele se tornou tão
internacional que é capaz de levar o trabalho de um
fotógrafo a lugares que as galerias não alcançam, ainda que
o mercado esteja avançando rapidamente. Em certa
medida, sempre foi assim. Os fotógrafos japoneses se
interessaram por Klein e Frank depois que os livros de
ambos foram publicados no Japão, e o Ocidente (ainda que
de forma mais gradual) só passou a atentar para a
fotografia japonesa quando exemplares dos livros de
fotógrafos de lá apareceram na Europa e nos Estados
Unidos.

Além desse seu internacionalismo, o fotolivro, assim como


a internet, ensejou uma nova democracia das imagens
fotográficas, um novo ecletismo, que pode ser verificado em
muitos dos trabalhos atuais. Fotógrafos podem passear por
gêneros diversos, se assim o desejarem, refletindo sobre o
modo como diferentes tipos de fotografia nos informam –
ora objetivamente, ora de modo expressivo, em cores ou em
preto e branco. Contanto que o livro constitua uma
declaração compreensível e integrada, vale tudo.

E contanto que ele seja “sobre alguma coisa”. Quando, com


Martin Parr, eu estava às voltas com o material para o
terceiro volume de nossa série, as grandes questões que
preocuparam fotógrafos do mundo todo ao longo dos
últimos 50 ou 60 anos vieram à tona e decidimos estruturar
o livro em torno delas. O protesto e o desejo (a revolução
sexual), por exemplo, foram importantes nas décadas de
1960 e 1970, duas facetas da jovem contracultura que se
desenvolveu naquele período. Como sempre, era crucial
retratar sociedades e lugares; em décadas mais recentes, a
memória e a identidade tornaram-se temas importantes,
assim como investigações acerca da própria fotografia como
meio.

O exame de grande número de livros publicados ao longo


de seis décadas demonstrou que o fotolivro, em especial,
exemplifica uma tendência na fotografia que teve início na
década de 1950, mas que se intensificou no século 21,
quando a tecnologia digital tomou conta do meio e
influenciou não apenas a maneira como as fotografias se
disseminam e são vistas, mas também o que elas dizem.

Chamo essa tendência, provavelmente estimulada mais


pelo fotolivro que pela corrida da fotografia às galerias de
arte, de “personalização” do meio.

O primeiro a falar dela foi John Szarkowski, então diretor


do Departamento de Fotografia do Museu de Arte Moderna
de Nova York, na apresentação de sua exposição Novos
Documentos (1967). Naquela que talvez seja uma das
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final do século 20, Szarkowski observou o seguinte: “Na
última década, uma nova geração de fotógrafos
documentaristas voltou sua abordagem documental para
fins mais pessoais. Seu objetivo não é transformar a vida, e
sim conhecê-la. Suas obras revelam certa solidariedade,
uma quase afeição em relação às imperfeições e fragilidades
da sociedade. A despeito de seus horrores, eles gostam do
mundo real como fonte de toda maravilha, fascinação e de
todo valor. O fato de esse mundo ser irracional não o torna
menos precioso.”

Tenho certeza de que, à época, Szarkowski não se deu conta


da abrangência dessa afirmação (levei cerca de 30 anos
para apreendê-la), mas sua observação define o rumo que a
fotografia tomou a seguir. Ele sugeria que é inútil tentar
mudar o mundo por intermédio da fotografia; mas utilizá-la
para “conhecer o mundo”, como afirmou, é preocupar-se
com esse mundo, em todas as suas alegrias, mas também
em todos os seus defeitos. Como disse o grande fotógrafo
reformista americano Lewis Hine – em uma afirmação que
todo fotógrafo deveria ter sempre presente: “Eu quis fazer
duas coisas. Quis mostrar as coisas que precisavam ser
corrigidas e quis mostrar as coisas que deveríamos
valorizar”.

Podem-se extrair duas conclusões sobre a personalização da


fotografia. Em primeiro lugar, penso que ela fez do fotolivro
o veículo mais importante para a disseminação de ideias
fotográficas, sobretudo as pessoais, e mesmo as muito
íntimas. A familiaridade que o livro propicia, a sensação de
uma conversa a dois, é ideal. Em segundo lugar, porém, a
personalização não implica que a fotografia tenha se
tornado menos política – longe disso. Quando Szarkowski
escrevia suas palavras premonitórias, feministas e outros
jovens ativistas políticos tinham por slogan “o pessoal é o
político”. (Além, é claro, de seu corolário natural: “o político
é o pessoal”.) Na verdade, a geração dos jovens
“contempladores de si mesmos” das décadas de 1960 e 1970
exibia mais idealismo que boa parte da geração mais velha,
idealismo que se reflete em uma bibliografia fotográfica
voltada tanto para dentro como para fora – do Quase
adulto (Almost Grown, 1978), do americano Joseph Szabo,
que lançava um olhar para a vida pessoal de adolescentes
de Long Island, ao É 77 (È il ’77, 1978), do italiano Tano
D’Amico, que mostrava os protestos dos jovens pelas ruas
de Roma.

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A personalização da fotografia prosseguiu, sobretudo com o


advento das câmeras digitais e das mídias sociais. Estas se
tornaram plataformas até mesmo para a fotografia
documental jornalística, transformando o mercado do
fotojornalismo. Mesmo repórteres fotográficos em áreas de
guerra passaram a categorizar seu trabalho como “meu
diário de viagem com as tropas”, em vez de adotar o velho
estilo do observador profissional, desinteressado e objetivo.

Na maioria dos casos, esses trabalhos nos parecem


conhecidos. A imagem em si não mudou tanto quanto o
nosso reconhecimento de que a fotografia sempre foi
pessoal. Ela sempre esteve ligada ao ponto de vista do
fotógrafo, embora esse ponto de vista tenha se imiscuído de
um tom de intimidade, uma nota confessional, ideal para o
fotolivro. O estilo de fotógrafos como os americanos Danny
Lyon e Nan Goldin, aparentado ao do diário, transformou-
se em diário fotográfico de fato, com obras como (para
mencionar apenas dois exemplos) Emergindo (Surfacing,
2011), em que a sueca Katinka Goldberg trata do
relacionamento com sua mãe, e Um período de
prosperidade juvenil (A Period of Juvenile Prosperity,
2012), em que o americano Mike Brodie faz uma crônica de
suas viagens clandestinas em trens norte-americanos.

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Amazônia (1978), de Claudia Andujar e George Love

Tomemos agora alguns exemplos do


Brasil. Amazônia (1978), de Claudia Andujar e George
Love, é uma mescla singular de política e
pessoalidade. Num primeiro nível, pode-se vê-lo como um
fotolivro importante que trata de questões ambientais e
defende tanto a preservação da floresta amazônica como o
respeito pelos índios ianomâmis. No entanto, também
reflete um interesse pelo plano espiritual, como era
explorado por meio de drogas alucinógenas – um interesse
das décadas de 1960 e 1970 não restrito apenas aos
ianomâmis.

Paranoia (1963), de Roberto Piva, um dos grandes


fotolivros brasileiros de todos os tempos, combina a poesia
amarga do autor com paisagens urbanas captadas por
Wesley Duke Lee, num raro caso inteiramente bem-
sucedido de livro que alia imagens e texto, retratando uma
cidade-pesadelo, quase alucinatória – tema comum em
todo o mundo urbanizado nos anos 1960.

Dois outros livros significativos tratam de questões mais


locais e de culturas específicas. Bares cariocas (1980), de
Luiz Alphonsus, com o aspecto rudimentar, quase trivial,
dos zines de hoje ou dos livros digitais autopublicados, traz
um olhar penetrante e afetuoso dos bares de bairros do Rio
de Janeiro. E Laróyè! (2001), de Mario Cravo Neto, dá
prosseguimento a sua fascinação não apenas pela cultura
afro-brasileira da Bahia, mas também pela beleza do corpo.

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outro e iluminando um aspecto da sociedade brasileira, mas


nenhum deles “documental” no sentido estrito –, uma
imagem começa a se formar. Se combinarmos esses quatro
com outros fotolivros brasileiros, e depois com fotolivros do
restante da América Latina, o resultado será uma
história do continente semelhante àquela que encontramos
em romances e filmes do mesmo período. De quebra –
cortesia do fotolivro –, somos também transportados para
lá. Nunca estive na Amazônia, no Rio nem na Bahia, mas
esses fotógrafos me levam até esses locais de um modo
muito específico, transmitindo seu ponto de vista (mais
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sociedade brasileiras. O fotolivro faz isso de um modo
particular – complexo, intrigante e criativo.

Para mim, a verdadeira importância do fotolivro é essa.


Menos do que escolher entre parede ou livro, se a fotografia
é arte ou literatura – e por que não os dois? –, trata-se do
lugar em que se acredita que a fotografia entoe sua canção
mais plena e significativa. ///

traduzido do inglês por Sergio Tellaroli

Gerry Badger (1948) é fotógrafo, arquiteto e crítico de


fotografia.

///

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Tags: Artigos online, Claudia Andujar, design gráfico, fotografia,


fotolivros, Gerry Badger, história da fotografia, Robert Frank, Roberto
Piva, Walker Evans, Wesley Duke Lee

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