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A função social da propriedade como cláusula geral
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A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO CLÁUSULA GERAL


Revista de Direito Privado | vol. 32/2007 | p. 287 - 316 | Out - Dez / 2007
DTR\2007\630

Valter Nazareno Farias


Pós Graduado em Direito Público pela EPD. Servidor Público Federal (TRT - 2ª Região).

Área do Direito: Constitucional; Civil


Resumo: O presente trabalho apresenta a função social da propriedade como cláusula
geral, analisando os contornos conceituais do direito de propriedade, cotejando com a
visão constitucional e, sobretudo, a sua inserção como cláusula geral, técnica legislativa
definitivamente incorporada na novel codificação civil brasileira. A função social é
abordada inicialmente a partir das idéias de Leòn Duguit, o qual trouxe à lume o
questionamento dos direitos subjetivos do indivíduo em face do interesse geral. Em
seguida, abordamos os institutos constitucionais referentes à propriedade e sua função
social. Por fim, verificamos a introdução da função social da propriedade como cláusula
geral no Código Civil de 2002, o que demonstra ser uma das importantes modificações
do novo Diploma Civil, de acordo com um dos seus princípios orientadores, qual seja, a
socialidade.

Palavras-chave: Direito civil - Direito de propriedade - Função social da propriedade -


Cláusula geral
Abstract: The property is one of the most ancient institutes of the law, representing one
of the basic rights concerning freedom. Notwithstanding, this concept of property has not
remained untouched before the economical, social, political and religious transformations
by which the society has passed. The Federal Constitution of 1988 acknowledges the
right of property, but its practice is conditioned to the fulfillment of the social function
(5th article, XXII and XXIII, Federal Constitution). From the legislative point of view, the
legislator has opted to adopt the general clause to include in its text the social function
of the property, namely it is about an indeterminate juridical concept. Hence, it is proper
to the magistrate, in the employment of the law, to fulfill the content of the social
function of the property, always heedful of the constitutional rules which regulate this
important institute.

Keywords: Properties - Social function - General clause - Civil - Constitutional


Sumário:

1. Introdução - 2. O instituto jurídico da propriedade

1. Introdução

O desejo de possuir sempre foi ínsito ao homem desde os tempos mais remotos. A
apropriação de bens levou o homem primitivo a agrupar-se com outros, a fim de garantir
a segurança do grupo, que por fim estabeleceram a propriedade.

Clóvis Bevilácqua diz que "o movimento biopsíquico de apropriação tende a satisfazer as
necessidades do momento; quando a inteligência intervém, orientada pelos fatos, com a
idéia de previdência, o ato de apropriação adquire estabilidade, a princípio, naturalmente
precária, mas, progressivamente, ganhando força e duração. Originou-se, então, na
sociedade humana ao fenômeno econômico-jurídico da propriedade".

No início a propriedade foi coletiva, sendo que a todos pertenciam as terras como
também as armas e utensílios de trabalho. Não havia, nessa época, a propriedade
privada.

Em fase posterior, surge a propriedade privada, com caráter individual. Com o advento
do absolutismo, a propriedade pertencia unica e exclusivamente ao rei e a mais
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A função social da propriedade como cláusula geral

ninguém.

Com o influxo dos ideais do liberalismo, a Revolução Francesa pôs fim ao Antigo Regime
(absolutismo), consagrando a propriedade privada como direito natural do indivíduo.

O conteúdo de conceito de propriedade vai se transformando de acordo com o regime


político dominante em determinado momento histórico.

Novos caracteres passam a fazer parte do conceito de propriedade. Este direito do


indivíduo deve submeter-se ao interesse social - surge então a função social da
Propriedade.

Neste trabalho, procuramos traçar os contornos conceituais do direito de propriedade,


sob o foco da função social da Propriedade, tendo em vista que o texto constitucional
trouxe efetivamente esta idéia para o ordenamento pátrio.

Na mesma senda caminhou o Código Civil (LGL\2002\400) que adota a Cláusula Geral
da Função Social da Propriedade, integrando tal conceito de forma definitiva no
ordenamento.

2. O instituto jurídico da propriedade

A importância do direito de propriedade é indiscutível. Aliás, este sempre foi o ponto


central de muitas leis e verdadeiro sustentáculo da estrutura política dos regimes
político-sociais que compõem o mundo civilizado.

Nessa esteira afirma Maria Rosa Lima: "o conceito de propriedade tem a capacidade de
1
demonstrar o tipo de sociedade e de Estado, na qual está inserida", quais sejam,
socialismo e capitalismo.

Ademais, inúmeras disputas foram e continuam sendo travadas nos tribunais, as quais,
invariavelmente versam sobre a definição, conteúdo e alcance do conceito de
propriedade.

2.1 Evolução histórica

No que tange ao conceito de propriedade, embora exista regulamentação deste instituto


em códigos antiqüíssimos, como o Código de Hamurabi, interessa-nos analisá-lo a partir
da concepção romana de propriedade.

Diferentemente de outras nações antigas, os romanos, desde há muito, reconheciam a


propriedade privada. Nos seus primórdios, a idéia de propriedade estava diretamente
associada à de religião. Nessa época, cada família tinha os seus deuses, os quais eram
adorados por elas e, segundo criam, tais deuses as protegiam.

Como se verifica, a idéia de propriedade surgiu entre os romanos a partir da religião e


não da lei, sendo que esta, posteriormente, veio garantir e regular o direito do
proprietário.

Frise-se, ainda, que os romanos nunca criaram um conceito de propriedade, mas,


segundo José Cretella Jr., tinham apenas uma noção mais intuída do que definida a
2
respeito deste importante instituto.

Assim sendo, seguindo orientação altamente individualista (uma de suas características


principais), o direito de propriedade conferia a seu titular um poder absoluto e pleno
3
sobre a coisa.

Em razão disso, este direito era tutelado por uma ação - a reinvidicatio - que era
utilizada quando o proprietário era violado na sua posse.

Após o declínio do império romano, instituiu-se na Europa o sistema feudal. Com relação
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A função social da propriedade como cláusula geral

ao direito de propriedade, houve uma quebra do conceito unitário vigente entre os


romanos, posto que surge uma nova figura, ou seja, o domínio eminente e o domínio
útil, que na verdade era um condomínio. Neste sistema, o senhor feudal detinha o
domínio eminente das terras e, em troca de serviços e rendas concedia a seus vassalos a
utilização econômica da terra. A propriedade, nesta época, representava verdadeiro
símbolo de poder.

Com a Revolução Francesa, em 1789, o caráter individualista do direito de propriedade


da época dos romanos é retomado. E isso acontece com bastante força, posto que
assume sentido de "direito inviolável e sagrado", nos termos do art. 17, da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

No mesmo sentido é a definição do Código Civil (LGL\2002\400) Francês, de Napoleão,


que em seu art. 544, diz: "A propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas da
maneira mais absoluta, desde que delas não se faça uso proibido pelas leis e
4
regulamento".

Esta foi também a orientação seguida pelo Código Civil (LGL\2002\400) brasileiro de
1916, em seu art. 524: "A lei assegurará ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor
de seus bens, e de reavê-los do poder de quem injustamente os possua".

Adiante veremos as alterações sofridas neste conceito, em face da função social da


propriedade.

2.2 O conceito de propriedade

É fato que a propriedade, enquanto instituto social e político, é anterior à sua própria
condição de instituto jurídico.

Fustel de Coulanges, em sua obra A cidade antiga, assevera:

"Os Antigos basearam o direito de propriedade em princípios diferentes dos das gerações
presentes (...). A idéia de propriedade privada estava na própria religião. Cada família
tinha o seu lar e os seus antepassados. Esses deuses só podiam ser adorados pela
família, só à família protegiam; eram propriedade sua."

E, ainda:

"De todas estas crenças, de todos estes usos, de todas estas leis, resulta que foi a
religião doméstica quem ensinou o homem a apropriar-se da terra e a assegurar-lhe o
5
seu direito sobre a mesma."

Conceituar a propriedade não é tarefa fácil, mesmo porque esta definição não é
estanque, mas está sujeita a modificações, de acordo com os sistemas políticos e
ordenamentos jurídicos que as diversas nações venham a adotar.

A despeito disso, muitos autores têm se empenhado na tentativa de formular um


conceito de direito de propriedade. Entre nós citaremos alguns.

Para Lafayette Rodrigues Pereira "o direito de propriedade, em sentido genérico,


abrange todos os direitos que formam o nosso patrimônio, isto é, todos os direitos que
podem ser reduzidos a valor pecuniário. Mas, ordinariamente, o direito de propriedade é
tomado em sentido restrito, como compreendendo tão-somente o que tem por objeto
direto e imediato as coisas corpóreas. Nesta acepção se lhe dá mais geralmente o nome
de domínio, consagrado por monumentos legislativos antiqüíssimos e de significação
mais espiritual e característica. Domínio é o direito real que vincula e legalmente
submete ao poder absoluto de nossa vontade a coisa corpórea, na sua substância,
6
acidentes e acessórios".

Por seu turno, Clóvis Bevilácqua define propriedade, em seu sentido jurídico, como "o
7
poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida psíquica e moral".
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A função social da propriedade como cláusula geral

Para o jurista português Cunha Gonçalves, "o direito de propriedade é aquele que uma
pessoa singular ou coletiva efetivamente exerce numa coisa determinada, em regra
permanente, de modo normalmente absoluto sempre exclusivo, e todas as outras
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pessoas são obrigadas a respeitar".

O Código Civil de 1916 (LGL\1916\1), assim como o de 2002, não define o direito de
propriedade, mas parte dos elementos que o compõem para atribuir ao seu titular o
direito sobre a coisa.

No entanto, a doutrina, como preleciona o Prof. Orlando Gomes, constrói o conceito de


9
propriedade com fulcro em três critérios, a saber: o sintético, o analítico e o descritivo.

Em suas ponderações, ensina o renomado professor que o critério sintético, baseado no


pensamento de Windscheid, define o direito de propriedade nos termos de uma
submissão da coisa em todas as suas relações a uma pessoa (o proprietário).

O critério analítico, seguido pelo Código de 1916, resume o direito de propriedade nas
faculdades que tem o proprietário de usar, gozar, dispor da coisa e de reavê-la de quem
injustamente a possua.

Por fim, o critério descritivo define o direito de propriedade a partir das suas
características, ou seja, como um direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, por
meio do qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa nos limites da lei.

Seguindo a concepção doutrinária, cumpre-nos analisar as características do direito de


propriedade, a saber:

1) Perpetuidade: diz-se que o direito de propriedade é perpétuo no sentido de que é um


direito ilimitado. Ou seja, o proprietário não perde a sua propriedade pelo não uso desta.
Neste ponto, porém, surge a questão da usucapião, que é um dos modos de aquisição
da propriedade elencados pelo Código Civil (LGL\2002\400) (art. 1.238 e ss. do CC/1916
(LGL\1916\1)). Note-se, no entanto, que a perda da propriedade neste caso, não se dá
pelo não uso desta pelo proprietário, mas sim pela posse exercida por outra pessoa, a
qual passa a possuir o imóvel como se seu fosse por 15 (quinze) anos sem interrupções
nem oposição por parte do real proprietário, independentemente de título e boa-fé. Ou
ainda, por 10 (dez) anos, se tiver estabelecido neste imóvel sua moradia, bem como ter
realizado obras ou serviços produtivos.

2) Absolutidade: o direito de propriedade é absoluto, pois cabe ao proprietário decidir


sobre a coisa, podendo usá-la, aliená-la, limitá-la. É, também, absoluto porque o direito
de propriedade é oponível erga omnes.

3) Exclusividade: o exclusivismo do direito de propriedade se manifesta na


impossibilidade de haver dois domínios sobre a mesma coisa. Cabe observar que o
condomínio não faz desaparecer esta característica do direito de propriedade, posto que
no condomínio, embora existam vários proprietários a coisa continua indivisa. Assim, a
exclusividade está relacionada à coisa e não ao direito em si mesmo considerado, sendo
que o direito dos condôminos de dá por frações ideais da coisa, que mantém a sua
indivisibilidade.

4) Elasticidade: o direito de propriedade pode ser comprimido ou distendido, na medida


em que alguns de seus direitos elementares podem ser destacados, sem, no entanto,
descaracterizar a sua substância, como acontece no usufruto. Neste, o nu-proprietário,
embora não detenha as faculdades de usar e gozar continua sendo o proprietário da
coisa (de sua substância), ao passo que o usufrutuário, podendo usar e gozar da coisa
não pode dispor dela. Cessando o usufruto, as faculdades de usar e gozar retornam ao
proprietário, que volta a ter novamente a plenitude dos direitos elementares que
constituem o seu direito de propriedade, quando então fala-se que a propriedade é
plena.

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A função social da propriedade como cláusula geral

Seguindo a sistemática adotada pelo Código Civil de 1916 (LGL\1916\1), acompanhada


pelo Novel Diploma Civil, em seu art. 1.228, caput, que diz:

"Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito
de reavê-la do poder de quem que injustamente a possua ou detenha."

Cumpre assim analisarmos o direito de propriedade a partir de seus elementos


constitutivos, consubstanciados nas prerrogativas atribuídas ao proprietário, a saber:

1) Usar: o direito de usar da coisa implica dizer que ao proprietário assiste o direito de
exigir dela tudo aquilo a que ela se destina. Assim, usa a coisa o proprietário de uma
casa quando dela faz sua habitação. Nessa faculdade inclui-se também manter a coisa
10
disponível à utilização pelo seu titular. Destarte, como lembra Venosa, o proprietário
que mantém um terreno cercado sem o utilizar também está servindo-se dele, posto que
a coisa encontra-se em condições de ser utilizada;

2) Gozar: o detentor do direito de propriedade pode também se aproveitar dos frutos


advindos da coisa, civis e naturais. Destarte, quem loca um imóvel e recebe os aluguéis
está gozando da coisa, posto que a explora economicamente aproveitando-se dos seus
frutos;

3) Dispor: é o poder de alienar a coisa. Este é o ponto que sobreleva o poder do


proprietário, haja vista que quem tem o poder de dispor da coisa pode usá-la e gozar
dela, mas pode alguém ter estes poderes sem, no entanto, ter aquele, como é o caso do
usufrutuário. Nessa esteira, Messineo destacou que o poder de dispor é o elemento que
efetivamente define o domínio de alguém sobre a coisa.

Ademais, o poder de dispor representa a substância mesma do direito de propriedade,


inclusive por ser este o que movimenta os negócios, visto que quando o proprietário
aliena a coisa, transfere-a do seu patrimônio para o de outrem, o que representa a força
motriz da economia, e da geração de riquezas;

4) Direito de reavê-la de quem injustamente a possua ou detenha: como vimos, uma


das características do direito de propriedade é a exclusividade, o que afasta a
possibilidade de existirem dois domínios sobre a mesma coisa. Assim, em conseqüência,
o proprietário pode defender o seu direito, utilizando-se da ação reivindicatória, que tem
como pressuposto o domínio do autor e a posse injusta do réu.

Frise-se, ainda, que segundo Barassi, o uso e o gozo representam os elementos


estáticos da propriedade, enquanto que a capacidade de reagir do proprietário frente a
turbações representa o elemento dinâmico.

2.3. A relação jurídica proprietária

Segundo Ferrara, "o direito torna as relações da vida social em relações de direito,
munindo-as de eficácia, transformando e plasmando essas relações humanas em
11
relações juridicamente vinculantes".

Os pandectistas alemães foram os criadores do conceito de relação jurídica.

A relação jurídica, portanto, é o vínculo existente entre as pessoas (sujeitos) criado por
um ato de vontade ou pela lei. Em outras palavras, é um vínculo entre o sujeito regulado
por normas jurídicas.

Para que haja relação jurídica, é necessário que existam sujeitos, mesmo nas relações
jurídicas envolvendo direitos reais, posto que uma relação jurídica só pode ser
estabelecida entre pessoas. Os sujeitos da relação jurídica serão aqueles que detêm
capacidade para serem titulares de direito.

Estes sujeitos são determinados de acordo com as posições que estes assumem frente
às situações jurídicas patrimoniais, quais sejam, sujeitos ativos ou passivos. Os
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A função social da propriedade como cláusula geral

primeiros são aqueles aos quais se estabelecem poderes, e os segundos são aqueles a
quem são impostas obrigações ou deveres.

Assim, a relação jurídica estabelece uma correlação entre as duas situações jurídicas
essencialmente existentes entre os sujeitos ativo e passivo, impondo obrigações a este
frente aos poderes atribuídos àquele.

No direito das obrigações é muito fácil vislumbrar esta correlação, visto que existe um
credor (sujeito ativo) e um devedor (sujeito passivo), sendo normalmente pessoas
determinadas.

Com relação ao direito subjetivo de propriedade, o titular do direito encontra-se na


situação jurídica ativa, enquanto que o sujeito passivo não é uma pessoa determinada,
mas é a coletividade de pessoas que devem comportar-se de tal forma a respeitar o seu
direito de propriedade. Estas pessoas encontram-se na condição de sujeito passivo
universal. Isto ocorre não só com os direitos reais, mas com os direitos subjetivos
absolutos, de cujo grupo fazem parte os direitos reais e os direitos pessoais, cuja
característica comum é que ambos são exercidos erga omnes, impondo a todas as
demais pessoas uma obrigação negativa em relação aos seus direitos.

Vale lembrar, ainda, que esta relação é tida como uma relação de cooperação entre o
proprietário (na situação jurídica ativa) e os demais (na situação jurídica passiva), que
podem ser os vizinhos, o Estado e os terceiros em geral.

2.3.1 Objeto da relação jurídica proprietária

O objeto da relação jurídica é o termo de referência exterior à própria relação como


12
afirma Giuseppe Lumia, são as coisas, sendo estas quaisquer bens material ou
imaterial suscetível de ser utilizado pelo sujeito, a fim de satisfazer às suas
necessidades.

Assim, são objetos dos direitos reais as coisas corpóreas e as incorpóreas, embora
existam juristas que neguem a possibilidade de direito real sobre bens incorpóreos.

2.3.2 Conteúdo do direito real

É de se frisar que o objeto do direito real não se confunda com o seu conteúdo, posto
que este consubstancia-se nos poderes atribuídos ao titular do direito sobre o bem
objeto do seu direito. Veja-se, neste caso, que um bem pode ser objeto de mais de um
direito real, por exemplo, um apartamento pode ser objeto de usufruto, mas ser de
propriedade de outrem.

3. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA VISÃO DE DUGUIT: A TRANSFORMAÇÃO DO


DIREITO EM FACE DO INTERESSE GERAL

León Duguit, professor da Universidade de Bordeaux, França, apresentou


pormenorizadamente a sua doutrina da Função Social da Propriedade em palestra
proferida na Faculdade de Direito de Buenos Aires, em 1911, da qual resultou o livro Las
transformaciones del derecho (público y privado).

O que Duguit apresenta é a negação à existência do direito subjetivo de propriedade,


contrapondo-se ao individualismo atribuído ao direito de propriedade advindo das
mudanças promovidas pela Revolução Francesa de 1789, e adotado, principalmente,
pelo Código Civil (LGL\2002\400) de Napoleão ( Code Napolèon), de 1804, que por sua
vez inspirou a grande maioria das legislações civis Européias e Latino-americanas.

Inicialmente, o mestre francês entende que o direito encontra-se em constante


transformação, muito mais como produto dos fatos sociais que surgem na vida dos
povos, do que fruto do trabalho legislativo. Assim, por força desta nova realidade, falece
a concepção de que os conceitos jurídicos formulados a partir da Revolução Francesa
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A função social da propriedade como cláusula geral

viriam firmar uma idéia imutável de direito, construída a partir do individualismo do


sistema romano. Esta mudança já se verificava a partir da segunda metade do século
XIX, e no início do século XX já aparece claramente aceita pelos juristas:

"(...) me parece imposible discutir que en las sociedades de cultura americano-europea,


el Código de Napoleón y la Declaración francesa de los Derechos del hombre de 1789,
señalan el término de una larga evolución en el orden jurídico, el coronamiento de una
construcción jurídica, no desprovista, por otra parte, de grandeza y de fuerza. Los
hombres de 1789 y los autores del Código de Napoleón, y también, preciso es decirlo, la
gran mayoría de los jurisconsultos franceses y extranjeros de la primera mitad del siglo
XIX, salvo la escuela de Savigny, estimaban que había allí un sistema de Derecho
definitivo, que se imponía con el rigor y la evidencia de un sistema de geometría, y así
como la geometría moderna descansa todavía sobre los principios formulados por
Euclides, del mismo modo en todos los tiempos, en todos los países, el Derecho de todos
los pueblos civilizados no podría ser más que el desenvolvimiento normal y racional de
los principios inmortales y definitivos formulados en esos textos (...) Pero con el siglo XX
aparecen con entera claridad los elementos de la construcción jurídica nueva, que por lo
demás, tampoco será definitiva (...). Esta desaparición de las concepciones jurídicas
consagradas por la Declaración de los derechos y el Código de Napoleón, esta
elaboración de concepciones nuevas no son especiales de Francia. Pero la transformación
13
es general (...)."

Duguit afirma que o substrato teórico que serviu de base para a concepção do direito de
propriedade - o direito subjetivo de propriedade - é uma noção de ordem puramente
metafísica, que confere ao proprietário o poder de impor a sua vontade frente aos
demais. É, portanto, uma noção absolutamente individualista e incompatível com as
tendências das sociedades modernas e com o realismo na qual vivem; realismo este que
impõe o reconhecimento da função social sobre os indivíduos e os grupos.

Seguindo orientação puramente positivista, Duguit rechaça a idéia de direitos subjetivos,


alegando que há uma contradição deste conceito com a realidade das sociedades
civilizadas de hoje. Assim, afirma:

"Ante todo la noción fundamental que sirve de base al sistema de 1789 y de 1804 y de
todas las legislaciones positivas que en él han inspirado, es la del Derecho Subjetivo: el
derecho subjetivo del Estado personificando la colectividad, el derecho subjetivo del
individuo. Esta noción es de orden puramente metafísico, lo que está en contradicción
indudable con las tendencias de las sociedades modernas, y con el realismo; digamos la
palabra: con el positivismo de nuestra época.

¿Qué es, pues, un Derecho Subjetivo? Las controversias sin fin que se suscitan sobre la
verdadera naturaleza del Derecho Subjetivo, son la prueba mejor de todo lo que tiene de
artificial y de precaria esta concepción. No terminaría nunca si hubiera solamente de
citar los títulos de todo lo que se há escrito en Alemania, en Francia, en Italia y también
en la Argentina, sobre la naturaleza del Derecho subjetivo: es el poder que corresponde
a una voluntad de imponerse como tal a una o varias voluntades, cuando quiere una
cosa que no está prohibida por la ley. Los alemanes, principalmente el profesor Jellinek,
dicen: el Derecho subjetivo es un poder de querer, el poder de imponer a los demás el
respeto de su voluntad. (...) Tengo el derecho de propiedad: tengo el poder de imponera
otro el respeto a mi voluntad, de usar como me parezca de las cosas que posea a título
de propietario. (...). Esto implica una jerarquía de las voluntades, y e cierta manera una
cierta medida de las voluntades y una afirmación sobre la naturaleza y la fuerza de la
sustancia voluntad. (...). Por esto mismo, la noción de derecho subjetivo se encuentra
totalmente arruinada y con razón puedo afirmar que es una noción de orden matafísico,
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que no puede sostenerse en una época de realismo y de positivismo como la nuestra."

Assevera, ainda, que as concepções jurídicas consagradas pela Declaração dos Direitos
do Homem e do Código de Napoleão estariam desaparecendo e sendo substituídas por
uma nova concepção, sob fundamento de um novo sistema jurídico, firmado numa
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A função social da propriedade como cláusula geral

concepção essencialmente socialista, abandonando a concepção metafísica do direito


subjetivo, visto que, segundo pensa, a noção de direito subjetivo era insustentável numa
época de realismo e positivismo como a atual.

Assim, a noção do direito subjetivo dá lugar a um novo sistema jurídico de ordem


realista e socialista.

Isto se dá em razão das modernas civilizações que têm como elemento fundamental de
sua coesão social a divisão do trabalho. As nações modernas caracterizam-se pela
multiplicidade de necessidades e meios de satisfazê-las, o que leva a esta divisão social
do trabalho, cuja conseqüência é a divisão de funções, sendo que cada indivíduo
depende do trabalho dos demais para o atendimento de suas necessidades, o que
implica na tarefa que cada um tem de desempenhar para o desenvolvimento da
sociedade. Esta função é determinada pela posição que o indivíduo ocupa na
coletividade:

"Esta función está determinada por la situación que de hecho ocupa en la colectividad.
No tiene derechos subjetivos; no puede tenerlos, porque un derecho es una abstracción
sin realidad. Pero por lo mismo que es miembro de una sociedad tiene la obligación de
hecho de cumplir una cierta función social, y los actos que realiza para este fin tienen un
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valor social y serán socialmente protegidos."

Duguit firmou sua doutrina partindo de uma visão puramente sociológica, haja vista que
busca sua inspiração nas idéias de solidariedade social de Durkheim.

Assim, ele repudia totalmente a idéia de direito subjetivo, afirmando que este é um
conceito arruinado e incompatível com a realidade.

Destarte, fundamenta a noção de função social da seguinte forma:

"¿En qué consiste, pues, esta noción de función social? Se reduce a lo siguiente: el
hombre no tiene derechos, la colectividad tampoco los tiene. Hablar de derecho del
individuo, derechos de la sociedad, decir que es preciso conciliar los derechos del
individuo con los de la colectividad, es hablar de cosas que no existen. Pero todo
individuo tiene en la sociedad una cierta función que llenar, una cierta tarea que
ejecutar. No puede dejar de cumplir esta función, de ejecutar esta tarea, porque de su
abstención resultaría un desorden cuando menos un perjuicio social.

Por otra parte, todos los actos que realizase contrarios a la función que le incumbe serán
socialmente reprimidos. Pero, por el contrario, todos los actos que realice para cumplir la
misión aquella que le corresponde en razón del lugar que ocupa en la sociedad, serán
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socialmente protegidos y garantidos."
17
Segundo ele, pelo fato de o homem ser um ser social, ele tem uma tarefa a cumprir.
Diz ele, em relação à liberdade, que o homem não tem um fim em si mesmo, mas a
interdependência social o obriga a aplicar sua individualidade física, intelectual e moral
em prol do desenvolvimento da sociedade, e se assim não o fizer, então o Estado poderá
obrigá-lo a fazer.

De acordo com as idéias de Duguit, o homem deve, baseado na solidariedade social,


desempenhar uma tarefa, e esta é uma concepção realista e socialista.

No que tange ao direito de propriedade, Duguit afirma que não pode haver a submissão
de um bem a um fim individual:

"En cuanto a la propriedad, no es ya en el Derecho moderno el derecho intangible,


absoluto, que el hombre que posee riqueza tiene sobre ella. Ella es y debe ser; es la
condición indispensable de la prosperidad y la grandeza de las sociedades y las doctrinas
colectivistas son una vuelta a la barbarie. Pero la propriedad no es un derecho; es una
función social. El propietario, es decir, el poseedor de una riqueza tiene, por el hecho de
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A função social da propriedade como cláusula geral

poseer esta riqueza, una función social que cumplir; mientras cumple esta misión sus
tactos de proprietario están protegidos. Si no la cumple o le cumple mal, si por ejemplo
no cultiva su tierra o deja arruinarse su casa, la intervención de los gobernantes es
legítima para obligarle a cumplir su función social de propietario, que consiste en
18
asegurar el empleo de las riquezas que posee conforme a su destino."

Assim, o proprietário que utiliza sua casa para moradia, ou aluga um imóvel, não exerce
um direito, mas cumpre uma função social, ao passo que aquele que não dá a seu bem
uma destinação corre o risco de sofrer sanções por parte do Estado no sentido de
forçá-lo a que cumpra a sua função social enquanto possuidor de uma riqueza.

Quando a utilização da coisa é obstada por ato de terceiro, quando esta estiver sendo
utilizada em sua destinação, cabe ao direito proteger o proprietário, ou seja, proteger o
indivíduo no cumprimento de sua função social, e isso implica não numa regra de direito
subjetivo, mas numa regra de direito objetivo que proíbe a todos de perturbarem ou
impedir a utilização da coisa conforme a sua finalidade.

Destarte, o indivíduo não pode usar a coisa a seu arbítrio, mas empregá-la de acordo
com a finalidade estabelecida pela norma de direito objetivo.

É bom que se diga, que o próprio Duguit alerta que não se deve considerar que, pela
noção da função social da propriedade, se está pregando o desaparecimento da
propriedade privada, mas que a noção jurídica de sua proteção está mudando.

A doutrina de Duguit não ficou isenta de críticas, pois vários juristas levantaram-se
contra as idéias apresentadas por ele.

O crítico mais enérgico contra a concepção da propriedade-função foi Jean Dabin, que
observou que a doutrina de Duguit afirmava que mesmo a norma conferindo um
benefício ao indivíduo, afirma não existir um direito subjetivo.

Ora, nesta sistemática, ressalta ele, que juridicamente não haveria sequer o direito à
vida, pois a norma de direito objetivo só a protegeria contra a prática de atentados.

Na verdade, segundo Jean Dabin, o que ocorre na doutrina da função social é uma
"querela de palavras", fundado em um mal-entendido, porque, como questiona, se o
indivíduo está autorizado a acionar o equipamento estatal com o intuito de proteger seus
interesses (vida, uso das coisas etc.) não seria a lei conferindo ao indivíduo um direito
subjetivo?

Assim, quando Duguit afirma que a propriedade é uma coisa e não um direito, Dabin
objeta-lhe afirmando que o proprietário tem uma coisa, neste sentido ele a possui; a
coisa lhe pertence e outro não pode possuí-la, nem a coletividade, ou seja, é seu direito
possuí-la, e esse direito é oponível erga omnes, e se o aparato estatal o protege é
porque ele tem um direito. Logo, o que Duguit apresenta não passaria de um jogo de
palavras.

Ademais, quando Duguit afirma que o homem é um ser social e assim, tem uma tarefa a
cumprir, alerta Dabin, esquece que o homem antes de ser um ser social é um ser
individual. Este homem social é um homem individual, bem como aqueles com quem
travará contato são homens individuais.

Portanto, a vida, as faculdades intelectuais, físicas e morais são poderes individuais, bem
como suas necessidades, ou seja, tudo que é preciso para o desenvolvimento e
manutenção destas faculdades.

Com efeito, quando o direito objetivo protege a utilização plena e livre das coisas em
proveito de alguém, ele está consagrando o direito subjetivo de propriedade. No
entanto, quando o direito limita esta utilização, ele conduz o direito subjetivo para a
19
linha do social, mas não há uma negação ao direito de propriedade; assim, a solução
Página 9
A função social da propriedade como cláusula geral

apresentada por Duguit não é adequada à natureza real do homem. Dabin chegou a
afirmar:

"É melhor, em definitivo, renunciar à idéia da função social: o direito não se converte em
função social pelo fato de que esteja limitado ou condicionado ao interesse social; essa
suavização não modifica a função do direito, que continua em tudo o mais a serviço do
seu titular exclusivamente; apenas a extensão do direito será ampla, isso é tudo ( El
20
derecho subjetivo, Madrid: Revista de Derecho Privado, 1955, p. 274)."

Outro jurista que se opôs às idéias de Duguit foi Gaston Moris que inicia apontando o
erro do mestre francês que atribuiu a paternidade da idéia da função social da
propriedade a Augusto Comte. Na verdade, esta idéia foi lançada por Santo Tomás de
Aquino que afirmava que a propriedade era um direito natural que deveria ser exercido
bonum commune, ou seja, no interesse geral.

Ademais, frisa Morin, por mais restrições e obrigações que o direito estabeleça em
relação ao proprietário, há ainda uma esfera de autonomia conferida a seu titular.
Assim, o direito de propriedade comporta um poder do proprietário, bem como uma
função. Ao que nos parece Morin faz, na verdade, uma tentativa de adaptação do
conceito de função social à idéia tradicional de propriedade.

É de se observar, ainda, o posicionamento da doutrina italiana para quem os conceitos


21
de direito subjetivo e função social são irreconciliáveis. No entanto, como pensa
Perticone, a propriedade não é uma função social, mas reveste-se dela quando se tem
em vista a exigência do cumprimento de sua destinação econômica e social.

Em importante estudo apresentado na cadeira de Filosofia do Direito da USP, Moacyr


Lobo da Costa, concluiu que o erro de Duguit foi pretender abolir a noção de direito
22
subjetivo.

De fato, a doutrina de Duguit apresenta inegável fundo de verdade e que representou


verdadeira contribuição no sentido de tentar sistematizar esta idéia, que na verdade já
existia, como faz lembrar o Prof. Antonio Hernandez Gil:

"La Iglesia católica también le ha prestado especial atención, acomodándola a sus puntos
de vista. Sobre el fundo de la todavía vigente organización romana, decía San Augustín:
'En vista de lo que el Señor nos dice, no seáis amantes del dinero; pero si ya lo tenéis,
usad de él convenientemente. Sed ricos en buenas obras; den con facilidad y hagan a
otros partícipes de lo que ellos no tienen' Es muy conocido el siguiente pasaje de Santo
Tomás: 'Lícito le es al hombre, y es necesario a la vida humana, poseer cosas propias,
en cuanto a la potestad de procurárselas y administrarlas: si bien en cuanto a su uso no
debe de tenerlas como propias, sino emplearlas como comunes en el socorro de las
23
necesidades de los demás'."

Nesta esteira, Barassi que criou uma das construções jurídicas sobre a função social
mais bem elaboradas, adotou duas formas jurídicas de encará-la, quais sejam, a função
social limite e a função social impulsiva. A primeira tem um significado jurídico mais
específico, atuando através de limites externos que comprimem o poder do proprietário,
ou seja, o proprietário deve manter-se dentro dos limites nos quais não venha a
prejudicar a comunidade. Neste aspecto podemos identificar a função social limite no
Código Civil (LGL\2002\400) brasileiro, em seu art. 1.228, § 1.º, in verbis:

"Art. 1.228. ( Omissis.)

§ 1.º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as finalidades


econômicas e sociais e de modo que sejam preservados de conformidade com o
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e
o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas."
(Grifamos.)

Página 10
A função social da propriedade como cláusula geral

Por outro lado, a função social impulsiva tem como alvo não uma limitação à autonomia
privada, mas tende a fazer com que os bens sejam geridos em benefício de toda
coletividade.

Como lembra José Oliveira Ascensão:

"Nomeadamente, podemos verificar com facilidade que, enquanto no século passado a


lei quase se limitava a certo número de intervenções de carácter restritivo, agora
multiplicam-se as intervenções impulsionados, de modo a aumentar o proveito que
24
socialmente se pode extrair do bem."

Como se verifica, a função social encontra-se plenamente incorporada nos textos


constitucionais, definindo situações concretas em que se exige do proprietário uma
aplicação social da propriedade.

A primeira Constituição a positivar a idéia de Função Social, se bem que de forma


latente, foi a Constituição alemã (Weimar) de 1919, que dizia em seu art. 153: "A
Constituição garante a propriedade, cujo conteúdo e limites serão fixados pela lei (...). A
25
propriedade obriga. Seu uso constituirá, também, um serviço para o bem comum".

Como se vê, a função social não é a negação da idéia de propriedade privada, mas é
compatível com ela, e com a noção de direito subjetivo.

Vale lembrar, o conceito de função social elaborado por Santi Romano que diz ser a
função social um "poder-dever", ou seja, a função social assume o significado do
exercício de um direito subjetivo que não contraria o interesse público.

No Brasil, o debate sobre a função social da propriedade foi iniciado pelos juristas
publicistas, sendo a sua primeira referência ocorrida no Constituição de 1934, como
veremos no próximo capítulo.

4. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CF/88 (LGL\1988\3)

4.1 O enfoque constitucional da propriedade

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu um novo regime jurídico da propriedade.

De fato, a primeira vez que a função social da propriedade foi mencionada no texto
constitucional foi na Constituição Federal de 1946, que dispunha em seu art. 147:

"Art. 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá,
com observância do disposto no art. 141, § 16, promoverá a justa distribuição da
propriedade, com igual oportunidade para todos."

A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969, por sua vez, assim


declarava, em seu art. 160, III:

"Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e
a justiça social, com base nos seguintes princípios:

(...)

III - função social da propriedade."

A Constituição de 1988 inovou fazendo menção deste instituto como garantia


fundamental, assegurando o direito de propriedade privada (não poderia ser outra) no
art. 5.º, XXII; e no inciso XXIII determinando que ela deveria atender à sua função
social.

Firmou, ainda, a propriedade privada e a sua função social dentre os princípios da ordem
econômica (art. 170, II e III);
Página 11
A função social da propriedade como cláusula geral

É de se observar que no art. 182 e seguintes, a Constituição disciplina a utilização da


propriedade urbana; no art. 184 e seguintes regula a propriedade rural, etc.

No art. 185, a Constituição Federal (LGL\1988\3) protege as propriedades produtivas


para fins de reforma agrária, vedando a desapropriação de tais áreas, e, no parágrafo
único, garante tratamento especial para elas, visando ao cumprimento da sua função
social.

Alguns autores dizem que em razão deste conjunto de normas constitucionais que regem
a propriedade, esta não pode mais ser considerada como instituto de direito privado,
como afirma José Afonso da Silva:

"Esse conjunto de normas constitucionais sobre a propriedade denota que ela não pode
mais ser considerada como um direito individual nem como instituição do Direito
Privado. Por isso, deveria ser prevista apenas como uma instituição da ordem
26
econômica, como nas Constituições da Itália (art. 42) e de Portugal (art. 62)."

Na mesma esteira caminha o Prof. Celso Antonio Bandeira de Mello, que diz:

"O direito de propriedade - ou seja, o reconhecimento que a organização jurídica da


Sociedade (Estado) dispensa aos poderes de alguém sobre coisas - encarta-se, a nosso
ver, no Direito Público e não no Direito Privado. É evidente que tal Direito comporta
relações tanto de Direito Público quanto de Direito Privado. Entretanto, o direito de
propriedade, como aliás sempre sustentou o Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, é,
essencialmente, um direito configurado no Direito Público e - desde logo - no Direito
27
Constitucional."

Esta posição, no entanto, não é compartilhada por alguns civilistas, como é o caso de
Laura Beck Varela, que critica a posição dos dois renomados juristas, alegando que tal
pensamento trata-se de uma "abordagem reducionista" do instituto, e que esta
"tendência publicizante" da propriedade é equivocada, posto que o aproveitamento
econômico dos bens não é inovação da idéia de função social, mas refere-se à própria
evolução das relações jurídicas reais, como forma da sobrevivência econômica do
28
homem.

É certo, porém, que tanto publicistas quanto privatistas não negam que atualmente o
correto é falar-se em propriedades e não em propriedade, tendo em vista que o instituto
da propriedade deve ser vislumbrado sob o seu aspecto plural, e não mais como um
instituto único e absoluto, herança de uma época cuja concepção jurídica da propriedade
29
baseava-se no modelo napoleônico-pandectista.

Assim caminha a Constituição Federal (LGL\1988\3), pois nela vemos a propriedade


sendo encarada neste aspecto plural. Destarte, o texto constitucional trata a propriedade
de uma forma geral no art. 5.º, XXII, que segundo José Afonso da Silva refere-se a
30
"garantia de um conteúdo mínimo essencial". Em seguida, porém, a própria
Constituição distingue os diversos tipos de propriedade, a saber: propriedade urbana
(art. 182, § 4.º), propriedade rural (arts. 5.º, XXVI; 184; 185 e 186), propriedade
pública (arts. 20 e 26), propriedade autoral (art. 5.º, XXVII), propriedade dos recursos
minerais (art. 176), propriedade das empresas jornalísticas e de rádio difusão sonora e
de sons e imagem (art. 222), etc.

É importante ressaltar que o direito de propriedade e a função social da propriedade, por


força de sua inclusão dentre os direitos fundamentais, devem ser associados aos valores
sociais perseguidos pela República, os quais encontram-se insculpidos no art. 3.º do
Texto Maior: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o
desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e
regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação."

Quanto a estas diversas formas (tipos) de propriedade, o próprio texto constitucional


Página 12
A função social da propriedade como cláusula geral

cuida de preencher o conteúdo da sua respectiva função social, como é o caso da função
social da propriedade urbana, inserida no capítulo da política urbana. Afirma o art. 182,
§ 2.º, que a propriedade urbana cumpre a sua função social quando atende às
exigências fundamentais da ordenação da cidade expressas no Plano Diretor. Para
regulamentar este instituto foi criada a Lei 10.257, de 10.07.2001 (O Estatuto da
Cidade), que veio estabelecer as diretrizes gerais sobre a política urbana. Assim, no
dizer do Prof. Regis Fernandes de Oliveira, "a nova lei transforma princípios em regras e
31
faz saltar do papel os votos para uma sociedade mais justa". Ou seja, o Estatuto da
Cidade veio dar efetividade ao princípio da função social da propriedade urbana, através
dos instrumentos de desenvolvimento urbano.

Dessarte, para os Municípios com mais de vinte mil habitantes, o Plano Diretor é, dentre
outros, instrumento básico que permite o racional desenvolvimento da área urbana. O
plano diretor, na conceituação de Hely Lopes Meirelles é "complexo de normas legais e
diretrizes técnicas para o desenvolvimento global e constante do Município, sob os
32
aspectos físico, social, econômico e administrativo, desejado pela comunidade local".

Cumpre mencionar também, outros instrumentos fornecidos pela Constituição e


regulados pela lei infraconstitucional que permite ao Município obrigar o proprietário ao
cumprimento da sua função social da propriedade urbana, tais como: o parcelamento e
edificações compulsórios, o IPTU progressivo e a usucapião especial.

Assim, de acordo com as diretrizes fixadas pelo Plano Diretor, o Município editará lei que
disciplinará a utilização adequada do solo urbano visando o seu melhor aproveitamento
33
em vista das necessidades locais.

O não cumprimento por parte do proprietário de imóvel urbano do quanto definido no


art. 5.º do Estatuto da Cidade dá ensejo a que o Poder Público aplique o IPTU
progressivo sobre o imóvel, a fim de que o proprietário seja forçado a dar uma finalidade
social à sua propriedade, nos termos da Lei Municipal específica. Neste caso, a
progressividade tem caráter extrafiscal, não se submetendo, portanto, à limitação da
capacidade contributiva do proprietário (contribuinte), visto que a tal medida tem por
escopo garantir a efetividade da função social da propriedade. Porém, esta
34
progressividade no tempo limita-se tão-somente a cinco anos consecutivos.

Prevê, ainda, a Constituição a usucapião especial, consistindo esta na concessão do


domínio ao possuidor de área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros
quadrados, por cinco anos ininterruptos e sem oposição, desde que a utilize para sua
moradia e de sua família, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou
rural (art. 183 da CF/88 (LGL\1988\3); art. 9.º da Lei 10.257/2001).

No art. 184, a Constituição disciplina também a propriedade rural, cuja regulamentação


se dá pela Lei 4.504/64 (Estatuto da Terra), sendo que ela define em seu art. 2.º a
função social da propriedade rural, a saber:

"Art. 2.º É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra,


condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.

§ 1.º A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando,


simultaneamente:

a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim
como de suas famílias;

b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;

c) assegura a conservação dos recursos naturais;

d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que
a possuem e a cultivam."
Página 13
A função social da propriedade como cláusula geral

Mesmo se com a aplicação dos instrumentos de parcelamento, edificação e utilização


compulsórios, bem como a aplicação do IPTU progressivo, o proprietário quedar-se
inerte, a Constituição prevê, ainda, como sanção àqueles que não cumprem a função
social da propriedade, a desapropriação, cuja indenização se dá por títulos da dívida
pública ou agrária (arts. 182 e 184, CF/1988 (LGL\1988\3)).

É bom que se frise que esta desapropriação, chamada pela doutrina de


desapropriação-sanção, difere-se da desapropriação por necessidade ou pública, ou por
interesse social, em que o expropriado recebe indenização prévia em dinheiro. Na
desapropriação-sanção, o expropriado é penalizado com a forma desvantajosa de
receber em títulos da dívida pública, cujo pagamento se dará no prazo de até dez anos,
em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os
juros legais de 6% ao ano (art. 184, III, da CF/88 (LGL\1988\3); art. 8.º, §, da Lei
10.257/2001).

4.2 A função social da propriedade como princípio da ordem econômica

O legislador constitucional elegeu a propriedade privada e a função social da propriedade


dentre os princípios que regem a ordem econômica do Brasil, em seu art. 170, II e III.
Tais princípios representam um dos instrumentos para o alcance das finalidades da
ordem econômica que é a garantia a todos de uma existência digna, conforme os
ditames da justiça social, expresso no caput do art. 170.

No que tange à função social da propriedade como princípio da ordem econômica, não
houve inovação na Carta de 1988, haja vista que nas Constituições anteriores já havia
menções a tal instituto, conforme outrora demonstramos.

No entanto, importa frisar que os incisos II e III do artigo 170 da CF/1988 (LGL\1988\3)
consubstanciam princípios constitucionais impositivos, que cumprem dupla função, ou
seja, servem como instrumental e como objetivo a ser alcançado pelo legislador.

O Prof. Eros Roberto Grau, no entanto, faz uma ressalva quanto à da função social da
propriedade do art 5.º, XXIII. Para ele tal menção não se justifica, pois o direito de
propriedade garantido no Capítulo dos Direitos Fundamentais (art. 5.º, XXII) não tem
função social, senão função individual. A função social somente se aplicaria à
propriedade enquanto princípio da ordem econômica, e no sentido de função social dos
bens de produção, como segue:

"Aí (o direito de propriedade do art. 5.º, XXII), enquanto instrumento a garantir a


subsistência individual e familiar - a dignidade da pessoa humana, pois - a propriedade
consiste em um direito individual e, iniludivelmente, cumpre uma função individual.
Como tal é garantida pela generalidade das Constituições de nosso tempo, capitalistas e,
como vimos, socialistas. A essa propriedade não é imputável função social; apenas os
abusos cometidos no seu exercício encontram limitação, adequada, nas disposições que
implementam o chamado poder de polícia estatal.

Aqui se cogita, portanto, de uma propriedade distinta daquela(s) outra(s) afetada(s), em


suas raiz(es), pela função social. Daí porque a afirmação da sua função social, no art.
5.º, XXIII, não se justifica. Note-se inclusive que a desapropriação por utilidade pública,
explicitada no inciso XXIV deste mesmo art. 5.º, é distinta da desapropriação por
interesse social, aí também consignada e, mais ainda, no § 4.º, III, do art. 182 e no art.
184 da Constituição. (...) Posso assim, sopesando as ponderações que venho
desenvolvendo, concluir que fundamentos distintos justificam a propriedade dotada de
35
função individual e propriedade dotada de função social."

Na mesma esteira é a posição do Prof. Alcides Tomasetti Júnior, que assevera:

"No citado caput do art. 5.º da Constituição do Brasil encontra-se assegurada, sob a
forma de direitos, a pertinência subjetiva da vida, da liberdade, da segurança, e da
propriedade.
Página 14
A função social da propriedade como cláusula geral

A propriedade, nesse contexto, assume um particular significado, que não se repete nos
incisos XXII e XXIII ao mesmo art. 5.º.

Uma coisa é o direito à propriedade, outra o direito de propriedade. O direito de


propriedade exercita-se de modo particularizado sobre os bens de produção. E somente
quanto à propriedade privada dos bens de produção está ordenado que se atenda à
36
'função social da propriedade'." (art. 170, caput, III, CF/1988 (LGL\1988\3)).

Assim, a função social aqui surge como uma "função social ativa", tendo como alvo a
propriedade dos bens de produção.

Dessa forma, manifesta-se claro o sentido da função social como um poder-dever. Neste
aspecto, cumpre observar que quem detém a função social não é a coisa, senão o titular
dela.

Assim, a função social da propriedade vem impor um comportamento positivo ao


proprietário da empresa, no sentido de que a utilize em benefício da coletividade e não
apenas exercer a sua atividade sem prejudicar a outrem; logo, a função social dos bens
de produção estabelece um conteúdo eminentemente positivo, em consonância com o
que dizia a Constituição de Weimar, de 1919 ("a propriedade obriga");

Neste aspecto, o domínio sobre os bens de produção dá suporte à livre iniciativa, que
conseqüentemente, é o sustentáculo da atividade econômica do país. Porém, por força
da função social, podemos afirmar que no exercício deste direito o proprietário não pode
exercer o seu direito como mero veículo de acumulação de riqueza ou especulação. Ao
contrário, há uma afetação desta propriedade a um fim social, em busca de se assegurar
a todos a existência digna conforme os ditames da justiça social (finalidade da ordem
37
econômica), buscando sempre um massimo sociale.

Como vimos a Constituição disciplina o regime (ou regimes) jurídico da propriedade.


Assim, não pode o intérprete avaliar o instituto somente pelo Código Civil
(LGL\2002\400). Aliás, vale a máxima que diz que o Código deve ser lido à luz da
Constituição e não a Constituição ser lida à luz do Código, pois o direito de propriedade
não é mais aquele poder tendencialmente pleno e absoluto.

De outra banda, o proprietário continua a exercer a sua senhoria sobre os seus bens;
porém, limitado pela função social, visto ser ela componente da estrutura mesma do
direito, e não um mero elemento externo.

Como se vê, é sob o pálio da Constituição que a função social se concretiza, cabendo a
cada estatuto proprietário definir o conteúdo da função social, de onde se vale o poder
público para aquilatar o exato cumprimento do referido instituto.

5. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO CLÁUSULA GERAL

5.1 Definição de cláusula geral

Ao analisarmos as cláusulas gerais vemo-nos diante de uma nova concepção do modo de


legislar, caracterizado pela quebra de conceitos rígidos marcadamente dominantes nas
codificações oitocentistas que primavam por uma linguagem clara, uniforme e precisa,
38
ou seja, o método casuístico. Esse método tinha o intuito de fazer com que a lei
abarcasse o máximo possível todas as situações da vida cotidiana, deixando pouca ou
nenhuma margem de interpretação para o juiz, o qual efetuava uma subsunção
39
praticamente automática, sendo apenas um repetidor do que a lei claramente dizia. A
idéia principal que orientava esta concepção era a de que, sendo a lei a fonte primordial
do direito, ela deveria descrever os casos a que se aplicava, criando um sistema rígido e
fechado. Esta era a interpretação da chamada Escola da Exegese que surgiu a partir da
Revolução Francesa de 1789 com o objetivo de criar um sistema jurídico que fosse claro
e preciso, bem como que estivesse ao alcance de todos os cidadãos. Seria um sistema,
como diz o Prof. Alberto Gosson Jorge Júnior: "imune à corrupção, à lentidão, e custos
Página 15
A função social da propriedade como cláusula geral

extremos dos processos, ao hermetismo da linguagem, à complexidade de recursos, à


multiplicidade de jurisdição, ao nepotismo e à usurpação de poder político por intermédio
40
do Judiciário, vícios encontrados no ancien regime". Isso resume-se na ambição de se
41
dar uma reposta legislativa a todos os problemas da realidade.

A partir da segunda metade do século XX, verifica-se uma preocupação maior por parte
do legislador em criar uma formulação da hipótese legal, utilizando-se de conceitos com
significados abertos e vagos, ou seja, buscou-se mais a utilização dos conceitos jurídicos
indeterminados, os quais, segundo Karl Engisch, são conceitos "cujo conteúdo e
42
extensão são em longa medida incertos".

É fato que a doutrina diverge quanto à definição de cláusula geral, mas ressalte-se que,
conforme Judith Martins-Costa, a cláusula geral, do ponto de vista da técnica legislativa,
"constitui uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de
tessitura intencionalmente 'aberta', 'fluida' ou 'vaga', caracterizando-se pela ampla
4344
extensão de seu campo semântico".

Como se verifica, a viga mestra da cláusula geral é o seu elevado grau de generalidade,
posto que abrange uma grande quantidade de casos. Em razão desta generalidade
verifica-se uma das grandes características das cláusulas gerais, qual seja, a vagueza
semântica sempre presente em seus enunciados.

Cabe observar que esta vagueza refere-se àquela definida por Cláudio Luzzati como
vagueza socialmente típica. Assim definiu o autor para diferenciá-la da vagueza comum
(aquela que para determinação do seu significado independe de valorações).

Assim, fazendo uso de tal linguagem, o legislador faz com que o intérprete recorra a
valores morais, princípios e usos e costumes no sentido de conseguir determinar o
45
verdadeiro significado da norma. Como bem assevera Karl Engisch afirmando que o
legislador não toma uma decisão, mas confere esta competência ao juiz para que este,
diante do caso concreto, avalie e descubra o real significado da norma. É o que ocorre,
por exemplo, com a cláusula geral da boa-fé nas relações contratuais. No caso sub
judice, o juiz, diante dos fatos e circunstâncias que nortearam aquele negócio jurídico,
verificará se as partes agiram de acordo com o que se entende por boa-fé em tais
relações.

Portanto, o legislador confere ao juiz um certo grau de discricionariedade no seu


julgamento.

Em relação ao assunto em tela, vale mencionar as palavras de Judith Martins-Costa, que


diz:

"Dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais dar,
previamente, resposta a todos os problemas da realidade, uma vez que essas respostas
são progressivamente construídas pela jurisprudência. Na verdade, por nada
regulamentarem de modo completo e exaustivo, atuam tecnicamente como
metanormas, cujo objetivo é enviar o juiz para critérios aplicativos determináveis ou
para outros espaços do sistema ou através de variáveis tipológicas sociais, dos usos e
costumes objetivamente vigorantes em determinada ambiência social. Em razão dessas
características essa técnica permite capturar, em uma mesma hipótese, uma ampla
variedade de casos cujas características específicas serão formadas por via
46
jurisprudencial, e não legal."

Assim sendo, as cláusulas gerais permitem que o direito (ou sistema jurídico) fique mais
suscetível às mudanças que ocorrem na vida social, sem que seja necessário que o
Poder Legislativo edite normas atrás de normas, a fim de adequar as leis à realidade, o
que sabemos ser uma atividade tão demorada que, quando a norma é editada já está
desatualizada, visto que o aparelho legislativo não consegue acompanhar a dinâmica da
realidade social.

Página 16
A função social da propriedade como cláusula geral

Assim, a jurisprudência passa a desempenhar um papel fundamental, na medida em que


"vão sedimentando, com o passar do tempo, um 'grupo de casos' que, por se referirem a
hipóteses concretas semelhantes, preenchem de sentido estas expressões formuladas
abstratamente e, por conseguinte, conferem-lhes concretude de significado e a
possibilidade de se estabelecer um controle desses enunciados normativos no sistema".
47

As cláusulas gerais também podem ser divididas em três tipos, a saber:

a) Restritivas: são aquelas que restringem o uso de certas permissões legais com vistas
ao interesse geral. São típicas desse tipo a função social do contrato e a função social da
propriedade, visto que delimitam o direito subjetivo de propriedade, além de inserir no
conteúdo mesmo do direito o seu caráter de funcionalidade;

b) Regulativa: servem para regular hipóteses não previstas na lei, com base em um
princípio. Deste tipo são aquelas que regulam a responsabilidade civil por culpa (art.
927, CC/2002 (LGL\2002\400));

c) Extensiva: são aquelas que autorizam a inserção de outras normas para regular o
caso concreto, tais como os tratados e convenções, bem como os seus respectivos
princípios (art. 5.º, § 2.º, CF/1988 (LGL\1988\3) e art. 7.º, CDC (LGL\1990\40)).

Nesta esteira caminhou o Código Civil (LGL\2002\400) de 2002, no qual se verifica uma
série de cláusulas gerais, como por exemplo: a cláusula geral da boa-fé (art. 422), a
cláusula geral da função social do contrato (art. 421), a cláusula geral do dano moral
(art. 186) e, evidentemente, a cláusula geral da função social da propriedade (art.
1.228, § 1.º).

Nessa nova sistemática, que visa propiciar maior mobilidade ao sistema jurídico escrito,
permiti-se que o juiz, ao proferir o seu decisium, busque fora do sistema jurídico valores
que servirão de base para a adequada dicção da lei, de acordo com os valores por ela
propugnados com vistas ao adequado preenchimento do conteúdo da norma frente ao
caso concreto, ou seja, há uma "mobilidade externa do sistema".

Ademais, vale mencionar as palavras do Prof. Alberto Gosson Jorge Júnior que diz,
referindo-se à amplitude das cláusulas gerais:

"A amplitude deste modelo jurídico diante de sua capacidade de absorver valores e
processar a substituição destes por outros valores mais adequados às necessidades
sociais de um dado momento histórico, operação esta que se realiza dentro do mesmo
arcabouço normativo, evitando-se o processo de revogação formal da norma com a
substituição por outra que nada mais é do que o que se faz num quadro usual de
48
normativismo rígido."

No entanto, há que se ressaltar que não está o juiz autorizado a exercer uma atividade
arbitrária no tocante à aplicação da norma, mas, ao contrário, deverá estar vinculada,
posto que em sua fundamentação deverá o juiz sempre se reportar a casos precedentes.
Assim, deverá o juiz privilegiar a jurisprudência que irá concretizando estes conceitos
gerais de acordo com os casos a eles expostos, preenchendo assim as expressões
formuladas abstratamente pelo legislador, haja vista que a interpretação do órgão
jurisdicional se dá com base em certas pautas de valoração.

Vale lembrar, ainda, que a utilização das cláusulas gerais não exclui a utilização da
casuística, visto que um sistema jurídico estruturado apenas sobre cláusulas gerais
provocaria uma enorme instabilidade no sistema jurídico, comprometendo em muito a
segurança jurídica.

Assim, como bem ressalta Karl Engisch, "as cláusulas gerais e o método casuístico nem
sempre se excluem mutuamente dentro duma certa matéria jurídica, mas, antes, se
49
podem complementar".
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A função social da propriedade como cláusula geral

Portanto, é necessário haver uma combinação dos métodos utilizados, ou seja, deve
utilizar-se das cláusulas gerais para garantir flexibilidade ao sistema, bem como um grau
de casuísmo para que se preserve a certeza tão importante para o direito.

5.2 A cláusula geral da função social da propriedade

Embora alguns neguem que a função social da propriedade seja considerada uma
cláusula geral, como é o caso de Laura Beck Varella e Marcos de Campos Ludwig que
afirmam:

"É de se rejeitar, todavia, a conceituação da função social da propriedade como espécie


de cláusula geral, uma vez que, como explica Martins-Costa, especificidade da técnica da
cláusula geral é o envio ao juiz 'de critérios aplicativos de determináveis ou em outros
espaços do sistema ou através das variáveis tipologias sociais, dos usos e costumes', ou
seja, trata-se de técnica essencialmente destinada à atividade judicial. A função social,
em verdade, perpassa os limites da atividade judicial, ainda que, evidentemente,
50
também a ela se dirija."

A despeito do brilhante estudo apresentado pelos eminentes juristas, não nos filiamos a
este entendimento, visto que a função social da propriedade, a nosso ver, é justamente
o vetor de valoração de que se servirá o juiz para a devida aplicação do direito nos
conflitos que envolvem o direito de propriedade, o que se insere logicamente no conceito
de cláusula geral. Neste sentido são importantes as palavras do Prof. Alcides Tomasetti
Júnior a cujo pensamento nos associamos:

"A função social, em verdade, é expressão sintetizante de valores, econômicos e


não-econômicos, assimilados pelo ordenamento jurídico. Assevera-se, sob este ponto de
vista, que a função social, na ordenação das 'propriedades', serve, exatamente, para
justificar a atribuição, ou o reconhecimento das posições jurídicas correlativas."

E ainda:

" Não existe dado normativo infraconstitucional, que possibilite a individuação


especificada de uma regulação jurídica da 'propriedade', de maneira que o operador vai
ter de elaborar a engenharia da espécie, para depois transformá-la ao caso, dentro do
espectro sistêmico. Eis a possibilidade mais crítica. É nesse ponto que se costuma sacar
o argumento de excessiva 'indeterminação' do princípio 'função social' e a
improbabilidade de concretizá-lo, a não ser com dose de arbítrio incompatível com o
51
valor jurídico segurança." (sic)

Ora, como se vê, a função social da propriedade não deixa de ser uma cláusula geral por
perpassar a atividade judicial, ou seja, isso não a descaracteriza como cláusula geral,
visto que é justamente com vistas ao alcance da sua finalidade que o juiz é remetido a
outros espaços do sistema, de acordo com os valores e princípios adotados para a
devida adequação do direito às necessidades da realidade social, como por exemplo, os
ditames de direito urbanístico que visam um melhor aproveitamento do solo urbano,
cujas diretrizes são definidas no Plano Diretor, é aí que o juiz irá buscar os valores e/ou
princípios para o devido preenchimento do conteúdo da norma, de acordo com o caso
concreto.

5.2.1 O termo função

Observe-se que a expressão "função social da propriedade" não foi utilizada


expressamente no novel Código Civil (LGL\2002\400). No entanto, assim é a dicção do
art. 1.228, § 1.º, in verbis:

"Art. 1.228. (...)

(...)

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A função social da propriedade como cláusula geral

§ 1.º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades
econômicase sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e
o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas (...)."
[g.n.]

Nesse dispositivo, o Código Civil (LGL\2002\400), refletindo os valores que norteadores


a sua elaboração, sobretudo o princípio da sociabilidade, expressa a idéia da função
social da propriedade.

Como cláusula geral, a qual requer do magistrado o preenchimento do seu conteúdo,


cabe verificar como o juiz conseguirá determinar o sentido da função social da
propriedade.

Já verificamos nos capítulos anteriores donde surgiu a idéia da função social. Cabe agora
verificarmos a sua representação no Código Civil (LGL\2002\400) de 2002.

Em sentido amplo, a função social é entendida como finalidade. Assim se expressa o


Código: "o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidadeseconômicas e sociais".

Nesse sentido, a função social refere-se ao que entendia Karl Renner, para quem a
função social diz respeito às finalidades econômicas dos institutos jurídicos. Assim, a
propriedade atende a um fim econômico ou social, como, por exemplo, a moradia. Dessa
forma, se um indivíduo utiliza-se de sua propriedade com o fim de garantir abrigo para si
e sua família, ou aluga o imóvel para auferir determinada renda, cumpre fielmente a
função social da propriedade. O mesmo ocorre com a propriedade rural quando
devidamente cultivada cumpre também a sua função social.

Já verificamos no capítulo 3 o enfoque constitucional da propriedade. Vale lembrar,


52
todavia, que a função social da propriedade requer uma tradução legislativa específica
(cláusula Geral), cabendo ao magistrado a determinação de seu conteúdo frente às
obrigações dos proprietários em dar ao seu bem uma destinação social.

Assim, quais seriam os interesses protegidos pelo termo função?

É justamente aqui que se encontra o cerne da questão, bem como o árduo labor dos
órgãos jurisdicionais, haja vista que os tribunais devem harmonizar o direito de
propriedade constitucionalmente garantido com as finalidades a ele impostas em face da
função social. No dizer de Pietro Perlingieri, deve-se resguardar um conteúdo mínimo de
direito de propriedade. E como bem pondera o Prof. Alberto Gosson Jorge Júnior,
mencionando o mesmo autor: "o conteúdo da função social assume um papel de tipo
promocional no sentido de que a disciplina, as formas de propriedade e as suas
interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os
quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos
limites à função social. Esta deve ser entendida não como intervenção 'em ódio' à
propriedade, mas torna-se a 'própria razão pela qual o direito de propriedade foi
atribuído a um determinado sujeito', um critério de ação para o legislador, e um critério
de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as
53
situações conexas à realização de atos de atividades do titular".

Assim, deverá o juiz buscar na lei e fora dela, a valoração para a solução dos conflitos
que ao Poder Judiciário se apresentam.

Neste aspecto, vale mencionar o memorável aresto do Tribunal de Justiça de São Paulo,
na ApCív 212.726-1/8, em cujo voto do eminente desembargador rel. José Osório
analisa a questão relativa à "Favela do Pullman", na Comarca de São Paulo, uma vez que
o proprietário de nove lotes, na mencionada favela, após ter deixado os referidos
imóveis abandonados por vários anos ajuizou ação reivindicatória. No entanto, ali se
encontravam aproximadamente trinta famílias que há vários anos se estabeleceram
Página 19
A função social da propriedade como cláusula geral

naquele local. Segue abaixo alguns trechos do acórdão que demonstram justamente a
atuação do Judiciário em busca do preenchimento da cláusula geral da função social da
propriedade, in verbis:

"Trata-se de favela consolidada, com ocupação iniciada há cerca de 20 anos. Está


dotada, pelo Poder Público, de pelo menos três equipamentos urbanos: água, iluminação
pública e luz domiciliar. (...) Os lotes do reivindicados e o próprio loteamento não
passam, há muito tempo de mera abstração jurídica. A realidade urbana é outra. (...) Lá
vivem muitas centenas, ou milhares, de pessoas. (...). Loteamentos e lotes urbanos são
fatos e realidades urbanísticas (...) O fundamental é que a 'coisa' seja funcionalmente
dirigida a uma finalidade viável, jurídica e economicamente. (...) O desalojamento
forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas, todas inseridas na comunidade urbana
muito maior da extensa favela, já consolidada, implica uma operação cirúrgica de
natureza ético-social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza
do Direito (...). Por aí se vê que a dimensão simplesmente normativa do Direito é
inseparável do conteúdo ético-social do mesmo, deixando a certeza de que a solução
que se revela impossível do ponto de vista social é igualmente impossível do ponto de
vista jurídico. (...) A leitura de todos os textos do CC só pode se fazer à luz dos preceitos
constitucionais vigentes. Não se concebe um direito de propriedade que tenha vida em
confronto com a Constituição Federal (LGL\1988\3), ou que se desenvolva paralelamente
a ela. (...) O princípio da função social atua no conteúdo do direito. Entre os poderes
inerentes ao domínio, previstos no art. 524 do CC (usar, fruir, dispor e reivindicar), o
princípio da função social introduz um outro interesse (social) que pode não coincidir
com os interesses do proprietário. (...). Em cidade de franca expansão populacional, com
problemas gravíssimos de habitação não se pode prestigiar tal comportamento de
proprietários." (g.n.)

Embora o acórdão acima tenha sido publicado antes da vigência do Código Civil
(LGL\2002\400) de 2002, o mesmo encontra-se em perfeita consonância com o novo
diploma civil.

Verifica-se que nos termos do art. 1.228, § 1.º, o direito individual está jungido a suas
finalidades econômicas e sociais (função social).

Assim, quando o conflito for levado ao Judiciário, deverá o juiz analisar o caso in
concreto, observando as demandas sociais, levando em conta os diversos dispositivos
jurídicos, bem como princípios éticos e morais que norteiam o caso, com vistas ao
atendimento da função social da propriedade. Assim, na busca do seu conteúdo deverá o
magistrado buscar em outros diplomas como o Estatuto da Cidade ou o Estatuto da
Terra, bem como dos ditames constitucionais como demonstra o aresto do Egrégio
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
54
Ademais, como bem observa Venício Antonio de Paula Salles, a função social não
encontra ligação direta com a preservação ambiental. Não são realidades colidentes,
mas são distintas, visto que a função social da propriedade encontra fulcro no art. 5.º,
XXIII, da CF/88 (LGL\1988\3) e a preservação do meio ambiente respalda-se no art.
225, também da Constituição da República (LGL\1988\3). Importa salientar, todavia,
que o envio do intérprete/aplicador para o texto Constitucional se faz para que o
aplicador possa captar o verdadeiro conteúdo da norma e aplicação do direito. Em outros
termos, na busca da função social da propriedade, o aplicador/intérprete deverá verificar
o que determina o Plano Diretor, e no que se refere à preservação ambiental, a
legislação aplicável, bem como os princípios próprios deste ramo do direito.

Ademais, é bom que se diga, que, a nosso ver, o direito de propriedade continua sendo
um instituto de direito privado, aliás sempre foi um dos mais importantes institutos do
Direito Civil. O fato de este instituto estar submetido à função social, sob fundamento
constitucional, não nos faz entender que houve a sua transferência para o direito
público, como muitos vêm propugnando. O que ocorre é simplesmente a mudança na
mentalidade jurídica em reconhecer a supremacia da Constituição sobre as demais
Página 20
A função social da propriedade como cláusula geral

normas - sistema piramidal do ordenamento jurídico -, o que implica dizer que o


operador do direito deve ler o Código à luz da Constituição e não o contrário. Na ordem
constitucional todos os ramos do direito submetem-se aos ditames do Texto Maior,
inclusive o Código Civil (LGL\2002\400). Mas isso não indica que a propriedade tenha se
transferido para a seara do direito público. Isso seria reconhecer o esvaziamento de um
dos institutos nucleares do Direito Civil. Se assim ocorresse não se justificaria o
mencionado instituto constar no Código Civil (LGL\2002\400). Não foi essa a intenção do
legislador, que apenas incluiu deveres na essência do direito de propriedade.

Nesse sentido, vale mencionar as palavras do Prof. Carlos Ari Sundfeld, que afirma a
coexistência das noções de direito subjetivo de propriedade e da função social, in verbis:

"A função (...) não significa a extinção do direito subjetivo. Em matéria de propriedade,
há a convivência necessária de ambos. Daí não haver fundamento lógico para
55
sustentar-se que a propriedade privada extinguiu-se."

Assim, verifica-se que o Código Civil (LGL\2002\400) de 2002, atento aos seus
princípios, facilitou a visão do direito de propriedade, como um direito subjetivo cujo
conteúdo e extensão assenta-se sob o fundamento constitucional, não mais como um
direito absoluto voltado aos interesses egoísticos de seu titular, mas um direito em cujo
cerne repousam deveres (ou poder-dever).

6. CONCLUSÃO

Ante o estudo exposto, verificamos que a propriedade, enquanto instituto jurídico


importantíssimo, vem passando por diversas transformações no que tange ao seu
conteúdo.

A Revolução Francesa fez por realçar o caráter individualista da propriedade, o que


orientou as demais codificações que a ela seguiram.

Este direito de propriedade representado pelo conjunto de direitos que expressam o


senhorio do indivíduo sobre a coisa, tem na atualidade também sofrido modificações pela
influência da idéia da função social da propriedade.

É certo que o conceito de propriedade acaba modificando-se de acordo com as injunções


econômicas, políticas sociais e religiosas.

A idéia de função social da propriedade se apresenta como exemplo claro dessa


influência.

León Duguit apresenta sua doutrina contrapondo-se cabalmente contra a idéia do direito
de propriedade como sendo um direito subjetivo. Nega ele tal direito subjetivo.

A Constituição Federal de 1988 abarcou a idéia da função social da propriedade de forma


definitiva no ordenamento jurídico pátrio, criando deveras um novo regime jurídico da
propriedade, inclusive alçando o direito de propriedade à categoria de direito
fundamental (art. 5.º, XXII, CF/1988 (LGL\1988\3)). No entanto, no mesmo artigo, no
inciso XXIII, determina que ela atenda a sua função social. A função social da
propriedade passa a fazer parte do conteúdo mesmo da propriedade.

A Constituição passou a adotar não um critério único para a propriedade, mas a


considera em seu aspecto plural, ou seja, não se fala mais em propriedade, mas em
propriedades.

O novo Código Civil (LGL\2002\400), seguindo um dos seus princípios orientadores, qual
seja, a sociabilidade, segue a mesma idéia, inserindo a função social da propriedade em
seu art. 1.228, § 1.º.

Ademais, do ponto de vista legislativo, o legislador adotou a cláusula geral para abarcar
em seu texto a função social da propriedade, enquanto conceito jurídico indeterminado,
Página 21
A função social da propriedade como cláusula geral

cabendo ao juiz determinar o seu real significado no caso concreto. Por isso, utilizou-se o
legislador da cláusula geral, tendo em vista o grau de generalidade da idéia de função
social, o que se fará mediante a verificação no caso concreto. A função social servirá de
vetor de valoração a orientar o magistrado na devida aplicação do direito. Assim, o juiz é
obrigado a valer-se de princípios de outros ramos do direito, a fim de se auferir o
alcance da função social, como por exemplo, ocorre com os ditames do Estatuto da
Cidade que define a função social da propriedade urbana.

Ademais, o novo Código Civil (LGL\2002\400) diz que a propriedade deve atender às
suas finalidades econômicas e sociais. Dessarte, avaliando o caso em concreto observará
o juiz se tal propriedade, de fato, tem atingido tal desiderato. Aí verifica-se o importante
papel a ser exercido pela jurisprudência.

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1. O conceito de propriedade à luz da Constituição Federal (LGL\1988\3), p. 1.

2. Curso de direito romano, p. 118.

3. No período pós-clássico, este caráter absoluto é atenuado, pois surgem normas


regulando a desapropriação por utilidade pública, que, no entanto, garantiam
indenização ao proprietário que fosse desapropriado.

4. No que tange à expressão "mais absoluta" utilizada no art. 544, do Código de


Napoleão, é de bom alvitre mencionar os oportunos comentários do Prof. Caio Mário da
Silva Pereira: "Não foi feliz, a começar por uma gradação do absoluto, que é contrária à
lógica e à semântica: o absoluto não comporta superlativo. Se se admitir um absoluto
que o possa ser mais que outro, constrói-se a idéia de relativo; e se há um absoluto que
seja menos que outro absoluto é porque não o é. Em seguida, a definição desfaz o
absoluto, quando o submete a restrições legais e regulamentares. Com efeito, há
conceitos que se não compadecem com a idéia de limitação. Assim, é soberania; uma
nação é soberana. Simplesmente. Mas, se em virtude de algum acontecimento político
sofre diminuição em sua soberania, não se poderá dizer que ficou menos soberana,
porém, que perdeu a soberania. Assim, também, o absoluto. E se a propriedade é um
direito absoluto, que se enfraquece pela imposição de restrições legais e
regulamentares, já não é absoluto, porém um direito simplesmente, reduzido às
dimensões dos demais direitos" ( Instituições de direito civil. 18. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 90).

5. A cidade antiga, p. 56.

6. Direito das cousas, p. 63-64.

7. Direito das cousas, p. 116.

8. Silvio Rodrigues, Direito civil, p. 190.

9. Direitos reais, passim.

10. Direito civil, p. 250.

11. Paulo Dourado de Gusmão, Introdução ao estudo do direito, p. 253.

12. Elementos de teoria e ideologia do direito, p. 116.

13. Las transformaciones generales del derecho público y privado, p. 172.

14. Las transformaciones generales del derecho público y privado, p. 174.

15. Idem, ibidem, p. 182.

16. Las transformaciones generales del derecho público y privado, p. 180.

17. Para Duguit o homem isolado e independente é uma ficção. Por isso, repudia
totalmente a idéia de individualismo promulgada pela Revolução Francesa.
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A função social da propriedade como cláusula geral

18. Idem, ibidem, p. 179.

19. Moacyr Loba da Costa. A propriedade na doutrina de Duguit (exposição e crítica), p.


763.

20. ARAÚJO, Telga de. Função social da propriedade. Enciclopédia Saraiva de direito.
São Paulo: Saraiva, 1978.

21. Idem, ibidem, passim.

22. Idem, ibidem, passim.

23. Antonio Hernandez Gil, Derechos reales, p. 49.

24. Direito civil - Reais, p. 192.

25. Tradução do Prof. Eduardo Tomasevicius Filho em seu artigo A função social do
contrato: conceitos e critérios de aplicação.

26. José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 573. Vale lembrar
também que o Prof. Orlando Gomes dizia que "o esvaziamento do Código Civil
(LGL\2002\400) como estatuto da vida privada decorre ainda da emigração para o plano
constitucional de princípios gerais atinentes a instituições privadas, tais como a
propriedade e a família e a própria autonomia privada. Não que tenham passado a ser
institutos de direito público regulados na Constituição, mas, sim, porque foram, na sua
essência, transferidos do Código Civil (LGL\2002\400). A propriedade que se exerce sob
a forma de empresa, a propriedade rural, a propriedade cultural e até a propriedade de
certos bens de uso passaram para uma região onde somente leis especiais podem
vicejar. Sobrevivem e sobreviveriam no Código apenas as disposições concernentes ao
uso, ao gozo e às disposições dos bens alheios ao processo produtivo, conservados os
esquemas romanistas para a solução dos conflitos pessoais entre vizinhos, entre
condôminos ou entre possuidores. Os próprios conceitos fluídos, que chamei, faz tempo,
conceitos amortecedores, e as chamadas cláusulas gerais ou standards subiram para a
Constituição". ( Novos temas de direito civil. 1. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1983).

27. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público, RDP 84, 1987.

28. A reconstrução do direito privado, passim.

29. Idem, ibidem, p. 757.

30. Idem, ibidem, p. 759.

31. Comentários ao Estatuto da Cidade, p. 9.

32. Idem, ibidem, p. 103.

33. "Art. 5.º Lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá
determinar o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não
edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para
implementação da referida obrigação. § 1.º Considera-se subutilizado o imóvel: I - cujo
aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele
decorrente; II - ( vetado). § 2.º O proprietário será notificado pelo Poder Executivo
municipal para o cumprimento da obrigação, devendo a notificação ser averbada no
cartório de registro de imóveis. (...)."

34. "Art. 7.º Em caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma
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A função social da propriedade como cláusula geral

do caput do art. 5.º desta Lei, ou não sendo cumpridas as etapas previstas no § 5.º do
art. 5.º desta Lei, o Município procederá à aplicação do Imposto sobre a Propriedade
Predial e Territorial Urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da
alíquota pelo prazo de 5 (cinco) anos consecutivos. § 1.º O valor da alíquota a ser
aplicado a cada ano será fixado na lei específica a que se refere o caput do art. 5.º desta
Lei e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota
máxima de 15% (quinze por cento). § 2.º Caso a obrigação de parcelar, edificar ou
utilizar não esteja atendida em 5 (cinco) anos, o Município manterá a cobrança pela
alíquota máxima, até que se cumpra a referida obrigação, garantida a prerrogativa
prevista no art. 8.º. § 3.º É vedada a concessão de isenções ou de anistia relativas à
tributação progressiva de que trata este artigo."

35. Eros Roberto Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988, passim.

36. A propriedade privada entre o direito civil e a Constituição, passim.

37. Expressão utilizada por S. Rodotá.

38. Engisch define este método como: "aquela configuração da hipótese legal (enquanto
somatório dos pressupostos que condicionam a estatuição) que circunscreve particulares
grupos de casos na sua especificidade própria. Uma hipótese casuística é, por exemplo,
a do § 224 do Código Penal (LGL\1940\2): Se uma ofensa corporal voluntária 'tem como
consequéncia para a vítima a perda dum membro importante do corpo, da visão de um
ou de ambos os olhos, da audição ou da capacidade de procriar, ou se a mesma vítima
fica duradoira e consideravelmente desfigurada ou cai na invalidez, na paralisia ou na
loucura', deve o agente ser condenado a prisão de 1 a 5 anos" ( Introdução ao
pensamento jurídico, p. 228).

39. Esta idéia foi cunhada pela expressão que se referia ao juiz como sendo a "boca da
lei".

40. Cláusulas gerais no novo Código Civil (LGL\2002\400), p. 53, nota 123.

41. Judith Martins-Costa, O direito privado como um "sistema em construção" - As


cláusulas gerais no projeto do Código Civil (LGL\2002\400) brasileiro, p. 29.

42. Introdução ao pensamento jurídico, p. 208.

43. Introdução ao pensamento jurídico, passim.

44. Do ponto de vista da norma jurídica, as cláusulas gerais "são normas que contêm
uma cláusula geral", e ainda "normas produzidas por uma cláusula geral".

45. Cláusulas gerais no novo Código Civil (LGL\2002\400), p. 6.

46. O direito privado como um sistema em construção - As cláusulas gerais no projeto


do Código Civil (LGL\2002\400) brasileiro, p. 29.

47. Cláusulas gerais no novo Código Civil (LGL\2002\400), p. 55-56.

48. Cláusulas gerais no novo Código Civil (LGL\2002\400), p. 53, nota 124.

49. Cláusulas gerais no novo Código Civil (LGL\2002\400), p. 210.

50. Idem, ibidem, p. 778.

51. Cláusulas gerais no novo Código Civil (LGL\2002\400).

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A função social da propriedade como cláusula geral

52. Calixto Salomão Filho, Função social do contrato: primeiras anotações, p. 9.

53. Idem, ibidem, mesma página.

54. O direito de propriedade e o novo Código Civil (LGL\2002\400), p. 44.

55. Temas de direito urbanístico, p. 50.

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