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UMBERTO ECO E O NOMINALISMO MEDIEVAL

Eduardo Cesar Maia

O Nome da Rosa já vendeu mais de 4,5 milhões de exemplares em todo o mundo. Trata-
se de um êxito editorial incontestável. No entanto, a princípio, muitos editores
rejeitaram a publicação por se tratar de uma obra “difícil” para a maioria das pessoas,
inclusive pela quantidade razoável de citações em latim. A verdade é que o best-seller
de Umberto Eco é uma obra aberta que possibilita vários níveis de leitura: pode ser lido
como um romance policial, um romance histórico, um bildungsroman ou até, para um
leitor um pouco mais preparado, pode ser analisado como uma obra de reflexão
filosófica.

Eco usa o ambiente medieval para expor, numa forma literária, um pouco do que foram
os grandes debates sobre o conhecimento na Idade Média. Apesar da idéia tão
propagada de que o medievo foi um período estéril para o Pensamento, Eco nos mostra
que, mesmo com todo o dogmatismo religioso e com toda a intolerância, a história das
idéias não sofreu um blackout de mil anos.

Apesar de se tratar de uma obra literária, dificilmente se poderia expressar de maneira


mais consistente o núcleo da corrente filosófica nominalista, que toma sua qualificação
precisamente da proposta de que os conceitos universais não são mais do que nomes
que usamos para designar meras coleções de indivíduos concretos. O próprio título, “O
Nome da Rosa”, junto à citação latina “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda
tenemus”, que significa, dentro do contexto da obra, algo como: “A rosa originária
consiste num simples nome, só ficamos com meros nomes”, pode ser visto como uma
pista do autor sobre o conteúdo que fundamenta seu livro.

A desconfiança frente à linguagem é uma atitude intelectual que pode ser bem perigosa
para certas mentes doutrinadas. A mentalidade medieval que proclamava que “o Verbo
era Deus” se aproximava de uma crença quase animista nas palavras – pronunciar um
nome era invocar materialmente o ser referido. Até hoje, de certa forma, permanece um
pouco dessa crença impregnada na cultura: basta que alguém fale a palavra “câncer”,
por exemplo, para que muita gente faça o sinal da cruz...

Nominalismo se opõe a Realismo enquanto doutrina que afirma a conexão entre a idéia
e a realidade extramental. A oposição ao platonismo é frontal: os Universais não têm
realidade nem nas coisas nem na mente divina, como exemplares eternos das coisas; são
abstrações do espírito humano, conceitos ou termos arbitrários.

O protagonista do relato, o franciscano Guilherme de Baskerville, assim como o autor, é


semiólogo: “Nunca duvidei da verdade dos signos”. Guilherme, como nominalista, tem
a convicção de que a abstração não é desmaterialização e universalização, mas um
prescindir da existência das coisas. É aceitá-las como termos mentais que tem a
capacidade de significar. Ele nunca está buscando uma verdade fixa e inabalável, pelo
contrário: “Guilherme imaginava uma multiplicidade de respostas possíveis, muito
distintas umas das outras; fiquei perplexo!”, admirava-se seu discípulo Adso de Melk,
educado dentro dos princípios tomistas. Mas seu tutor insistia: “A beleza do cosmos não
é dada somente pela unidade na variedade, mas também pela variedade na unidade”.
Fica claro no romance e em outras obras de Umberto Eco que ele se situa numa posição
de defesa das idéias nominalistas. O Neonominalismo defendido por Eco só confere
categoria ontológica, ou seja, só afirma a existência do presente, fluindo – o simples
nomear já é tornar o objeto uma ficção.

Por certo, O Nome da Rosa tem muito a ver com o percurso intelectual do seu autor,
católico progressista aos 20 anos, marxista aos 30 e, finalmente, pós-moderno depois
dos 40. Após buscar tanto a Verdade em dogmatismos religiosos e filosóficos, resolveu
seguir outra trilha: “O dever de quem ama os nomes é fazer rir da Verdade, porque a
única verdade é aprender a nos liberar da paixão insana pela Verdade, e que, portanto,
as únicas verdades que nos servem são instrumentos descartáveis”.

Neste conturbado começo de século, a lição de Eco parece que retoma sua atualidade: a
insanidade de querer impor violentamente “verdades” políticas, religiosas e morais a
outras pessoas e outras culturas permanece como mecanismo de dominação e
obscurecimento da razão.

Publicado originalmente na Revista Continente- nº 51.

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