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3° Encontro Nacional da ABRI

(20, 21 e 22 de julho de 2011)

AS REGULAMENTAÇÕES PRIVADAS NO CONTEXTO DA GOVERNANÇA GLOBAL

Nome: Flávia Maria de Mattos Donadelli


Filiação Institucional: Instituto de Relações Internacionais
– Universidade de São Paulo (IRI – USP)
Endereço postal eletrônico:
donadelliflaviamaria@hotmail.com
Área temática: Instituições e Organizações Internacionais

1
RESUMO

Recentemente, diversas têm sido as práticas de regulamentação global


promovidas por atores privados. Assim, a emergência da autoridade privada, insere,
definitivamente, no universo das Relações Internacionais, a idéia de Governança
Privada como possível fornecedora de bens públicos.
Diante dessa constatação, julga-se necessário problematizar essa nova
racionalidade regulamentadora. Além dos argumentos que apontam para a possível
inefetividade desses novos tipos de regulamentação, muitas vezes, o grande
potencial regulamentador da iniciativa privada acaba revelando-se uma verdadeira
ameaça aos interesses públicos, em processos pouco legítimos e pouco inclusivos
de produção de regulamentações.
Dessa forma, com a intenção de fornecer algumas contribuições a esse
recente debate, o objetivo desse artigo é tanto o de traçar um panorama teórico da
emergência de novas formas de regulamentação e autoridade privada nas relações
globais, quanto de apontar e debater algumas das principais críticas que vêm sendo
direcionadas a esse fenômeno.

Palavras-Chave: governança privada, regulamentações globais privadas,


legitimidade, efetividade.

2
1. Introdução

Entre os diversos temas que têm sido objeto de atenção recente de


teóricos das Relações Internacionais, pode-se afirmar que a questão das
regulamentações globais, apesar de sua imensa importância e crescente número de
evidências empíricas, conta ainda com poucos estudos sistemáticos (LIPSCHUTZ &
FOGEL, 2002, p.115). Enquanto os impactos da globalização são amplamente
discutidos em termos de novas fontes de poder político e econômico, a questão do
poder regulamentador e da nova racionalidade jurídica surgida nas últimas décadas
ainda não foram objeto de uma análise mais ampla. A proposta desse artigo,
portanto, é exatamente a de fornecer algumas contribuições a esse debate e de
estimular a reflexão acadêmica sobre o tema das regulamentações globais.

De acordo com a definição de Walter Mattli e Ngaire Woods (2009, p.01),


regulamentações podem ser entendidas de maneira geral como “a organização e o
controle de atividades políticas, econômicas e sociais por meio de criação,
implementação, monitoramento e enforcement de regras”. Historicamente calcada
na noção de Estado nacional como única fonte de poder e autoridade jurídica, a
produção de regras globais, bem como sua implementação, monitoramento e
enforcement, pode ser considerada, em vistas de seus diversos desafios teóricos e
práticos, uma das últimas fronteiras do debate sobre governança global. Apesar de
não contar com um sistema jurídico tradicional nem com a unificação e estruturação
passíveis de serem atingidas em um sistema nacional, diversos autores são
enfáticos ao defenderem a tese de que a produção de regras deixou de ser
monopólio dos Estados e vêm, gradualmente, transferindo-se para uma pluralidade
de atores e processos, não apenas nacionais como também transnacionais
(TEUBNER, 1997, p.7; CUTLER, 2002, p.23.; MATTLI & WOODS, 2009, p.4).

Por meio dessa constatação, observa-se como um fenômeno cada vez


mais aceito pela literatura de Relações Internacionais, a emergência de novas fontes
de autoridade regulamentadora distantes dos tradicionais pólos públicos tais como
entidades da sociedade civil sem fins lucrativos, grandes corporações
transnacionais, associações setoriais ou parcerias entre esses diversos atores
(RUGGIE, 2004, p. 500). A emergência da autoridade privada ou semi-privada capaz
de criar regimes e regras mundiais tem gerado, na visão de diversos autores, uma
3
realocação ou ao menos um compartilhamento da governança pública com arenas
privadas nacionais e transnacionais (CUTLER, 2002, p.34, HALL & BIERSTEKER,
2002, p. 5; VOGEL, 2009 p.153, MATTLI & WOODS, 2009, p. 4)

Argumenta-se assim, que as falhas estatais em fornecer diversas


regulamentações que possam amenizar as externalidades econômicas, sociais e
ambientais da globalização, vêm sendo, em muitos casos, supridas por atores da
iniciativa privada que além de possuírem mais incentivos para a provisão desse tipo
de bem público, possuem também (em alguns casos) maior expertise técnica e
disponibilidade de informações (ABBOTT & SNIDAL, 2009, p. 64). Isso estaria
conduzindo o ambiente regulatório mundial para muito além das tradicionais
disposições de organizações internacionais ou do direito internacional público. A
esse novo cenário, autores como Ronnie D. Lipschutz e Cathleen Fogel (2002,
p.117) dão o nome de “a nova divisão global da atividade regulatória” e serão
exatamente sua natureza e limitações que procurarão ser exploradas nesse
trabalho.

Portanto, o objetivo desse artigo será, além de fornecer as premissas


teóricas básicas da qual evolui a noção de regulamentações globais privadas como
bens públicos, apresentar as principais ressalvas que devem ser feitas ao excesso
de otimismo em relação ao fenômeno.

2. As regulamentações privadas globais como bens públicos

Com o avanço tecnológico das comunicações e transportes, e com o


aumento da necessidade de interação e coordenação internacional ao longo do
século passado, novos problemas surgiram para o universo de estudo das ciências
sociais e novos conceitos e teorias passaram a ser necessários. A idéia de ordem
global, um dos conceitos basilares das Relações Internacionais, foi entendida
inicialmente como as condições de coexistência e padrões de interação apenas dos
Estados soberanos. Nessa concepção inicial, observada tanto por autores realistas
quanto racionalistas, ordem global e ordem internacional acabavam tornando-se
sinônimos, pois os únicos atores do cenário global a serem considerados eram os
Estados (HURREL, 2007, p. 2).

4
Ao longo do século XX, entretanto, diversos foram os desafios a esse tipo
de abordagem da ordem global. A evolução do que foi definido por diversos autores
como globalização, levou à emergência de novos temas e a inserção de diversas
novas fontes de poder e autoridade nesse contexto. Questões como direitos
humanos, meio ambiente ou direitos econômicos e sociais, passaram a desafiar
definitivamente a imaculada soberania estatal e atores da sociedade civil e da
iniciativa privada adquiriram voz e possibilidades de influência nessa, que deixa de
ser apenas um ordem internacional para tornar-se, definitivamente, uma ordem
global.

Assim, fruto de um contexto teórico cujo ponto focal da definição de


ordem global apoiava-se principalmente na autoridade estatal, e ciente das
profundas mudanças do século XX, James N. Rosenau (2000) deu início a um dos
grandes debates das Relações Internacionais. Ao atribuir autoridade e possibilidade
de ordenação das relações mundiais a outros atores além dos Estados, o autor inclui
nesse debate os sistemas de regras produzidos por todos os níveis de atividade
humana, “desde famílias até organizações internacionais”.

Esse autor cunha, então, o conceito de governança que é contraposto à


noção de governo como uma forma de ordenação das relações mundiais que não
emana, necessariamente de autoridades formalmente constituídas. Nas palavras do
autor:

[...] governo sugere atividades sustentadas por uma autoridade


formal, pelo poder da polícia que garante a implementação das políticas
devidamente instituídas, enquanto governança refere-se a atividades
apoiadas em objetivos comuns, que podem ou não derivar de
responsabilidades legais e formalmente prescritas [...] Em outras palavras,
governança é um fenômeno mais amplo do que governo, abrange as
instituições governamentais, mas implica também mecanismos informais, de
caráter não-governamental, que fazem com que as pessoas e organizações
dentro de sua área de atuação tenham uma conduta determinada,
satisfaçam suas necessidades e respondam às suas demandas.
(ROSENAU, 2000, p.4)

Recentemente, portanto, diversas práticas de atores privados, tais como o


estabelecimento de agendas para organizações internacionais, a garantia de
contratos internacionais, o estabelecimento de regulamentações setoriais
independentes ou a certificação da responsabilidade socioambiental de processos

5
produtivos vêm sendo praticadas e consideradas legítimas fornecedoras de bens
públicos globais.

Diante das restrições impostas à capacidade regulatória estatal por um


contexto institucional marcado por uma agenda neoliberal de livre mercado
(BARTLEY, 2003), e das dificuldades de coordenação estatal para a provisão de
bens públicos globais (CARBONE, 2007), as regulamentações privadas acabam
sendo vistas como uma alternativa válida para o fornecimento de bens públicos
(BARTLEY, 2003; CUTLER, 2002).

De acordo com Mancur Olson (1965, p.14), bens públicos são


caracterizados pela produção de benefícios que não são nem exclusivos, nem rivais.
Ou seja, todos podem ter acesso aos seus benefícios e o número de pessoas que
se beneficia não interfere nas chances de benefícios dos demais.

Sendo assim, como ressalta John Ruggie (2004, p. 500), o fornecimento


de bens públicos não está limitado aos governos ou instituições públicas. Esse
fenômeno, segundo o autor, pode ser claramente demonstrado pela recente
tendência de ampliação da atuação de atores da sociedade civil e de corporações
transnacionais em projetos de responsabilidade sócio-ambiental. Empresas passam
assim, como diria Claire Cutler (2002, p. 32), em muitos aspectos “a funcionar
basicamente como governos”.

Entre os autores que compactuam com a hipótese de que atores da


iniciativa privada vêm exercendo um papel importante na provisão de bens públicos
globais, podemos citar, também, David Levi-Faur (2005). Para esse autor os
pressupostos neoliberais de desregulamentação e privatização vêm sendo
desafiados e complementados por uma nova onda de regulamentações e práticas
de boa governança. Essa nova onda, chamada por ele como “capitalismo
regulatório”, vem colocando uma série de questões aos entendimentos tradicionais
das relações entre política e economia e entre mercado e Estados nacionais. Por ter
se revelado um elemento limitador da governança, a desregulamentação dos
1
mercados e os pressupostos da “mão invisível” estão sendo progressivamente
superados, e não se pode mais afirmar que esse seja um elemento constitutivo do
contexto atual. (LEVI-FAUR, 2005, p. 2)

6
Ainda para esse autor, a regulamentação não apenas é importante, mas é
fundamental para a globalização econômica. É por meio dela que o capitalismo
neoliberal se torna um sistema econômico legítimo aos olhos de seus participantes e
que as relações econômicas se tornam mais confiáveis em um ambiente (o mercado
internacional) que necessariamente envolve mais riscos. Assim, o “capitalismo
regulatório”, entre outros elementos, seria caracterizado por três aspectos centrais:
(1) uma nova divisão de tarefas regulamentadoras entre Estado e sociedade; (2) um
aumento da delegação de questões à comunidade científica (que,
conseqüentemente, tem adquirido muito mais importância) e por fim, (3) uma
proliferação de novas tecnologias de regulamentação, com a formalização de
mecanismos auto-regulatórios que não contam com a participação estatal. (LEVI-
FAUR, 2005, p. 2-10).

Entretanto, apesar de representarem uma promissora estratégia


institucional para o fornecimento de bens públicos, é importante mencionar também
os aspectos potencialmente negativos do fenômeno das regulamentações globais
privadas. Na próxima seção, portanto, levantaremos algumas das possíveis críticas
a esses novos mecanismos regulamentadores e indicaremos as principais
fragilidades e desafios a serem superados no contexto das regulamentações
privadas como bens públicos.

3. Limitações e desafios às regulamentações privadas

3.1. Legitimidade

Acredita-se, diante de evidências teóricas e empíricas, que a legitimidade


é um conceito particularmente importante em termos de governança privada.
Inspirado em Suchman (1995), Cashore (2002, p.515) a define como “uma
percepção ou pressuposição generalizada de que as ações de uma entidade são
desejáveis, próprias ou apropriadas dentro de algum sistema de normas, valores,
crenças e definições socialmente construídas”. Assim, a inexistência de mecanismos
de inclusão e legitimação social pode representar um grande desafio às
regulamentações privadas.
Nesse sentido, diversas são as críticas que vêm sendo feitas à falta de
legitimidade de mecanismos de regulamentação privada. Walter Mattli e Ngaire

7
Woods (2009, p.10), por exemplo, ao contraporem-se à visão de inquestionável
benevolência atribuída aos autores de tais regulamentações, ressaltam o fato de que
tais mecanismos estão extremamente expostos à possibilidade de captura por
interesses “especiais”, contrários ao interesse público. Sem afirmar que a “captura”
das regulamentações privadas seja um fenômeno constante, os autores ressaltam,
entretanto, que a incorporação e análise das possibilidades e probabilidades de que
ela ocorra são fundamentais para que se pondere o excesso de otimismo em relação
ao fenômeno.

Além disso, tais autores relativizam a questão da provisão de bens


públicos globais por atores privados em função dos custos e benefícios a ela
associados. Por fim, Mattli e Ngaire (2009, p. 20) atentam para o fato de que o
ambiente institucional transnacional do qual essa nova onda de regulamentações
emerge é ainda mais complexo e distante dos tradicionais mecanismos
democráticos associados à produção de regulamentações públicas. Dessa forma, a
possibilidade de que existam fontes difusas de regulamentação traz oportunidades
muito maiores de decisão e influência a atores auto-interessados, que tenham
objetivos completamente divergentes das demandas da população global.

Assim, analogamente a uma vasta corrente de Relações Internacionais


que buscou a problematização do déficit democrático existente não apenas em
organizações internacionais como em diversos mecanismos de governança global
(KEOHANE, STEPHEN & MORAVCSIK, 2009; MORAVSCIK, 2004; DAHL, 1999), é
fundamental que se insira a questão da desigualdade de recursos para a criação e a
captura por interesses privados auto-interessados na produção de regulamentações
globais privada. Esses casos, portanto, seriam conseqüências da interação de
aspectos processuais pouco inclusivos, fechados e secretos aliado a uma demanda
pública e/ou privada insuficiente para gerar pressões de mudanças ou o
monitoramento necessário (MATTLI & WOODS, 2009, p. 20).

Desse modo, apesar de perfeitamente possível em condições em que a


demanda e o contexto institucional adequado estejam presentes, a regulamentação
privada global como uma forma legítima de provisão de bens públicos deve ser
observada com cautela. Desde que em contextos institucionais, níveis de demanda e
envolvimento social específicos, entretanto, acredita-se que os atores da iniciativa
8
privada possam, de fato, atuar como legítimos provedores de bens públicos globais,
suprindo lacunas importantes da atuação estatal transnacional.

Dentre as diversas formas de regulamentação privada, portanto, as mais


legítimas tendem a incluir diferentes setores sociais (empresas, ONGs, movimentos
sociais) e a apresentar processos inclusivos de criação de regras e monitoramento
por terceiras partes independentes. Aspectos como: padrões rigorosos; certificação
por terceira parte independente; processo inclusivo e negociado de criação de
padrões; transparência; inclusão de padrões sociais (publicados por governos ou
organizações internacionais); certificação de cadeia de custódia e natureza global,
são apontados como fundamentais à legitimidade desse tipo de instrumento
(SCHEPERS, 2009, p. 280). Entre todos os sete aspectos, entretanto, acredita-se
que o processo inclusivo e negociado de criação de padrões seja um dos mais
importantes.

Como ressalta Voivodic (2010) referindo-se ao Forest Stewardship Council,


(instituição responsável pela criação de padrões para a certificação do manejo e
produtos florestais), é durante o processo de tomada de decisões interna que
acontece o principal processo de legitimação desse sistema. Assim, uma estrutura
inclusiva e balanceada de diálogo multi-setorial, revela-se como elemento-chave da
legitimidade desse e dos diversos mecanismos de regulação privada.

3.2. Efetividade

Outro desafio central às regulamentações privadas, a questão da efetividade


em realmente alterar condutas tem sido frequentemente debatida pela literatura. O
primeiro ponto a causar polêmica sobre o tema refere-se ao fato de que a adoção de
tais mecanismos é necessariamente voluntária, e não conta com o auxílio dos
tradicionais mecanismos coercitivos do Estado em sua implementação. Alguns
autores indagam, assim, como poderiam os atores privados, voluntariamente, adotar
padrões mais restritivos e aumentar seus custos de operação sem que haja qualquer
ameaça formal de coerção?
De acordo com a visão de George W. Downs, David M. Rocke e Peter N.
Barsoom (1996, p. 379-406), por exemplo, padrões de auto-regulamentação
voluntária jamais trarão resultados expressivos em termos de alteração de condutas.

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Ao se contraporem à possibilidade de que instituições2 sejam efetivas sem a
existência de coerção formal, os autores enfatizam o aspecto de endogeneidade dos
mecanismos voluntários. O fato de serem os próprios atores os responsáveis pela
escolha das regras às quais serão vinculados (conceito de endogeneidade), tornaria
vazias, de acordo com essa visão, as afirmações a respeito da efetividade de tais
regras como reais alteradoras de comportamentos. Dessa forma, de acordo com
esse ponto de vista, poder-se-ia afirmar que as regulamentações privadas tornam-se
meros reflexos das preferências dos atores, elevando muito pouco o nível de
cooperação e padrões efetivamente adotados em sua ausência. (DOWNS, ROCKE
& BARSOOM, 1996, p. 379-406)

Outros autores a questionarem a efetividade de mecanismos voluntários de


governança são Darnall e Sides (2008). Analisando empiricamente a adoção de
programas voluntários de proteção ambiental por empresas, os autores utilizam um
modelo estatístico para a verificação da efetividade dos programas voluntários de
proteção ambiental de cerca de 30.000 empresas. Os autores, surpreendentemente
concluem que, no geral, o desempenho ambiental de empresas com programas
voluntários privados tende a ser inferior àquele de empresas que não os adotaram.

Ainda mais enfático na crítica a “modelos de governança negociada”


baseados em alterações voluntárias de comportamento, Krawiec (2003, p. 491)
afirma que, em algumas circunstâncias, tais modelos servem apenas como
“fachada” (window-dressing), fornecendo legitimidade e reduzindo o nível de
responsabilidade legal das empresas, sem de fato alterar condutas. Esse tipo de
crítica alia-se às diversas vozes que costumam criticar iniciativas de
responsabilidade social corporativa como mera estratégia vazia de aumento de
reputação e manipulação de informações, o famoso “green-washing”.

Por outro lado deve-se observar também que o ceticismo em relação à


efetividade de padrões voluntários de governança privada não é unânime. Benjamin
Cashore (2002, p. 504), por exemplo, afirma que incentivos de mercado e a opinião
de “audiências-chave” (como consumidores ou grupos ambientalistas) pode de fato
resultar em obediência a normas voluntárias por parte das empresas. Nesse sentido,
a importância de se considerar as empresas como atores imersos em seu contexto
social é fundamental (FLIGSTEIN, 2001; BORDIEU, 1994; HOFFMAN, 2001).
10
Como observa Hoffman (2001, p. 13) em uma análise da evolução do
ambientalismo corportativo nos EUA, o “campo organizacional” em que a empresa
atua é um fator crucial na explicação do comportamento empresarial. Para esse
autor, portanto, mais do que a busca de “metas objetivas de eficiência e
maximização” as empresas são “organizações socialmente fundamentadas” que
buscam a “meta subjetiva da sobrevivência e legitimação”.

Por essa perspectiva, a alteração voluntária de condutas ambientais não pode


ser considerada um fenômeno unicamente endógeno, como alegado por George W.
Downs, David M. Rocke e Peter N. Barsoom (1996, p. 379-406) (acima). Ela deve,
ao contrário, ser compreendida como o resultado da constante interação social, que
por sua vez leva a mudanças em interpretações, valores e capitais (sociais, políticos,
culturais) decisivos para a empresa.

Desse modo, apesar de existirem casos em que a necessidade de instituições


de referência, que forneçam ao menos uma ameaça de coerção, se justifique, em
muitas outras situações essa “coerção” advém, ainda que em níveis
reconhecidamente modestos, das próprias exigências valorativas da sociedade e da
necessidade da empresa de obter uma “autorização” social de operação.
Adepto dessa mesma visão, Michael E. Conroy (2007, p. 16) demonstra que,
na medida em que aumenta o valor do ativo intangível da marca das corporações,
aumenta também sua vulnerabilidade. Assim, estratégias de “naming and shaming”
3
, por meio da qual organizações da sociedade civil expõem e enfatizam práticas
socioambientais recrimináveis das empresas, convidando os consumidores a
boicotar a compra e utilização de seus produtos, têm se demonstrado extremamente
eficazes.
A grande novidade que se observa, portanto, são as novas exigências de
prestação de contas à sociedade e os novos dispositivos institucionais criados para
que as empresas atendam a essas demandas (como códigos de conduta, selos e
códigos setoriais, padrões privados internacionais e certificações
multistakeholders4).

Nesse contexto, torna-se compreensível que além de atender as exigências


da sociedade civil, as próprias empresas podem ter interesse em aumentar seus
padrões ambientais, sem que isso seja imposto pelo poder público sob a ameaça de
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sanções. Em nenhum desses casos, portanto, pode-se identificar a situação de
endogeneidade que fundamenta as alegações do trabalho de Downs, Rocke e
Barsoom (1996) de que a coerção é um elemento fundamental do processo de
compliance.5
Alguns autores chegam até mesmo a afirmar que o momento atual
caracteriza-se pelo surgimento de um tipo completamente novo de racionalidade
jurídica. Gunther Teubner (1996, p. 15, 16 e 17), por exemplo, tratando do aparente
paradoxo ao axioma legal da necessidade de que contratos sejam “enraizados” em
ordens legais pré-existentes, capazes de julgar, monitorar e estabelecer o
enforcement necessário para o seu cumprimento, afirma que esse modelo já foi, há
muito, superado pela prática social. (TEUBNER, 1996, p.15, 16, 17). A criação de
instituições privadas com mecanismos de auto-verificação e forte reconhecimento da
opinião pública pode conferir, na opinião desse autor, a validade e legitimidade
necessárias para a efetividade dos contratos.

4. Conclusão

Portanto, como vimos, o cenário global tem caracterizado-se cada vez


menos pela centralidade do poder formal dos Estados como únicos agentes da
ordem global. A emergência da autoridade privada, reconhecida como legítima por
parcelas cada vez mais significativas da população mundial, insere definitivamente,
no universo das Relações Internacionais, a idéia de Governança Privada, e das
novas fontes de regulamentação global. Nesse sentido, as regulamentações
privadas podem inclusive ser analisadas como provedoras de bens públicos globais,
que, muitas vezes, em função de incentivos institucionais contrários e problemas de
ação coletiva, podem deixar de ser fornecidos pelos Estados.
Dessa forma, como ressalta Gunther Teubner (1983; 1996), por estarmos
vivenciando um momento de transição social, é fundamental que se deixe de
observar o mundo sob as lentes do passado. A racionalidade que, para esse autor,
representa o momento atual, incorpora como leis as regulamentações produzidas de
maneira difusa e fragmentada pelos diversos novos atores da ordem global.
Diante dessa constatação, entretanto, não se deve deixar de ressaltar os
enormes desafios à efetiva produção de bens públicos. O grande risco de “captura”
desses tipos de regulamentações por atores auto-interessados pode muitas vezes

12
representar um risco iminente de afrontas ao interesse geral, em processos pouco
transparentes e pouco inclusivos de produção de regulamentações. Assim, a
necessidade de processos participativos e abertos de produção de padrões foi
enfatizada como elemento central da legitimação social desses novos mecanismos.
Críticas quanto à efetividade dessas novas regras também foram
consideradas. Diante da ausência de possibilidades de coerção formal e do caráter
voluntário da adoção de tais regras, problematizou-se a questão da endogeneidade
de sua adoção (o que limita a efetiva alteração de condutas). Nesse sentido,
buscou-se enfatizar a inserção social dos atores e as exigências decorrentes dessa
inserção. Dessa forma, argumentou-se que a necessidade de legitimação e
prestação de contas à sociedade pode, muitas vezes, revelar-se um elemento de
pressão suficiente para que o risco de endogeneidade seja descartado e que
ocorram efetivas alterações de comportamento.
Por fim, acredita-se que a aceitação e reconhecimento das novas fontes
privadas de regulamentação global, já são, por si só, passos fundamentais para que
se possa discutir e aplicar ideais normativos de modelos mais legítimos e efetivos
para a provisão de bens públicos globais.

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multissetoriais de governança: uma análise do Forest Stewardship Council.
Dissertação (mestrado em Ciência Ambiental) - Programa de Pós-Graduação em
Ciência Ambiental (PROCAM). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

6. Notas

1
O termo “mão invisível” foi cunhado por Adam Smith em seu célebre trabalho “A
Riqueza das Nações” (1976) e refere-se à idéia neoliberal de que a economia possui
mecanismos autônomos de regulamentação e que, portanto, não precisa de
interferências externas.
2
Na concepção desses autores instituições são entendidas como regras, normas,
regimes ou quaisquer tipos de mecanismos públicos ou privados que influenciem as
expectativas dos atores.

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3
Nomeando e envergonhando.
4
Para mais detalhes sobre os diferentes mecanismos de regulamentação privada
vide: NADVI, Khalid; WÄLTRING, Frank. Making sense of global standards. In:
SCHMITZ, Humbert (Org.). Local Enterprises in the Global Economy: Issues of
Governance and Upgrading. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2004. p. 53-94.
5
Cabe ressaltar, no entanto, que tais autores desenvolveram esse argumento com
foco mais voltado a regimes internacionais públicos, o que eventualmente torne o
argumento menos adequado para a analise de regimes privados.

16

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