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A função social da propriedade como cláusula geral
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1. Introdução
O desejo de possuir sempre foi ínsito ao homem desde os tempos mais remotos. A
apropriação de bens levou o homem primitivo a agrupar-se com outros, a fim de garantir
a segurança do grupo, que por fim estabeleceram a propriedade.
Clóvis Bevilácqua diz que "o movimento biopsíquico de apropriação tende a satisfazer as
necessidades do momento; quando a inteligência intervém, orientada pelos fatos, com a
idéia de previdência, o ato de apropriação adquire estabilidade, a princípio, naturalmente
precária, mas, progressivamente, ganhando força e duração. Originou-se, então, na
sociedade humana ao fenômeno econômico-jurídico da propriedade".
No início a propriedade foi coletiva, sendo que a todos pertenciam as terras como
também as armas e utensílios de trabalho. Não havia, nessa época, a propriedade
privada.
Em fase posterior, surge a propriedade privada, com caráter individual. Com o advento
do absolutismo, a propriedade pertencia unica e exclusivamente ao rei e a mais
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A função social da propriedade como cláusula geral
ninguém.
Com o influxo dos ideais do liberalismo, a Revolução Francesa pôs fim ao Antigo Regime
(absolutismo), consagrando a propriedade privada como direito natural do indivíduo.
Na mesma senda caminhou o Código Civil (LGL\2002\400) que adota a Cláusula Geral
da Função Social da Propriedade, integrando tal conceito de forma definitiva no
ordenamento.
Nessa esteira afirma Maria Rosa Lima: "o conceito de propriedade tem a capacidade de
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demonstrar o tipo de sociedade e de Estado, na qual está inserida", quais sejam,
socialismo e capitalismo.
Ademais, inúmeras disputas foram e continuam sendo travadas nos tribunais, as quais,
invariavelmente versam sobre a definição, conteúdo e alcance do conceito de
propriedade.
Em razão disso, este direito era tutelado por uma ação - a reinvidicatio - que era
utilizada quando o proprietário era violado na sua posse.
Após o declínio do império romano, instituiu-se na Europa o sistema feudal. Com relação
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A função social da propriedade como cláusula geral
Esta foi também a orientação seguida pelo Código Civil (LGL\2002\400) brasileiro de
1916, em seu art. 524: "A lei assegurará ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor
de seus bens, e de reavê-los do poder de quem injustamente os possua".
É fato que a propriedade, enquanto instituto social e político, é anterior à sua própria
condição de instituto jurídico.
"Os Antigos basearam o direito de propriedade em princípios diferentes dos das gerações
presentes (...). A idéia de propriedade privada estava na própria religião. Cada família
tinha o seu lar e os seus antepassados. Esses deuses só podiam ser adorados pela
família, só à família protegiam; eram propriedade sua."
E, ainda:
"De todas estas crenças, de todos estes usos, de todas estas leis, resulta que foi a
religião doméstica quem ensinou o homem a apropriar-se da terra e a assegurar-lhe o
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seu direito sobre a mesma."
Conceituar a propriedade não é tarefa fácil, mesmo porque esta definição não é
estanque, mas está sujeita a modificações, de acordo com os sistemas políticos e
ordenamentos jurídicos que as diversas nações venham a adotar.
Por seu turno, Clóvis Bevilácqua define propriedade, em seu sentido jurídico, como "o
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poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida psíquica e moral".
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A função social da propriedade como cláusula geral
Para o jurista português Cunha Gonçalves, "o direito de propriedade é aquele que uma
pessoa singular ou coletiva efetivamente exerce numa coisa determinada, em regra
permanente, de modo normalmente absoluto sempre exclusivo, e todas as outras
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pessoas são obrigadas a respeitar".
O Código Civil de 1916 (LGL\1916\1), assim como o de 2002, não define o direito de
propriedade, mas parte dos elementos que o compõem para atribuir ao seu titular o
direito sobre a coisa.
O critério analítico, seguido pelo Código de 1916, resume o direito de propriedade nas
faculdades que tem o proprietário de usar, gozar, dispor da coisa e de reavê-la de quem
injustamente a possua.
Por fim, o critério descritivo define o direito de propriedade a partir das suas
características, ou seja, como um direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, por
meio do qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa nos limites da lei.
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A função social da propriedade como cláusula geral
"Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito
de reavê-la do poder de quem que injustamente a possua ou detenha."
1) Usar: o direito de usar da coisa implica dizer que ao proprietário assiste o direito de
exigir dela tudo aquilo a que ela se destina. Assim, usa a coisa o proprietário de uma
casa quando dela faz sua habitação. Nessa faculdade inclui-se também manter a coisa
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disponível à utilização pelo seu titular. Destarte, como lembra Venosa, o proprietário
que mantém um terreno cercado sem o utilizar também está servindo-se dele, posto que
a coisa encontra-se em condições de ser utilizada;
Segundo Ferrara, "o direito torna as relações da vida social em relações de direito,
munindo-as de eficácia, transformando e plasmando essas relações humanas em
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relações juridicamente vinculantes".
A relação jurídica, portanto, é o vínculo existente entre as pessoas (sujeitos) criado por
um ato de vontade ou pela lei. Em outras palavras, é um vínculo entre o sujeito regulado
por normas jurídicas.
Para que haja relação jurídica, é necessário que existam sujeitos, mesmo nas relações
jurídicas envolvendo direitos reais, posto que uma relação jurídica só pode ser
estabelecida entre pessoas. Os sujeitos da relação jurídica serão aqueles que detêm
capacidade para serem titulares de direito.
Estes sujeitos são determinados de acordo com as posições que estes assumem frente
às situações jurídicas patrimoniais, quais sejam, sujeitos ativos ou passivos. Os
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A função social da propriedade como cláusula geral
primeiros são aqueles aos quais se estabelecem poderes, e os segundos são aqueles a
quem são impostas obrigações ou deveres.
Assim, a relação jurídica estabelece uma correlação entre as duas situações jurídicas
essencialmente existentes entre os sujeitos ativo e passivo, impondo obrigações a este
frente aos poderes atribuídos àquele.
No direito das obrigações é muito fácil vislumbrar esta correlação, visto que existe um
credor (sujeito ativo) e um devedor (sujeito passivo), sendo normalmente pessoas
determinadas.
Vale lembrar, ainda, que esta relação é tida como uma relação de cooperação entre o
proprietário (na situação jurídica ativa) e os demais (na situação jurídica passiva), que
podem ser os vizinhos, o Estado e os terceiros em geral.
Assim, são objetos dos direitos reais as coisas corpóreas e as incorpóreas, embora
existam juristas que neguem a possibilidade de direito real sobre bens incorpóreos.
É de se frisar que o objeto do direito real não se confunda com o seu conteúdo, posto
que este consubstancia-se nos poderes atribuídos ao titular do direito sobre o bem
objeto do seu direito. Veja-se, neste caso, que um bem pode ser objeto de mais de um
direito real, por exemplo, um apartamento pode ser objeto de usufruto, mas ser de
propriedade de outrem.
Duguit afirma que o substrato teórico que serviu de base para a concepção do direito de
propriedade - o direito subjetivo de propriedade - é uma noção de ordem puramente
metafísica, que confere ao proprietário o poder de impor a sua vontade frente aos
demais. É, portanto, uma noção absolutamente individualista e incompatível com as
tendências das sociedades modernas e com o realismo na qual vivem; realismo este que
impõe o reconhecimento da função social sobre os indivíduos e os grupos.
"Ante todo la noción fundamental que sirve de base al sistema de 1789 y de 1804 y de
todas las legislaciones positivas que en él han inspirado, es la del Derecho Subjetivo: el
derecho subjetivo del Estado personificando la colectividad, el derecho subjetivo del
individuo. Esta noción es de orden puramente metafísico, lo que está en contradicción
indudable con las tendencias de las sociedades modernas, y con el realismo; digamos la
palabra: con el positivismo de nuestra época.
¿Qué es, pues, un Derecho Subjetivo? Las controversias sin fin que se suscitan sobre la
verdadera naturaleza del Derecho Subjetivo, son la prueba mejor de todo lo que tiene de
artificial y de precaria esta concepción. No terminaría nunca si hubiera solamente de
citar los títulos de todo lo que se há escrito en Alemania, en Francia, en Italia y también
en la Argentina, sobre la naturaleza del Derecho subjetivo: es el poder que corresponde
a una voluntad de imponerse como tal a una o varias voluntades, cuando quiere una
cosa que no está prohibida por la ley. Los alemanes, principalmente el profesor Jellinek,
dicen: el Derecho subjetivo es un poder de querer, el poder de imponer a los demás el
respeto de su voluntad. (...) Tengo el derecho de propiedad: tengo el poder de imponera
otro el respeto a mi voluntad, de usar como me parezca de las cosas que posea a título
de propietario. (...). Esto implica una jerarquía de las voluntades, y e cierta manera una
cierta medida de las voluntades y una afirmación sobre la naturaleza y la fuerza de la
sustancia voluntad. (...). Por esto mismo, la noción de derecho subjetivo se encuentra
totalmente arruinada y con razón puedo afirmar que es una noción de orden matafísico,
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que no puede sostenerse en una época de realismo y de positivismo como la nuestra."
Assevera, ainda, que as concepções jurídicas consagradas pela Declaração dos Direitos
do Homem e do Código de Napoleão estariam desaparecendo e sendo substituídas por
uma nova concepção, sob fundamento de um novo sistema jurídico, firmado numa
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A função social da propriedade como cláusula geral
Isto se dá em razão das modernas civilizações que têm como elemento fundamental de
sua coesão social a divisão do trabalho. As nações modernas caracterizam-se pela
multiplicidade de necessidades e meios de satisfazê-las, o que leva a esta divisão social
do trabalho, cuja conseqüência é a divisão de funções, sendo que cada indivíduo
depende do trabalho dos demais para o atendimento de suas necessidades, o que
implica na tarefa que cada um tem de desempenhar para o desenvolvimento da
sociedade. Esta função é determinada pela posição que o indivíduo ocupa na
coletividade:
"Esta función está determinada por la situación que de hecho ocupa en la colectividad.
No tiene derechos subjetivos; no puede tenerlos, porque un derecho es una abstracción
sin realidad. Pero por lo mismo que es miembro de una sociedad tiene la obligación de
hecho de cumplir una cierta función social, y los actos que realiza para este fin tienen un
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valor social y serán socialmente protegidos."
Duguit firmou sua doutrina partindo de uma visão puramente sociológica, haja vista que
busca sua inspiração nas idéias de solidariedade social de Durkheim.
Assim, ele repudia totalmente a idéia de direito subjetivo, afirmando que este é um
conceito arruinado e incompatível com a realidade.
"¿En qué consiste, pues, esta noción de función social? Se reduce a lo siguiente: el
hombre no tiene derechos, la colectividad tampoco los tiene. Hablar de derecho del
individuo, derechos de la sociedad, decir que es preciso conciliar los derechos del
individuo con los de la colectividad, es hablar de cosas que no existen. Pero todo
individuo tiene en la sociedad una cierta función que llenar, una cierta tarea que
ejecutar. No puede dejar de cumplir esta función, de ejecutar esta tarea, porque de su
abstención resultaría un desorden cuando menos un perjuicio social.
Por otra parte, todos los actos que realizase contrarios a la función que le incumbe serán
socialmente reprimidos. Pero, por el contrario, todos los actos que realice para cumplir la
misión aquella que le corresponde en razón del lugar que ocupa en la sociedad, serán
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socialmente protegidos y garantidos."
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Segundo ele, pelo fato de o homem ser um ser social, ele tem uma tarefa a cumprir.
Diz ele, em relação à liberdade, que o homem não tem um fim em si mesmo, mas a
interdependência social o obriga a aplicar sua individualidade física, intelectual e moral
em prol do desenvolvimento da sociedade, e se assim não o fizer, então o Estado poderá
obrigá-lo a fazer.
No que tange ao direito de propriedade, Duguit afirma que não pode haver a submissão
de um bem a um fim individual:
poseer esta riqueza, una función social que cumplir; mientras cumple esta misión sus
tactos de proprietario están protegidos. Si no la cumple o le cumple mal, si por ejemplo
no cultiva su tierra o deja arruinarse su casa, la intervención de los gobernantes es
legítima para obligarle a cumplir su función social de propietario, que consiste en
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asegurar el empleo de las riquezas que posee conforme a su destino."
Assim, o proprietário que utiliza sua casa para moradia, ou aluga um imóvel, não exerce
um direito, mas cumpre uma função social, ao passo que aquele que não dá a seu bem
uma destinação corre o risco de sofrer sanções por parte do Estado no sentido de
forçá-lo a que cumpra a sua função social enquanto possuidor de uma riqueza.
Quando a utilização da coisa é obstada por ato de terceiro, quando esta estiver sendo
utilizada em sua destinação, cabe ao direito proteger o proprietário, ou seja, proteger o
indivíduo no cumprimento de sua função social, e isso implica não numa regra de direito
subjetivo, mas numa regra de direito objetivo que proíbe a todos de perturbarem ou
impedir a utilização da coisa conforme a sua finalidade.
Destarte, o indivíduo não pode usar a coisa a seu arbítrio, mas empregá-la de acordo
com a finalidade estabelecida pela norma de direito objetivo.
É bom que se diga, que o próprio Duguit alerta que não se deve considerar que, pela
noção da função social da propriedade, se está pregando o desaparecimento da
propriedade privada, mas que a noção jurídica de sua proteção está mudando.
A doutrina de Duguit não ficou isenta de críticas, pois vários juristas levantaram-se
contra as idéias apresentadas por ele.
O crítico mais enérgico contra a concepção da propriedade-função foi Jean Dabin, que
observou que a doutrina de Duguit afirmava que mesmo a norma conferindo um
benefício ao indivíduo, afirma não existir um direito subjetivo.
Ora, nesta sistemática, ressalta ele, que juridicamente não haveria sequer o direito à
vida, pois a norma de direito objetivo só a protegeria contra a prática de atentados.
Na verdade, segundo Jean Dabin, o que ocorre na doutrina da função social é uma
"querela de palavras", fundado em um mal-entendido, porque, como questiona, se o
indivíduo está autorizado a acionar o equipamento estatal com o intuito de proteger seus
interesses (vida, uso das coisas etc.) não seria a lei conferindo ao indivíduo um direito
subjetivo?
Assim, quando Duguit afirma que a propriedade é uma coisa e não um direito, Dabin
objeta-lhe afirmando que o proprietário tem uma coisa, neste sentido ele a possui; a
coisa lhe pertence e outro não pode possuí-la, nem a coletividade, ou seja, é seu direito
possuí-la, e esse direito é oponível erga omnes, e se o aparato estatal o protege é
porque ele tem um direito. Logo, o que Duguit apresenta não passaria de um jogo de
palavras.
Ademais, quando Duguit afirma que o homem é um ser social e assim, tem uma tarefa a
cumprir, alerta Dabin, esquece que o homem antes de ser um ser social é um ser
individual. Este homem social é um homem individual, bem como aqueles com quem
travará contato são homens individuais.
Portanto, a vida, as faculdades intelectuais, físicas e morais são poderes individuais, bem
como suas necessidades, ou seja, tudo que é preciso para o desenvolvimento e
manutenção destas faculdades.
Com efeito, quando o direito objetivo protege a utilização plena e livre das coisas em
proveito de alguém, ele está consagrando o direito subjetivo de propriedade. No
entanto, quando o direito limita esta utilização, ele conduz o direito subjetivo para a
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linha do social, mas não há uma negação ao direito de propriedade; assim, a solução
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A função social da propriedade como cláusula geral
apresentada por Duguit não é adequada à natureza real do homem. Dabin chegou a
afirmar:
"É melhor, em definitivo, renunciar à idéia da função social: o direito não se converte em
função social pelo fato de que esteja limitado ou condicionado ao interesse social; essa
suavização não modifica a função do direito, que continua em tudo o mais a serviço do
seu titular exclusivamente; apenas a extensão do direito será ampla, isso é tudo ( El
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derecho subjetivo, Madrid: Revista de Derecho Privado, 1955, p. 274)."
Outro jurista que se opôs às idéias de Duguit foi Gaston Moris que inicia apontando o
erro do mestre francês que atribuiu a paternidade da idéia da função social da
propriedade a Augusto Comte. Na verdade, esta idéia foi lançada por Santo Tomás de
Aquino que afirmava que a propriedade era um direito natural que deveria ser exercido
bonum commune, ou seja, no interesse geral.
Ademais, frisa Morin, por mais restrições e obrigações que o direito estabeleça em
relação ao proprietário, há ainda uma esfera de autonomia conferida a seu titular.
Assim, o direito de propriedade comporta um poder do proprietário, bem como uma
função. Ao que nos parece Morin faz, na verdade, uma tentativa de adaptação do
conceito de função social à idéia tradicional de propriedade.
"La Iglesia católica también le ha prestado especial atención, acomodándola a sus puntos
de vista. Sobre el fundo de la todavía vigente organización romana, decía San Augustín:
'En vista de lo que el Señor nos dice, no seáis amantes del dinero; pero si ya lo tenéis,
usad de él convenientemente. Sed ricos en buenas obras; den con facilidad y hagan a
otros partícipes de lo que ellos no tienen' Es muy conocido el siguiente pasaje de Santo
Tomás: 'Lícito le es al hombre, y es necesario a la vida humana, poseer cosas propias,
en cuanto a la potestad de procurárselas y administrarlas: si bien en cuanto a su uso no
debe de tenerlas como propias, sino emplearlas como comunes en el socorro de las
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necesidades de los demás'."
Nesta esteira, Barassi que criou uma das construções jurídicas sobre a função social
mais bem elaboradas, adotou duas formas jurídicas de encará-la, quais sejam, a função
social limite e a função social impulsiva. A primeira tem um significado jurídico mais
específico, atuando através de limites externos que comprimem o poder do proprietário,
ou seja, o proprietário deve manter-se dentro dos limites nos quais não venha a
prejudicar a comunidade. Neste aspecto podemos identificar a função social limite no
Código Civil (LGL\2002\400) brasileiro, em seu art. 1.228, § 1.º, in verbis:
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A função social da propriedade como cláusula geral
Por outro lado, a função social impulsiva tem como alvo não uma limitação à autonomia
privada, mas tende a fazer com que os bens sejam geridos em benefício de toda
coletividade.
Como se vê, a função social não é a negação da idéia de propriedade privada, mas é
compatível com ela, e com a noção de direito subjetivo.
Vale lembrar, o conceito de função social elaborado por Santi Romano que diz ser a
função social um "poder-dever", ou seja, a função social assume o significado do
exercício de um direito subjetivo que não contraria o interesse público.
No Brasil, o debate sobre a função social da propriedade foi iniciado pelos juristas
publicistas, sendo a sua primeira referência ocorrida no Constituição de 1934, como
veremos no próximo capítulo.
De fato, a primeira vez que a função social da propriedade foi mencionada no texto
constitucional foi na Constituição Federal de 1946, que dispunha em seu art. 147:
"Art. 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá,
com observância do disposto no art. 141, § 16, promoverá a justa distribuição da
propriedade, com igual oportunidade para todos."
"Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e
a justiça social, com base nos seguintes princípios:
(...)
Firmou, ainda, a propriedade privada e a sua função social dentre os princípios da ordem
econômica (art. 170, II e III);
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A função social da propriedade como cláusula geral
Alguns autores dizem que em razão deste conjunto de normas constitucionais que regem
a propriedade, esta não pode mais ser considerada como instituto de direito privado,
como afirma José Afonso da Silva:
"Esse conjunto de normas constitucionais sobre a propriedade denota que ela não pode
mais ser considerada como um direito individual nem como instituição do Direito
Privado. Por isso, deveria ser prevista apenas como uma instituição da ordem
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econômica, como nas Constituições da Itália (art. 42) e de Portugal (art. 62)."
Na mesma esteira caminha o Prof. Celso Antonio Bandeira de Mello, que diz:
Esta posição, no entanto, não é compartilhada por alguns civilistas, como é o caso de
Laura Beck Varela, que critica a posição dos dois renomados juristas, alegando que tal
pensamento trata-se de uma "abordagem reducionista" do instituto, e que esta
"tendência publicizante" da propriedade é equivocada, posto que o aproveitamento
econômico dos bens não é inovação da idéia de função social, mas refere-se à própria
evolução das relações jurídicas reais, como forma da sobrevivência econômica do
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homem.
É certo, porém, que tanto publicistas quanto privatistas não negam que atualmente o
correto é falar-se em propriedades e não em propriedade, tendo em vista que o instituto
da propriedade deve ser vislumbrado sob o seu aspecto plural, e não mais como um
instituto único e absoluto, herança de uma época cuja concepção jurídica da propriedade
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baseava-se no modelo napoleônico-pandectista.
cuida de preencher o conteúdo da sua respectiva função social, como é o caso da função
social da propriedade urbana, inserida no capítulo da política urbana. Afirma o art. 182,
§ 2.º, que a propriedade urbana cumpre a sua função social quando atende às
exigências fundamentais da ordenação da cidade expressas no Plano Diretor. Para
regulamentar este instituto foi criada a Lei 10.257, de 10.07.2001 (O Estatuto da
Cidade), que veio estabelecer as diretrizes gerais sobre a política urbana. Assim, no
dizer do Prof. Regis Fernandes de Oliveira, "a nova lei transforma princípios em regras e
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faz saltar do papel os votos para uma sociedade mais justa". Ou seja, o Estatuto da
Cidade veio dar efetividade ao princípio da função social da propriedade urbana, através
dos instrumentos de desenvolvimento urbano.
Dessarte, para os Municípios com mais de vinte mil habitantes, o Plano Diretor é, dentre
outros, instrumento básico que permite o racional desenvolvimento da área urbana. O
plano diretor, na conceituação de Hely Lopes Meirelles é "complexo de normas legais e
diretrizes técnicas para o desenvolvimento global e constante do Município, sob os
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aspectos físico, social, econômico e administrativo, desejado pela comunidade local".
Assim, de acordo com as diretrizes fixadas pelo Plano Diretor, o Município editará lei que
disciplinará a utilização adequada do solo urbano visando o seu melhor aproveitamento
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em vista das necessidades locais.
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim
como de suas famílias;
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que
a possuem e a cultivam."
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A função social da propriedade como cláusula geral
No que tange à função social da propriedade como princípio da ordem econômica, não
houve inovação na Carta de 1988, haja vista que nas Constituições anteriores já havia
menções a tal instituto, conforme outrora demonstramos.
No entanto, importa frisar que os incisos II e III do artigo 170 da CF/1988 (LGL\1988\3)
consubstanciam princípios constitucionais impositivos, que cumprem dupla função, ou
seja, servem como instrumental e como objetivo a ser alcançado pelo legislador.
O Prof. Eros Roberto Grau, no entanto, faz uma ressalva quanto à da função social da
propriedade do art 5.º, XXIII. Para ele tal menção não se justifica, pois o direito de
propriedade garantido no Capítulo dos Direitos Fundamentais (art. 5.º, XXII) não tem
função social, senão função individual. A função social somente se aplicaria à
propriedade enquanto princípio da ordem econômica, e no sentido de função social dos
bens de produção, como segue:
"No citado caput do art. 5.º da Constituição do Brasil encontra-se assegurada, sob a
forma de direitos, a pertinência subjetiva da vida, da liberdade, da segurança, e da
propriedade.
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A função social da propriedade como cláusula geral
A propriedade, nesse contexto, assume um particular significado, que não se repete nos
incisos XXII e XXIII ao mesmo art. 5.º.
Assim, a função social aqui surge como uma "função social ativa", tendo como alvo a
propriedade dos bens de produção.
Dessa forma, manifesta-se claro o sentido da função social como um poder-dever. Neste
aspecto, cumpre observar que quem detém a função social não é a coisa, senão o titular
dela.
Neste aspecto, o domínio sobre os bens de produção dá suporte à livre iniciativa, que
conseqüentemente, é o sustentáculo da atividade econômica do país. Porém, por força
da função social, podemos afirmar que no exercício deste direito o proprietário não pode
exercer o seu direito como mero veículo de acumulação de riqueza ou especulação. Ao
contrário, há uma afetação desta propriedade a um fim social, em busca de se assegurar
a todos a existência digna conforme os ditames da justiça social (finalidade da ordem
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econômica), buscando sempre um massimo sociale.
De outra banda, o proprietário continua a exercer a sua senhoria sobre os seus bens;
porém, limitado pela função social, visto ser ela componente da estrutura mesma do
direito, e não um mero elemento externo.
Como se vê, é sob o pálio da Constituição que a função social se concretiza, cabendo a
cada estatuto proprietário definir o conteúdo da função social, de onde se vale o poder
público para aquilatar o exato cumprimento do referido instituto.
A partir da segunda metade do século XX, verifica-se uma preocupação maior por parte
do legislador em criar uma formulação da hipótese legal, utilizando-se de conceitos com
significados abertos e vagos, ou seja, buscou-se mais a utilização dos conceitos jurídicos
indeterminados, os quais, segundo Karl Engisch, são conceitos "cujo conteúdo e
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extensão são em longa medida incertos".
É fato que a doutrina diverge quanto à definição de cláusula geral, mas ressalte-se que,
conforme Judith Martins-Costa, a cláusula geral, do ponto de vista da técnica legislativa,
"constitui uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de
tessitura intencionalmente 'aberta', 'fluida' ou 'vaga', caracterizando-se pela ampla
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extensão de seu campo semântico".
Como se verifica, a viga mestra da cláusula geral é o seu elevado grau de generalidade,
posto que abrange uma grande quantidade de casos. Em razão desta generalidade
verifica-se uma das grandes características das cláusulas gerais, qual seja, a vagueza
semântica sempre presente em seus enunciados.
Cabe observar que esta vagueza refere-se àquela definida por Cláudio Luzzati como
vagueza socialmente típica. Assim definiu o autor para diferenciá-la da vagueza comum
(aquela que para determinação do seu significado independe de valorações).
Assim, fazendo uso de tal linguagem, o legislador faz com que o intérprete recorra a
valores morais, princípios e usos e costumes no sentido de conseguir determinar o
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verdadeiro significado da norma. Como bem assevera Karl Engisch afirmando que o
legislador não toma uma decisão, mas confere esta competência ao juiz para que este,
diante do caso concreto, avalie e descubra o real significado da norma. É o que ocorre,
por exemplo, com a cláusula geral da boa-fé nas relações contratuais. No caso sub
judice, o juiz, diante dos fatos e circunstâncias que nortearam aquele negócio jurídico,
verificará se as partes agiram de acordo com o que se entende por boa-fé em tais
relações.
"Dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais dar,
previamente, resposta a todos os problemas da realidade, uma vez que essas respostas
são progressivamente construídas pela jurisprudência. Na verdade, por nada
regulamentarem de modo completo e exaustivo, atuam tecnicamente como
metanormas, cujo objetivo é enviar o juiz para critérios aplicativos determináveis ou
para outros espaços do sistema ou através de variáveis tipológicas sociais, dos usos e
costumes objetivamente vigorantes em determinada ambiência social. Em razão dessas
características essa técnica permite capturar, em uma mesma hipótese, uma ampla
variedade de casos cujas características específicas serão formadas por via
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jurisprudencial, e não legal."
Assim sendo, as cláusulas gerais permitem que o direito (ou sistema jurídico) fique mais
suscetível às mudanças que ocorrem na vida social, sem que seja necessário que o
Poder Legislativo edite normas atrás de normas, a fim de adequar as leis à realidade, o
que sabemos ser uma atividade tão demorada que, quando a norma é editada já está
desatualizada, visto que o aparelho legislativo não consegue acompanhar a dinâmica da
realidade social.
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A função social da propriedade como cláusula geral
a) Restritivas: são aquelas que restringem o uso de certas permissões legais com vistas
ao interesse geral. São típicas desse tipo a função social do contrato e a função social da
propriedade, visto que delimitam o direito subjetivo de propriedade, além de inserir no
conteúdo mesmo do direito o seu caráter de funcionalidade;
b) Regulativa: servem para regular hipóteses não previstas na lei, com base em um
princípio. Deste tipo são aquelas que regulam a responsabilidade civil por culpa (art.
927, CC/2002 (LGL\2002\400));
c) Extensiva: são aquelas que autorizam a inserção de outras normas para regular o
caso concreto, tais como os tratados e convenções, bem como os seus respectivos
princípios (art. 5.º, § 2.º, CF/1988 (LGL\1988\3) e art. 7.º, CDC (LGL\1990\40)).
Nesta esteira caminhou o Código Civil (LGL\2002\400) de 2002, no qual se verifica uma
série de cláusulas gerais, como por exemplo: a cláusula geral da boa-fé (art. 422), a
cláusula geral da função social do contrato (art. 421), a cláusula geral do dano moral
(art. 186) e, evidentemente, a cláusula geral da função social da propriedade (art.
1.228, § 1.º).
Nessa nova sistemática, que visa propiciar maior mobilidade ao sistema jurídico escrito,
permiti-se que o juiz, ao proferir o seu decisium, busque fora do sistema jurídico valores
que servirão de base para a adequada dicção da lei, de acordo com os valores por ela
propugnados com vistas ao adequado preenchimento do conteúdo da norma frente ao
caso concreto, ou seja, há uma "mobilidade externa do sistema".
Ademais, vale mencionar as palavras do Prof. Alberto Gosson Jorge Júnior que diz,
referindo-se à amplitude das cláusulas gerais:
"A amplitude deste modelo jurídico diante de sua capacidade de absorver valores e
processar a substituição destes por outros valores mais adequados às necessidades
sociais de um dado momento histórico, operação esta que se realiza dentro do mesmo
arcabouço normativo, evitando-se o processo de revogação formal da norma com a
substituição por outra que nada mais é do que o que se faz num quadro usual de
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normativismo rígido."
No entanto, há que se ressaltar que não está o juiz autorizado a exercer uma atividade
arbitrária no tocante à aplicação da norma, mas, ao contrário, deverá estar vinculada,
posto que em sua fundamentação deverá o juiz sempre se reportar a casos precedentes.
Assim, deverá o juiz privilegiar a jurisprudência que irá concretizando estes conceitos
gerais de acordo com os casos a eles expostos, preenchendo assim as expressões
formuladas abstratamente pelo legislador, haja vista que a interpretação do órgão
jurisdicional se dá com base em certas pautas de valoração.
Vale lembrar, ainda, que a utilização das cláusulas gerais não exclui a utilização da
casuística, visto que um sistema jurídico estruturado apenas sobre cláusulas gerais
provocaria uma enorme instabilidade no sistema jurídico, comprometendo em muito a
segurança jurídica.
Assim, como bem ressalta Karl Engisch, "as cláusulas gerais e o método casuístico nem
sempre se excluem mutuamente dentro duma certa matéria jurídica, mas, antes, se
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podem complementar".
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A função social da propriedade como cláusula geral
Portanto, é necessário haver uma combinação dos métodos utilizados, ou seja, deve
utilizar-se das cláusulas gerais para garantir flexibilidade ao sistema, bem como um grau
de casuísmo para que se preserve a certeza tão importante para o direito.
Embora alguns neguem que a função social da propriedade seja considerada uma
cláusula geral, como é o caso de Laura Beck Varella e Marcos de Campos Ludwig que
afirmam:
A despeito do brilhante estudo apresentado pelos eminentes juristas, não nos filiamos a
este entendimento, visto que a função social da propriedade, a nosso ver, é justamente
o vetor de valoração de que se servirá o juiz para a devida aplicação do direito nos
conflitos que envolvem o direito de propriedade, o que se insere logicamente no conceito
de cláusula geral. Neste sentido são importantes as palavras do Prof. Alcides Tomasetti
Júnior a cujo pensamento nos associamos:
E ainda:
Ora, como se vê, a função social da propriedade não deixa de ser uma cláusula geral por
perpassar a atividade judicial, ou seja, isso não a descaracteriza como cláusula geral,
visto que é justamente com vistas ao alcance da sua finalidade que o juiz é remetido a
outros espaços do sistema, de acordo com os valores e princípios adotados para a
devida adequação do direito às necessidades da realidade social, como por exemplo, os
ditames de direito urbanístico que visam um melhor aproveitamento do solo urbano,
cujas diretrizes são definidas no Plano Diretor, é aí que o juiz irá buscar os valores e/ou
princípios para o devido preenchimento do conteúdo da norma, de acordo com o caso
concreto.
(...)
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A função social da propriedade como cláusula geral
§ 1.º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades
econômicase sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e
o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas (...)."
[g.n.]
Já verificamos nos capítulos anteriores donde surgiu a idéia da função social. Cabe agora
verificarmos a sua representação no Código Civil (LGL\2002\400) de 2002.
Nesse sentido, a função social refere-se ao que entendia Karl Renner, para quem a
função social diz respeito às finalidades econômicas dos institutos jurídicos. Assim, a
propriedade atende a um fim econômico ou social, como, por exemplo, a moradia. Dessa
forma, se um indivíduo utiliza-se de sua propriedade com o fim de garantir abrigo para si
e sua família, ou aluga o imóvel para auferir determinada renda, cumpre fielmente a
função social da propriedade. O mesmo ocorre com a propriedade rural quando
devidamente cultivada cumpre também a sua função social.
É justamente aqui que se encontra o cerne da questão, bem como o árduo labor dos
órgãos jurisdicionais, haja vista que os tribunais devem harmonizar o direito de
propriedade constitucionalmente garantido com as finalidades a ele impostas em face da
função social. No dizer de Pietro Perlingieri, deve-se resguardar um conteúdo mínimo de
direito de propriedade. E como bem pondera o Prof. Alberto Gosson Jorge Júnior,
mencionando o mesmo autor: "o conteúdo da função social assume um papel de tipo
promocional no sentido de que a disciplina, as formas de propriedade e as suas
interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os
quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos
limites à função social. Esta deve ser entendida não como intervenção 'em ódio' à
propriedade, mas torna-se a 'própria razão pela qual o direito de propriedade foi
atribuído a um determinado sujeito', um critério de ação para o legislador, e um critério
de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as
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situações conexas à realização de atos de atividades do titular".
Assim, deverá o juiz buscar na lei e fora dela, a valoração para a solução dos conflitos
que ao Poder Judiciário se apresentam.
Neste aspecto, vale mencionar o memorável aresto do Tribunal de Justiça de São Paulo,
na ApCív 212.726-1/8, em cujo voto do eminente desembargador rel. José Osório
analisa a questão relativa à "Favela do Pullman", na Comarca de São Paulo, uma vez que
o proprietário de nove lotes, na mencionada favela, após ter deixado os referidos
imóveis abandonados por vários anos ajuizou ação reivindicatória. No entanto, ali se
encontravam aproximadamente trinta famílias que há vários anos se estabeleceram
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A função social da propriedade como cláusula geral
naquele local. Segue abaixo alguns trechos do acórdão que demonstram justamente a
atuação do Judiciário em busca do preenchimento da cláusula geral da função social da
propriedade, in verbis:
Embora o acórdão acima tenha sido publicado antes da vigência do Código Civil
(LGL\2002\400) de 2002, o mesmo encontra-se em perfeita consonância com o novo
diploma civil.
Verifica-se que nos termos do art. 1.228, § 1.º, o direito individual está jungido a suas
finalidades econômicas e sociais (função social).
Assim, quando o conflito for levado ao Judiciário, deverá o juiz analisar o caso in
concreto, observando as demandas sociais, levando em conta os diversos dispositivos
jurídicos, bem como princípios éticos e morais que norteiam o caso, com vistas ao
atendimento da função social da propriedade. Assim, na busca do seu conteúdo deverá o
magistrado buscar em outros diplomas como o Estatuto da Cidade ou o Estatuto da
Terra, bem como dos ditames constitucionais como demonstra o aresto do Egrégio
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
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Ademais, como bem observa Venício Antonio de Paula Salles, a função social não
encontra ligação direta com a preservação ambiental. Não são realidades colidentes,
mas são distintas, visto que a função social da propriedade encontra fulcro no art. 5.º,
XXIII, da CF/88 (LGL\1988\3) e a preservação do meio ambiente respalda-se no art.
225, também da Constituição da República (LGL\1988\3). Importa salientar, todavia,
que o envio do intérprete/aplicador para o texto Constitucional se faz para que o
aplicador possa captar o verdadeiro conteúdo da norma e aplicação do direito. Em outros
termos, na busca da função social da propriedade, o aplicador/intérprete deverá verificar
o que determina o Plano Diretor, e no que se refere à preservação ambiental, a
legislação aplicável, bem como os princípios próprios deste ramo do direito.
Ademais, é bom que se diga, que, a nosso ver, o direito de propriedade continua sendo
um instituto de direito privado, aliás sempre foi um dos mais importantes institutos do
Direito Civil. O fato de este instituto estar submetido à função social, sob fundamento
constitucional, não nos faz entender que houve a sua transferência para o direito
público, como muitos vêm propugnando. O que ocorre é simplesmente a mudança na
mentalidade jurídica em reconhecer a supremacia da Constituição sobre as demais
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A função social da propriedade como cláusula geral
Nesse sentido, vale mencionar as palavras do Prof. Carlos Ari Sundfeld, que afirma a
coexistência das noções de direito subjetivo de propriedade e da função social, in verbis:
"A função (...) não significa a extinção do direito subjetivo. Em matéria de propriedade,
há a convivência necessária de ambos. Daí não haver fundamento lógico para
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sustentar-se que a propriedade privada extinguiu-se."
Assim, verifica-se que o Código Civil (LGL\2002\400) de 2002, atento aos seus
princípios, facilitou a visão do direito de propriedade, como um direito subjetivo cujo
conteúdo e extensão assenta-se sob o fundamento constitucional, não mais como um
direito absoluto voltado aos interesses egoísticos de seu titular, mas um direito em cujo
cerne repousam deveres (ou poder-dever).
6. CONCLUSÃO
León Duguit apresenta sua doutrina contrapondo-se cabalmente contra a idéia do direito
de propriedade como sendo um direito subjetivo. Nega ele tal direito subjetivo.
O novo Código Civil (LGL\2002\400), seguindo um dos seus princípios orientadores, qual
seja, a sociabilidade, segue a mesma idéia, inserindo a função social da propriedade em
seu art. 1.228, § 1.º.
Ademais, do ponto de vista legislativo, o legislador adotou a cláusula geral para abarcar
em seu texto a função social da propriedade, enquanto conceito jurídico indeterminado,
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A função social da propriedade como cláusula geral
cabendo ao juiz determinar o seu real significado no caso concreto. Por isso, utilizou-se o
legislador da cláusula geral, tendo em vista o grau de generalidade da idéia de função
social, o que se fará mediante a verificação no caso concreto. A função social servirá de
vetor de valoração a orientar o magistrado na devida aplicação do direito. Assim, o juiz é
obrigado a valer-se de princípios de outros ramos do direito, a fim de se auferir o
alcance da função social, como por exemplo, ocorre com os ditames do Estatuto da
Cidade que define a função social da propriedade urbana.
Ademais, o novo Código Civil (LGL\2002\400) diz que a propriedade deve atender às
suas finalidades econômicas e sociais. Dessarte, avaliando o caso em concreto observará
o juiz se tal propriedade, de fato, tem atingido tal desiderato. Aí verifica-se o importante
papel a ser exercido pela jurisprudência.
7. BIBLIOGRAFIA
ASCENSÃO, José de Oliveira . Direito civil - Reais. 5. ed. Coimbra: Coimbra Editora,
2000.
BEVILÁCQUA, Clóvis. Direito das coisas. 3. ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1951. v. 1.
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito romano. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2001.
DUGUIT, León. Las transformaciones generales del derecho público y privado. Buenos
Aires: Heliasta, s/data.
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 30. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2001.
JORGE JÚNIOR, Alberto Gosson. Cláusulas gerais no novo Código Civil (LGL\2002\400).
São Paulo: Saraiva, 2004.
LUMIA, Giuseppe. Elementos de teoria e ideologia do direito. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Novos aspectos da função social da propriedade no
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OLIVEIRA, Régis Fernandes. Comentários ao Estatuto da Cidade. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense.
1984. v. 4.
PEREIRA, Lafayette. Direito das cousas. São Paulo: Jacintho Ribeiro dos Santos, s/data.
17. Para Duguit o homem isolado e independente é uma ficção. Por isso, repudia
totalmente a idéia de individualismo promulgada pela Revolução Francesa.
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A função social da propriedade como cláusula geral
20. ARAÚJO, Telga de. Função social da propriedade. Enciclopédia Saraiva de direito.
São Paulo: Saraiva, 1978.
25. Tradução do Prof. Eduardo Tomasevicius Filho em seu artigo A função social do
contrato: conceitos e critérios de aplicação.
26. José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 573. Vale lembrar
também que o Prof. Orlando Gomes dizia que "o esvaziamento do Código Civil
(LGL\2002\400) como estatuto da vida privada decorre ainda da emigração para o plano
constitucional de princípios gerais atinentes a instituições privadas, tais como a
propriedade e a família e a própria autonomia privada. Não que tenham passado a ser
institutos de direito público regulados na Constituição, mas, sim, porque foram, na sua
essência, transferidos do Código Civil (LGL\2002\400). A propriedade que se exerce sob
a forma de empresa, a propriedade rural, a propriedade cultural e até a propriedade de
certos bens de uso passaram para uma região onde somente leis especiais podem
vicejar. Sobrevivem e sobreviveriam no Código apenas as disposições concernentes ao
uso, ao gozo e às disposições dos bens alheios ao processo produtivo, conservados os
esquemas romanistas para a solução dos conflitos pessoais entre vizinhos, entre
condôminos ou entre possuidores. Os próprios conceitos fluídos, que chamei, faz tempo,
conceitos amortecedores, e as chamadas cláusulas gerais ou standards subiram para a
Constituição". ( Novos temas de direito civil. 1. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1983).
27. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público, RDP 84, 1987.
33. "Art. 5.º Lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá
determinar o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não
edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para
implementação da referida obrigação. § 1.º Considera-se subutilizado o imóvel: I - cujo
aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele
decorrente; II - ( vetado). § 2.º O proprietário será notificado pelo Poder Executivo
municipal para o cumprimento da obrigação, devendo a notificação ser averbada no
cartório de registro de imóveis. (...)."
34. "Art. 7.º Em caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma
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A função social da propriedade como cláusula geral
do caput do art. 5.º desta Lei, ou não sendo cumpridas as etapas previstas no § 5.º do
art. 5.º desta Lei, o Município procederá à aplicação do Imposto sobre a Propriedade
Predial e Territorial Urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da
alíquota pelo prazo de 5 (cinco) anos consecutivos. § 1.º O valor da alíquota a ser
aplicado a cada ano será fixado na lei específica a que se refere o caput do art. 5.º desta
Lei e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota
máxima de 15% (quinze por cento). § 2.º Caso a obrigação de parcelar, edificar ou
utilizar não esteja atendida em 5 (cinco) anos, o Município manterá a cobrança pela
alíquota máxima, até que se cumpra a referida obrigação, garantida a prerrogativa
prevista no art. 8.º. § 3.º É vedada a concessão de isenções ou de anistia relativas à
tributação progressiva de que trata este artigo."
38. Engisch define este método como: "aquela configuração da hipótese legal (enquanto
somatório dos pressupostos que condicionam a estatuição) que circunscreve particulares
grupos de casos na sua especificidade própria. Uma hipótese casuística é, por exemplo,
a do § 224 do Código Penal (LGL\1940\2): Se uma ofensa corporal voluntária 'tem como
consequéncia para a vítima a perda dum membro importante do corpo, da visão de um
ou de ambos os olhos, da audição ou da capacidade de procriar, ou se a mesma vítima
fica duradoira e consideravelmente desfigurada ou cai na invalidez, na paralisia ou na
loucura', deve o agente ser condenado a prisão de 1 a 5 anos" ( Introdução ao
pensamento jurídico, p. 228).
39. Esta idéia foi cunhada pela expressão que se referia ao juiz como sendo a "boca da
lei".
40. Cláusulas gerais no novo Código Civil (LGL\2002\400), p. 53, nota 123.
44. Do ponto de vista da norma jurídica, as cláusulas gerais "são normas que contêm
uma cláusula geral", e ainda "normas produzidas por uma cláusula geral".
48. Cláusulas gerais no novo Código Civil (LGL\2002\400), p. 53, nota 124.
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