Você está na página 1de 191

Ensaios sobre teoria e crítica literária

Essays on literary theory and criticism


Ensaios sobre teoria e crítica literária
Essays on literary theory and criticism

Editado por/Edited by
Israel A. C. Noletto
Jivago A. H. R. Gonçalves

Teresina, 2020
Conselho editorial (IFPI):

Ricardo Martins Ramos (Campus Teresina Central)


Presidente
Sonia Oliveira Matos Moutinho (Campus Teresina Zona Sul)
Secretária-geral
Alan Elias Silva (Campus Corrente)
Dilson Cristino da Costa Reis (Campus Teresina Zona Sul)
Francisca das Chagas Viana (Campus Paulistana)
Inara Erice de Souza Alves Raulino Lopes (Campus Teresina Central)
Israel Alves Correa Noletto (Campus Campo Maior)
José Carlos Raulino Lopes (Campus Teresina Central)
Kelson Carvalho Santos (Campus Teresina Zona Sul)
Disclaimer: The views presented in the chapters are their authors’ own and do not
represent the editors’ views.
Published under a Creative Commons (CC-BY) 4.0 licence

_____________________________________
Ficha catalográfica/Cataloguing card:

Noletto, Israel Alves Corrêa


N786e
Ensaios sobre teoria e crítica literária = Essays on
literary theory and criticism / Editado por Israel Alves
Corrêa Noletto; Jivago A. H. R. Gonçalves. – Teresina:
IFPI, 2020.

188 p.
Inclui Bibliografia
ISBN 978-65-86592-07-8
ISBN 978-65-86592-06-1 (ebook)
Doi: 10.5281/zenodo.3976235
1. Ensaios - Coletânea. 2. Estudos linguísticos e
literários. 3. Literatura – Interpretação. 4. Crítica Literária -
Estudo. I. Título.
CDD 808.84
Catalogação na publicação elaborada por
Ana Úrsula Farias Pereira – Bibliotecária CRB-3/1331

Printed in the USA


Sumário
Table of contents

Prefácio/Preface, 7

Cap. 1 - O que significa bildung para aqueles que rejeitam a


modernidade? Notas comparativas entre Hermann Hesse, Robert
Musil e Thomas Mann

Luizir de Oliveira e Jivago Araújo Holanda Ribeiro Gonçalves, p. 11

Cap. 2 - Uma visão sociocrítica dos relacionamentos em O pêndulo


de Foucault

Lucas Emanoel V. Miranda e Raquelle B. de Albuquerque, p. 28

Cap. 3 - O macaco da teoria: definição, tradição e aspectos críticos


das slave narratives

David de S. Pereira, p. 44

Cap. 4 - Inquisição, intolerância e riso no filme "O nome da rosa" dirigido


por Jean-Jacques Annaud

Glacilda Nunes Cordeiro Santos, p. 55

Cap. 5 - A suposta traição no romance Dom Casmurro de Machado


de Assis: Um olhar sobre o ciúme patológico de Bentinho

Gildevam P. dos Santos e Ma. Lara F. da Silva, p. 65

Cap. 6 - A escrita nylon de Thomas Pynchon: O mundo do fora em O


leilão do lote 49

Raylanne Raquel Leal Costa, 81


Cap. 7 - As multifaces do patriarcado no conto The wife's letter, de
Rabinandrath Tagore

Sara Regina de O. Lima e Luís Fernando O. Muniz, p. 92

Cap. 8 - Uma imersão no silêncio de Hemingway: Os assassinos e a teoria


do Iceberg

Vanessa de C. Santos, Karla V. O. Santos e Saulo C. de S. Brandão, p. 112

Cap. 9 - Ars Glossopoetica – Um ensaio sobre línguas artificiais na


literatura

Israel A. C. Noletto, p. 133

Cap. 10 – Inversão: Perspectivas emergentes sobre experiência humana


e literatura (in English)

Chinedu Nwadike, 141

Cap. 11 – Redefinindo refugiados em O caçador de pipas de


Hosseini: Uma impressão cosmopolita (in English)

Sagar Parajuli, 164


PREFÁCIO
_______________

Pensando a natureza constitutiva dos estudos literários na


atualidade, que se mostram diversos e alheios a qualquer tentativa de
homogeneização metodológica e expressiva, poder-se-ia constatar a
necessidade de mapear os alcances recentes do ojeto-texto e as visões
múltiplas que suscitam as construções de sentido que dele partam. A
coletânea de ensaios ora apresentada foi pensada como a possibilidade de
reunir sob a égide da pluralidade uma miríade de trabalhos que dessem
conta desse estado de coisas da pesquisa no campo da literatura.
Assim é que encontramos no primeiro capítulo intitulado O que
significa a bildung para aqueles que rejeitam a modernidade? Notas
comparativas entre Hermann Hesse, Robert Musil e Thomas Mann um
esforço crítico relativo a uma característica bastante reveladora da cultura
germânica e europeia do romance como um todo, a saber, o
bildungsroman ou o romance de formação. Oliveira e Gonçalves traçam
um panorama do desenvolvimento e das implicações da noção de bildung,
que poderia ser traduzida entre nós enquanto “aprendizado” ou
“formação”, ou ainda “educação”, e tentam mostrar como os três grandes
autores alemães se serviram dessa ideia a partir da forma específica do
romance de formação com o intuito de desenvolverem críticas à cultura
geral europeia herdeira da modernidade.
Nessa mesma visada, considerando o alcance da crítica social, que
leva em conta traços constitutivos da cultura, Vilarinho e Barroso em Uma
visão sociocrítica dos relacionamentos em O pêndulo de Foucault
abordam um das mais famosas obras de Umberto Eco buscando inferir que
tipos de posturas testemunhadas na urdidura das personagens dos
romances podem ser redutíveis ou explicadas através do meio em que
vivem.
Ainda numa perspectiva de forte apelo à crítica social e
historiográfica, Pereira em O macaco da teoria: definição, tradição e
aspectos críticos das slave narratives ajusta o foco de sua análise sobre à
autores e autoras representativos no campo das chamadas slave narratives
demarcando as características desse estilo literário, tais como: o forte
-7-
caráter moral, o aspecto de testemunho pessoal, e ainda relatos de fatos
históricos.
Glacilda Nunes em Inquisição, intolerância e riso no filme "o
nome da rosa" dirigido por Jean-Jacques Annaud tem como objetivo
principal analisar como o riso no filme "O Nome da Rosa" dirigido por
Jean-Jacques Annaud, combate a Inquisição e a intolerância do discurso
clerical na Idade Média, utilizando como principal teórico Bakhtin.
Em A suposta traição no romance dom casmurro de machado de
assis: um olhar sobre o ciúme patológico de bentinho Santos e da Silva
tratam da obra seminal de Machado de Assis a partir de um olhar
renovado, mas sem desconsiderar a fortuna crítica já bem estabelecida.
Para levar a cabo esse desafio os autores conduzem sua pesquisa como
que a guiar o leitor pelos meandros constitutivos da prosa machadiana.
No capítulo intitulado A escrita nylon de Thomas Pynchon: o
mundo do fora em o leilão do lote 49 Raylanne Leal se alça ao panteão de
autores que ousaram desbravar a escrita pós-modernista de Thomas
Pynchon e tenta elucidar, a partir da noção do “fora” de Maurice Blanchot,
como a técnica pynchonian “cria mundos dentro de mundos, de forma
plástica, flexível, fazendo uso, muitas vezes, de modelos científicos”.
Lima e Muniz voltam-se para a questão da indissociabilidade entre
gênero e narrativa e os limites da representação dessa categoria a partir
dos textos ficcionais. Em seu capítulo: As multifaces do patriarcado no
conto The wife's letter, de Rabinandrath Tagore apontam para urgência de
se pensar o alcance e os efeitos do patriarcado e como ele afeta todos os
âmbitos da vida em sociedade. A autora e o autor do artigo conseguem
mostrar que independente da sociedade em foco a violência de gênero se
estende como uma característica intrínseca vez que a configuração social
geral ainda se encontra cerceada pelas imposições do patriarcalismo.
Segunda uma teoria do conto elaborada pelo próprio escritor
estadunidense Ernest Hemingway a escrita desse tipo de narrativa muitas
vezes haverá de se mostrar ao leitor tal qual um icberg, cuja ponta dá a
ilusão de conhecermos o todo, mas que na verdade esconde sob a
superfície grande parte de sua estrutura mais relevante e reveladora. É
partindo dessa teoria e buscando observar a técnica narrativa de
Hemingway a partir do uso específico que este faz da linguagem que
Vanessa de Carvalho Santos, Karla Vivianne Oliveira Santos e Saulo
Cunha de Serpa Brandão analisam a própria produção contística de

-8-
Hemingway, detidamente em seu conto Os assassinos, no capítulo Uma
imersão no silêncio de Hemingway: os assassinos e a teoria do iceberg.
Uma das linhas mais prolíficas do gênero sci-fi é a inserção no
fluxo diegético das narrativas de ficção científica, ou de fantasia, de
línguas ficcionais. Os exemplos pululam, claro, desde muito cedo na
própria literatura inglesa, antecedendo o próprio pai da ficção científica
moderna mencionado acima; pensemos, por exemplo, em Jonathan Swift
e seu Gulliver’s Travels e os povos que encontra pelo caminho, ou em
1984 de George Orwell e sua novalíngua, e ainda The Dispossessed de
Ursula K. Le Guin e a crítica aos sistemas capitalista a partir da própria
linguagem, imaginando um mundo em que as relações de posse
inexistentes se fariam expressas pelas próprias escolhas lexicais. É sobre
essa história que Israel Noletto se debruça em Ars Glossopoetica – um
ensaio sobre línguas artificiais na literatura e tenta elucidar os meandros
e possibilidades significativas concernentes à criação e funcionamento de
línguas fictícias.
Chinedu Nwadike em Inversão: perspectivas emergentes sobre
experiência humana e literatura trata de uma espécie de sub-gênero que
teria perdido seu lugar entre as duas grandes categorias do drama legadas
à humanidade a partir dos gregos, a tragédia e a comédia, além delas
existiria uma outra, distinta de ambas pelo manipulação própria que faz
em relação ao público e aos protagonistas de sua trama: não se trata do
gênero intermediário conhecido como tragicomédia que mistura
ocasionalmente e em pontos específicos características dos dois gêneros
mais conhecido, mas antes de um gênero deveras exigente em termos de
condução da narrativa: enquanto o público cultiva uma percepção trágica
do herói e seu fim, este se vê como um vencedor e ri de sua própria fortura;
ou o oposto: enquanto o herói ou heroína se sente abatido por alguma força
maior, o público deverá lhe enxergar como um vencedor cômico.
Por fim, Redefinindo refugiado em O caçador de pipas de
Hosseini: uma impressão cosmopolita de Sagar Parajuli lança um olhar
arguto sobre O caçador de pipas ao questionar, sobremaneira, a posição
que alguns personagens ocupam enquanto indivíduos refugiados. Essa
situação deve-se em grande parte à movimentação geo-política do
Afeganistão. E, claro, joga luz sobre a capacidade dos Estados Unidos
enquanto baluartes da liberdade em proverem direitos aos refugiados que
por algum motivo encontram abrigo em seu solo.

-9-
Faltariam adjetivos que nos permitissem exprimir com segurança
definitiva a complexidade do fenômeno que aqui poderíamos chamar de
“literatura” na atualidade. Complexo, múltiplo, desafiador e diverso, sem
dúvidas. A literatura é esse espaço onde o convite a descobertas e
produções de sentidos não cessam. Jamais se esgota, precisamente porque
como bem notou Jonathan Culler: “a literatura é a possibilidade de exceder
ficcionalmente o que já foi pensado ou escrito”; se assim o é, a tarefa do
crítico seria tão ativa quanto a própria natureza cambiante do seu objeto
de análise, vez que este se volta para esse fenômeno não apenas
circunscrito em seu tempo, mas antes em toda a sua extensão espaço-
temporal. Daí porque os ensaios aqui reunidos são bem sucedidos na tarefa
de compor esse mosaico sempiterno no qual se revelam a crítica e a teoria
comprometidas com o fenômeno literário.

Jivago A. H. R. Gonçalves

- 10 -
BILDUNGSROMAN

-I-

O QUE SIGNIFICA BILDUNG PARA AQUELES QUE


REJEITAM A MODERNIDADE? NOTAS COMPARATIVAS
ENTRE HERMANN HESSE, ROBERT MUSIL E THOMAS
MANN

_________________________

Luizir de Oliveira1
Jivago Araújo Holanda Ribeiro Gonçalves2

Introdução

Neste trabalho intencionamos passar em revista algumas noções


norteadoras atinentes à noção de Bildung e Bildungsroman, para em
seguida analisarmos em chave comparativa, como Hermann Hesse,
Thomas Mann e Robert Musil, autores circunscritos numa mesma época,
desenvolveram seus escritos segundo essa noção e mostrar no que
divergiam ou convergiam quanto ao seu uso direcionado à uma crítica da
cultura moderna.
Não sem razão a Bildung é comumente conhecida e traduzida
enquanto um processo de formação do indivíduo. É precisamente este
quem tem no romance a sua experiência particularizada. Isto é, a narrativa
que visa expor um determinado processo de formação precisará enredar
uma cadeia de acontecimentos que afetem este indivíduo de maneira
diversificada e acompanhar o desenvolvimento de suas reações a estes
acontecimentos. Essas reações ao longo da narrativa serão a chave para a
compreensão da Bildung, ou seja, do processo de formação de um

1
Professor do curso de licenciatura em Filosofia na Universidade Federal do Piauí
e professor da pós-graduação em letras na mesma universidade. Doutor em
Filosofia pela USP. Email: luiziroliveira@gmail.com.
2
Professor de Letras-Inglês Universidade Estadual do Piauí campus Piripiri.
Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal do Piauí.
Email: jivago@prp.uespi.br.
- 11 -
OLIVEIRA E GONÇALVES

indivíduo que diz respeito, de maneira ampla, à construção de sua


interioridade em integração com o meio em que vive, mas não se limitando
a ele.
Trata-se de um cultivo, naquilo que a palavra tem de mais
próximo no seu parentesco com a cultura; cultivar, desta forma, salienta
um apreço pela possibilidade de aprimoramento daquilo que já se encontra
em latência, não uma essência de espírito ou caráter, mas a possibilidade
de descoberta progressiva daquilo que sou, na medida em que me formo.
Partindo deste entendimento voltamos à pergunta inicial:

O que é então a Bildung? Ao mesmo tempo um processo e seu


resultado. Pela Bildung, um indivíduo, um povo, uma nação mas
também uma língua, uma literatura, uma obra de arte em geral se
formam e adquirem assim uma forma, uma Bild. A Bildung é sempre
um movimento em direção a uma forma que é uma forma própria.
(BERMAN, 2002, p. 80).

Portanto, partindo das palavras de Berman (2002) é possível


entender a Bildung, como um ideal muito mais amplo, uma noção que não
lida apenas com uma educação individual, pois é um ideal formativo que
não se deve confundir com educação formal, institucional3. É antes uma
noção geral para a compreensão de um movimento em que algo ou alguém
desenvolve em busca de sua forma própria, é uma busca de si que é
intensificada pelo encontro com a alteridade do mundo, tornar-se outro
que é tornar-se si mesmo4, e assim pode ser traduzida em processo
formativo, como aponta o autor:

3
O conceito de Bildung é um dos conceitos centrais da cultura alemã no final do
século 18. É encontrado em toda parte: em Herder, em Goethe e Schiller, nos
românticos, em Hegel, Fichte, etc. Bildung significa geralmente “cultura” e pode ser
considerada como variante erudita da palavra Kultur, de origem latina. Mas, para a
família lexical à qual pertence, esse termo significa muito mais e se aplica a muitos
outros registros: assim, pode-se falar da Bildung de uma obra de arte, de seu grau de
“formação”. Da mesma maneira, Bildung tem uma fortíssima conotação pedagógica
e educativa: o processo de formação. (BERMAN, 2002, p. 79)
4
Mas ela é também, enquanto viagem, experiência da alteridade do mundo: para ter
acesso ao que, sob um véu de um tornar-se-outro, é na verdade um tornar-se-si, o
mesmo deve fazer a experiência do que não é ele, ou pelo menos parece como tal.
(BERMAN, 2002, p. 82)
- 12 -
BILDUNGSROMAN

Nesse sentido, a Bildung é um auto-processo em que há um “mesmo”


que se desdobra até adquirir sua plena dimensão. É provável que o
conceito mais elevado que o pensamento alemão da época tenha
criado para interpretar esse processo seja o de experiência. [...] pois
a experiência é a única noção que pode abraçar todas as outras. Ela é
alargamento e infinitização, passagem do particular ao universal,
prova da cisão, do finito, do condicionado. É viagem, Reise, ou
migração, Wanderung. Sua essência é jogar o “mesmo” em uma
dimensão que vai transformá-lo. Ela é movimento do “mesmo” que,
mudando, encontra-se “outro”. (BERMAN, 2002, p. 82).

Para além das instituições, que também se encontram


representadas nos romances, como é o caso da escola, nas páginas iniciais
de Demian, a Bildung se efetiva a partir de uma dinâmica muito mais
íntima, daí surge a dificuldade de sua apreensão concreta, pois não
podemos medi-la com exatidão ou definir parâmetros para sua eficácia ou
fracasso. Desta forma, entendemo-la mais como processo do que como
resultado. A construção narrativa não deve, portanto, ser avaliada a partir
de uma fórmula estática que se proponha a definir os limites desta
formação do indivíduo, mas sim analisada em termos de como esse
processo de desenvolve e como apresenta de maneira particular,
inovadoramente ou não, a atitude desse indivíduo perante suas vivências.

Bildung: o processo de formação do indivíduo

De maneira abrangente, e partindo desses apontamentos iniciais,


e ainda sem situarmos a origem do termo Bildung e de sua expressão
literária (o Bildungsroman) incorreríamos na tentação de entender esse
processo como uma etiqueta que nos autorizaria a classificar todo e
qualquer romance, visto que o gênero romance é por excelência a forma
narrativa que situa o indivíduo no centro e lida com a expressão de suas
vivências.
Todavia, esse flerte com uma possível amplidão classificativa cai
por terra uma vez que voltamos os olhos para os romances
tradicionalmente entendidos como de formação. A primeira característica
assinalável é a marca da juventude enquanto idade ideal para a expressão
desse processo formativo. A representação da juventude surge como sinal

- 13 -
OLIVEIRA E GONÇALVES

da modernidade e possibilidade de repensar os valores burgueses que a


dominam, a partir de um processo de integração.
Na abertura de um capítulo intitulado “The Bildungsroman as a
symbolic form” Moretti (2000) exalta a idade da juventude, ou a idade da
formação inicial do indivíduo, o início do seu processo de
amadurecimento, como a necessária idade paradigmática da época
moderna: “Juventude, ou melhor, as inúmeras versões da juventude que
percorrem os romances europeus, tornam-se para nossa cultura moderna a
idade que sustenta o “significado da vida”: é o primeiro presente que
Mefisto oferece a Fausto5 .” (MORETTI, 2000, p. 4).
A juventude é vista como central justamente por possibilitar uma
expressão paradigmática de uma época de mudanças constantes, de
inovações, de descobertas. Assim o é desde o descobrimento do “novo
mundo” e o surgimento de Hamlet como primeiro herói moderno, como
aponta Moretti (2000) em contraposição aos heróis adultos que detinham
o protagonismo nas narrativas clássicas.
Valores como “[…] liberdade e felicidade, identidade e mudança,
segurança e metamorfose; apesar de antagônicos, todos eles são
igualmente importantes para a mentalidade ocidental moderna. Nosso
mundo requer um mecanismo cultural capaz de representar, explorar e
testar essa coexistência6.” (MORETTI, 2000, p. 9). Desta forma, há uma
mudança paradigmática representativa de um desenvolvimento histórico
de relações sociais, impostas pelas forças do trabalho e pela demanda
capitalista, que não mais encontra representação na figura do homem
adulto, preparado para enfrentar as adversidades da vida, mas que
demanda uma imagem de um ser em formação que tem sua vivência
representada como uma alusão à mobilidade característica da
modernidade.
Do ponto de vista de Lukács (2007), que parte do romance Os
anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, há uma síntese que

5
Youth, or rather, the European novel’s numerous versions of youth, becomes for
our modern culture the age wich holds the “meaning of life”: it is the first gift
Mephisto offers Faust. (Nossa tradução)
6
“[…]freedom and happiness, identity and change, security and metamorphoses;
although antagonistic, they are all equally important for modern Western mentality.
Our world calls for a cultural mechanism capable of representing, exploring and
testing that coexistence.” (MORETTI, 2000, p. 9) (Nossa tradução)
- 14 -
BILDUNGSROMAN

se configura como a natureza do Bildungsroman e que surge da


ambivalência entre o heroísmo do idealismo abstrato e a pura interioridade
do Romantismo: o gênero do romance de formação representa a
interiorização dessas tendências com vistas a sua superação, ou seja, há de
se encontrar uma dinâmica entre sujeito e mundo que ressalte uma
interiorização da ordem estabelecida, mas que essa se dê através de
vivências verdadeiramente significativas. É a superação do filisteísmo, ou
“a acomodação a qualquer ordem exterior, por mais vazia de ideias que
ela seja, apenas porque é a ordem dada.” (LUKÁCS, 2007, p. 140).
Ainda segundo a perspectiva do autor, é perceptível mesmo a
centralidade casual da personagem principal, ou seja, a dissolução de uma
necessidade de justificativa perante a escolha do autor em relação a
personagem que vive o processo de formação. É o que acontece com
Wilhelm Meister, que compartilha traços idênticos a outros personagens
do romance que têm seus aprendizados consignados na famosa torre. Este
traço, no entanto, ao ressaltar a essência de um processo comum aos
diferentes indivíduos, é importante à medida que denota uma
“comunidade do destino”, nas palavras de Lukács (2007). Assim, em sua
definição de romance de educação, o que se sobressai é uma dinâmica
entre o ser social situado no mundo e a sua capacidade de absorção de
experiências que constituirão sua interioridade, jamais a construção
isolada de nenhum dos aspectos, ou a separação radical entre eles, mas
antes “um processo consciente, conduzido e direcionado por um
determinado objetivo: o desenvolvimento de qualidades humanas que
jamais floresceriam sem uma tal intervenção ativa de homens e felizes
acasos.” (LUKÁCS, 2007, p. 141).
Torna-se, assim, mais claro que a forma simbólica do romance de
formação não surge como mera causalidade de uma época, mas antes
ancora suas raízes num processo de transição ou transformação social que
espelha as demandas de uma sociedade e as vivências da sociedade que é
o eixo central deste processo. É assim que o Bildungsroman traz à tona
uma gama de valores burgueses não para extirpá-los unilateralmente como
decadentes, mas para que sejam postos sob avaliação e possibilitem ao
público leitor uma interiorização (ou ao menos, um possibilidade dessa
interiorização) de uma vivência que busque atribuir sentido às

- 15 -
OLIVEIRA E GONÇALVES

contradições que demarcam a sustentação desses valores. É o que parece


propor Moretti (2000), quando propõe que:

All this compels us to re-examine the current notion of ‘modern


ideology’ or ‘bourgeois culture’, or as you like it. The success of the
Bildungsroman suggests in fact that the truly central ideologies of
our world are not in the least – contrary to widespread certainties;
more widespread still, incidentally, in deconstructionist thought –
intolerant, normative, monologic, to be wholly submitted to or reject.
Quite de opposite: they are pliant and precarious, ‘weak’ and
‘impure’. When we remember that the Bildungsroman – the symbolic
form that more than any other has portrayed and promoted modern
socialization – is also the most contradictory of modern symbolic
forms, we realize that in our world socialization itself consists first
of all in the interiorization of contradiction. The next step being not
to ‘solve’ the contradiction, but rather to learn to live with it, and
even transform it into a tool for survival. (MORETTI, 2000, p. 10).

Portanto, a culminância do processo de aprendizado, da Bildung,


pensando-o em suas raízes sociais, exige que haja uma “interiorização da
contradição”, mais do que uma resolução da mesma. Essa contradição
refere-se à dinâmica da socialização que força o indivíduo rumo ao
conhecimento e vivência segundo valores que são caros ao meio em que
se encontra. Não se pretende uma educação para a fuga, ou isolamento em
relação às características que tornam alguém um ser social, pois qualquer
tentativa nesse sentido estaria fadada ao fracasso, visto que sua
constituição primeira advém da comunidade imediata à qual pertence; a
ideia central do autor parece girar em torno da necessidade de um
“entendimento” da contradição que surge entre a demanda da interioridade
e a constituição das demandas do mundo externo para que desta maneira
o processo da busca de si possa se concretizar.
O Bildungsroman, ou romance de formação, que na língua
inglesa encontra equivalente tradução a partir da expressão “coming of
age”, ou seja, amadurecimento, ou avanço da idade, é por excelência a
forma literária que dá corpo ao processo de formação do indivíduo. O
termo é primeiramente cunhado no início do século XIX por Karl
Morgenstern:

- 16 -
BILDUNGSROMAN

He defined the genre as follows: it will justly bear the name of


Bildungsroman firstly and primarily on account of its thematic
material, because it portrays the Bildung of the hero in its beginnings
and growth to a certain stage of completeness; and also secondly
because it is by virtue of this portrayal that it furthers the reader’s
Bildung to a much greater extent than any other kind of novel.
(SWALES, 1978, p. 12).

É possível inferir que o processo de formação que encontra sua


expressão no Bildungsroman desempenha um caráter pedagógico que
ultrapassa a barreira literária. O romance de formação intenciona uma
identificação do leitor com processo formativo ao erigi-lo à categoria de
temática central. A premissa básica é a de que o “herói”, ou jovem em
formação, ao ser representado, demonstre um grau de “desenvolvimento”
no decorrer da narrativa. Partindo de um estado inicial que o situa de
maneira ingênua no mundo, sem capacidade para afirmar-se como
detentor de uma personalidade sólida, a representação do herói viabiliza
ao leitor o contato com as formas diversificadas pelas quais os
protagonistas de tais formações responderão a esse processo.
Nessa perspectiva, uma característica determinante tanto do
processo de formação como do Bildungsroman é o grau de equilíbrio, ou
de relação, que se efetiva entre vida interior, ou seja, as preocupações,
emoções, conflitos internos, que somam para a construção de uma
determinada personalidade, e a vida externa, as demandas da vida em
sociedade que aparecem como aspectos inerentes ao processo de
formação, visto que esse não ocorre isoladamente, pelo contrário, se
desenrola no seio de uma sociedade com normas próprias e cultura
estabelecida. Swales (1978) postula essa relação como uma tensão
determinante para o gênero quando ressalta que:

In terms of its portrayal of the hero, the Bildungsroman operates with


a tension between a concern for the sheer complexity of individual
potentiality on the one hand and a recognition on the other that
practical reality – marriage, Family, career – is a necessary
dimension of the hero’s self-realization, albeit one that by definition
implies a delimitation, indeed a constriction, of the self. The tension
is that between the Nebeneinander (the “one-alongside-another”) of
possible selves within the hero and the Nacheinander (the “one-

- 17 -
OLIVEIRA E GONÇALVES

after-another”) of linear time and practical activity, that is, between


potentiality and actuality. (SWALES, 1978, p. 29).

A preocupação com a “potencialidade do indivíduo” deve ser


situada junto de sua limitação diante da realidade prática.7 Não há,
portanto, a possibilidade de um foco narrativo que se situe de maneira
irrestrita naquilo que se passa na “interioridade” do protagonista, pois o
estímulo e a necessidade da sua formação advêm, a priori, da sua situação
inicial em um mundo já dado, em uma cultura já estabelecida, que serão o
terreno de desenvolvimento de seus conflitos. Assim, Swales (1978, p.29)
ressalta que “os maiores romances nesta tradição não são simples alegorias
de uma vida interior” e que “a realidade prática continua a desempenhar
um peso na interioridade do herói”8 sendo esta a essência narrativa do
Bildungsroman.
Desta forma, é possível destacar a força histórica e simbólica do
gênero Bildungsroman enquanto forma narrativa representativa de um
processo de educação, no sentido de formação de um indivíduo, a Bildung.
Essa formação tem um sentido muito mais amplo do que a simples
educação formal, uma vez que lida com a busca de um indivíduo pelo seu
auto-entendimento e suas vivências que são a fonte desse processo.
A riqueza do gênero reside ainda na sua capacidade para a
representação da dinâmica de valores sociais (burgueses) que se
desenvolve conflituosamente a partir do choque entre interioridade, em
processo de formação, do indivíduo e constatação das demandas culturais
que o cerceiam. Assim, enquanto estrutura que lida com esse choque, o
Bildungsroman configura-se como campo ideal para a escrita dos autores
alemães do início do século XX, que fomentados pelas crises da razão pela
qual a Europa passa, encontram-se frente à necessidade de representar o
rompimento com os preceitos formativos do indivíduo até aquele
momento; a crise da modernidade e do projeto iluminista deverá abrir

7
Para uma interessante discussão quanto às experiências de construção e molde de
uma personagem em circunstâncias fantásticas e como a linguagem desempenha um
papel essencial nisto, veja Noletto e Lopes (2019a) e (2019b).
8
The major novels of the tradition are, it seems to me, not simply allegories of the
inner life. Practical reality continues to impinge on the cherished inwardness of the
hero, and precisely this process is the source of the irony, the obliqueness, the
uncertainty which so many commentators have noticed. (SWALES, 1978, p. 29)
(Nossa tradução)
- 18 -
BILDUNGSROMAN

espaço para a representação da formação desse novo indivíduo que será a


encarnação desse conflito.

Hermann Hesse, Robert Musil e Thomas Mann em chave comparativa

Após as considerações preliminares acerca na natureza do


Bildungsroman como gênero que veicula a expressão da Bildung cabe
relembrar aqui as palavras de Milan Kundera (2016). Em uma reunião de
ensaios organizada sob o título de “A arte do romance”, dá início ao seu
texto aludindo a uma fala proferida pelo filósofo Edmund Husserl, três
anos antes de sua morte, cujo tema central era a crise da humanidade
europeia. De acordo com o autor, Husserl postulava que uma crise se
instalara na Europa e que adivinha da ânsia da, assim denominada,
“humanidade europeia”, pelo conhecimento. A dimensão de tal crise
colocava em xeque a própria possibilidade de sobrevivência da
humanidade como conhecida até então, consequentemente, situando os
indivíduos que nela se desenvolvem em um estado de transição.
Possivelmente essa configuração de um tempo de necessária
reavaliação de paradigmas é o que impulsiona a representação narrativa
do novo sujeito cuja formação (Bildung) deverá transcorrer nesse meio e
expor as nuances conflituosas da reformulação de valores. É a partir desta
constatação que buscamos encontrar pontos de contato entre a produção
literária do autor aqui analisado e seus contemporâneos, de mesma
nacionalidade, mais imediatos no que diz respeito ao gênero narrativo e às
exposições temáticas.
O romance Demian é iniciado em forma de relato no qual Emil
Sinclair, o autor-narrador, já em sua fase adulta, decide rememorar os anos
de sua formação: “Começo a minha história por um fato acontecido
quando tinha dez anos e frequentava a escola particular de minha pequena
cidade natal.” (HESSE, 1999, p. 19). Desta forma, sua narrativa
desenvolve-se de forma cronologicamente linear. São apontadas as suas
experiências durante a infância, em seguida seus anos de adolescência e
posterior início da fase adulta na qual a culminância de seus aprendizados
coincide com o estopim da primeira guerra mundial e consequente
participação do protagonista no conflito armado.
De maneira diversa, Thomas Mann em A montanha mágica
(1924), outro expressivo romance de formação alemão do início do século
- 19 -
OLIVEIRA E GONÇALVES

XX, opta por expor ao leitor o processo de formação de um jovem rapaz,


já em fase adulta. Analogamente ao procedimento de Robert Musil em O
homem sem qualidades (1913-1941) que escolhe como protagonista um
jovem, Ulrich, matemático por formação, também na fase adulta inicial
com seus 32 anos de vida. Portanto, iniciam a representação desse
processo de formação sem levar em conta os anos anteriores que dizem
respeito à infância e adolescência de seus “heróis”. É assinalável aqui uma
distinção narrativa marcante: enquanto Hesse parece propor que o
processo de aprendizado deve ser contabilizado desde os anos iniciais,
Mann e Musil evidenciam através de suas escolhas que o momento inicial
desse processo não é a entrada espontânea do sujeito no mundo, mas que
o início da jornada de autodescoberta não tem um momento
predeterminado e que pode iniciar-se mais tardiamente. Contudo, os três
autores decidem por um protagonista jovem para encarnar esse processo
de formação, corroborando o que apontamos no tópico anterior a respeito
da juventude enquanto idade paradigmática para a representação desse
processo. Neste sentido, manteremos alguns paralelos entre Mann e Musil
com Hesse a fim de melhor circunscrevermos nossa argumentação.
Hans Castorp, engenheiro em formação, é o jovem protagonista
d’A montanha mágica que é introduzido pelo narrador em um momento
de sua vida em que decide, seguindo recomendações médicas, viajar para
visitar um primo Joachim nos alpes suíços fazendo uso, de maneira
análoga ao primo, das acomodações do Sanatório Berghof. De maneira
sutilmente irônica o narrador em terceira pessoa alerta sobre as intenções
de Castorp acerca da “viagem”, programada para durar apenas três
semanas e que, embora não o saiba ainda, é algo mais amplo do que o
simples deslocamento temporário de um espaço a outro, mas antes
representa a sua jornada de aprendizagem e autodescoberta, a sua Bildung.
Alerta-nos o narrador: “Não tivera a intenção de levar essa viagem muito
a sério nem de entregar-se totalmente a ela. Propusera-se liquidá-la
depressa, porque tinha que ser feita, depois regressar para casa tal como
partira, e retomar sua vida.” (MANN, 2016, p. 14).
A primeira experiência pela qual Emil Sinclair passa e que, de
maneira pujante, irá marcar sua vida é uma situação escolar na qual se
envolve em um conflito com um garoto, Franz Kromer, que carrega má
reputação na escola em que frequenta devido às constantes ameaças e

- 20 -
BILDUNGSROMAN

intimidações pelas quais submete os demais garotos de sua escola. De


maneira ingênua, Sinclair, para ganhar confiança de seu antagonista,
inventa uma mentira que o tornará refém deste por um longo tempo. O
garoto narra em tom aventureiro o dia em que decidiu roubar maçãs de um
pomar localizado em propriedade particular. Rebatendo sua história,
Franz Kromer diz conhecer o dono do pomar e passa então a ameaçar
denunciar Sinclair se este não cumprir suas exigências, que vão desde
quantias de dinheiro até um forçado encontro com a irmã de Sinclair.
Relevante para nossa análise são as consequências do ato de
Sinclair, sua mentira e seu consequente “aprisionamento” a alguém que
pertencia a um mundo diverso do seu. É o primeiro momento em que
Sinclair tem a dimensão de suas limitações quanto aos seus valores e
percebe-se inserido num mundo que não é inteiramente coerente com
aquilo que lhe é ensinado no âmbito familiar; passa assim pelo seu
primeiro teste e deve absorver a reestruturação de percepção que essa
experiência lhe traz. O conflito é marcado nas palavras da própria
personagem quando diz:

“Sobre mim pesava um segredo e uma culpa que eu teria que ruminar
sozinho. Chegara, talvez, a uma encruzilhada decisiva e talvez desde
aquele mesmo instante teria que pertencer para sempre à facção dos
maus; [...] Por brincadeira atribuí-me o papel de homem decidido e
sem escrúpulos e agora tinha que enfrentar as consequências do
engano.” (HESSE, 1999, p. 31).

Sinclair encontra em outrem uma imagem com a qual não


pensaria se identificar, mas que, por força da ocasião, precisará associar a
si mesmo. Há então uma rachadura em sua interioridade, pois percebe
uma dinâmica de valores que se contrapõem à sua e é obrigado a
internalizá-la, mesmo ciente de que isso modificará suas relações com sua
própria família e seus amigos mais próximos. Assim, seu primeiro
aprendizado advém do sentimento de culpa; ao decidir simular um “eu”
que não lhe era natural, descobriu-se forçada incorporar em si as
transformações advindas dessa nova dimensão. É um processo de aparente
morte e renascimento, que se repetirá ao longo do romance e que Sinclair
narra ao leitor.

- 21 -
OLIVEIRA E GONÇALVES

Essa dualidade do mundo, ou melhor, essa dualidade que advém


da percepção de uma determinada personagem, é central para o romance
de formação. Em A montanha mágica ela já é exposta inicialmente quando
se estabelece geograficamente o lugar em que a história se desenvolverá.
Joachim, o primo de Castorp, oferece-lhe as coordenadas: “ – Pois é, neve
eterna, se assim quiser. Não se pode negar que tudo isso é bastante alto. E
não esqueça que nós mesmos nos achamos a uma altura espantosa. Mil e
seiscentos metros acima do nível do mar. Por isso as elevações não se
destacam tanto.” (MANN, 2016, p. 19). Parece haver um primeiro
abandono nessa passagem. Geograficamente posicionado em local
adverso, o protagonista descobrirá pouco a pouco que a dinâmica de sua
comunidade imediata deverá ser abandonada para que possa adaptar-se
aos ares do sanatório. Configura-se aqui um primeiro abandono de si,
mesmo que parcial.
Contudo, contrariamente à postura de Sinclair (em seus anos
iniciais), Hans Castorp parece incorporar novos aprendizados não pela
culpa e remorso, mas sim pelo espanto e negação. Os pacientes, ou
“hóspedes”, como são chamados, do sanatório ocasionam encontros que
viabilizam o vislumbre de uma “lógica do mundo” divergente da lógica
burguesa na qual Castorp viveu até o momento. É o que se passa em seus
encontros com Sr. Settembrini, donde, partindo de um desses encontros,
desenvolve-se um debate intenso acerca da importância da morte para o
entendimento do significado da vida; desta forma, Hans Castorp
reconhece a relevância da troca de palavras com esse hóspede como
evidenciado no trecho a seguir:

Que pedagogo! – exclamou... Um pedagogo humanista, não há como


negar. A cada instante me corrige, ora por meio de historietas, ora de
forma abstrata. E a conversa com ele leva a tantos assuntos
diferentes... Eu jamais imaginaria que se pudesse falar sobre eles,
nem sequer entende-los. E se o tivesse encontrado lá embaixo, na
planície, por certo eu não os teria entendido – acrescentou. (MANN,
2016, p. 234).

Esses encontros fortuitos e casuais têm quase sempre como


intuito a suspensão dos marcadores narrativos tais como espaço e tempo
para que se desenvolvam unicamente, entre as personagens, diálogos que
ocasionarão efeito reflexivo no protagonista e marcarão etapas de seu
- 22 -
BILDUNGSROMAN

aprendizado. Assim o é com as aparições e sumiços espontâneos de Max


Demian e o músico Pistórius em Demian como é possível averiguar na
passagem em que Demian expõe a Sinclair sua teoria sobre a história
bíblica de Caim e Abel e Sinclair é deixado a sós com suas elucubrações:
“E sem mais, dobrou a esquina da rua, deixando-me a sós e completamente
atônito. Mal se afastou de minha vista, começou a parecer-me
inadmissível tudo o que me estivera dizendo.” (HESSE, 1999, p. 46).
Analogamente, o primeiro encontro entre Sinclair e Pistórius é obra do
acaso, como relata o protagonista: “Por esses dias, o “acaso”, conforme se
diz, conduziu-me a um estranho refúgio. Mas o acaso não existe. Quando
alguém encontra algo de que verdadeiramente necessita, não é o acaso que
tal proporciona, mas a própria pessoa;” (HESSE, 1999, p. 118).
Também com a entrada e saída dos médicos do sanatório, Dr.
Krokowski e Dr. Behrens, em A montanha mágica dá-se o mesmo
processo. É o que acontece, por exemplo, quando Castorp decide observar
o processo de exame com os hóspedes do sanatório para decidir se se
submeteria ou não a tal avaliação médica: “Estava tudo combinado; e,
quando chegaram ao sanatório, quis o acaso que encontrassem o próprio
dr. Behrens. Assim tinham uma oportunidade favorável para formular em
pessoa o seu pedido” (MANN, 2016, p. 201).
O foco narrativo frequentemente orbita em torno dos conflitos
internos, aspirações e inquietações de ordem geral pertencentes ao
protagonista, portanto não se desenvolve pontual e gradualmente qualquer
percurso causal que leve o protagonista de um encontro a outro com tais
“guias”, ou com as pessoas que lhes proporcionam novas perspectivas
acerca dos mais variados temas.
Dessa dinâmica narrativa é que sobressai a possibilidade, para o
leitor, de aferir, a partir das marcações dos conflitos internos das
personagens principais, a dinâmica da dualidade que se estabelece entre
valores individuais e valores em uma esfera macro, ou seja, as demandas
da civilização. Um dos tópicos de considerável relevância que deve ser
observados em A montanha mágica é a reflexão sobre o fenômeno do
tempo. Hans Castorp, engenheiro em formação e prestador de serviços
para uma empresa de construção de navios, representa, inicialmente, o
sujeito mecanicamente regido pela demanda produtivista do capital e da
técnica. Daí o seu primeiro espanto quando lhe relatam que o tempo corre

- 23 -
OLIVEIRA E GONÇALVES

de maneira diferente nas altitudes mais elevadas em que se situa o


sanatório; que a menor medida de tempo usada entre aqueles que o
habitam é o mês. Essa lógica do tempo produtivista é exposta já nas
palavras de Settembrini quando debate a diferença entre a percepção
temporal comum aos povos do oriente em contraposição ao tempo como
percebido pelos povos europeus:

Onde há muito espaço, há muito tempo. Diz-se que eles são o povo
que tem tempo e pode esperar. Nós, os europeus, não o podemos. O
tempo que temos é tão exíguo quanto o espaço do nosso continente
nobre e delicado nos seus contornos. É preciso que administremos o
nosso tempo e o nosso espaço de maneira econômica, que tiremos
proveito deles, Engenheiro, muito proveito! Tome como símbolo as
nossas cidades grandes, esses centros, esses focos da civilização,
esses cadinhos do pensamento. [...] O tempo é um dom divino,
outorgado ao homem para que o explore, sim, meu caro Engenheiro,
para que o explore a serviço do progresso da humanidade. (MANN,
2016, p. 280-281)

O cunho teleológico da caracterização do tempo pode ser


apreendido quando a personagem reitera que sua lógica dever ser a de gerir
o progresso da humanidade e da civilização. De certa maneira essa
percepção é uma acomodação das percepções já sedimentadas na
consciência de Hans Castorp, mas que são postas ali para que sejam
percebidas como contraponto à proposta do próprio romance que é a de
contestar, a partir da vivência do protagonista, tais percepções.
Esse progresso da civilização é amplamente debatido em O
homem sem qualidades (1914) e de maneira similar, Ulrich é confrontado
com personagens que parecem ter suas visões acerca da história e do
progresso apresentadas apenas para que sejam ridicularizadas ou
confrontadas pela visão ácida do próprio Ulrich que as tornam esvaziadas
de real significação. Em uma das digressões do narrador é possível que se
identifique o tom saudoso em relação a um tempo ainda não dominado
pela técnica e pelo projeto de racionalidade iluminista que põe em
movimento o ideário relativo ao progresso civilizatório da humanidade, o
que em suma indica uma postura de herança romântica; é o que se constata
a partir do trecho a seguir:

- 24 -
BILDUNGSROMAN

A corneta de postilhão de Münchhausen era mais bela que a voz em


conserva, industrial; a bota de sete léguas, mais bela que um
caminhão; o reino de Larino, mais belo que um túnel de ferrovia; a
mandrágora, mais bela que um fototelegrama; comer o coração da
própria mãe para compreender os pássaros era mais belo que estudar
psicologia animal sobre a expressividade dos pios. Ganhou-se em
realidade, perdeu-se em sonho. Não nos deitamos mais sob a árvore,
espiando o céu entre o dedo grande do pé e o dedo médio, mas
trabalhamos; também não devemos passar fome nem sonhar demais,
se quisermos ser eficientes, mas comer bifes e fazer exercícios. É
exatamente como se a velha humanidade ineficiente tivesse
adormecido sobre um formigueiro; quando despertou a humanidade
nova, as formigas tinham entrado no seu sangue, e desde então ela
precisa fazer movimentos incessantes, sem conseguir se livrar desse
chatíssimo ímpeto de fanatismo pelo trabalho. (MUSIL, 2015, p. 47).

Considerações finais

Portanto, esta aproximação inicial visou elaborar um paralelo


possível entre dos romances de formação interpelados a partir dos temas
que lidam com a crítica da cultura moderna e expõem o funcionamento da
civilização herdeira dos ideais iluministas. Buscamos ressaltar a
importância de suas formulações para a modulação geral de uma crítica à
civilização enquanto pedra de toque dos romances de formação alemães
do início do século XX.
A noção de Bildung e sua forma correspondente o bildungsroman
ensejam reflexões sobre o processo de formação dos indivíduos e
funcionavam como terreno de tradução sensível das demandas culturais
que davam lastro aos sujeitos europeus até meados do século XX. Tão
importante quanto entender a crítica posta em marcha pelos escritores aqui
analisados é mostrar que sua contribuição serviu para renovar as
possibilidades desse gênero e suas criações literárias se tornaram marcos
culturais capazes de antecipar movimentações dinâmicas entre sujeito e
cultura que definiriam os anos à sua frente.
Com Hesse, Musil e Mann temos um questionamento
aprofundado sobre a noção de sujeito e o que ela acarreta. O que definiria
um sujeito e quais eram suas possibilidades de existência autêntica, se essa
- 25 -
OLIVEIRA E GONÇALVES

de fato existia e o que deveria ser posto em revista para que esse processo
se concretizasse. Os autores, como pontuamos ao longo do trabalho, se
tornaram representativos da tradição do romance alemão por sua
capacidade de tocar em questões tão sensíveis como a moral, a liberdade,
o tempo, a verdade, em suma: conceitos norteadores e estruturantes para
a vida no continente europeu e que ditavam a psique dita moderna. Seu
êxito maior, no entanto, reside no fato de terem exposto através de suas
personagens, não só o peso, mas sobretudo a necessidade de
questionamento e superação desses “valores essenciais”. Esse processo de
revisão dá ao tom da bildung que se encontra representada no fluxo
diegético de seus romances: revisão crítica para a renovação do sujeito e
da cultura.

Bibliografia

BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na


Alemanha romântica. São Paulo: EDUSC, 2002.

HESSE, Hermann. Demian. Rio de Janeiro: Record, 1999.

KUNDERA, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das


Letras, 2016.

LUCKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Ed.34, 2007, p.


138-150.

MANN, Thomas. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das letras,


2016.

MORETTI, Franco. The way of the world: the Bildungsroman in


European Culture. New York: Verso, 2000.
MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2015.

- 26 -
BILDUNGSROMAN

NOLETTO, I. A. C.; LOPES, S. A. T. Heptapod B and the Paradox of


Foreknowledge: Confronting Literature and its Filmic
Adaptation. Arcadia, 54, n. 1, p. 86–100, 2019. doi.org/10.1515/arcadia-
2019-0003

NOLETTO, I. A. C.; LOPES, S. A. T. Language and ideology:


glossopoesis as a secondary narrative framework in Le Guin’s The
dispossessed. Acta Scientiarum. Language and Culture, 41, n. 2,
2019. doi.org/10.1515/sem-2017-0088

SWALES, Martin. The German Bildungsroman from Wieland to


Hesse. Princeton University Press, 1978.

- 27 -
MIRANDA E ALBUQUERQUE

- II -
UMA VISÃO SOCIOCRÍTICA DOS RELACIONAMENTOS EM
O PÊNDULO DE FOUCAULT
______________________
Lucas Emanoel Vilarinho Miranda1
Raquelle Barroso de Albuquerque2

1 Introdução

A obra O pêndulo de Foucault, de Umberto Eco, fascina não


apenas pela complexidade de sua composição, mas também pela alusão
histórica de fatos, dentre outras nuances.
O enredo gira em torno de três amigos, Belbo, Diotallevi e
Casaubon, que trabalham como editores na Garamond. Nesta, os três
rapazes leem os manuscritos que chegam na editora e os selecionam. Certo
dia surge em suas mãos um manuscrito que tratava dos Cavaleiros
Templários.
Ao passo que se familiariza com o enredo, sabe-se que Casaubon
e seus amigos entram em uma conspiração, logo após o recebimento do
manuscrito sobre os Cavaleiros Templários, escrito por Ardenti. Este, por
sua vez, chega com ideias sobre teorias da conspiração que, a princípio,
não parece importar aos três amigos, principalmente Casaubon, o mais
cético de todos.
Com o desaparecimento de Ardenti, criam-se expectativas em
torno do que eles denominam “O Plano”. Contudo, o que parecia apenas
especulação, acaba tomando proporções mais amplas, e algumas
sociedades secretas acabam por cobrar alto demais pela curiosidade dos
amigos.
Apesar das três personagens em destaque, por vezes, tomarem o
primeiro plano da narrativa, o enredo é instigante e obriga o leitor a fazer

1
Graduado em Letras Português pela UESPI. Mestre em Estudos Literários pela
UFPI. E-mail: lucasvilarinhoo@gmail.com
2
Graduada em Letras Português-Francês pela UFC. Mestra em Estudos Literários
pela UFPI. E-mail: raquelle.alba@gmail.com
- 28 -
VISÃO SOCIOCRÍTICA EM O PÊNDULO DE FOUCAULT

muitas pesquisas históricas, além de requerer certo conhecimento acerca


de sociedades secretas e da Cabala, por exemplo.
Desta forma, este trabalho procura abordar a forma como a
sociedade e os relacionamentos amorosos aparecem enlaçados na
narrativa, ao tempo em que aquela se reflete nestes, de forma a traduzir a
estreita relação da literatura com o contexto sócio-histórico no qual se
insere.
Para tal análise, utiliza-se nomes como Cândido (2014), Eco
(2012), Lima (2002), Gohn (2011), Alves (2009) e Dantas Junior (2008),
para citar alguns.

2 A influência do social nos relacionamentos d’O pêndulo de foucault

Com uma linguagem barroca e o tempo da narrativa em


retrospectiva, a obra insere o leitor no universo de investigação que retrata
muito dos anseios da juventude italiana dos anos 60 e 70. Um misto de
pós-revolução, lutas operárias e movimentos sociais fragmentados, que
caracterizaram a sociedade italiana da segunda metade do século XX.
Eco, com seu estilo rebuscado, joga muito da apuração linguística
sobre o enredo da narrativa. Esta, por sua vez, busca do leitor uma atenção
a mais não apenas em relação à construção da narrativa, mas também
acerca do contexto histórico que abraça a obra. A sociedade de forma
alguma se mostra descontextualizada na ação, ao passo que aparece
refletida nas atitudes e até mesmo nas emoções e relações entre as
personagens.
O social na literatura pode configurar-se de duas maneiras,
segundo Lima (2002):

Enquanto a sociologia da literatura procura desentranhar as condições


sociais que presidem o reconhecimento de um discurso como literário,
acentuando inclusive as condições que presidem o estabelecimento do
próprio conceito de literatura, a análise sociológica do discurso literário
busca estabelecer o que, dentro destas coordenadas, dá especificidade
a essa modalidade de discurso. (...) Tanto a sociologia da literatura
quanto a análise sociológica do discurso literário tratam de valores;
apenas eles são diferentemente referenciados (LIMA, 2002, p. 664).

- 29 -
MIRANDA E ALBUQUERQUE

De acordo com Lima, há a necessidade da colaboração entre


análise sociológica e teoria da literatura, para que, desta forma, haja a
especificação do objeto. É importante que o teórico ou crítico delimite o
que está sendo investigado.
Para o presente artigo, toma-se por verdade o escalonamento de
Pierre Furter, na altura em que ele analisa a posição social do poeta, que,
reformulado por Lima, fica especificado como o “condicionamento
socioepocal do escritor” (2002, p. 667).
Deste modo, ao casar-se social e análise literária, este trabalho
propõe analisar a metáfora existente nas relações amorosas e descrições
de amor ou paixões, que representa ou reflete o social exposto como pano
de fundo, presentes na obra em estudo.

2.1 O Social como Influência

O contexto social da época é algo perceptível na obra, pois a


mesma não se desvincula dos acontecimentos históricos. Assim, até
mesmo nos relacionamentos, os movimentos da sociedade são percebidos
e se mostram conturbados, confusos e relegados a muita dispersão e
inconstância. Logo, para se fazer uma análise da obra em relação ao
contexto e aos pressupostos sociocríticos é imprescindível reconhecer que
a sociedade tem influência aparente sobre o conteúdo da obra, a exemplo
d’O Pêndulo de Foucault. Assim, sobre a análise sociológica, Cândido
(2014) explica:

Quando fazemos uma análise desse tipo, podemos dizer que levamos
em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que
permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época
ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que
permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção
artística, estudando no nível explicativo e não ilustrativo. (...) Em
compensação, não pode mais ser imposto como critério único, ou
mesmo preferencial, pois a importância de cada fator depende do caso
a ser analisado. (CÂNDIDO, 2014, p. 17).

Desse modo, fica evidente que não são desatrelados da obra e da


interpretação da mesma os acontecimentos e o contexto que circundam a

- 30 -
VISÃO SOCIOCRÍTICA EM O PÊNDULO DE FOUCAULT

linha de construção do enredo. Esse tipo de análise evidencia-se então de


forma costurada com a sociedade. O presente trabalho objetiva, dessa
forma, construir diálogos perceptíveis entre os relacionamentos das
personagens e o contexto social em que os mesmos são construídos. A
influência desse contexto é importante para compreender os
relacionamentos que se formam na referida obra.
Anne Louise Germaine Necker, comumente reconhecida como
Mme. de Staël (1766-1817), é uma das mais importantes teóricas
propagadoras da influência sociológica sobre a obra literária. A mesma
discute que a crítica literária do séc. XX aponta o não literário como
influente no literário, e isso traz implicações fundamentais para se
entender a presente reflexão sobre a influência que o contexto social traz
para a construção da obra, além das relações interpessoais tal como são
estabelecidas n’O Pêndulo de Foucault.
O contexto de pós-revolução em que se encontra a Itália, nas
décadas de 1960 e 1970, período em que se passa a obra, é de caráter
primordial no que se refere aos tipos de relacionamentos construídos no
enredo. O caráter do contexto era de revolução e lutas sociais, bem como
os mais diversos movimentos revolucionários que a obra apresenta. Estes
revelam como estava em mutação a sociedade na época em relação aos
desejos dos jovens e da população italiana revolucionária num período de
pós-revolução caracterizada no fim do século XX. O trecho a seguir
mostra na obra um momento de caracterização dessa situação social.

Nos meses que se seguiram alguns estudantes começaram a disparar: a


época das grandes manifestações a céu aberto estava desaparecendo.
Andava curto de ideais. Tinha um álibi, de que fazendo amor com
Amparo estava amando o Terceiro Mundo. (...)Estava para voltar ao
seu país e eu não queria perdê-la. Foi ela quem me pôs em contato com
uma universidade do Rio que andava à procura de um professor de
italiano. Obtive o lugar por dois anos, renováveis. Como a Itália não
me estivesse agradando, aceitei (ECO, 2016, p. 85).

A situação turbulenta da Itália é revelada frequentemente nas


linhas e entrelinhas da obra, de forma clara e às vezes sutil, em
perspectivas diversas que mostram como o clima era complexo e difícil.
A narrativa não oculta datas e termos específicos que caracterizam o

- 31 -
MIRANDA E ALBUQUERQUE

contexto em que está inserida. Ramos (2009) afirma que a insatisfação


popular bem como as reações diversas dos jovens das décadas de 60 e 70
ganham as ruas devido à repulsa aos governos autoritários. Isso altera a
forma de se relacionar da sociedade, influenciando-a quanto ao caráter de
desconstrução dos laços de estabilidade até ali formados.
De acordo com o teórico Hippolyte Taine (1828 – 1893) as razões
da obra são buscadas no meio, sendo assim a obra é um fruto do meio, ela
não é a realidade nem a representa tal como é, mas traz aspectos
mimetizadores da construção social vigente. Por isso a importância de
considerar a conjuntura social na qual a obra está inserida, a fim de
compreender as relações que são estabelecidas na mesma. As ideologias
da época, bem como as correntes novas e tradicionais de pensamento, são
colocadas em discussão momento a momento, como no trecho a seguir:

Estávamos no final de 1975. Decidi esquecer as semelhanças e dedicar


todas as minhas energias ao trabalho. Afinal de contas devia ensinar
cultura italiana, e não os Rosa-Cruzes. Dediquei-me à filosofia do
Humanismo e descobri que, mal saídos das trevas da Idade Média, os
homens da modernidade leiga nada haviam encontrado de melhor
senão dedicar-se à Cabala e à magia (ECO, 2016, p. 91).

O período em questão foi turbulento e de mudanças para a Itália.


Assim, a conturbação, as inconstâncias e o caráter de fragmentação ficam
aparentes, tais como nos relacionamentos da obra. As personagens têm
noção dos conflitos pelos quais seu país passava e isto as influencia.
É inconcebível pensar a existência da literatura sem partir de uma
realidade, seja ela qual for, e de onde partir. Desse modo, a construção de
uma obra parte de uma realidade já existente e por isso é viável considerar
o contexto como um aspecto relevante da obra e de influência em sua
composição. As noções de entendimento social estão presentes
frequentemente na obra, como no trecho que se segue: “Estivera distante
de meu país, no momento em que nele aconteciam grandes fatos, e tinha
vivido num universo cheio de absurdos, onde até mesmo os
acontecimentos italianos chegavam aureolados de lenda” (ECO, 2016, p.
116). O texto em si é o foco da discussão, mas a partir dele as conjunturas
sociais são discutidas, os temas sociais são levantados, logo, a sociocrítica
é focada no texto e em sua essência. As demais nuances são aspectos
- 32 -
VISÃO SOCIOCRÍTICA EM O PÊNDULO DE FOUCAULT

secundários. É a construção da obra em virtude do social que é relevante


para a sociocrítica e não o contexto social e os acontecimentos históricos
em si.
Entretanto, as transformações e turbulências eram uma constante
no contexto pós-fascista italiano, e as personagens destacam que estão
intimamente atreladas a essa situação, como na passagem a seguir, na
descrição de uma circunstância de proximidade e relação pessoal com o
contexto:

Eu sabia muito pouca coisa da Itália desses últimos tempos. Deixara-a


às vésperas de grandes mutações, quase sentindo-me culpado por haver
fugido no momento do acerto de contas. Quando parti sabia reconhecer
a ideologia de qualquer um pelo tom da voz, a construção da frase, as
citações canônicas. Ao tornar já não sabia quem estava com quem. Não
se falava mais de revolução, citava-se Desidério, quem fosse de
esquerda mencionava Nietzsche e Céline, as revistas de direita
celebravam a revolução do Terceiro Mundo (ECO, 2016, p. 116).

Esse caráter apresentado na fala transcrita traz caracterizações de


influência sobre as personagens, principalmente no que se refere aos
relacionamentos conflituosos e conturbados, permeados de fragmentação
que a obra apresenta.
As personagens têm suas personalidades ligadas aos aspectos
políticos e ideológicos aos quais estão associadas. A exemplo, tem-se
Carlos, um general aposentado, que está associado aos anseios do governo
e seus ditames. Essas representações estão devidamente ligadas a
caraterizações da Itália pós-revolucionária, mas ainda com resquícios
revolucionários. A caracterização de Carlos, a seguir, em muito esclarece
tais discussões sobre o caráter das personagens e a influência do contexto
sobre elas, quando traça um panorama da situação da personagem ao dizer:

E como mutilado de guerra e cavaleiro da coroa de Itália, não podia


senão simpatizar com o governo que estava no poder, dando-se o caso
de que este era a ditadura fascista. E tio Carlos, era fascista? "Na
medida em que, como se dizia em sessenta e oito, o fascismo havia
revalorizado os ex-combatentes e os gratificava com condecorações e
promoções na carreira, digamos que tio Carlos fosse moderadamente
fascista. O bastante para ser odiado por Adelino Canepa, que ao

- 33 -
MIRANDA E ALBUQUERQUE

contrário era antifascista, por motivos bem claros. Tinha que dirigir-se
a ele todos os anos para acertar sua declaração de renda. Chegava à
coletoria com ar cúmplice e arrogante, depois de haver tentado seduzir
tia Catarina com algumas dúzias de ovos. E se encontrava em frente a
tio Carlos, que não só como herói era incorruptível, mas que conhecia
melhor do que ninguém o quanto Canepa lhe havia roubado ao longo
do ano, e não lhe perdoava um centavo. Adelino Canepa julgou-se
vítima da ditadura, e começou a espalhar calúnias sobre tio Carlos
(ECO, 2016, p. 155).

As relações interpessoais bem como as amorosas são marcadas por


acordos e nuances políticas e sociais correspondentes à situação vigente
na contextualização da obra. Desta forma fica visível como a conjuntura
social é presente no enredo da obra e na composição de suas personagens,
além da forma de se relacionar das mesmas. A inserção própria das
personagens em relação aos acontecimentos sociais fica evidenciada a
seguir:

Vi-me metido na Revolução, ou pelo menos na mais estupenda


simulação que dela já fizeram, buscando uma fé honrosa. Julguei que
era digno participar de assembleias e desfiles, gritei com os outros
"fascistas, burgueses, agora poucos meses!", não atirei pedras de
calçadas nem esferas de metal porque sempre tive medo que os outros
fizessem comigo aquilo que eu estava fazendo com eles, mas
experimentava uma espécie de excitação moral ao fugir correndo pelas
ruas do centro, quando a polícia investia contra nós. Voltava para casa
com a sensação de haver cumprido um dever qualquer. Nas
assembleias não conseguia apaixonar-me pelas divergências que
dividiam os grupos: suspeitava que seria suficiente encontrar a citação
apropriada para se passar de um grupo ao outro. Divertia-me procurar
as citações pertinentes. Modulava. (ECO, 2016, p. 23).

Pessoalmente as personagens mergulham nos contextos políticos


e econômicos e suas atitudes e formas de se posicionar frente ao outro são
comumente atreladas às situações em que estão imersas. A literatura de
Eco é então engajada num contexto de revoluções e, mesmo tratando de
conteúdos históricos diversos em revelação das muitas teorias que

- 34 -
VISÃO SOCIOCRÍTICA EM O PÊNDULO DE FOUCAULT

apresenta sobre sociedades secretas, não perde de vista o contexto social


e a verossimilhança da obra.
Se a obra é verossímil ela é influenciada pelo meio, tal como a
crítica literária do séc. XX afirma sobre as influências do não literário,- o
social-, sobre o literário,- a produção artística escrita. Neste sentido, para
Gohn (2011), as movimentações sociais interferem na forma de reagir das
pessoas e em relação ao contexto que se apresentam:

Na realidade histórica, os movimentos sempre existiram, e cremos que


sempre existirão. Isso porque representam forças sociais organizadas,
aglutinam as pessoas não como força-tarefa de ordem numérica, mas
como campo de atividades e experimentação social, e essas atividades
são fontes geradoras de criatividade e inovações socioculturais. A
experiência da qual são portadores não advém de forças congeladas do
passado – embora este tenha importância crucial ao criar uma memória
que, quando resgatada, dá sentido às lutas do presente. A experiência
recria-se cotidianamente, na adversidade das situações que enfrentam
(p. 336).

Com as personagens não foi diferente. Conforme Gohn (2011),


elas também são influenciadas ao tomarem a realidade como ponto de
partida. Assim, na obra analisada, as forças sociais são influentes na
formação dos relacionamentos das personagens frente às situações sociais
as quais estavam expostos. Cândido (2014, p. 27) explica que a sociologia
não objetiva explicar a obra de arte, mas sim auxiliar em sua análise e
“esclarecer alguns aspectos”. Assim, o referido autor questiona: “Neste
ponto, surge uma pergunta: qual a influência exercida pelo meio social
sobre a obra de arte? Digamos que ela deve ser imediatamente completada
por outra: qual a influência exercida pela obra de arte sobre o meio?”.
Cândido responde mostrando que o social na obra de arte tem um lugar,
deve-se então entender qual é ele para assim entender de forma mais
abrangente a significação da obra, suas objetivações e contextualização de
produção.
Inserido no período de 60 e 70, num contexto de contínua
revolução e dos movimentos sociais, o trecho da obra a seguir relata não
apenas transformações nas organizações da sociedade, mas também na
forma de se ver e ver o outro:

- 35 -
MIRANDA E ALBUQUERQUE

Uma daquelas noitadas em que te advertes de que a Revolução não só


se fará, mas que será patrocinada pelo Sindicato das Indústrias. Só no
Pílades se podia ver o proprietário de um cotonifício, de barba e dó
lman verde-oliva, jogando biriba com um futuro foragido, de jaquetão
e gravata. Estávamos nos alvores de uma grande revirada do
paradigma. Ainda no inicio dos anos abarba era fascista – mas era
preciso desenhar com ela o perfil, raspando-a nas maçãs do rosto, à
Italo Balbo* - em sessenta e oito passara a ser contestatória, e agora
estava se tornando neutra e universal, opção de liberdade. A barba
sempre foi máscara (põe-se uma barba postiça para não ser
reconhecido), mas na perspectiva do início dos anos setenta a gente se
podia camuflar com uma barba verdadeira (ECO, 2016, p. 41).

A ação social coletiva é instigadora das ações individuais. As


revoluções sociais da Itália de 60 e 70 movimentam a forma de se
relacionar das personagens, que assim como os movimentos, ficam
fragmentados e sem norteamento fixo. Nesse sentido, Gohn (2011, p. 336)
afirma: “Os movimentos realizam diagnósticos sobre a realidade social,
constroem propostas. Atuando em redes, constroem ações coletivas que
agem como resistência à exclusão e lutam pela inclusão social”. Logo, a
influência do social é imediata aos movimentos e se perpetua por um longo
período de tempo na sociedade.
O caráter de contradição entre revolução e calmaria se dá no trecho
a seguir, em referência à não ligação da personagem com determinada
situação social, bem como quanto ao seu estado de comodidade frente aos
processos revolucionários.

Por isso minha escolha política foi a filologia. A universidade de Milão


era naqueles anos exemplar. Enquanto em todo o resto do país as salas
de aula eram invadidas e os professores agredidos, exigindo-se-lhes
que só falassem da ciência proletária, entre nós, salvo algum incidente,
vigia um pacto constitucional, ou bem um compromisso territorial. A
revolução presidiava a zona externa, a aula magna e os grandes
corredores, enquanto a Cultura oficial sehavia retirado, protegida e
garantida, para os corredores internos e os andares superiores, e
continuava a falar como se nada tivesse acontecido. Assim eu podia
passar a manhã embaixo a discutir ciência proletária e a tarde em cima

- 36 -
VISÃO SOCIOCRÍTICA EM O PÊNDULO DE FOUCAULT

apraticar o saber aristocrático. Vivia à vontade nessas duas


universidades paralelas e não mesentia absolutamente em contradição.
Também acreditava que estivesse à porta uma sociedade de iguais, mas
me dizia que naquela sociedade era necessário que funcionassem
(melhor que antes), por exemplo, os trens, e os revolucionários que me
rodeavam não estavam de fato aprendendo a dosar o carvão na caldeira,
nem a acionar as agulhas dos desvios ou a organizar uma tabela de
horários. Era preciso entanto que alguém estivesse pronto para os trens
(ECO, 2016, p. 26).

Os posicionamentos em relação às ideologias e aos ditames sociais


são uma constante, revelando as diversas ligações das personagens ao
contexto de fragmentação que era vivido na Itália. As relações são
múltiplas, evidenciando as diversas posições que eram encontradas no
contexto do período de revolução.
Alves (2009, p. 8) ao discutir as teorias sobre sociocrítica
apresentadas por Bossi, diz: “Não adianta querer uma literatura
desideologizada, simplesmente não há. E se alguém pretendesse produzir
tal literatura, estaria sendo francamente ideológico, pois a literatura está
imbricada com o social, e este é ideologia pura”. Não há, pois, como
segmentar literatura e sociedade, bem como literatura das influências
sociais. A postura de Dantas Junior (2008) é firme ao pontuar a influência
da sociedade na formação do cidadão, quando postula:

Tomo por princípio que uma característica da modernidade é sua


necessidade de estabelecer unidade e coesão em meio a conflitos e
desigualdades. As tradições têm por função garantir coesão social,
legitimar instituições e relações de autoridade, socializar imagens
unificadoras, especialmente em cerimônias, espaços e símbolos
públicos, além das práticas corporais socialmente aceitas e
reconhecidas. A educação, as artes e o esporte têm essas funções,
principalmente por se comunicarem e abarcarem a juventude em seus
seios (p. 64).

A falta de coesão do meio social, além dos conflitos da Itália de


60 e 70, são muito fortes em influenciar as pessoas a assumirem posição
semelhante. As pessoas inevitavelmente são abarcadas pelas situações
sociais as quais estão expostas e a exposição a qual estavam relegados na
Itália da referida época é facilmente percebida num contexto de
- 37 -
MIRANDA E ALBUQUERQUE

fragmentação de ideias, poderes e multiplicidade das relações. Havia


instabilidade aparente e ela, inevitavelmente, influenciou as personagens
da obra e suas relações interpessoais.

2.2 Os Relacionamentos amorosos na obra

A metáfora presente em O pêndulo de Foucault não se limita aos


relacionamentos ou alusões histórico-políticas. A obra rende muitas
discussões, pois abre frestas para debates que aparecem tecidos juntos ao
enredo. Há tramas menores envolvidas nas tramas maiores, constituindo
uma tessitura complexa, ao passo que bastante fértil para várias
interpretações.
Como nos adverte o próprio autor da obra, desta vez no papel de
teórico, há limites para essas interpretações. No que tange à metáfora, Eco
nos adverte que:

A interpretação metafórica nasce da interação entre um intérprete e um


texto metafórico, mas o resultado dessa interpretação é permitido tanto
pela natureza do texto quanto pelo quadro geral dos conhecimentos
enciclopédicos de uma certa cultura e, em linha de princípio, não lida
com as intenções do falante. (...) O critério de legitimação só pode ser
dado pelo contexto geral no qual o enunciado aparece (ECO, 2012, p.
123).

Desta forma, legitimados por Eco, traça-se a metáfora dos


relacionamentos amorosos na obra, que representa as movimentações
sociais na Itália, nas últimas décadas do século XX.
Em diversas passagens do texto, os relacionamentos amorosos são
descritos de forma ambígua, ou seja, não se sabe se de fato ocorreram, ou
se houve mesmo o que se pode chamar de relação. Deixa-se perpassar a
sensação de que os relacionamentos/sexo refletissem os ideários da
política da época.
Eis a metáfora: relacionamentos conflituosos marcados por
traições ou puramente idealizados.
Na passagem a seguir, o narrador, Casaubon, faz uma comparação
bem propícia entre engajamento político e sexo:

- 38 -
VISÃO SOCIOCRÍTICA EM O PÊNDULO DE FOUCAULT

Como me acontecia às vezes, nos comícios, enfileirar sob uma ou outra


faixa só para seguir alguma garota que me perturbava a imaginação,
conclui daí que para muitos de meus companheiros a militância política
talvez fosse uma experiência sexual – e o sexo era uma paixão. (...)
Aleister Crowley, que foi definido como o homem mais perverso de
todos os tempos, e que, portanto fazia tudo o que podia fazer com
devotos de ambos os sexos, só transou, segundo os seus biógrafos, com
mulheres feíssimas (...), e me permanece a suspeita de que nunca tenha
de fato feito amor de maneira plena. (...) Marx me parecia interessante
porque eu tinha certeza de que ele e sua Jenny faziam amor com gosto.
Sente-se isso pelo respirar pausado de sua prosa, e de seu humor (ECO,
2016, p. 59).

Em umas das vezes que Casaubon está no apartamento de Belbo,


tentando decifrar códigos de arquivos, encontra um que tem por título
“Três mulheres no coração”. Trata-se de alguns escritos de Belbo que
falavam de antigas paixões. É a narrativa de pensamentos nos quais fala
de três mulheres que teriam sido sua paixão:

Olhe para o alto, Belbo. Primeiro amor, Maria Santíssima. (...) Natural:
a primeira mulher da minha vida não foi minha – como de resto não foi
de ninguém, por definição. Apaixonei-me imediatamente pela única
mulher capaz de fazer tudo sem mim. (...) Depois Marilena (...),
equilibrando-se em cima do espaldar, os braços abertos a balançar em
suas oscilações(...). No alto, inatingível. (...) De repente revejo Mary
Lena, o branco das calcinhas distinguindo-se sob a saia azul que flutua,
e compreendo que ela é loura, altiva e inacessível exatamente por ser
diferente. Nenhum relacionamento possível; pertence a outra
espécie.(...)
Terceira mulher (...), pálida Ofélia entre as flores de seu féretro
virginal. (...) é justo que não tenha tido as três mulheres: punição por
havê-las desejado. (...)
Escreve-se um romance sobre uma história desse gênero? Talvez eu
escreva um sobre as mulheres de quem fugi porque podia tê-las.(...)
(ECO, 2016, p. 65-66)

Pode-se observar como as relações parecem fragmentadas,


distantes, por vezes inalcançáveis, visto que a própria personagem
classifica uma de suas amadas, Mary Lena, como uma “outra espécie”. De
onde viria tal definição? Qual o motivo dos relacionamentos amorosos
- 39 -
MIRANDA E ALBUQUERQUE

serem descritos como estranhamentos ou algo fora de uma vida comum e


acessível?
Há passagens no texto que dão indícios de que as mulheres são por
vezes utilizadas como despojo social ou simples distração. Na passagem
a seguir, vê-se Belbo e Casaubon conversando no bar. A certa altura, entra
em cena, rapidamente, uma jovem, que é indagada da seguinte forma por
Belbo: “‘Boa noite, beleza. Já tentou suicídio?’ ‘Não’, responde a
passante, ‘agora estou numa comunidade’” (ECO, 2016, p.72). Tal
passagem resgata muito do mal estar social da época, em que o suicídio
parecia uma saída para os males que assolavam a Itália na época. Contudo,
é a ideia de comunidade, talvez terapêutica, ou puramente hippie, que traz
à tona os anos 60 e seu legado psicodélico, regado a drogas e fugas
sintéticas ou naturais da realidade massacrante.
A entrada em cena de uma mulher, ou apenas a imagem que se faz
dela, na narrativa, traz sempre uma ideia de libido, como na seguinte
passagem, em que o narrador vê uma foto de Lorenza Pellegrinni no
apartamento de Belbo: “Porque sou a primeira e a última. Sou a preferida
e a odiada. Sou e prostituta e a santa. Sophia” (ECO, 2016, p. 49).
Essa ideia da mulher ser vista como prostituta ou como espólio de
guerra também se faz presente, sobretudo quando o texto detém-se a falar
dos costumes e obrigações dos cavaleiros:

Só porque és monge e espadachim, estripas muçulmanos e rezas a


ave-maria, não deves encarar tua prima, e quando entras numa
cidade, depois de dias e dias de assédio, os outros cruzados fodendo
a mulher do califa diante dos teus olhos, sulamitas maravilhosas
abrindo o corpete e dizendo-te toma-me toma-me mas deixa-me a
vida... E o templário nada, devia ficar duro, fedorento, hirsuto como
o queria São Bernardo a recitar completas... (ECO, 2016, p. 94)

A ideia que se tem é a de que o sexo, mais especificamente, surge


como algo a ser tomado, executado sob uma situação de julgo, na qual a
mulher aparece como vítima, por vezes até passivamente benevolente.
O amor impróprio, escondido, que deriva numa punição ao seu
praticante também permeia algumas conversas, como nesta em que
Casaubon estava bêbado e parecia ter contado uma história de amor aos
seus companheiros no bar Pílades. Entre os três estava a presença de

- 40 -
VISÃO SOCIOCRÍTICA EM O PÊNDULO DE FOUCAULT

Dolores, uma jovem que frequentava o bar e era colega nos piquetes.
Casaubon lança o seguinte pensamento: “Faço uma tese sobre eles, e
quando se faz uma tese mesmo sobre a sífilis a gente acaba amando o
treponema pálido.” (ECO, 2016, p. 104)
Ainda sobre o juramento dos Templários, o texto fala da
abnegação de sexo que precisava ser praticada por estes, mas muitos, em
certa cerimônia de iniciação, chegavam a relacionar-se com os outros
juramentistas: “enfim se davam a concúbito recíproco (...) A orgia. (...) no
fundo, era melhor unir-se com os irmãos do que se comprometer com uma
mulher (...) (ECO, 2016. p. 109).
Pelas passagens acima comentadas, percebe-se certa aversão da
obra pela consumação e vivência do amor de forma plena. Os
relacionamentos são descritos de forma promíscua ou como algo violento,
que precisa ser tomado, quando não, são mostrados de forma sublimada,
não acessível, inalcançável, sobretudo no que tange à descrição das
mulheres.
Seria uma espécie de metáfora sobre a fragmentação da sociedade
italiana pós-fascismo, ou um reflexo do que ansiava a juventude ainda em
conflito e confusa em relação aos rumos que a sociedade buscava tomar?
3 Considerações finais

A literatura e a sociedade não estão desvinculadas. Independente


da ficção que a obra apresente é possível perceber a realidade ou premissas
de algum contexto social na composição da obra. Em si, o objetivo da
análise sociocrítica não é entender o social para, assim, entender a
justificação da obra, mas é eficaz e acrescentador perceber como a
sociedade influencia a obra em sua construção.
Obra e sociedade estão vinculadas por significações e influências,
sejam elas reais ou idealizadas. A arte costumeiramente mimetiza a
realidade e as representações sociais vigentes em sua construção, ou
mesmo vigentes em determinada época. N’O Pêndulo de Foucault é
possível perceber as intersecções que existem entre contexto social e a
construção dos relacionamentos existentes na obra.
A influência social marcada pelos acontecimentos de uma Itália
pós-revolucionária, nas décadas de 60 e 70, que é marcada pela
fragmentação e por novos ideais fica aparente. É visível ainda a

- 41 -
MIRANDA E ALBUQUERQUE

duplicidade e inconsistência nas relações da obra em consonância com as


relações sociais da referida época de instabilidades, e “ainda” revoluções
e levantes. Os relacionamentos amorosos, igualmente aos interpessoais e
políticos, são influenciados e assumem caráter não fixo e distante, bastante
fragmentados, tal qual a conjuntura social vigente.
De forma objetiva o trabalho não visa discutir a Itália do séc. XX,
tão pouco suas influências na sociedade, busca antes compreender como
a sociedade influencia a literatura independente do contexto, mas atrelada
a ele. O foco aqui recai sobre a construção do texto e sua ligação com a
sociedade, mas não em especial voltado para o contexto social ou sua
representação histórica.
Os rumos sociais bem como a forma de se relacionar são ainda
incertos na obra devido à transição e instabilidade do contexto, mas suas
representações mostram a falta de equilíbrio e posicionamento físico da
época quanto aos mais diversos aspectos: sociais, econômicos,
financeiros, éticos, interpessoais e morais, mas todos tocados nas muitas
discussões que a obra apresenta.

Referências

ALVES, Paulo. Diálogo entre literatura e sociedade em Coisas do Reino


do Jambon, de Lima Barreto. Campina Grande, Editora EDUEPB, 2009
– ISSN 2176-5901. Anais do IV Colóquio Internacional Cidadania
Cultural: diálogos de gerações 22, 23 e 24 de setembro de 2009.

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 13. ed. Rio de Janeiro:


Ouro Sobre Azul, 2014.

ECO, Humberto. O pêndulo de Foucault. Tradução de Ivo Barroso. 5.


ed. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2016.

______. Os limites da interpretação. Tradução Pérola de Carvalho. São


Paulo: Perspectiva, 2012.

- 42 -
VISÃO SOCIOCRÍTICA EM O PÊNDULO DE FOUCAULT

DANTAS JUNIOR, Hamilcar Silveira. Juventude entre a história e a


memória: a "rebeldia" como tradição inventada e espetacular. Ponta de
Lança, São Cristóvão v.1, n. 2, abr.-out. 2008.

GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais na contemporaneidade.


Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 47 maio-ago. 2011.

LIMA, Luis Costa. Teoria da literatura em suas fontes. Vol. 2. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

RAMOS, Eliana Batista. Anos 60 e 70: Brasil, juventude e rock. Revista


Ágora, Vitória, n.10, 2009, p.19-20.

- 43 -
PEREIRA

- III -

O MACACO DA TEORIA: DEFINIÇÃO, TRADIÇÃO E


ASPECTOS CRÍTICOS DAS SLAVE NARRATIVES
_______________________

David de S. Pereira1

1 Introdução

A teoria literária transcreve as análises das propriedades teórico-


estéticas para suas correntes através dos padrões observados em cada
recorte temporal. Entretanto, há ainda as correntes que extrapolam tais
limites em função de características para além do tempo e das tendências
sociais de uma época. Nessa perspectiva se inserem as narrativas da
escravidão.
A princípio, a expressão narrativas da escravidão pode parecer
extremamente genérica. Pode-se imaginar qualquer romance, conto,
novela ou outra escrita narratológica que aborde, retrate ou esteja
ambientada no período escravocrata. Entretanto, a historiografia literária,
dentro de um panorama teórico, define de forma canônica uma narrativa
da escravidão, como define-se a diante. As chamadas slave narratives
possuem suas características idiossincráticas que as tangem e enriquecem
com suas propriedades teóricas próprias, contendo, de forma não
arbitrária, mas estruturada, uma série de padrões que relacionam de forma
funcional suas particularidades às suas bases criativas, históricas e sociais.
Partindo-se de tais pressupostos, antes de se esmiuçar tais propriedades e
definições se faz necessário estabelecer as diferenças entre o binômio
escravidão e racismo. Hawkins assim comenta sobre a relação:

1
Graduado em Letras IFB|UDF. Bolsista CNPq (2015) e membro do grupo de
estudos e pesquisas Gênero e Raça da UNESP. E-mail:
pereira.harleydavidson@gmail.com
- 44 -
O MACACO DA TEORIA

A história da escravidão e do racismo está intrinsecamente entrelaçada,


mas a escravidão como instituição na Grã-Bretanha e na América foi o
resultado direto do desenvolvimento capitalista necessário para
fornecer a riqueza para financiar a revolução industrial. A escravidão
rompeu o mundo, mas o movimento capitalista estava determinado a
usar o racismo e a ganância para justificar a tortura, matança e criação
de seres humanos. (HAWNKINS, 2012, p.06. Tradução livre).

Portanto, a condição sócio-histórico-política está intrinsicamente


enraizada nos estudos das narrativas da escravidão.
Os primeiros relatos da escravidão no Atlântico foram os diários
de bordo dos europeus no início do século XVII escritos por navegantes
na América Central; porém, as primeiras slave narratives foram escritas
por escravos que vieram a alcançar a liberdade (Hawkins, 2012). As
narrativas transatlânticas britânicas nos EUA, Canadá e Caribe são, assim,
delimitadas pelo processo da diáspora negra das colônias britânicas. A
enciclopédia britânica (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 2018)
define slave narrative como:

[...] um relato da vida, ou uma parte importante da vida, de um fugitivo


ou ex-escravo, escrito ou oralmente relatado pelo escravo
pessoalmente. As narrativas escravas compreendem uma das tradições
mais influentes da literatura americana, moldando a forma e os temas
de alguns dos escritos mais celebrados e controversos, tanto na ficção
quanto na autobiografia, na história dos Estados Unidos. (Tradução
livre).

James Olney (1984, p. 46) chega a afirmar que o número de obras dentro
dessa corrente chega aos seis mil, embora, grande parte apresente volumes
com alta repetitividade dos relatos, havendo grande descrição das vidas
desses autores-protagonistas, característica que Olney classifica como
sendo de uma “mesmice esmagadora”. A definição enciclopédica
(definida por William L. Andrews, University of North Carolina),
entretanto, cobre o que vem a ser a narrativa mais tradicional, ou seja,
original, no percurso das slave narratives, valendo-se de um recorte
geográfico muito limitado, não abordando as manifestações literárias das
narrativas em outras colônias britânicas. Abordar-se-ão também, neste
presente trabalho, à luz de definições mais específicas, construções
- 45 -
PEREIRA

narratológicas modernas, que não irão se ater às definições arraigadas às


manifestações clássicas da escravidão, mas sim que irão representar as
vozes dos que descendem, e as marcas e chagas remanescentes do período
escravocrata em si.
Segundo Eagleton (1978, p.49) “a história da moderna teoria
literária é parte da história política e ideológica de nossa época”. De certa
forma, as características da literatura que levam ao auxílio da construção
histórica da sociedade são aquelas que representam, ou tentam representar,
a cultura e os aspectos vividos por um núcleo social. A teoria literária,
embora tendo como objetivo o esmiuçar da literatura e suas estruturas,
objetiva, também, a veracidade e confiabilidade das fontes; o romance
histórico é resultado das condições culturais que levaram ao seu
embasamento, sendo assim, o cerne da historiografia literária. Assim, se
estabelece a necessidade dos estudos teórico-biográficos, centrados na
caracterização dos autores no tempo e no espaço, visando suas
propriedades antropo-culturais, como gênero, etnia, sexualidade,
nacionalidade, classe social, etc. Estabelece-se, portanto, divisões, ou
diga-se, subdivisões dentro das próprias narrativas da escravidão em
função de tais propriedades.

2 Classic slave narrative

As chamadas narrativas clássicas, classic slave narratives,


formam o grupo mais primitivo dentre as narrativas da escravidão, isto é,
no sentido de conterem desde os primeiros escritos caracterizados como
slave narratives até narrativas mais rebuscadas com propriedades mais
emparelhadas com as construções históricas, tais como lutas abolicionistas
e absorção do ex-escravo por sua nova pátria, o que faz Hawkins (2012,
p.10) afirmar que “a história das classic slave narratives se relaciona com
a própria história da escravidão”.
A representação da brutalidade e o retrato das condições de vida
são características que permeiam essa categoria de forma intrínseca. A
propriedade de relato como registro de tais narrativas as tornam fonte
histórica de informação; como testemunha da brutalidade da vida em
escravidão essas narrativas foram documentos fortemente políticos
(HAWKINS, 2012). Os diários de bordo dos escravos, os contos em
- 46 -
O MACACO DA TEORIA

oralidade transcritos e as narrativas de escravos repatriados formam o


corpo de escrita desse grupo.
Das últimas décadas do século XVIII às primeiras do século
seguinte as narrativas apresentam alto teor religioso, onde a busca por
redenção é o vetor direcional, sendo os contos da redenção religiosa “uma
jornada espiritual que levava à redenção cristã, caracterizando os autores
como africanos e não mais como escravos” (Abdel-Maksoud, 2012).
Hawkins discorre sobre a natureza de tais contos:

Várias das narrativas de escravos mais lidas desta época, como a


Interessante Narrativa de Equiano, são autobiografias espirituais de
redenção religiosa, apontando a hipocrisia do cristianismo versus a
instituição da escravidão. Essas primeiras formas de narrativas de
escravos foram escritas por escravos do Atlântico Africano de 1770 até
a abolição da escravidão na Inglaterra e o comércio de escravos em
1807. (HAWKINS, 2012, p. 04. Tradução livre)
.

Portanto, tais narrativas apresentavam forte caráter moral, confrontando


os valores religiosos que iam em choque com a realidade escravocrata. A
própria narrativa de Equiano2 é um exemplo típico de conto de redenção.
As narrativas dos contos de redenção apresentam relatos pessoais
do processo de escravidão, desde o tráfego negreiro às descrições das
realidades diárias dos escravos e eventual fuga (HAWKINS, 2012). A
personagem apresenta anseio por inserção e assimilação dos padrões de
costumes, vestuário e, até, alimentação ingleses, com o objetivo de
redenção e salvação cristã (2012a):

Equiano, por exemplo, manteve-se reconhecendo seus erros e pecados,


tentou melhora-se vivendo pelas expectativas britânicas, tropeçando
novamente e repetindo esse processo através da narrativa3. Sua

2
The Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equiano, or Gustavus Vassa, the
African obra escrita em 1789 que conta a história de Equiano em diferentes recortes
temporais, relatando sua vida como escravo nas colônias britânicas.
3
Stepto (1979) apresenta, em sua obra seminal From Behind The Veil, quatro
categorias de encaixe das narrativas em função de suas propriedades: narrativa
eclética, na qual documentos de autenticação estão anexados ao conto, grupamento
no qual se encontra os contos dessa fase; narrativas integradas, onde os documentos
de autenticação estão, como o próprio nome sugere, integrados ao texto,
- 47 -
PEREIRA

salvação final foi se tonar um sujeito britânico e ser absorvido por sua
terra natal (Hawkins, 2012, p.05).

A acuidade histórica é, entretanto, um problema típico nessas narrativas.


O próprio conceito de autobiografia, enquanto escrita de voz, ou seja,
escrita reflexiva e baseada em relatos, testemunhos e documentos não
abarca a amplitude de tais obras. Olney (1984) discorre sobre a
necessidade de se estabelecer uma definição de autobiografia, isto é, uma
dentre tantas possibilidades específicas às mais diversas configurações. A
utilizada como parâmetro é descrita como:

[...] um ato recolher\narrar no qual o escritor, de um certo ponto em sua


vida – o presente -, olha para trás aos eventos daquela vida e os reconta
de forma a mostrar como aquela história passada levou ao seu presente
estado. Exercitar memória, com o intuito que ele pode recolher e narrar,
o autobiógrafo não é neutro e registrador passivo, mas sim um ativo e
criativo modelador. Recolhimento, ou memória, nesse caso mais uma
faculdade criativa, vai em direção oposta para que, sua parte contrária
e gêmea, possa ir em frente: memória e narração se movem juntas em
mesma linha, só que em direções reversas (OLNEY, 1984, p. 47.
Tradução livre).

O próprio conceito estabelece uma dialética entre biógrafo e biografia,


observar e narrar e memória e criatividade, na medida em que se observa
uma relação vital entre criatividade e memória narrativa, visto que os fatos
descritos não são fictícios, e por isso uma definição de biografia, mas ao
mesmo tempo o plano de retratação é criado para embasar a obra em si. O
anseio por autenticação vai longe de tal maneira que a “salvação se tornou
o propósito principal, assim a narrativa excluiu quem poderia falar dentro
de suas formas e práticas” (Hawkins, 2012, p.05). Há fontes que apontam
que Equiano, por exemplo, nasceram sob julgo escravocrata, não tendo
vivido sua infância na África ou vindo às Américas em navio negreiro
(2012a). O que se estabelece é a criação do espaço para descrição dos
relatos, embora, no caso de Equiano, esse espaço tenha extrapolado os

transfigurando-se em vozes ou personagens; narrativas genéricas que são aquelas em


que os documentos estão subordinados ao texto; e a narrativa de autenticação, em que
o conto autentica documentos para outras produções.

- 48 -
O MACACO DA TEORIA

limites de sua realidade. Olney (1984) caracteriza, ainda, um ponto


curioso que fundamenta tal objetivo documental com fins de redenção:
textos desse grupo apresentam as frases “escrito por ele mesmo” ou
“relatado por ela mesma”, dado que muitos textos eram ditados aos
editores, muitos dos quais brancos, assegurando que a narrativa não perca
sua propriedade de memória e registro.
Retomando Olney (1986), em que o autor chama de “mesmice
esmagadora” a repetição nas narrativas em suas formas, porém não em
conteúdo, de 1707 a 1815 são publicados contos com esse padrão
repetitivo. Gates (1989) dá nome de textos tropológicos a esses contos,
pois são escritos com repetição de tropos. Sobre a articulação da teoria
literária negra na tradição, Gates vai descrever a reescrita na literatura
afro-americana como um fenômeno dotado de voz e interação textual,
lançando mão de uma figura central na construção da escrita: o macaco
significador. Tal personagem vem diretamente do Ioruba, sendo figura
metafórica conhecida como “o trapaceiro”. Esse nome alude ao efeito de
reescrita que o autor analisa, estabelecendo-se como a personificação do
fenômeno. Embora os textos possuam tais padrões de escrita, o processo
de composição de significados será diferente em função de uma nova
figura estético-teórica: Exu. Também nascido no seio Ioruba, essa
apresentação é, também, uma personificação, mas agora não do fenômeno
textual, mas sim da voz que constrói o sentido na narrativa. Exu, na
mitologia, apresenta duas bocas, remetendo às vozes dos autores, sendo,
portanto, as vozes do processo, enquanto o macaco é a construção da
própria revisão textual (Gates, 1989).
Seguindo a linha que percorre as escritas da escravidão, o grupo
que vem em posteriormente são os chamados contos abolicionistas.
Sampaio e Ariza (2019) discorrem sobre essa fase:

A partir da década de 1830, a vocação política desses relatos [contos


de redenção] vinculou-se insuperavelmente ao florescimento do
abolicionismo atlântico, angariando, além de sensibilidades, fundos
para a causa antiescravista; nesse cenário, as narrativas e seus
testemunhos das realidades brutais da escravidão se tornaram,
conforme argumenta Dickson D. Bruce Jr. (2007, p.28), “os textos
mais essenciais do movimento” (Sampaio e Ariza, 2019, p.179-180).

- 49 -
PEREIRA

Tais narrativas foram escritas, segundo Hawkins (2012), por escravos


nascidos sob o julgo escravocrata, com os autores focando-as em
descrever as plantações e relatar a vivência dos escravos. De acordo com
as definições de Stepto (1979), tais obras são caracterizadas por narrativas
integradas, devido à dissolução dos documentos de autenticidade ao longo
da narrativa em oposição aos anexos. Stepto exemplifica a obra de
Frederick Douglas Narrative of the Life of Frederick Douglass como um
exemplo clássico de narrativa integrada. Pode-se tomar, ainda, a aclamada
narrativa de Solomon Northtup Twelve Years a Slave, que foi adaptada
para o cinema em duas ocasiões, 1984 e em 2013. Há, ainda, narrativas
escritas por escravos livres, pré-guerra civil, em que a estrutura de
autenticidade não está integrada ao texto, mas subordinada a ele,
configurando narrativas genéricas, citando a obra Our Nig de Harriet
Wilson (Hawkins, 2012). Aqui observa-se que as definições teóricas não
devem ser sinônimas do próprio grupamento em si, como pode-se
perceber no caso dos contos abolicionistas, em que Stepto apresenta duas
categorias como exemplos dentro da mesma corrente.
A última categoria de narrativas clássicas é chamada de contos de
progresso (Hawkins, 2012), publicações com foco não na memória, mas
sim na construção dos caminhos percorridos pelos escravos libertos – os
contos aqui são escritos após a guerra civil – em suas novas vidas,
mostrando os percalços enfrentados em suas adaptações à sociedade como
homens e mulheres livres. William Still, Louis Hughes, Sam Aleckson e
Paul Jennings são alguns dos autores desse grupo, que materializa
caminho para as construções modernas.

3 WPA Slave Narrative

Em 1916, Carter G. Woodson fundou o The Journal of Negro


History que viria a publicar textos relacionados à história negra americana
(Yetman, 1967). Nessa época, houve esforços para coletar relatos na
oralidade de escravos libertos, objetivando-se o registro de memória.
Alguns desses primeiros esforços foram os projetos de 1929 iniciados por
Charles S. Johnson e John B. Cade. Um dos estudantes de Johnson,
Lawrence D. Reddick, realizou tentativa de angariar patrocínio federal
para coletar tais narrativas. O projeto, entretanto, não teve fôlego e as
- 50 -
O MACACO DA TEORIA

narrativas só foram coletadas novamente após anos (1967a). Na década de


30, na grande depressão americana, o Federal Writers Project, programa
federal de suporte a escritores fundamentado no Works Progress
Administration, que buscava empregar trabalhadores para realização de
projetos públicos, criou o Slave Narrative: A Folk History of American
Slavery in the United States, projeto que se debruçou sobre os relatos dos
ex-escravos libertos.
O relato de escravos, como o de Fountain Hughes, escravo da
família Hughes pertencente ao presidente Thomas Jefferson, configura o
caráter de registro e memória desse grupo. Aqui é possível observar-se a
capacidade da literatura, enquanto arte, de servir de agente guardião do
passado, como registro das vozes daqueles que outrora foram silenciados
e recolhidos às margens de suas existências, percorrendo o tempo e
servindo de testemunho das atrocidades do homem. Com a publicação da
coleção, o recorte do que se estabelece como classic slave narrative se
encerra. O que se segue sãos as produções que darão lugar à novela pós-
moderna (Hawkins, 2012).

4 Neo-Slave Narrative

O recorte pós-moderno das narrativas da escravidão abre espaço


para um novo tipo de narrativa, distante das características clássicas dos
relatos da escravidão, da busca por redenção e da construção de memória
autêntica. Hawkins apresenta essa nova novela da seguinte forma:

Novelas como Native Son de Richard Wright, Jubilee de Margaret


Walker e The Autobiopraphy of Miss Jane Pittman apresentam
propriedades modernas e pós-modernas e descrevem experiências
baseadas em parentes que nasceram na escravidão. Gates refere-se a
essas novelas como talking texts, que é o seu termo para discurso
bifocal negro, nesse caso, dando uma voz negra a um texto branco. A
essa novela dá-se o nome de neo-slave narrative (Hawkins, 2012 p.
09).

Ao se observar tais obras por um ponto de vista historiográfico, pode-se


estabelecer outras definições do que vem a ser uma neo-slave narrative.

- 51 -
PEREIRA

Miles (2008, p.14) afirma que “uma neo-slave narrative é uma ficção
narrativa da escravidão escrita depois seu fim”.
Essa moderna forma de literatura emergiu aproximadamente após
a segunda guerra mundial e faz uso de ficção para tecer sua estrutura. O
termo, tal qual usamos hoje, foi cunhado, segundo Hawkins (2012), por
Bell (1987, p.289), que a descreve “como residualmente oral, moderna
narrativa de escape para a liberdade”. Rushdy (2004, p.534) apresenta,
como um divisor de águas, a publicação de Jubilee de Margaret Walker
em 1966, que segundo ele, é “a transição entre a história moderna e
contemporânea das neo-slave narrative”, das primeiras produções às mais
modernas. Toni Morrison, David Bradley, Octavia Butler, Caryl Phillips
e Shirley Anne Williams são alguns dos autores dessa corrente.
As neo-slave narratives surgiram pelas circunstâncias sociais,
raciais e intelectuais da década de 60 (Hawkins, 2012). Com o estopim da
prisão de Rosa Parks, o movimento negro ascendeu. A partir daí uma série
de revoluções de fundo anti-segregação estourou, como em Little Rock, o
protesto de Greensboro em 1961, o caso James Meredith em 1962, a
marcha sob Washington liderada por Martin Luther King, Bayard Rustin
e Phillip Randolph em 1963, o chamado verão da liberdade em 1964, e a
famosa passeata em Selma no Alabama em 1965, que lutava pelo direito
dos negros ao voto. Durante esse tempo a historiografia da escravidão
sofreu mudanças intelectuais no estudo da história americana (2012a).
Hawkins afirma, então, que a moderna narrativa escrava é a expressão da
visão afro-americana da história, e evoluiu da perda de uma tradição oral,
que se baseou nas histórias contadas e na música, onde o debate da história
americana pela revisita ao passado e o significado político no tempo está
expressado no trabalho ficcional, apresentando a voz afro-americana.
Nessa nova narrativa, os temas migraram da conversão do
cristianismo e da busca pela liberdade para outros objetivos. A escrita
narratológica é costurada em torno de um processo de linha do tempo da
história negra. As vozes agora não são mais daqueles que viveram na pele
a escravidão, mas daqueles que herdaram suas chagas, suas heranças
marcadas como cicatrizes profundas na sociedade. Enquanto a narrativa
clássica focou, em seus últimos contos, na adaptação do negro livre à
sociedade, a narrativa pós-moderna vai buscar o perdão, um ponto de
ruptura, à luz da revisitação do passado, lançando mão da ficção como
- 52 -
O MACACO DA TEORIA

arma. Em Beloved Toni Morrison personifica a escravidão, dando corpo


ao fantasma de sua filha como metáfora fantasmagórica, relacionando
passado e presente através da escravidão que secciona o tempo e
permanece como uma marca que rasga o indivíduo, extrapolando-o,
alcançando seus descendentes e os filhos de seus descendentes.
Octavia Butler aborda, literalmente, a visita ao passado em
Kindred, valendo-se da ficção científica para tecer o plano para construção
de sua narrativa. Em Butler é possível ver claramente a intensão de perdão,
onde a figura de Rufus Wright como uma criança inocente e cativante
desperta uma sensação de desarme no leitor, trazendo à tona não um
sentimento de ódio, a princípio, mas uma conciliação. Butler esmiúça,
porém, a transformação do inocente naquele que é seu algoz, o branco
senhor de escravos, tendo seu corpo marcado ao fim da novela como o
preço a ser pago pelo seu futuro.
A vontade de seguir a vida, de continuar apesar do sofrimento, não
é uma tentativa de esquecimento da escravidão, mas sim um novo ponto
de partida, onde se possa construir um futuro, apesar do passado
(Hawkins, 2012).

Referências

ABDEL-MAKSOUD. Nada Ramadan. Tese (Doutorado em Literatura) –


Departamento de Língua Inglesa e Literatura da Universidade do Cairo.
Autobiographical Practices Women Writers and their Fictional Self-
Images. Cairo, p.20, 2012.

SLAVE Narrative. In: ENCYCLOPAEDIA Britannica. [S.l.]: Britannica


Online, 2018.

BELL, Bernard W. The Afro-American Novel and its Tradition.


Massachusetts: U. of Massachusetts Press, 1987.

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma Introdução. São


Paulo: Martins Fontes, 6ª edição, 2006.

- 53 -
PEREIRA

EQUIANO, Olaudah. The Interesting Narrative of the Life of Olaudah


Equiano, of Gustavus Vassa, the African. Londres: Penguin, 1995. Ed.
1789.

GATES, Henry Louis. The Signifying Monkey: A Theory of African-


American Literary Criticism. Oxford: Oxford UP. Print, 1989.

HAWKINS, Christiane. Historiographic Metafiction and the Neo-


Slave Narrative: Pastiche and Polyphony in Caryl Phillips, Toni
Morrison and Sherley Anne Williams. Dissertação (Mestrado em
Inglês) – Universidade Internacional da Flórida. Miami, p.85, 2012.

MILES, Emile. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade


Utrech. (Re)Claiming Agency in Language: The Case of the
Contemporary African American Slave Narrative. Utrech, p.145,
2012.

OLNEY, James. I Was Born: Slave Narratives, Their Status as


Autobiography and as Literature. In: The Slave’s Narrative. Charles T.
David et Henry Louis Gates, Ed. Nova York: Oxford University Press,
1984.

SAMPAIO, Maria Clara Carneiro et ARIZA, Marília B. Narrativas de


mulheres escravizadas nos Estados Unidos do século XIX. In:
Cadernos de Estudos Avançados, nº 33. Disponível em:<
http://www.scielo.br/pdf/ea/v33n96/0103-4014-ea-33-96-179.pdf>
Acesso em: set. de 2019.

STEPTO, Robert B. From Behind the Veil: A Study of Afro-American


Narrative. Chicago: U. of Illinois Press, 1979.

- 54 -
SANTOS

- IV -
INQUISIÇÃO, INTOLERÂNCIA E RISO NO FILME "O NOME
DA ROSA" DIRIGIDO POR JEAN-JACQUES ANNAUD
____________________

Glacilda Nunes Cordeiro Santos1

1 Concepções de riso

A constatação de que o riso é um traço distintivo da natureza


humana tem levado filósofos, antropólogos, entre outros, a
questionamentos sobre a essência e as motivações do riso. É axiomática
a afirmação aristotélica de que "o homem é o único ser vivente que ri" e
de que o riso é, pois, privilégio espiritual. A valorização do homem
decorrente desta capacidade de rir é uma crença aristotélica que vigorou
por muitos séculos. O riso, na concepção aristotélica, é vista de forma mais
amena, mais positiva se comparado à de Platão, embora o estudioso de
estagira ainda lhe condene os excessos. Se para Platão o riso pode ser
associado a um exagero de alma, para Aristóteles o riso representa um
estímulo á boa vontade do ouvinte.
Aristóteles já afirmara ser o humor alguma coisa ruim, porque
deslocada, e não por conter necessariamente alguma maldade. Para Platão
era inconcebível que os deuses rissem, já que o riso é uma emoção
grosseira, própria do ambivalente, que inquieta, até porque subsume
emoções diferentes, como o prazer e a dor (MINOIS, p. 50 e p. 70).
Também para Aristóteles, cuja visão de fenômeno do riso é mais amena
que a de Platão, o riso deve ser parcimonioso. A própria valorização da
tragédia como a representação de homens superiores, em contraposição á
comédia, que representa homens inferiores, já revela a posição
aristotélica.

1
Mestre em letras pela Universidade Federal do Piauí (2010) e professora do Instituto
Federal do Piauí IFPI. É membra do ANGLOLIT (Grupo de estudos em língua e
literatura anglófonas vinculado ao CNPq) desde 2018.

- 55 -
INQUISIÇÃO, INTOLERÂNCIA E RISO NO FILME "O NOME DA ROSA"

Há em Platão uma condenação ética do riso, pois este não é


movido nem pelo belo, nem pelo justo. O riso se prende ao cotidiano, ao
mesquinho, ao próximo: não há qualquer grandiosidade nele. E por isso,
Platão o condena, para ele, os fracos são ridículos justamente porque não
podem se vingar dos deboches sofridos.

Se, para os filósofos e estudiosos da Antiguidade o riso é um traço que


distingui o homem dos outros animais (o homem é o único animal que
ri), para a teologia medieval o riso é o que distingue o homem de Deus.
O fato de que nenhuma passagem bíblica atesta o riso de Cristo reforça
a aproximação de riso ao pecado. Grosso modo, sob a ótica medieval,
o riso é, portanto, condenável. O filme "O nome da rosa", baseado na
obra homônima de Umberto Eco, revela esta visão do riso como algo
insidioso, que deveria ser evitado. (FRANÇA, 2006, p. 24).

A associação do diabo com o riso parece ser tão antiga como o


próprio cristianismo. Desde os tempos antigos, segundo Bakhtin, a
doutrina cristã caracterizou Deus como sujeito que não ri, e condenou o
riso como um atributo do seu inimigo.

"Tertuliano, Ciprião e São João Crisóstomo levantaram-se contra os


espetáculos antigos, principalmente o mimo, o riso mímico e as burlas.
São João Crisóstomo declara de saída que as burlas e o riso não provém
de Deus, mas são uma emanação do diabo: o cristão deve conservar
uma seriedade constante, o arrependimento e a dor em expiação dos
seus pecados." (BAKHTIN, 1993, p. 63).

Se, de um lado, Deus não ri, de outro, porém, é certo que o


homem, sua mais nobre criatura, não se priva dessa faculdade. Textos
teológicos da Idade Média afirmam que o riso, definido por Aristóteles
como o "próprio do homem" é aquilo que o distingue tanto do Criador
como dos animais. Mas, ao dar-lhe a capacidade de rir, Deus não
permitiria ao homem gozá-la livremente. O riso permaneceria condenado
e associado ao pecado, posto que Jesus Cristo, o Deus feito homem na
Terra, nunca teria rido durante sua existência terrena.

O riso em geral era condenado nos textos teológicos porque não haveria
na bíblia nenhum indício de que Jesus Cristo rira algum dia, apesar de
dispor das risibilitas, assim como de todas as nossas fraquezas. A
- 56 -
SANTOS

conduta de Jesus [...] aproximava perigosamente o riso do pecado:


Jesus podia pecar, mas sua vontade de não fazê-lo era mais forte".
(ALBERTI, 1999, p. 68).

Na verdade, a discussão não se limitava a provar se Cristo rira


ou não. O riso, de modo geral impôs-se como questão teológica e sobre
ela debruçaram-se grandes mestres da Igreja e seus seguidores, conforme
relata Le Goff:

Em torno do riso travou-se um grande debate, que vai longe, porque se


Jesus não riu uma única vez em sua vida humana, Ele que é um grande
modelo humano, [...] o riso torna-se estranho ao homem, ou pelo menos
ao homem cristão. Inversamente, se é dito que o riso é o próprio do
homem, é certo que, ao rir, o homem estará exprimindo melhor sua
natureza". (apud ALBERTI, 1999, p. 65).

A Igreja, especialmente na Idade Média e no Renascimento, foi


marcada por uma postura ambígua em relação ao riso: para além dos seus
debates internos tanto a instituição quanto os seus membros conviveram
com ritos e festejos cômicos que parodiavam inclusive a própria religião
(BAKHTIN, 1993; DAVIS, 1990).
Para Bakhtin (1993, p. 79), "o riso da Idade Média não é a
sensação subjetiva, individual, biológica da continuidade da vida, é uma
sensação social, universal".
- "O humor nas libera das inibições, das convenções e das leis".
(Attardo, 1994, p. 50).
Na concepção da teoria bergsoniana o riso é um corretivo social.
Bergson revela o riso como a reação inconsciente por meio da qual os
desvios sociais são sancionados, mantendo assim a hegemonia social
(Minois, 2003, p. 521). “Ora, o riso tem justamente a função de reprimir
as tendências separatistas. Seu papel é corrigir a rigidez, transformando-a
em flexibilidade, readaptar cada um a todos, enfim aparar as arestas”
(Bergson, 2001, p. 131).

- 57 -
INQUISIÇÃO, INTOLERÂNCIA E RISO NO FILME "O NOME DA ROSA"

2 Riso e intolerância em "O nome da rosa"

2.1 Sinopse do filme:

No ano de 1327 d.C. um monge franciscano, William de


Baskerville (Sean Connery), e o noviço que o acompanha, Adso de Melk
(Christian Slater), chegam a um mosteiro ao norte da Itália. Estranhas
mortes começam a ocorrer, nas quais as vítimas aparecem sempre com os
dedos e a língua roxos. O pensamento racional e a fundamentação em
Aristóteles e nos filósofos gregos permeavam o caráter investigativo de
William, razão pela qual não acredita em fatos extranaturais e busca uma
verdade embasada nos estudos científicos. Os dois irmãos, no entanto,
preferem acreditar que tudo é obra do demônio. O caso parece ser bastante
confuso e, antes que o irmão William consiga resolvê-lo, Bernardo Gui
(F. Murray Abraham), o inquisidor, chega ao mosteiro disposto a pôr fim
ao mistério torturando a todos os suspeitos de heresia, fazendo com que
confessassem sua ligação com o diabo. O embate entre o dogmatismo e a
razão é pano de fundo para esse mistério, até a constatação de que a causa
do crime estava ligada à manutenção de uma biblioteca secreta onde eram
guardadas várias obras clássicas, algumas delas condenadas pela Igreja
Católica.

2.2 Análise do filme:

No capítulo 3 o grasnar do corvo faz com que Guilherme


comente sobre o irmão que morreu a pouco tempo, o abade revela que foi
o Irmão Adelmo, o desenhista de iluminuras, quem falecera. Guilherme
mostra saber quem é esse irmão por citar todo o nome: "Adelmo de
Otanto". O abade pergunta se o conhecia e Guilherme responde "não, mas
conhecia e admirava seu trabalho. Seu humor e suas imagens cômicas
beiravam a infâmia".2

2
O escopo de discussão apresentado aqui gira em torno de uma adaptação fílmica.
Para uma abordagem acerca de como a tradução intersemiótica do texto literário
para o fílmico pode influenciar na direção tomada pelo enredo e nas questões
filosóficas por ele trazidas, confronte-se Noletto e Lopes (2019), assim como
Noletto e Costa (2017).
- 58 -
SANTOS

Nesta cena faz-se referência a um elemento em que fica muito


claro o caráter do riso na Idade Média: as iluminuras. Segundo Bakhtin,

os homens da Idade Média participavam igualmente de duas vidas: a


oficial e a carnavalesca, e de dois aspectos do mundo: um piedoso e
sério, o outro cômico. Esses dois aspectos coexistiam na sua
consciência, e isso se reflete claramente nas páginas dos manuscritos
dos séculos XIII e XIV, por exemplo, nas lendas que narram a vida dos
santos. Na mesma página, encontram-se lado a lado iluminuras
piedosas e austeras, ilustrando o texto, e toda uma série de desenhos
quiméricos (mistura fantástica de formas humanas, animais e vegetais)
de inspiração livre, isto é, sem relação com o texto, diabretes cômicos,
jograis executando acrobacias, figuras mascaradas, sainetes paródicos,
etc., isto é, imagens puramente grotescas. E tudo isso, repetimos, uma
única e mesma página. A superfície da página, assim como a
consciência do homem da Idade Média, englobava os dois aspectos da
vida e do mundo. (BAKHTIN, 1993, p. 83).

Guilherme se confessa admirador do trabalho de Adelmo,


mesmo que ele beire a infâmia. Ele tinha consciência da cisão do homem
medieval, ou seja, do homem dividido entre o oficial e o carnavalesco, a
piedade e a comicidade. Por isso, ele é indulgente com Adelmo e com as
formas de comicidade produzidas pelo imaginário medieval.
No capítulo 6 há uma seqüência de imagens, sugerindo um
encadeamento de idéias: um monge lê para o ancião Jorge o seguinte
trecho: "na sabedoria mora o pesar, aquele que aumenta seu
conhecimento, também aumenta seu sofrimento", para o ancião, o
conhecimento que vai além das verdades dogmáticas traz transtornos
àquele que o adquire. Venâncio – o tradutor grego – lê sozinho na sala dos
copistas e gargalha. Ele parece transgredir essa norma do ancião, ao ler
escondido, possivelmente por tratar-se de textos que não fazem parte da
leitura dos demais. Berengário, um monge albino, se chicoteia, como uma
forma de autopunição, por transgredir as normas da abadia. Adso tem
pesadelos, por estar enxergando um conhecimento que o atormenta,
justamente aquele evidenciado pelo mestre.
Na hora da refeição, durante as preces, um monge lê para os
demais o seguinte trecho: "os monges devem ficar em silêncio, ele só deve
expressar o que pensa quando for questionado. Um monge não deve rir.
- 59 -
INQUISIÇÃO, INTOLERÂNCIA E RISO NO FILME "O NOME DA ROSA"

Pois somente os tolos elevam a voz para rir." O riso na cena é visto como
uma transgressão do sagrado, como uma violação do dogma. Bakhtin
observa que uma das características do riso medieval é "sua ligação
indissolúvel e essencial com a liberdade". (1993, p. 77).
No capítulo 9, Adso e William entram no escritório onde estão
os monges copistas e ao ter acesso a um pergaminho, William faz as
seguintes observações a respeito das gravuras: "um burro ensinando
escritura aos bispos, o papa é uma raposa, o abade é um macaco". Fica
implícito o primeiro animal conotar uma pessoa sem inteligência, a qual
passa conhecimentos da autoridade da Igreja, o que deveria ser o contrário,
visto que bispos deveriam receber o conhecimento a fim de usá-lo com
sabedoria; recebendo-o de um "burro", provavelmente o usariam de forma
deturpada. A representação do papa como uma raposa sugere esperteza,
dissimulação; assim, essa autoridade provavelmente utiliza essa qualidade
voltada a interesses próprios. A raposa implica, neste caso, que o membro
maior da Igreja age desonestamente, ludibriando os fiéis, ou seja, utilizado
essa virtude como forma de manipular as pessoas. O último animal, para
o imaginário cristão, representa a imagem do homem degradado por seus
vícios e, sobretudo, pela vaidade, como uma alusão à atitude de abades,
representantes da intolerância religiosa. Diante disso, observa-se que o
mestre parece concordar com a ironia emergida dos desenhos: "Talento
desafiador para desenhos cômicos".
Berengário assusta-se com o rato, provocando risadas nos
demais. Irmão Jorge se enfurece dizendo: "um monge não deve rir só os
tolos elevam a voz para rir". Nesse momento, inicia-se um debate entre
Irmão Jorge e Irmão William:
"J – Espero que não te ofendas Irmão Guilherme, ouvi pessoas
rindo de coisas risíveis. Mas vós, franciscanos, pertenceis a uma ordem na
qual a alegria é vista com indulgência.
G – É verdade, São Francisco era dado ao riso.
J – O riso é uma brisa demoníaca que deforma os traços do rosto
e faz os homens se parecerem com macacos.
G – Macacos não riem. O riso é particular dos humanos.
J – Como o pecado. Cristo nunca riu.
G – Podemos ter tanta certeza?
J – Nada nas Escrituras diz que Ele riu.

- 60 -
SANTOS

No raciocínio de Jorge, se o riso é algo demoníaco, próprio do


ser humano e se o pecado, também é próprio dos humanos, então, rir é
pecado. Já para William que era franciscano, o riso é uma indulgência, rir
é particular aos homens, logo, o riso não é algo ruim e pecaminoso.
G – Nada nas Escrituras diz que Ela não riu. Até os santos
usaram da comédia para ridicularizar os inimigos da fé. Quando pagãos
mergulharam São Mauro em água fervente, ele reclamou que seu banho
estava frio. O sultão colocou a mão e se queimou.
J – Um santo imerso em água fervente não faz brincadeiras
infantis. Ele reprime os gritos e sofre pela verdade.
G – Ainda sim Aristóteles dedicou o segundo livro da "Poética"
à comédia como instrumento da verdade.
J – Já leste essa obra?
G – Não, claro que não. Perdeu-se há vários séculos.
J – Mentira! Ela nunca foi escrita. A providência não deseja que
futilidades sejam glorificadas.
G – Isso eu devo contestar...
J – Chega! Esta abadia está a sombra do pesar e tu invades
nossos sofrimentos com troças tolas".
Para William não há argumentos substanciais favorecendo a
posição de Jorge. Para provar suas certezas, o mestre utiliza-se de uma
falácia de autoridade, em que atribui a um santo e a um filósofo a
experiência do riso e do humor. Ao continuar o embate, Jorge, sem
argumentos consistentes e nem suficientes, encerra o diálogo
bruscamente, deixando bem clara sua posição e sua intolerância em
relação ao riso.
A polêmica sobre a função do riso existia dentro do espaço
clerical, os dois opositores Irmão Guilherme e Irmão Jorge partem do
princípio que o riso tem um poder singular, para um este poder singular
pode ser usado pelo clero, para o outro o uso é perigoso, pois pode romper
com a hegemonia do clero.
No capítulo 29, ao perceber que Guilherme usava luvas ao ler o
livro Jorge se dá conta do seu erro e foge com o livro. E Guilherme tenta
questionar o ancião para descobrir onde ele está seguindo-o pela voz:

- 61 -
INQUISIÇÃO, INTOLERÂNCIA E RISO NO FILME "O NOME DA ROSA"

"G – Venerável Irmão, vários livros falam da comédia. Por que


este aqui te provoca tanto medo?
J – Por que é de Aristóteles.
G – Mas o que é tão alarmante em relação ao riso?
J – O riso mata o temor. Sem o temor, não pode haver fé. Pois,
sem temer ao demônio, não há necessidade de Deus.
G - Mas não eliminarás o riso eliminando este livro.
J – Certamente que não. O riso continuará sendo a recreação do
homem comum, mas o que acontecerá se, graças a esse livro, homens
cultos admitirem ser permissível rir de tudo? Podemos rir de Deus? O
mundo entraria em caos. Portanto, selo aquilo que não deveria ser dito na
tumba que me tornarei."
A Intolerância do discurso clerical pela voz de Jorge de Burgos
advém do fato de o riso desacralizar a ordem construída pelo clero. De
acordo com Bakhtin o riso "liberta não apenas da censura exterior, mas
antes de mais nada do grande censor interior, do medo do sagrado, da
interdição autoritária, do passado, do poder, medo ancorado na espírito
humano há milhares de anos". (1993, p. 81)
Nessa fala do Jorge o riso não torna o homem inferior, mas
superior até chegar ao ponto de não se necessitar de uma ordem sagrada
para justificar a vida.

Considerações finais

No filme o riso é o que se opõe a inquisição e a intolerância,


porque destrói a ordem do sagrado que é o fundamento do poder clerical.
Daí porque ele tenha sido associado ao diabo durante todo o filme, visto
que ele é contra a Igreja e contra Deus por ter uma terrível capacidade de
libertar do medo o povo cristão que deveria ser temente a Deus e submisso
às ordens da Igreja. Fica claro que para Jorge de Burgos, o riso tem um
caráter subversivo, acenando aos homens com a falsa promessa de
felicidade, fora das leis e da opressão cristãs, enchendo suas mentes com
imagens de um mundo alegre, sem as restrições e as culpas que a religião
lhes infligia devendo, portanto, ser evitado e condenado. O filme
evidencia também que a Igreja Católica medieval foi incapaz de construir
um discurso unificado sobre os perigos do riso. Há uma querela evidente

- 62 -
SANTOS

entre a ordem franciscana (Guilherme) e a ordem beneditina (Jorge), posto


que os franciscanos consideravam o riso como uma coisa natural, já os
beneditinos o consideravam como diabólico e perigoso. As oposições
dividiam-se em defesas da repressão e da domesticação do riso, ora visto
como pecado, ora como atividade necessária ao espírito. Mas que uma
questão de fé, a discussão revela a ambiguidade do riso e, por conseguinte,
o paradoxo da condição humana: o riso, dom concedido por Deus ao
homem, é ao mesmo tempo o sinal de sua superioridade perante os animais
e a marca do seu pecado e inferioridade diante de Deus.

Referências:

ABLBERTI, Verena. O Riso e o risível na história do pensamento. Rio


de Janeiro: Zahar/ FGV, 1999.

ATTARDO, Salvatore. Linguistic theories of humor: Berlim; New


York: Mouton de Gruyter, 1994.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: O contexto de François Rabelais. Brasília: HUCITEC,
1993.

BERGSON, Henry. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade.


São Paulo: Martins Fontes, 2001.

DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no


início da França moderna. São Paulo: Paz e Terra, 1990.

FRANÇA, Maria Teresa. A construção linguística do riso nas crônicas


de José Simão. São Paulo, USP, 2006. (tese, dep. De letras clássicas e
vernáculas)

MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: UNESP,


2003.

- 63 -
INQUISIÇÃO, INTOLERÂNCIA E RISO NO FILME "O NOME DA ROSA"

NOLETTO, I. A. C.; COSTA, M. T. D. A. Nadsat - The Language of


Violence: from Novel to Film. Ilha do Desterro, 70, n. 1, p. 257-264,
2017.

NOLETTO, I. A. C.; LOPES, S. A. T. Heptapod B and the Paradox of


Foreknowledge: Confronting Literature and its Filmic
Adaptation. Arcadia, 54, n. 1, p. 86–100, 2019.

- 64 -
A SUPOSTA TRAIÇÃO NO ROMANCE DOM CASMURRO

-V-
A SUPOSTA TRAIÇÃO NO ROMANCE DOM CASMURRO DE
MACHADO DE ASSIS: UM OLHAR SOBRE O CIÚME
PATOLÓGICO DE BENTINHO.
_______________________

Gildevam Pereira dos Santos1


Ma. Lara Ferreira da Silva2

1 Introdução

O presente trabalho trata da suposta traição de Capitu apresentado


na obra “Dom Casmurro”. Buscou-se apresentar os traços dessa suposta
traição dentro da obra referenciando alguns autores que escreveram sobre
esta tratativa. Percebe-se que Dom Casmurro é uma obra bastante lida no
campo da literatura, destarte, é crucial fazer um esboço desta produção
literária analisando o tema “traição”, levando em consideração que é um
tema atemporal que transpassa todas as épocas e que deixa o sujeito leitor
curioso em saber se houve ou não a traição de Capitu ao seu esposo
Bentinho.
Nesta perspectiva, Machado de Assis visando o contexto social
transcreve a realidade e as mazelas do dia a dia. Levando em conta a trama
da obra, faz-se necessário uma análise minuciosa das ações de Capitu e
Bentinho para entender o contexto de trama irônica posta pelo autor.
A partir desses pontos busca-se responder as seguintes perguntas:
Qual motivo o autor teria colocado uma trama irônica nesse romance?
Capitu teria mesmo traído Bentinho? O ciúme de bentinho seria uma
patologia ou ele teria motivo para o referido ciúme?
O referido trabalho tem como objetivo geral analisar de forma
clara, o romance “Dom Casmurro” de Machado de Assis, identificando os

1
Graduação em Letras Português pela UFPI - campus de Campo Alegre de
Lourdes. – BA.
2
Professora de Letras-Inglês da UESPI, campus Parnaíba. Mestra em Letras pela
Universidade Federal do Piauí (UFPI). Graduada em Letras-Inglês pela
Universidade Federal do Piauí.
- 65 -
SANTOS E SILVA

traços da suposta traição de Capitu ao seu marido e o ciúme patológico de


Bentinho para a melhor compreensão do sujeito leitor.
Os objetivos específicos do trabalho são: estudar o romance “Dom
Casmurro” e o contexto em que foi escrito; compreender os motivos que
levam o suposto ciúme patológico de Bentinho como a trama da obra;
identificar os traços da suposta traição de Capitu dentro da obra.
O referido trabalho teve como procedimentos metodológicos a
pesquisa bibliográfica, realizada na leitura da obra do autor, livros de
autores sobre a obra, como: Afrânio Coutinho (1990), Candido (1995),
Carvalho (2010), Freud (1922), Lacan (1966), Santiago (1978), Schwarz
(1997), revistas, artigos e outros trabalhos escritos sobre a temática.
O estudo se baseará em três seções distintas que compreenderão o
resultado da análise, visando esclarecer a trama da obra apresentada pelo
autor sobre o possível ciúme e a suposta traição acredita-se que fazendo
uma boa leitura crítica da obra, baseados em outros autores podem
desvendar essa problemática.

1 Contexto histórico, autor, corrente literária e obra

1.1 Contexto histórico

O Brasil do século XIX, mais precisamente nas últimas décadas


do referido século, é marcado pela crise da monarquia que vai perdendo
poder, ocorrendo assim, um avanço dos ideais abolicionistas e
republicanos que movimenta o país em movimentos e revoltas, à
quebra da unidade política do império e a urbanização.
As lutas sociais provocadas pelo ideal libertário, a evolução
científica como um novo caminho para a solução das coisas e, em
decorrência, o movimento histórico que surge através dos mesmos,
ampliaram a base para a arte literária do realismo. Desta forma, o artista
literário busca engajar sua própria vida, e sua realidade nos seus escritos,
o que vai fluir tão fortemente no realismo e nas correntes que representam
as mesmas ideias como o naturalismo e o parnasianismo.

- 66 -
A SUPOSTA TRAIÇÃO NO ROMANCE DOM CASMURRO

O nascimento do realismo no Brasil acontece no ano de 1881, sob


a publicação da obra prima “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de
Machado de Assis. O Realismo de Machado de Assis é um realismo social,
sem dúvida alguma, e sem prejuízo de outras leituras que se queira fazer
do autor.

1.2. O autor Machado de Assis

Joaquim Maria Machado de Assis, conhecido como Machado de


Assis, nasceu no morro do livramento, numa chácara de uma viúva de um
influente político do Primeiro Império. Neto de escravos libertos, filho de
pai negro e mãe açoriana, Joaquim Maria Machado de Assis nasce
mestiço, sim, mas em uma comunidade em que pessoas de sua condição
eram tratadas de maneira diferenciada. Deve-se mencionar que o menino
tem por madrinha de batismo a proprietária da chácara em que nascera.
Ainda, no dia de seu batizado, seu pai batiza uma criança negra da mesma
chácara, o que revela o relativo prestígio de que ali gozava.
Perdeu seu pai e sua mãe ainda muito cedo, marcado por essa
ausência, foi criado pela sua madrasta conhecida pelo nome de Maria Inês,
começou seus estudos e como gostava muito da leitura percorria livros de
diferentes escritores e nacionalidades constituindo assim sua vasta cultura
literária. Por volta dos 16 anos de idade, Machado de Assis entrou para a
imprensa nacional como tipógrafo aprendiz, já com seus 18 anos,
ingressou na editora de Paula Brito, fez seus primeiros escritos em forma
de versos, na década de 1860, escreve quase todas as suas comédias e os
versos ainda românticos das “Crisálidas”. Aos 30 anos de idade, já
conhecido pelos seus escritos, casa-se com Cardina Xavier de Morais, sua
companheira que o acompanha seus passos até a morte.
Machado de Assis, que se destacou na crítica literária da época,
saindo do Romantismo, Realismo até o Naturalismo, neste tempo,
escreveu textos de em forma de romance, conto e teatro mostrando sua
versatilidade e sua extensa cultura Literária.

1.3. A obra: algumas considerações

- 67 -
SANTOS E SILVA

A obra Dom Casmurro, uma das mais extraordinárias de Machado


de Assis, escrita no ano de 1899, que só ganhou as bancas no ano de 1900
e até hoje instiga seus leitores a desvendar os mistérios apresentados pelo
autor. A referida produção literária tem sido analisada sob os mais
diversos ramos na literatura. Na maioria dos casos o foco varia entre o
narrador, o público leitor, as personagens que dão vida a obra, o tempo ou
o espaço em que a obra está localizada. Existem outros que focaliza seus
trabalhos na grande trama da obra: a suposta traição de Capitu que paira
sobre um trecho até o fim do romance.
Nesta perspectiva, é possível intuir que não se reduz a um enredo
bem ordenado o sucesso das obras machadianas, pois o mesmo faz uso das
mais diversas práticas no universo da linguagem para conseguir a atenção
do seu leitor, como o que acontece especificamente em “Dom Casmurro"
sendo uma das grandes obras de Machado de Assis e que ratifica
justamente esse apreciar sensato e terminante que o autor distendia sobre
toda a sociedade brasileira.
Sendo assim, Dom Casmurro é um dos romances de Machado de
Assis que mais tem suscitado interpretações. No entanto, oferece-se a
muitas interpretações, e é importante observar como a compreensão do
livro se alterou com o decorrer do tempo, o qual alguns autores
conceituam como a atemporalidade da obra.
No que diz respeito às referidas personagens da obra, cada uma
segue um tipo de estímulo indefinido que resulta numa experiência mais
sentimental do que real no espaço em que se encontra, característica
sublime das personagens das obras de Machado de Assis, mais
precisamente de Bento e Capitu na obra Dom Casmurro.
Nesta perspectiva, o foco da narrativa é sempre em primeira
pessoa e toda a obra é uma lembrança da vivência do personagem, desde
os primórdios de sua vida. O tempo da narrativa da obra é psicológico, e
não cronológico, isso porque o narrador personagem faz uma descrição
daquilo que recorda sobre sua vivência, possibilitando o leitor averiguar a
capacidade mental do mesmo. É por isso que a definição que o narrador
faz de Capitu, como uma pessoa instável e lasciva, deve ser questionada
pelo público leitor, justamente por perceber que o sentimento de ciúme
exasperado de Bento pode ter deturpado a figura da personagem.

- 68 -
A SUPOSTA TRAIÇÃO NO ROMANCE DOM CASMURRO

2. Capitu e a suposta traição a Bento Santiago

Todo questionamento feito acerca da obra, a saber, a trama gira


em torno da suposta traição de Capitu expressa na obra pelo personagem
narrador Bento Santiago. Machado de Assis, ao escrever a obra, deixa a
cargo do leitor guiar sua própria interpretação e tirar suas conclusões do
referido assunto. Dentre os temas está presente a personagem Capitu; a
visão da mulher no período que Machado de Assis escreveu a obra; o
conceito de traição e as ações da personagem dentro da obra. Desta forma,
a partir desse pressuposto se obtém uma visão mais ampla do sentido da
obra.

2.1. A personagem Capitu

Capitu se apresenta dentro da obra como uma personalidade


feminina diferenciada do ideal feminino da época, por suas atitudes e
comportamentos. Com relação à personalidade de Capitu na obra são
várias as leituras feitas da personagem. Muitos críticos, que serão
elencados posteriormente, se divergem ao descrever a mesma. Nesta
perspectiva, a primeira descrição feita da personagem é do próprio
Bentinho que descreve com detalhes as características físicas de sua
vizinha, da qual não conseguia tirar os olhos, pois ela o fascinava.
De acordo com Lúcia Miguel Pereira em sua obra “Machado de
Assis: estudo crítico e biográfico” analisa a personagem machadiana
partindo da sua beleza física até a sua personalidade. Segundo ela, porque:

Capitu é uma linda mulher, de atrativos bem femininos, Bentinho um


rapaz cheirando a seminário (...) Casado com uma mulher de fogo, ele
próprio mais propenso à interiorização, desconfiado de si, Bentinho não
podia deixar de ter ciúmes. (PEREIRA, 1955. p. 240).

Em conformidade com a autora, que demonstra sua admiração


pela personalidade da personagem, descreve que a beleza, a feminilidade,
a energia e a vivacidade de Capitu são motivos que causaram a
- 69 -
SANTOS E SILVA

insegurança de Bentinho, bem como seu ciúme. A mesma descreve Capitu


como um símbolo feminino que se destaca em seu contexto histórico como
uma mulher forte diante da visão distorcida da mulher do século XIX.
Ao se deparar com a personagem Capitu dentro da literatura
Brasileira, John Gledson diz: “Capitu, talvez a mais famosa personagem
feminina da Literatura Brasileira, tem suas complexidades e seus encantos
(...) ela é, também, o resultado do seu lugar na sociedade, e possui um
desejo natural de ascender socialmente.” (GLEDSON, 1991. p. 45).
O autor salienta que, embora Capitu tivesse apenas catorze anos,
já alcançara a maturidade com suas ideias atrevidas e, assim, ela obtém o
caminho diferente das demais mulheres da época. Assim, a personagem
se apresenta na obra como uma personalidade diferenciada no seu tempo,
desafiando seu contexto social e que com sua beleza e atitude decisiva,
leva o leitor a fazer diversas leituras de sua personalidade.
Analisando todo contexto da obra “Dom Casmurro”, percebe-se
que Capitu, desde sua juventude, se apresenta como uma pessoa decidida
e convicta de suas ações, com uma postura de liberdade e desprendida do
poder do marido, o que era incomum na época.

2.2. A visão da mulher no século XIX e seu papel na sociedade

O século XIX ficou marcado por intensas mudanças na sociedade


brasileira. Mudanças essas que influenciaram nas ações culturais, nos
grandes centros urbanos e na zona rural, além de interferir no inconsciente
das pessoas. Foi nesse período que as mulheres se sentiram livres para se
pensar em seus sonhos e desejos, mesmo com grande receio da rejeição
que podia sofrer por divergir do que a família e o povo em geral
imaginavam.
Machado de Assis descreveu em seus escritos vários casos dessas
mudanças ocorridas na sociedade Brasileira do século XIX,
exclusivamente os assuntos que diz respeito às mulheres brasileiras. O
escritor buscou mostrar os dois lados do comportamento das mulheres no
contexto social, tanto aquelas que buscavam a obediência social como
também aquelas que lutavam por seu espaço e inserção social.
Outro ponto importante a ser abordado acerca da mulher do século
XIX é o casamento, pois nesse período o casamento era considerado como

- 70 -
A SUPOSTA TRAIÇÃO NO ROMANCE DOM CASMURRO

uma das poucas possibilidades de inserção e ascensão social, também de


valorização do status familiar. Similarmente, era um meio de garantir a
identidade no meio social, e passava a ter um valor e o respeito do povo,
pois, a partir do casamento, as mulheres obtinham uma atribuição de
elevar o status da família pertencente, com seu respeito, comportamento e
sua imagem.
Somente no fim do século XIX, que começa a aparecer preleções
com o assunto da emancipação feminina e os meios de comunicações
sociais passam a divulgar escritos sobre o tema, permitindo um maior
campo de ação para as mulheres do século referido.

2.3. O conceito de traição e as ações da personagem na obra


É perceptível que a traição é um conceito bastante utilizado dentro
da literatura realista, que buscava descrever a realidade vivida pela
sociedade da época. Se tratando de traição, é preciso ir à origem da palavra
que vem do latim “traditĭo”, que significa: o erro que rompe a fidelidade
ou a constância que se deveria preservar para com alguém ou algo.
Machado de Assis apresenta em sua obra a trama de traição
descrita pela personagem Bentinho que desconfia de sua amada. Os traços
de traição apontados por ele na obra, parte do seguinte trecho:

Se se falava nela, em minha casa, prestava mais atenção que dantes, e,


segundo era louvor ou crítica, assim me trazia gosto ou desgosto mais
intensos que outrora, quando éramos somente companheiros de
travessuras [...] tudo isto me era agora apresentado pela boca de José
Dias, que me denunciara a mim mesmo... (ASSIS, 2003, p. 36).

Para o narrador, a partir das visitas de José Dias que ao ser


indagado sobre Capitu, transpassava desconfiança na postura e
comportamento da mesma. Esse é o primeiro sinal ao qual Bentinho se
apega para traçar seu ciúme sobre sua amada Capitu. Com o passar do
tempo e as diversas intromissões de José Dias, esse cálice de Bentinho vai
desenvolvendo, fazendo-o “bispar” Capitu de um modo bastante particular
e vago:
Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas,
aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa
- 71 -
SANTOS E SILVA

buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e


escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. (ASSIS, 2003,
p. 69).

Percebe-se que o narrador descreve com olhar de desconfiança o


comportamento e ação de Capitu, com um sentimento de receio a visão
que se tinha da mesma. Um ideal típico masculino da época apresentado
por Machado de Assis que sempre usava os fatos da realidade para
denunciar a sociedade que se insere.
Bento Santiago faz um arquétipo sobre Capitu, descrevendo fatos
que o incriminem numa suposta traição, busca nos mais minuciosos traços
de sua amada provas para aquilo que já está enraizado em sua mente.
Machado de Assis, ao descrever suas personagens, deixa para o leitor a
livre interpretação dos supostos fatos e a capacidade de cada um inferir
suas ideias.
3 O ciúme patológico de Bento Santiago “bentinho”

Ao se debruçar sobre a obra Dom Casmurro de Machado de Assis,


percebemos as várias temáticas abordadas pelo autor como enredo de sua
obra. Uma delas é o ciúme de Bentinho com sua mulher Capitu, na
desconfiança com seu melhor amigo Escobar, que posteriormente nascerá
a dúvida sobre a suposta traição de Capitu.
Baseando-se nas ideias de alguns autores como Freud (1976) e
Lacan (1966), percebe-se que o ciúme, julga algo onde não há nada, onde
há deficiência de algo. Essa presunção e a forma como se dá revela o que
aquele sujeito pensa que ama quando ama alguém. O ciumento interpreta
em busca do objeto do amor. Neste sentido, quanto mais ciúme mais
artifício, mais rigidez, mais habilidosa a imaginação.
Segundo Freud (1976), o ciúme “normal” é um estado emocional
que pode ser comparado ao luto, caracterizando-se pelo sofrimento
causado pelo pensamento de perder o objeto amado; pela ferida narcísica
e também de sentimentos de inimizade contra o rival bem-sucedido. Já
para Lacan (1966), o ciúme é um sentimento ligado a um tipo bem
particular de experiência: “uma identificação com o irmão pendurado no
seio da mãe.”

- 72 -
A SUPOSTA TRAIÇÃO NO ROMANCE DOM CASMURRO

Em conformidade com os princípios literários de Freud (1976) e


Lacan (1966): “O sujeito só pode se amar por meio do OUTRO – Outro
fora EU”. Nesta perspectiva, os autores afirmam que o objeto do amor é
externo ao amante, o que possibilita experiências entre amor e ódio. Neste
sentido, os ciúmes patológicos consistem em uma perturbação, fazendo
com que a pessoa ame e odeie ao mesmo tempo. Características essas, que
possibilita comparar com o comportamento de Bentinho na obra Dom
Casmurro de Machado de Assis.

3.1 A personagem Bento Santiago

Protagonista e narrador da história, na infância e na adolescência


é chamado de Bentinho. Na idade aproximadamente de 55 anos, quando
escreve o livro que lemos é D. Casmurro. Filho de D. Glória e de Pedro
de Albuquerque Santiago, Bentinho é uma criança meiga, benévola e
crente, segundo a perspectiva pela qual ele mesmo se vê.
Bentinho, provavelmente por ser filho único de mãe viúva, foi um
garoto bastante mimado e superprotegido, quando criança ele
praticamente não teve contato com pessoas que não fossem do seu
convívio familiar ou do estreito círculo de relações sociais de sua mãe.
Segundo Nolasco, diz que:

A partir da adesão à representação do “homem de verdade”, como


referência para a socialização dos meninos, admite-se que, “do ponto
de vista emocional, é necessário tomar uma série de cuidados em suas
vidas para que quando adultos eles se transformem nestes tais homens”
(NOLASCO, 2001, p. 84).

Nesse contexto, por amante extremoso da mãe e das convenções


sociais de seu tempo, inábil para as operações do cálculo, o menino é um
ser destituído de vontade própria. Ele é, ou pensa ser, aquilo que os outros
pensam que ele é. Sua mãe, muito religiosa, havia prometido que se o filho
nascesse com saúde, faria dele padre. Assim, aos quinze anos, Bentinho
se vê obrigado a partir para o seminário, apesar de saber que não tem
vocação e que está apaixonado.
No seminário, o protagonista encontra um grande amigo e
confidente, de quem se torna inseparável: Escobar. Confessa ao
- 73 -
SANTOS E SILVA

companheiro o amor por Capitu e este o apoia, dizendo que também quer
sair do seminário e correr atrás da sua paixão: o comércio. Aos dezessete
anos, Bentinho consegue sair do seminário e começa a estudar direito,
concluindo o bacharelato aos vinte e dois.
Nessa altura, casa com Capitu e seu amigo Escobar casa com
Sancha, amiga de infância da noiva de Santiago. Os dois casais são muito
unidos. O narrador tem um filho com a mulher a quem dá o primeiro nome
de Escobar, Ezequiel, a saber. Os casais passam a conviver intensamente.
Ao concluir sua narrativa, finalmente o processo de transformação
está completo e Bento Santiago assume, definitivamente, a identidade de
Casmurro. A compreensão desse personagem é, na verdade, o grande
desafio proposto pelo livro. Toda nossa análise, como se verá, consistirá
no esforço interpretativo que nos deve conduzir a tal resultado.

3.2. Os traços de ciúme de Bentinho dentro da obra

Durante toda sua fase de criança, ao lado de Capitu, Bento


Santiago despertou uma paixão mortal pela bela jovem, na qual pretendia
se casar quando adultos.
A semente do amor é plantada no ‘ingênuo’ Bentinho, por José
Dias, que segundo Caldwell (2002): “[...] planta também a suspeita de que
Capitu estaria tramando e acabaria por enganá-lo, através do comentário
sobre os ‘olhos de cigana’” (CALDWELL, 2002, p.25). O agregado diz a
Bentinho que “Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu [...].
Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e
dissimulada” (ASSIS, 1975, p.102). Tal comentário desperta em Bentinho
um outro sentimento que possui estreita ligação com o amor, ou seja, o
ciúme.
A primeira cena de ciúme apresentada na obra nasce com as visitas
dele, como por exemplo: [...] “Capitu como vai?” então responde o
agregado a Bentinho: Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha.
Aquilo enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com ela
(ASSIS 1975 p. 140). A partir dessa passagem nota-se que Bentinho tem
certo espanto e “frio na barriga”, com receio de perder a sua amada. A
partir daí, Bentinho tem sua primeira cena de ciúme, a ponto de ficar
atordoado e chorar todas as noites.

- 74 -
A SUPOSTA TRAIÇÃO NO ROMANCE DOM CASMURRO

A segunda passagem de ciúme sofrido por Bentinho ocorre na


seguinte passagem da obra:

O cavaleiro não se contentou de ir andando, mas voltou a cabeça para


o nosso lado, o lado de Capitu e olhou para Capitu, e Capitu para ele;
o cavalo andava, a cabeça do homem deixava-se ir voltando para trás.
Tal foi o segundo dente de ciúme que me mordeu. A rigor, era natural
admirar as belas figuras; mas aquele sujeito costumava passar ali, às
tardes; morava no antigo Campo da Aclamação, e depois... e depois...
Vão lá raciocinar com um coração de brasa, como era o meu! Nem
disse nada a Capitu; saí da rua à pressa, enfiei pelo meu corredor, e,
quando dei por mim, estava na sala de visitas (ASSIS, 1975, p.166).

Bento Santiago associa o famoso cavaleiro ao peralta, citado por


José Dias no seminário, aquilo levou Bento a querer esclarecer suas
dúvidas em relação ao peralta citado por José Dias, mas lhe faltava
coragem em procurar sobre o referido assunto.
Fato que é confirmado na seguinte passagem o seu egocentrismo
doentio, se tornando uma pessoa angustiada:

Escapei ao agregado, escapei a minha mãe não indo ao quarto dela, mas
não escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atrás de mim.
Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me à cama, e rolava comigo,
e chorava, e abafava os soluços com a ponta do lençol. Jurei não ir ver
Capitu aquela tarde, nem nunca mais, e fazer-me padre de uma vez.
Via-me já ordenado, diante dela, que choraria de arrependimento e me
pediria perdão, mas eu, frio e sereno, não teriam mais que desprezo,
muito desprezo; voltava-lhe as costas. Chamava-lhe perversa. Duas
vezes dei por mim mordendo os dentes, como se a tivesse entre eles.
(ASSIS, 1975, p.168).

Em detrimento dessa abordagem, imagina-se Bento Santiago


numa angustia tão grande e tão conturbada a ponto de se imaginar
homicida dentro de suas viagens de pensamento conturbado, cogitava até
em voltar a sua vida religiosa e tornar-se padre. Promete não ver mais sua
amada. Dessa maneira o medo de perder sua amada, a imaginação de ela
ter arranjado outro transforma sua personalidade, cria-se assim uma
espécie doentia de ciúme.

- 75 -
SANTOS E SILVA

Diante do debate apresentado acima, certifica que Bento Santiago


vivia uma paixão arrebatadora por Capitu e, na insegurança da juventude
buscava em seu imaginário uma forma que pudesse aliviar a angústia,
provocada pela própria imaginação, de perder de alguma forma sua
amada.
Certifica-se que nem mesmo a morte do amigo é capaz de colocar
fim ao ciúme de Bento e desequilibrar o triângulo amoroso. Sua própria
esposa percebe o ciúme doentio que ele nutre pelo morto, como podemos
notar na fala: “Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus
ciúmes!” (MACHADO DE ASSIS, 1975, p.249). A principal batalha de
Bento, de acordo com Gilberto Pinheiro Passos,

[...] não se dá com o rival vivo, mas com sua memória, pois começa no
enterro do amigo. Daí a importância de se relembrarem as patéticas
relações de semelhança com Ezequiel. A morte é o ponto de partida
para o crescer das suspeitas e o coroamento do ciúme (PASSOS, 2003,
p. 88).

Escobar sempre ocupará na mente do senhor Santiago, o terceiro


vértice desse triângulo amoroso. Contudo, como bem observou Schwarz
(1997, p.16): “[...] não há como ter certeza da culpa de Capitu, nem da
inocência, [...] em compensação, está fora de dúvida que Bento escreve e
arranja a sua história com a finalidade de condenar a mulher”.

3.3 A patologia do ciúme de Bento Santiago

Quando se trata de uma patologia, referimo-nos a origem, natureza


e sintomas de uma doença. Em relação ao ciúme de Bento Santiago,
percebe-se que desde sua fase como religioso que já vivenciava suas crises
de ciúmes por Capitu. O fato é que seu ciúme é anormal, devido seu
egocentrismo em tê-lo Capitu somente como sua. Isso implica na
assonância de seu ciúme, tornando cada vez mais profundo e perigoso.
Deixando de ser uma simples proteção do amor e passando a ser uma
doença patológica, que evolui a cada cena descrita na obra.
Em “Dom Casmurro”, a imaginação de Bento Santiago atua como
elemento de estímulo e provocação de seu ciúme. O senhor Santiago ao

- 76 -
A SUPOSTA TRAIÇÃO NO ROMANCE DOM CASMURRO

recorrer ao seu imaginário faz com que tal sentimento seja ainda mais
forte, amargo e torturante. De acordo com Nicolas Grimaldi,

[...] o ciúme seria assim tanto mais torturante quanto mais entregue ao
imaginário, e a imaginação tanto mais intensa e dolorosa quanto mais
visualizasse a mulher amada numa infinidade de encontros, situações,
gestos e comportamentos possíveis (GRIMALDI, 1994, p. 46).

De acordo com o autor, o imaginário do personagem é quem


alimenta a tortura causada pelo ciúme, ao projetar em sua mente as ações
e comportamento de sua amada. Dessa maneira, idealizando uma mulher
que não existe, ele se aniquila e abre uma lacuna, como Bento acredita. A
suspeita gira em torno da proposição “Ela os ama”, que ainda não tem
caráter de certeza delirante (QUINET, 2003).

O perseguido vai buscar algum apoio na realidade para a construção do


seu delírio. Bento usa os olhos de ressaca para apoiar sua certeza
delirante [....]. Ele não encontra a via de sublimação do seu desejo
homossexual, fica perseguido pela vertente inconsciente da sua
instância crítica, ou melhor, do seu superego, e vai então recorrer a dois
mecanismos de defesa: a negação e a projeção. É Capitu que ama!
(FREITAS, 2001, p.136, grifo do autor).

O delírio de ciúmes baseia-se na mutação da relação amorosa do


casal em uma relação triangular. É sobre o rival que é introduzido na
relação amorosa, que são projetados ressentimento e ódio acumulados
pelas frustrações, que sofre ou sofreu o arrebatador ciumento.
Foi, portanto, admitindo os impulsos de traição em Capitu, que se
fez possível a construção de seu sintoma, tomando em consideração o
conhecimento que o neurótico costuma ter do inconsciente do outro. Desta
forma, conforme Quinet:

A partir da constituição progressiva do delírio de ciúmes, constamos a


existência em Dom Casmurro dos três tipos de ciúmes descritos por
Freud (1922), o projetivo, o competitivo e o delirante, que sempre se
encontram, segundo ele, presentes no caso da paranoia (QUINET,
2003, p. 206).

- 77 -
SANTOS E SILVA

Mediante todas essas pontuações, percebe-se que a obra de


Machado de Assis revelou-se um documento clínico literário, devido à
consistência e densidade psicológica de “Dom Casmurro”, sendo
perfeitamente aplicáveis às teorias psicanalíticas.

Considerações finais

Ao fim deste estudo, a Traição de Capitu a Bento Santiago


continua sendo um mistério. Percebe-se que Machado de Assis tinha uma
peculiaridade ao escrever suas obras, com estilo, linguagem e método
diferente dos demais escritores de sua época. Ele foge dos padrões
estéticos vigente atribuindo em suas obras a realidade social e os
problemas enfrentado na mesma.
Na obra “Dom Casmurro”, Machado de Assis apresenta seus
personagens diferenciados, nela o narrador aparece como o autor. Nesta
perspectiva, cria-se um mecanismo que permite o leitor fazer diversas
inferências sobre a trama, partindo do ideal concebido de cada
personagem.
No que se referem à personagem Capitu, vários autores se
surpreendem pelas características e atitudes da mesma, não se hesita em
construir personagens femininas, denominadas ou apelidadas de Capitu,
que remetem a Capitu de origem. A personalidade criada por Machado de
Assis tem a capacidade de atrair para junto de si outros textos que o
engrandece.
Nota-se, que no decorrer da obra, a personagem se apresenta como
um indivíduo com dupla personalidade. Através da visão de ciúme
apresentado pela personagem dentro da obra, percebe-se que o mesmo se
torna portador de uma patologia de ciúme capaz de se transformar e
subjugar a sua própria amada.
Percebe-se que é um trabalho extenso e bem idealizado, de uma
linguagem feita sobre a caracterização de Bentinho, que é enigmático tal
qual a obra, bem como a substância humana que habita qualquer um dos
curiosos leitores. Diante deste fato, não se pode fazer afirmações com
veemência sobre a obra, pois se trata da interpretação do leitor, onde cada
um tem uma visão acerca dos fatos presente na trama.

- 78 -
A SUPOSTA TRAIÇÃO NO ROMANCE DOM CASMURRO

Referências

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 9 ed. São Paulo: Martin Claret,
2010.

CALDWELL, Helen. O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. São


Paulo: Ateliê Editorial, 2002. p. 13.

CANDIDO, Antônio. “Esquema de Machado de Assis.” In: Vários


Escritos. São Paulo: Duas cidades, 1995.

CARVALHO, Luiz Fernando. Capitu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,


2010.

COUTINHO, Afrânio, SOUSA, J. Galante. Enciclopédia de literatura


brasileira. Rio de Janeiro: FAE, 1989.

FREITAS, Luiz A. Freud e Machado de Assis: uma interseção entre


psicanálise e literatura. 3 ed. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2004.

FREUD, S. (1976/2010). Conferência XXXIII: Feminilidade. In: O mal


estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e
outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

GLEDSON, John. Machado de Assis: impostura e realismo: uma


reinterpretação de Dom Casmurro. Tradução de Fernando Py. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.

GRIMALDI, Nicolas. O ciúme: estudo sobre o imaginário proustiano.


Tradução Antônio de Pádua Danesi. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994..

LACAN, J.. (1966) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

NOLASCO, Sócrates Alvares. O mito da masculinidade. 2 ed. Rio de


Janeiro: Rocco, 1995.

PASSOS, Gilberto Pinheiro. Capitu e a mulher fatal: análise da presença


francesa em Dom Casmurro. São Paulo: Nankin Editorial, 2003.

- 79 -
SANTOS E SILVA

PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico.


Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1995.

QUINET, Antônio. Teoria e clínica da psicose. 2ª Ed. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2003.

SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras,


1997.

- 80 -
A ESCRITA NYLON DE THOMAS PYNCHON

- VI -
A ESCRITA NYLON DE THOMAS PYNCHON: O MUNDO DO
FORA EM O LEILÃO DO LOTE 49

____________________________

Raylanne Raquel Leal Costa1

Introdução

O leilão do lote 49, livro publicado pela primeira vez em 1966, é


o segundo romance de Thomas Pynchon, e apesar de ser um livro curto,
mantém as características de uma narrativa repleta de personagens e
dezenas de histórias que se acumulam uma dentro da outra. Há na obra
uma narrativa central dentro da qual as outras se encontram: a saga de
Oedipa Maas, personagem medular designada inventariante no testamento
de Pierce Inverarity, seu ex-amante. Oedipa Maas ao invés executar de
forma objetiva o inventário, adentra em uma trama de conspirações e
pistas falsas (ou não), envolvendo organizações secretas, uma banda de
rock chamada “Os paranóicos” (PYNCHON, 1993, p.18) com letras de
música cômicas, peças de teatro antigas, correio clandestino, labirintos de
conspirações nos quais o leitor entra sem perceber.
A forma como a obra está estruturada – uma teia de histórias em
que sua personagem principal não sabe se está enlouquecendo, entrando
em paranóia, sendo perseguida, ou se tudo não seria mesmo verdade – e o
modo como Pynchon cria essa estrutura, usando uma linguagem afável,
elástica, ativa, leva a refletir sobre a noção do fora pensada por Blanchot.
Em sua obra intitulada O livro por vir, Maurice Blanchot fala da diferença
existente entre o real e o irreal, que o real é apenas a irrealidade negada,
“há menos realidade na realidade” (2013, p. 140).
O mundo criado por Thomas Pynchon em O leilão do lote 49 é um
mundo inteiro, sem subtrações, sem o emagrecimento da realidade, um
mundo criado a partir do impensável, do irreal, do impossível. As

1
Mestra em Letras pela Universidade Federal do Piauí.
- 81 -
COSTA

metáforas existentes no livro, através das quais o autor conduz sua


metáfora central da entropia comunicacional, encontradas na fala das
personagens, criam imagens que carregam uma atmosfera, possibilitando
e desafiando o leitor a pensar de forma diferente da linha reta, concedendo
o alargamento do olhar.
Neste estudo, pretendo aprofundar esse pensamento partindo da
concepção do fora de Maurice Blanchot, ressaltando o ato da criação e a
realidade própria da narrativa, concebendo outras estratégias que
autorizam contemplar a relação entre literatura e real. A partir do momento
em que a ideia de representação enquanto cópia é questionada, a
linguagem literária passa a ser associada à despersonalização do sujeito,
nesse ponto, a arte então se dá como possibilidade de resistência, e aí
reside o poder da literatura enquanto arte, enquanto escrita literária.

1 O mundo do fora

No final do século XX, certo grupo de escritores sinalizava uma


mudança emblemática ocorrida na literatura, uma suspensão de princípios
fundamentais de certo tipo de percepção de realismo literário, enfatizavam
o ato de criação e a realidade própria da narrativa. É considerando esse
novo vínculo entre literatura e realidade, quando o texto literário já não
podia mais ser pensado como cópia, como espelho do mundo, mas sim
como algo que lhe seria externo, não existente ali nessa [realidade], que
Blanchot desenvolve o conceito do fora, uma forma para refletir essa nova
relação entre literatura e real.
A noção do fora é menos um conceito que possa ser delimitado e
conhecido do que uma função, uma prática que envolve um
questionamento radical do fazer literário, afirma Tatiana Salem (2011,
p.18). O fora seria então a literatura como experiência, a linguagem
literária não como ponte para chegar ao mundo exterior e para nele se
justificar, mas seria o fora desse mundo, a dobra, o mundo invertido, que
está ali, mas que só é possível vê-lo por meio da dilatação do olhar.

- 82 -
A ESCRITA NYLON DE THOMAS PYNCHON

Reconhece-se, aqui, o “salto” que é a literatura. Dispomos da


linguagem comum e ela torna o real disponível, diz as coisas, dá-nos
as coisas afastando-as, e ela mesma desaparece nesse uso, sempre nula
e inaparente. Mas, transformada em linguagem de “ficção”, torna-se
inoperante, inusitada. Sem dúvida acreditamos receber ainda o que ela
designa como na vida corrente, já que, ali, basta escrever a palavra
“pão” ou a palavra “anjo” para dispor imediatamente, em nossa
fantasia, da beleza do anjo e do sabor do pão – sim, mas em que
condições? Com a condição de que o mundo em que nos é dado usar
as coisas seja primeiramente destruído, que as coisas se afastem
infinitamente delas mesmas, tornem-se novamente o longínquo
indisponível da imagem; e que, também, eu não seja mais eu mesmo, e
que não possa mais dizer “eu”. (BLANCHOT, 2013, p. 304-305).

A diferença entre a linguagem da ficção e a linguagem cotidiana,


reside no poder da literatura de realizar a si própria, da palavra literária
edificar sua própria realidade. É necessário o desaparecimento do sujeito
no discurso para então surgir o “ser da linguagem”. Quando o “eu” deixa
de existir a linguagem retorna sobre si mesma, atingindo seu próprio ser.
“O ‘salto’ é imediato, mas o imediato escapa a toda verificação.”
(BLANCHOT, 2013, p. 305)
Existe uma similitude entre Blanchot e Pynchon, entre a pessoa
pública de ambos, assim como Blanchot foi, Pynchon é um indivíduo
recluso, pouco se sabe sobre sua vida pessoal, os dados biográficos são
escassos. Tal fato se torna interessante se pensarmos a definição de
sujeito-autor quando Blanchot afirma as noções de “neutro” e
“desdobramento”. O autor (a pessoa humana), diz Roland Barthes (1998,
p.65),

“... reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias de


escritores, nas entrevistas das revistas, e na própria consciência dos
literatos, preocupados em juntar, graças ao seu diário intimo, a sua
pessoa e a sua obra; a imagem da literatura que podemos encontrar na
cultura corrente é tiranicamente centrada no autor, na sua pessoa, na
sua história, nos seus gostos, nas suas paixões; a explicação da obra é
sempre procurada do lado de quem a produziu, como se, através da
alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a
voz de uma só e mesma pessoa, o autor, que nos entregasse a sua
«confidencia».”
- 83 -
COSTA

A autoria é um mecanismo de controle do discurso, está associada


a uma vontade de verdade. Esse modo de vincular a palavra a algo
exterior, essa tentativa de justificar o texto literário, de dar uma origem a
significação do discurso, é um modo limitado, restrito e, por tanto, não
condiz com a linguagem literária, que adverso disto, propõe a expansão
do olhar. A linguagem literária escapa a toda verificação.

A verdade da literatura estaria no erro do infinito. O mundo onde


vivemos, tal como o vivemos, é felizmente limitado. Bastam-nos
alguns passos para sair de nosso quarto, alguns passos para sair de
nossa vida. Mas suponhamos que, nesse espaço estreito, de repente
obscuro, de repente cegos, nós nos perdêssemos. Suponhamos que o
deserto geográficos se torne o deserto bíblico: não é mais de quatro
passos, não é mais de onze dias que precisamos para atravessá-lo, mas
do tempo de duas gerações, mas de toda a história da humanidade e,
talvez, ainda mais. Para o homem medido e comedido, o quarto, o
deserto e o mundo são lugares estritamente determinados. Para o
homem desértico e labiríntico, destinado à errância de uma marcha
necessariamente um pouco mais longa do que sua vida, o mesmo
espaço será verdadeiramente infinito, mesmo que ele saiba que isso não
é verdade, e ainda mais se ele o sabe. (BLANCHOT, 2013, p. 136-
137).

Quando Blanchot fala do deserto2, ele está falando do fora, é no


deserto da criação que a obra pode realizar-se, no deserto, onde só é
possível errar. A palavra quando evocada pela literatura, é a não existência
que se tornou palavra, é o “pão” e o “anjo” criado pela literatura quando o
mundo das coisas é destruído. Thomas Pynchon é esse homem desértico,
labiríntico. É o escritor que destitui o “eu”, que apresenta, através da
linguagem literária, o que Blanchot denomina “o outro de outros mundos”.
A palavra cotidiana destina-se ao diálogo objetivo do dia-a-dia, à
ligação entre o receptor e o objeto desejado, já a linguagem fictícia é a
própria criação do objeto. O mundo é realizado na literatura através do

2
O deserto ainda não é o tempo sem espaço, mas um espaço sem lugar e um tempo sem
engendramento. Aí, apenas se pode errar, tempo sem passado, sem presente. Terra nua
onde o homem nunca está presente, mas sempre fora. O deserto é esse fora onde não
se pode permanecer, pois estar aí é sempre já estar fora. (BLANCHOT, 1984, p. 30)
- 84 -
A ESCRITA NYLON DE THOMAS PYNCHON

irreal, ou seja, a partir daquilo que é negado, a partir das realidades


negadas, do que é tido como ilusão, daquilo que é subtraído, posto para
fora, excluído do universo das certezas, que não se pode verificar. A
palavra literária nasce aí, a partir da negação. E ela nasce inteira, em sua
realidade plena, dentro da linguagem.

Tudo se passa como se estivéssemos em presença da verdade, mas essa


presença não chega a acontecer de fato. É justamente essa
impossibilidade essencial que determina a possibilidade da literatura.
É porque se projeta para a não linguagem que a linguagem literária se
torna real. Essa não linguagem funciona como um aviso à linguagem
de sua insuficiência: a literatura tenta permanentemente o suicídio, mas
não pode alcançá-lo. A arte procura sempre sua própria destruição, a
negação de si mesma, mas é nesse movimento que ela termina por se
afundar, garantindo sua eternidade. [...] São dois movimentos
essenciais da palavra literária: a negação e a realização. Ao mesmo
tempo em que destrói o mundo, ela o imobiliza, pois tem uma força de
aniquilamento e uma presença indestrutível, sua própria negação e uma
realidade de pedra. (LEVY, 2011, p. 22).

A literatura do fora não está ligada a intimidade do eu, já não


existe um interior para ser desvendado, um interior através do qual se
chegaria a uma verdade, a um segredo da alma, do âmago. A literatura do
fora não é a expressão de um eu interno, mas daquele que já se perdeu e
que se encontra fora de si e fora do mundo. Um corpo sem órgãos, sem
centro, sem organização, onde tudo se encontra na superfície. “A arte se
situa fora do mundo e exprime a profundidade desse fora sem intimidade
e sem repouso.” (LEVY, 2011, p. 36)

2 A escrita nylon

A escrita de Thomas Pynchon, como já dito anteriormente, é uma


escrita elástica, cheia de referências, algumas falsas outras não. Dentro
desse universo há sempre alguma ou várias ligações com mundo da
ciência e da física, “a metáfora da entropia está presente em todos os seus
textos” (BRANDÃO, 2001, p. 4). Isso fica claramente evidente na fala de
um dos personagens de O leilão do lote 49, quando John Nefastis tenta
explicar para Oedipa como funciona a entropia:
- 85 -
COSTA

A entropia, digamos assim, é uma figura de linguagem, suspirou


Nefastis, “uma metáfora. Liga o mundo da termodinâmica com o
mundo do fluxo de informações. A Máquina se serve de ambos. O
Demônio faz com que a metáfora seja não apenas verbalmente
elegante, mas também objetivamente verdadeira.” “Mas, e se o
Demônio”, ela disse, sentindo-se uma herege, “só existir porque as
duas equações se parecem? Por causa da metáfora?” Nefastis sorriu,
impenetrável, tranqüilo, um crente. “Ele existiu para Clerk Maxwell
muito antes de surgir a metáfora. (PYNCHON, 1993, p. 88)

Em O leilão do lote 49 a metáfora da entropia funciona no âmbito


comunicacional, nos ruídos de comunicação, na falha de Oedipa ao tentar
desvendar os mistérios que a cercam, na falha dela ao tentar se comunicar
com o demônio. Todo esse trajeto realizado por Oedipa, entrando nas
vidas e nas histórias das histórias de outros personagens, é conduzido de
forma flexível, como teias feitas de linhas de nylon que se adaptam sem
nunca quebrar e sem nunca perder a conexão uma com a outra.
Essa flexibilidade na escrita de Pynchon, que permite, que autoriza
o alargamento da visão, é perceptível principalmente através da fala
metafórica do narrador e de seus personagens, que ao descrever uma
passagem ou uma situação, fogem do estilo simples e do clássico, é mesmo
“um outro mundo”, uma outra realidade que emerge. Em um trecho do
livro, no segundo capítulo, quando o narrador descreve a visão de Oedipa
do alto de uma colina ao olhar para San Narciso, tal característica mostra-
se patente:

Édipa chegou num domingo, dirigindo um Impala alugado. Tudo


estava parado. Do alto de uma colina, apertando os olhos contra a luz
do sol, viu um vasto conglomerado de casas que, como uma plantação
bem cuidada, haviam crescido juntas da terra marrom-escuro; lembrou-
se do dia em que abrira um rádio transistor para mudar as pilhas e vira
seu primeiro circuito impresso. O turbilhão ordenado de casas e ruas,
vistas do alto, surgiu diante dela com a mesma inesperada e espantosa
clareza do cartão onde estava gravado o circuito. Embora entendesse
ainda menos de rádios do que de californianos do sul, ambas
configurações transmitiam a impressão hieroglífica de um significado
oculto, de uma intenção de comunicar. Aparentemente não havia limite
para o que o circuito impresso poderia ter lhe contado (caso houvesse
tentado descobrir); do mesmo modo, no seu primeiro minuto em San
- 86 -
A ESCRITA NYLON DE THOMAS PYNCHON

Narciso, uma revelação também tremeluziu um centímetro além do


limiar de sua consciência. O smog pairava sobre toda a linha do
horizonte, o sol refletido na superfície bege-claro era doloroso; ela e o
Chevrolet pareciam estacionados no centro de um instante singular,
religioso. Como se, em alguma outra freqüência, ou à margem do olho
de um ciclone que girava lentamente demais para que a pele quente de
Édipa pudesse sentir seu frescor centrífugo, palavras estivessem sendo
ditas. Ao menos, suspeitou que assim fosse. (PYNCHON, 1993, p. 16
- 17)

Esse trecho marca o primeiro contato de Oedipa com a cidade de


San Narciso, lugar onde começa e se desenrola boa parte da jornada da
personagem pelo o que seria a tentativa de executar o inventário de Pierce
Inverarity, seu ex-amante. A metáfora com um rádio transistor, além de
muito afável, traz à superfície a questão da entropia comunicacional: há
sempre um ruído na comunicação, um ciclone que gira lentamente demais,
em outra frequência. A revelação de que há algo a ser comunicado
“tremeluz um centímetro além do limiar de sua consciência” (PYNCHON,
1993, p. 16).
Todas essas marcas textuais na escrita de Pynchon, tendem a guiar
o leitor para um outro universo: a realidade da linguagem. Há várias
críticas evidentes na obra aqui estudada, uma delas concerne ao modo
limitado de olhar o mundo, modo esse ao qual estamos constantemente
sendo conduzidos. Pois é certo que,
A literatura fala de realidade, mas não de uma realidade familiar, dada
pelo mundo cotidiano. O realismo da ficção joga o leitor num mundo
de estranhamento, onde não é mais possível se reconhecer. A ficção
aparece como o inabitual, o insólito, o que não tem relação com este
mundo nem com este tempo – o outro de todos os mundos, que é
sempre distinto do mundo. Mas ao mesmo tempo em que nos retira do
mundo, nele nos coloca novamente. E nós o vemos então com outro
olhar, pois a realidade criada na obra abre no mundo um horizonte mais
vasto, ampliado. Nesse sentido, arte é real e eficaz. Experimentar o
outro de todos os mundos e agir no mundo, eis o que a arte nos
proporciona. (LEVY, 2011, p. 25 - 26).

Esse é o movimento que a literatura faz, de nos tirar do mundo –


da realidade subtraída, emagrecida – e nos jogar novamente nele,

- 87 -
COSTA

proporcionando uma reflexão acerca deste, é o movimento da relação


entre ficção e realidade. A escrita pynchoniana nos conduz a esse
pensamento quando em O leilão do lote 49, o narrador diz que “o ato da
metáfora era uma investida rumo à verdade ou uma mentira, dependendo
de onde a pessoa se encontrava: dentro e seguro, ou fora e perdido”
(PYNCHON, 1993, p. 108). Lembremos que a literatura do fora não é a
expressão de um eu interno, mas daquele que já se perdeu e que se
encontra fora de si e fora do mundo. Ir em direção à verdade é ir de
encontro ao justificável, ao que não está dentro do texto, e para atingir o
“ser na linguagem” é necessário estar fora e perdido. O fora e perdido
corresponde ao homem desértico, labiríntico, pelo qual a literatura se faz,
realiza-se.
A literatura não é uma simples trapaça, é o perigoso poder de ir em
direção àquilo que é, pela infinita multiplicidade do imaginário. A
diferença entre o real e o irreal, o inestimável privilégio do real, é que
há menos realidade na realidade, pois ela é apenas a irrealidade negada,
afastada pelo enérgico trabalho da negação, e pela negação que é
também o trabalho. É nesse menos, essa espécie de emagrecimento, de
afinamento do espaço, que nos permite ir de um ponto a outro, à
maneira feliz da linha reta. Mas é o mais indefinido, essência do
imaginário, que sempre impede K. de alcançar o Castelo, assim como
impede, por toda eternidade, que Aquiles alcance a tartaruga, e talvez
o homem vivo de se juntar a si mesmo, num ponto que tornaria sua
morte perfeitamente humana e, por conseguinte, invisível.
(BLANCHOT, 2013, p. 140).

A experiência do fora coloca em crise toda subjetividade. É


necessário que uma violência seja exercida sobre o pensamento, uma
violência com a potência de um “fora” para desestabilizá-lo e torná-lo
capaz de pensar. Pensar é uma ruptura com o saber racional, é ir de
encontro com o desconhecido, pois não se pode contemplar o pensamento
do fora sem estabelecer uma crítica à razão, ao conhecimento tido como
primeiro, palpável.

No Golden Gate Park, encontrou uma roda de crianças vestindo


pijamas que lhe disseram estar sonhando aquele encontro. Mas que o
sonho de fato não era diferente da realidade, porque de manhã, ao
acordarem, se sentiam cansadas como se houvessem passado em claro
- 88 -
A ESCRITA NYLON DE THOMAS PYNCHON

a maior parte da noite. Quando suas mães acreditavam que elas


estavam brincando, na verdade dormiam, encolhidinhas nos cantos dos
armários das casas dos vizinhos, em plataformas construídas entre os
galhos das árvores, em recôncavos secretos abertos nas cercas vivas,
para se recuperar do sono perdido. (PYNCHON, 1993, p. 99).

Atravessar as realidades, lidar com mundos que não


contemplamos, com os mundos de outras percepções, é um desafio que
nos é lançado pela obra. A forma como o narrador descreve as crianças
que estão entre o sonho e a realidade nos leva a pensar sobre esse estranho
lugar que é o imaginário. A todo momento Oedipa é arrebatada pelo
estranhamento.
Em outro trecho, durante a narrativa em O leilão do lote 49,
quando Oedipa encontra-se hospedada em um hotel denominado “seção
californiana da sociedade americana dos surdos-mudos”, durante esse
episódio, ela depara-se com surdos-mudos dançando e questiona-se como
aquilo seria possível:
De regresso ao hotel, encontrou o saguão cheio de delegados surdos
mudos com chapéus de papel crepom, imitando os gorros de pele dos
comunistas chineses que haviam ficado conhecidos durante a Guerra
da Coréia. Estavam todos bêbados, sem exceção, e alguns dos homens
a agarraram, tentando levá-la para uma festa no grande salão de bailes.
Édipa tentou desvencilhar-se do enxame silencioso e gesticulante, mas
estava fraca demais. Suas pernas doíam, tinha um gosto horrível na
boca. Foi varrida em direção ao salão, onde um jovem bonito, vestindo
um paletó de tweed, tomou-a pela cintura e saiu valsando em meio ao
sussurro das roupas e do arrastar de pés, sob um imenso lustre de cristal
apagado. Cada casal dançava segundo o compasso imaginado pelo
cavalheiro: tango, foxtrote, bossa nova, twist. Mas quanto tempo podia
passar, pensou Édipa, antes que as colisões se tornassem um problema?
Elas deviam ser inevitáveis. A menos que houvesse uma forma
impensável de música, multirrítmica, todos os tons presentes ao mesmo
tempo, uma coreografia em que cada par se entrosasse perfeitamente
por força de alguma predestinação. Algo que todos ouvissem com um
poder extra-sensorial nela atrofiado. Seguiu os comandos de seu
parceiro, maleável nos braços do jovem surdo-mudo, esperando pela
hora em que começariam os esbarrões. Mas não ocorreu nem um único.
Dançou durante meia hora até que, graças a misterioso consenso, todos
pararam para descansar, ninguém tendo ao menos a tocado além de seu
par. Jesús Arrabal teria dito que se tratava de um milagre anarquista.
- 89 -
COSTA

Édipa, sem ter um nome para definir aquilo, sentiu-se apenas


desmoralizada. Fez uma reverência e escapou. (PYNCHON, 1993, p.
110).

A experiência e a possibilidade de vivenciar outras realidades, de


experimentar o inverso do mundo, de experienciar o tempo dobrado,
exteriorizado, o tempo imaginário, o tempo revertido, segundo Blanchot
só é possível através do fora, e o fora é a literatura.

Considerações finais

A obra de Thomaz Pynchon - O leilão do lote 49 – incita o leitor


a refletir sobre as noções que temos de verdade e de realidade, ela pede
que olhemos adiante, além. Deleuze (2011, p. 48) diz que a unidade de
uma língua é, antes de tudo, política. O que existe é uma língua dominante,
centralizada, padronizada, língua de poder. Podemos mesmo dizer que
Pynchon utiliza de uma língua menor, não que ela seja inferior, mas por
ser uma linguagem fragmentada, que foge aos padrões e por isso mesmo,
uma forma de resistência, de militância, uma potência.
A experiência do fora da qual nos fala Blanchot é vivenciada na
obra de Pynchon, mas é também falada, discutida pelos personagens
através de suas metáforas. Personagens esses que estão sempre às voltas
com suas paranóias, com seus medos, hesitações. A obra nos joga dentro
de múltiplas realidades, com figuras de indivíduos sempre afetados
psicologicamente, com percepções diferentes. A literatura, a arte nos
concede essa reflexão: ampliação do olhar. Afinal, de outra forma
poderíamos desafiar a ordem, o centro, a verdade incontestável ditada pelo
poder? De que outra forma, enquanto minoria, enquanto seres à margem,
poderíamos resistir? Não há uma resolução ao final do livro, não existe
um fim para a busca de Oedipa. O perder-se e o falhar continuam, sem
cessar, para Oedipa e para nós, fazem parte do todo que é negado na vida.

Referências

BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. Trad. Mário


Laranjeira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998.
- 90 -
A ESCRITA NYLON DE THOMAS PYNCHON

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São


Paulo: Martins Fontes, 2016.

BRANDÃO, S. C. de S. Aprendendo a ler o mundo com Thomas R.


Pynchon. 2001. Tese (Doutorado) – UFPE, Recife, 2001.

DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Felix. Mil platôs – capitalismo e


esquizofrenia. 2 ed. Vol. 2. São Paulo: Editora 34, 1995.

LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e


Deleuze. Rio de janeiro: Civilização brasileira, 2011.

PYNCHON, Thomas. O leilão do lote 49. 12. 1 ed. São Paulo: Companhia
das letras, 1993.

- 91 -
LIMA E MUNIZ

- VII -
AS MULTIFACES DO PATRIARCADO NO CONTO A WIFE'S
LETTER, DE RABINANDRATH TAGORE
_________________________

Sara Regina de Oliveira Lima1


Luís Fernando Oliveira Muniz2

1 Introdução

O presente trabalho trata-se de uma análise do conto A Wife’s


Letter, do autor indiano Rabindranath Tagore, problematizando o papel
feminino em comparação ao masculino na sociedade, que, por sua vez, é
regida arbitrariamente pelo patriarcado. O conto narra a trajetória de uma
jovem mulher indiana que não se submete integralmente aos rigorosos
valores apregoados pela sua comunidade, no que compete o papel da
mulher.
Por meio desta, buscaremos mostrar que o regime do patriarcado
se estabelece de forma forte na sociedade, não apenas no contexto do
conto, mas também em um contexto mundial. Para tal, o aporte teórico
utilizado na pesquisa conta com a americana bell hooks, a nigeriana
Chimamanda Ngozi Adichie, o francês Pierre Bourdieu e a indiana Rekha
Pande. Os autores trabalham em sua obra críticas ao patriarcado que
permeia o meio social sob a ótica feminista.
O conto, ao tratar da reflexão supracitada, pode ser visto com a
noção de alteridade, uma vez que este, embora escrito por um autor
homem, narra os eventos sob a visão de uma jovem mulher bengali. A
noção de ‘Outro’, como citada por Lal (2010), ocorre no âmbito dos
estudos sociais, culturais e literários, e diz respeito às representações
sociais que são geradas para que um grupo marginalize outro grupo,
focando no dissimilar e no oposto entre estes. Reconhecer e combater

1
Mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e docente
do curso de Letras-Inglês da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). E-mail:
saralima.r@hotmail.com
2
Discente do curso de Letras-Inglês da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). E-
mail: luis-piiholiday@hotmail.com
- 92 -
PATRIARCADO NO CONTO A WIFE'S LETTER

essas noções de divergência entre os povos, em sua grande maioria,


estereotipadas, torna-se ferramenta essencial para que haja a inclusão total
e o combate às desigualdades que permeiam o meio em que vivemos.

2 A diminuição do feminino e o patriarcado

O conto é narrado na visão de Mrinal, uma jovem bengali e é


redigido em forma de carta. Logo no início da narrativa, somos
apresentados ao destinatário Lotus-Feet. Segundo Lal (2010), o nome
escolhido pela personagem autora da carta pode ser entendido mediante a
ciência de que as mulheres na cultura da jovem não devem referir-se ao
marido pelo nome próprio, pois isto traria má sorte e ainda era visto como
descortês. Outro fator que explicaria o nome é que na cultura bengali, é
comum que a mulher toque os pés do marido ao reverenciar-se em
ocasiões solenes.
Mrinal, a remetente da carta, nos conta que:

[…] my brother and I both came down with typhoid fever. My brother
died; I survived. All the neighborhood girls said, “Mrinal’s a girl, that’s
why she lived. If she’d been a boy, she couldn’t have been saved.” Jom-
Raj is wise in his deadly robbery: he only takes things of value
(TAGORE, 1914, p. 1).3

Jom-Raj (mais conhecido como Yama) é o deus da justiça e da


morte na cultura hindu, e por sua vez, carrega o papel de trazer as almas
dos pecadores ante a sua presença para que estas possam desfrutar do
paraíso ou reencarnarem. Pode-se desse modo, inferir pelo trecho que a
sociedade indiana considera que o gênero masculino é mais importante e
possui mais valor que o feminino, por isso o deus da morte no hinduísmo
iria preferir levar o garoto à garota a fim de mantê-lo junto a si. Quando
as garotas do vilarejo de Mrinal atribuem o infortúnio de seu irmão ao fato
que sua presença seria mais valiosa para a divindade, esta era persuadida
a corroborar com a afirmação. Em outras palavras, ocorre uma explícita

3
“Meu irmão e eu tivemos febre tifoide. Meu irmão morreu; eu sobrevivi. Todas as
garotas da vizinhança disseram ‘Mrinal é uma garota, por isso ela sobreviveu’. Se ela
fosse um garoto ela não teria sido salva” Jom-Raj é sábio no seu assalto mortal: ele
apenas pega coisas de valor.” [Tradução nossa]
- 93 -
LIMA E MUNIZ

inferiorização do gênero feminino, institucionalizada de tal forma que a


própria personagem rebaixa-se e aceita tal condição.
Segundo a autora nigeriana Chimamanda Adichie, “we teach
girls to shrink themselves, to make themselves smaller” (ADICHIE, 2014,
p. 12)4. Sua afirmação torna-se notória no excerto citado acima. A jovem
nascida no contexto em que o conto fora redigido, afirma com suas
próprias palavras que seu irmão seria mais valioso que ela, pelo simples
fato de este ser homem. Ao deferir tal crença, percebe-se que esta fora
ensinada a diminuir seu valor perante o gênero masculino, uma vez que a
este se deveria dar mais importância. Chimamanda ainda nota que “we
make them [as mulheres] feel as though by being born female, they are
already guilty of something.” (ADICHIE, 2013, p 14)5, fato que notamos
no discurso proferido pela garota no qual ela parece estar ciente e
conformar-se com sua inferioridade ante ao masculino, mesmo chegando
a demonstrar certo pesar em seu discurso.
A institucionalização do sexismo na sociedade recebe o nome de
patriarcado segundo hooks (2000). Esta forma de preconceito
institucionalizado, de acordo com a autora, retrata uma imagem em que o
homem é superior à mulher e por consequência, o garante uma série de
privilégios. De fato, o simples pressuposto de que a figura masculina é
mais valorosa, acarreta de imediato uma série de privilégios que irão
favorecer os pertencentes à categoria e excluir os que se encontram fora.

3 O casamento de Mrinal

A epístola segue narrando que à Mrinal, mesmo com pouca


idade, fora arranjado um casamento, e o prometido deveria vir ao seu
encontro avaliá-la e pagar o devido preço aos pais da garota. Esta,
encontrava-se angustiada e temerosa, pois “whatever price they offered
for her, that would be her price” (TAGORE, 1914, p.1)6. Mas uma vez
percebe-se que a garota é inferiorizada e agora era tratada como uma

4
“Nós ensinamos as garotas a se diminuírem, para fazê-las menores.” [Tradução
nossa]
5
“Nós fazemos ela [as mulheres] sentirem-se como se por ter nascido mulher, elas
já são culpadas de algo.” [Tradução nossa]
6
“Qualquer que fosse o preço que eles oferecessem a ela, este seria o seu preço.”
[Tradução nossa]
- 94 -
PATRIARCADO NO CONTO A WIFE'S LETTER

mercadoria. Não obstante, o preço pelo qual esta seria “negociada” ficaria
totalmente a mercê do “comprador”. A narrativa continua com “It was as
if the day’s sky, its suffusing light, all the powers of the universe were
bailiffs to those two examiners, seizing a twelve-year-old village girl and
holding her up to the stern scrutiny of those two pairs of eyes. I had no
place to hide.” (TAGORE, 1914, p. 1)7 na qual vemos que, não apenas o
fato de ser “comprada” denota uma comparação da garota com uma
mercadoria qualquer, mas também o fato de esta ser examinada e avaliada,
na busca por imperfeições e contra sua própria vontade.
Na verdade, a sociedade indiana propagou em sua cultura o
casamento infantil que ocorria conforme a vontade da família da garota e
do garoto acima da noiva por muito tempo. De acordo com a autora Pande
(2016), não foi até o The Marriage Act of 1954 que direitos iguais foram
conferidos a ambas as partes do casamento (conquista efetivada graças ao
movimento feminista na Índia). Antes disso, a mulher era vista, ainda
segundo a autora, como um recipiente sem voz ou vez e que deveria
submeter-se integralmente as vontades do masculino.
A garota nos revela em seguida que, apesar de sua beleza, o seu
atributo mais estimado e perceptível era a inteligência, fato que sempre
fora fruto de grande preocupação para sua mãe, que acreditava que uma
mulher possuir tal atributo era uma “aflição”. Mrinal continua dizendo
que, a característica era sempre observada pelos membros de sua nova
família: “Every day you all rebuked me: precocious, impertinent girl! A
bitter remark is the consolation of the inept; I forgive all your remarks.”
(TAGORE, 1914, p. 1)8 A inteligência, naquele contexto, não é um
atributo que denota feminilidade e deve ser cortado ou não incentivado. A
avidez da garota nas respostas e ações eram repugnadas e sempre
desencorajadas. Uma garota deveria ser simplesmente bonita e obediente.
Adichie nos diz que “we say to girls: You can have ambition, but
not too much. You should aim to be successful but not too successful;

7
“Era como se o céu do dia, sua sufocante luz, todos os poderes do universo fossem
oficiais de justiça para aqueles dois examinadores, apreendendo uma garota de doze
anos de um vilarejo e a segurando para o severo escrutínio daqueles dois pares de
olhos. E não tinha nenhum lugar para me esconder” [Tradução nossa]
8
“Todo dia vocês todos me repreendiam: garota precoce e impertinente! Uma amarga
observação do inepto; eu perdoo todas as suas observações.” [Tradução nossa]
- 95 -
LIMA E MUNIZ

otherwise you will threaten the man.” (ADICHIE, 2014, p 12) 9. O


enunciado afirma que a mulher na sociedade é ensinada a almejar grandes
realizações, mas estas mesmo amplas, devem se restringir a um lugar que
colocará o homem no topo, a fim de não os intimidar. Uma esposa que
apresenta grande inteligência mostra-se uma ameaça ao marido, já que
esta terá a capacidade de alcançar mais sucesso e este fato é inconcebível
para a cultura do patriarcado. Da mesma forma, hooks afirma que “we all
knew firsthand that we had been socialized as females by patriarchal
thinking to see ourselves as inferior to men” (hooks, 2000, p. 14) 10 e desta
maneira a mulher é treinada desde a infância a submeter-se em todos os
sentidos a aceitar esta visão de “superioridade masculina” e “inferioridade
feminina”, sem que haja ao menos o direito de questionar.
Mrinal segue dizendo em sua carta que escrevia poemas, embora
ninguém da casa em que morava (neste ponto, a de seu marido) soubera
de tal fato até então. Os poemas escritos por Mrinal eram na verdade uma
forma de libertação. A jovem chega a afirmar que a poesia era o único
lugar no qual ela poderia ser ela mesma, sem restrições ou barreiras,
embora sua produção não fosse profissional.
Revela ainda que, após um tempo na casa de seu marido, ela
engravidara. A personagem diz que seu parto fora complicado e a fizera
sofrer bastante. Embora a situação tenha transcorrido com sucesso, a
criança acaba por morrer algum tempo depois de nascida: “My daughter
was born – and died. She called to me, too, to go with her.” (TAGORE,
1914, p.1)11. A jovem descreve também como visto no trecho que seu
sofrimento no parto fora incalculável, de tal forma que a levou a pensar
que ela própria não sobreviveria. No entanto, Mrinal decidiu não
demonstrar dor ou luto uma vez que “a Bengali girl will wish for death on
the slightest pretext, but where is the courage in such a death? I am

9
“Nós dizemos para as garotas: Você pode ter ambição, mas não muito. Você deve
almejar ser bem sucedida, mas não tão bem sucedida; do contrário você vai intimidar
o homem.” [Tradução nossa]
10
“Todos nó sabíamos em primeira mão que nos fomos socializados como mulheres
pelo pensamento patriarcal para nos vermos como inferiores aos homens” [Tradução
Nossa]
11
“Minha filha nasceu – e morreu. Ela me chamou, também, para ir com ele.”
[Tradução nossa]
- 96 -
PATRIARCADO NO CONTO A WIFE'S LETTER

ashamed to die – death is too easy for us.” (TAGORE, 1914, p. 1)12. A
jovem desta forma escolhe conviver com as tragicidades que são
acarretadas pela figura de uma mulher bengali.

4 Noções de irmandade (sisterhood)

Outro aspecto que pode ser analisado seria o que chamamos


teoricamente de irmandade (sisterhood). A personagem nos introduz à
suas cunhadas: Didi, uma esposa obediente ao marido, e Bindu, uma
garota que constantemente rebelava-se contra os costumes de seu povo. A
última, depois de ser destratada pelo primo com quem morava vem morar
com Mrinal, a pedido de Didi.
A partir deste ponto, observa-se a abordagem de uma questão
importante: a de mulheres ajudando outras mulheres. Observamos que
Mrinal apieda-se da situação de sua cunhada e a abriga em sua própria
casa, uma vez que esta não foi aceita mesmo na casa de seus pais, devido
a abusos domésticos não descritos no conto. Sobre esta noção, bell hooks
descreve: “political solidarity between women always undermines sexism
and sets the stage for the overthrow of patriarchy” (hooks, 2000, p 15)13.
Em outras palavras, a união das vítimas da opressão masculina é, antes de
qualquer coisa, uma ferramenta para a dissolução da dominação patriarcal
que vigora no mundo há muito tempo e desta forma, pode ser entendida
como uma estratégia essencial. O fato de Mrinal ter não só acolhido à
garota, mas protegido de abusos que esta poderia vir a sofrer pode ser
entendido como um exemplo de irmandade (sisterhood).
Em contrapartida, Didi passa a fingir incomodo com a presença
da própria irmã, uma vez que seu marido reprovava suas ações, e assim
passara a afirmar que livrar-se de Bindu fora um alívio. É dito que, “she
couldn’t muster up the courage to express her affection publicly for her
orphaned sister. She was a very devoted wife” (TAGORE, 1914, p. 1)14.

12
“Uma garota bengali vai desejar a morte no menor pretexto, mas onde está a
coragem em tal morte? Eu tinha vergonha de morrer – a morte é muito fácil para
nós.” [Tradução nossa]
13
“Solidariedade política entre as mulheres sempre enfraquece o sexismo e prepara
o palco para a derrubada do patriarcado.” [Tradução Nossa]
14
“Ela não podia juntar coragem para expressar sua afeição publicamente para sua
irmã orfanizada. Ela era uma esposa muito devota.” [Tradução nossa]
- 97 -
LIMA E MUNIZ

Neste caso, a mulher prefere submeter-se às ordens do marido a ajudar a


própria irmã. Tal atitude apenas reforça e fortalece o patriarcado.
Acerca de tal assunto, hooks revela:

Significantly, sisterhood could never have been possible across the


boundaries of race and class if individual women had not been willing
to divest of their power to dominate and exploit subordinated groups
of women. As long as women are using class or race power to dominate
other women, feminist sisterhood cannot be fully realized (hooks,
2000, p. 15)15.

O fato de Didi não querer assumir publicamente seu suporte e


afeto pela irmã – que está em posição mais baixa, já que a mesma não é
casada – mostra a inexistência da noção de irmandade (sisterhood) na
personagem. A dominação masculina é algo que exige uma tomada de
ação por partes das vítimas de tal fato, e a ação coletiva será, logicamente,
mais forte. Torna-se necessário desta maneira a união dos membros
oprimidos contra os opressores para que este papel seja subvertido sem
que haja a divisão dos membros por outros fatores. Ao ocorrerem tais
divisões, a luta contra o sexismo torna-se cada vez mais difícil.

5 A beleza feminina para o patriarcado

A beleza na obra pode ser entendida como um aspecto


potencializador de uma opressão que surge do patriarcado. Bindu sempre
fora condicionada a acreditar que umas das razões pelas quais seu valor
era inferior era sua aparência física. Em certa ocasião, lemos: “there was
no one to arrange a marriage for her, and besides, how many people would
have the strength of their beliefs to marry someone who looked like her?”
(TAGORE, 1914, p. 1)16. A necessidade de uma boa aparência é um fator

15
“Significantemente, irmandade nunca foi possível através das barreiras de raça e
classe se mulheres individuais não estiverem dispostas a abrir mão de seus poderes
de dominar e explorar grupos subordinados de mulheres. Enquanto as mulheres
estiverem usando poder de classe e raça para dominar outras mulheres, a irmandade
feminista não pode ser completamente realizada.” [Tradução nossa]
16
“Não havia ninguém para arranjar um casamento para ela, e, além disso, quantas
pessoas teriam a força em suas crenças para casar-se com alguém que parecia com
ela?” [Tradução nossa]
- 98 -
PATRIARCADO NO CONTO A WIFE'S LETTER

que persegue o feminino há muito tempo. É exigido das mulheres um alto


padrão de beleza, na qual não se poderão enxergar traços de idade,
sobrepeso, ou qualquer outro traço que fuja ao padrão que fora
previamente determinado.
Pode-se ler na obra de hooks o seguinte trecho: “before women's
liberation all females young and old were socialized by sexist thinking to
believe that our value rested solely on appearance and whether or not we
were perceived to be good looking, especially by men” (hooks, 2000, p.
31)17. Percebemos então que o padrão de beleza segue as mulheres de
todas as idades, e este diz respeito não só a imagem pública que estas irão
exibir, mas ao próprio valor que possuirão aos olhos do coletivo. Também
é tocado um ponto interessante: de que esta busca pela beleza é, antes de
tudo, para os homens.
O padrão de beleza ou o que é considerado ser feminino
esteticamente é dado por meio de uma categorização demasiadamente
arbitrária. Espera-se que a mulher busque certos tipos de vestimenta e
acessórios (entre outros recursos) que são desconfortáveis, mas que são
indicadores de fragilidade e sensibilidade e, desta forma, propagar a ideia
de feminilidade como alguém que é dotado de tais atributos. Basta
olharmos para roupas designadas para crianças na primeira infância. Os
bebês do gênero masculino irão possuir roupas de cores mais escuras e
agressivas, enquanto os bebês do gênero feminino possuirão opções mais
claras e delicadas. Os masculinos irão portar estampas de carros e heróis,
por exemplo, as femininas irão portar estampas floridas e adereços
decorativos, tais como franjas, rendas e babados. Sobre apresentar tal
feminilidade, Bourdieu fala:

[...] ser, quando se trata de mulheres, é, como vimos, ser-percebido, e


percebido pelo olhar masculino, ou por um olhar marcado pelas
categorias masculinas — as que entram em ação, mesmo sem se
conseguir enunciá-las explicitamente, quando se elogia uma obra de
mulher por ser "feminina", ou, ao contrário, "não ser em absoluto
feminina" (BOURDIEU, 2012, p. 118).

17
“Antes da liberação das mulheres todas as fêmeas jovens e adultas foram
socializadas pelo pensamento sexista para acreditar que nosso valor estava somente
na aparência e se éramos ou não consideradas bonitas, especialmente por homens.”
[Tradução nossa]
- 99 -
LIMA E MUNIZ

Assim sendo, encaixar-se em um arquétipo de beleza tal como o


referido será uma ferramenta imposta pela sociedade patriarcal para que
as mulheres sejam vistas como diferentes e mais frágeis em relação aos
homens. É também visto que, o empenho por se vestir “para os homens”
é a busca exacerbada pela aceitação coletiva do masculino e da sociedade
como um todo.
Vemos que o padrão de beleza imposto no meio social trata-se
de uma expectativa do que constitui ser feminino. Bindu recebia, pois,
tratamento negativo, tanto pelos membros masculinos como os femininos
de sua família entre outros motivos, pelo fato de que sua aparência não se
encaixava no esperado para uma mulher no contexto bengali. Na citação
citada anteriormente, percebemos que a garota precisava demonstrar uma
aparência agradável para a sociedade para enfim casar-se. No entanto, para
tal, esta deveria encaixar-se nestes padrões que foram impostos. Bourdieu
acredita que a relação do padrão de beleza com o feminino vai além da
mera expectativa de demonstração de feminilidade:

Estando, assim, socialmente levadas a tratar a si próprias como objetos


estéticos e, por conseguinte, a dedicar uma atenção constante a tudo
que se refere à beleza, à elegância do corpo, das vestes, da postura, elas
têm naturalmente a seu cargo, na divisão do trabalho doméstico, tudo
que se refere à estética e, mais amplamente, à gestão da imagem
pública e das aparências sociais dos membros da unidade doméstica,
dos filhos, obviamente, mas também do esposo, que lhes delega muitas
vezes a escolha de sua indumentária (BOURDIEU, 2012, p.119).

Então, percebemos que esta posição absolutista de normativas de


beleza e estética está arraigada ao dever doméstico de cuidar de si própria
e de todos os membros da família. As aparências de toda a instituição
estarão sob a responsabilidade da mulher, uma vez que é prescrito que,
pelo padrão de beleza, esta seja vaidosa e tenha profunda preocupação
quanto à visão que a sociedade terá a respeito delas. Uma vez encarregadas
de tais banalidades, os homens possuirão deveres mais sérios e
considerados mais fundamentais no que compete à instituição familiar.

- 100 -
PATRIARCADO NO CONTO A WIFE'S LETTER

6 O patriarcado como ferramenta de opressão contra os homens

O patriarcado é uma chaga que, sem dúvidas apresenta grandes


riscos para as mulheres. Contudo não só essas são vítimas do regime: os
próprios homens, responsáveis máximos pela sua propagação, encontram
dificuldades com sua perpetuação. No conto analisado, Bindu encontra
sua felicidade ao lado de Mrinal, que sempre tratara a garota bem, mesmo
após sofrer perseguições e rotulações negativas. Bindu passa a
desenvolver um grande sentimento de afeto pela jovem – exemplificando
o conceito de irmandade, previamente comentado – e esta, por sua vez,
não media esforços para garantir a segurança e conforto da até então
rejeitada garota. Em certa ocasião, Mrinal chegara a contratar um servo
especialmente para Bindu, fato que provocou fúria de seu marido e o levou
a cortar seus ganhos. Mrinal então reflete: “One thing surprised me: why
you didn’t force Bindu to leave. I understand it now: deep inside, you were
all afraid of me. Deep inside, you could not help respect the intelligence
that God had given me” (TAGORE, 1914, p. 2)18. O fato de o marido de
Mrinal não expulsar a garota de sua casa, então, poderia ser explicado pelo
respeito ou pelo medo que ele carregava pela astúcia da jovem.
Bell hooks afirma que, “most men find it difficult to be
patriarchs. Most men are disturbed by hatred and fear of women, by male
violence against women, even the men who perpetuate this violence.”
(hooks, 2000, p. IX)19. Em outras palavras, o patriarcado é uma instituição
de tal prejuízo que não afeta somente as mulheres, mas os próprios
homens, que embora sejam beneficiados com esse regime, também
encontram problemas no fenômeno. É exercida uma pressão para que estes
tomem ação contra as mulheres, a fim de perpetuar a dominação e a
transformação destas em submissas. A autora ainda fala que: “they [os
homens] are required to dominate women, to exploit and oppress us, using

18
“Uma coisa me surpreendeu: por que você não forçara Bindu a sair? Eu entendo
agora: lá no fundo vocês todos tinham medo de mim. Lá no fundo, você não podia
evitar respeitar a inteligência que Deus me deu.” [Tradução nossa]
19
“A maioria dos homens acha difícil ser patriarcas. A maioria dos homens é
atormentada pelo ódio e medo de mulheres, pela violência contras as mulheres, até
os homens que perpetuam essa violência.” [Tradução nossa]
- 101 -
LIMA E MUNIZ

violence if they must to keep patriarchy intact. (hooks, 2000, p. IX)20 o


que só confirma o já afirmado. Os homens que não o fazem, são
considerados “traidores” e certamente serão julgados negativamente pelos
seus semelhantes, pois este tipo de ação é o esperado deles. A perpetuação
dessas atitudes, por outro lado, denota masculinidade.
Esta masculinidade de que se fala adentra o conceito de
masculinidade hegemônica. Segundo Connell e Messerschmidt (2013), o
conceito de masculinidade hegemônica foi definido como um conjunto de
atitudes e práticas que perpetuou a cultura opressora do patriarcado.
Adentrando no conceito, os autores percebem que estas crenças voltadas
ao que seria de fato masculino são inextricavelmente falhas. Esta ideia
remete a uma falsa padronização e, desta forma, uma unidade no que
compete a ser homem. Ideias como um caráter violento, não dotado de
sentimentos ou incapaz de expressá-los, gosto exacerbado por esportes e
álcool são exemplos de ideias que são fixadas como indicadores de uma
personalidade masculina. É também do aspecto masculino, segundo a
visão hegemônica da masculinidade, agredir e manter controle sobre as
mulheres, pois é enfatizada a crença que os homens são superiores.
Os riscos que os homens que não adotam essa visão correm são
explicados, pois: “o conceito de masculinidade hegemônica presume a
subordinação de masculinidades não hegemônicas, e esse é um processo
que agora tem sido documentado em muitos contextos, em nível
internacional.” (CONNELL, MESSERSHMIDT, 2013, p. 263). O que
essa dominação sobre as outras masculinidades acarreta é a visão de
inferioridade ao que foge ao padrão previamente destacado. O risco de ser
oprimido torna-se, desta forma, um fator essencial para que um homem
adote atitudes que perpetuarão a masculinidade hegemônica. Em verdade,
diante do fator opressor que estabelece essa norma, surgem segundo
Connell e Messerschmidt (2013) exemplos a serem seguidos e símbolos
de autoridade que servirão de inspiração para jovens e adultos que aspiram
serem considerados como hegemonicamente masculinos.
Assim, as atitudes que o marido de Mrinal tomava (tais como
cortar seus ganhos e criticá-la por seu afeto à Bindu) não devem ser

20
“Eles [os homens] são obrigados dominar mulheres, a nos explorar e nos oprimir,
usando violência se eles precisarem para manter o patriarcado intacto.” [Tradução
nossa]
- 102 -
PATRIARCADO NO CONTO A WIFE'S LETTER

entendidas como conscientemente sexistas, e sim como sendo fruto do


comportamento que era esperado dele como homem em uma sociedade
que perpetuava o conceito de masculinidade hegemônica.
É dito que “homens que receberam os benefícios do patriarcado
sem adotar uma versão forte da dominação masculina podem ser vistos
como aqueles que adotaram uma cumplicidade masculina” (CONNELL,
MESSERSHMIDT, 2013, p. 245). Logo, através desta descrição, pode-se
encaixar a personagem. Embora não se envolveu em atos mais graves de
demonstração de dominação, não oferecia a liberdade para sua esposa e
sempre a criticava, não questionando – e sendo, portanto indiferente
quanto a injustiça que as ações opressoras dos homens para com as
mulheres acarretam. Os atributos que ele demonstrava eram desta maneira
uma tentativa de se adequar aos valores que competem ao esperado do
gênero masculino e, embora não a agredindo fisicamente e não impedindo
a hospedagem de Bindu – o que com seu poder e status, ele teria a
capacidade de não só expulsar a garota, mas também de punir Mrinal sem
ser negativamente julgado pela sociedade – violentava sua liberdade e sua
integridade mental.

7 O casamento forçado e suas implicações

Casamentos arranjados eram muito comuns na Índia e estes


traziam consigo uma enorme gama de tradições que perpetuavam valores
patriarcais. Mrinal revela que fora arranjado um casamento para Bindu.
Bindu então se vê angustiada, tanto por deixar sua amada cunhada quanto
por ter de casar-se com um desconhecido.
De acordo com Fantin, D’Agostini e Marco (2018), estes eram
antes de qualquer coisa um contrato no qual a mulher era um objeto.
Esperava-se então que a esposa mantivesse a total submissão e obediência
ao domínio do marido – ação que esta aprendia desde a mais tenra
infância, uma vez que o casamento seria sua aquisição máxima – e a união
só seria quebrada com a morte. Posteriormente à morte do marido, ainda
segundo os autores, a mulher seria propriedade dos filhos, ou seria
queimada junto ao marido. É visto que não só seria negado à mulher no
contexto indiano o direito a escolha daquele com quem iria casar-se, mas

- 103 -
LIMA E MUNIZ

também era esperado que esta obedecesse cegamente e


inquestionavelmente o marido que lhe fora designado.
Sobre a aflição da garota, lemos: “But Bindu cried night and day;
her tears didn’t want to stop. I knew how painful it was for her. In that
world I had fought many battles on her behalf, but I didn’t have the
courage to say that her wedding should be called off.” (TAGORE, 1914,
p.2)21. A garota claramente não tinha o desejo de casar-se, porém era
coagida a seguir o caminho, uma vez que sua cultura obrigava-a a fazê-lo.
Adichie nos faz notar que:

Because I am female, I’m expected to aspire to marriage. I am expected


to make my life choices always keeping in mind that marriage is the
most important. Marriage can be a good thing, a source of joy, love,
and mutual support. But why do we teach girls to aspire to marriage,
but we don’t teach boys to do the same? (ADICHIE, 2014, p 13).22

A passagem reforça o valor que o casamento deve ter na vida da


mulher para a sociedade patriarcal. O homem deve aspirar grandes
realizações na vida profissional, enquanto a mulher deve ter como seu
principal objetivo casar-se e formar uma família. Deste modo, o feminino
sempre irá submeter-se as vontades do masculino e os valores patriarcais
serão perpetuados. A autora bell hooks (2000), lembra que nas fases
iniciais do movimento feminista, muita atenção foi dada aos estreitos laços
familiares e domésticos, pois de acordo com ela, é onde mais podemos
notar a presença do predomínio masculino. Nesse sentido, é evidente que
Bindu estaria aflita devido aos novos papeis que seriam incumbidos a ela
com a futura união.
Em seguida, Mrinal narra que Bindu obedecera aos pais e
submeteu-se ao casamento previamente arranjado. No entanto, o

21
“Mas Bindu chorava dia enoite; suas lágrimas não queriam parar. Eu sabia quão
doloroso era para ela. Naquele mundo eu havia lutado muitas batalhas em seu nome,
mas eu não tinha a coragem para falar que o casamento dela deveria ser cancelado.”
[Tradução nossa]
22
“Porque eu sou fêmea, eu devo aspirar ao casamento. Eu devo fazer minhas
escolhas de vida sempre mantendo na mente que o casamento é a mais importante.
Casamento pode ser uma boa coisa, uma fonte de alegria, amor e apoio mútuo. Mas
por que nós ensinamos as garotas a aspirar ao casamento, mas não ensinamos aos
garotos o mesmo?” [Tradução nossa]
- 104 -
PATRIARCADO NO CONTO A WIFE'S LETTER

casamento revelara-se ainda mais tormentoso quando Bindu descobriu


que seu marido portava transtornos mentais: “Bindu’s husband was
insane.” (TAGORE, 1914, p 2)23. Isto fazia com que a garota o temesse
ainda mais profundamente. No dia seguinte ao casamento é narrado: “For
some reason he was seized with the notion that Bindu was Rani Rashmoni
herself, and that the servant must have stolen her platter of gold and given
her his own lowly plate instead” (TAGORE, 1914, p. 2)24, vemos, pois,
que a personagem delirava e mostrava-se uma ameaça em potencial para
a garota.
No entanto, Mrinal a afirmara anteriormente: “woman has no
compassion for woman. Woman will say, ‘She’s nothing more than a
woman. The groom may be insane, but he’s a man” (TAGORE, 1914, p.
1)25, mostrando que ela não tinha escolha alguma, a não ser se submeter
às vontades do marido, já que o seu status como mulher não lhe dava poder
de escolha e as outras mulheres que teriam a capacidade de ajudá-la, iriam
cooperar com os valores sexistas.
A narrativa segue com:

When on the third night her mother-in-law ordered her to sleep in her
husband’s room, Bindu’s heart froze within her. Her mother-in-law
was a terrible woman; if she was angered she lost all control of herself.
She too was unbalanced, but not completely, and therefore all the more
dangerous (TAGORE, 1914, p. 2).26

Nesse excerto, como nos supracitados, atentamos para a


impotência da mulher ante a dominação masculina e como esta está
profundamente enraizada na concepção patriarcal vigente na sociedade

23
“O marido de Bindu era louco” [Tradução nossa]
24
“Por alguma razão ele estava preso com a noção que Bindu era a própria Rani
Rashmoni, e o servo devia ter roubado seu prato de ouro e dado um prato menor no
lugar.” [Tradução nossa]
25
“Mulheres não possuem compaixão por mulheres. Mulheres dirão: “Ela não é nada
além de uma mulher, o marido pode ser louco, mas ele é um homem” [Tradução
nossa]
26
“Quando na terceira noite a sua sogra ordenou que ela dormisse no quarto de seu
marido, o coração de Bindu congelou com ela. Sua sogra era uma mulher terrível; se
ela estivesse com raiva, ela perderia todo o controle de si mesma. Ela também era
desequilibrada, mas não completamente, e, por conseguinte, era totalmente mais
perigosa” [Tradução nossa]
- 105 -
LIMA E MUNIZ

em que as personagens se situavam. De acordo com bell hooks (2000), os


laços sexistas substituem os valores de intimidade, respeito e carinho para
que os homens fiquem no topo do casamento. Tal concepção, quando
agregada ao pensamento de uma mulher – neste caso, a sogra de Bindu –
torna-se ainda mais profundo. Essa crítica reforça, ainda segundo a autora,
a noção de que o casamento, em alguns casos, é apenas uma forma de
escravidão sexual, ideia que é observada no trecho, uma vez que a garota
não manifestava nenhum desejo de ter atos sexuais com seu marido e,
portanto, fora coagida a fazê-lo.

8 O despertar de Mrinal enquanto mulher oprimida

A violência é um aspecto negativo que preconiza destruição, no


entanto, violências podem construir resistências. Após tantos maus-tratos,
Mrinal decidiu agir, e para tanto, resolveu ir à policia. Seu marido, no
entanto, cortou seu dinheiro para que esta não o fizesse. Isto, porém não
parou a jovem que resolveu que venderia suas joias, visando contratar um
advogado para o caso de Bindu. Contudo, para a surpresa de Mrinal, Bindu
fugira de sua casa e encontrava-se foragida. O fato despertara profunda
vergonha em sua família. Mrinal encontra-se desesperada para ajudar a
garota e nota que os membros de sua família a tratam com desdém além
de culparem somente Bindu, pois estaria indo contra os valores do
casamento – valores estes que ditavam que a mulher deveria submeter-se
inquestionavelmente e incondicionalmente às vontades de seu marido,
mesmo que este fosse reconhecido como clinicamente insano. Este fato
viria a provocar um sentimento de fúria e desgosto em Mrinal.
Em certo ponto, lemos:

My elder sister-in-law said, ‘She has an ill-fated forehead; how long


can I grieve over it? He may be crazy, may be a fool, but he’s her
husband, after all!’ The image rose in your minds of the leper and his
wife—oh devoted woman!—who herself carried him to the prostitute’s
house. You, with your male minds, did not ever hesitate to preach this
story, a story of the world’s vilest cowardice; and for the same reason—
even though you’d been granted the dignity of human shape—you
could be angry at Bindu without feeling the least discomfort. My heart
burst for Bindu; for you I felt boundless shame. I was only a village
girl, and on top of that I had lived so long in your house—I don’t know
- 106 -
PATRIARCADO NO CONTO A WIFE'S LETTER

through what chink in your vigilance God slipped me my brains. I just


couldn’t bear all your lofty sentiments about woman’s duty (TAGORE,
1914, p. 2).27

A citação é importante no contexto analisado, pois se trata do


despertar da consciência de Mrinal acerca do papel da mulher na
sociedade e da dominação patriarcal que sempre permeava seu meio.
Mrinal encontra-se desesperada pela situação de Bindu, e torna-se mesmo
envergonhada das atitudes apregoadas pelos homens que lá habitavam. A
fala da irmã de Bindu, acerca da resiliência que esta deveria mostrar ante
aos abusos de seu marido, da mesma forma acordara a indignação de
Mrinal, nos revela que tamanha era a submissão de sua cunhada, que esta
levaria seu marido até os bordeis, para que este pudesse dormir com outras
mulheres. Este despertar é um fator essencial para que a conversa sobre
gênero possa desdobrar-se e os valores sexistas sejam desconstruídos.
Adichie diz que:

Gender is not an easy conversation to have. It makes people


uncomfortable, sometimes even irritable. Both men and women are
resistant to talk about gender, or are quick to dismiss the problems of
gender. Because thinking of changing the status quo is always
uncomfortable (ADICHIE, 2014, p 15-16).28

Assim, é importante salientar que o debate sobre gênero é algo


incômodo, não só para os opressores, como também para os oprimidos,

27
“Minha cunhada mais velha disse: ela tinha uma mente infeliz; quanto tempo eu
posso ficar de luto por ela? Ele pode ser louco, mas é seu marido no final das contas!
A imagem elevou-se em suas mentes do leproso e sua esposa – que mulher devota! –
quem ela mesma levava-o para o prostíbulo. Vocês, com suas mentes masculinas,
nunca hesitaram em pregar esta história, a história da mais vil covardia do mundo.; e
pela mesma razão – você poderia estar com raiva de Bindu sem sentir o mínimo de
desconforto. Meu coração dilacerou-se por Bindu; por vocês em sinto vergonha sem
limites. Eu era apenas uma garota do vilarejo, e acima disso eu vivi por tanto tempo
em sua casa – eu não sei através de qual fenda seu Deus encaixou meu cérebro. Eu
não podia suportar seus sentimentos arrogantes sobre o dever das mulheres.”
[Tradução nossa]
28
“Gênero não é uma conversa fácil para ter. Deixa as pessoas desconfortáveis, às
vezes até irritáveis. Homens e mulheres são resistentes quanto a falar de gênero, ou
rapidamente dispensam os problemas de gênero. Porque pensar em mudar o status-
quo é sempre desconfortável.” [Tradução nossa]
- 107 -
LIMA E MUNIZ

pois o assunto nos levará a refletir sobre a atual situação em que o mundo
se encontra – o status quo. Ao mexer com esta “balança”, múltiplas partes
pedirão mudanças que deveriam provavelmente ter sido buscadas mais
cedo. Ao tomar ciência das desigualdades que sua cultura propagava,
Mrinal vê-se incapaz de resolver seus problemas, mas ao mesmo tempo
sente-se envergonhada pela forma que ela havia por tanto tempo vivido.

9 A libertação

A jovem continua sua narrativa descrevendo seu relacionamento


com Bindu, que agora ocorrera através de cartas levadas e trazidas por seu
irmão, já que Bindu não tinha coragem de escrevê-las e envia-las por si
só, temendo que a polícia pudesse rastrear o endereço da refugiada. Em
uma de suas viagens, o irmão de Mrinal descobre que Bindu houvera
partido para a casa de seus primos na esperança que estes a socorressem.
No entanto, eles rapidamente levaram a garota à casa dos sogros mais uma
vez. Estes estavam enfurecidos com as desventuras da garota. Certo dia,
Mrinal decide ir a Srikhetro, alegando que iria participar de uma
peregrinação, o que despertara alegria em seu marido, pois esta estaria
buscando o “caminho certo”. Sua verdadeira intenção era criar uma
distração, para que seu irmão pudesse resgatar Bindu.
Na noite anterior à partida para Srikhetro, Mrinal descobre que
Bindu, entregue a angustia e desespero, houvera ateado fogo em suas
roupas e, após isso, tirara sua própria vida. A garota reconhece que este
ato enfim traria paz para ambas. Mrinal segue narrando:

People heard about it and were enraged. They said, It’s become a kind
of fashion for women to set fire to their clothes and kill themselves.
You all said, Such dramatics! Maybe. But shouldn’t we ask why the
dramatics take place only with Bengali women’s sarees and not with
the so-brave Bengali men’s dhutis? (TAGORE, 1914, p. 2).29

29
“Pessoas ouvir falar disso e ficaram furiosas. Eles disseram, está se tornando um
tipo de moda para as mulheres atearem fogo em suas roupas e se matarem.
Vocês todos disseram, Tão dramáticas! Talvez. Mas não deveríamos nos perguntar
porquê esse drama acontece apenas com as mulheres sarees bengalis e não com os
bravíssimos homens dhutis?” [Tradução nossa]
- 108 -
PATRIARCADO NO CONTO A WIFE'S LETTER

Ao colocar tal reflexão, Mrinal, já ciente do mal acarretado pelo


sexismo preestabelecido em sua cultura, critica o fato de todos afirmarem
que estaria “na moda” que as mulheres ateassem fogo nas roupas e
tirassem suas vidas e, portanto as chamarem de dramáticas, e questiona o
porquê deste fato ocorrer tão frequentemente com as mulheres, mas nunca
ocorrerem com os homens. Certamente a resposta estria no fato de que
estas sempre se verem como inferiores e na posição de subalternidade. Na
verdade, percebemos que: “In a population-based study on domestic
violence, it was found that 64% had a significant correlation between
domestic violence of women and suicidal ideation” (VIJAYKUMAR,
2007, p.1)30. O autor, ao apresentar esses dados nos mostra que o suicídio
feminino devido à violência doméstica é uma grave chaga na sociedade
indiana, mas vai além e nos fala que problemas no casamento em geral –
tais como divórcios, casos fora do casamento, gravidez ilegítima,
cancelamento do casamento arranjado – têm papel fundamental para que
estes índices cresçam.
A jovem conclui que, com o suicídio de Bindu, dado as
condições em que sua vida se desenrolava, a garota estaria salva e assim
liberta e que ao fazê-lo, demonstrou uma bravura sem limites. Lemos:
“she’s not a mere Bengali girl anymore, no more just a female cousin of
her father’s nephews, no longer only a lunatic stranger’s deceived wife.
Now she is without limits, without end” (TAGORE, 1914, p. 2)31, assim
podemos concluir que o ato, embora trágico, fora a sua resposta ante as
injustiças que a vida lhe impunha.
Mrinal decide então deixar seu marido e revela que esta fora,
desde o início a finalidade de sua carta.

Considerações finais

Como evidenciado nesta análise, o conto critica fortemente a


opressão e a dominação que o sexismo exerce na cultura indiana. Através

30
"Em um estudo de base populacional sobre violência doméstica, foi descoberto que
64% tinham uma correlação significativa entre violência doméstica de mulheres e
ideação suicida. [Tradução nossa]"
31
“Ela não era mais uma mera garota bengalense, não mais penas a prima mulher dos
sobrinhos de seu pai, não mais apenas uma esposa desviada lunática. Ela agora estava
sem limites, sem fim.” [Tradução nossa]
- 109 -
LIMA E MUNIZ

dos estudos levantados pela nigeriana Chimamanda Adichie, pela


estadunidense bell hooks, pelo francês Pierre Bourdieu e pela indiana
Rekha Pande, podemos perceber que o conto, embora em contexto
indiano, nos serve de expoente para que possamos notar efetivamente que
a cultura do patriarcado não conhece barreiras geográficas e se espalha nas
mais diferentes culturas. Ao traçarmos o paralelo entre as obras, foi
notável que os discursos feministas de hooks (2000), Adichie (2014) e
Pande (2018), juntos as ideias de Bourdieu (2012), criticam episódios de
dominação masculina semelhantes e aplicáveis em diferentes culturas e
que a chaga se perpetua nas mesmas.
O conto ainda procura “desromantizar” o casamento, uma vez
que este, pelas estruturas que conhecemos, talvez possa servir de aparato
para a dominação de um gênero sobre o outro. Traça ainda uma visão
crítica acerca das situações nas quais mulheres apregoam a cultura sexista
e forçam outras mulheres a seguir os valores do patriarcado. Por fim, nos
mostra que nunca é cedo para despertarmos a consciência ante tal injustiça
e para tomarmos atitudes contra a ameaça do sexismo. Basta conhecermos
o conceito de irmandade e termos a ciência de que o regime do patriarcado
afeta todas as esferas, raças, gêneros e setores da sociedade.

Referências

ADICHIE, C. N. We should All Be Feminists. New York: Vintage


Books, 2014. Disponível em:
<http://jackiewhiting.net/AmStudies/Units1415/Texts/We%20Should%2
0All%20Be-%20Feminists%20(Kin%20-
%20Chimamanda%20Ngozi%20%20Adichie.pdf> Acesso em:
12/11/2019

BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. 11ª Edição. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 2012.

BRITO, R. O Panteão Hindu. Mitografias, 2016. Disponível em :


<https://www.mitografias.com.br/2016/07/o-panteao-hindu/> Acesso
em: 26/11/2019

- 110 -
PATRIARCADO NO CONTO A WIFE'S LETTER

CHAKRABORTY, S. On Streer Patra. Silhouet Magazine, Kolkata,


India, 29 de dezembro de 2011. Disponível em
<https://learningandcreativity.com/silhouette/streer-patra-bengali-film/>
Acesso em 12/11/2019

CONNELL, R. W., MESSERSCHMIDT, J. W. Masculinidade


Hegemônica: Repensando o conceito. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis v. 21 n. 1, p. 241-282. Janeiro-Abril, 2013.

FANTIN, G., D’AGOSTINI, F. P., MARCO, T. T. Conquistas e Atuais


Desafios do Movimento Feminista. Brasil: UNOESC, 2018.

HOOKS, B. Feminism is for Everybody: Passionate Politics.


Cambridge, MA: South End Press, 2000.

LAL, M. Tagore, Imaging the ‘Other’: Reflections on The Wife’s


Letter & Kabuliwala. Asian and African Studies, Delhi v. XIV, n. I pp.
1-8, 2010. Disponível em: < https://revije.ff.uni-
lj.si/as/article/download/2894/2531/> Acesso em: 12/11/2019

PANDE, R. The History of Feminism and Doing Gender in India.


Revista de Estudos Feministas, Florianópolis v. 26 n. 3 p. 1-17. Nov.,
2018.

SANCHES, A. A Luta Feminista e as Políticas de Gênero na Índia


Contemporânea. Revista Mundorama, 2016.

TAGORE, Rabindranath. A Wife’s Letter: Translation of a Short story


By Rabindranath Tagori. Parabaas, 2009.

VIJAYKUMAR, L. Suicide and its prevention: The urgente need in


India. Indian J Psychiatry v. 49 n. 2 p. 81-84. Abr-Jun 2007. Disponível
em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2917089/> Acesso
em 28/11/2019

- 111 -
UMA IMERSÃO NO SILÊNCIO DE HEMINGWAY

- VIII -
UMA IMERSÃO NO SILÊNCIO DE HEMINGWAY: OS
ASSASSINOS E A TEORIA DO ICEBERG
_________________________

Vanessa de Carvalho Santos1


Karla Vivianne Oliveira Santos2
Saulo Cunha de Serpa Brandão3

1 Considerações iniciais

Pode-se argumentar de forma persuasiva que


Hemingway é o melhor escritor de contos da língua
Inglesa desde Dubliners de Joyce até o presente
(BLOOM, 2005, p. 329, tradução nossa4).

Gertrude Stein estava sempre certa (Ernest Hemingway,


tradução livre nossa5)

“Geração perdida”6 é uma expressão utilizada para qualificar o


conjunto de escritores/artistas que se estabeleceram em Paris nos anos
1920 e que se reuniam no famoso Salão de Literatura da escritora, também
estadunidense, Gertrude Stein. Eles eram expatriados por diversas razões,
mas mais frequentemente por não terem retornado aos seus países depois
da Primeira Grande Guerra ou que retornaram e se descobriram
estrangeiros em seus países. A utilização da palavra “perdida” para

1
Mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail:
vanessadecarvalhosantos@outlook.com.
2
Mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail:
viviannekarla2@gmail.com.
3
Professor Titular voluntário da UFPI. Doutor em Teoria da Literatura. E-mail
saulo@ufpi.edu.br.
4
No original: It could be argued persuasively that Hemingway is the best short-story
writer in the English language from Joyce's Dubliners until the present.
5
No original: Gertrude Stein was Always right.
6
Gertrude Stein assim chamava os artistas que compareciam ao seu Salão de
Literatura em Paris nos anos 20 do século passado. (Artists of the Lost Generation).
- 112 -
OLIVEIRA SANTOS, CARVALHO SANTOS E BRANDÃO

nomear tal grupo indica o fato de estarem sem direção e por isso, nesse
período, têm-se a forte presença do individualismo e da quebra de normas.
Os artistas dessa geração encontraram um meio para expressar as
profundas mudanças sociais causadas por problemas econômicos e pelo
cenário pós-guerra. O período de turbulência enfrentado pelos Estados
Unidos também fez com que diversos artistas, como Ernest Hemingway,
remodelassem o instrumento que utilizavam para se expressar. Para além
de seus escritos artísticos, ele que popularizou o termo Teoria do Iceberg,
que foi exemplarmente desenvolvida e aplicada no romance O sol também
se levanta – no original The Sun Also Rises. Dessa geração perdida de
artistas destacamos os outros, tais como T.S. Eliot, F. Scott Fitzgerald,
Ezra Pound e Sinclair Lewis.
Vencedor do Nobel de Literatura em 1954, Ernest Hemingway
construiu uma imagem que o trouxe grande admiração da sua geração e
até os dias atuais. Os trabalhos produzidos pelo autor nascido em Illinois
são considerados hoje clássicos da Literatura estadunidense. A sua
popularidade ainda em vida se justifica pelos temas de seus romances e
contos que tratavam de assuntos caros ao cidadão comum, como: caçadas,
pescarias, touradas, lutas. E também ao público letrado pelo seu estilo
enxuto, questionamentos e debates transcendentais e até metafísicos,
desenvolvimento de teorias nas obras, enquanto ele as debatia
metatextualmente.
Posto isto, este trabalho se propõe a perscrutar o conto Os
assassinos, de Hemingway, publicado inicialmente na revista
estadunidense Scribner em 1927, através do apoio teórico do mesmo autor
sobre a Teoria do Iceberg e seu estilo de escrita conciso que transmuda as
experiências mundanas com o uso de palavras depuradas. Buscamos,
assim, compreender de que maneira o autor aplica sua teoria a partir dos
elementos encontrados ao longo do texto.

2 Verdade e simplicidade: os princípios de Hemingway

Faulkner, Stevens, Frost, talvez Eliot e Hart Crane foram


escritores mais fortes do que Hemingway, mas ele
sozinho neste século americano alcançou o status

- 113 -
UMA IMERSÃO NO SILÊNCIO DE HEMINGWAY

duradouro de mito (BLOOM, 2005, p. 331, tradução


nossa7).

Quando pensamos no estilo de escrita mais reconhecido e


disseminado do século XX, em países anglófonos, é Ernest Hemingway o
primeiro nome que surge à mente. Hoje popularizada, sua forma de
escrever desfez os fortes laços existentes entre texto literário e o estilo
ornamentado que peregrinou desde o período Vitoriano, no século XIX.
O autor tornou-se conhecido por não dar lugar a longos retratos
topográficos e emocionais, pois capta a complexidade da interação
humana através do discurso direto e fornece ao leitor o material para uma
aproximação de uma experiência real (DARZIKOLA, 2013, p. 8).
Com O sol também se levanta, em 1922, romance que fez
Hemingway ser considerado um dos maiores escritores na época, ele
começou a delinear os princípios que o guiariam na construção da sua
produção literária ao longo dos anos, transformando sua técnica de escrita
em algo inconfundível. Seis anos após essa publicação, o autor discutiu
tais princípios no livro de não ficção Morte ao Entardecer – Death in the
Afternoon –, momento que também escreveu sobre o início de sua carreira
no florescer dos anos de 1920.

Eu sempre trabalhei até que eu tivesse algo feito e eu sempre parei


quando eu sabia o que aconteceria em seguida. Dessa forma eu poderia
ter certeza de continuar no dia seguinte. Mas às vezes, quando eu estava
começando uma nova história eu não conseguia continuar, eu sentava
em frente à lareira e espremia a casca das pequenas laranjas na borda
da chama e observava o crepitar de azul que elas produziam. Eu
levantava e olhava os telhados de Paris e pensava, “Não se preocupe.
Você sempre escreveu antes e escreverá agora. Tudo o que precisa
fazer é escrever uma frase verdadeira e depois continuava a partir daí.
Era fácil, então, porque sempre havia uma frase verdadeira que eu
conhecia ou tinha visto ou ouvido alguém dizer. Se eu começasse a
escrever de forma elaborada, ou como alguém introduzindo ou
apresentando algo, eu descobri que eu poderia eliminar aquele
scrollwork ou ornamento e jogá-lo fora e começar com a primeira frase

7
No original: Faulkner, Stevens, Frost, perhaps Eliot, and Hart Crane were stronger
writers than Hemingway, but he alone in this American century has achieved the
enduring status of myth.
- 114 -
OLIVEIRA SANTOS, CARVALHO SANTOS E BRANDÃO

simples declarativa e verdadeira que eu havia escrito (HEMINGWAY,


1964, p. 12, tradução nossa8).

A construção do estilo de Hemingway pode ser, dessa forma,


exprimida em duas palavras-chave: verdade e simplicidade9. Quando o
autor afirma que deve escrever frases verdadeiras, ele estabelece para si
próprio os primeiros princípios básicos que influenciarão seu estilo.
Todavia, o que é a verdade para Hemingway?
Destacamos como primeiro sentido dessa palavra à adequação
experiencial, i.e., o escritor escreve sobre aquilo que ele tem conhecimento
prático. Ética e estética são imbricadas no trabalho do autor, igualando a
verdadeira escrita a boa escrita. Se o autor escreve sobre o que não
conhece, o que ele não experimentou pessoalmente, ele não escreve
honestamente:

Boa escrita é verdadeira escrita. Se um homem está inventando uma


história, isso será verdadeiro em proporção à quantidade de
conhecimento que ele tem e quão consciencioso ele é; de modo que
quando ele cria algo é como isso verdadeiramente seria. Se ele não sabe
quantas pessoas trabalham em suas mentes e ações, sua sorte pode
salvá-lo por um tempo, ou ele pode escrever fantasia. Mas se ele

8
No original: I always worked until I had something done and I always stopped when
I knew what was going to happen next. That way I could be sure of going on the next
day. But sometimes when I was starting a new story and I could not get it going, I
would sit in front of the fire and squeeze the peel of the little oranges into the edge of
the flame and watch the sputter of blue that they made. I would stand and look out
over the roofs of Paris and think, “Do not worry. You have always written before and
you will write now. All you have to do is write one true sentence. Write the truest
sentence that you know.” So finally I would write one true sentence, and then go on
from there. It was easy then because there was always one true sentence that I knew
or had seen or had heard someone say. If I started to write elaborately, or like someone
introducing or presenting something, I found that I could cut that scrollwork or
ornament out and throw it away and start with the first true simple declarative
sentence I had written.
9
Gertrude Stein é creditada pelo treinamento do autor em seu estilo. Foi ela que o
apresentou o livro The backwash of the war escrito por Ellen N. La Motte, que era
grande amiga de Stein e por ela considerada grande escritora especialmente pela
secura de seu estilo. Todos os primeiros escritos de Hemingway passaram pela edição
de Stein. Ela dizia “Cut out words. Cut everything out, except what you saw, what
happened.” (Corte as palavras. Corte tudo, exceto o que você viu, o que aconteceu. –
tradução livre nossa). (WACHTELL, 2019)
- 115 -
UMA IMERSÃO NO SILÊNCIO DE HEMINGWAY

continua a escrever sobre o que ele não sabe, ele se verá fingindo.
Depois que ele finge algumas vezes, ele não pode escrever mais
honestamente (HEMINGWAY, 1935, n.p. tradução nossa10).

Tudo isso se dá através da observação, pois, segundo as palavras de


Hemingway, o fim de um autor acontece quando ele para de observar, seja
consciente ou inconscientemente.
Baker (1972, p. 48) explica que o sentido de lugar é parte do que
Hemingway afirma como verdade e este analisa a técnica que Hemingway
utilizava para fazer com que leitor sentisse o que o escritor estadunidense
nomeou de “the way it was”, em tradução livre: a maneira como era. Para
Baker (1972) a frase em destaque acima é simples para um conceito
complexo. Segundo Hemingway:

Todos os bons livros são parecidos porque são mais verdadeiros do que
se tivessem realmente acontecido e depois que você termina de ler um
deles, sentirá que tudo aquilo aconteceu com você e então tudo
pertence a você; o bem e o mal, o êxtase, o remorso e a tristeza, as
pessoas e os lugares e como estava o tempo. Se você pode conseguir
isso para que você possa dar isso às pessoas, então você é um escritor
(HEMINGWAY, 1934, n.p., tradução nossa11).

A partir disso temos uma segunda forma de verdade: a adequação


histórica. A narrativa de Hemingway realiza-se em locais ficcionais com
nomes de lugares reais, para conceder realismo à obra. Estes podem variar,
seja Paris, Kilimanjaro ou Wyoming, todavia, todos são locações que
podemos tocar e identificar o momento histórico que a narração ocorre,
descobrimos o palco de suas histórias através dos detalhes ou, como nos

10
No original: Good writing is true writing. If a man is making a story up it will be
true in proportion to the amount of knowledge of life that he has and how
conscientious he is; so that when he makes something up it is as it would truly be. If
he doesn't know how many people work in their minds and actions his luck may save
him for a while, or he may write fantasy. But if he continues to write about what he
does not know about he will find himself faking. After he fakes a few times he cannot
write honestly any more.
11
No original: All good books are alike in that they are truer than if they had really
happened and after you are finished reading one you will feel that all that happened
to you and afterwards it all belongs to you; the good and the bad, the ecstasy, the
remorse and sorrow, the people and the places and how the weather was. If you can
get so that you can give that to people, then you are a writer.
- 116 -
OLIVEIRA SANTOS, CARVALHO SANTOS E BRANDÃO

dois últimos lugares exemplificados, podem estar explícitos no título da


sua narrativa (BAKER, 1972, p. 49). O que Baker define como
“adequação histórica”, Genette (1993, p. 50) é mais técnico ao definir esse
uso de dados históricos como “realema”, cuja função é enfatizar o
processo de verossimilhança. Mas o teórico francês insiste que mesmo
trazendo dados que existem na realidade, eles viram ficção no momento
que entra em uma obra de mundos imaginários.
O terceiro e último sentido de verdade que apresentamos aqui se
relaciona na possibilidade de o autor comunicar suas próprias experiências
ao leitor através de uma base comum de sentimentos e emoções, i.e., o ser
humano pode experimentar sentimentos semelhantes ao serem colocados
em situações semelhantes. Isto faz com que também compartilhem de
forma similar uma maneira de interpretar o texto, reproduzindo, assim,
emoções parecidas, através dessa leitura. Esta seria uma mediação estética
(BAKER, 1972, p. 50).
Além do sentido de lugar, Baker (1972) distingue mais dois
instrumentos estéticos nas narrativas de Hemingway. O primeiro é sentido
de fato, que é algo facilmente encontrado nos textos do autor, “[...] fatos
visíveis ou audíveis ou tangíveis, fatos mal declarados, fatos sem
apetrechos verbais para inibir seu poder impressionante [...]”, são o
material da sua prosa (BAKER, 1972, p. 51-52, tradução nossa12). O
segundo é o que ele nomeia de sentido de cena:

Se uma fusão imaginativa do sentido do lugar e do sentido de fato


ocorrer, e se, fora do processo de fusão, a vida dramática surgir, um
terceiro elemento será necessário. Isso pode ser chamado de senso de
cena. Os lugares são menos que a geografia, os fatos são inertes e
descoordenados, a menos que a imaginação os atravesse como uma
corrente vitalizante e a imagem total se mova e acelere (BAKER, 1972,
p. 52, tradução nossa13).

12
No original: […] visible or audible or tangible facts, facts badly stated, facts
without verbal paraphernalia to inhibit their striking power.
13
No original: If an imaginative fusion of the sense of place and the sense of fact is
to occur, and if, out of the fusing process, dramatic life is to arise, a third element is
required. This may be called the sense of scene. Places are less than geography, facts
lie inert and uncoordinated, unless the imagination runs through them like a vitalizing
current and the total picture moves and quickens.
- 117 -
UMA IMERSÃO NO SILÊNCIO DE HEMINGWAY

Alcança-se esse sentido por meio da seleção precisa de léxico e economia


sintática, não permitindo lugar para ornamentos verbais. A combinação
desses três sentidos - lugar, fato e cena - resulta em um retrato da realidade
e permite que o autor tenha uma dupla percepção das coisas, ou seja, a
identificação das reações emocionais e dos elementos que causaram tais
emoções (BAKER, 1972).
O bom escritor sabe sobre o que está escrevendo, mas não mostra
tudo o que sabe para o leitor, o que é exposto é somente a superfície de
um iceberg. Hemingway capta a complexidade da interação humana
através de um discurso direto sutil e fornece ao leitor o material de uma
experiência que só se finda a partir da leitura do texto. É no silêncio do
texto de Hemingway, no que não foi dito, que está o segredo de sua obra;
é neste que o leitor deve imergir.

3 Os assassinos e a teoria do iceberg

— Hei, Al. — gritou Max — Este menino esperto aqui


quer saber do que se trata tudo isto.
— Por que não lhe conta? — ouviu-se a voz da
cozinha.
— Do que acredita que se trata?
— Não sei.
— O que acha?
(HEMINGWAY, 2012, n.p.).

Ainda que, a princípio, possamos compreender Hemingway a


partir de seu estilo aparentemente simples, podemos perceber que por trás
dessa característica tão marcante encontram-se outras tão mais complexas
e profundas. Suas histórias são construídas, em grande parte, por uma
teoria que o próprio Hemingway postulou, intitulada Teoria do Iceberg.
Por meio dela, o escritor americano nos apresenta uma possibilidade de
leitura de seus escritos.
Embora existam outros estudos sobre essa teoria, uma das
primeiras declarações de Hemingway nos foi apresentada em sua obra
Morte ao Entardecer, de modo a elucidar sobre os princípios de sua
técnica de escrita:

- 118 -
OLIVEIRA SANTOS, CARVALHO SANTOS E BRANDÃO

Se um escritor de prosa sabe o suficiente sobre o que ele está


escrevendo, ele pode omitir coisas que sabe e o leitor, se o escritor
escrever verdadeiramente o suficiente, terá tão fortemente a sensação
dessas coisas como se elas já tivessem sido ditas. A dignidade de um
iceberg é devida a apenas um-oitavo dele estar acima d’água.
(HEMINGWAY, 1966, p. 182, tradução nossa14).

Dessa forma, o autor imprime a ideia de que o nosso compromisso


com sua obra é desvendar os sete-oitavos que estão abaixo da superfície
do iceberg, aquilo que está subentendido. Em outras palavras, Hemingway
espera que seu leitor tenha um “olhar mais atento para os detalhes da obra,
enxergando além do que está escrito, do que está na superfície”
(GIESELER, 2011, p. 16, tradução nossa15). Dessa forma, percebemos
que aquilo que Hemingway faz é colocar em suas obras apenas a ponta do
iceberg, como ele mesmo confirma, para fora da água, moldando seu texto
complexo a partir de uma estrutura de língua evidentemente simples.

3.1 A construção do conto através da omissão

O conto Os assassinos apresenta a história de uma tentativa de


assassinato organizada por Al e Max dentro do restaurante do Henry, local
para onde Ole Andreson, o sueco e possível vítima, se desloca todos os
dias para jantar. Com o objetivo de matar o estrangeiro, os assassinos
controlam a movimentação dentro do restaurante. Além deles, estão em
cena também George, proprietário do ambiente, o cozinheiro nomeado
como negro e Nick Adams, protagonista de várias histórias de
Hemingway.
A Teoria do Iceberg de Hemingway é concebida por alguns
estudiosos como uma forma de omissão, em que o autor não nos diz tudo
em sua obra, deixando alguns aspectos sob responsabilidade do leitor.
Perscrutando sobre as técnicas de Hemingway, Toshihiro Maekawa
(2001), em sua obra Hemingway’s Iceberg Theory, analisa formas

14
No original: If a writer of prose knows enough about what he is writing about he
may omit things that he knows and the reader, if the writer is writing truly enough,
will have a feeling of those things as strongly as though the writer had stated them.
The dignity of an iceberg is due to only one-eighth of it being above water.
15
No original: […] the reader to give a more attentive look at the details in his work,
looking beyond what was written, what lay on the surface.
- 119 -
UMA IMERSÃO NO SILÊNCIO DE HEMINGWAY

diferentes de omissão utilizadas por outros escritores, na tentativa de


identificar novos aspectos da teoria do escritor americano.
Para tanto, Maekawa (2001) traz à baila três técnicas de omissão:
a primeira diz respeito ao “correlato objetivo”, definida por T. S. Eliot,
que trata da formulação de um grupo de objetos, situações ou paisagens
com o poder de causar no leitor de uma obra a emoção desejada. Segundo
essa definição, o autor organiza esses elementos de maneira que, uma vez
apreciados na leitura, desencadeiam uma carga emocional imediata no
leitor; a segunda refere-se à ironia, como um tipo particular de omissão;
e, a terceira, menciona a eliminação de experiências pessoais por parte do
autor. Para explanar sobre essas técnicas, a teórica destaca obras de
Hemingway em que existem omissões que leitores enfrentam dificuldade
em encontrar o que está escondido, embora possam sentir algo grande à
espreita, abaixo da superfície (MAEKAWA, 2001).
No conto aqui em destaque, através de sua escolha de palavras nas
falas, o autor nos concede uma imagem visual do período histórico onde
a intriga desenvolve-se. Quando George afirma que tudo o que há para
beber é “refrigerante de gengibre, cerveja sem álcool, e outros
refrigerantes”, já se relaciona ao momento que os Estados Unidos
sofreram com a Lei Seca, ocorrida entre os anos de 1920 e 1930, e que
proibia a venda e consumo de qualquer bebida alcoólica em território
nacional. Todavia, um dos assassinos pergunta novamente “diga se tem
algo para beber”, dando a ideia de que alguns lugares vendiam bebidas
alcoólicas, mesmo com a proibição (HEMINGWAY, 2012, n.p.).
Neste mesmo período, observamos a intensa circulação e ação da
máfia e assassinos, permitindo que a opressão vinda de marginais se torne
frequente. Quando Max anuncia “Vamos matar um sueco”, não há
qualquer surpresa ou estranhamento vindos das outras personagens. O que
eles, assim como o leitor, questionam é o motivo. “Por que vão matar Ole
Andreson? O que lhes fez?” e a resposta direta vem logo em seguida
“Nunca teve a oportunidade de nos fazer algo. Jamais nos viu”. A vida
perde valor nesse período, a lei dos mais fortes reina (HEMINGWAY,
2012, n.p.).
Nick demonstra um ato de heroísmo para com os dois assassinos
e logo em seguida vem sua desilusão, já que sua coragem não faz qualquer
diferença. Com a escolha de palavras de Max e Al, ao referirem a Nick

- 120 -
OLIVEIRA SANTOS, CARVALHO SANTOS E BRANDÃO

como “garoto”, observa-se que se trata de uma personagem que ainda não
alcançou a idade adulta. Essa coragem resultante da sua jovem idade é
vista no final do conto quando eles e direciona a casa do sueco para avisá-
lo sobre o perigo que enfrenta. Para Sam, o ato não é de todo inteligente e
ironicamente afirma que jovens garotos sempre sabem o que querem
(HEMINGWAY, 2012).
A imagem visual presente no conto é narrada em terceira pessoa.
Com isso, não temos pensamentos ou pontos de vista de qualquer
personagem. Para que possamos os conhecer, seus nomes devem ser ditos
nas falas, exceto por George e Nick. Por isso, em certo momento do conto,
temos a seguinte passagem:

Os dois homens se retiraram. George, através da janela, viu-os passar


sob o poste da esquina e cruzar a rua. Com seus sobretudos ajustados e
esses chapéus de feltro pareciam dois artistas de variedades. George
voltou para a cozinha e desatou Nick e o cozinheiro (HEMINGWAY,
2012, n.p.).

Eles realmente pareciam isso ou somente para George? Todavia, o


narrador não segue a sombra de George, pois quando Nick se desprende
do restaurante para ver o sueco, a narrativa se desenvolve para outro
ambiente.
O relógio é um elemento chave do conto Os assassinos:

George olhou o relógio na parede detrás do balcão.

— São cinco horas.


— O relógio marca cinco e vinte. — disse o segundo homem.
— Adianta vinte minutos.
— Ora, dane-se o relógio. — exclamou o primeiro — O que tem para
comer?
(HEMINGWAY, 2012, n. p.).

A partir dessa breve observação, sempre que a hora é dita no conto


nos questionamos se se refere à hora real ou a hora do relógio que todos
as personagens têm consciência do atraso. Ole costuma ir as seis, mas de
acordo com qual relógio? A frase “George olhou o relógio” é repetida três
vezes na história: seis e quinze; seis e vinte; e seis e cinquenta e cinco,
- 121 -
UMA IMERSÃO NO SILÊNCIO DE HEMINGWAY

mas nunca sabemos que horas são, deixando a história com uma
relatividade temporal.
Como indica o título, o enfoque da obra recai sobre os assassinos
e não sobre o assassinato, por isso ao fim da obra não sabemos se, após
saírem do restaurante, Al e Max conseguem, efetivamente, matar o Sueco.
Assim como também continuamos sem o conhecimento acerca do motivo
que fez Ole Andreson ser marcado para morrer e o porquê de ele
permanecer na cidade e mais: quem queria ele morto. Vemos isso nos
seguintes trechos:

— O que acontece — disse-lhe falando com a parede — é que não me


decido a sair. Fiquei todo o dia aqui.
— Não poderia escapar da cidade?
— Não — disse Ole Andreson — Estou farto de escapar.
(HEMINGWAY, 2012, n.p.).

— Pergunto-me o que terá feito — disse Nick.


— Deve ter traído alguém. Por isso os matam.
— Vou sair daqui. — disse Nick.
— Sim — disse George — É o melhor que pode fazer.
— Não suporto pensar nele esperando em seu quarto sabendo o que lhe
vai acontecer. É realmente horrível.
— Bom. — disse George — Melhor parar de pensar nisso
(HEMINGWAY, 2012, n.p.).

George e Nick, que observam toda a ação, fazem as mesmas indagações e


transmitem as mesmas frustrações que Hemingway espera de seus
leitores. O autor elabora seus textos utilizando o mínimo de materialidade
possível, afastando a ideia de um princípio e de um fim, transformando o
vazio no seu próprio conteúdo: o NADA. Essa estética do NADA16
encontra-se presente no conto e em toda obra de Hemingway. Os
questionamentos ficam em aberto, sem solução. É no interior do NADA e
do silêncio que está o momento fulcral da narrativa.

16
Estilisticamente Hemingway adotava a aqui tratada Teoria do Iceberg, mas
filosoficamente ele desenvolvia um pensamento niilista em que a vida era Nada (e
ele usava a grafia como em espanhol e não em inglês), que a vida não tem sentido
nem propósito. A sua filosofia foi desenvolvida em plenitude no pequeno conto
chamado A clean well lighted place (HEMINGWAY, 1991, p. 288)
- 122 -
OLIVEIRA SANTOS, CARVALHO SANTOS E BRANDÃO

3.2 Minimalismo lexical

Toda essa provocação que ocorre através das omissões permite ao


leitor de Hemingway ficar sem ter onde apoiar possíveis leituras, já que
há poucas palavras (ou nenhuma) que expressem as reações dos
personagens (GIESELER, 2011). É possível perceber essa característica
peculiar de escrita quando o escritor estadunidense não faz uso recorrente
de adjetivos e advérbios em suas narrativas (palavras que expressam muito
sobre as ações e sentimentos dos personagens), como em Colinas como
Elefantes Brancos – originalmente Hills like White Elephants –, em que a
principal fonte de análise nesse conto são os diálogos (FEITOSA, 1996).
Em nossa análise, percebemos no conto Os Assassinos (2012), que
Hemingway não se preocupa em narrar sua história com detalhes: sua
marca registrada é uma linguagem simples, sem a escolha de palavras
supérfluas ou, mais especificamente, sem o uso de adjetivos ou advérbios
que não dizem nada além do já dito, como no trecho abaixo, em que dois
dos personagens entram no restaurante e sentam-se à mesa para fazerem
seus pedidos:

A porta da lanchonete Henry’s abriu-se e entraram dois homens.


Sentaram ao balcão.
– O que é que vai ser? – perguntou George.
– Não sei – disse um dos homens.
– O que é que você quer comer, Al?
– Não sei – disse Al. – Não sei o que quero comer.
Escurecia lá fora. A luz da rua entrava pela janela. Os dois homens ao
balcão leram o cardápio. Da outra extremidade do balcão, Nick
Adams observava-os. Ele conversava com George quando eles
entraram.
(HEMINGWAY, 2012, n. p.).

Com esse recurso, ao descrever essa primeira cena, Hemingway nos


transmite uma característica única de seu estilo: a simplicidade. Sua forma
concisa de escrita permite ao leitor mergulhar por questionamentos que
emergem a partir de sua narração sem muitos pormenores ou arranjos.
Além do minimalismo na descrição das cenas, também é marcante
na narrativa de Hemingway a presença dos diálogos entre personagens,
muitas vezes sarcásticos e quase cômicos, que ocupam majoritariamente
- 123 -
UMA IMERSÃO NO SILÊNCIO DE HEMINGWAY

o conto – como também acontece em tantas outras obras do autor desse


mesmo gênero:

– O que está olhando? Max olhou para George.


– Nada.
– Vá pro inferno. Você estava me olhando.
– Talvez o rapaz o fez por brincadeira, Max – disse Al.
George riu.
– Você não tem que rir – disse Max. Não tem nada para rir, viu?
– Está bem. – disse George.
– E ele pensa que está tudo certo – disse Max virando-se para Al. –
Ele acha que está tudo certo. É um cara legal.
– Ora, ele é um filósofo – disse Al. Continuaram comendo.
– Qual é o nome do espertinho lá do fim do balcão? – perguntou Al
para Max.
– Ei, espertinho – disse Max a Nick. Passe para o outro lado do
balcão, com seu amiguinho.
– Qual é a ideia? – perguntou Nick.
– Não há ideia nenhuma.
(HEMINGWAY, 2012, n. p.).

Tomando como base a Teoria do Iceberg, em que Hemingway


deixa à cargo do leitor a descoberta das partes submersas de seu texto, a
citação acima nos revela que a análise dos diálogos e das breves descrições
de cenários e personagens deve ser suficiente para o entendimento do
conto que nos dá a impressão de que estamos “[...] lendo uma peça teatral”
(FEITOSA, 1996, p. 306).
Outro aspecto bastante presente na narrativa de Hemingway é o
uso frequente de expressões como “disse ele”, “ela disse”, “perguntou
ele”, usadas “[...] sem nenhum tipo de complemento que pudesse fazer o
leitor ter certeza dos sentimentos da personagem.” (GIESELER, 2011, p.
13, tradução nossa17). Em Os Assassinos, Hemingway pinta de
normalidade toda a ação transcorrida no restaurante:

17
No original: [...] with no kind of complement that would allow the reader to be
certain of the character’s feelings.
- 124 -
OLIVEIRA SANTOS, CARVALHO SANTOS E BRANDÃO

– O que fazem por aqui à noite? – perguntou Al.


– Eles jantam – disse o amigo. Ele vem todos aqui e comem a grande
janta.
– É isso mesmo – disse George.
– Então você acha isso mesmo? – Al perguntou a George.
– Claro.
– Você é um rapaz espertinho, não é?
– Claro – disse George.
– Bem, mas não é – disse o outro sujeito. – Você acha que ele é, Al?
– Ele é um bobo – disse Al. Virou-se para Nick. – Qual é o seu
nome?
– Adams.
– Outro espertinho – disse Al. – Ele não é um espertinho, Max?
(HEMINGWAY, 2012, n. p., grifos nossos)

Através dessa descrição sucinta, o autor faz com que seu leitor
perceba que, mesmo envolvendo ameaças e indivíduos violentos, os
demais envolvidos aceitam a situação à que são sujeitos, como se isso
fizesse parte de seu cotidiano – tanto que, em determinados momentos, o
personagem George chega a rir das atitudes dos assassinos, por não haver
surpresas frente às suas ações. Tão normal é a situação vivida pelos
personagens do conto que “a cidade quente estava cheia de gente
espertinha” (HEMINGWAY, 2012 n. p.), como a própria dupla de
malfeitores fazia questão de frisar.
Além dessas expressões, também é comum percebermos na escrita
do autor estadunidense a presença de substantivos comuns – como
Hemingway faz quando denomina o rapaz da cozinha apenas como
“garoto” ou “negro”, embora seu nome seja Sam – e isso se deve ao fato
de que as palavras dessa classe gramatical “[...] aproximam os fatos da
história da maneira com que eles acontecem na ‘vida real’, de maneira
sutil embora efetiva, promovendo uma aproximação maior entre o leitor e
a personagem.” (GIESELER, 2011, p. 13, tradução nossa18). O uso desses
recursos pode ser percebido no trecho abaixo:

18
No original: “[...] approximates the facts in the story to the way facts unfold in “real
life”, favoring subtly but effectively, a closer identification between reader and
characters.
- 125 -
UMA IMERSÃO NO SILÊNCIO DE HEMINGWAY

Lá fora, a luz do poste brilhava entre os galhos nus de uma árvore. Nick
subiu a rua pelos trilhos dos bondes e, no poste seguinte, entrou numa
rua lateral. A pensão de Hirsch era a terceira casa da rua. Nick subiu os
dois degraus e tocou a campainha. Uma mulher veio até a porta.
– Ole Anderson está?
– Você quer vê-lo?
– Se ele estiver.
Nick seguiu a mulher por uma escadaria e até o fim de um corredor.
Ela bateu à porta.
– Quem é?
– É alguém que quer vê-lo, senhor Anderson – disse a mulher.
– É Nick Adams.
– Entre.
(HEMINGWAY, 2012, n. p.)

A partir da leitura do trecho acima, percebemos a simplicidade da


escrita de Hemingway não se limitando apenas ao seu estilo enquanto
escritor, mas também presente em sua temática, na qual aborda assuntos
do cotidiano. Os temas do dia a dia são construídos em cenas habituais
possibilitando a aproximação do leitor com o que foi escrito e, além disso,
aumentam ainda mais o impacto dos conflitos abordados no conto.
É interessante ressaltar que, além de todas essas características que
foram percebidas ao longo da análise de Os Assassinos (2012), outro
aspecto nos chamou atenção na narrativa de Hemingway: o uso constante
de sinais de pontuação que exemplificam ainda mais a crueza da escrita e
minimalismo de detalhes presentes no referido conto, a saber: ponto final
e ponto de interrogação.

– Você conhece um sueco enorme chamado Ole Anderson?


– Sim.
– Ele vem jantar todas as noites, não vem?
– Ele vem aqui às vezes.
–Ele vem às seis horas, não vem?
– Quando vem.
– Sabemos de tudo, espertinho – disse Max. Diga mais alguma coisa.
Vai alguma vez ao cinema?
– De vez em quando.
(HEMINGWAY, 2012, n. p., grifos nossos)

- 126 -
OLIVEIRA SANTOS, CARVALHO SANTOS E BRANDÃO

Tendo isso em vista, fica aparente que o que Hemingway pretendia


não era dizer algo ao leitor, mas fazer com que, através dos fatos e ações
dos personagens descritos por ele, o seu leitor tirasse suas próprias
conclusões. Dessa maneira, Hemingway faria com que aquele que o lê
“[...] pudesse traçar suas próprias conclusões, fazendo suas próprias
inferências, fazendo com que ele pensasse sobre os diálogos e sobre as
poucas explicações dadas” (GIESELER, 2011, p. 14, tradução nossa19).
Parte do minimalismo lexical de Hemingway também fazem parte
as elipses, figuras de linguagem que geralmente são usadas para omitir um
termo que pode ser subentendido no texto, sem que haja prejuízo de
sentido entre as orações. Para o escritor, em sua obra a parte visível é
menos importante do que a parte oculta, fazendo com que “cada parte de
uma página que se elimina não faça se não reforçá-la e o que se conta seja
a parte que não se vê” (HEMINGWAY, 1996 apud SPALDING, 2009, p.
06).
O uso de elipse pode ser percebido nos trechos abaixo, em que: (1)
caracteriza-se como elipse verbal (omissão dos verbos “foi” e “olhava”);
e (2) como elipse nominal (omissão dos substantivos “travessas” e
“prato(s)”). Vejamos:

(1) O sujeito foi atrás de Nick e Sam, o cozinheiro, até a cozinha. A


porta fechou-se atrás deles. O homem chamado Max ficou sentado ao
balcão defronte George. Não olhava para George, mas para o espelho
atrás do balcão. (HEMINGWAY, 2012, n. p., grifos nossos).
(2) George pôs as duas travessas, uma com presunto e ovos e outra com
bacon e ovos, sobre o balcão. Juntou dois pratos de batatas fritas e
fechou o postigo da cozinha. (...) Inclinou-se e pegou o presunto com
ovos. (HEMINGWAY, 2012, n. p., grifos nossos).

Isso nos mostra que, em grande parte, o uso dessas figuras de linguagem
nos parece ser exatamente bem calculado, na medida em que o autor
pretende realmente omitir não só termos e palavras como também a ação
de personagens (e seus sentimentos), como exemplificado nos trechos
acima, fato que caracteriza o seu estilo simples e conciso de escrita.

19
No original: […] he could draw his own conclusions, making his own inferences,
having to think over the dialogues and the few explanations given.
- 127 -
UMA IMERSÃO NO SILÊNCIO DE HEMINGWAY

Além disso, em nossa análise, verificamos a presença de períodos


compostos por coordenação (orações que não dependem sintaticamente
uma da outra, mas se ligam por meio de conjunções), mais
especificamente ligados pelo conectivo “e”, como podemos perceber no
seguinte trecho:

Nick abriu a porta e entrou no quarto. Ole Anderson estava metido


na cama, completamente vestido. Ele fora um pugilista peso-pesado
e era grande demais para a cama. Tinha a cabeça apoiada em dois
travesseiros. Não olhou para Nick.
- O que foi – ele perguntou.
- Eu estava no Harry’s – disse Nick – e dois sujeitos entraram,
amarraram a mim e ao cozinheiro, e disseram que iam matá-lo.
Soou absurdo quando ele disse. Ole Anderson não falou nada.
- Eles nos puseram na cozinha – continuou Nick. Eles iam atirar em
você quando entrasse para jantar.
Ole Anderson olhava para a parede e não dizia nada.
(HEMINGWAY, 2012, n. p., grifos nossos).

A escolha pertinente desse recurso demonstra que, estando ligadas


por conectivos de adição, as orações não necessitam de pausas, como
aconteceria se estivessem ligadas por vírgulas ou outros termos
conectores, reforçando a ideia da simplicidade e verdade com as quais
Hemingway sempre trabalhava.
O uso desses períodos compostos por coordenação nos leva a
análise de outra figura de linguagem que pudemos verificar em nossa
análise: o polissíndeto. Vejamos o seguinte excerto:

–Ele vem jantar todas as noites, não vem?


–Ele vem aqui às vezes.
–Ele vem às seis horas, não vem?
– Quando vem.
– Sabemos de tudo, espertinho – disse Max.
(HEMINGWAY, 2012, n. p., grifos nossos)

A passagem acima nos revela o uso de uma figura de linguagem


que é caracterizada pela repetição de um determinado conectivo entre
palavras ou expressões. Essa figura de linguagem utiliza o excesso de
termos para enfatizar a ideia de acréscimo ou de sucessão. Tratando-se de
- 128 -
OLIVEIRA SANTOS, CARVALHO SANTOS E BRANDÃO

Hemingway, em nossa análise, entendemos que o uso desse recurso


implica nos conceitos de verdade e simplicidade que o escritor costuma
empregar. Dessa maneira, para o autor de Os Assassinos, “o leitor, se o
escritor está escrevendo com verdade suficiente, terá uma sensação mais
forte do que se o escritor declarasse tais coisas” (HEMINGWAY, 1996
apud SPALDING, 2009, p. 06).
Diante das análises feitas, podemos perceber como a escrita de
Hemingway e a teoria postulada por ele – definida como a principal
técnica de sua escrita – se fixam em objetivos estéticos que exigem uma
disciplina rigorosa, em que se constroem secretamente através do não dito,
do subentendido. Isso se deve ao fato de que Hemingway acreditava que
“as histórias em que tudo está aparente, não são relidas da mesma maneira
que as histórias em que nem tudo está. Essas histórias são mais fáceis de
entender, mas quando temos que lê-las mais de uma vez, não conseguimos
relê-las realmente” (FLORA, 1989, p. 140, tradução nossa20).
Em meio à ideia do subentendido, Hemingway permite ao seu
leitor situar-se dentro da história contada em suas obras, por meio de um
intenso jogo narrativo, permeado de insinuações em que o autor revela
apenas lampejos da parte que realmente omite. Assim, consegue uma
tensão emocional que faz com que seus leitores se identifiquem com as
histórias, não só vendo o que os personagens veem, mas também sentindo
o que eles sentem.

5 Considerações finais

Meu objetivo é colocar no papel aquilo que vejo e que


sinto da mais simples e melhor maneira (MONTAPERT,
1964, p. 27, tradução nossa21).

Emergindo da plêiade de autores fortes estadunidenses do início


do sec. XX, aparece Ernest Hemingway. Dono de uma escrita simples e
enxuta, que molda o contexto de suas narrativas pautando-se no heroísmo

20
No original: The stories where you leave it all in do not re-read like the ones where
you leave it out. They understand easier, but when you have read them once or twice
you can’t re-read them.
21
No original: My aim is to put down on paper what I see and what I feel in the best
and simplest way.
- 129 -
UMA IMERSÃO NO SILÊNCIO DE HEMINGWAY

do ser humano quando este é valorizado diante das adversidades,


exatamente por imprimir em sua literatura parte de suas experiências de
vida. A isso também se atribui os conceitos de verdade e simplicidade tão
apregoados pelo próprio autor sobre seu estilo de escrita.
Na construção desse estilo, a linguagem utilizada pelo autor
estadunidense revela-se de suma importância. Através de omissões,
adjetivos reduzidos ao mínimo e uma crueza na descrição de cenas
cotidianas presentes em suas narrativas, a escrita de Hemingway gera no
leitor um efeito impactante justamente pelo que não é dito, pelo que fica
submerso; o que o próprio autor costumou chamar de Teoria do Iceberg.
Postulada pelo próprio Hemingway e, como visto anteriormente
em nossa análise, a Teoria do Iceberg propõe uma escrita em que os fatos
flutuam sobre a água, mas a estrutura de apoio e simbolismo operam fora
de vista. Somente quando se percebe que a escrita do autor possui essa
estrutura de suporte, submersa e invisível, é possível usufruir do grande
sistema simbólico presente na obra do escritor.
Em nossa análise, observamos que Hemingway constrói sua
narrativa através da exposição de cenas e personagens comuns, realizando
omissões e minimalismos de modo a convidar o leitor para desvendar as
lacunas presentes em sua escrita; mergulhando no silêncio do autor para
compreender seu estilo simples e o conteúdo de sua narrativa.

Referências

BAKER, Carlos. Hemingway: The Writer as Artist. Princeton:


Princeton University Press, 1972.

BLOOM, Harold. Novelists and Novels. Philadelphia: Chelsea House


Publishers, 2005.

DARZIKOLA, Shahla Sorkhabi. The Iceberg Principle and the Portrait


of Common People in Hemingway’s Works. Canadian Center of
Science and Education Journal. Toronto, v. 3, n. 3, p. 8-15, 2013.

FEITOSA, Rosane Gazolla Alves. Ernest Hemingway: o diálogo


revelador. In: ENCONTRO DE PROFESSORES DE

- 130 -
OLIVEIRA SANTOS, CARVALHO SANTOS E BRANDÃO

LÍNGUAS E LITERATURAS ESTRANGEIRAS, 4. 1995, São Paulo;


ENCONTRO PAULISTA DE PESQUISADORES EM TRADUÇÃO,
3., 1995, São Paulo. Anais... São Paulo: Arte & Ciência, 1996. V.2. p.
306-308.

FLORA, Joseph M. Ernest Hemingway: a study of the short ficton.


Boston: Twayne Publishers, 1989.

GENETTE, Gérard. Fictions & Diction. Ithaca: Cornell University


Press, 1993.

GIESELER, Adriana Luisa Sthamer. The American wife in the rain: a


reading of the Hemingway’s “Cat in the Rain”. 2011. 47 f. Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC).
HEMINGWAY, Ernest. Death in the afternoon. London: Penguin,
1966.

HEMINGWAY, Ernest. A Moveable Feast. New York: Charles


Scribner’s Sons, 1964.

HEMINGWAY, Ernest. Monologue to the maestro: a high seas letter


[outubro de 1935]. New York: Esquire Magazine. Entrevista concedida a
Maestro (Mice).

HEMINGWAY, Ernest. Os Assassinos. Disponível em:


http://acervo.revistabula.com/posts/web-stuff/os-assassinos-de-ernest-
hemingway. Acesso em: 01 de junho de 2018.

HEMINGWAY, Ernest. The Complete Short Stories of Ernest


Hemingway. New York: Simon & Schuster Inc., 1991.

MAEKAWA, Toshihiro. Hemingway's Iceberg Theory. North Dakota


Quarterly. Grand Forks, 68.2&3, p. 37-48, 2001.

MONTAPERT, Alfred Armand. Distilled wisdom. Alhambra: Borden


Publishing Company, 1964.

- 131 -
UMA IMERSÃO NO SILÊNCIO DE HEMINGWAY

SPALDING, Marcelo. A mais linda é a mais preguiçosa: o silêncio


eloquente de Final do jogo, de Julio Cortázar. Nonada: Letras em Revista,
Porto Alegre. Vol. 2, núm. 13. 2009.

WACHTELL, C. Did a censored female writer inspire Hamingway’s


famous style? The Conversation. New York, n. p., 2019. Disponível em:
https://theconversation.com/did-a-censored-female-writer-inspire-
hemingways-famous-style-113722. Acesso em: 02 de abril de 2019.

- 132 -
ARS GLOSSOPOETICA

- IX -
ARS GLOSSOPOETICA – UM ENSAIO SOBRE LÍNGUAS
ARTIFICIAIS NA LITERATURA
_________________________

Israel A. C. Noletto1

A glossopoese literária, conforme abordada aqui, é tipicamente


um instrumento usado pelo escritor para informar a audiência de uma
maneira, diga-se, mais ‘poética’ ou mais ‘expressiva’; algo que se deseja
deixar velado do que se poderia chamar a camada superficial de um texto,
aquilo que está mais facilmente acessível ao leitor não iniciado. Línguas
artificiais em obras de ficção são, destarte, usualmente como quebra-
cabeças e, assim, requerem esforço adicional para decodificar. Neste
sentido, As palavras e as coisas (1999) de Michel Foucault, mais
especificamente o capítulo quatro, intitulado “Falar”, oferece uma
perspectiva interessante para a leitura que faço aqui. Embora, não tivesse
em mente o caso particular das línguas ficcionais da literatura, Foucault
comenta habilmente pressupostos importantes que auxiliam na correta
abordagem desta ferramenta narrativa, a glossopoese.
O uso de idiomas particulares com o propósito de conferir um
ocasional ar estrangeiro para povos fabricados dentro de enredos de obras
literárias tem sido um advento literário bastante familiar desde a idade
média. Tais lucubrações linguístico-literárias não raro têm servido ao
intuito de proporcionar variedade e inovação para o leitor, provendo ao
mesmo tempo, por vezes, humor, realismo, exotismo, bem como diversos
graus de virtuosidade (SEEBER, 1945). Via de regra, elas não contêm
mensagens óbvias. Terry Eagleton (2003) postula, ademais, que por vezes,
os autores não escrevem em perfeita consonância com suas crenças e
objetivos. Isto ocorre porque escrever pode ser traiçoeiro e, o resultado do
que se escreve pode acabar dando uma impressão diferente daquilo que se

1
Professor do Instituto Federal do Piauí, campus Campo Maior. Doutorando em
Letras pela Universidade Federal do Piauí. Mestre em Letras pela Universidade
Federal do Piauí. Graduado em Letras/Inglês pela Universidade Estadual do Piauí.
Líder do grupo de pesquisa Anglolit/CNPq.
- 133 -
NOLETTO

tencionara, ou ainda pode ocorrer que o autor talvez não estivesse tão certo
do que queria escrever. Com efeito, Foucault preconiza que:
Não há, para constituir a linguagem ou para animá-la por dentro, um
ato essencial e primitivo de significação, mas tão-somente, no coração
da representação, este poder que ela detém de se representar a si
mesma, isto é, de se analisar em se justapondo, parte por parte, sob o
olhar da reflexão e de se delegar, ela própria, num substituto que a
prolongue (1999, p. 107).

Sob tal égide ligeiramente Saussuriana da linguagem oferecida


por Foucault é que se pode perceber as línguas artificiais, inclusive as
ficcionais, como línguas ipso facto, embora constituam obras incompletas
e inacabadas em sua maioria, senão em sua totalidade. Inúmeras obras de
ficção científica articulam seu enredo através das tais línguas artificiais;
entre os casos de maior destaque nisto, podemos mencionar The
dispossessed (1974) de Ursula Le Guin, 1984 (1949) de George Orwell, A
Clockwork Orange (1962) de Anthony Burgess, Riddley Walker (1980) de
Russel Hoban e Babel-17 (1966) de Samuel R. Delany. Os idiomas
apresentados nos enredos dos romances mencionados são um exercício
intelectual que constitui um enigma em forma de palavras artificiais que a
segunda linguagem, o idioma em que obra fora escrita, deve interpretar,
substituído pela discursividade essencial da representação: “possibilidade
aberta, ainda neutra e indiferente, mas que o discurso terá por tarefa
concluir e fixar” (FOUCAULT, 1999, p. 108).
No decorrer da história, antes mesmo de a glossopoese
aventurar-se na literatura com a obra Utopia (1516) de Thomas More,
conforme descreve Umberto Eco (1997) corroborando Michel Foucault
(1999), as línguas ideais do passado buscavam desenvolver-se em ordem
reflexiva, como uma crítica das palavras, para parafrasear o filósofo
francês. Sentiu-se uma necessidade de constituir o tesouro de uma língua
perfeitamente analítica. Manifestou-se isto também da ordem gramatical
como uma análise dos valores representativos da sintaxe, da ordem das
palavras, da construção das frases:

[...] Será uma língua mais aperfeiçoada quando dispõe de declinações


ou de um sistema de preposições? Será preferível que a ordem das
palavras seja livre ou rigorosamente determinada? Que regime dos

- 134 -
ARS GLOSSOPOETICA

tempos melhor exprime as relações de sucessão? (FOUCAULT, 1999,


p. 108).
Citando Hobbes, Foucault também preconiza que a linguagem é
feita de um sistema de sinais que os “indivíduos escolheram,
primeiramente, para si próprios” (1999, p. 113). Vê-se que se trata de
uma língua que seria capaz de arrogar a cada reprodução e a cada item de
cada reprodução o signo pelo qual podem ser assinalados de um modo
sinônimo; seria hábil também para propor de que maneira os itens se
compõem numa reprodução e como estão fechados uns nos outros; tendo
os instrumentos que admitem indicar todas as relações aleatórias entre os
segmentos da reprodução, ela teria, por isso mesmo, o poder de navegar
todas as ordens admissíveis (FOUCAULT, 1999, p. 117).
Novamente, cabe aqui realçar que Foucault, muito
provavelmente, não tinha em mente o caso da glossopoese literária.
Todavia, acabou por trazer à baila justamente os questionamentos
levantados por muitos dos autores que ousaram utilizar suas faculdades
criativas para trabalhar além do enredo limpo e seco, criando formas de
linguagem que pretendem em si constituir o enigma da palavra ser
decifrado pelo leitor. Ao fazerem isto, muitos escritores parecem
considerar justamente tais características em uma busca, não somente pelo
que constitui uma língua perfeitamente analítica, mas também o que se
pressupõe estrangeiro para a audiência pretendida pelo texto. Nas palavras
de Foucault, a dimensão crítica se instaura necessariamente quando a
linguagem, no caso em tela, as línguas artificiais, se interroga a si mesma
a partir de sua função (FOUCAULT, 1999).
Como escreve Csicesery-Ronay Jr. (2008), distopias ou utopias
são os ‘lugares’ de onde mais se esperam revoluções de palavras e seus
valores. A fissura entre palavras e implicações aceitáveis deve ser
radicalmente condensada. Distopias frequentemente retratam a tirania de
uma racionalidade excessiva que procura regulamentar o alcance
imaginável de probabilidades pelo controle do número e extensão de
significações que se vão permitir, em vez de deixá-las evoluir
naturalmente. The dispossessed, por exemplo, é uma exploração de
impossibilidades peremptórias de se construir uma sociedade puramente
anárquica, através da luta por liberdade de expressão e opinião. A partir
de uma perspectiva crítica, pode-se dizer que The dispossessed segue um
paradigma estabelecido pelo subgênero sf de utopias positivas de um
- 135 -
NOLETTO

modo similar à Utopia (1516) de Thomas More, em que um viajante deixa


seu país e chega a ‘Utopia’, exceto que no caso em tela, Shevek, o
protagonista, deixa o lugar que para o leitor seria utópico e chega a um
lugar distópico, ao menos se se levar em conta a perspectiva dele.
Um aspecto diuturnamente presente em obras de ficção científica
que de algum modo apresentam exemplos de glossopoese é a discussão
sobre o poder da linguagem sobre a mente. Este é outro ponto profícuo na
argumentação de Foucault. Ao comentar a gramática geral, ele questiona
qual é a particularidade do signo verbal ou qual é o seu estranho poder que
lhe permite, melhor que todos os outros, assinalar a representação, analisá-
la e recompô-la (FOUCAULT, 1999, p. 112).
Quanto à relação língua-pensamento, Kristen Fairchild, em seu
artigo Dystopian language and thought – the Sapir-Whorf hypothesis
applied (2014), produz uma discussão muito profícua sobre a aplicação
recorrente desta teoria linguística na criação de línguas artificias na
literatura, sobretudo em sf, mas não somente. O motivo, argumenta, é bem
claro: já que o idioma que se fala molda ou até define a percepção de
mundo ou mesmo o inteiro modo de pensar de seu falante, a língua serviria
ao propósito de descrever indiretamente como os personagens percebem
e interagem em suas próprias sociedades (FAIRCHILD, 2014).
Esse debate, sem dúvida, é atiçado por Lera Boroditsky em sua
obra Does language shape thought?: Mandarin and English speakers’
conceptions of time (2001). A pesquisadora pontua que pessoas
anglófonas e falantes de chinês mandarim falam do tempo cronológico de
modo diferente. Enquanto os primeiros falam de tempo como se ele fosse
horizontalizado, os últimos falam como se fosse verticalizado, e essa
diferença se reflete no modo como seus usuários falam sobre o tempo. Por
exemplo, falantes de mandarim eram mais rápidos em confirmar que
março vem antes de abril se tivessem visto uma sequência vertical de
objetos do que se tivessem visto uma sequência de objetos na horizontal.
Já com falantes de inglês acontecia justamente o oposto (BORODITSKY,
2001).
Pierre Bourdieu (1993) está entre as figuras mais proeminentes
dos que defendem a relação entre língua e poder. Para ele, língua ou
linguagem exerce um poder chamado simbólico, ou seja, um poder para

- 136 -
ARS GLOSSOPOETICA

definir significados e, por conseguinte tudo o que é ou não é legítimo. O


teórico continua:

The almost magical power of words comes from the fact that the
objectification and de facto officialization brought about by the public
act of naming, in front of everyone, has the effect of freeing the
particularity (which lies at the source of all sense of identity) from the
unthought, and even unthinkable (BOURDIEU, 1993, p. 224).

Com efeito, ao abordar a relação entre língua e identidade, Carl


Freedman (2000) mantém que uma vez que o Estado exerce pressão e
determina significações de acordo com sua agenda, disseminar sua
identidade através de um idioma artificial imposto à sociedade parece o
próximo passo óbvio e natural. Uma vez que o indivíduo se acostuma com
tais significados em nível de idioma nativo, entra em ação a hipótese
Sapir-Whorf.
Assim, como organizam as línguas, também o faz a mente no que
concerne à ordem dos pensamentos. Certamente os pensamentos se
sucedem no tempo, diz Foucault, mas cada um forma uma unidade. A
linguagem, ele continua, está para o pensamento e para os signos como a
álgebra para a geometria “substitui a comparação simultânea das partes
(ou das grandezas) por uma ordem cujos graus se devem percorrer uns
após outros” (FOUCAULT, 1999, p. 114). É nessa definição rigorosa que
a linguagem é apreciação do pensamento: não simples repartição, mas
estabelecimento denso da ordem no espaço.
A natureza da linguagem, o problema da comunicação, em vez
de apenas o futuro da tecnologia e da sociedade é justamente a questão
levantada nas obras anteriormente mencionadas, The dispossessed (1974)
de Ursula Le Guin, 1984 (1949) de George Orwell, A Clockwork Orange
(1962) de Anthony Burgess, Riddley Walker (1980) de Russel Hoban,
Babel-17 (1966) de Samuel R. Delany, bem como Story of your life (1998)
de Ted Chiang. “Toda língua deve, pois, ser refeita”, conclui Foucault
(1999, p. 120), justificando ademais o exercício intelectual e criativo dos
a quem podemos chamar de glossopoetas.
Em The dispossessed (1974), Ursula K. Le Guin utiliza
principalmente o Pravic, mas também o Iotic e o Niotic, as línguas
artificiais de Le Guin, para apenas dar a impressão de que as sociedades
- 137 -
NOLETTO

anarquistas de seu mundo construído não seguem uma ideologia não


coercitiva. O autor usa a glossopoese, entretanto, como uma estrutura
narrativa secundária, de natureza quase subliminar, que intensifica sua
verve satírica. Como resultado, o planeta anarquista se torna ainda mais
opressivo do que outros governos existentes. Essa ambiguidade
certamente representa o significado do subtítulo da novela; e que, por sua
vez, pode apoiar as alegações sobre o caráter tirânico das utopias
hipotéticas na obra (NOLETTO; LOPES, 2019a).
Já em 1984 (1949), George Orwell exibe a língua ficcional
Newspeak que, embora apresentado como um novo idioma, constitui uma
diminuição do idioma inglês. No romance, o partido Ingsoc é uma versão
satírica anglicizada da União Soviética comunista. A linguagem visa
substituir o Oldspeak, ou o idioma inglês comum, como um dispositivo de
comunicação entre os "proles" ou a classe trabalhadora oprimida de
cidadãos sem importância da Oceania, de acordo com a descrição que
Syme oferece a Winston (NOLETTO; LOPES, 2019b). A intenção nada
velada por trás do empreendimento é reprimir pensamentos anti-Ingsoc
por retirar da língua o vocabulário necessário para se construir tais
pensamentos.
Em Story of your life (1998), Ted Chiang também explora ou
traspassa os limites da relação entre língua e pensamento através do
idioma conceitual Heptapod B. O autor não se esforça muito na construção
de uma linguagem inventada que se assemelhe a uma linguagem natural,
como no caso das numerosas fabricações linguísticas de Tolkien. Em vez
disso, ele se concentra na construção de questões filosóficas e científicas.
Isso prova que o principal interesse não só de Chiang, mas de inúmeros
outros autores aqui mencionados ou não e, que se utilizam de glossopoese,
é se comunicar com os leitores, fazendo-os imaginar as extrapolações que
ele imagina, fornecendo-lhes as metáforas e alegorias apropriadas. De
fato, a nomeação ou a linguagem inventada é, em si mesma, um meio de
comunicação com o público do texto. É digno de nota também que não há
muita preocupação em aderir estritamente ao que atualmente é
considerado correto e preciso pelos linguistas, o que também é perceptível
em outras ficções semelhantes. Chiang utiliza glossopoese como um meio
de questionar a realidade (NOLETTO; LOPES, 2020).

- 138 -
ARS GLOSSOPOETICA

Referências

BORODITSKY, L. Does language shape Thought? Mandarin and


English Speakers’ Conceptions of Time. Cognitive Psychology, 43, n.
1, p. 1-22, 2001.

BOURDIEU, P. Language and Symbolic Power. Tradução


RAYMOND, G. e ADAMSON, M. Oxford: Polity Press, 1991.

CSICSERY-RONAY, I., JR. The Seven Beauties of Science Fiction.


Middletown: Wesleyan University Press, 2011.

EAGLETON, T. Literary Theory - An Introduction. Minneapolis:


The University of Minneapolis Press, 2003.

ECO, U. The Search for the Perfect Language. New York: Wiley,
1997.

FAIRCHILD, K. Dystopian language and thought – the Sapir-Whorf


hypothesis applied . Orientador: CSICSERY-RONAY, I. 2014. 69 f.
(Doctor's) - English, DePauw University, Greencastle.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: Uma arqueologia das


ciências humanas. Tradução MICHAEL, S. T. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.

FREEDMAN, C. Critical Theory and Science Fiction. Middletown:


Wesleyan University Press, 2013.

NOLETTO, I. A. C.; LOPES, S. A. T. Heptapod B and Whorfianism.


Language Extrapolation in Science Fiction. Acta Scientiarum.
Language and Culture, 42, n. 1, p. e51769, Jan-Jun 2020.
NOLETTO, I. A. C.; LOPES, S. A. T. Language and Control -
Glossopoesis in Orwell's Nineteen Eighty-Four and Elgin's Native
Tongue. Darandina, v. 11, n. 1, p. 1-16, 2019.

- 139 -
NOLETTO

NOLETTO, I. A. C.; LOPES, S. A. T. Language and ideology:


glossopoesis as a secondary narrative framework in Le Guin’s The
dispossessed. Acta Scientiarum. Language and Culture, 41, n. 2,
2019a.

SEEBER, E. D. Ideal Languages in the French and English Imaginary


Voyage. PMLA, 60, n. 2, p. 586-597, June 1945.

- 140 -
INVERSION: EMERGING PERSPECTIVES

-X-
INVERSION: EMERGING PERSPECTIVES IN HUMAN
EXPERIENCE AND LITERATURE
________________________

Chinedu Nwadike 1

Introduction

The connection between social criticism, literature and life in


society cannot be denied even under critical pressure from literary theories
like Formalism, structuralism, post-structuralism and New Criticism that
largely consider literature a world of its own. Branches of philosophy that
explore human existence and social dynamics from different angles agree
with the view that human experiences are a rich source of perspectives for
philosophy and literature and this is underscored by theoretical
frameworks that make use of both philosophy and the structures of literary
theory such as Marxism, feminism, postcolonialism, New Historicism and
Queer theory.2
People were experiencing tragedy and comedy in their lives long
before ancient Greek thinkers like Homer, Epicharmus, Sophocles,
Aeschylus, Aristophanes, and Euripides, and an important philosopher
like Aristotle turned these two categories of human experiences into
conceptual frameworks for literary art. Their creative writings are
evidence of dialectical interpenetration between philosophy and literature
in the art of social criticism. In this regard, their ingenuity lies not in
actually inventing something new but in creatively borrowing from lived
experiences into literary art.
This understanding holds even as Aristotle points out in Part III of
his Poetics which was written around 335 BCE that Dorians claim to have
invented tragedy and comedy whereas Megarians lay claim to comedy.
Such claims in ancient Greece do not refer to inventing something new in
human experience but for bringing tragedy and comedy to the fore of

1
Spiritan University Nneochi, Abia State, Nigeria
Email: chineduvango@gmail.com
2
First published in Research Journal of English Language and Literature (RJELAL)
- 141 -
NWADIKE

literary discourse. In addition, ancient Egypt is credited with earliest


theatres dating back to circa 2800 BCE particularly in connection with
mythologies and ceremonies associated with the triad of Osiris, Isis and
Horus. On the contrary, ancient Greek theatres date back to circa 700 BCE
particularly in connection with the cult of Dionysus which featured
dramatic performances of tragedies, with comedies included from 487
BCE. In ancient Greece, two muses were accepted for drama, namely,
Melpomene (the weeping face) for tragedy and Thalia (the laughing face)
for comedy while tragicomedy is still considered by many critics as
inferior.
Poetics, the earliest surviving work of dramatic theory, which
calls poems ‘representing action’ (mimesis or imitation) ‘drama’, also
provides grounds for the broad description of literature as representation
of human action. John Dryden goes on to expand this view to become the
representation of human nature and actions when he says ‘a play ought to
be a just and lively image of human nature, reproducing the passions and
humours, and the changes of fortune to which it is subject, for the delight
and instruction of mankind’ (cited in Nwabueze, 2011:17).
Aristotle provides in Poetics a classification and analysis of types
and characteristics of poetry with respect to medium, object and manner
(mode) of representation and lists major categories as epic poetry, tragedy,
comedy, dithyrambic poetry and music (from flute and lyre). While his
areas of interest according to ranking are tragedy, epic poetry and comedy,
he describes tragedy (which he explores at great length) and comedy as
two major categories of drama. On the contrary, earliest recorded use of
the word ‘tragicomedy’ was in Plautus’ prologue to his play, Amphitryon,
where Mercury wittingly suggests that the play should be called
tragicomoedia because of the indecorum of including slaves alongside
kings and gods.
However, a close look at the spectrum of human experiences will
show that tragedy and comedy are by no means the only major categories
of human experiences and literature and that by zeroing in on just these
two, Aristotle and critics in his tradition have missed another major
category which here will be called ‘inversion’.

- 142 -
INVERSION: EMERGING PERSPECTIVES

Understanding Inversion

Inversion is that category of human experiences where the result


of a series of human actions and circumstantial events is a situation where
the public or an audience is firmly convinced a certain individual in
society or a character in a plot is a loser, a tragic hero or tragic heroine
whereas for some strong personal reasons known probably to just a few
close associates, this individual or character is equally convinced he or she
is rather a winner or a comedic hero or heroine. These inverted
circumstances also hold where the public or an audience is firmly
convinced everything has finally ended on a winning note or as comedy
whereas it deeply feels like defeat or tragedy to the person of interest.
For these inverted circumstances to be achieved, the sequence of
actions and events directly producing a sense of tragedy must unfold along
a route or at a level different from that directly producing a sense of
comedy even as both must occasionally interact and be flush with each
other as a unit by means of the individual or character in question. It then
devolves on a writer of inversion to keep these two diametric levels also
in sync as a unit rather than split.
Quite clearly, inversion, as here explained, is neither covered by
the traditional binary of tragedy and comedy nor is it less a major category
of human experiences to be a significant resource for literature.
The diametric state of affairs should naturally or logically trigger
philosophical or existential questions which will overwhelm the inverse
hero or heroine since these questions will provide access to the hero’s or
heroine’s inner struggles and assessments of reality. Examples include:
‘Why have things turned out like this for me despite how hard I fought?’
‘How has he/she become so unlucky that unforeseen circumstances could
impose such on him/her?’ ‘Is life this cruel and meaningless?’ ‘Who am
I?’ ‘Why does something like this keep occurring in my life like a
pattern?’ ‘Is it just Satan messing with him/her or God also scheming to
frustrate him/her?’ ‘What’s wrong with me?’ ‘What’s wrong with people,
with the world?’ ‘How did I end up in a world like this?’ ‘Everyone is
different but am I this different?’ ‘Is this destiny or just blind chance?’ ‘Is
this the best timeline of existence I could have?’ ‘How did this good
fortune turn up for me?. ‘How did fate come to smile on me?’

- 143 -
NWADIKE

Philosophical or existential questions must also dovetail with


diametric emotions playing out within the inverse hero or heroine such as
love and hate, joy and sorrow, peace and violence, goodwill and malice.
In addition, the flood of existential questions can motivate the inverse hero
or heroine to search for a scientific formula, a mathematical equation, a
religious mantra or a secret code that holds even the slightest promise of
correcting or improving his or her circumstances.
An inverse plot must basically be devoid of Aristotelian catharsis
if it is to produce the diametric state of affairs which is its distinctive
feature. The emotional impact of inversion will understandably leave an
audience wanting the plot to go on a little longer in the hope of (more)
amiable resolutions or catharsis or wishing someone in the real world
would provide that.
Crafting an inverse plot is like serving an audience with a plate of
food appetizing enough to lure them to eat but conflicted enough to leave
an odd taste in their mouths (at once delicious and repulsive). An inverse
plot is not either tragedy or comedy just as it is not neither tragedy nor
comedy. It is at once tragedy and comedy in the fullest sense of each,
unlike tragicomedy that is midway between both.
Places of previous mentions of the concept of inversion as a
descriptive category for a particular type of circumstances include The
African Christ (2001) which talks about causal inversion and teleological
inversion and Rethinking the Gift (2004) which explores gift inversion,
grace inversion and response inversion. In them, the core meaning of
inversion as two levels in diametric opposition within a unit is
underscored.

Determinants of Inversion

Although inversion shares a lot in common with tragedy and


comedy, its own determinants are decisive enough to establish it on its
own terms. These include: a character admired for stubbornness or
perseverance in the face of odds; on behalf of the public, this character
overcomes a momentous situation and becomes their hero or heroine;
while people applaud that feat, the hero or heroine is privately torn asunder
because the effort to achieve that feat also led to the loss of something
- 144 -
INVERSION: EMERGING PERSPECTIVES

very dear to him or her; however, only few associates, if at all, know about
this loss; thus, while the public celebrates their hero or heroine, he or she
participates mainly to protect the public’s happiness but not pretentiously
although deep within is a heart overwhelmed by regrets, hence, at once
happy and sad (this is not ‘neither happy nor sad’, ‘either sad or happy’ or
‘half sad and happy’), at once self-fulfilled and frustrated, at once comedy
and tragedy (this is not tragicomedy).
An inverse framework can also be like: a community or group is
faced with a momentous situation that also creates a vacuum for potential
heroes or heroines to emerge; however, there is already someone with a
hero or heroine attitude also equipped with a philosophic mind that
critiques goings-on in society; this character is generally unknown or
known only to a few; he or she is courageous and magnanimous but has a
fault in behaviour; an interplay of knowledge, ignorance, foreseen and
unforeseen circumstances take advantage of the needs and/or faults of the
community and this character’s to create a major problem that affects the
community; another factor different from this momentous situation pushes
this potential hero or heroine into an experience that becomes a turning
point in his or her life; this turning point experience unfolds in a way that
later connects with the (worsening) situation facing the community;
thereafter, the potential hero or heroine cannot but step up to fill the hero
or heroine vacuum, a decision that deprives him or her the comforts of a
self-regulated life; determined to overcome that momentous situation for
the community, the hero or heroine examines and adopts an option; with
some doggedness, he or she finally achieves that feat; however, while the
community begins festivities in honour of their hero or heroine, he or she
is privately emotionally torn asunder because unknown to (most of) the
community, the process that led to victory also led to the loss of something
very dear (a person, property or virtue); although the hero or heroine had
foreseen this might happen, he or she could never avoid it despite all
efforts; and finally, while the hero or heroine joins the community to
celebrate the victory, he or she is also ripped apart by regrets and flooded
by existential questions; and lacking catharsis, the state of affairs (also
triggered in the audience) is: at once happy and sad, at once self-fulfilled
and frustrated.

- 145 -
NWADIKE

Another descriptive though analogical scenario of inversion is: an


individual is elected or volunteers to represent a community in a 100
metres competition and the trophy is ice-cream; this individual doggedly
participates and actually wins the race but realizes that, in line with a
premonition he or she had before and during the race, the effort to win for
the community kicked up so much bile to his or her mouth that he or she
is finally unable to enjoy the sweetness of the ice-cream even as the
community still ignorant of their hero’s or heroine’s personal distress
carries on with celebrations.
Yet another descriptive scenario comes like a motto: ‘to heaven
on reverse gear!’ – depicted by someone driving from one city to another
with other drivers but unlike others, the car moves forward only on
reverse; and since the driver must strain more than others due to back-
viewing, this causes him or her serious neck and shoulder pains; and while
everyone is happy to have finally arrived at the destination, this inverted
driver is both happy and sad.
As it seems, it will take more creative ingenuity to write a perfect
inversion than to write a perfect tragedy, comedy or tragicomedy since
writing tragedy or comedy requires the production of just one state of
mind, or midway between both for tragicomedy, whereas inversion
requires the production of a state of mind in diametric opposition but
constituting a unit and unlike tragicomedy. If any of these component
states of mind should even slightly outweigh another, the outcome will not
be inversion but tragedy, comedy, or tragicomedy.
The recommendation that an inverse hero or heroine should
initially be relatively inconspicuous in the community until he or she steps
up to challenges facing the community helps establish a transition from a
private world and low responsibilities to a public world of taxing
expectations, worldviews and policies which might occasionally conflict
with the individual’s and which might require him or her to surrender to
the community’s. Furthermore, a decision or what will motivate an inverse
hero or heroine to step up to the community’s needs must derive from a
character of magnanimity or vicariousness rather than from selfishness.
This understanding dovetails with Akwanya’s (2008:79) analysis
of Euripides’ Iphigenia in Aulis which he describes as a situation ‘where
the wisdom attained by the character [Iphigenia] after a silent meditation
- 146 -
INVERSION: EMERGING PERSPECTIVES

on her fate seems to centre on the priority of the needs of the collective
over those of the individual’. Similarly, the characteristic state of affairs
surrounding an inverse transition from private to public circumstances and
concession to requirements from the public dovetails with the vision of
the Nietzschean declaration that ‘in the heroic effort of the individual to
attain universality, in the attempt to transcend the curse of individuation
and to become the one world-being, he suffers in his own person the
primordial contradiction that is concealed in things, which means that he
commits sacrilege and suffers’ (cited in Akwanya, 2008:32).

Inversion in Lived Experiences

Every adult knows tragedy happens in the real world as does


comedy and tragicomedy. Since everyone somewhat shares in this drama
of life in respect of tragedies, comedies and tragicomedies, then,
everyone is guilty, in a manner of speaking. This falls in line with a remark
by Otten that ‘in the human drama, Morrison reminds us, innocence is
neither possible nor desirable’ (cited in Palladino, 2008:61). Nevertheless,
the exactitude with which a sequence of human actions and events unfold
as tragedy, comedy or tragicomedy in works of literature is not the same
way it unfolds in real life. Same holds for inversion.
In other words, although inverse heroes and heroines occur in real
life, the sequence of human actions and circumstantial events that unfold
around them in the real world may not exactly feature all the determinants
listed for inverse plots but will surely fit within an inverse framework. In
this wise, inversion includes the circumstances of someone who has been
so wrongly judged over an unfortunate incident that it significantly
distorted or destroyed the person’s future despite his or her innocence or
sincere attempts at a second chance. Same applies to situation where
someone was misjudged and that misjudgement provides the person with
a better state of life. In either case, things are not as they seem, as often
said.
Inversion also includes circumstances depicting the tyranny of
unforeseen circumstances over human freewill and self-determination.
Consider, for instance, a man who, after years of penury and frustrated
efforts, finally lands a job interview but while on his way there is hit by a

- 147 -
NWADIKE

drunk driver and rather ends up in a hospital, thereby losing a job


opportunity he is qualified for and once again is neither able to pay for his
medical treatment nor carter for his family.
Or still, victims of racist, caste or hierarchical systems that are
consistently denied sufficient opportunities to exercise their human
freedoms and realize their potentials no matter how hard they tried, and it
even looks like the harder they try, the worse their circumstances become
since the system fights as hard to frustrate them. Added to this list are
‘victims of social existence’ which is a neologism that refers to people
who find themselves pushed to the margins of society not for any fault of
theirs but for reasons of where and when they were born and other
unforeseen circumstances such as roadside beggars, dumpster scavengers,
children hawking goods along the streets and at traffic jams, homeless
people, impoverished petty traders, hapless refugees and migrants, poorly
educated and jobless people due to poverty, people wrongly accused and
punished for crimes, and other such categories of disadvantaged people.
‘Keep trying; if it doesn’t get better, it won’t get worse’ is a great
motivational speech but applied to them, it falls flat on its face. Life
circumstances such as these fall within the frameworks of inversion under
the pen of a creative writer.
Still worthy of mention are people who discover what seems to be
a pattern in their lives as circumstantial events interact with human actions
to always put them at the losing end of things no matter how hard they
fight to avert or overcome what appears to be their unwelcome fate. This
includes people who seem always or often unlucky compared to peers
facing similar challenges in life. There are, of course, people who seem to
be under a spell of some sort or even cursed!
Some inverse heroes and heroines might seem to carry the weight
of the world’s problems on their shoulders and feel like it is their bounden
duty to find solutions to critical problems even as they watch their peers
mostly want to just live and advance their personal careers and pleasures.
Under this solution-questing mindset (maybe a saviour complex), they
will be prone to withdraw from some social interactions so as to devote
more time to accomplishing that strongly felt social obligation.
Furthermore, they might end up left with no option than to step up to
certain challenges facing their society even when that decision later puts
- 148 -
INVERSION: EMERGING PERSPECTIVES

them in serious trouble and torn asunder by frustrations and regrets. In


their eyes, however, that step was their inevitable and only credible path
to self-fulfilment.

Inversion and “the Love Song of J. Alfred Prufrock”

In poetry, T. S. Eliot’s ‘The Love Song of J. Alfred Prufrock,’


which is a reflection on certain social conditions, was published in Poetry
magazine in 1915 and exhibits the style of stream of consciousness
characteristic of modernism. However, it does not sufficiently exhibit
features of inversion but comes close to offering a description of
circumstances similar to an inverse hero’s or heroine’s battle with
diametric emotions. To some critics however, the famous opening lines of
this poem – ‘When the evening is spread out against the sky / Like a patient
etherized upon a table’ (lines 2-3) – are very disturbing especially when
judged against the background of its period in literary history when
Georgian poetry was praised for close affinities with nineteenth century
Romantic poetry.
In addition, as Hart (1965:254) points out, Eliot’s first volume of
verse, Prufrock and Other Observations, which was published in 1917,
generally ‘had a tone of flippant despair’ and while ‘the Love Song of J.
Alfred Prufrock’ and a few others exhibit the rhythms and techniques of
ironic contrast familiar to some French Symbolistes, Eliot’s poetic
expression of conflicted existential conditions comes to a climax in ‘the
Waste Land’.
With reference to Eliot’s poetic vision in exploring conflicted
existential situations, Spiller et al. (1963:1341) in turn opine that Eliot’s
‘ethical values gave him far more insight into the meaning of history, just
as his projection of spiritual struggles endowed his monologues with a
dramatic tension.... As a result, his Prufrock, Sweeney and Gerontion,
sparely drawn as they were, became some of the most living characters of
their time’.
In its style as a dramatic monologue, ‘The Love Song of J. Alfred
Prufrock’ explores the existential conditions of a man torn asunder by
conflicting thoughts and emotions while incapacitated by timidity and

- 149 -
NWADIKE

diffidence to approach women he is interested in and who will be delighted


to get his attention. Lines 12-14 say:

Let us go and make our visit.


In the room the women come and go
Talking of Michelangelo.

However, he turns out a disappointment to himself and chides


himself for lacking the courage and vision to step up to that dream. Lines
50-53:

Do I dare
Disturb the universe?
In a minute there is time
For decisions and revisions which a minute will reverse.

On a general note, a conflicted state of mind such as assailed


Prufrock can be the outcome of inner conflicts between an individual’s
inclinations and socio-moral expectations (even in a Freudian sense). It
can also be the result of conflicts between the interests and worldviews of
two different groups to which an individual belongs or between a society
or group and public expectations from this group at the centre of which is
the individual.

Inversion and Prometheus

Aeschylus’ Prometheus Bound is another work that comes close


to inversion. The plot of this drama will need some re-writing in some
important respects to make it an inverse drama.
Firstly, Prometheus Bound talks about a time when Prometheus
intervenes in the affairs of humankind and by giving humankind the gift
of fire rescues them from the tragic consequences of ignorance and
annihilation by Zeus who has plans to replace humankind with a new race
of creatures. An inverse plot will include a time when Prometheus was a
relatively inconspicuous figure before realizing and stepping up to the
threats and challenges facing humankind.

- 150 -
INVERSION: EMERGING PERSPECTIVES

Secondly, a different but related personal experience is what will


unfold as the turning point experience that will motivate Prometheus to
step up to those threats and challenges on behalf of humankind. In other
words, Prometheus will not be getting into this vicarious deed without a
preceding personal experience that will provide a turning point in his life
or just to stand in the way of the gods.
Thirdly, although Zeus later incarcerates Prometheus for rescuing
humanity from both ignorance and annihilation and sabotaging his plans,
Prometheus will not be the proud character seen in Prometheus Bound. He
will not be arrogantly and elaborately ridiculing Zeus in the midst of his
humiliations and sufferings. On the contrary, even if an inverse
Prometheus will need to ridicule Zeus, more attention will rather be given
to highlighting the inverse situation of his emotions and the flood of
existential questions emanating from that condition. Prometheus will be
grappling with the experience of being torn asunder between joy and
sadness, self-fulfilment and frustration over what he accomplishes for
humankind since the same process that leads to victory also leads to losing
something too precious for him to bear which he alone (or, and a few
others) knows. Furthermore, this inverse state of affairs will be seen to get
worse the more humankind holds feasts in his honour oblivious of
Prometheus’ grave personal loss, and probably, while Zeus also intensifies
his punishments.
Fourthly, an inverse Prometheus will effectively hide his grave
personal loss and sufferings from the cheering public except to a few in
his privy so as not to dampen the public’s festive mood and undermine the
integrity of his hard-won victory.
Fifthly, an inverse Prometheus will not find or derive any catharsis
from his inverse state of affairs (neither will the audience watching or
reading the inverse drama, which will, of course, leave the impression that
the drama should not end where it actually ends since the audience will be
left longing for a comforting resolution to Prometheus’ fate).
Seventhly, flipside of this state of affairs, Prometheus’ inverse
situation could equally be that the process of intervening on behalf of
humankind leaves him gaining something very precious (rather than
losing such), which only he knows or with a few others, whereas he fails
to accomplish what he sets out to do for humankind, which probably

- 151 -
NWADIKE

makes matters worse for humankind. As a consequence, humankind rises


in strong condemnation and derision of Prometheus but who rather goes
on in a celebrative mood although, as must be the case of every inversion,
he is torn asunder between joy and sadness, at once self-fulfilled and
frustrated, and from this there can be no catharsis.

Inversion and Major Highlights of Tragedy

A critical look at tragedy and comedy will bring to the fore areas
of convergence and divergence with inversion, which will facilitate a
better understanding of inversion as a new contribution to literature and
literary criticism.
Since Aristotle’s Poetics, tragedy has always attracted a great deal
of critical attention probably much more than comedy and tragicomedy.
In Schopenhauer’s (1969:252) view, tragedy deserves to be called ‘the
summit of poetic art’, a view that claims a very important position for
tragedy in literature. Yerima (2003:46) makes the relevant contribution
that as a word, tragedy comes from two Greek words, ‘tragos’ (goat) and
‘ode’ (song) and locates the origin of tragic drama in the ‘celebration and
worship of the Greek god, Dionysus, who was a god of nature and fertility
[the three fecundity or Dionysian festivals were Lenaea, Rural, and the
City of Great Dionysia] quite as much as the god of wine’ and in
ceremonial rites at the gravesides of culture-heroes and demi-gods.
Nwabueze (2011:11-12) in turn makes the interesting contribution
of providing a description of the first ever drama which was performed on
stage by Thespis (550-500 BCE) in the sixth century BCE during a feast
of Dionysus and at which about fifteen thousand Greek citizens were
present. He narrates how, in the course of the ceremony, Thespis breaks
away from a chorus of fifty men performing dithyramb and impersonates
Dionysus and that by this singular act, Thespis accrues acclaim as the first
ever actor (hypocrite, which literally means answerer) and first ever writer
of tragedy.
On a general note, however, Aristotle’s Poetics plays a significant
role in the popularity and critical appreciation of tragedy. His definition
and analysis of tragedy – largely anchored on his admiration and analysis
of Sophocles’ Oedipus Rex (first performed circa 429 BCE), which he
- 152 -
INVERSION: EMERGING PERSPECTIVES

considered the perfect tragedy – has influenced thinking since then. As he


states in Part VI of this landmark work, Poetics,

Tragedy, then, is an imitation of an action that is serious, complete, and of a


certain magnitude; in language embellished with each kind of artistic
ornament, the several kinds being found in separate parts of the play; in the
form of action, not of narrative; with incidents arousing pity and fear,
wherewith to accomplish its katharsis of such emotions.

Aristotle also strongly recommends that every tragedy must have


these six parts which will in turn determine the literary quality of the work,
namely, plot, characters, diction, thought, spectacle, and melody.
Aristotle goes on to consider tragedy to be higher and more
philosophical than history given that history is a narrative that tells
what happened in the past whereas tragedy is a representation that shows
what could happen under certain circumstances, that is, according to
probability or necessity (‘the law of probability or necessity’). In this wise,
while history focuses on particular events at particular moments in time,
tragedy focuses on events with general applicability across time or events
with universal purview.
Known determinants of tragedy include the following: a hero or
heroine character; noble or courageous but with a fault in attitude;
ignorance or unforeseen circumstances take advantage of the fault;
thereafter, the hero or heroine encounters a momentous situation where he
or she has to make a choice between two or more difficult options; he or
she makes the choice by force of habit; however, the choice triggers a
series of events that inexorably draw him or her into a deplorable
(distasteful or fearful even to the audience) experience; although the hero
or heroine fights back to overcome all that, he or she loses; in addition,
there is a reversal of fortune much like a fall from grace to grass;
nevertheless, from the knowledge the hero or heroine gains from all those
unfortunate experiences, he or she acknowledges that unforeseen
circumstances were more to blame than personal faults (which makes the
audience pity him or her as a victim of circumstances, especially when this
sad turn of events show the hero’s or heroine’s sufferings far outweigh the
personal faults); and yet (as the drama comes to an end), by the same force

- 153 -
NWADIKE

of habit or strength of character, the hero or heroine reaches out to the


future in the hope of better times (which provides catharsis).
This angle about how unforseen circumstances enormously affect
the circumstances of persons of interest is also clearly seen in inversion.
As said earlier, inversion includes a depiction of the tyranny of unforeseen
circumstances over human freewill or freedom of choice, human freedoms
and power of self-determination.
Another area of convergence between tragedy and inversion is
conflict. Each of them affirms the important role conflicts could play in
the unfolding of situations around persons of interest. It is in respect of
this important role of conflicts that Devi (2013:1) points out that,

The basic element in determining the action of a play is the dramatic conflict
which grows out of the interplay of opposing forces in a plot. The opposing
forces may be ideas, interests or wills. While presenting the conflict there
must also be a cause of opposition, or a goal within the dramatic action of
the play. The real plot of tragedy begins with the opening of a conflict and
ends with its resolution. The middle of the tragedy consists of the
development and fluctuations of the conflict. The greatness of a tragedy
depends on the manner the dramatist initiates, develops and concludes the
conflict, the way how [sic] he handles it.

Devi’s contribution provides an understanding of how ancient


Greek tragedies make good use of external conflicts whereby tragic heroes
or heroines must confront the more powerful forces of fate or factors
beyond their control, as seen in Sophocles’ Oedipus Rex and Antigone, to
attain their end. Furthermore, modern tragedies usually replace the
irrational forces of fate with age-old worldviews and social norms which
come in conflict with the views or inclinations of main characters, as seen
in Shakespeare’s Macbeth and Julius Caesar. However, as Devi (2013, 1)
underscores, both internal and external conflicts can effectively be at work
in a single plot to make it more captivating, as seen in the circumstances
of Orestes, Medea and Oedipus.
Among other things, conflict situations can be effectively
articulated using a pharmakos trope. A pharmakos framework usually
involves ritual cleansing by means of a human pharmakos (φαρμακόϛ:
scapegoat or carrier) who is socio-culturally understood as embodying,

- 154 -
INVERSION: EMERGING PERSPECTIVES

through a process of ritual imputation, the social and metaphysical defects


of a community that threaten its life force or wellbeing. The ritual killing
or banishment of a pharmakos from the community is, thus, understood as
the liberation of the community from the consequences of those defects or
as a communal transition from sickness to health or death to new life.
Known fragmentary writings by Hipponax in the sixth century
BCE and Petronius in the first century BCE highlight pharmakos rituals
in the ancient Hellenic world, a practice that also existed in some other
ancient cultures of Europe and Africa where pharmakoi refered to victims
used for ritual cleansing. A pharmakos can be an animal but if human is
usually a marginal individual like the physically deformed and the poor.
As a cultural practice, it was prevalent especially in caste societies. The
human victim can either volunteer or be selected with or without its
consent. Derrida’s application of deconstruction to some of Plato’s
writings like Phaedrus (circa 370 BCE) provides that the term pharmakon,
which connects with related terms like pharmakeia and pharmakeus but
without pharmakos, has a range of meanings, which besides scapegoat,
includes poison and remedy – even magician (cited in Johnson, 1981:63-
171).
Aristotle’s declaration that a work of drama will have a beginning,
a middle and an end applies not just to tragedy, which he gives more
attention, but also to comedy, tragicomedy, and now, inversion. However,
as can be seen in some modern works, action can begin somewhere in the
middle (in medias res) but incorporate a flashback somewhere before the
end to provide relevant information. Nevertheless, it is an open question
whether a flashback can be introduced after the end of a drama like an
afterthought, just like when one is telling a friend a story and after
concluding it, the friend picks on an aspect and gets the narrator to say
something more.
In line with what Aristotle recommends for plots, McManus
(1999:2) explains that standard tragedies must consist of three parts,
namely, an incentive moment (a sequence of actions and events that begin
a plot and lead up to–), a climax (a sequence of actions and events that
constitute the high point of the plot, where tragedy unfolds but leads on
to–), a resolution (a sequence of actions and events that constitute the end
of the drama and incorporates catharsis). The causal movement from an

- 155 -
NWADIKE

incentive moment to a climax is known as complication (desis or tying up)


whereas the more rapid movement from the climax to a resolution is
known as the unraveling (lusis) or context (dénouement).
Other important concepts in the development of a tragic plot
include hubris (extreme human pride or self-confidence that undermines
deities and attracts punishment), as shown, for instance, by the character,
Elesin, in Soyinka’s Death and the King’s Horseman (1975), for
considering himself deserving of even inordinate favours by reason of his
exclusive role as the king’s horseman both in this life and in the next, and
hamartia (a serious mistake or error in judgment), exhibited by both Elesin
and the colonial district officer who dared to imprison him to prevent him
from performing his role as pharmakos allegedly for its barbarity.
In addition to McKenna’s (1991:490) view that ‘an essential
characteristic of any tragedy… is the issue of a tragic character’s
discovering some essential truth, of achieving some growth in self-
understanding’, some more important concepts for tragedy are peripeteia
(reversal of intention), which Elesin exhibits as a consequence of his
incarceration, and which causally leads to anagnorisis (recognition), when
the devastating implications of his inability to perform his ritual suicide
on schedule dawn on him, and which causally goes on to lead ultimately
to a catastrophe (the spectrum of socio-religious misfortunes and crises
that befall a community as a consequence of failure or delay in pharmakos
ritual), which, in Elesin’s case, includes troubling uncertainties about the
future of a child he fathered outside marriage, the suicide of his own son,
Olunde, as replacement for his own failed ritual suicide, and later, Elesin’s
suicide of attrition which, like Olunde’s, however, does not meet ritual
requirements.
While these important features of tragedy can also be found in
inversion, they all rather amount to just one out of the two streams that
constitute inversion, the other being comedy. In other words, inversion
applies to a plot that is at once tragedy and comedy, each stream unfolding
at its full lenght, in equilibrium with the other, and both of them
constituting just one integrated unit and devoid of catharsis.

- 156 -
INVERSION: EMERGING PERSPECTIVES

Inversion and Major Highlights of Comedy

Comedy can also make good use of conflicts in plot development.


However, comedy generally downplays conflicts and when employed,
they are resolved in very decisive ways that push attention more towards
an amiable state of affairs as a final outcome.
Major determinants of comedy include the following: a main
character does not suffer; if he or she does suffer, it will be briefly and as
prelude to better times; hard times that might come to him or her could be
deflected by actions and events to some others; an amiable, comfortable
or humorous state of affairs is given more treatment; this emasculates
suffering, fear and pity, and by implication renders catharsis irrelevant.
According to Akwanya (2008:39), although some modern critics
consider ‘revel’ to be the underlying principle of comedy, comedy is so
pluriform that it cannot be easily reduced to any single principle.
Akwanya also recalls Sewall’s view that great comedy gains its power
from its sense of tragic possibility just as great tragedy includes a
possibility of turning out a comedy.
Comedy is mostly known for its fun side or happy endings. While
comedy has been made to come in a variety of forms and for different
purposes, Park et al. (2006:159) note that many scholars concede it is often
difficult to separate social commentary and satire from ideological
reproduction of racial stereotypes in comedy. In this wise, the question
becomes whether viewers laugh ‘at’ stereotyped minority figures or ‘with’
them.
Alberti and many other critics, however, accept that the humour
and satire characteristic of plots of comedy can be effectively deployed
for serious objectives such as criticism of aspects of social life or people
in authority. This is seen, for instance, in the evolution of the Russian
anekdot (a critical often political joke) and in George Orwell’s Animal
Farm (1945).

Inversion and Questioning Aristotelian Catharsis

Inversion is constituted devoid of catharsis and even though it


includes tragedy as one of its constituent streams, its cathartic aspect will

- 157 -
NWADIKE

have to be eliminated or nullified. Comedy, the other constituent stream,


does not require catharsis since any conflict woven into it is amiably
resolved before the end of the plot. Furthermore, catharsis cannot pretend
to be indispensable for serious plots. Despite humour, comedy can also
effectively handle serious matters.
Aristotle could have recommended catharsis for tragic plots out of
personal bias rather than from any inner logic of tragic sequences.
Aristotle was nurtured in a Greek society evolving with increasing
disposition towards military, ideological and territorial expansion beyond
its borders, a factor that circumscribes the rise and fall of the Greek empire
(circa 800–146 BCE). In this wise, Aristotle’s Greece was highly invested
in a colonial and hegemonic mindset and would desire every conquered
population to go on with their lives feeling pacified in surrendering to that
new fate, hence catharsized after the tragedy of confrontation with a
superior or luckier Greek army than nurse self-pity, fear and resentment,
which predictably can motivate rebellion. This thinking probably inspired
Aristotle to recommend catharsis for tragedy.
Colonizers, like Aristotle’s Greece, hardly objectively
comprehend the destructive impacts of their social system on colonized
people and are wont to deploy every means within their power
(including ideological stipulations for literature, etc.) to protect that
system. However, as Eagleton (1976:3) points out, ‘an ideology is never
a simple reflection of a ruling class’s ideas; on the contrary, it is always a
complex phenomenon, which may incorporate conflicting, even
contradictory, views of the world’.
Such expansionist programs in the ancient world can be
considered the earliest roots of globalization. In this vein, Herrington
(2013:155) notes that the ‘homogenization thesis posits that globalization
will lead to a linguistic, religious, and cultural convergence that ultimately
reduces diversity everywhere’. Other critics like Friedman and Scholte
warn that globalization could erase or gravely undermine indigenous
heritages and languages as well as ecological andculturaldiversities (cited
in Herrington, 2013:155).
It is also important to note, as Charles-Louis de Secondat recounts,
that Aristotle advised his former student, Alexander the Great, to treat
fellow Greeks with dignity but conquered Persians like slaves (cited in

- 158 -
INVERSION: EMERGING PERSPECTIVES

Pagden, 2008:67). Treating people like slaves means treating them with
contempt and to subject them to ideological and practical social
frameworks that preclude, deter or stamp out dissent, resistance and
rebellion. By implication, Aristotle prefered Greek empire’s conquered
peoples pacified and resigned to their fates. In this wise, bias rather than
logic was probably behind Aristotle’s recommendation of catharsis for
tragedy.
It is also significant that despite his reverence for Aristotle,
Alexander the Great rather implemented a policy of respect, integration
and reconciliation with conquered people. This had the intended effect of
putting him in a good light with them and placating or ameliorating the
circumstances of those conquered people and their deposed rulers and
which, thus, undermined potential rebellion. However, this policy too had
a catarthic effect as intended.
Had Aristotle been a citizen of a conquered nation, a deposed ruler
or a slave, it is less likely he would recommend catharsis since a state of
mind like that would deny him and fellow citizens the visions and
opportunities of recovering their independence whether by peaceful or
violent methods. A thinker writing from the flipside mindset of a captive
or slave would rather more likely recommend not catharsis but memento,
which here refers to designated indices or factors that remind one and
relive memories of a significant event such as a tragic experience and also
motivate one towards a reawakening, a resurgence or rebellion.
This critical questioning of Aristotle’s catharsis so far has shown
how personal interests or socio-political bias can affect how one
approaches literature. Literature can indeed be politicized, which is also
in line with Aristotle’s popular dictum that the human person is a political
animal (πολιτιχὸν ξῷον), a view that has been meaningfully explored by
Mulgan and some other critics. Many people today are inclined to believe
that political aggression and domination are integral to social development
and transformations as people compete for the world’s resources. No
wonder too that in his Grundrisse, Karl Marx (cited in Eagleton, 1976:5)
offers a broad view where the history of art is considered an evidence of
complexity in the relationship between the base (the economic structure
of a society) and the superstructure (totality of ideologies: politics,
literature and art, philosophy, law, and so forth).

- 159 -
NWADIKE

The questioning of Aristotlean catharsis has, thus, shown that


socio-cultural bias and personal interests can really affect how one
approaches literature, which lends weight to Wa Thiong’o’s (1981:ii)
thesis that ‘Literature cannot escape from the class power structures that
shape our everyday life. Here a writer has no choice. Whether or not he is
aware of it, his works reflect one or more aspects of the intense economic,
political, cultural and ideological struggles in a society…. Every writer is
a writer in politics’. Marxism provides an even more critical description
of literature as an element of the ideological superstructure which is
heavily subject to dynamics in the economic base (Habib, 2005:530-33)
and which the ruling class or bourgeoisie who own the means of
production use like a tool to exploit the proletariat and protect the status
quo, as Marx elaborately argues in Capital, and with Engels, in The
Communist Manifesto.

Conclusion

Aristotle and many other philosophers and literary writers have


contributed so much towards better understanding of the interpenetration
between philosophy, social criticism and literature. However, in zeroing
in on tragedy and comedy as the only two major categories of life
experiences and literature, they missed yet another major category,
inversion.
Inversion is a unit constituted equally by a full stream of tragedy
and a full stream of comedy, the outcome being a state of affairs at once
sad and happy, at once frustrating and fulfilling, at once tragedy and
comedy and which is unlike tragicomedy.
Detailed exploration of inversion has shown it has important areas
of convergence with the others as well as important areas of divergence,
which includes the matter of catharsis and which has been shown to derive
more likely from Aristotle’s socio-cultural bias and personal interests than
from any inner logic of tragedy.
Recognition, use and critical exploration of inversion going
forward will fill an age-old gap and both broaden and enrich the purview
of works of literature and literary criticism.

- 160 -
INVERSION: EMERGING PERSPECTIVES

References

Akwanya, Anthony N. Discourse Analysis and Dramatic Literature. 3rd


ed. Enugu: New Generation, 2008. Print.

Alberti, John. Leaving Springfield: The Simpsons and the Possibility of


Oppositional Culture. Detriot: Wayne State University Press, 2003.
Print.

Derrida, Jacques. “Plato’s Pharmacy.” In Dissemination. Translated by


Barbara Johnson, 63-171. Chicago: Chicago University Press, 1981.
Print.

Devi, Rajkumari A. “Conflict in Tragedy.” The Criterion: An


International Journal in English 12 (2013): 1-5, www.the-
criterion.com.

Eagleton, Terry. Marxism and Literary Criticism. London: Methuen,


1976. Print.

Habib, M. A. R. A History of Literary Criticism: From Plato to the


Present. Oxford, UK: Blackwell, 2005. Print.

Hart, James D. The Oxford Companion to American Literature, 4th ed.


Oxford: Oxford University Press, 1965. Print.

Herrington, Luke M. “Globalization and Religion in Historical


Perspective: A Paradoxical Relationship.” Religions 4 (2013): 145-
165, https://doi.org/10.3390/rel4010145.

McKenna, Steven R., “Tragedy and the Consolation of Myth in


Henryson’s Fables.” Studies in Scottish Literature26(1); (1991):
490-502, http://scholarcommons.sc.edu/ss1/vol26/iss1/42.

- 161 -
NWADIKE

McManus, Barbara F. “Outline of Aristotle’s Theory of Tragedy in the


Poetics.” CLS 267 (1999): 1-4,
http://www.2.cnr.edu/home/bmcmanus/poetics.html.

Mulgan, R. G. “Aristotle’s Doctrine that Man is a Political Animal.”


Hermes, 102(1974): 438-445.

Nwabueze, Emeka. Studies in Dramatic Literature. Enugu: Abic, 2011.


Print.

Nwadike, Chinedu. The African Christ. Owerri: Alphabet Publishers,


2001. Print.

__________. Rethinking the Gift. Enugu: SNAAP Press, 2004. Print.

Orwell, George. Animal Farm: A Fairy Story. London: Secker and


Warburg, 1945. Print.

Pagden, Anthony. Worlds at War: The 2,500-Year Struggle between East


and West. New York: Random House. 2008. Print.

Palladino, Mariangela. “History, Postcolonialism and Postmodernism in


Toni Morrison’s Beloved. In Neither East nor West: Postcolonial
Essays on Literature, Culture and Religion, edited by Kerstin W.
Shands, 53-63. Stockholm: Södertörnshögskola, 2008.

Park, Ji Hoon, Nadine G. Gabbadon, and Ariel R. Chernin. “Naturalizing


Racial Differences through Comedy: Asian, Black, and White
Views on Racial Stereotypes in Rush Hour 2.” Journal of
Communication56(1); (2006): 157-177,
https://doi.org/10.1111/j.1460-2466.2006.00008.x.

Schopenhauer, Arthur. The World as Will and Representation, vol. I,


trans. E. F .J. Payne. New York: Dover, 1969. Print.

Soyinka, Wole. Death and the King’s Horseman. London: Eyre


Methuen, 1975. Print.
- 162 -
INVERSION: EMERGING PERSPECTIVES

Spiller, Robert E., et al.Literary History of the United States, 3rd ed.
London: Collier-Macmillan, 1963. Print.

WaThiong’o, Ngũgĩ. Writers in Politics: Essays. London: Heinemann,


1981. Print.

Yerima, Ahmed. Basic Techniques in Playwriting. Ibadan: Kraft Books,


2003. Print.

- 163 -
PARAJULI

- XI -
HOSSENI’S THE KITE RUNNER: A COSMOPOLITAN
IMPRESSION
________________________

Sagar Parajuli 1

The Kite Runner is the story of a Sunni Muslim called Amir. He


struggles to find his place in the world because of a series of traumatic
childhood events. An adult Amir opens the novel in the present-day United
States with a vague reference to one of these events, and then the novel
flashes back to Amir's childhood in Afghanistan. Apart from the typical
childhood experiences, Amir struggles with forging a closer relationship
with his father, Baba; with determining the exact nature of his relationship
with Hassan, his Shi'a Muslim servant; and eventually with finding a way
for pre-adolescent decisions that have lasting repercussions. Along the
way, readers are able to experience growing up in Afghanistan in a single-
parent home, a situation that bears remarkable similarities to many
contemporary households. One of the biggest struggles for Amir is
learning to traverse the complex socio-economic culture he faces, growing
up in Afghanistan as a member of the privileged class yet not feeling like
a privileged member of his own family. Hassan and his father, Ali, are
servants, yet at times, Amir's relationship with them is more like that of
family members. And Amir's father, Baba, who does not consistently
adhere to the tenets of his culture, confuses rather than clarifies things for
young Amir. Many of the ruling-class elite in Afghanistan view the world
as black and white, yet Amir identifies many shades of gray.
Apart from the issues affecting his personal life, Amir must also
contend with the instability of the Afghan political system in the 1970s.
During a crucial episode, which takes place during an important kite flying
tournament, Amir decides not to act. He decides not to confront bullies
and aggressors when he has the chance and this conscious choice of
inaction sets off a chain reaction that leads to guilt, lies, and betrayals.

1
English professor at Prasadi Academy, Nepal. Master of Arts in 2012 from
Tribhuwan University.
Email: sparajuli2043@gmail.com
- 164 -
THE KITE RUNNER: A COSMOPOLITAN IMPRESSION

Eventually, because of the changing political climate, Amir and his father
are forced to flee Afghanistan. Amir views coming to America as an
opportunity to leave his past behind. Although Amir and Baba toil to
create a new life for themselves in the United States, the past is unable to
stay buried. The living a life of refugee becomes difficult. When it rears
its ugly head, Amir is forced to return to his homeland to face the demons
and decisions of his youth, with only a slim hope to make changes.
This study attempts to uncover the problems in The Kite Runner
faced by different characters like Amir, Agha, Sohrab etc who represent
the refugee made by the changes of geo-political scenario of Afghanistan.
It also, at a time, questions the role of nation-state like Pakistan and USA
for providing refugee rights. Similarly, embraces the notion of domination
by Assef, a representative of state to refugee or minority groups.
To deal with the issues pointed above, this paper is divided into
three major parts. The first part highlights the notion of refugees and
historical background for refugees in Afghanistan. This part presents how
refugee problem emerged in Afghanistan. Second part is the important
part of this paper where it pinpoints the major refugee problems, their
hardships, their helpless situation in the shelters and the role of nations-
states to respond this problem. The major and serious questions of ideal
asylum and concept of cosmopolitanism are brought into discussion in this
section. With references and facts highlighted as the main issue of the
paper, it brings thereupon the relevant cosmopolitan theoretical concepts
of Derrida, Foucault, Levinas, Hannah Arendt, Balibar and Hemel and try
to connect the refugee crisis of The Kite Runner in a global spectrum. It
brings different published and online literature including the reports of
different humanitarian organizations for the necessary facts, figures,
reviews, remarks, data and ideas of Afghan refugee crisis. It hereby tries
to correlate these literatures on Afghan refugee problem with the
theoretical notions to prove that the role of Europe and other host countries
are not sufficient to address these refugees. They have yet more to do for
humanity, human rights and refugees. The paper, then, concludes based
on the three earlier issues and understanding upon them, the paper
concludes.
2. Notion of Refugee, redefinition and historical background of
refugees in Afghanistan:

- 165 -
PARAJULI

To put a general definition, any person who is compelled to leave


his place of resident and move to new destination as to ensure his living is
a refugee. There can be many conditions and reasons which compel any
individual to leave his/her place of origin like social, political,
environmental factors etc. According to the 1995 Refugee Convention,
which sets criteria of being refugee, and tries to give a legal form of
definition thereby setting standard criteria of being a refugee. The
convention was meant to address the security and protection needs of
refugees after World War Second. As per the definition, refugee is a
person who is compelled to leave country of own nationality due to fear
of being persecuted. The reasons for fear could be any issue like race,
religion, nationality, and politics and so on. The most important point we
can figure out from the above definition is, a man becomes refugee when
he/she does not trust the protection or security provided by his state and
therefore he/she does not feel like returning back home (country) (Article
1)
Over the time, the term “refugee” has been replaced with many
other terms, so is its meaning. People find negative connotation in the
practice of the term and meaning as such. Hannah Arendt in her seminal
article We Refugee finds this term problematic and tends to redefine it. She
simply rejects the traditionally established meaning of “refugee”. She does
not prefer to be called “refugee” but “newcomer” or “immigrant”. Her
logic behind it is, she is a Hitler-persecuted person who had not committed
any bad acts nor held any political opinion. They made her a refugee just
only because she was a member of Jewish community. They had not
committed any wrong against Hitler. It was simply Hitler’s xenophobic
mentality which resulted into massive flux of Jewish refugee from
Germany. This is to say that sometimes refugees emerge out of nowhere
as Jewish community had been. Sometimes, even innocent people who
have done nothing wrong are victimized as refugee. Arendt, therefore,
challenges the traditional term “refugee” and its meaning and charged it
to be politically incorrect term (110).
According to UNHCR Survey Report (2013), the effect of refugee
crisis has even more macabre effect upon the children. The number of
children refugee is very high. “Over 1.1 million Syrian children have

- 166 -
THE KITE RUNNER: A COSMOPOLITAN IMPRESSION

registered as refugees with UNHCR worldwide. Of this number, some 75


per cent are under the age of 12. Children represent 52 per cent of the total
Syrian refugee population, which now exceeds 2.2 million” (1). They are
badly suffering both inside Syria and other asylums. They have been going
through very serious and inhuman hurdles. Fractured family, poor
physical and mental status, plight of child labor, war trauma and legal
confusions are some of the very serious effect of the crisis upon children
refugees. The report has outlined very serious issue of legal confusions in
children. There are so many barriers even in issuing their legal documents
like birth registration. This exemplifies how the crisis has excluded its
citizens from the human rights or citizen rights. As the report clearly
reveals that the refugees become the subject to exclusion in between the
confusion of man and citizen. The story of Radwan and many refugee
children have no access to human right. They are neglected by the host
countries as included but not the belongings (14). Agamben (1998) argues
for the guarantee of human rights in a similar vein. He opines that refugee
should not be considered as per the original place he belonged to,
historicity he has or cultural background he represents. He should not also
be categorized in any fundamental categories since he is at least human
beings, who strive for human rights. He has every right to receive natural
right be it while getting birth certificate or getting admission in school.
There should be no confusion at all between birth and nation or man and
citizens. Every nation has man who gets birth. Every citizen is a man at
the first place. The “bare life” has nothing that demands much but it’s
today’s nation-states’ responsibility to protect and guarantee the human
rights to them. If citizenship rights are provided to the refugees, it would
always be welcome (78). But case with the Syrian refugee children is not
like this. They are being plucked by the host countries before the children
even bloom. What would be their future when they are excluded from the
mainstream state concerns like human rights in the budding phase? Does
humanity really exist in modern world? Do the European states and
neighborhood of Syria remain always peaceful and happy to see Syrians
dying bare-handed or their human rights being snatched? The tendencies
of the host countries to subjugate the refugee rights prove nothing but
being fascist in every possible way.

- 167 -
PARAJULI

It is also clear from his opinion that refugees do not get the rights
only because they are taken as non- citizen in a host country. Because,
citizenship is only a key with which one can open the door of rights. As
long as the countries of asylums do not get confused between citizenship
rights and human rights or as long as they do not reduce human rights to
citizen rights, there is the high risk of security of refugees in the world.
These risks of refugees should be overcome as Emmanuel Levinas
suggests, “Life can thus mean only life worthy of the name; life in the full
sense of the term: exile, of course, but not prison, no hard labour, and no
concentration camp. Life which is life. The humanism or humanitarianism
of the cities of refuge!” (42). As per Levinas’ argument, human life should
never be devoid of humanism or humanitarianism no matter it is in prison
or exile. City of refuge is what functions as the solution to all the human
rights concerns of refugees.
The shelter owners or asylum providing nations’ tendency is full of
loopholes. They knowingly create demarcation line between human-
citizen rights and pretend to be welcoming for the bare lives. There should
be hidden motive behind such tendency. They try to silence the voice of
refugee and dominate them with an utter discrimination between a citizen
and human right as Etienne Balibar urges in Citizen Subject, an attempt to
comment on Declaration of the Rights of Man and of the Citizen (1798),
argues Declaration of the Rights of Man and of the Citizen, the legal
landmark of human rights problematizes the rights itself when it marks a
rupture between right of the man and of the citizen. He believes that the
issues as such should not rely on duality. This duality has created a whole
lot of confusion and hence the refugees are destined to live a trapped life.
The does not clarify if the life of man or citizen is important thereby. This
has encouraged people in power to prefer one over other and be a
totalitarian in the name of humanity (44). This is the case with Afghan
refugees too. Though they are given shelters in neighbouring countries,
they are deprived of natural, that is, unalienable right of human being.
They are starving, dying and tortured. The innocent people are charged of
being terrorist or criminal for no reason. As many refugees from conflict
zones continue to seek asylum in Europe and other neighboring countries
they are scared of insecurities. They worry that the flow of refugees can
dilute their country’s relatively homogenous cultural identity, increase the

- 168 -
THE KITE RUNNER: A COSMOPOLITAN IMPRESSION

danger of terrorism and exploit the entire system. Like Balibar’s argument
on unjust demarcation of citizen and man, the Afghan refugees should also
be guaranteed with equality, liberty and choice of their life by the host
countries.
The Kite Runner, a novel by Khalid Hosseine, is a snapshot on
historical background of Afghanistan. It draws a picture of regime change
from kingdom to presidential system. It even portrays the rise of Taliban
and its consequences in the geo-political scenario. Afghanistan once was
a kingdom, but the kingship was put to end by the attack of Soviet
Totalitarian regime which helped the cousin of king. As the novel Kite
Runner indicates the downfall of kingdom, “…inside sat farmed family
pictures; an old greeny photo of my grandfather and king Nadir Shash
taken in 1931, two year before the king’s assassination (3).” The history
of Afghanistan tells it was a kingdom. King used to rule it till 1973. After
the king was killed, the political scenario had been changed. Somehow, it
brought the changes in the scenario of the politics after four decades of the
king’s assassination monarchy was no more in Afghanistan. As the novel
further outlines:

As it turned out, they hadn’t shot much of anything that night of July
17, 1973. Kabul awoke the next morning to find that the monarchy was
a thing of past. The king Zabir Shah, was away in Italy. In his absence,
his cousin, Daud Khan had ended the king’s forty years reign without
a bloodless coup (29)

The coup has changed the political scenario of Afghanistan. The


shift of the political sphere has brought changes in social paradigm and
minority people thought that it would be better for them. But totalitarian
hegemony of nation regime does not allow to happen so. The condition
gradually became worse and people have to flee to another place for the
sake of safety of life. The Hazara, the minority group had to suffer a lot.
There was a great exploitation to the. As the novel entails:

You! The Hazara! Look at me, when I am talking to you, “The soldier
barked” …I know your mother, did you know that? I knew her real good.
I took her from behind by that creek. What a tight little sugary cunt she
had! The soldier was saying shaking hands with others, grinning. Later

- 169 -
PARAJULI

in the dark, after the movie had started, I heard Hassan next to me
croaking (5-6)

The Hazaras were exploited severely. There was even the terror of
sexual exploitation by ruling class. It compelled them to flee. The
exploitation of Hassan by his own friend and half-brother, Amir is quite
notable in the novel. Kamal and Assef are the characters of the novel have
fallen in majority group, exploit Hassan very badly. The father of Hassan,
Ali is treated very badly. He has to live with someone as obedient
houseman who had seduced his own wife.
Later Amir and his father have to suffer from the ruling class people.
They have to leave the place of origin and flee towards the USA. Their
condition was not same as the citizens of America. They are somehow
treated as the second-class citizen. They have to work miserably to make
their living. Likewise, the panic situation of refugee is seen in the life of
Sohrab. He is treated as animal. He even commits an attempt to suicide
when he comes to know that he has to stay in orphanage. He even remains
silent after he has been taken to America. It shows the loss of socio-
cultural life of Afghani people in the world of other.
In the novel, three different generations are found to have been
exploited, that is, Ali, Hassan and his son Sohrav. The historical
background of these generation and history of Afghanistan depicts the
clear picture of the formation of refugee and their suffering with the
struggle to gain the livelihood in different corners of the world sipping
their bitterness of the life silently.
Generally, it is believed that refugees are those people who are
refused to get provided with real identity in a different world. It is an
output of some socio-political changes of the nation which compels
certain group to live their place of origin as they find the place more
difficult or vulnerable for their livelihood. According to According to the
1995 Refugee Convention, a refugee is a person who is compelled to leave
country of own nationality due to fear of being persecuted (Article 1, 1951
Refugee Convention).
Hannah Arendt in her writing We Refugee defines refugees are those
who have not done anything in the political scenario of the changes, but
they are compelled to seek asylum (110). Like Hassan and his father really
do not do anything in the life of Amir. But they have to leave house of
- 170 -
THE KITE RUNNER: A COSMOPOLITAN IMPRESSION

Amir. They are compelled to seek asylum in order to be safe from the
bitterness of Amir.
Ali says,

Life here is impossible for us now, Aghasahib. We are leaving. Ali


drew Hassan to him, curled his arm around his son’s shoulder. It was a
protective gesture and I knew whom Ali was protecting him from…I
am sorry Aghasahib, but our bags are already packed. We have made
our decision (89-90).

It shows, the people are compelled to leave their place when


something makes the life more difficult. People are compelled to flee as
there are no other options left. It is a hard time for them to do so.
The life of people is very difficult after they become refugee.
However, they go on struggling to make it even better. They never give
up home. They become optimistic. They try to make their life as usual as
they can to support the notion, Arendt says, that we wanted to rebuild our
lives that was all. In order to rebuild one’s life, one has to be strong and
optimistic. So, we are very optimistic. Our optimism indeed, is admirable,
even if we say to ourselves. The story of our struggle has finally become
known. We lost our homes which means the familiarity of daily life. We
lost our occupation which means the confidence that we are of some use
in this world (110).
The optimistic idea is seen clearly in the mind of refugee. They think
it can be changed. They hope to happen good things even at the time of
very dangerous situation or the situation which is beyond their control.
The delivery of an Afghan with the soldiers to remind about his /her family
in order to make his wife safe shows the optimistic idea of refugee as the
novel reflects:

The young woman pulled the shawl down over her face. Burst into tear.
The toddler sitting in her husband’s lap started crying too. The husband’s
face had become as pale as the moon hovering above. He told Karim to
ask “Mr. Soldier sahib” to show a little mercy, may be, he had a sister or
a mother, may be, he had a wife too (95).

The husband thinks the situation would be better. He asked the


Russian soldier to show mercy on him. It is an optimistic view of the
- 171 -
PARAJULI

husband though the situation is very harsh. The situation of refugee is very
harsh; really seems to be very miserable. They even have to live the life
of animal. There is no any humanistic approach. They hardly get things as
humans are supposed to get. They have to flee to seek the safe land even
it is hard for them. However, they compromise it they really have panic
situation. The novel reveals:

You open your mouth. Open it too wide your jaws creak. You order your
lungs to draw air. Now you need air, need it now but your airways ignore
you. They collapse, tighten, squeeze and suddenly you’re breathing
through a drinking straw. Your mouth closes and your lips purse. And
all you can manage is a strangle croak. Your hands wriggle and shake.
Somewhere dam has cracked open and a flood of sweat spills, drenches
your body. You want to scream. You would if you could. But you have
to breathe to scream (102).

The panic condition of refugee can be seen even the basic


humanitarian rights are not available for them when they are fleeing to get
shelter somewhere. They may get faced hard time for life. They even lose
their lives as Kamal dies on the way to asylum. Though the refugees have
to go with panic condition of life, nation-state may not provide even basic
human rights for them because they are not subjected to be citizen of a
nation-state. They may not get equal right or may not get any right as
nation state does not recognize their identity.
This entails that instead of providing right to rightless, the Universal
Declaration of Human Rights leads to the opposite result. The refugees are
more or more submitted to total control of the police and other organs of
power of nation state. By competing the organization of humanity, we are
succeeding in throwing back refugee in the midst of civilization on
nothing but their natural givenness. (Hemel 18)
The notion of rights of refugee are in the control of nation-state. Due
to this, it is very hard to practice the right. Even though the real notion of
refugee right can be given to them or secure them by implementing the
notion of human rights to them, for Agamben the life of the refugee is not
so good in concentration camp. The private life of refugee is not equal to
life of common citizens, but it can be made parallel to the citizens if we
practice the human right notion in real sense. The bare life of refugees

- 172 -
THE KITE RUNNER: A COSMOPOLITAN IMPRESSION

should be included in the inscription of even the most basic elements of


existence into the power structure of nation state.
3. Towards the Cosmopolitan Ideas and the Cosmopolitan Cities
The concept of cosmopolitan city existed from the time immemorial
in the form of world government and fraternity. Roman stoics like Cicero,
Seneca, Epictetus and Marcus Aurelius advocated for the natural law,
civic duty and tolerance to form a world citizenship. Cicero emphasized
for human reason and speech as the connecting tool for human
relationship. His idea of world citizenship can be taken as the inception of
cosmopolitan city. As J. Sellars points out, where I find that Cicero
wanted to establish the universal rights to the world people. The world as
such would provide equality and justice to everybody including the
minorities and subjugated people. He sees the citizens equal to gods. This
is how the concept of cosmopolitan city emerged in the west.
There are a number of other Greek philosophers who conceptualized
an ideal city that equals to today’s cosmopolitan cities. However,
Immanuel Kant is the first philosopher to theorize it in a political line of
thought. He postulates a political notion of human right based on legal
ground. He believes that the human right has to work through the system.
“Even now there is enough to justify a hope that, after many revolutions
and remodellings of states, the supreme purpose of Nature will be
accomplished in the establishment of a Cosmopolitc State, as the bosom
in which all the original tendencies of the human species are to be
developed (9).” Kant valorizes a political sphere of cosmopolitan to other
spheres. Since the notion of cosmopolitanism was only in a rude outline
then, he asserted to develop systematic form of cosmopolitan city where
the rights and justice could be monitored and controlled through the legal
and political mechanisms. In a way, he tried to adjust natural rights of man
within the political ground so that justice could be guaranteed to the
citizens equally.
Levinas, on the other hand, postulates his version of
cosmopolitanism on ethical ground- ‘the city of refuge’. He unpacks the
ideal notion of human rights on the ethical ground of human behavior and
advocates that unconditional justice should be guaranteed. Law is a legal
event, but justice is ethical idea. Law has to be just before it is
implemented. It should be egalitarian -equal to all. Even a criminal has

- 173 -
PARAJULI

right to human right. “One is protected, one is above death and murder,
during the lesson, or when asking questions and listening to replies (44).”
For him, if we are conscious enough, there must be these cities of refuge
for such half-innocent and half guilty parties. The city of refuge is such
that has a space of sanctuary for the exiled (a manslayer – blood avenger).
Similarly, blending Levinas and Kantian notion of cosmopolitan
city, Jaques Derrida proposes his own version. Derrida believes that the
origin of law is violence. He uncovers the idea of universality and equates
universal hospitality with universal rights of man. He highlights that the
foundation of ethics is hospitality, the readiness and the inclination to
welcome the other into one’s home. Ethics, he claims, is hospitality. Pure
and unconditional hospitality is a desire that underscores the conditional
hospitality necessary in our relationships with others. He recommends
open city or authentic sanctuary for those asylum seekers, exiles and
refugees and analyses the history of minority like stateless, homeless and
deported people, and believes that cosmopolitanism should be a traditional
hospitality: more awake and more aware.
Derrida here tries to envision a different city which would support
minorities. He seems to accept any blame for establishing new city of
refuge. Such city would establish universal rights of man and world
brotherhood (8).
Despite the unlimited theories and concepts, the idea of
cosmopolitanism and cosmopolitan city has become mere a dream in
today’s world. Though the affluent western countries are claiming their
shelters for refugee to be ideal cosmopolitan cities, these are so only in
appearance. The total inclusion is still pending. We struggle to ensure
things up, some groups are always left out in any case. Similar is the case
with Afghan refugee, their rights and the treatment of the countries of
refuge.
Despite the helping hands coming along the different parts of the
world, refugees can never feel things like home. It is really bad to have no
home even if someone gives you the palace. Loosing originality, culture,
ownness and above all the soil of birth is painful. When it comes to the
issue of bare lives, even the popular democratic countries fail to guarantee
human rights. Be it United States of America or any other affluent western
country, the minimum standard of child right is not adopted. The children

- 174 -
THE KITE RUNNER: A COSMOPOLITAN IMPRESSION

refugees are hungry, tired, traumatized and struggling with mental


problems in the shelters. They are compelled to face the helpless condition
of not having sufficient resources and services. The fact that there are
many humanitarian organizations working for them cannot be denied but
as long as human rights are not provided, as long as they are not resettled
like a citizen, rest of the any other attempt to work for refugees is an
absurdity.
Above finding is a heinous image of refugee children one could ever
think of. Apparently, Afghan refugee children are trapped in between the
homelessness and exclusion of host countries. They are marginalized
minority, subject to hatred and subjugation by the native people. The
native people have feeling that they should treat the refugees in such a way
they would always feel low. What is a point in proving superior or
inferior? Man is after all a man. The native people’s such tendency of
differentiating others and self is not acceptable in today’s context where
people are believed to be educated, cultured and civilized. Does
civilization mean racism or domination or marginalization? Though
refugee children are provided with the rights to education, does not right
to education include right to live a life with dignity, self-respect, peace
and equality? It appears that the host countries are trying to be kind and
humanitarian in appearance only. The practicality appears something
different.
The reasons as to why the city of refuge in affluent Europe and other
host countries are not considered to be ideal are, because they do not have
clear and common strategies to address the refugees. Due to the lack of
common policy, some states are found to be more hospitable and others
are less. EU, the esteemed body of Europe should have formulated such
policy easily, but they are not willing to. Similarly, it is fact that the white
westerners have that superiority complex which makes their behavior
always questionable. The other reason could be, most of the refugees
coming to Europe and safer Middle East countries are Muslim. European
states are guided by xenophobic mentality. Even the Muslim countries are
suffering from their inter-religious conflicts. As long as the cities of refuge
do not build on neutrality- devoid of race, class, ethnicity and capitalistic
interest etc, the problems of refugees, migrants, the bare lives never get

- 175 -
PARAJULI

solved. This is what the need of Afghan refugees today is. This is the need
of all the bare lives today.
Not to be confined just in case of Afghanistan but the cities of refuge
have problems throughout the world. The above findings entail that when
it comes to respond the refugees, some countries are more liberal, and
others are not. The analysis also finds that be it Europe or America, the
real refugees who have already left their place of origin and who are
looking for kind hands of refuge are denied of basic human rights- the
natural rights. They are torn between man-citizen demarcation—an
exclusive policy of nation-state. Refugees are destined to live life as
‘other’ who are the victim of different socio-political problems like
exploitation, racism, xenophobia, less wage, discrimination, violation of
human rights etc. The finding of the paper therefore pinpoints that the
world at large has failed to address the refugee problems and their rights
due to lack of common policy of a genuine city of refuge among the
nation-states. The world has to go above all these barriers to see the world
brotherhood, world citizens and above all the humanity in its real form. I,
therefore, as an urge to humanity, find it apt to propose my own concept
of city of refuge in the following paragraphs, which, I assume will solve
the problems of refugees, stateless, exiles and deported people.
Hassan is the Hazara boy who was treated very badly by Assef and
Kamal. They think Hazara are only the servants. They do not have any
equal to them. They are mere puppet in their hands. They are the sources
of fun for them and a matter made for exploitation. Assef, Kamal and to
some extend Amir himself do not consider as human. He is treated as if
he is no more human and he does not have any right to be. It shows how
Hazaras are made refugee in their own place. It depicts how they are
deprived from rights.
Kamal, the Afghan boy is dead. His father expresses his miserable
situation. He is totally helpless. He requests his God Allah to help him.
The condition of the refugee is vulnerable when they are heading to get
refuge. On the way to asylum, the life of refugee may come to an end.
Whereas, Kamal’s father says:

He won’t breath! My boy won’t breath! He was crying. Kamal’s lifeless


body lay on his father’s lap. His right, uncurled and limp, bounced to the
rhythm of his father’s sobs. My boy! He won’t breath! Allah help him
- 176 -
THE KITE RUNNER: A COSMOPOLITAN IMPRESSION

breathe. Baba knelt beside him and curled and arm around his soldier. But
Kamal’s father shoved away and lunged for Karim who was standing nearby
with his cousin (104).

Refugees even have to be included in minority. They cannot be


identified as the citizen. Even the people who are living in the place, may
be there to show their dialectical suppression for refugee. They are
compelled to accept their destiny. Though they are accepted, they are not
included in the mainstream of socio-cultural activities. They are lost
somewhere in the nostalgia. They have to recall their marvelous past and
go on in agony. Genaral Taheri recalls his wonderful past with Agha, the
father of Amir. He even passes a comment that Agha deserves the level of
minority when he is in America. Taheri expresses:

Correctly, it was a marvelous time. If I recall correctly, your father’s eyes


proved as keen in the hunt as it had in business…we Afghans are proved
to be considerable degree of exaggeration, Bachem, and I have heard many
men foolishly labeled great. But your father has the distinction of
belonging to the minority who truly deserves the level (117).

The remarks of General Taheri depict the treatment of the refugee


in other’s land. It shows how they are treated and convinced somehow;
they belong to minority of the place. Their rights are supposed to be the
rights of minority and do not have the real fun of life as majority citizens
can have. On the same line of interpretation,
Balibar criticizes that nation-state does not provide equal right to
citizens and refugees. The citizens are given more rights that refugees. The
citizens are supposed to be privileged group. But he thinks it should not
be citizen rather the refugees should be. The citizens are already given
more rights in comparison to refugee (46). Hence, the concern of nation-
states should be there, where the rights are not. However, in reality it is
not in practice. The play of power distinguishes it. Balibar shows his
dissatisfaction on this notion of less rights to the refugees.
The remarks of Taheri towards Agha show power politics. Though
he was immigrant, he has gained his identification or recognition in the
nation-state and he makes Agha to understand his real ground in the new
land. Similarly, the death of Kamal shows the game of power. Kamal has

- 177 -
PARAJULI

to meet death because he does not get the service of privilege as Balibar
says. So, the notion of Balibar is a critical approach towards the deed of
nation state, its failure to enhance rights to those who are rightless.
The treatment of citizens towards the refugee is not so good. They
do not show their interest in rights of migrants. Even in the workplace,
they are not considered as equal as native people. They do not deserve
some basic rights though human rights ensured them. The native seems to
be ignorant when the name of refugee right come into concern. Generally,
the people who are working in the place where the risk of life is very high,
certainly should get the health insurance. It is done for the native to some
extend but in case the migrants or the refugees are at work, the owner may
not show this concern. Agha, who has worked at gas station has not got
his insurance. He even does not ask his master for it. He cannot insist his
master to do so because he is a refugee. The notion is clear in the novel:

Even though Baba was a manager, at the gas station, the owner hadn’t
offered him health insurance, and Baba, in his recklessness had not
insisted. So, I took him to the country hospital in San Jose. The swallow
puffy-eyed doctor who saw us, introduced himself as a second-year
resident (129-130).

Hamel presents the idea of Rancier as he criticizes the concept of


providing human rights. According to him, the first understanding of
human rights are only the rights for those who can claim their rights. The
capable persons are only assured to enjoy human rights or other essential
rights. He further says, the persons who are not capable to ask their own
rights should also be ensured to enjoy their rights (21).” In case, if it is in
practice, Agha would not have been deprived of his rights. He would have
given his rights of health insurance.
The novel also deals with the reasons for asylum seeking. It also
deals with the problem of refugee. Afghans have to leave their native land
and seek a shelter for their lives. They are fleeing to Pakistan due to
totalitarian concept of Russia who invaded Afghanistan in the name to
flourish communism. They hypnotized the Afghan rulers that republic
would bring some kind of betterment in their life. It in fact could not give
any comfort to the life of Afghans. Rather, it brought a threat to a certain

- 178 -
THE KITE RUNNER: A COSMOPOLITAN IMPRESSION

group of people which compelled them to leave their place and flee to
Pakistan. The novel conceptualizes the idea as:
That was the year that the Shorawi completed their withdrawal from
Afghanistan. It should have been a time of glory for Afghans instead the
war raised on, this time between Afghans and Mujahedin, against Soviet
puppet government of Najibullah and Afghan refugee kept fucking to
Pakistan (158). As Derrida conceptualizes:

Whenever the state is neither the foremost author of, nor the foremost
guarantee against the violence which forces refugee or exile to flee, it is
often powerless to ensure the protection and the liberty of its citizen before
a terrorist menace. Whether or not, it has a religious or nationalist alibi (6).

Derrida mentions the reasons for refugee to flee to the safe place.
Refugees are made due to the failure of nation-state. It cannot secure its
citizen from emerging threat. The threat of life vibrant cause to flee the
citizens and compels them to be refugees. The reasons are, may be of
terrorists, fear or dispute in religious orthodoxies or other internal or
external factors. Similarly, the arrival of Amir to Afghanistan after long
time of exile in USA makes him feel again, he is in his homeland. The soil
of the native land shows the feeling of acquaintance. The refugees have
desire to return back to their real land. The chance of returning back to
their home can give a real essence of pleasure. They even remember their
glorious history of past. Amir really feels refreshed and relaxed when he
puts his steps in the land of Afghanistan. He says:

The ground was cool under my bare feet and suddenly, for the first time
since we had crossed the border, I felt like I was back. After all these years,
I was home again, standing on the soil of my ancestor. This was the soil
on which my great-grandfather had married his third wife a year before
dying in the cholera epidemic that hit Kabul in 1915 (205).

Amir cannot stop remembering his roots with the soil. It has brought
reminiscence in his psyche and feels like he is in the path of his root of
ancestors.
Similarly, Hosseini even presents xenophobic mentality of
totalitarianism and how the xenophobic people treat the refugees. The

- 179 -
PARAJULI

hatred towards refugees is presented clearly with the remark of Assef. He


symbolizes xenophobic people. Assef, a symbolic person for exploitation,
treats Sohrab badly. He resembles the nation-state citizen and how nation-
state citizen exploits the refugee. Sohrab, the son of Hassan, a Hazara, has
been treated as animal. He is not free to enjoy any humanitarian right. He
is no more human in the eye of Hassan. He is considered as a matter of
entertainment. He is made to dance in Pashtu music. “Soharab danced in
a circle, eyes closed, danced until the music stopped…Mashallah! They
cheered. Shasbas! Bravo! (240)” These lines visualize Sohrab’s dance.
Xenophobia is seen in the heart of Assef. His hatred for Hazara can
be seen. He has massacred Hazaras. He thinks Hazaras are the garbage,
and this garbage should be cleared or cleaned. He utters:

I see this may turn out to be enjoyable after all. But there are things
traitors like you don’t understand…Like pride in your people, your
customs, your language. Afghanistan is like a beautiful mansion littered
with garbage, and someone has to take out the garbage. Ethnic cleansing
I like it. I like the sound of it (243-244).

In order to contextualize their contribution, we will begin with two


major trends in contemporary philosophy with regards to human rights;
the enlightenment fundamentalism of the Inouveaux philosophes and the
critique of Hannah Arendt and Girgio Agamben of human rights as a
political life into private life (16)
Hemel argues that enlightenment fundamentalism focuses the
contribution of elite group in asking the human rights. It deals how so-
called elite people think about their own right as they consider themselves
as human due to their axis to so-called civilization. It may not think other
human as there is no we culture so, it brings a type of superiority to elite
group who even do not hesitate to say other barbaric or uncivilized people
are no more humans and the hatred of elite can be seen towards other
people, who are not supposed to be as enlightened as they are.
The novel also shows the notion of city of refuge. One of the
characters of the novel, Agha is found to be half guilty and half innocent.
In front of other people like Hassan, Amir, he is a good person. He seems
as if he is a good person who has shown his love towards his son, Amir
and a Hazara boy, Hassan. He even shows his responsibilities towards the
- 180 -
THE KITE RUNNER: A COSMOPOLITAN IMPRESSION

treatment to Hassan. He also never forgets the birthday of Hassan and


celebrates it. The hidden truth is not revealed till Rahim Khan explores it
to Amir. Then, Amir finds his father guilty. Agha has to seek asylum in
the USA because of guilty. He may think it is not easy to stay in
Afghanistan in case his secret is revealed. Therefore, he moves to USA,
may be a place of refuge. Rahim Khan reveals a secret to Amir:

But your father was a man torn between two halves. Amirjan! You and
Hassan. He loved you both but he could not love Hassan. The way he
longed to, openly and as a father. So he took it out on you instead- Amir,
the socially legitimate half represented the riches he had inherited and the
sin- with- impunity privileges that come with them. When he says you, he
saw himself. And his guilt. You are still angry and I realized it is far too
early to except you to accept this (259).

Levinas, on the other hand, uncovers it as:

The ambiguity of a crime which is not a crime punished by a punishment


which is not a punishment is related to ambiguity of human fraternity
which is the sources of hatred and pity (47).

Levinas stresses that the people who commit crime are really
disliked by others. They are charged with bitter attitude. However, people
may show their pity after they come to know some innocent in the heart
of the guilty person. Agha, who seduced Ali’s wife is really a matter to
criticize. It shows the domination of so-called rich or powerful people to
powerless people. Amir shows his anger when he came to know about
from Rahim Khan. He even presents himself very harsh to Rahim Khan.
But his heart has been changed when he recalls the love of his father
towards Hassan. Agha somehow proves himself to be a source of
fatherhood to Hassan. Though he cannot be very frank or open to his
activities. He seems to be half guilty and half innocent. As a bio-physical
needs of his body and Ali’s wife compelled them to commit the crime. It
is Rahim Khan who advocates for Agha’s half guilty and half innocent
nature. May be, his deed of his guilt compels him to leave Afghanistan
and flee to America as it can function as a city for half innocent and half
guilty, city of refuge for Agha.

- 181 -
PARAJULI

The problematization of refugee can be seen clearly by nation-state


for the recognition of refugee. The minority people even have to face over
hazardous problem to get right. The very -notion of nation-state may think
to provide rights for refugees. But it remains silence when legal barriers
appear. It may pretend that it is in favour of refugees’ rights however it
remains back showing the problems of legal system.
In the novel, Amir wants to take Sohrab with him after he came to
know he is his half-brother’s son after Sohrab has been brought to
Pakistan. The Pakistani officers are positive to some extent, but they
remain passive and express their helplessness due to the lack of birth
certificate. The legal procedure may not go forward in absence of Sohrab’s
parents’ death certificate in order to be adopted by Americans, Amir.
The play of nation-state for people of newcomers and seeking of
their rights can be analyzed from this incident:

[…] the child is not orphan…not legally he is not…you have death


certificates…I don’t make the laws sir your outrage notwithstanding, you
still need to prove the parents are deceased. The boy has to be clear as a
legal orphan…you wanted the long answer and I’m giving it to you. Your
next problem is that you need the cooperation of the child’s country of
origin (290).

Hanna Arendt in her book The Origin of Totalitarianism shows the


problem faced by stateless people. She argues:
The real trouble started as soon as the two recognized remedies,
repatriation and naturalization, were tired. Repatriation measures naturally
failed when there was no country to which these people could be deported.
They failed not because of consideration for the stateless person; and not
because of humanitarian sentiments. On the part of countries, that was
swamped with refugee… but since the man without a state was “an
anomaly for whom there is no appropriate niche in the framework of
general law” (283).
Arendt shows how the nation-state treats stateless people. Amir,
who wants to take Sohrab with who had been said he cannot do so because
there is no appropriate general law to protect humanitarian right of Sohrab
to get protection from his half biological uncle. Hosseini presents
obstacles faced by refugee during immigration from one nation to another

- 182 -
THE KITE RUNNER: A COSMOPOLITAN IMPRESSION

nation. Nation-states ask for the legal documents which is really


ridiculous. The person who is seeking for safety of the life at first does not
bother about legal paper. As he is human, he has some humanitarian rights.
Before he is a citizen or refugee, he is a human being and humanitarian
assistance should be provided to him. The nation-state simply thinks that
feeding is enough for them. The basic humanitarian rights are not so
essential than survival of the person. If a person is from a bit suspicious
country, the condition will be even worse. It still may not permit the
adoption. In fact, even the moderate Muslim nations are hesitant with
adoption because in those countries Islamic rules and regulations do not
recognize the process of adoption. Their religious rigidity does not allow
even the adoption for those homeless and parentless orphans.
The researchers believe that keeping refugee safe does not mean an
ideal city of refuge. It is only a partial city of refuge. In a first place, it is
necessary to understand that the refugees are not problems but the key to
open the doors of opportunities. The nation-states have to think about the
policies to convert this problem into opportunities. Instead of taking
refugee problem as a mere burden, they need to identify the strengths,
resources and skills hidden in the refugees as USA did to the Jews. The
refugees do have skills, abilities and qualification. These qualities have to
respected and utilized by the hosting states. It helps to fill the gaps of
inequality and injustice between refugees and hosting states. Moreover,
the concept of right to city should be redrawn because right to city does
not only mean the basic things like infrastructures but justice as well.
Beside all the basic needs, refugees have to be respected providing them
with the voting rights as in Ireland. It erases the demarcation lines between
man-citizen rights. Additionally, awareness programs should be organized
globally to generate the message that life is all about how much you give
not how much you take from others. The best models of city of refugees
current in practice should be brought together to form a new system and
applied to a small geographical zone. When it becomes a full-fledged city
of refuge, it should be expanded globally. There must be a formation of
disinterested supreme body to monitor and control all these practices. This
can ensure and protect humanity which results into the world brotherhood
in practical ground making sure that nobody hurts nobody. This form of
city of refuge is a dire need of today’s world to address refugees.

- 183 -
PARAJULI

4. Conclusion

Refugee crisis is a global problem today. Due to various reasons like


political, cultural social, economic, environmental etc, the world is
witnessing millions of refugees every day. Whatever is the reason of this
crisis, a genuine solution to it is an urgent need because the refugees are
going through very unpleasant and hazardous life. It does not mean that
the safe countries have been mere a spectator but the law and policies they
are implementing to address the bare lives, the methods and strategies they
are using and the perspectives they have of refugee and the ideologies they
are guided with are found to be erroneous which needs a quick correction.
Hosseini’s novel The Kite Runner deals with historical background
of the causes of refugee in Afghanistan. It shows the three different
regimes and the reasons of shift in regime. Hosseini draws a clear picture
of refugees and their hurdles when they are fleeing to new land. Refugees
have to face various problems when they arrive the new land. The life of
refugees is surrounded by several ups and downs of their daily life. The
life of refugees are the lives of lost as the nation states of the host countries
do not show their concern when the rights of refugees are addressed. They
seem to be reluctant and ignorant to provide the rights of refugees.
Afghanistan saw an unprecedented number of refugees that
emerged due to adverse geo-political scenario. Millions of the stateless
people are bound to seek asylums in Europe and other nearby shelters.
From the behaviors, services and attitude they are showing to refugees, we
can claim that their refuge is not just but biased. The refugees have yet to
find ideal asylums as the philosophers like Arendt, Levinas, Balibar,
Derrida have always been speaking of. They do not possess genuine
cosmopolitan cities as they are claiming them to be. It looks as if their
shelters are mere the shelters in appearance only. In practicality, their
response is not sufficient because they are guided by wrong mentality of
superior race, they do not have clear and common policy to address the
problems as such and their notion of humanitarianism has not yet left the
surface of vested interest. In this regard, the role of Europe and other host
countries is not sufficient to address Afghan refugee crisis. They must
embrace genuine cities of refuge to address them and resettle them in their

- 184 -
THE KITE RUNNER: A COSMOPOLITAN IMPRESSION

land. Hosseini somehow criticizes such notion of nation states by


portraying some representative characters like Amir, Hasan, Ali Agha etc.
He even presents the hatred of so-called high-class people. Assef
resembles such class of people. His hatred towards hazara, somehow
shows xenophobic mentality, a cause of refugee’s crisis.
Hosseini criticizes the deeds of nation states that they are there to
show crocodile tears for refugees. They pretend as if they are in favour of
providing refugees rights, however, in reality they are not worried at all
about refugees. He presents the pretending notion of nation states showing
the deeds of Pakistani officers in Peshawar. Their treatment on Sohrab and
Amir shows the so-called involvement for refugee rights. He shows The
Kite Runner as a plea for refugee right since there are not sufficient
nestling wings to save the rights of refugees. With the help of the novel,
novelist ask the concerned authorities to be liberal in order to solve the
refugees’ problems. He even requests the behaviours of nation-states
should be changed so as to solve the problems of refugees. In case, the
nation-states fail to do so, the world will be a mess of rightless people. The
real essence of humanism will be lost.
Summing up, it may not be wrong to say that the world should have
a cosmopolitan city in order to fulfill the basic humanitarian rights of
refugees. They should be treated equally as citizens because they are
human beings before, they are refugees. In the same manner, citizens are
also human prior to being citizen. Hosseini, in his novel The Kite Runner
opines to provide equal rights between citizens and refugees as far as
possible. In case the refugees do not get equal rights, the nostalgic
reminiscence of their life will never be eradicated, and the world will be
in fraction between the first-class citizen and second-class citizen or no
citizen. That may ruin the real beauty of humanity from the world.

References

Agamben, Giorgio. Sovereign Power and Bare Life. Stanford, CA:


Stanford UP, 1998. Print.

Arendt, Hannah. “The Decline of Nation-State and the End of the Rights
of Man.” The Origins of Totalitarianism. Harcourt Brace,1973.

- 185 -
PARAJULI

Arendt, Hannah. “We Refugees.” Altogether Elsewhere: Writers on


Exile, edited by Marc Robinson. Faber, 1994.

Balibar, Etienne. “Citizen Subject”. Who Comes after the Subject?,


edited by Eduardo Cadava, Peter Connor, Jean-Luc Nancy.
Routledge, Newyourk, 1991.

Balibar, Etienne. “Proposal of Equaliberty.” Equaliberty: Political


Essays. Duke UP, 2014.

Derrida, Jacques. Cosmopolitanis and Forgiveness. Trans. Mark Dooley


and Michael Hughes. Routledge, 2000.

Hosseini, Khalid. The Kite Runner. Riverhead, 2003.

http://unhcr.org/FutureOfSyria/executive-summary.html
http://unhcr.org/FutureOfSyria/executive-summary.html. 2016.
https://www.google.com.np/webhp?sourceid=chrome-
instant&ion=1&espv=2&ie=UTF-8#q=syrian+refugee+crisis+pdf.
2016.

Kant, Immanuel. “Idea of a Universal History on a Cosmopolitcal Plan”.


De Quincey, Thomas, ed. Hanover, New Hampshire: Sociological
Press, 1927.

Levinas, Emmanuel. “Cities of Refuge”. Beyond the Verse: Talmudic


Readings and Lectures, translated by Gary D. Mole. Bloomington
and Indianpolish, 1994

Ostrand, Nicole. Journal on Migration and Human Security. The Center


for Migration Studies of New York. JMHS Volume 3 Number 3
(2015): 255-279

Sellars, John. “Stoic Cosmopolitanism and Zeno’s Republic.” History of


Political Thought, vol. 28, no. 1, Spring 2007

The US State Department Report, 2015.


https://www.state.gov/j/tip/rls/tiprpt/countries/2015/243543.htm.
2016.

UNHCR. “The Future of Syria, 2013.”

- 186 -
THE KITE RUNNER: A COSMOPOLITAN IMPRESSION

UNHCR. “The Refugee Convention, 1951.”


http://www.unhcr.org/protection/travaux/4ca34be29/refugee-
convention-1951-travaux-preparatoires-analysed-commentary-dr-
paul.html. 2016.

- 187 -
ANGLOLIT, 2020

Você também pode gostar