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Agrossistema

Diversidade de microrganismos são


fundamentais ao agroecossistema
Fatima Maria de Souza Moreira*
Priscila Oliveira

Milho e guandu em fase de crescimento; Goiânia, GO

visão agrícola nº 9 jul | dez 2009 63


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O solo, como hábitat de organismos, é he- figura 1 | Fotomicrografia em microscópio de contraste de fase de células da
terogêneo, complexo e dinâmico. As fases bactéria fixadora de nitrogênio Azospirillum lipoferum em meio semissólido com
glicose sem nitrogênio na forma combinada. Verificar no interior das células
líquida, sólida e gasosa podem variar em grânulos de poliβhidroxibutirato
proporção e em composição, dependendo

Fatima Maria de Souza Moreira


não apenas do tipo de solo, como tam-
bém do clima, dos organismos e de seu
manejo. O arranjo das partículas do solo
e o espaço poroso entre elas resulta em
agregados, com forma e tamanho variá-
veis, que constituem as unidades básicas
de sua estrutura. Os vários componentes
edáficos, abióticos e bióticos – desde
enzimas com diâmetro de 100 AO até ma-
croagregados com diâmetro maior que
250 µm – estão arranjados de diferentes
maneiras e em diferentes quantidades,
acarretando em diversidade de microhá-
bitats e de microambientes, proporcio-
nando, consequentemente, nichos para em condições controladas, em labo- dem todas as bactérias e os organismos
alta diversidade microbiana. ratório, onde podem ser manipulados microscópicos existentes nos Reinos
Fatores físico-químicos – como fontes e ter suas características estudadas. Protoctista (também denominado Pro-
de carbono e energia, potencial redox, Os avanços da biologia molecular têm tista ou dividido em algumas classifica-
concentração de nutrientes e de elemen- permitido revelar várias espécies, in- ções em Chromista e Protozoa), Fungi,
tos tóxicos, composição e força iônica da dicadas por novas sequências de frag- Plantae e Animalia. Assim como os seres
solução do solo, pH, difusão e pressão mentos de DNA, em bancos de dados macroscópicos – como as plantas supe-
parcial de gases, potencial hídrico, tem- de livre acesso, nos quais milhões de riores e animais, que todos conhecem –,
peratura e radiação solar – podem variar sequências de DNA estão depositadas os microrganismos necessitam de água,
em distâncias, na escala de micrometros, e podem ser comparadas. No entanto, energia, nutrientes e fontes de carbono
mas estão em estado de equilíbrio dinâ- são fragmentos relativamente pequenos para sua sobrevivência, crescimento e
mico. A rizosfera é considerada o paraíso de seus DNA, que pouco podem inferir atividade. A diversidade de tipos meta-
dos organismos, em função do contínuo sobre suas características, incluindo as bólicos, notadamente entre as bactérias,
aporte de matéria orgânica, que pode funções e os processos que executam permite maior versatilidade na utilização
variar quantitativa e qualitativamente, na natureza. Por meio da técnica de desses recursos e, consequentemente,
dependendo da espécie vegetal, do tipo reassociação de DNA, Törsvik e seus propicia sua adaptação e proliferação
de solo e de fatores climáticos. O ambien- colaboradores (1994) revelaram existir em condições ambientais muito mais
te edáfico possibilita que organismos 10.000 espécies de procariotos em 100 diversas.
díspares possam conviver lado a lado, gramas de solo, quase o número total Entre as bactérias, podemos encontrar
numa complexa rede de interações, na de bactérias atualmente descritas no grupos que utilizam CO 2 ou substân-
qual auxiliam uns aos outros e que tam- planeta. A diversidade estimada de fun- cias orgânicas como fonte de carbono,
bém exerce controle sobre populações gos é também extraordinária: cerca de energia química ou luminosa, e água,
e atividades, mantendo o equilíbrio do 1,5 milhão de espécies, muito maior que compostos orgânicos ou inorgânicos,
ecossistema. as cerca de 70.000 espécies atualmente como fonte de elétrons. Alguns grupos
Existem trilhões de microrganismos conhecidas. bacterianos são tão versáteis que po-
por metro quadrado, que podem atingir dem mesmo utilizar mais de um tipo de
toneladas por hectare. A diversidade, Grupos de organismos recurso, ou seja, apresentar diferentes
assim como as funções, da maior parte Os organismos podem ser divididos em tipos de metabolismo, dependendo da
dos microrganismos é, ainda, uma “cai- dois grandes grupos: os procariotos e condição ambiental. Os animais e fun-
xa preta” que, aos poucos, está sendo os eucariotos. Os procariotos são todas gos tem, predominantemente, o tipo de
aberta e desvendada. Isso porque a as bactérias e os eucariotos, os demais metabolismo quimio-organotrófico, ou
maioria deles não pode ser cultivada organismos. Microrganismos compreen- seja, utilizam apenas energia química e

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substâncias orgânicas como fonte de car- figura 2 | Ação de microrganismos na decomposição da matéria orgânica do solo
bono e elétrons. Já as plantas superiores
e as algas são fotoaquatróficas, ou seja,
utilizam água como fonte de elétrons, CO2
e energia luminosa. Outra característica
importante das bactérias é a adaptação
de certos grupos a condições ambientais
de salinidade, pH, temperatura e pressão
extremas, o que amplia sua capacidade
de sobrevivência e atividade, em condi-
ções que não permitem a sobrevivência
de eucariotos. Embora a anaerobiose
ocorra em algumas poucas espécies de
eucariotos, a maioria dos anaeróbios
são bactérias.
Além disso, vários processos essenciais
para a vida no planeta, como a fixação
biológica de nitrogênio e a quimioli-
totrofia, são restritos a determinadas
espécies de bactérias (Figura 1). Embora
os solos agrícolas não apresentem,
como um todo, condições extremas,
microssítios resultantes de atividade
microbiana localizada podem apresentá-
las, permitindo a presença de espécies
anaeróbias ou termófilas, por exemplo.
As bactérias foram as primeiras formas
de vida a surgir no planeta, há cerca de
4 bilhões de anos, ou seja, 3 bilhões de
anos antes que os primeiros eucariotos
surgissem, o que certamente lhes confe-
Fonte: Moreira; Siqueira, 2006a
riu uma vantagem adaptativa em relação
a outros organismos. A capacidade de
colonizar diversos hábitats e de se adap-
tar a diversas condições ambientais são
características marcantes das bactérias,
figura 3 | Bactéria fixadora de nitrogênio da espécie Derxia gumosa, isolada de
que, em função disso, podem ser encon- Oryza perenne em solo de várzea da região Amazônica. (A). Células em microscópio
tradas em qualquer lugar do planeta, eletrônico com contraste de fase, notar exopolissacarídeo em torno das células.
inclusive no interior de animais, como o (B) Colônias em meio sólido, notar aspecto extremamente gomoso, cuja consistên-
cia é bastante elástica
próprio homem.
A convivência dos animais com elas
Fatima Maria de Souza Moreira

possibilita, em muitos casos, a aquisição


de imunização, seja naturalmente ou por
meio de sua manipulação por vacinas. Os
cloroplastos das plantas, responsáveis
pela conversão de energia luminosa em
energia química, são comprovadamente
resultado evolutivo da inserção de bac-
térias em outro organismo, há milhões A B
de anos. Bactérias e outros organismos

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microscópicos, como fungos e protozoá- micos). Se assim não fosse, estaríamos Portanto, a biodiversidade edáfica está
rios, também desenvolveram estratégias atolados em nossos próprios detritos e intimamente relacionada à redundância
de sobrevivência a condições ambientais sem nutrientes reciclando-se em novos funcional e à resiliência dos processos
adversas, como estruturas denominadas organismos e no ecossistema (Figura 2). edáficos e serviços dos ecossistemas
esporos e cistos, resistentes, por exem- Os ciclos dos nutrientes não são “rodas” (Moreira et al., 2006a,b; 2008). Sistemas
plo, a condições de temperaturas eleva- que se movem sozinhas, como parecem agrícolas que visem à maximização dos
das e de seca prolongada. Apesar disso, indicar muitos textos que negligenciam o processos biológicos, como alternativa
a evolução é considerada em termos de papel de microrganismos em cada passo. para garantir a sustentabilidade e qua-
maior complexidade, estando o homem Cada uma das diferentes transformações lidade ambiental, devem considerar o
no ápice da escala evolutiva. No entanto, na ciclagem de nutrientes também tem papel relevante da biodiversidade como
muitos eucariotos já estão extintos e o alta redundância funcional. Do contrário, indicador da qualidade do solo.
homem, existindo relativamente há pou- as “rodas” da ciclagem não continuariam
* Fatima Maria de Souza Moreira é profes-
co tempo no planeta, tem demonstrado a “girar”.
sora associada do Departamento de Ciência
ser a maior ameaça para a natureza e A agregação do solo pode ser consi- do solo da Universidade Federal de Lavras
para si mesmo. derada um serviço dos ecossistemas que (UFLA) (fmoreira@ufla.br).
abrange vários processos. A agregação do
Microrganismos solo é feita pela ação mecânica das raízes
Apesar de não se conhecer as caracte- e das hifas fúngicas – que se enovelam e
rísticas específicas da maior parte dos agregam partículas do solo – e também
microrganismos, sua atividade global no por diversos tipos de exopolissacarídeos,
solo pode ser avaliada por parâmetros excretados por vários microrganismos,
simples, como a respiração (produção de principalmente fungos e bactérias, que
CO2 ou consumo de O2), que é a oxidação funcionam como agentes “colantes”,
da matéria orgânica por organismos unindo as partículas e conferindo maior
aeróbios, que, associada à avaliação da estabilidade aos agregados (Figura 3). As
biomassa microbiana, fornece um índice micorrizas – simbioses mutualísticas de
bastante utilizado na avaliação da quali- fungos com raízes – têm papel relevante
dade ambiental: o quociente metabólico na agregação do solo, pois o contínuo
– qCO2. Atividades enzimáticas específi- fornecimento de substratos de carbono
cas também têm se revelado ferramentas pelas plantas permite crescimento con-
úteis nessa avaliação global. Resta ainda tínuo das hifas fúngicas. A ação mecânica
o desafio de identificar a contribuição de do cultivo convencional causa ruptura
cada grupo microbiano nos processos das hifas e o revolvimento do solo, o que
globais e os fatores que controlam sua aumenta a concentração de O2 e estimula
atividade, pois, quanto mais relevante é o a degradação da matéria orgânica, in- Referências bibliográficas
MOREIRA, F. M. S.; SIQUEIRA, J. O. Microbiologia
processo na natureza, maior é sua redun- clusive dos agentes colantes excretados
e bioquímica do solo. Lavras: Editora UFLA,
dância funcional, ou seja, mais espécies pelos microrganismos. 2006a.
estão aptas a executá-lo como forma de Sistemas agrícolas mais estáveis, como MOREIRA, F. M. S. SIQUEIRA, J. O.; BRUSSAARD,
garantir sua resiliência (poder de recupe- o plantio direto, permitem o estabeleci- L. (Ed.). Soil biodiversity in Amazonian and
ração) e continuidade no ambiente. mento das hifas e de bactérias, não ape- other Brazilian ecosystems. Wallinford: CABI
Publishing, 2006b.
A decomposição de matéria orgânica nas pela menor perturbação do ambiente,
MOREIRA, F. M. S.; SIQUEIRA, J. O.; BRUSSAARD, L.
é, sem dúvida, um processo com alta mas também pelo maior aporte de maté-
(Ed.). Biodiversidade do solo em ecossiste-
redundância funcional. Fungos, bactérias ria orgânica, substrato importante para mas brasileiros. Lavras: Editora UFLA, 2008.
e outros microrganismos, além da macro o crescimento e atividade microbiana. ROBERT, M.; CHENU, C. Interactions between soil
e da mesofauna – que atuam principal- O efeito indireto da matéria orgânica na minerals and microorganisms. In STOTZKY,
mente nos estágios iniciais – formam agregação do solo, por meio de estímulo G.; BOLLAG, J.M. (Ed.). Soil Biochemistry. New
York: Marcel Dekker, 1992. v. 7, p. 307-404.
um consórcio complexo e diverso, que da atividade microbiana, é comprovado,
TÖRSVIK, V. Diversity of microbial communities
decompõe desde compostos orgânicos já que a adição de matéria orgânica
determined by DNA analysis. In RITZ, K.; DI-
mais simples (como glicose), até os mais estéril em solo também estéril não exer- GHTON, J.; GILLER, K. (Ed.). Beyond biomass.
complexos (como celulose e ácidos hú- ce efeito algum na agregação deste. Nova York: Wiley Exeter, 1994. p. 39-48.

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