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Foto da montagem da exposição Imagem Persistente, de Rosângela Rennó, na Galeria Cristina Guerra, Lisboa, 2019. Crédito: Vasco Stocker Vilhena.
Ser um país colonizado tem consequências diretas em todas as áreas, algumas óbvias, como
nossa herança racista, elitista e segregadora. Mas determinadas implicações são mais sutis e
influenciam nossa forma de pensar. Reflito sobre isso ao observar a difusão do termo pós-
fotografia, suposto conceito germinado no final da década de 1980 e que, nos últimos anos, tem
se espalhado como novidade nos estudos fotográficos e nas discussões sobre imagem aqui no
Brasil.
Digo suposto porque a pós-fotografia não passa de um conjunto de aforismos e presumidas
mudanças radicais alardeadas por autores como David Tomas [1], William Mitchell [2],
Geoffrey Batchen [3], Fred Ritchin[4], Robert Shore [5] e, mais recentemente, tendo como
arauto o irônico fotógrafo catalão Juan Fontcuberta [6], com seu manifesto pós-fotográfico. A
pós-fotografia chegou por aqui com atraso e tem se difundido como novidade sem grandes
questionamentos, afinal, se veio de fora, desses pensadores europeus e estadunidenses, é o que
há de mais “avançado” nas discussões teóricas. Aceitamos sem restrições ou críticas,
reiterando, mais uma vez, nosso colonialismo acadêmico.
A discussão da pós-fotografia postula que a fotografia se transformou tanto que já não é mais
ela mesma. E isso se dá porque os novos usos da imagem produzida pela câmera escura se
afastaram dos usos documentais, memorialistas e artísticos. Há até quem, além de pós,
considere a fotografia póstuma, como propagou Sebastião Salgado. Mas voltou atrás logo
depois, uma vez que, segundo ele, ainda há fotógrafos documentaristas para salvar a fotografia
nessa era de imagens descartáveis, que não podem mais ser chamadas de fotográficas, pois,
afinal, a fotografia precisa manter seu renome. É criação francesa, poxa!
E aqui, para além da ironia, temos uma séria questão colonial e elitista. Quando a fotografia se
difunde, ganha outros usos e se populariza, a academia, canônica que só ela, diz que não pode
mais ser chamada de fotografia, é pós. Fotografia é tudo aquilo que foi produzido pelos grandes
gênios brancos, o cânone acadêmico da arte e do documental. É fotografia tudo o que é
legitimado pela verve elitista. O que os bárbaros fazedores de selfies produzem, sem
enquadramento renascentista, longe dos pontos de fuga, já não pode mais ser chamado
fotografia. O que está em jogo na suposta pós-fotografia é uma questão de poder.
Os novos rumores do fim se voltam contra a fotografia produzida para as redes sociais na
internet, pelos amadores. O alarido se dá pela banalidade dos conteúdos, como se, ao longo da
história da fotografia, essa acusação não fosse uma constante: toda fotografia contemporânea é
maldita em seu tempo aos olhos dos críticos, até mesmo o surgimento da fotografia foi
anunciado como uma grande profanação da arte por Charles Baudelaire, [8] ou um escândalo
ético, como apregoou Susan Sontag [9].
Foto da série Imagem Persistente, de Rosângela Rennó, 2019. Cortesia da artista.
Para atestar ou refutar o que tem sido chamado de pós-fotografia é necessário, antes de tudo,
entender as formulações conceituais sobre a fotografia, o que, apesar de parecer óbvio, não está
suficientemente claro. Perguntar o que é fotografia acaba por gerar respostas tão díspares
quanto incompletas. Por ser tomada como conceito autoevidente, a fotografia sempre escapa,
por vezes expandida, hibridizada com outros suportes; em determinados momentos, limitada a
regras rígidas que tentam definir: isto é fotografia. Em ambos os extremos, chega-se à
conclusão de que a fotografia não se encaixa em um conceito muito definido, pois, apesar de ser
imagem fixa, seus desdobramentos são altamente mutáveis, o que possibilita falar no plural:
fotografias.
Dizem que a fotografia é outra coisa, como se o artefato fosse definido pelo uso, e não por sua
ontologia. E, nesse ponto, sou materialista. Porventura mudou a matéria-prima da fotografia?
Não. Continua a ser produzida pela ação luminosa fixada em uma superfície, que já foi metal,
vidro, celulose, papel, até se desmaterializar como código binário, afinal, vivemos tempos
informáticos. Mas a luz – com sua companheira inseparável, a sombra – continua sendo a base
primordial das imagens estáticas registradas pela câmera, agora digital.
Se a ontologia não mudou, não mudou também a fotografia. Os usos, sim, se diversificam e se
expandem a cada geração. Mas essa sempre foi uma característica da fotografia, esse artefato
metamórfico que se atualiza a cada momento histórico, figurando nas lápides de cemitério, nas
galerias de arte, nas páginas dos jornais e, agora, nas múltiplas telas ante nossos olhos.
Não parece justo avaliar as imagens produzidas por anônimos com base em um estatuto
canônico. A fotografia amadora, como observou Pierre Bourdieu [13] no estudo sobre álbuns de
família, é regida por outras regras de tomada e circulação, portanto, devem ser observadas a
partir de uma concepção própria. Com os dispositivos móveis conectados à internet, pela
primeira vez na história da fotografia tornou-se possível fotografar, editar e compartilhar em
um único aparelho, processo que dura alguns minutos, por vezes, segundos.
O indivíduo que fotografa, que nem se chama mais fotógrafo, pode ser também modelo e
editor, e se isso sempre foi possível – mesmo antes da fotografia, com os autorretratos
pictóricos –, o processo se tornou tão fácil que até crianças e animais podem executá-lo. Ou
melhor, nem é necessário um sujeito presente, basta programar a câmera que, por aparente
vontade própria, registra cenas automaticamente.
O ápice fotográfico
Os prenúncios do fim da fotografia existem desde a criação. Em toda sua história, cada
mudança era considerada a derrocada, que nunca aconteceu, e a fotografia continua, agora
como protagonista na sociedade de consumo. Não acabou, e se manterá enquanto vigorarem as
ruínas da imaginação moderna – e nem há indícios de reconfiguração tão cedo.
É possível considerar que vivenciamos o apocalipse fotográfico, e isso não configura o fim, mas
o desvelar do que é a fotografia. O que vemos, com a massificação, é a descoberta do avesso.
Entendemos que a estrutura secular canônica não passava de uma construção ou, em termos
mais diretos, de uma farsa. Com o excesso, a produção descartável, a efemeridade e a
banalização, compreendemos que a fotografia é infraestrutura ordinária, nada tão séria quanto
se fez pensar ao longo de mais de um século. O amador desmascara o elitismo do cânone,
mostra as costuras frouxas. E isso gera crise, não da fotografia, que nada sofre, mas do humano
ante as próprias produções.
Ao longo da história da fotografia, tentou-se a todo custo ocultar o lado ficcional das figurações
produzidas pela câmera. Mas neste momento de exacerbação, é possível analisar o avesso e as
costuras do ato fotográfico. E não que as fotografias de agora sejam encenações, falsas
realidades ou simulacros. O que não é mais possível esconder – ainda que se tente – é o
verdadeiro cerne da fotografia: uma produção humana, portanto projeção imaginativa e
ficcional. Ficção tida como realista, afinal se trata de uma síntese do pensamento moderno.
Não se pode falar em fotografia sem falar em excesso. Em comparação a todas as formas de
produção figurativa, a fotografia sempre foi excessiva. Pierre-Jean Amar relata que em apenas
dois anos, de 1864 a 1866, foram vendidos na Inglaterra entre 300 e 400 milhões de cartões de
visita, [15] e destaca que o retratista sueco Oscar Rejlander chegou a vender até 60 mil cópias
tamanho 24 x 30 e mais de 250 mil cartões de visita de algumas de suas obras [16]. Falar de
excesso das imagens fotográficas é tão contemporâneo dos indivíduos do século XXI com
smartphone na mão quanto de um cidadão europeu do século XIX.
A comparação com a escrita feita por Florence é bastante pertinente. Este momento de
possibilidade ainda mais massiva de produzir fotografias – e não só de ser fotografado ou ser
espectador delas – é equivalente à popularização da escrita, que causou furor na elite letrada,
pois a plebe acabaria com as belas-letras, com seus barbarismos, erros gramaticais e linguagem
considerada chula. O mesmo acontece, agora, com os críticos das belas-fotografias, que acusam
os fazedores de selfies de profanarem a “gramática fotográfica”.
O apocalipse não é pós-fotográfico, mas hiperfotográfico, não no sentido apresentado por Fred
Ritchin, [19] de hiperfotografia como equivalente a hipertexto – a fotografia adaptada ao
ambiente digital. Hiperfotográfico por ser uma exacerbação do fotográfico, o que permite
perceber quais são as estruturas que sustentam a fotografia, denunciando o humano por trás
dela. E em face dessa revelação, há as novas tentativas de invelação: a pós-fotografia, o pós-
humano, a fotografia não humana – negativas que só afirmam.
A fotografia nunca foi tão fotografia quanto agora. Isso significa que os princípios simbólicos
ligados à sua gênese também foram exacerbados, culminando numa imaginação
hiperluminosa. Com o ápice fotográfico, dá-se a perceber o teatro social criado em torno da
fotografia: a verdade não passa de profissão de fé, o realismo é só um gênero ficcional. O
hiperfotográfico permite compreender que não se trata de pós-fotografia, mas do pós-
fotográfico, entendimento do que está por trás dos usos sociais, que a manipulação sempre
existiu, que a fotografia está longe de ser uma prática isenta. E, por fim, traz à luz o ranço
elitista dos teóricos e da academia, que em vez de analisarem os fenômenos, denunciam o
próprio conservadorismo e estabelecem a crítica como um sistema de manutenção de poder.
Enquanto os teóricos e críticos tentam criar barreiras de restrição, a vida segue, e no rastro dela
vai a fotografia, materialização da revolta humana contra o tempo: sempre uma tentativa
frustrada de captura.
Leia no site da ZUM o texto Da fotografia à prática pós-fotográfica: por uma ecologia pós-
óptica do olho, escrito pelo pesquisador canadense David Tomas em 1988.
[1] TOMAS, David. “From the Photograph to Postphotographic Practice: Toward a Postoptical
Ecology of the Eye”. SubStance, v. 17, n. 1, 1988, pp. 59-68. Disponível em:
www.jstor.org/stable/3685214. Acesso em 16 jun. 2021.
[2] MITCHELL, William. The Reconfigured Eye: Visual Truth in the Post-Photographic Era.
Cambridge: Mit Press, 1992.
[5] SHORE, Robert. Post-Photography: The Artist with a Camera. Londres: Elephant Book,
2014.
[7] FONTCUBERTA, Joan. La furia de las imágenes: notas sobre la postfotografía. Barcelona:
Galaxia Gutemberg, 2016.
[9] SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
[13] BOURDIEU, Pierre. Un arte medio: ensayo sobre los usos sociales de la fotografía.
Barcelona: Gustavo Gili, 2003.
[14] FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da
fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2009.
[15] AMAR, Pierre-Jean. História da fotografia. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 50.