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Dissonantes e (r) existentes

vozes: A literatura negra


escrevivente

Dênis Moura de Quadros


(Organizador)
Dissonantes e (r) existentes vozes:
A literatura negra escrevivente
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Dissonantes e (r) existentes vozes:
A literatura negra escrevivente

1ª Edição

Dênis Moura de Quadros


(Organizador)

Rio de Janeiro
Mares Editores
2019
Copyright © da editora, 2019.

Capa e Editoração
Mares Editores

Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores e não representam


necessariamente a opinião da editora.

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foram avaliados e aprovados para sua publicação por membros de nosso
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Dados Internacionais de Catalogação (CIP)

Dissonantes e (r) existentes vozes: A literatura negra


escrevivente / Dênis Moura de Quadros; (Organizador).
– Rio de Janeiro: Mares Editores, 2019.
166 p.
ISBN 978-85-5927-061-7
doi.org/10.35417/978-85-5927-061-7

1. Literatura - Miscelânia. 2. Literatura Negra. 3. Análise


I. Título.

CDD 802
CDU 82

2019
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
CNPJ 24.101.728/0001-78
Contato: mareseditores@gmail.com
Sumário

Apresentação ................................................................................ 9

Pode a mulher negra gaúcha falar? A Precursora Maria Helena


Vargas da Silveira ........................................................................ 15

Entrelaçando escrevivências ....................................................... 32

Literatura Afro-Brasileira: um caminho para a problematização e


visibilidade das questões étnico-raciais no país ......................... 66

Análise do conto “Desencontro” de Luiz Silva ............................ 80

Análise do conto “Vitória da Noite” de Luiz Silva ..................... 108

Entre a voz e o silêncio: o mágico e o sagrado como parte da


escrita de vivente de Conceição Evaristo em Histórias de leves
enganos e parecenças ............................................................... 132

Eu-lírico racializado: Corpo e poema ........................................ 149

Sobre os autores ....................................................................... 164


Apresentação

As discussões acerca da literatura advinda de descendentes de


africanos escravizados são complexas e amplas. A cada novo trabalho
acadêmico, o conceito de “literatura afro-brasileira” se renova e
muda, também, sua nomenclatura como, por exemplo, os conceitos
de literatura negrobrasileira, afrofeminina e negrofeminina. Além
disso, o conceito cunhado por Conceição Evaristo de “escrevivência”
remodela e “embola” ainda mais as discussões sobre as escritas de si,
em que o ato político de escrever e publicar para essas autoras e esses
autores é insubordinado e resistente em seu sentido mais amplo.
A presente proposta buscou a publicação de trabalhos
acadêmicos que pensam criticamente os conceitos de literatura e
negritude aplicados à literatura produzida, especialmente, por
mulheres e homens comprometidamente ligados à ancestralidade
africana.
Escrever em tempos sombrios acerca de um tema que nos
atravessa é um ato insubordinado e de resistência. Talvez o que nos
mova a produzir e publicar seja o mesmo motivo dos historiadores
africanos ao se proporem rediscutir a história da África e é Joseph Ki-
zerbo (1922-2006) quem enuncia essa dor imposta pelo silenciamento
ao afirmar em entrevista com René Holenstein, publicado em Para
quando a África? (2009), que: “Começava a interessar-me,

-9-
precisamente porque sua ausência nos doía e nos deixava sequiosos.”
(KI-ZERBO, 2009, p. 13).
Assim, em uma época em que balas perdidas encontram
sempre corpos negros, publicar essa coletânea composta por
trabalhos acadêmicos que versam acerca dessas vozes abafadas, mas
que ressoam; das escrevivências entrelaçadas em finos fios
mnemônicos; da necessidade de discutir e dar visibilidade a essa
literatura; de apresentar a literariedade dos contos de Cuti e
Conceição Evaristo; de deslocar o olhar acadêmico “acostumado” ao
eurobrancocentrismo e instaurar uma leitura negroafricana da crítica
literária; e de enegrecer a forma cristalizada do eu-lírico pensando-o
racializado.
Esta coletânea conta com sete ensaios, começando por “Pode
a mulher negra gaúcha falar? A Precursora Maria Helena Vargas da
Silveira” em que o doutorando Dênis Moura de Quadros, que também
organiza-a, questiona sobre as possibilidades de ouvirmos as vozes de
escritoras negras gaúchas. Ao pensarmos as obras produzidas por
mulheres negras temos certa dificuldade de listá-las e ao listar
precursoras como Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Conceição
Evaristo (1946- ) constatamos que as autoras publicam no eixo Rio-São
Paulo. Ao nos direcionarmos ao sul do Brasil, a lista lacunar ecoa mais
ausências. Maria Helena Vargas da Silveira (1940-2009), começava a
escrever em 1987 com É fogo!, no ensaio, o autor analisa o livro de
contos O sol de fevereiro (1991).

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O segundo ensaio tem autoria da doutoranda Rosângela
Aparecida Cardoso da Cruz, intitulado “Entrelaçando escrevivências”.
Nele, a pesquisadora relata que: “A escrita memorialística ora é
atravessada pela necessidade de contar uma experiência ora pela
impossibilidade de se recontar o vivido. Ouso, assim, desvelar a minha,
por meio da arte literária, contando, criando e/ou inventando meios
para adentrar o solo petrificado das minhas memórias. Embasada
pelas escrevivências de Conceição Evaristo, encontro-me
presentificada em muitos dos seus textos, na vida dura, na labuta,
agruras e limitações corroboradas pela desigualdade social que assola
as vidas negras, em especial, das mulheres. Escrever se torna uma
forma de escapar do caos, de atravessar as barreiras do racismo e de
entrelaçar nossas vozes, sempre carregadas dos ecos de tantas outras.
O nosso canto é um lamento-denúncia, jamais será uma lámuria. Antes
de tudo, uma forma de resistir às mazelas e ao silenciamento
preestabelecido.”.
Nosso terceiro capítulo traz as elucubrações da Profa. Dra.
Miriam Denise Kelm, intitulado: “Literatura Afro-Brasileira: um
caminho para a problematização e visibilidade das questões étnico-
raciais no país”. Neste artigo, a pesquisadora apresenta os estudos
literários ligados à experimentação e representação do viver negro
como um dos passos necessários ao fortalecimento de uma identidade
culturalmente localizada, assim como vê na apropriação do
conhecimento sobre o tema uma das formas de colaborar com a

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destituição do racismo presente na sociedade brasileira. Discute-se a
importância de trazer para a sala de aula dos cursos superiores a
oportunidade de adentrar em conteúdos ainda pouco disseminados, a
partir do relato de duas práticas de ensino ocorridas no Curso de
Licenciatura em Letras, no campus Bagé/RS desta Universidade: o
componente curricular Cultura Africana (02/2018) e o Projeto de
Extensão “Literatura Afro-Brasileira: abordagem introdutória”
(01/2019).
O quarto e quinto capítulo são de autoria do Mestre Anderson
Caetano dos Santos que analisa, de forma separada, dois contos de
Cuti (Luiz Silva). O primeiro intitulado “Análise do conto
“Desencontro”, de Luiz Silva” em que Luiz Silva (Cuti), escritor afro-
brasileiro, que busca por meio de seus escritos contemplar a afirmação
da identidade, a ancestralidade africana, o racismo e a discriminação
racial. O conto “Desencontro”, de Negros em contos (1996), configura-
se como um elemento transgressor por meio de uma unidade que
estabelece uma tensão entre os discursos pré-estabelecidos e
estereotipados da sociedade brasileira. O dia a dia de um casal
composto por Pedro (negro) e a Lúcia (branca), na cidade de São Paulo,
destaca os conflitos existentes no cotidiano das pessoas. O segundo
“Análise do conto “Vitória da Noite”, de Luiz Silva”. Neste trabalho, o
autor toma o gênero “conto” como referência para estudar a produção
narrativa de Cuti.

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O sexto capítulo é de autoria da doutoranda Natália Regina
Serpa, intitulado “Entre a voz e o silêncio: o mágico e o sagrado como
parte da escrita de vivente de Conceição Evaristo em Histórias de leves
enganos e parecenças”. Este artigo analisa como a escrita de
Conceição Evaristo é permeada de narrativas insólitas que revelam o
sincretismo do povo preto, tomando como recorte os contos que
compõem o livro Histórias de leves enganos e parecenças (2017).
Nossa analise parte do pressuposto que as escrevivências de Evaristo
são atravessadas por dois elementos importantes para a escrita negra,
sendo o primeiro a ancestralidade e o segundo a cosmovisão africana,
esses dois elementos aproximam literatura e oralidade e permitem
que da teia narrativa tecida por Evaristo ressoem o fantástico, o
mágico e o maravilhoso personificados através das figuras dos orixás e
de tantas outras histórias que compõem a cosmologia africana. Essa
análise se apoia nos estudos e estratégias da Crítica literária
afrodescendente e nos Estudos pós-coloniais, usando o aporte teórico
de autores como: Achille Mbembe, Vilma Piedade, Djamila Ribeiro,
Abdias Nascimento, Carla Akotirene e teóricos da Literatura fantástica
como Tzvetan Todorov e Davis Roas.
O capítulo que encerra essa coletânea é de autoria da Mestra
Juliana Cristina Costa, intitulado “Eu-lírico racializado: Corpo e
poema”. Segundo a pesquisadora: Normalmente, a categoria eu-lírico
é considerada de maneira fixa e poucos são os estudos que se
debruçam para compreendê-la como uma manifestação enunciativa

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que é configurada pelo imaginário do autor ou autora. A partir dos
arcabouços teóricos tanto da análise crítica do discurso como da crítica
literária, este artigo visa analisar como são apresentados os eu-líricos
nos poemas de Cristiane Sobral e Ana Elisa Ribeiro a partir da noção
de dispositivo de racialidade de Sueli Carneiro. No livro Só por hoje vou
deixar o meu cabelo em paz (2014), Sobral apresenta diversas
temáticas, dentre elas, maternidade, relacionamento, autoestima, por
exemplo. Nos poemas observamos que a eu-lírico refere-se a sua pele
negra. Diferentemente ocorre na obra Anzol de pescar infernos (2013)
de Ribeiro em que embora haja a metáfora do poema enquanto o
corpo, o mesmo se apresenta sem características fenotípicas, o que
evidencia o modo como a racialidade se apresenta socialmente, como
algo neutro ou como o normal, sem marca discursiva mesmo sendo
visível.
Essa coletânea de vozes (r) existe e como nos lembra Maya
Angelou (1928-2014): “Você pode me riscar da História/ Com mentiras
lançadas ao ar./ Pode me jogar contra o chão de terra,/ Mas ainda
assim, como a poeira, eu vou me levantar”.

Dênis Moura de Quadros


Organizador

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Pode a mulher negra gaúcha falar? A Precursora Maria
Helena Vargas da Silveira

Dênis Moura de Quadros1

Considerações iniciais
Gayatri Spivak (1942- ) em Pode o subalterno falar? (2010) faz
um apanhado das condições que não permitem aos sujeitos
subalternizados falarem ou mesmo terem suas vozes autorais audíveis
e conclui com a afirmativa de que o subalterno não pode falar, pois
sua fala não tem valor atribuído no sistema social que o oprime. Logo,
se essas mulheres negras falam e publicam é, no mínimo, um ato de
insubmissão e resistência. Mesmo não lhes sendo permitido falar, elas
tomam “de assalto” o poder da escrita e, como intelectuais (SANTOS,
2018), (d) escrevem suas realidades e se autorrepresentam, com isso,
rompem com estereótipos impostos e criam novos mecanismos de
resistência ecoando suas vozes.
Como pesquisador negro, fator que atravessa minha produção
acadêmica, começo pensando em como lhes dar voz, mas logo
percebo que elas não precisam de voz, elas a têm e imponentes,
afrontosas, então, dedico-lhes, como forma de sacrifício, como

1
Doutorando em Letras, FURG/CAPES.

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presente, como oferenda: meus ouvidos. Como Obá2, corto um
pedaço de mim para ser servido neste banquete em que elas não estão
nas cozinhas ou na praça mexendo os tachos, fritando seus acarajés,
elas estão sentadas sobre a roda da Ancestralidade (com A maiúsculo),
afrocentrando a crítica e abrindo espaço para que suas vozes ecoem.
Assim, o recorte teórico elencado para a análise dos contos de
Maria Helena Vargas da Silveira (1940-2009), é composto pelas
reflexões de Gayatri Spivak (1994; 2010); Djamila Ribeiro (2017);
Mirian Cristina dos Santos (2018) para pensarmos no
dessilenciamento das vozes autorais das mulheres negras; Sueli
Carneiro (2011), Conceição Evaristo (2005) e Heloísa Toller Gomes
(2004) para discorrermos sobre o processo de subalternização dessas
mulheres, condicionadas a repetirem histórias de dor de suas
antepassadas escravizadas, e sua escrita atravessada por essa
condição; e, por fim, o conceito de literatura afrofeminina (2012)
cunhado por Ana Rita Santiago.
O principal objetivo desse trabalho é “[...] divulgar a produção
intelectual de mulheres negras, colocando-as na condição de sujeitos
e seres ativos que, historicamente, vêm pensando em resistências e
reexistências” (RIBEIRO, 2017, p. 90), ou seja, para analisar as
produções de mulheres negras gaúchas, elencamos uma base teórica

2
Orixá feminino que divide com Oxum e Iansã o amor de Xangô. Obá em um dos ítãs
é “enganada” por Oxum que lhe indica que o amalá, prato preferido do amado,
deveria levar um pedaço de suas orelhas ao que Obá se automutila. Ao final, Xangô
expulsa de seu reino Obá e Oxum.

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composta por mulheres e, hegemonicamente, pesquisadoras negras
brasileiras.

Falar/publicar é um ato de resistência e insubmissão


Ao questionar a fala do subalterno, em especial das mulheres
negras, Spivak (2010) conclui que suas falas não são permitidas, pois
são desprovidas de poder de fala. Contudo, essas mulheres negras
falam e, apesar da dificuldade, publicam suas obras em que rompem
com o silêncio imposto e se autorrepresentam, rompendo, também,
com estereótipos racistas e sexistas reproduzidos socialmente e
ficcionalmente. Ao concluir que a fala do subalterno não tem nenhum
valor atribuído, a crítica indiana, não está afirmando que ele não deve
falar, ao contrário, como ela mesma afirma “[...] os oprimidos podem
saber e falar por si mesmos.” (SPIVAK, 2010, p. 44), contudo há uma
estrutura que não permite que suas vozes ecoem. Mesmo falando, o
discurso do subalterno é, de uma forma ou outra, menosprezado,
abafado e tornado inaudível. Mas, espectros ressoam e, com certo
desprendimento eurocêntrico essas vozes podem ser ouvidas.
Se por um lado, a fala dessas mulheres é silenciada pelo
patriarcado que mantêm seu poder hegemônico, sobretudo, na
literatura através dos cânones cristalizados de autores homens e
brancos, por outro, a cor de suas peles e autoidentificação negra
dessas autoras lhes priva, também, do centro, diminuindo as poucas
possibilidades de falar, quiçá publicar. Nessa “encruzilhada” de

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opressões que, respeitando as particularidades de cada autora,
somam-se outras, os “muros” se erguem e os espectros tornam-se,
ainda mais, inaudíveis. Mas é preciso confirmar que elas falam e suas
vozes são altas o bastante para serem ouvidas não necessitando de
“intermediários”, mas de verdadeiros “ouvidos” atentos evocando
outros ouvidos.
É inegável que as ondas feministas reavaliaram historicamente
inúmeras autoras que publicavam com pseudônimos, bem como a
garantia de direitos importantes como, por exemplo, o direito ao voto,
mas é preciso dizer que a pauta das mulheres negras não foram
contempladas nesse movimento. Mirian Cristina Santos (2018), em
sua tese de doutorado, reavalia a presença de intelectuais negras no
Brasil e afirma que: “Como as mulheres negras possuem demandas
diferentes, o feminismo negro se torna necessário e coerente nas
reivindicações de sua alteridade” (SANTOS, 2018, p. 16) afirmação essa
que corrobora com Spivak (1994), em Quem reivindica alteridade, ao
afirmar que: “Separada do centro do feminismo, essa figura, a figura
da mulher da classe subalterna, é singular e solitária” (SPIVAK, 1994,
p. 191). Logo, surge a necessidade de união e surgimento de um
feminismo interseccional ou feminismo negro que centralize as pautas
e as lutas singulares dessas mulheres. Dessa forma, o lugar de fala
surge como espaço de discussão necessário para legitimar seus
discursos, contudo ainda é confundido como restrição de outras vozes.

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O lugar de fala não proíbe que um pesquisador do sexo
masculino, cisgênero, negro periférico fale de feminismo negro, mas
exige que ao falar de feminismo negro apresente-se o trabalho das
muitas mulheres que vieram antes de nós e que eu abra espaço para
que outras mulheres negras falem e que, assim, suas vozes sejam
legitimadas. “Pensar lugar de fala seria romper com o silêncio
instituído para quem foi subalternizado” (RIBEIRO, 2017, p. 90) e não
é possível romper silêncio com bases teóricas coloniais. Torna-se
imprescindível enegrecer, pois, como afirma Sueli Carneiro (2011), a
história se renova sem rupturas, mantendo a estrutura colonial em
que os sujeitos negros ainda ocupam subempregos e espaços
subalternizados sem a oportunidade de romper com essa realidade.

O que poderia ser considerado como uma história


ou reminiscências do período colonial permanece,
entretanto, viva no imaginário social e adquire
novos contornos e funções em uma ordem social
supostamente democrática, que mantém intactas
as relações de gênero segundo a cor ou a raça
instituídas no período da escravidão. As mulheres
negras tiveram uma experiência histórica
diferenciada que o discurso clássico sobre a
opressão da mulher não tem reconhecido, assim
como não tem dado conta da diferença qualitativa
que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem
na identidade feminina das mulheres negras.
(CARNEIRO, 2011, p. 20)

Essa experiência diferenciada reflete-se em suas escritas e


produções em que, segundo Heloísa Gomes (2004): “A escrita (da

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mulher) negra é construtora de pontas. Entre o passado e o presente,
pois tem traduzido, atualizado e transmutado em produção cultural o
saber e a experiência de mulheres através das gerações” (GOMES,
2004, p. 13), essas pontes resgatam a ancestralidade, visto que as
atuais possibilidades, mesmo que escassas, partem das inúmeras lutas
das mulheres cujos passos vieram antes de nós. Ao falarem de si,
recolhem outras vozes de suas ancestrais e de suas contemporâneas
que sofreram e sofrem as mesmas opressões diárias, mas, ao falarem
de si também rompem com estereótipos cristalizados e se
autorrepresentam engendrando outras representações mais
condizentes com suas experiências e reminiscências de suas raízes.
Assim, é preciso pensar suas produções de maneira autônoma,
sabendo que os conceitos acerca de literatura advinda de sujeitos
afrodescendentes são inúmeros e difusos, bem como, discutíveis.
Mesmo assim, elencamos o conceito advindo de uma pesquisadora
negra, Ana Rita Santiago (2012), de literatura afrofeminina.
A literatura produzida por mulheres negras, doravante
literatura afrofeminina, adotando o conceito da professora Dra. Ana
Rita Santiago (2012), é pouco estudada na Academia brasileira. Há,
atualmente, algumas aberturas como Quarto de despejo: Diário de
uma favelada (1960) de Carolina Maria de Jesus, leitura obrigatória em
vários vestibulares como, por exemplo, o da UFSC (Universidade
Federal de Santa Catarina) para o ingresso em 2019. Santiago (2012)
elenca como precursoras três autoras negras: Maria Firmina dos Reis

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(1825-1917); Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Antonieta de
Barros (1901-1952). No ano do centenário de morte de Maria Firmina
(2017) pouco se ouviu falar de suas obras ou mesmo do primeiro
romance abolicionista brasileiro Úrsula (1859), o que tem mudado
paulatinamente. Também são raras as homenagens a esta autora
basilar na literatura brasileira nos inúmeros eventos acadêmicos ao
longo do ano de 2017.

Nesse contexto, a literatura afrofeminina é uma


produção de autoria de mulheres negras que se
constitui por temas femininos e de feminismo
negro comprometidos com estratégias políticas
civilizatórias e de alteridades, circunscrevendo
narrações de negritudes femininas/ feminismos
por elementos e segmentos de memórias
ancestrais, de tradições e culturas africano-
brasileiras, do passado histórico e de experiências
vividas, positiva e negativamente, como mulheres
negras. Em um movimento de reversão, elas
escrevem para (des) silenciarem as suas vozes
autorais e para, através da escrita, inventarem
novos perfis de mulheres, sem a prevalência do
imaginário e das formações discursivas do poder
masculino, mas com poder de fala e de decisão,
logo senhoras de si mesmas (SANTIAGO, 2012, p.
155).

Sendo assim, a literatura afrofeminina, como reflete a própria


Santiago (2012): “não [...] quer repetir histórias e vivências, mas
desconstruí-las, quando oportuno, afirmar ancestralidades e práticas
socioculturais afro-brasileiras, quando necessário, e inventar

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memórias de autoconstituição também como narrativas de si/nós”
(SANTIAGO, 2012, p. 28). Ao falarem de si, direta ou indiretamente,
falam de outras, cujas histórias são amalgamadas, fundindo e
confundindo voz autoral com narradora. Exemplo disso é o romance
de estreia de Maria Helena Vargas da Silveira, É fogo! (1987) em que a
narradora Maria descreve sua jornada familiar e profissional,
tornando-se professora das séries iniciais, mesma profissão da autora.
Este fato caracteriza a escrevivência em que o comprometimento se
faz presente, mas o pacto (aquele autobiográfico) não se fecha.

Helena do Sul recolhendo outras vozes e (con)fundindo-se com a voz


autoral
Ao sairmos do “centro” do país e indo para as extremidades
encontramos mais silêncio, em especial, no Rio Grande do Sul em que
predomina a divulgação de que somos hegemonicamente brancos
pela colonização de origem alemã e italiana. A região sul
embranquecida proporciona esse longo silêncio e essa lacuna das
vozes autorais negras e isso se reflete nos escassos trabalhos
acadêmicos sobre as escritoras negras gaúchas. Assim, trazemos nesse
trabalho, a escrita de Maria Helena Vargas da Silveira (1940-2009),
pelotense que publica entre 1987 e 2007 dez obras literárias que vão
de poesia, contos, crônicas a novelas sociais, são elas: É fogo! (1987);
Meu nome pessoa: três momentos de poesia (1989); as antologias de
contos e crônicas: O sol de fevereiro (1991); Odara (1993) e Negrada

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(1994) e as novelas sociais: Tipuana (1997); O encontro (2000) e Os
corpos e Obá contemporânea (2005). Além dessas obras também
publicou As filhas das lavadeiras (2002) e Rota existencial (2007).
Nascida em Pelotas em 4 de junho de 1940, termina o curso
normal e licencia-se em pedagogia em 1971 pela UFRGS (Universidade
Federal do Rio Grande do Sul), professora em escolas públicas de
diversas cidades gaúchas, entre ela Pelotas e São Lourenço do Sul, foi
a primeira pedagoga da rede de supermercados Carrefour. Em 1999
muda-se para Brasília com a finalidade de assumir um cargo
administrativo na Fundação Cultural Palmares, local que assume o
epíteto de Helena do Sul. Atua durante dois anos como consultora de
projetos e planejamento da formação continuada de professores que
lecionavam em áreas remanescentes quilombolas, bem como foi
consultora da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura). Helena do Sul torna-se uma Ancestral
em 2009, vítima de um aneurisma cerebral. (EVARISTO, 2011).
O sol de fevereiro (1991) é composto por vinte e cinco contos
que giram em torno do Beco das Pereiras. Todos os personagens são
negros e periféricos e os fatos narrados oscilam entre as festas
religiosas afro-cristãs e histórias de dor, violência e violação de direitos
básicos. Recortamos da coletânea dois contos: “Cautela” e “Catarina
do Saque” para pensarmos na (re) apropriação de suas vozes autorais,
rompendo com estereótipos impostos socialmente e resistindo a

- 23 -
partir da união de forças ou, como é conhecido, pelo empoderamento
feminino negro.
“Cautela” evoca uma infância pobre, mas permeada de livros,
escritos e histórias. A narradora recebe de presente uma cartilha com
poemas como incentivo para começar seu diário poético. O encontro
da “cautela” ocorre dia 19 de setembro, um dia antes das
comemorações da revolução farroupilha, guerra marcada para nós
negros gaúchos, pelo “Massacre de Porongos” em que muitos dos
nossos ancestrais foram covardemente mortos. A frase que motiva o
conto, sendo reescrito, é narrado da seguinte maneira:

Quando setembro chegou e era quarta-feira, dia


19, encontrou no diário um quadrinho quase em
branco com a mensagem intitulada Cautela. Assim:
“Recomendação do tio Pedro, quando eu era
gurizote- Não mexe com as negras que eles estão
sempre com a boca cheia de mãe” (SILVEIRA, 1991,
p. 14).

A palavra cautela revela uma recomendação importante, pois


advinda de um tio fora registrada no diário em que a narradora
começava sua leitura. A expressão “com a boca cheia de mãe” denota
fazer escândalo, reivindicar direitos. Dessa forma, temos a construção
do mito da mulher negra raivosa, figura que é evocada
constantemente pela branquitude ao dialogar com as intelectuais
negras. Ao longo do conto, a narradora ainda destaca que estar com
“a boca cheia de mãe” não é característica apenas das mulheres

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negras, mas sim de todo os grupos marginalizados e oprimidos. Ou
seja, retomando Spivak (1994) é preciso reivindicar a voz.
Pensando na “cautela” retoma as construções literárias de
Jorge Amado, mas faz uma ressalva na construção mítica das mulheres
pela perspectiva do autor baiano e, então, reescreve a “cautela”,
rasurando também o mito da mulher negra raivosa: “Escreveu seu
primeiro poema irreverente e lançou no Beco: ‘... não mexe com as
negras que elas estão publicando’.” (SILVEIRA, 1994, p. 14). Já em
1994, Helena do Sul compreendia a força das palavras escritas e reunia
em sua voz a voz de outras que de tão abafadas eram pequenos fios,
espectros.
O segundo conto é “Catarina do Saque” e conta a história de
Catarina, mulher trabalhadora que ao se destacar no seu setor é
perseguida, além disso, também evoca a necessidade da união das
vozes, pois é dessa forma que ela (a voz) ecoa e ressoa. O “Saque” é
um supermercado que se localiza no entre lugar da periferia, que é a
Beco das Pereiras, e o asfalto, espaço constituído de casarões e
apartamentos. O comércio contrata os moradores dos arredores que
desempenham as mais variadas funções, no caso de Catarina ou Cati
como a voz narrativa refere-se a ela, trabalha no administrativo.

O crepúsculo recepcionava a entrada da noite e o


“Saque” acendia um mastro enorme, exibindo a
letras S, cintilante, bem viva em neon. Era um S
vermelho sangue, junto de um cifrão descomunal,

- 25 -
em dourado, bem cor de ouro, exageradamente
ouro (SILVEIRA, 1991, p. 52).

A descrição da fachada do Saque já nos adianta o poderio de


tal empresa assemelhando-se às redes de supermercado que
revendem seus produtos quase a preço de custo no intuito de
fecharem as portas dos pequenos concorrentes. A voz narrativa
destaca o capitalismo selvagem que impera no local. Cati é
extremamente competente e se divide no escritório em atender ao
telefone e organizar a parte burocrática do Saque. De tanto se
destacar atrai para si uma inveja e uma dúvida acerca da qualidade de
seu trabalho. A secretária branca que trabalha ao seu lado vê a
oportunidade para uma “arapuca”, pois Cati: “Era pau para toda obra”
(SILVEIRA, 1991, p. 53).

Sem respeitas as políticas dos recursos humanos,


empurraram-na de ponta cabeça para que se
pusesse ao chão. Prepararam uma conspiração:
todos os negros dos porões poderiam ficar em seus
postos; quanto aos outros, do mezanino, a ordem
era arrastá-los para baixo, para fora, agonizá-los
aos poucos, até que não mais sobrevivessem.
(SILVEIRA, 1991, p. 54).

Catarina fora posta para percorrer diariamente todo o saque,


de um lado para o outro. O motivo nada claro do gerente, ou melhor,
“claro” demais, foi de que Catarina teria que experimentar novas
experiências para ascender na empresa. A voz narrativa destaca que
conhecia muito bem Cati, ao afirmar que: “Recordava nossas pausas

- 26 -
no expediente. Sempre dávamos boas risadas pelos corredores
agitados, dizendo: Axé prá nós” (SILVEIRA, 1991, p. 54). Catarina é a
figura da mulher negra que ascende através do trabalho com
qualidade, levando muito a sério as poucas oportunidades que tem.

Entre os cafezinhos que tomamos, contou-me suas


desgraças no Saque. Pensamos em inveja,
castração das atividades da mulher para não
ascender às chefias, ponderamos o absurdo de
desejarem lhe realmente novas experiências. Não
queríamos admitir de imediato a discriminação da
mulher negra, tão flagrante (SILVEIRA, 1991, p. 54).

A “experiência” dentro do Saque corrói diariamente Catarina.


Seu esgotamento é nítido na conversa com a amiga que nos narra sua
história. Em frangalhos, Catarina pede ajuda à amiga irmã que divide
consigo esse pedaço de história e de memória. Então, a voz narrativa
sai ao Beco buscando outras mulheres conscientes de suas vozes e
que, talvez, passaram em seus empregos humilhações iguais ou
maiores a que Catarina sofria. Contudo, mesmo unidas já era tarde
para resistir, como afirma a voz narrativa: “Formamos uma frente de
defesa da mulher negra trabalhadora [...] Nossa primeira atividade foi
frustrante. Cati já havia morrido” (SILVEIRA, 1991, p. 55).

Considerações finais
A mulher negra não pode falar, não há poder que permita com
que seu discurso seja ouvido, quer dizer, não lhe é permitido falar e

- 27 -
quando elas insistem em ecoar suas vozes seus discursos são
deslegitimados. O subalterno não pode falar (SPIVAK, 2010) e as
mulheres negras encontram-se no entre lugar oprimidas pelo fato de
serem mulheres e suas pautas não serem discutidas como centrais nos
movimentos feministas e oprimidas por serem negras em que suas
pautas também não são postas em discussão. Mas as mulheres falam
e é preciso legitimar seus discursos através de seu lugar de fala
(RIBEIRO, 2017), forma de dessilenciar suas vozes autorais e “tomar de
assalto” o status de intelectuais. Como afirma, Mirian Santos (2018):

Ao politizar os espaços público e privado na leitura


das narrativas negrofemininas [...] é possível
empreender a denúncia do estereótipo do corpo
negro, principalmente o feminino, tido como sujo e
violado, por isso, ocupando o espaço das margens
ou da submissão (SANTOS, 2018, p. 167).

Ao denunciar o espaço, ainda, imposto das margens e da


subalternidade, as narrativas negrofemininas advindas da literatura
afrofeminina (SANTIAGO, 2012) rompem com os estereótipos
engendrados e mantidos pelos mitos da democracia racial e do negro.
Ao romper com esses (estereótipos), autorrepresentam-se e
desnudam em suas vozes formas de resistência, construindo pontes
(GOMES, 2004) principalmente com o passado, ou melhor, com a
Ancestralidade e a busca de suas raízes africanas. As mulheres negras
não só podem falar como falam e suas vozes ecoam, mesmo com as
inúmeras tentativas de silenciá-las, e recolhem outras vozes que (con)

- 28 -
fundem-se às vozes autorais das autoras. Quando falam,
“assenhoram-se” do poder da escrita, como afirma Conceição Evaristo
(2011):

Sendo as mulheres invisibilizadas , não só pelas


páginas da história oficial, mas também pela
literatura, e quando se tornam objetos da segunda,
na maioria das vezes, surgem ficcionalizadas a
partir de estereótipos vários, para as escritoras
negras cabem vários cuidados. Assenhorando-se
“da pena”, objeto representativo do poder falo-
cêntrico branco, as escritoras negras buscam
inscrever no corpus literário brasileiro imagens de
uma autorrepresentação. Surge a fala de um corpo
que não é apenas descrito, mas antes de tudo
vivido. A escre (vivência) das mulheres negras
explicita as aventuras e as desventuras de quem
conhece uma dupla condição que a sociedade
teima em querer inferiorizada, mulher e negra
(EVARISTO, 2005, p. 205, grifos da autora).

Maria Helena Vargas da Silveira, a Helena do Sul, na rubrica do


conto “Catarina do Saque”, destaca: “Gritar não é o bastante para que
ouçam quando o grito não é decodificado.” (SILVEIRA, 1991, p. 55).
Decodificar essas vozes não muito longe é o que me dispôs e me
disponho na atual caminha acadêmica. Cercado de histórias de
homens e mulheres negras, meus Ancestrais, faço o sacrifício à Helena
do Sul que recolhe em sua voz essas muitas outras vozes dissonantes,
mas que ecoam e alto para quem tem bons ouvidos.
A mulher negra pode falar e, como nos lembra a própria
Helena: “Cuidado” elas estão publicando.

- 29 -
Referências

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: A situação da mulher negra


na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. 2011.
Disponível em https://www.geledes.org.br/enegrecer-o-feminismo-
situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-partir-de-uma-
perspectiva-de-genero. Acesso em 10/04/2019.

EVARISTO, Conceição. Gênero e etnia: uma escre (vivência) de dupla


face. In: MOREIRA, Nadilza Martins de Barros; SCHNEIDER, Liane (Org).
Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa:
Ideia, 2005, p. 201-212.

GOMES, Heloísa Toller. “Visíveis e invisíveis grades”: Vozes de


mulheres na escrita afrodescendente contemporânea. Caderno
Espaço Feminino. Uberlândia: Ed. UFU, v. 12, n. 15, p.13-26, 2004.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento:


Justificando, 2017. (Feminismos Plurais)

SANTIAGO, Ana Rita. Vozes literárias de escritoras negras. Cruz das


Almas: Ed. UFRB, 2012.

SANTOS, Mirian Cristina dos. Prosa negro-brasileira contemporânea.


2018. 180f. Tese (Doutorado em Letras)- Programa de Pós-Graduação
em Estudos Literários, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de
Fora, 2018.

SILVEIRA, Maria Helena Vargas da. O sol de fevereiro. Porto Alegre:


[s.n.], 1991.

SPIVAK, Gayatri. Quem reivindica alteridade? In: HOLLANDA, Heloisa


Buarque de. Tendências e impasses: O feminismo como crítica da
cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

- 30 -
SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goullart
Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2010.

- 31 -
Entrelaçando escrevivências

Rosângela Aparecida Cardoso da Cruz3

Considerações Iniciais
No presente estudo4, a priori, convém ressaltar, ainda que de
maneira breve, um pouco da história e trajetória da poetisa e
romancista Conceição Evaristo. Nascida aos 29 de novembro de 1946,
em Minas Gerais, mais especificamente, na favela/morro do Pindura
Saia, em Belo Horizonte, situada à Avenida Afonso Pena, é filha de
dona Joana e de um certo senhor José, com o qual Conceição Evaristo,
praticamente, não teve contato. Por conta disto, a autora reconhece
como pai a figura do padrasto, senhor Aníbal Vitorino, que ajudou em
sua criação. Dividiu a infância entre morar com a mãe e a tia materna,
Maria Filomena da Silva que, assim como Dona Joana, a mãe de
Evaristo, ganhava a vida lavando roupas para fora, se sujeitando a
todos os tipos de subordinações possíveis já que, até mesmo, os
“panos” sujos de menstruações das patroas brancas, eram obrigadas
a lavar. Tais afirmativas são ratificadas pela própria Evaristo:
E quando eu testemunhava as toalhinhas antes
embebidas de sangue, e depois, já no ato da

3
Doutoranda em Letras/Literatura, UEM.
4
Este estudo é parte da minha dissertação de mestrado, defendida em 2016, pela
UFMT- CUR, sob o título de GÊNERO E EDUCAÇÃO NAS ESCREVIVÊNCIAS DE
CONCEIÇÃO EVARISTO: UM OLHAR SOBRE PONCIÁ VICÊNCIO E BECOS DA MEMÓRIA.
(https://www.ufmt.br/ppgedu/arquivos/d71e9700ef889de602c96653262e5174)

- 32 -
entrega, livres de qualquer odor ou nódoa, mais a
minha incompreensão diante das mulheres
brancas e ricas crescia. As mulheres da minha
família, não sei como, no minúsculo espaço em que
vivíamos, segredavam seus humores íntimos. Eu
não conhecia o sangramento de nenhuma delas. E
quando em meio às roupas, vindas para a lavagem,
eu percebia calças de mulheres e minúsculas
toalhas, não vermelhas, sim sangradas do corpo
das madames, durante muito tempo pensei que as
mulheres ricas urinassem sangue de vez em
quando (EVARISTO, 2005, s/p).

Conceição Evaristo5 aprendeu essa lição desde cedo, uma vez


que era ajudante assídua da mãe e da tia. Esta época de buscas e
entregas de roupas, nas casas das patroas brancas, ou seja, esta vida
de lavadeiras a que eram submetidas, é representada, literariamente,
por meio do poema Vozes-Mulheres, de autoria evaristiana. Sem
nunca esquecer as origens, Evaristo faz questão de frisar que foram os
maltratados dedos da mãe que lhe ensinaram as primeiras
experiências com a leitura e a escrita. A autora se considera uma
“colhedora” de palavras e ressalta, ainda, que embora sua infância
tenha sido recheada de muita pobreza e privações, cresceu rodeada
de palavras, sobretudo a partir dos causos e histórias narradas pelos
mais velhos. A mãe sempre foi sua principal referência e a oralidade
habitava o lar da menina Conceição Evaristo. Ela crescia, assim,

5
Dados biográficos extraídos dos textos “Conceição Evaristo: escritora negra
comprometida etnograficamente”, de Omar da Silva Lima e “Da grafia-desenho de
minha mãe, um dos lugares de nascimento da minha escrita” e “Gênero e Etnia: uma
escrita de dupla face”, ambos de autoria de Conceição Evaristo.

- 33 -
entrecortada pelas narrativas e, como bem enfatiza a romancista
“tudo era narrado, tudo era motivo de prosa-poesia” (EVARISTO, 2003,
p. 1).
Nesse sentido, na tentativa de suprir tantas restrições e
carências, cada vez mais Evaristo mergulhava no mundo das leituras.
Ler era uma válvula de escape, embora à luz das antigas lamparinas de
querosene e/ou à luz de velas, já que a energia elétrica só apareceu,
na favela, muito tardiamente. Entretanto, as muitas dificuldades
enfrentadas por Evaristo e seus familiares não impediram que ela
adentrasse ao mundo das letras e seus encantos, muito embora a
desigualdade social tenha sido fator determinante para que esta
entrada se fizesse tardia.
Aliás, foram os conhecimentos transmitidos pela oralidade
em família e os livros os grandes responsáveis pela superação das
mazelas impostas por uma sociedade branca, acomodada com o status
de superioridade. O fato de adentrar as casas das muitas famílias para
as quais a mãe e as tias trabalhavam proporcionou à menina Conceição
Evaristo manter contato com muitas pessoas que lhe permitiram
manusear muitos e diversos livros em busca de leituras que,
certamente, contribuíram para formar o caminho da futura poetiza e
romancista afro-literária.

Minha mãe e ainda tias e primas trabalharam para


família de escritores como: Alaíde Lisboa de
Oliveira, Lara Resende, Eduardo Frieiro, Luzia

- 34 -
Machado Brandão, Lucia Casasanta... Entretanto, o
evento maior, foi quando uma das minhas tias que
trabalhava para a senhora, Etelvina Viana,
responsável pela implantação da Biblioteca Pública
de Belo Horizonte, passou a ser servente dessa
casa-tesouro. Ali, na moradia dos livros, a minha
entrada se tornou ampla e irrestrita (EVARISTO,
2003, p. 1-2).

Ainda, em épocas da infância, a menina Conceição Evaristo6


atribuía valores significativos às muitas histórias contadas por sua
mãe, as quais, de certa forma, já delineavam um suposto futuro para
a menina-mulher-escritora que brotaria das audições do universo das
palavras que ouvia. A mãe, envolta na mais pura simplicidade, ao
término das lavagens de roupas, sempre encontrava um tempinho
para se debruçar sobre as páginas de cadernos que, na maioria das
vezes, encontrava nos “restos” das casas dos brancos. Estes serviam
como suporte para que ela registrasse, ali, fragmentos da própria vida.
Evaristo reitera que foram as mal traçadas linhas da mãe que
constituíram as primeiras lições de seu aprendizado.

Conseguir algum dinheiro com os restos dos ricos,


lixos depositados nos latões sobre os muros ou nas
calçadas, foi um modo de sobrevivência também
experimentado por nós. E no final da década de

6
Depoimento concedido durante o I Colóquio de Escritoras Mineiras, realizado em
maio de 2009, na Faculdade de Letras da UFMG. Texto publicado no Portal Literafro
da UFMG. Conceição Evaristo por Conceição Evaristo, texto em anexo à Dissertação
de MARINGOLO, Cátia Cristina Bocaiuva. Ponciá Vicêncio e Becos da Memória de
Conceição Evaristo: construindo histórias por meio de retalhos de memórias.
Araraquara – SP. 2014.

- 35 -
1960, quando o diário de Carolina Maria de Jesus,
lançado em 1958, rapidamente ressurgiu,
causando comoção aos leitores das classes
abastadas brasileiras, nós nos sentíamos como
personagens dos relatos da autora. Como Carolina
Maria de Jesus, nas ruas da cidade de São Paulo,
nós conhecíamos nas de Belo Horizonte, não só o
cheiro e o sabor do lixo, mas ainda, o prazer do
rendimento que as sobras dos ricos podiam nos
ofertar. Carentes de coisas básicas para o dia a dia,
os excedentes de uns, quase sempre construídos
sobre a miséria de outros, voltavam
humilhantemente para as nossas mãos. Restos
(EVARISTO, 2009, p.127).

Em função das duras jornadas de trabalho que enfrentava,


juntamente com sua mãe e tias, concluir os estudos não foi tarefa fácil
para a jovem que, somente aos 25 anos de idade conseguiu finalizar o
já extinto “Curso Normal”. Após ser aprovada em concurso da rede
municipal de ensino do Rio de Janeiro, Conceição Evaristo se mudou,
em meados da década de 1970 e, aproveitando a oportunidade,
graduou-se em Letras, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Conforme Araújo (2007, p. 39):

Na década de oitenta, período de efervescência


dos movimentos sociais pela igualdade racial,
Conceição Evaristo, ao tomar conhecimento da
fundação do grupo Quilombhoje, envia para
publicação o poema “Vozes Mulheres”, que
passa, então, a compor o volume de número 13
dos Cadernos Negros, publicado em 1990.

- 36 -
O ingresso no Mestrado em Letras aconteceu na década de
1990, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), do Rio de Janeiro.
Especificamente, em 1996, Conceição Evaristo defendeu a dissertação
intitulada “Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade”.
A romancista concluiu seu doutorado e segue, ainda hoje, cultivando
raízes na arte de escrever e representar a literatura afro-brasileira.
Inúmeros são os trabalhos acadêmicos que abordam as obras da
escritora e falam com carinho da precisão literária e da competência
da autora. A maestria com que narra suas escrevivências, bem como o
zelo e apreço pelo que faz e a atitude política inscrita em suas
narrativas se constituem como fontes inspiradoras para suas(eus)
pesquisadoras(es) e, em especial, para seu público-leitor. Entretanto,
jamais poderá ser vista por meio de vieses meritocráticos, ao
contrário, a escrevivência evaristiana bebe na fonte da denúncia social
e reitera a desumana e real situação em que vive a maioria de
afrodescendentes, no Brasil.
Além de poemas publicados pelos Cadernos Negros, constam,
entre as produções poéticas de Conceição Evaristo, os romances
Ponciá Vicêncio (2003), Becos da Memória (2006), livros de contos e
crônicas como Insubmissas Lágrimas de Mulheres (2011), Olhos
D’Água (2014), Histórias de Leves Enganos e Parecenças (2017),
Poemas da Recordação e Outros Movimentos (2008), Canção para
Ninar Menino Grande (2018) dentre outros. A romancista segue

- 37 -
produzindo e externando suas escrevivências7, sempre em busca da
representatividade da população negra, sobretudo das mulheres. A
escritora atribui às mulheres negras visibilidade e protagonismo, mas
também ao representar os homens negros, humaniza-os, apesar de
mostrá-los, muitas vezes, como machistas e sexistas, herdeiros do
patriarcado, Evaristo representa-os, ainda, como vítimas desta
sociedade brancocêntrica que, a negras/os, reservou um lugar de
subalternidade, predeteminado hegemonicamente.
Não é muito observar que existe um discurso oficial,
historicamente, construído em torno de negros e brancos, em que
estes últimos são considerados superiores aos primeiros e um dos
principais critérios de exclusão se dá em função da pigmentação
diferenciada encontrada nos respectivos corpos. Tal discurso, ainda
imperante, ora se manifesta de maneira explícita, ora velada; o que se
percebe, enfim, é que isto, ainda, se permeia em enunciados
reproduzidos e que convergem para um único propósito: solidificar a
segregação e o silenciamento em torno dos povos afrodescendentes.
Em vista disso, já estava mais do que na hora de essas vozes
que, por tanto tempo, estiveram ocultas, silenciadas e/ou interditadas

7
Expressão cunhada pela própria Conceição Evaristo como forma de se referir à sua
escrita, a qual parte da própria experiência de vida da escritora. Conforme Maringolo
(2014, p.10), Escrevivência “significa escrever sobre a vida, abarcando a experiência
múltipla e diversa dos afrodescendentes; significa também utilizar retalhos de
memórias para a construção das narrativas. Apoiada em sua vida, Conceição Evaristo
confunde, inventa, cria e recria o material narrativo para a construção das
narrativas”.

- 38 -
sob a aparência de uma representação outra, sucumbidas à palavra
autoritária de um discurso eurocêntrico, se fazerem ouvir, de se
libertarem das amarras e grilhões, de ecoarem, polifonicamente, seja
por meio da arte literária romanesca, poesia, pintura, dança, religião,
história dentre outros. A palavra se constitui como um signo da
libertação dos povos afrodescendentes, tornando-os atores e autores
das suas próprias histórias. Por conseguinte, é justamente, na
tentativa de ressuscitar costumes, valores e culturas afrodescendentes
que a escrita feminina de Evaristo surge como esta voz que, entre
outras, traz uma emancipação e/ou libertação literária para um povo
que, até então, não conseguira sair dos estritos limites dos bastidores.
Nesse sentido, como mulher negra, pobre e que, em muito,
se encontra nas narrativas evaristianas, deixo-me penetrar pelas
escrevivências, mergulhando no mais íntimo dos meus pensamentos
e, embora entrecortada pela ficção, compartilho um pouco da minha
história de vida, ressignificando-a neste eterno devir que é o processo
de construir e afirmar nossa própria identidade e, em especial, por
pensar que, ao compartilhamos nossas vivências, em algum lugar,
poderemos inspirar outras de nós. Assim, entrelaçando escrevivências,
seguimos aquilombando. Ave Mulheres!
No campo das memórias ouso pisar, valer-me das lembranças
de um passado não muito longínquo, um retorno a um lugar que,
talvez, nunca tenha sido trilhado de fato. Em especial, uma viagem
nostálgica a momentos de minha vida, nos quais vislumbro situações

- 39 -
diversas, vivenciadas nesta minha trajetória de vida. Preciso ressaltar
a significância de poder fazer esta viagem, pelo campo das memórias,
mesmo ciente de que acontecimentos que se perdem no tempo
tornam-se igualmente mortos, pois, um segundo da vida que se passa
jamais irá retornar. Todavia, uma vez registrados, podem perdurar
para sempre.
Eu sou a filha de número sete de uma família de oito irmãos,
nunca tivemos presente, em nossas vidas, a figura paterna, mas, posso
dizer que, de certa forma, não nos fez muita falta. Minha mãe era uma
mineirinha muito disposta e nunca reclamou por todas as dificuldades
pelas quais passou nesta vida, embora tenham sido muitas e
reiteradas pela desigualdade social. Neste momento, sinto enorme
dificuldade em prosseguir com esta narrativa porque, infelizmente,
não tenho mais a minha adorada mãezinha e (bem sei que este retorno
ao passado não será muito fácil) sinto as lágrimas escorrerem pelo
meu rosto, fogem ao meu domínio.
A minha infância foi recheada de muitos sonhos e muita
pobreza, não quero aqui fazer demagogia e pousar de vítima, quero,
entretanto, retratar lampejos da minha história de vida, já que o
terreno das memórias é incerto e as lembranças podem ser fugazes.
Quando eu tinha, mais ou menos, três anos de idade, minha mãe
“tocou” aquela que seria a última das muitas lavouras das quais tirava
o sustento para alimentar filhos/as. Recordo como se estivesse vendo-
a, no meio da roça de arroz, com um lencinho amarrado na cabeça,

- 40 -
acenando para que eu levasse um “tição de fogo” ou mesmo uma
brasa, para que ela e meus dois irmãos mais velhos pudessem acender
o cigarro. Eu ia, porém, como era muito pequena, sempre perdia a
brasa pelo caminho e tinha que voltar. Havia, ainda, sempre o risco de
me queimar.
Eu ficava sozinha no rancho. Era coberto de sapé, feito de
tabocas e barreado com barro branquinho que minha mãe tirava do
rio. Lembro-me, com muitas saudades, das inúmeras vasilhas de barro
que minha mãe fazia, panelas, moringas, potes; era uma verdadeira
artesã, de forma bem simples, é bem verdade, mas, com uma grandeza
aos meus olhos que nem mesmo o melhor profissional desta arte
poderia tirar dela. Argh! Recordo-me das inúmeras vezes que minha
mãe tinha que me obrigar a comer. Todos os dias, a mistura era
abóbora e/ou frango caipira – a mãe sempre teve criação de galinhas
- eu já não aguentava mais, porém, a lei era seca: ou comia ou comia!
E eu tinha que comer, senão a varinha de fedegoso comia. Naquele
tempo, a mãe lutava de sol a sol para não faltar o que comer aos
filhos/as, até mesmo por serem analfabetos, minha mãe e meus
irmãos não tinham muitas opções. O sustento vinha da força dos
braços.
Nesse lugar, ficamos durante um ano e pouco, o dinheiro da
colheita foi todinho para comprar um vestido de noiva para minha
irmã mais velha. Naquela época, segundo minha mãe, era um
privilégio casar uma filha moça, ainda mais virgem (minha mãe sempre

- 41 -
educou as cinco filhas para que se casassem moças virgens, no
entanto, só a mais velha se casou e, segundo ela, virgem.). As demais
não se casaram na igreja, mas todas constituíram família. Esta filha,
que é a mais velha, deu à minha mãe acho que o maior desgosto que
uma mãe pode ter. Ela havia trabalhado muitos anos em casa de uma
família muito rica, (não sei por qual motivo) minha irmã tornou-se
egoísta e arrogante, pois não quis que minha mãe fosse ao seu
casamento, já que mãe estava grávida e não tinha marido: como ela [a
irmã] iria ficar na presença dos convidados? Argumentou. Neste dia,
minha mãe chorou o dia e a noite inteira. Eu e meu outro irmão mais
novo choramos junto com ela, sentadinhos ao pé da parede, à luz da
lua, já que em casa iluminávamos com lamparina e, naquela noite, não
tínhamos querosene para acender. Nunca vou esquecer aquela cena...
Quando minha irmãzinha nasceu, minha mãe deu-a para que
esta irmã batizasse, como forma de dizer que a havia perdoado. Neste
ínterim, eu já era grandinha e ajudava minha mãe a cuidar da
bebezinha. Eu já sonhava com o momento de entrar na escola, ficava
horas inteiras imaginando o dia em que eu ganharia minha primeira
cartilha e,assim, me aproveitava dos gibis de meu irmão (Zagor, Tex,
Akim, Fantasma e Tio Patinhas) para fazer a minha leitura: eu via as
imagens e, no meu imaginário, criava as histórias. Quando, finalmente,
entrei na escola, deparei-me com um grande problema: a professora
não entendia que tudo aquilo era novo demais para mim,

- 42 -
principalmente porque eu vinha de uma família de analfabetos, mas
ela queria que eu soubesse ler, ao menos as vogais. Eu não sabia!
Por outro lado, a minha vontade de aprender era tanta que
eu importunava esse meu irmão, dono dos gibis, para ele me ensinar.
Eu o “chantageava”, dizia que se ele não me ensinasse, eu não o
ajudaria a fazer arapucas e estilingues, para que ele pudesse ir caçar
passarinhos. Ele sempre voltava do mato com uma ou duas perdizes
no embornal. Eu sempre chorava de dó dos bichinhos, mas ele comia
todos. Neste tempo, as crianças realmente sabiam se divertir e
arranjavam diversos meios para isto, além dos estilingues, bolas de
meias, jogos de beti, rolar dentro do pneu de trator, entre outros. Na
minha casa, inventávamos de tudo: brincar de passar anel, cair no
poço, balanço, empinar pipas, brincadeiras de rodas e muitas outras.
Ah, sem falar naquela que eu mais gostava que era colocar a cabeça
do frango embaixo das asas e rodá-lo até que ficasse extremamente
tonto (preciso confessar que, por algumas vezes, uns ou outros
morreram, mas minha mãe nunca soube!). Eu demorei a entender que
o que era brincadeira para mim, judiava dos bichinhos. Mas,
felizmente, aprendi.
Embora em minha casa fossem todos analfabetos, não se
pode negar que o nosso primeiro aprendizado, assim como para
Evaristo, deu-se a partir das histórias orais, as quais nos eram
repassadas por minha querida mãe. Ao narrar, da forma mais simplória
possível, aqueles contos e lendas, cumpria a excelente função de dar

- 43 -
vida aos personagens e à nossa imaginação. Era impossível não
adentrar naqueles mundos de fantasias. Sinto muitas saudades
daquela época e, principalmente, do colinho da minha mãe pelo qual
eu e meus irmãos disputávamos, para ficar deitados e, assim, ouvir as
muitas estórias que a mãe contava, todas as noites. As que mais nos
deixavam impressionados eram aquelas que contavam sobre
lobisomens, mulas-sem-cabeça e sobre almas penadas, qualquer
barulhinho que fazia já parecíamos assombrados.
Lembro-me de uma noite muito fria, dos ventos uivantes que
mais pareciam assoviar ao pé dos nossos ouvidos, dos corpos
enrijecidos por conta da temperatura que insistia em cair e da chuva
fina que molhava a terra, de leve. Assim, minha mãe improvisou, no
chão da sala, algumas esteiras feitas de taboas porque não tínhamos
nem colchão e muito menos cobertas. Ao perceber que não tinha
alternativa, minha velhinha acendeu uma pequena fogueira no centro
da sala de terra batida, colocou as esteiras ao redor, para que nos
deitássemos, e ficou sentadinha ao lado, cuidando para que o fogo não
se alastrasse e corresse o risco de nos alcançar. Pobrezinha, não
dormiu a noite inteirinha, assuntando a gente e passando frio. Eu
também não dormi, por dó de vê-la acordada e, sobretudo, pelo fato
de que, quando esquentava um lado, o frio gelava o outro. Desta
forma, nos viramos para lá e para cá, a noite toda e, no outro dia,
praticamente, não prestei atenção na aula, dormi sentadinha na
cadeira. Ah, quantas lembranças...

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Na escola, eu sempre queria ser a melhor da turma e me
esforçava muito para isto, lembro-me que sempre fui muito esperta
em assuntos relacionados à Língua Portuguesa, em contrapartida, no
que diz respeito à Matemática... A tabuada era meu carma, por
algumas vezes, fiquei sem recreio, estudando a dita cuja, mas
compreendo um pouco porque não aprendi: tinha que decorar e eu
sou péssima em decoreba. Assim, até hoje parece que sinto o sabor
delicioso da merenda, momento mais aguardado por toda a molecada,
sobretudo, porque a grande maioria, assim como eu, não sabia o
significado da expressão “café da manhã”.
Recordo-me de que sentia muita vergonha em ir estudar com
os pés no chão, já que, naquela época, chinelos eram sinônimos de
certo luxo e, quem tinha, usava até acabar o solado. Eu procurava nos
monturos (de lixos) algum que desse para recortar e media o tamanho
do meu pé. Então, eu cortava e usava para ir para a escola. Ficava
horrível, mas eu sorria contente, porque reconhecia o esforço que
minha mãe fazia para por comida na mesa, já que a carestia era
assombrosa; não sobrava para comprar chinelos... Esta época,
realmente, ficou muito marcada para mim, sobretudo, por estar
descobrindo um outro mundo à minha volta - o mundo encantado das
letras - que não aquele de tantas limitações e precariedades no qual
eu vivia e, também, pelas várias lições de humildade, persistência e,
acima de tudo, honestidade que minha mãe nos passava.

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Penso que os quatro anos das séries iniciais foram muito
marcantes na minha vida, tanto pelo fato de eu descobrir este mundo
maravilhoso das letras quanto pelo prazer de poder chegar em casa e
dizer para minha mãe que eu tinha aprendido uma palavra nova, eu
percebia a felicidade e a emoção nos olhinhos dela. Após concluir as
séries iniciais, para cursar a quinta série, tive que mudar de escola e
esta mudança causou-me alguns impactos. Em primeiro lugar, porque
eu saía de um ambiente escolar regido por uma única professora para
outro que, a cada toque da sirene, entrava um/a professor/a
diferente; segundo, porque tinha que ir para a escola de forma “mais
apresentável”, pois já estava ficando mocinha e estudando em uma
Instituição com um número significativo de alunos/as e, de forma
geral, que tinham situação financeira definida, embora houvesse
muitos/as como eu também.
Eu não tinha muitas opções nem para me vestir nem para me
calçar, então me sentia, muitas vezes, constrangida frente aos/as
outros/as colegas. Por conta disto, decidi trabalhar muito cedo e
minha mãe concordou, uma vez que ela também não tinha condições
de dar muito mais que alimento, o qual, embora simplório, nunca
chegou a faltar! Nesta ocasião, era muito difícil para uma mãe criar
seus filhos, pois a carestia era tremenda e colocar comida na mesa,
vestir, calçar e educar não era tarefa fácil. Comíamos o que a mãe
podia dar: cariru, berdoégua, cará, maxixe, inhame, feijão andú, caxi,
molho de mamão verde, taioba dentre tantas outras formas de matar

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a fome. Sem falar nos ossos que a mãe pedia nos açougues e trazia
para casa, dava cada pirão de encher os olhos...E também o bucho!
Nesse sentido, tivemos bastante sorte porque, não se pode
negar, comíamos até bem: havia um senhor na cidade, conhecido por
apelido de “Gente Boa”, que tinha um comércio de verduras e, bem
perto de onde morávamos, ele possuía uma pequena chácara, onde
mantinha criações de carneiros, patos, muitas galinhas, cabritos e até
uma quantidade pequena de gado. Acontece que todas as verduras
que apresentavam qualquer defeitinho não podiam mais ser vendidas,
então, ele as separava em caixotes e levava para a chácara, para dar
às criações. Por vezes, dizia à minha mãe que fosse lá com a gente e
escolhesse aquelas que dessem para tirar proveito para nossa
alimentação. Sabia que éramos muito carentes e se condoía.
Assim, tirávamos aquelas partes podres e/ou estragadas e
comíamos frutas, verduras e legumes, pois, de outro modo, não
saberíamos o sabor que elas tinham. Nesta época, as coisas para nós
eram tão difíceis que (puxa, como é doloroso reavivar na memória
momentos até então adormecidos...) recordo-me de que tinha
vontade de tomar leite. Por muitas vezes, fechava meus olhos e
visualizava, em minha frente, um copo cheinho só para mim, a boca se
enchia de água salivar. Apesar de tudo, éramos muito felizes e
agradecíamos sempre pelo pouco que tínhamos, uma vez que minha
mãe fazia questão de deixar evidente que muitas outras pessoas não

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tinham nada, então, o que podíamos ter já nos colocava em vantagem
a respeito daqueles que não tinham nem isto.
As dificuldades pelas quais passávamos sempre serviam para
que minha mãe tirasse dali uma lição, um aprendizado e repassasse
para nós. Segundo ela, estávamos em situação muito melhor em
relação a quando os irmãos mais velhos foram criados. Naquele
tempo, dizia minha mãe que, por diversas vezes, deixara uma chaleira
de ferro (que havia trazido de Minas, ela fazia questão de enfatizar)
com água fervendo no fogão a lenha para que, se acaso chegasse
alguém, pensasse que era para fazer a comida. Não havia ali o que
cozinhar... E minha mãe, trocava dias com os homens no cabo do
guatambu, nunca perdeu para nenhum deles, e era dali que tirava o
sustento para a boca dos filhos. Embora não soubesse, eu sinto que a
minha mãe me ensinou os primeiros passos para o feminismo.
Meus primeiros dias na escola nova foram difíceis, mas,
depois de algum tempo, eu já tinha conquistado a simpatia de
todos/as professores/as e, em especial, a de português, porque eu
sempre era destaque nas aulas de leituras e redação. Nesta ocasião,
consegui um serviço na casa de uma das minhas irmãs, para cuidar dos
meus sobrinhos e da limpeza, em troca, ela me daria roupas e
calçados. Neste trabalho, fiquei por algum tempo, depois consegui
outros, já que tinha aprendido a fazer o serviço direitinho e, a partir
daí, nunca mais parei.

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Lembro-me de uma vez em que fui trabalhar de doméstica,
na casa de uma família de japoneses, o serviço não era difícil, mas as
imposições eram muitas e, dentre elas, a principal: eu não poderia
colocar nada na boca, nenhum tipo de alimento me era permitido
naquela casa. Quando chegava na hora do almoço, eu tinha que sair
da casa e voltar horas depois, para arrumar a cozinha. Algumas vezes,
eu ia até a casa de um irmão que ficava a três quadras dali e almoçava
por lá. Outras vezes, eu ficava para fora, sentadinha na calçada, sem
comer. Era muita humilhação, mas eu precisava...
Durante todo o tempo no Ensino Fundamental, nunca
consegui aprender muito bem os cálculos matemáticos e disciplinas
afins, todavia, a minha relação com as letras ia de vento em poupa, até
cheguei a ser presenteada pela professora de português com um
exemplar de Monteiro Lobato, que retratava as aventuras de
Narizinho. O meu passatempo predileto eram as prazerosas leituras
embaixo dos enormes pés de manga que havia no quintal da minha
casa. Ao término do Ensino Fundamental, não pude prosseguir com os
estudos porque, naquela época, tínhamos que comprar os livros
didáticos do Ensino Médio e eu, definitivamente, não tinha condições
financeiras para tanto.
Decidi por interromper meus estudos e optei pelo trabalho,
desde empregada doméstica à panha de algodão e café eu enfrentei.
Depois, em 1992, fui convidada para ir lecionar em uma escola da zona
rural, a alguns quilômetros de Pedra Preta, MT. Aceitei, prontamente,

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porque era uma chance de eu continuar no meio escolar. Nesta época,
eu morava numa casinha para professores, numa vila rural chamada
Nova Araçatuba, juntamente com outra colega e lecionava doze
quilômetros para frente. Assim, ia pela manhã, de carona com o
leiteiro, colocava uma bicicletinha velha na carroceria e, depois,
voltava para a Vila pedalando. Apenas 12 km de estrada de chão e,
muitas vezes, enormes boiadas pela frente. Foram tempos difíceis,
mas saudosos...
Quando parei de trabalhar para o município, tentei concluir o
Ensino Médio, por meio de um tipo de ensino chamado Propedêutico,
porém, não fui muito longe e voltei ao ponto de partida: ao trabalho.
Neste tempo, fui prestar serviços em uma fazenda situada na Serra da
Petrovina, na colheita do café. A jornada era dura, mas a sensação de
estar trabalhando e poder ajudar em casa era ótima. Por esta época,
engravidei do meu primeiro filho, passei por sérias dificuldades
financeiras porque, apenas com o estudo que eu tinha não conseguia
outro trabalho e, até mesmo, pelo fato de estar grávida, as
oportunidades eram mínimas. Minha sorte foi minha mãe ter me
acolhido e minha irmãzinha caçula que dividia comigo a tarefa de
cuidar do bebê. Enquanto isto, eu trabalhava, sem medir esforços, em
certo frigorífico da cidade, apesar das más línguas de alguns da própria
família.
Eu tinha a responsabilidade de criar um filho sem pai e,
principalmente, de não depender de favores dos irmãos, já que um

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deles, ao saber que eu estava grávida, perguntou se eu sabia quanto
custava um litro de leite. O pai do meu filho nunca se manifestava e
eu, com o orgulho ferido, também não o procurava. De fato, não
acredito que eu tinha a obrigação de procurá-lo, afinal, ele sabia que
tinha um filho, não assumiu porque não quis. Por algum tempo,
mantive uma relação com outra pessoa que demonstrava enorme
carinho pelo meu filho e isto me cativava. Chegamos a viver quatro
anos juntos, mas não deu certo. Então, continuei a trabalhar para fora
enquanto minha mãe tomava conta do meu filho. Quando o meu
primeiro filho tinha sete anos, eu engravidei novamente e, ainda sem
ter retomado os estudos, mais uma vez minha mãe me estendeu as
mãos.
Bem sei que, se tivesse ouvido o conselho de minha mãe e de
minha irmãzinha caçula, teria voltado para escola há muito tempo,
mas, por conta de viver trabalhando daqui e dali, não me sobrava
muitas escolhas. E mais uma vez eu mãe solteira, dentro da casa da
minha mãe. Nunca tive a pretensão de me casar! Depois que tive meu
segundo filho, tomei a decisão de voltar para a escola e concluir o
Ensino Médio. Optei por fazer a EJA, pois não consegui vagas para o
período noturno no ensino regular e eu tinha que trabalhar, durante o
dia. Sentia muita vergonha, no princípio, porque pessoas que tinham
estudado comigo, no momento, davam aula para mim. Então, decidi
por transformar esta vergonha em motivação para prosseguir.

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Não se pode negar que eu tenha aprendido algumas coisas,
todavia, os professores da minha turma não tinham condições de
avançar nos conteúdos, uma vez que a grande maioria do alunado era
formada por pessoas de bastante idade e elas não conseguiam
acompanhar um ritmo mais acelerado. No entanto, eu venerava a
importância que davam ao fato de estar estudando e, por pouco que
aprendiam, para eles, já representava uma grande vitória. Desta
forma, concluí o terceiro ano sem muitas perspectivas para o
vestibular. Depois de muito relutar comigo mesma, decidi por fazer,
como forma de adquirir experiência para, quem sabe, tentar,
novamente, numa próxima vez. Para minha surpresa, consegui passar
na primeira tentativa.
A sensação de ter passado no primeiro vestibular era ótima e
eu estava disposta a entrar na faculdade e adquirir muitos
conhecimentos a respeito da nossa língua materna e, em especial, da
literatura. Entretanto, sabia que não iria ser fácil, já que me encontrava
grávida do meu terceiro filho (agora morando com o pai deste), mas
tomei coragem e fui em busca do meu objetivo. No ano de 2005, iniciei
minha trajetória acadêmica no curso de Letras, Instituto de Ciências
Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso, Câmpus
de Rondonópolis.
Um novo horizonte surgia à minha frente e, de repente, ao
sair daquele “mundinho” em que me encontrava, senti que um outro
mundo se abria ao meu redor e eu me sentia inerte, perante um

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universo de palavras que se apoderavam dos meus sentidos. Tive
vontade de fugir... Mas, a literatura lançou sobre mim o seu encanto,
seduzindo-me, levando-me ao flerte total, e tal era a sua volúpia que,
embrenhando-me pelas suas veias, não tive forças para resistir. Foram
dias difíceis... aquele ambiente acadêmico era um mundo novo para
mim que trazia na bagagem, apenas, minha própria gramática
internalizada, juntamente com tímido conhecimento acerca da língua
e nenhum da vida acadêmica.
Durante essa trajetória, tive o prazer de compartilhar
conhecimentos com pessoas que trarei na memória para o resto da
vida. Ao longo de quatro anos, dividi opiniões e diálogos com
diversos/as professores/as e suas respectivas disciplinas. Procurei
abstrair o máximo que pude nas oportunidades com cada um/a
deles/as, todos/as me ensinaram muitíssimo, entretanto, sempre tem
aqueles/as que nos deixam marcas profundas. No meu caso, foram,
especificamente, duas pessoas: professora Maria Rosa Petroni e
professor Laércio Pulzatto. Além de ensinar maravilhosamente a
Língua Portuguesa, Petroni sempre achava um tempinho para uma
boa conversa e mostrava-se preocupada comigo e com o meu bebê, já
que eu o trazia comigo para a faculdade.
Quanto ao saudoso e estimado professor Laércio, posso dizer
que ensinou-me a compreender muito além daquilo que líamos nas
poesias, a perceber, ainda que minimamente, a literatura, nestes dois
planos transitórios: entre o efêmero e o etéreo, sobretudo. Ensinou-

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me que o professor, por mais sábio que seja e por mais graduações
que possa ter, pode ser humilde e simples, ensinar e aprender a partir
das pequenas coisas, valorizando sempre o outro. Muitas lembranças
e saudades deste meu adorável educador. Ao sair da academia,
confesso que trouxe comigo algumas lacunas em relação aos
conteúdos gramaticais e a sensação era a de que eu tinha fracassado.
Sentia um vazio grande em relação à minha aprendizagem. Custei a
entender que aquela sensação era natural e que a faculdade apenas
nos mostra a direção para trilharmos o caminho, a melhor forma de
como fazê-lo, cabe a cada um de nós encontrarmos. Dois anos após
ter concluído a graduação, estava de volta aos corredores do referido
Câmpus, em busca da especialização.
Por meio das aulas da professora Sheila Dias Maciel, pude
obter o reencontro com aquela que eu tanto desejava – a literatura.
Agora, acontecia de forma brusca e viril. Sem que eu pudesse respirar,
tomava conta de todo o meu ser, enleando-se pelos mais íntimos
pensamentos e entranhando-se por todo o meu corpo. Consumava-se
ali a minha história de amor com a literatura, em especial, a literatura
confessional. Todavia, nenhuma menção se fazia à literatura negra. Eu
não tive contato com nenhuma literatura produzida por autores e/ou
autoras negras, em épocas de graduação e/ou especialização. Fui
saber de Conceição Evaristo somente em 2014, embora tardiamente,
conhecê-la transformou a minha vida.

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Eu sentia que Sheila enxergava em mim muito além dos
paupérrimos trajes com os quais eu me apresentava na Academia (eu
não tinha muitas opções de roupas e calçados e estava sempre em
desvantagem em relação às outras colegas de classe). Sheila me olhava
carinhosamente e me via como gente. Isto era muito importante para
quem sempre trazia no bojo marcas da invisibilidade. Desde então, a
pretensão em desenvolver um projeto pleiteando uma vaga no
Mestrado ocupava-me as ideias, esquentava-me o juízo... A distância
era um obstáculo decisivo e caminhava de encontro aos meus
intentos, haja vista o mestrado em literatura ser ministrado na
Federal, em Cuiabá. Eu não tinha condições financeiras para garantir a
locomoção até a Capital do meu Estado.
Por outro lado, algum tempo depois, abriu um Programa de
Pós-Graduação em Educação, bem pertinho de mim, na cidade vizinha
de Rondonópolis. Fiquei imensamente feliz, não era literatura, porém
representava da mesma forma um grande salto para meu
aprendizado. Por vezes, quis tentar, mas eu sentia a remota
possibilidade de isto acontecer esfriar-se dentro de mim, a cada vez
que pensava no assunto. Encarei e entrei. Após meu ingresso no já
mencionado curso, tive a honra de ter sido aceita como orientanda
pelo professor doutor Leonardo Lemos de Souza, o qual apresentou-
me uma outra possibilidade de comprometimento, agora com os
Estudos de Gênero. Mas, ainda me faltava algo...

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Por fim, o contato com a literatura de Conceição Evaristo me
veio de sobressalto, foi a mim apresentada pela professora doutora
Constância Lima Duarte. Eu havia confessado a ela minhas angústias,
estava muito perdida e sem horizontes. Tudo era muito novo para
mim, o projeto com o qual havia entrado, não me atraía mais. E as
coisas se dão assim, não somos nós a escolhermos o objeto, somos
escolhidas/os por ele. Devo reiterar que a literatura de Conceição
Evaristo causou um terremoto dentro de mim. Foi a partir daí que a
minha vida ganhou outros horizontes, a consciência da minha
negritude me arrebatou e foi amor à primeira vista, o encontro com a
minha ancestralidade! Houve muitas lágrimas também!
Muito das minhas memórias, reencontro em Conceição
Evaristo8: “foi do tempo/espaço que aprendi desde criança a colher as
palavras. Não nasci rodeada de livros, do meu berço trago a
propensão, o gosto para ouvir e contar histórias” (MARINGOLO, 2014,
p.125). Assim, como a referida escritora, na minha família, também
nascemos rodeadas/os por palavras, às vezes, em noites de lua clara,
íamos com nossa mãe à casa de vizinhos, para ouvirmos as contações
de histórias. As salas ficavam cheias de crianças e adultos ávidos por
aquelas emoções e, nestas ocasiões, sempre apareciam outros
contadores, que dividiam o ofício com minha mãe.

8
Da Grafia-Desenho De Minha Mãe Um Dos Lugares De Nascimento De Minha
Escrita. Depoimento em anexo à Dissertação de MARINGOLO, Cátia Cristina
Bocaiuva. Ponciá Vicêncio e Becos da Memória de Conceição Evaristo: construindo
histórias por meio de retalhos de memórias. Araraquara – SP. 2014, p. 122 - 126.

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Recordo-me de um senhorzinho, já de certa idade, conhecido
pelo apelido de Mucunã, ele era, assim como minha mãe, um exímio
contador de causos e histórias, o grande diferencial era que Seu
Mucunã contava em forma de Literatura de Cordel, versejado.
Naquele tempo, não sabíamos o significado disto, o fato de ouvir as
histórias ritmadas e/ou rimadas nos causavam um misto de espanto e
admiração inexplicáveis. A noite se tornava um grande palco para as
nossas imaginações e, eu, ali no meu cantinho, cada vez mais
apaixonada pelas palavras e pelos sons advindos delas. O senhorzinho
Mucunã tinha o dom de recitar as palavras e, apesar da pouca
escolaridade, fazia isso com maestria, atrelava, ainda, a elas, uma boa
dose de humor. Eu me divertia muito com as diabruras e astúcias de
um menino chamado Pedro Malazarte, sempre tinha uma ou duas de
Pedro, a molecada adorava. Foram muitas histórias... meu primeiro
aprendizado.
Por outro lado, algo em muitas daquelas narrativas se
mostrava inquietante para mim: tanto nas histórias em que minha
mãe contava quanto naquelas contadas por outros, havia negros/as
que eram personagens-objetos, prontos/as a servirem o “sinhô”
branco. Em muitas histórias, eram sempre jogados/as em enormes
fogueiras e queimados vivos, nunca tinham finais felizes nem
possuíam direitos a nada, apenas figuravam entre ser ninguém e servir
alguém. Naquela época - e há que se levar em conta o índice de
analfabetismo tanto em relação à mamãe quanto em relação aos

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outros contadores, contavam aquilo que, em tempos de infância,
ouviram de outrem - contavam isto com tanto humor que ríamos,
ríamos e ríamos, sem nos darmos conta de que isto era mais uma das
formas de se propagar o racismo, discriminação e o preconceito
vigentes, gestados pelo então “abolido sistema escravocrata”.
Ao discorrer sobre a memória, Ecléa Bosi (2003) ressalta que
a memória oral ganha relevância quando se apresenta como
antagonista da “História oficial”, comumente ensinada nas escolas,
mas que não açambarca as riquezas e experiências apreendidas no
cotidiano. Logo, a arte de narrar as memórias pode ser interpretada
por alguns (pela grande maioria, talvez) como “o avesso oculto da
história política hegemônica” (BOSI, 2003, p. 15). Em linhas gerais, é
possível pressupor que isto se justifica, conforme a já referida autora,
porque: “os velhos, as mulheres, os negros, os trabalhadores manuais,
camadas da população excluídas da história ensinada na escola,
tomam a palavra. A história que se apoia em documentos oficiais, não
pode dar conta das paixões individuais que se escondem atrás dos
episódios” (Idem, p. 15). Logo, é possível situar a literatura afro-
brasileira como um lugar de encontros possíveis entre aqueles/as
historicamente excluídos/as e/ou marginalizados/as.
Direcionando o olhar para a subalternidade que insiste em
apoderar-se das mulheres brasileiras, não é muito lembrar que
diversas formas de preconceitos são associadas às mulheres, em linhas
gerais, sobretudo, se se trata das mulheres negras. Vitimadas por um

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ideal de normatividade instituído sobre o feminino, as mulheres
negras, além de toda sorte de estigmas e estereótipos, sempre
foram/são pensadas e/ou representadas, na literatura brasileira
canonizada, como seres abjetos e sujeitos vis, prontas para usos
sexuais e/ou subservientes. As mulheres negras fazem parte de um
contingente ignorado, embora estejam sempre em linha de
resistência, tanto na sociedade quanto no âmbito literário, herança do
mito da democracia racial.

Resistimos desde o momento em que os corpos


raptados dos africanos foram embarcados para as
Américas. Nos navios negreiros vieram por entre
mortos, corpos jogados ao mar, mulheres em hora
do parto, crianças nascendo e morrendo até chegar
às Américas. Nossos passos vêm de longe, vêm do
continente africano se renovando ao longo do
tempo (EVARISTO, 2015, p. 1).

Há uma percepção de traços de nossos ancestrais por entre a


cultura, religião, culinária, dança, música e artes em geral. As mulheres
negras vêm resistindo, ao longo do tempo, se juntando em
coletividade, se rebelando contra este sistema escravista e patriarcal,
bem como mantendo esta luta, em dias atuais, com grande
contribuição do feminismo negro. Mulheres negras nunca tiveram o
“privilégio” de ficar em casa, de apenas se preocupar com a educação
dos filhos e/ou cuidar dos afazeres domésticos, como as brancas. Ao
contrário, desde muito tempo, configuraram-se como chefes das
famílias, trabalhando, incansavelmente, nas ruas e nas das famílias

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brancas, desempenhando todas as funções domésticas e, ainda, se
tornando responsáveis por cuidar dos/as filhos/as dos patrões.
Não se pode generalizar aqui e dizer que apenas mulheres
negras desempenham esta função, todavia, a maior parte sempre foi
e, ainda, é constituída por elas. Nesta direção, Evaristo salienta que
“se por um lado, as reivindicações das feministas brancas das classes
de maior poder aquisitivo foram respondidas, permitindo a inserção
dessas mulheres no mercado de trabalho, as mulheres negras e pobres
tiveram poucas de suas demandas efetivamente resolvidas”
(EVARISTO, 2015, p. 2). Não é muito reforçar com Evaristo que, apesar
do discurso moldado e repetitivo da democracia racial, as estatísticas
mostram, cotidianamente, que os maiores índices de pobreza recaem
sobre as mulheres negras, uma vez que a grande maioria ainda se
encontra nas cozinhas das “casas grandes” recebendo os salários mais
inferiores, apesar da grande conquista de o emprego doméstico ser
reconhecido como categoria profissional, ainda há uma
subalternização social em função do seu desempenho.
Ademais, o que se pode evidenciar para além das profissões
desempenhadas por mulheres negras é o fato de que, nesta ou em
outra função, estereótipos ainda recaem sobre elas, preconceitos e
discriminações são proferidos, cotidianamente, e inscritos sobre as
peles negras das mulheres. Fatidicamente, enunciados advindos de
um sistema escravocrata e cruel que relegou a negros e negras
brasileiras a herança de carregar na pele, tão somente em função da

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melanina, os escombros e as chagas de um passado calcado pela
estigmatização da cor, atrelado às amarras e grilhões da escravidão.
As mulheres negras subvertem este sistema opressor que insiste em
dar voz ao racismo institucional.
Parafraseando Conceição Evaristo: [...] creio que a escrita,
pelo menos para mim, é o pretensioso desejo de recuperar o vivido. A
escrita pode eternizar o efêmero.... Eis as lições de vida despidas de
vaidades e repletas de alteridade presentes nas obras de Conceição
Evaristo. Assim, inspirada por ela, chego ao doutorado, caminhos
igualmente espinhosos encontrei nesta árdua trajetória. Sigo com
Evaristo e Ponciá, agora, analisando a presença dos silêncios que se
abrigam por entre as fendas do romance Ponciá Vicêncio, em especial,
busco o silêncio primordial, aquele inominável. O doutorado está
vindo, apesar das muitas dificuldades, mas, esta é uma outra história,
para ser contada noutro momento. Em breve!
Inspirada pelas escrevivências evaristianas, posso afirmar que
também estou inserida na categoria de mulheres subvertedoras da
hegemonia vigente porque, em grande parte da minha vida, ousei
viver meus prazeres da maneira que melhor me aprouvesse, sempre
vivendo-os em função dos meus desejos. Nunca me preocupei com o
que a sociedade pudesse pensar a meu respeito. Por vezes, nesta
procura intensa por validar e me encontrar em horas-gozos, fui pega
de surpresa por duas gravidezes inesperadas, mais uma vez, a minha
vontade foi preponderante: eu quis ter meus filhos e lutei/luto

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bravamente por cada um deles. Mas, reitero todo meu respeito
àquelas que não optam por serem mães. Somos mulheres, livres para
decidir sobre nossas vidas e nossos corpos!
Meu terceiro filho é fruto de uma relação que durou (11) onze
anos, findou-se também porque descobri que, aquela relação já falida,
não me fazia feliz, nem abarcava minhas vontades e desejos.
Novamente encontro-me nas zonas fronteiriças da minha própria
sexualidade, vivenciando meus prazeres com quem eu quero, quando
eu quero e da forma que a mim convém... sou uma mulher livre
vivendo a própria sexualidade, para muito além dos estereótipos e
olhares delimitadores, os quais, tenho consciência, recaem sobre mim.
Hoje, as minhas horas-gozos encontram outras bocas e outros corpos,
de certa forma, sempre desejados por mim, guardadinhos nos mais
recônditos becos dos muitos silêncios que me servem de abrigo. Hoje,
eu me permito aninhar nos braços de outras mulheres. Resistimos!!!
Nesse processo de recordar, ressalto as minhas angústias em
lidar com as próprias memórias, no entanto, às vezes se faz necessário
lembrar para exorcizar... Hoje, quando recordo da família para a qual
trabalhei e que me restringia qualquer direito à alimentação, não
sofro, antes transformo em inspiração para prosseguir, nesta árdua,
porém prazerosa caminhada em relação à visibilidade das mulheres
negras. Sigo, fortalecida nesta luta que, antes de tudo, é coletiva,
entrelaçando a minha voz às de outras e tantas mulheres, em especial,
as negras.

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Com muita maestria, Conceição Evaristo, alicerçada em uma
escrita subjetiva e polifônica, resgata nos escombros dos becos das
muitas memórias espalhadas Brasil afora, a possibilidade de nos(re)
construirmos e (re)escrevermos a nossa própria história. Portanto,
destaco a importância desta literatura voltada para o resgate e
autonomia relacionados à identidade e conscientização das mulheres
negras. Como representatividade negra e literária, Conceição Evaristo,
por meio de suas tessituras e do entoar de sua voz, tem validado a voz
dos excluídos e, paralelamente, instigado reflexões sobre o
pensamento, a ação e a consciência afrodescendente, além de nos
brindar com uma literatura riquíssima e já imortalizada.
Reconhecendo-me linhas- narrativas de Conceição Evaristo, reitero
suas escrevivências como um meio de atribuir o protagonismo às
muitas vozes que, assim como a minha, gritam, ressoam e ecoam
através dos escritos evaristianos.

- 63 -
Referências

ARAUJO, Flávia Santos de. Uma escrita em dupla face: a mulher negra
em Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. – João Pessoa, 2007.

BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social.


São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

______. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 3 ed. São


Paulo: Companhia das Letras, 1994.

EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma voz quilombola na


literatura brasileira. Universidade Federal Fluminense – UFF, (s/d).

______.Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade.


SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 17-31, 2º sem. 2009a.

______.Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face. Texto


apresentado na mesa de escritoras convidadas do Seminário Nacional
X Mulher e Literatura – I Seminário Internacional Mulher e Literatura/
UFPB – 2003.

______. Dos sorrisos, dos silêncios e das falas. Texto publicado In


Mulheres no Brasil – Resistência, lutas e conquistas, (org) Liane
Schneider e Charliton Machado, João Pessoa, Editora Universitaria,
UFPB, 2009b.

______. Da grafia-desenho de minha mãe: um dos lugares de


nascimento de minha escrita. Texto apresentado na Mesa de
Escritoras Afro-brasileiras, no XI Seminário Nacional Mulher e
Literatura/II Seminário Internacional Mulher e Literatura, Rio de
Janeiro, 2005.

LIMA, Omar da Silva. Conceição Evaristo: escritora negra


comprometida etnograficamente. LITERAFRO -
www.letras.ufmg.br/literafro, acesso em 31/10/2015.

- 64 -
MARINGOLO, Cátia Cristina Bocaiuva. Ponciá vicêncio e becos da
memória de Conceição Evaristo: construindo histórias por meio de
retalhos de memórias. Araraquara – SP. 2014.

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Florianópolis: Editora Mulheres, 2004.

- 65 -
Literatura Afro-Brasileira: um caminho para a
problematização e visibilidade das questões étnico-raciais
no país

Miriam Denise Kelm9

Apresentamos aqui a possibilidade de pensar os cursos de


Licenciatura em Letras como espaços extremamente apropriados à
introdução de conteúdos potencializadores de autoconhecimento e
reflexão, como o é a Literatura Afro-Brasileira, convertida em lugar de
representação do viver negro em nossa sociedade. Pouco conhecido e
pouco estudado, este tema pode alcançar o meio estudantil,
favorecendo mudanças na valorização da autoestima da população
negro-identificada e na promoção de relações pautadas pela igualdade
– princípio maior e tão desejado.
Por que “em especial nos cursos de Letras”, mas não só?
Respondemos com o fato de que, apesar de a grande área das Ciências
Humanas (tão atacada atualmente, na tentativa de vulnerabilizar o
pensar sobre a realidade) ser campo propício à conscientização dos
grandes mecanismos ideológicos atuantes socialmente, a Licenciatura
em Letras, através das aulas de Língua Portuguesa e Literatura

9
Doutora em Linguística e Letras, PUC-RS. Professora Associada, UNIPAMPA.

- 66 -
Brasileira, se converte no contato mais assíduo e profundo, ao longo
do Ensino Básico, que estudantes poderão ter com os sentidos
veiculados pela linguagem verbal. É por meio de leitura e
interpretação textual que se chega ao mais importante nesta
atividade: a exploração dos sentidos, a ampliação da visão de mundo
em sua diversidade, e o desenvolvimento da capacidade crítica em
relação à historicidade humana.
Para que isto se realize plenamente, nosso intuito, também, é
problematizar a habilitação de professores de Língua Portuguesa e
Literaturas de Língua Portuguesa mediante a necessidade de buscar
fontes de consulta e estudo sistematizado da e sobre a produção
literária afro-brasileira. A sua própria não-inserção nos manuais
tradicionais de História da Literatura Brasileira, com raras exceções,
levanta motivos suficientes para uma observação crítica desta
realidade, que é bem mais abrangente e está ligada a fatores
históricos, sociais e culturais que dizem muito de nossa sociedade. No
entanto, na última década tem havido um esforço crítico, concentrado
no meio acadêmico por meio de linhas de pesquisa, e que tem como
resultado a elaboração e disponibilização de materiais, entre eles a
historiografia da produção literária de matiz afro-brasileira a que
alunos e docentes podem recorrer. É sobre este movimento e algumas
destas obras que se quer discorrer, entre elas: BrasilAfro
autorrevelado (2010), de Miriam Alves; Literaturas africanas e afro-
brasileira na prática pedagógica (2014), de Iris Amâncio e outros;

- 67 -
Literatura afro-brasileira – 100 autores do século XVIII ao XXI, de
Eduardo Assis Duarte (2014) e Educação, cultura e literatura afro-
brasileira, de Maria Alice Gonçalves (2007).
Nas duas últimas décadas tem havido um esforço crítico,
concentrado no meio acadêmico por meio de linhas de pesquisa, e que
tem como resultado a elaboração e disponibilização de materiais,
entre eles a historiografia da produção literária de matiz afro-brasileira
a que alunos e docentes podem recorrer. Esse esforço tem uma de
suas motivações nas organizações declaradamente afro-brasileiras e
que, ao longo dos últimos quarenta anos, como é o caso da série
Cadernos Negros, e grupo Quilomhoje, tem dado a público seu fazer e
pensar literário e crítico. É sobre este movimento e algumas das obras
que se quer discorrer, iniciando por uma retomada das iniciativas
perceptíveis em torno dessa produção crítica, em que o intuito de
sistematização e apresentação de novas abordagens é emergente.
Em sua obra Introdução à historiografia da literatura brasileira
(2007), Roberto Acízelo de Souza assinala que é somente a partir da
década de 1950 que se pode observar o ensejo de submeter a história
literária brasileira a novas concepções e/ou a revisões sob outros
vieses (AZEVEDO, 2007, p. 129), distanciando-a da tradição
oitocentista. Gradualmente surgem estudos menos pretensiosos no
sentido de abarcar a cronologia completa das atividades literárias e
intelectuais do país, delineando-se com maior precisão os enfoques,
propondo-se metodologias mais abertas, entremeadas de discussões

- 68 -
de ordem socio-histórica, filosófica e cultural, e estabelecendo-se
ordens comparativas menos excludentes. A introdução de
comentários à luz da apropriação direta de obras é outro diferencial,
assim como o aparecimento de publicações feitas por equipes, e não
só por autores individualizados. Paralelamente, dá-se a introdução, no
universo da historiografia literária nacional, de produções inter-
complementares, como explica Acízelo de Souza: “Além das histórias
literárias propriamente ditas, existem outros materiais conexos à
disciplina [...] começando com trabalhos classificáveis como para-
historiográficos: bibliografias, obras de referência e antologias.”
(SOUZA, 2007, p.136).
Uma das áreas que irá se beneficiar e muito desta reviravolta
silenciosa no âmbito da historiografia literária brasileira é a da
produção de matiz afro-brasileira e tudo o que lhe concerne e gravita
em seu entorno, a exemplo de: levantamento de autores, homens e
mulheres, cuja temática se liga às questões étnico-raciais africanas;
recuperação, por meio de pesquisa, da biografia e ativismo de
intelectuais negros com destaque no campo editorial; estudos sobre a
representatividade da imagem da raça negra em personagens
literários; novos estudos crítico-interpretativos de obras já bem
conhecidas, mas vistas sob o olhar investigativo da presença de
questões ligadas à vivência da negritude, etc. É importante dizer que
também na historiografia nacional propriamente dita este surgimento

- 69 -
de publicações que se ocupam da temática étnica afrodescendente na
formação do Brasil é crescente.
Paralelamente, em se tratando da área educacional, a
promulgação da Lei 10.639/03, que altera a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, tornando obrigatório o estudo da História e da
Cultura Africana e Afro-Brasileira nas instituições públicas e privadas
de Educação Básica, cria ainda maior necessidade de conhecimento
sobre tudo o que se relaciona não só com a participação negra na
formação da identidade social e cultural brasileira, como também
torna mais explícitos os laços com os países africanos de língua
portuguesa. O visível aumento de publicações de autores africanos e
sua própria circulação em eventos ligados à difusão literária, bem
como em encontros e discussões no meio acadêmico, dão bem uma
noção de que os interesses de leitura do público brasileiro se
expandem em direção à África de colonização portuguesa.
No entanto, apesar da existência de todos esses indícios a que
nos referimos, no meio escolar a ignorância em relação ao assunto é
predominante e a lei demora a se fazer efetiva, mesmo passados doze
anos de sua promulgação. E não deveria ser assim, pois até mesmo o
Programa Nacional Biblioteca da Escola, desde 2009, tem feito chegar
nas escolas um acervo de autores africanos de língua portuguesa,
como Ondjaki, Pepetela, José Eduardo Agualusa e Luandino Vieira,
distribuídos por todo o território nacional. Também a literatura afro-
brasileira abre espaços arduamente conquistados, através de autores

- 70 -
como Júlio Emílio Braz, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e
Ana Maria Gonçalves.
Neste cenário, deparamo-nos com a importância das
universidades brasileiras, por meio de seus programas de Formação
Continuada, tornarem acessíveis aos professores já inseridos no
sistema educacional o conhecimento sobre o tema, através de
instrumental bibliográfico crítico, e proximidade com as obras
literárias e com os materiais para-historiográficos que completam o
acervo. Internamente, os cursos de Letras, ao inserirem componentes
que atendem tanto a História e a Cultura Africana quanto a Literatura
Afro-Brasileira, se voltam para os materiais disponíveis, deparando-se
ou com a escassez (que diminui pouco a pouco) ou com uma leva
recente de obras a serem conhecidas e em busca de reconhecimento.
Registre-se aqui a criação em 2015, pela Universidade Federal do
Maranhão, do curso pioneiro denominado Licenciatura Interdisciplinar
em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros.
Ainda, uma vez ultrapassada a tendência acadêmica
estruturalista dos anos 70-80, que reduziu bastante as pesquisas
literárias de cunho histórico, e também por conta dos Estudos
Culturais que propõem reconsiderar o conceito de cânone em todos
os registros expressivos, vê-se uma crescente atenção à temática
meta-historiográfica. Essa revitalização detectada na década de 1990,
e em ascensão até hoje, encontra nos centros de pesquisa, em

- 71 -
universidades de ponta brasileiras, uma produção bastante
expressiva.
Quanto ao sistema literário brasileiro, a produção literária afro-
brasileira ainda luta por reconhecimento. A divulgação, no início de
2015 pelos meios jornalísticos, de que a escritora Conceição Evaristo
faria parte da programação oficial do Salão Internacional do Livro em
Paris, com a seguinte chamada: “Conceição Evaristo, la mémoire afro-
brésilienne”, colocou em evidência tanto o desconhecimento em que
nos movemos, como as práticas socioculturais e econômicas que
obstaculizam a circulação editorial da produção dessa estirpe. No
entanto, por toda parte, há um forte interesse pelas experiências
individuais, de classe, de ordem étnica e de gênero, dentro de um
mundo em que o multiculturalismo atrai a atenção e cria novos
parâmetros para a discussão. No encontro em Paris, Conceição
Evaristo estava integrada a uma plataforma temática ligada à narrativa
de si, do outro e da própria revisão da imagem do Brasil, país então
homenageado. Hoje, as publicações de Evaristo esgotam-se e são
reeditadas, numa confirmação de que a chancela estrangeira é, mais
uma vez, sinalizadora para a abertura do interesse pela obra de uma
escritora assumidamente afro-brasileira.
No dizer de Eduardo de Assis Duarte “O momento é propício à
construção de operadores teóricos com eficácia suficiente para
ampliar a reflexão crítica e dotá-la de instrumentos precisos de
atuação.” (DUARTE, 2014: 20). As questões mais evidentes exploradas

- 72 -
no campo crítico-especulativo são o próprio conceito de literatura
afro-brasileira, também denominada de literatura negra, onde tanto a
temática da condição negra como objeto de representação, quanto o
negro como sujeito, revelador de uma visão de mundo específica em
acordo com a singularidade de suas experiências, utilizando-se de uma
linguagem própria de seu lugar de fala, são aspectos da produção
inegável que está aí e quer se fazer mais e mais conhecida. Em nosso
meio, autores como Domício Proença Filho e Laura Cavalcante Padilha
vem tratando dessas instâncias há duas décadas. Recentemente, tem-
se outros nomes e outros títulos sobre os quais passaremos a falar
brevemente, no intuito de tornar mais palpável tanto a produção com
intuitos historiográficos como a produção para-historiográfica ligada
ao âmbito literário e cultural.
Por isso mesmo, iniciamos por destacar a obra História da
África e dos africanos (2013), produto de projetos de pesquisa na área
historiográfica já com duas décadas, desenvolvida por docentes e
alunos da UFRGS, tendo a frente Paulo F. Visentini, Luiz Dario T. Ribeiro
e Analúcia D. Pereira. Além de recolocar a história do continente
africano dentro de perspectivas atualizadas, mexendo em muito com
a visão estereotipada e fixa mormente encontrada, aborda as relações
do Brasil com os países de língua oficial portuguesa até os dias de hoje.
Note-se que Mario Maestri, desde a década de 1980, vem publicando
obras sobre a escravidão no Brasil, num processo revisional necessário

- 73 -
e complementar, a exemplo de seus livros A servidão negra (1988) e
Breve história da escravidão (1985).
Como fruto do afã recuperador da atuação de
afrodescendentes no contexto brasileiro, desenvolvido no meio
universitário da USP, a exemplo de muitos outros textos dessa leva,
tem-se “Paula Brito: editor, poeta e artífice das letras” (2010),
publicação primorosa organizada por José de Paula Ramos Júnior e
outros, oriundos das áreas literária, histórica e da comunicação que se
entrelaçam nessa composição para-historiográfica cultural de
interesse nacional.
Dentre os títulos voltados à discussão da questão racial na
escola, numa inciativa do Coletivo de Professores Negros da UERJ,
pertencentes ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, tem-se a obra
Educação, cultura e literatura afro-brasileira (2007), organizada por
Maria Alice R. Gonçalves, como um aporte pensado para docentes e
alunos do Ensino Básico ocupados em colocar alterar as práticas
pedagógicas vigentes.
Na mesma linha, da parceria entre o Programa Ações
Afirmativas da UFMG e o Núcleo de Inclusão Racial da PUC Minas surge
a obra Literaturas africanas e afro-brasileira na prática pedagógica
(2014), de Iris M. da Costa Amâncio, no intento de favorecer a criação
de uma postura pedagógica mais consciente e intercultural.
Mencionamos a obra pioneira Literatura afro-brasileira – 100
autores do século XVIII ao XXI (2014), organizado por Eduardo de Assis

- 74 -
Duarte. Trata-se de um texto com caráter de excepcionalidade, pois,
além de discutir teoricamente conceitos subjacentes à abordagem,
apresenta um Guia de Autores e Obras muito bem documentado e
pleno em referências bibliográficas, mais um apêndice panorâmico em
artigo intitulado: “A cultura africana na arte brasileira”, de Abdias do
Nascimento. O projeto é ambicioso, pois segue-lhe o segundo volume
intitulado Literatura afro-brasileira – abordagens na sala de aula
(2014), contendo sugestões comentadas de cerca de 150 obras
voltadas para o público infanto-juvenil, seguido de sequências
didáticas destinadas ao professor do Ensino Básico.
Citamos ainda Miriam Alves, com o título BrasilAfro
Autorrevelado – Literatura brasileira contemporânea (2010), autora
presente em inúmeras antologias nacionais e internacionais,
convidada como autora visitante e professora em universidades
estrangeiras, e Luiz Silva Cuti, com Literatura negro-brasileira (2010),
também autor literário, estudioso e crítico com várias publicações na
área, já de longa data.
Na brevíssima exposição feita aqui e menção diminuta a uma
produção textual em vias de construção e divulgação, não se pode
deixar de mencionar as revistas literárias e afins no meio universitário,
que debatem em artigos, já há mais tempo, tanto as literaturas
africanas de língua portuguesa quanto a literatura de matiz afro-
brasileira. É o caso da Revista Trabalhos em Linguística Aplicada, da
Unicamp, em que Gisele Ribeiro discute o afro-brasileiro e sua

- 75 -
representação no livro didático de língua materna (RIBEIRO, 2010,
p.101-113); também a Letras em Revista, da UESPI, e a Revista
Navegações, da PUCRS. Ainda, registre-se o surgimento de editoras
especializadas nesse âmbito, como a Língua Geral e a Nandyala, com
coleções direcionadas ao tema, o que revela o quanto o sistema
literário brasileiro, via imprensa editorial, cria mecanismos em função
de uma demanda crescente.
Neste artigo, quisemos enfatizar aquilo que o tema aqui
levantado exige, ou seja, uma abordagem interdisciplinar que alie
saberes de diferentes ordens e a necessidade premente do setor
educacional brasileiro, de materiais teóricos, historiográficos e
expressivo-literários que possam trazer substância às iniciativas de
recondução/recomposição da História da mentalidade, da
expressividade e da identidade nacional.
Para finalizar, basta referir que a experiência de ofertar um
componente curricular como Cultura Africana (2016 e 2018) e criar um
Projeto de Extensão em 2019: Literatura Afro-Brasileira – uma
abordagem introdutória, no Curso de Licenciatura em Letras –
Português e Literaturas de Língua Portuguesa, na Universidade Federal
do Pampa, campus Bagé, RS, que possibilitasse um primeiro contato
com a produção literária afro-brasileira, foi um campo de
amadurecimento, além de muito bem aceita em termos de adesão
estudantil, de egressos e técnicos administrativos. Surgiram
oportunidades sem conta de rever posturas, avaliar criticamente as

- 76 -
construções sociais excludentes, também no campo da Literatura, e
falar sobre o que tanto incomoda todos aqueles não conformados com
as desigualdades sociais, econômicas e culturais brasileiras.
Neste caso último, temos em vista sempre que a Universidade
da qual fazemos parte foi implantada (2006) numa região atrasada
economicamente, com baixos índices no IDEB nacional e um
percentual de alunos e alunas negros bastante crescente, hoje,
trazendo a possibilidade de formação superior antes impensável para
boa parte dessa população. Deste modo, toda e qualquer ação
pensada e motivada para a criação de mecanismos de promoção
cultural, econômica e social sempre tem uma excelente acolhida por
parte dos usuários. Por outro lado, os cursos de Licenciatura nas áreas
básicas que a Universidade oferta já estão modificando o panorama na
formação escolar dos estudantes de toda uma grande região
abrangida pelo Ensino Superior qualificado e gratuito.
Assim, compreende-se que as iniciativas acima descritas tem
um terreno fértil e, em especial no contato com a Literatura,
entendemos que ela é perpassada pela Subjetividade – exatamente
esta que vem a ser um componente importantíssimo na constituição
das identidades.
As produções literárias e teórico-críticas estão aí – apropriar-se
delas e torná-las parte integrante dos currículos é o desafio lançado a
todos nós.

- 77 -
Referências

ALVES, Miriam. BrasilAfro Autorrevelado: Literatura Brasileira


Contemporânea. Belo Horizonte: Nandyala, 2010. 148 p. (Repensando
África).

AMÂNCIO, Iris M. da Costa; GOMES, Nilma L.; JORGE, Miriam L. dos


Santos. Literaturas africanas e afro-brasileira na prática pedagógica.
2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. 215 p.

CUTI, Luiz Silva. Literatura Negro-Brasileira. São Paulo: Selo Negro,


2010. 132 p.

DUARTE, Constância L.; DUARTE, Eduardo de Assis; ALEXANDRE,


Marcos A. Falas do outro.: Literatura, Gênero, Etnicidade.. Belo
Horizonte: Nandyala; Neia, 2010. 357 p.

DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). Literatura Afro-Brasileira.: 100


autores do século XVIII ao XXI. Rio de Janeiro: Pallas, 2014. 270 p.

FERREIRA, Elio; BEZERRA FILHO, Feliciano J. (Org.). Literatura, História


e Cultura afro-brasileira e africana.: Memória, Identidade, Ensino e
Construções Literárias. Teresina, Pi: Editora da Uespi, 2013. 01 v.

GONÇALVES, Maria A. Rezende (Org.). Educação, Cultura e Literatura


Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: Quartet; Neabi-uerj, 2007. 01 v.
(Sempre Negro).

LEITES, Marlene Hernandez. A questão da raça e da diferença: Um


olhar sobre outros olhares. Belo Horizonte: Nandyala, 2012. 166 p.

MAESTRI, Mário. A Servidão Negra. Porto Alegre, Rs: Mercado Aberto,


1988. 185 p. (Novas Perspectivas, 25).

MAESTRI, Mário. Breve História da Escravidão. Porto Alegre, Rs:


Mercado Aberto, 1985. 189 p. (Revisão).

- 78 -
RAMOS JUNIOR, José de Paula; DEAECTO, Marisa Midori; MARTINS
FILHO, Plínio (Org.). Paulo Brito: Editor, Poeta e Artífice das Letras. São
Paulo: Edusp; Comarte, 2010. 272 p. (Memória Editorial; 7).

SOUZA, Roberto A. de. Introdução à Historiografia da Literatura


Brasileira. Rio de Janeiro: Eduerj, 2007. 168 p. (Ponto de Partida).

VISENTINI, Paulo F.; RIBEIRO, Luiz Dario T.; PEREIRA, Analúcia D. (Org.).
História da África e dos Africanos. Porto Alegre, Rs: Edufrgs, 2013. 397
p.

- 79 -
Análise do conto “Desencontro” de Luiz Silva

Anderson Caetano dos Santos10

Introdução
Um dos mais destacados intelectuais negros contemporâneos
– poeta, dramaturgo, crítico literário, ensaísta, contista e romancista –
Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, (Ourinhos/SP, 31/10/1951), formou-se
em Letras-Francês pela Universidade de São Paulo (USP), é Mestre em
Teoria da Literatura e Doutor em Literatura Brasileira pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Cuti defendeu
dissertação sobre a obra de Cruz e Sousa, e, em 2005, tese sobre Cruz
e Sousa e Lima Barreto. Como militante da causa negra, foi um dos
fundadores e mantenedores da série Cadernos Negros, a qual dirigiu
de 1978 a 1993, e ajudou a fundar o Quilombhoje Literatura.
As produções literárias de Cuti são marcadas, em grande
medida, pela afirmação de uma consciência étnica afrodescendente, a
qual trabalha prioritariamente os problemas que envolvem os negros.
Dessa maneira, o que interessa neste estudo, por ser mais recorrente,
é a faceta empenhada e circunscrita em um engajamento literário. Cuti
escreve num momento de profunda discussão sobre a produção
cultural, bem como sobre as representações literárias e históricas de

10
Mestre em Literatura, UFSC. Professor. E-mail: anderson.c.santos@bol.com.br.

- 80 -
brasileiros afrodescendentes, sobretudo nos movimentos e nas
organizações negras.

Figura 1: Foto de Cuti (2018)

Fonte:
https://www.diariodaregiao.com.br/_conteudo/2018/12/cultura/literatura
/1134062-doze-autores-negros-que-vale-a-pena-conhecer.html

Cuti representa um dos mais significativos intelectuais


brasileiros contemporâneos no que se refere à produção e discussão
da literatura negra, que se empenha no estudo da produção recente,
mas não perde de vista a produção de textos passados, conforme
Francys Carla Arraiz Lindoso Cavalcante (2017, p. 89-90).

Militante da causa negra, é um dos fundadores da


série Cadernos Negros (1978- ) e também um dos

- 81 -
fundadores e membros da ONG Quilombhoje
Literatura. Além disso, o escritor dedica-se
igualmente ao resgate da memória do movimento
negro.

Em outras palavras, autores como Cuti tendem a operar em seus


textos uma reversão dos discursos, das representações e dos pontos
de vista instituídos. Além disso, explicitam os seus mecanismos de
funcionamento, apontam os seus interesses e objetivos, expõem as
hierarquias e valores como forma de contestá-los e disputar-lhes o
poder de persuasão. Um vasto conjunto de iniciativas de produções
culturais e de ações políticas explícitas de combate ao racismo
observam-se ao longo do século XX. Elas manifestam-se por via de uma
multiplicidade de organizações em diferentes instâncias de atuação,
com diferentes linguagens e estratégias. Assim, temas como
identidade, tradição cultural, racismo, discriminação racial, diáspora
africana, movimentos negros, desigualdades sociais, desemprego e
marginalidade são abordados – mas não exclusivamente – numa
escritura em que o negro é tema e, sobretudo, autor.

Nos contos e poemas que o escritor vem


publicando nos Cadernos Negros, desde o primeiro
número, em 1978, a questão da exclusão dos
afrodescendentes é encarada de frente. Seus
textos, quase sempre permeados por fina ironia,
procuram focalizar a gama de estereótipos que
circulam numa sociedade que, tendo um
percentual significativo de negros, parece ignorar
os problemas específicos dessa população. O olhar

- 82 -
perspicaz do escritor está sempre presente em
seus textos, em busca da expressão elaborada que,
no âmbito da literatura, não descarta o
compromisso com os referenciais e valores que
precisam ser fortalecidos. (DUARTE; FONSECA,
2011, p. 11).

O autor, em prosa, em verso ou no teatro, adere às tradições,


aos costumes, ao cotidiano do grupo a que se pretende porta-voz,
procurando desarticular os modelos pré-concebidos pela sociedade
brasileira, que segue a tradição europeia excludente, branca e cristã.
Desse modo, tratando do universo dos homens e das mulheres negros,
Cuti pode olhar de fora para dentro e de dentro para fora. Em outros
termos, não se trata de apartar-se do grupo que representa, mas de
transitar dentro dele, assumindo o papel do homem letrado – Cuti é
graduado, mestre e doutor em Letras –, que é capaz de analisar
criticamente a sociedade que o circunda, mas que, ao mesmo tempo,
enfrenta todos os preconceitos que são destinados aos seus pares.
O conto escolhido para análise com o intuito de contemplar essa
temática é “Desencontro”, do livro Negros em contos (1996). O dia a
dia de um casal composto por Pedro (negro) e a Lúcia (branca), na
cidade de São Paulo, destaca os conflitos existentes no cotidiano das
pessoas.

- 83 -
Figura 2: Capa do livro Negros em contos(2018)

Fonte:
http://www.mazzaedicoes.com.br/wbgapp/assets/img/capas/9788571600
782.jpg. Acesso em: 28 mar. 2019.

“Desencontro”
No conto “Desencontro”, o autor trabalha com a questão dos
relacionamentos extraconjugais e com a rotina exercida pelo
casamento, sendo que Pedro (o protagonista) está cansado do
relacionamento com Lúcia (personagem com traços germânicos). A
narrativa é autodiegética com breves intromissões dos outros
personagens em itálico ou negrito, visto que a perspectiva está posta
a partir de Pedro. Massaud Moisés, em A análise literária (2005, p.
113), esclarece que, grosso modo, ponto de vista ou foco narrativo é a

- 84 -
posição “[...] em que se coloca o escritor para contar a história [...]”.
Deve-se considerar que, no caso da narrativa apresentada em primeira
pessoa, o leitor fica limitado à perspectiva adotada pelo personagem
que assume a narrativa, sendo, dessa forma, impossível conhecer o
pensamento dos demais personagens.
Os personagens são Pedro, Lúcia (esposa), Adelaide (amante),
Mulata Recatada (acompanhante), Sinval (amigo militante), Francisco
(porteiro da associação) e o porteiro (do condomínio da amante). O
ambiente narrativo situa-se na casa do protagonista, no espaço de
militância, na casa de Adelaide, no bar e no escritório de advocacia de
Pedro. O tempo na narrativa é de algumas semanas, desde o bilhete
escrito para a Mulata Recatada até o término do casamento.
A estrutura narrativa inicia com as memórias de Pedro sobre a
traição a Lúcia com uma cliente. A traição reduziu os afetos entre o
casal Pedro e Lúcia, sendo que ele procurou revistas eróticas e em um
dos anúncios publicitários encontrou a Mulata Recatada. Em uma
noite (o dia não se menciona), Pedro vai à “Associação Bom Crioulo”
no Bixiga, escreve um bilhete para a Mulata Recatada e tem um
relacionamento sexual com Adelaide. Pedro com algumas semanas de
relacionamento extraconjugal com Adelaide anseia a separação de
Lúcia. Na noite de aniversário de Adelaide, Pedro recebe um envelope
de sua esposa com o anúncio do término do casamento.
Nesse conto, analisam-se quatro temas: a volúpia sexual de
Pedro e o amor extraconjugal (traição); o acordo ou desacordo com a

- 85 -
militância negra; o desencontro e as cartas; e, por último, os traços do
corpo negro de Pedro, de Mulata Recatada, de Sinval e de Adelaide. O
primeiro deles refere-se à vontade de Pedro de ter um relacionamento
extraconjugal. Um dos fatores que colaborara para esse aspecto é a
rotina do casamento com Lúcia. No trecho inicial, descreve-se o
cotidiano do protagonista e da provável traição a sua esposa, devido
aos flertes constantes dele com acompanhantes de luxo ou amantes.

Uns poucos anos de casado e meu sono conturbou-


se.
Era um tempo de indecisão. Eu, cada vez mais
macambúzio. Às vezes dormia doze horas corridas,
em flagrante descontrole. Depois, os
compromissos comprimiam-me.
Sofria de insatisfação aguda.
Era também um tempo de afetos falsos. As
mulheres se aproximavam com suas tochas de
paixão, ateavam-me fantasias e se recolhiam na
seriedade de uma relação amistosa e casta. Por
vezes eu ficava, desejo em brasa, coberto pela
cinza do respeito, a aliança estrangulando o
imaginário. (CUTI, 1996, p. 18).

O cotidiano do casamento gera angústia e infelicidade em


Pedro, porque está preso nessa convenção social, vale ressaltar que o
casamento do casal foi realizado dentro dos parâmetros da religião
católica. Esse conflito perpassa pelas funções psíquicas tais como o
descontrole do sono, a tristeza e a insatisfação, visto que esses
elementos contribuem, para que esse personagem busque um
relacionamento extraconjugal. O constante flerte com as mulheres

- 86 -
gera o gradual esfacelamento do matrimônio, já que se percebe a
tensão entre a estada no casamento com a manutenção da rotina e a
separação da esposa para ter relacionamentos casuais.
A representação do cotidiano se exacerba tanto, que, não por
acaso, motivou Alfredo Bosi, no ensaio, “Situação e formas do conto
brasileiro contemporâneo” (1975), a exemplificar Rubem Fonseca
(1925-atual) e Dalton Trevisan (1925-atual) como dois contistas que
trabalham com essa temática. “Quanto à invenção temática, o conto
tem exercido, ainda e sempre, o papel de lugar privilegiado em que se
dizem situações exemplares vividas pelo homem contemporâneo.”
(BOSI, 2015, p. 8). No tocante a Cuti, o dia a dia do afro-brasileiro situa-
se nas questões que envolvem o racismo, a descriminação racial, o
branqueamento e os relacionamentos extraconjugais.
Os relacionamentos extraconjugais do protagonista ocultados
da esposa são breves, com uma rotatividade considerável de
mulheres. A primeira traição, que a esposa de Pedro teve
conhecimento, aconteceu com uma cliente (acompanhante de luxo)
do escritório de advocacia. Desde então, Pedro toma cuidado com os
relacionamentos extraconjugais, com o intuito de manutenção do
casamento. O conflito de Pedro percebe-se entre a posse da volúpia e
o desejo de traição, ou seja, o protagonista anseia a liberdade das
amarras do matrimônio. Desse modo, a atitude de Lúcia evidencia a
repressão ao marido e a indicação ao provável término do casamento
com uma futura traição.

- 87 -
Saí do relacionamento enfaixado por algumas
dívidas e recolhido numa gonorreia. Minha esposa
não fez qualquer estardalhaço. Conteve-se. Não a
contagiei. Protegi a família construída por nós dois.
Após duas dezenas de dias, antibióticos
devolveram-me às relações sexuais normais, de
uma posição só, no escuro, uma vez só por semana,
após o jantar. A partir de então, contudo, o
tratamento de “Bem”, que ela me dispensava,
passou a ter certa aspereza. (CUTI, 1996, p. 19).

A voz de Lúcia aparece poucas vezes ao longo do conto devido


à narrativa ser autodiegética, sendo que, no matrimônio, a interação
entre Pedro e Lúcia ocorre de maneira esparsa, desse modo a
dificuldade demonstra-se para a resistência às inconstâncias das
partes envolvidas. A representação desse personagem indica a frieza
e o desafeto do relacionamento do casal, porque não se apresenta a
conversa do relacionamento entre eles, já que Pedro apenas relata os
acontecimentos.

Em termos gerais, reconhece-se hoje que a


satisfação conjugal é fenômeno complexo, no qual
interferem diversas variáveis, tais como:
características de personalidade, valores, atitudes
e necessidades; sexo, momento do ciclo da vida
familiar, presença de filhos, nível de escolaridade,
nível socioeconômico, nível cultural, trabalho
remunerado e experiência sexual anterior ao
casamento [...] (NORGREN; SOUZA; KASLOW, 2004,
p. 576).

- 88 -
Pedro tenta manter um matrimônio de aparência ao possuir
uma relação extraconjugal, além de continuar com o vínculo de
trabalho e nas relações interpessoais. O anseio de crescimento
pessoal, mesmo que com um escritório de advocacia ainda pequeno
induz ao círculo social rodeado de pessoas brancas seja com os
clientes, com o matrimônio ou nos ambientes frequentados pelo
protagonista. Logo, esses vínculos indicam o “embranquecimento” de
Pedro por meio dos ambientes de interação social.
Mesmo assim, o protagonista assina algumas revistas eróticas,
visto que a vontade de ver mulheres diferentes da sua esposa continua
com a Mulata Recatada em um dos anúncios publicitários. Essa
personagem indica a beleza, a sensualidade e a exuberância ao ser
destacada como uma garota de programa. O nome dessa
acompanhante de luxo exibe o desejo do protagonista de relacionar-
se de modo discreto com uma amante, por que com o histórico de
traição, Pedro não pode demonstrar abertamente o relacionamento
com outra mulher. Logo, o próprio apelido da acompanhante de luxo
indica a possibilidade de traição, mas de maneira velada.

Em uma seção de cartas da revista Prazer Café,


encontrei um apelo com o seguinte teor: Amor
delícia discreta. Sou jovem e bonita. Detesto
escândalos amorosos. Gostaria de me relacionar
com um homem de meia idade que soubesse fazer
amor sem pressa. Minhas ancas dão quebranto.
Mulata Recatada. (CUTI, 1996, p. 19).

- 89 -
Nota-se que a figura da Mulata Recatada surge com o intuito
de transmissão da ideia de volúpia e de entretenimento ao
protagonista. Esse é um dos meios de referência ao negro, ou seja,
aparece de modo estereotipado, como a presença de jogadores de
futebol, de cantores, de compositores e de mulatas, sendo que esses
atributos condensam o vigor e/ou a resistência física e a sexualidade.
Logo, esse fato aponta para uma percepção do corpo da Mulata
Recatada como esse instrumento do prazer, no qual essa mulher figura
como mercadoria de consumo e de satisfação do homem.

Na tradição cultural do “meio negro” entende-se


que tudo isso sucedia porque o negro e o mulato
“são os mais quentes”, “vivem obcecados com o
sexo” e “encontram maiores facilidades para
converter o sexo num derivado e numa forma de
prazer” (FERNANDES, 1978, p. 150).

Os dois adjetivos, “jovem” e “bonita”, indicam uma


“mercadoria”, que está pronta para ser exibida e/ou consumida por
um cliente. Desse modo, a imagem da Mulata Recatada constrói-se
com o intuito de sensualidade ao desejo masculino, bem como
estereotipada. Para Lélia Gonzalez (1984, p. 226), “Mulher negra,
naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus
ou prostituta”. A Mulata Recatada é explorada sexualmente em um
anúncio publicitário de revistas como garota de programa. Pedro
consulta outras revistas eróticas nomeadas: Orgasmo Atual, Gozo
Ação, Fêmeas, Sensualição, Tesão Ariana e Morenaço. Esse é um dos

- 90 -
temas trabalhados ao longo do conto: o desejo de Pedro em trair a sua
esposa com amantes ou com garotas de programa, com o objetivo de
buscar o afeto, o carinho e a felicidade em outras mulheres, como
decorrência desse sentimento faltar na sua esposa. Essa vontade de
estar com uma mulher, que não é a sua esposa, perpassa por Pedro
através de revistas eróticas e da amante Adelaide. Nas palavras de
Pedro, ele: “Queria um aventurazinha que me desafogasse do
matrimônio e seus limites.” (CUTI, 1996, p. 19).
O desejo masculino por uma experiência sexual com esse tipo
de mulher expressa-se pelo protagonista elaborar mentalmente uma
carta à Mulata Recatada. Vale destacar que Pedro foi coroinha e
carola, bem como educado por padres em um internato no período da
adolescência, contudo, o histórico de formação religiosa, não o
impediu de buscar um relacionamento extraconjugal. É importante
ressaltar que a religião católica condena a prática da traição, bem
como considera o matrimônio um sacramento constituído de uma
união monogâmica e indissolúvel entre o homem e a mulher.
Para Pedro, “[...] que passara a trabalhar duplamente, no
intuito de impedir a justificativa da esposa para procurar emprego,
aquilo era um síntese atraente, antítese também ao meu passado de
coroinha e jovem carola.” (CUTI, 1996, p. 19). Pedro sustenta a esposa,
pois a impede de trabalhar com uma jornada dupla de trabalho. Desse
modo, esse é um paliativo para o bloqueio da saída de casa de Lúcia,
visto que Pedro pela intensidade do trabalho circula entre os diversos

- 91 -
ambientes e chega em casa na hora desejada. A domesticação do
corpo de Lúcia exibe-se pelo tratamento de “objeto” dos anseios e
interesses de Pedro, bem como o reflexo da necessidade de controle
possessivo do homem em relação à mulher devido o machismo.

Em um desses começos de noite, quando o intenso


calor só nos dá vontade de apenas jantar conversa
fiada com cerveja e tira-gosto, fui até a Associação,
no bairro do Bixiga.
Cheguei por volta das 19:30 horas, sem nenhum
arrependimento de faltar às obrigações
profissionais que me aguardavam à noite (CUTI,
1996, p. 20).

As mulheres aparecem com constância na vida de Pedro, posto


que Adelaide (negra) aproxima-se a sua mesa na “Associação Bom
Crioulo”. Mais uma vez, o corpo negro aparece como uma forma de
aproximação entre as pessoas, porque os dois dançam juntos, e, desse
modo compartilham-se sentimentos. Conforme revela Pedro: “Minha
reprimida paixão pela dança abraçou-me com as raras recordações da
juventude.” (CUTI, 1996, p. 22). Esse personagem foi adepto da prática
da dança no período da adolescência, sendo esta vontade reprimida
provavelmente pela prática religiosa.
Em relação a Adelaide, percebe-se uma mulher negra que
frequenta o ambiente do ativismo, mas não se menciona a intensidade
da militância dessa personagem. Adelaide é, “Alta, curvas
estonteantes, na voz uma rede oferecendo descanso.” (CUTI, 1996, p.
22). Tanto na Mulata Recatada quanto em Adelaide, o corpo é um
- 92 -
convite ao prazer e a sensualidade. Deste jeito, o encontro com
Adelaide demonstra-se com afetividade a Pedro, já que não possui
essa sensação no casamento. Adelaide é assistente social, sendo que
uma das atribuições desse profissional é o bem-estar e a integração
das pessoas na sociedade.

Fui à casa de Adelaide, carregando o peso de mais


mentiras (devia analisar e preparar um pedido de
habeas-corpus urgente...). Passei antes no
escritório para me apossar de um álibi.
Adelaide morava sozinha, por opção, segundo ela,
em uma kitchnette muito bem decorada. A família
residia na cidade de Campinas. Em São Paulo ela
estudara Assistência Social, formara-se e exercia a
profissão. (CUTI, 1996, p. 23).

O relacionamento do casal está próximo do término, em razão


do protagonista passar mais tempo no trabalho e no apartamento de
Adelaide, além das constantes mentiras para a esposa. Na proporção
que Pedro aproxima-se de Adelaide, mais o relacionamento com Lúcia
enfraquece os laços afetivos. O desejo sexual do protagonista leva-o
ao término do casamento e do relacionamento com Adelaide. A
volúpia aflorada do protagonista levou-o a não concretização de
vínculos afetivos, pois gosta de relacionar-se com várias mulheres ao
mesmo tempo.
A atividade sexual de Pedro permanece ativa ao longo do
conto, pois ele utiliza subterfúgios tais como: amantes, garotas de
programa ou revistas eróticas. O uso do vocabulário com expressões

- 93 -
que indicam ao órgão sexual masculino tais como: “ereção”, “rigidez”
e “ficou ereta” induz à sexualidade aflorada de Pedro. O desejo de ter
relações sexuais frequentes com mulheres exibe-se com a esposa
Lúcia (branca), com a amante Adelaide (negra) e com a garota de
programa Mulata Recatada.
Em Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, de 1933,
menciona-se que havia um ditado corrente, em meados do século XVIII
e no XIX, a respeito das mulheres: “Branca para casar, mulata para
foder, negra para trabalhar.” (FREYRE, 2006, p. 72). O ditado revela o
pensamento masculino de então, no qual a mulher é vista
preconceituosamente como um objeto útil. As mulheres brancas eram
para casar; as de pele muito escura eram tão feias que serviam apenas
para trabalhar; e as “mulatas”, fruto da miscigenação de negras com
brancos, eram apenas para transar, para o estabelecimento de
relações de prazer sexual, já que como o animal (mula) não teriam
filhos. Mesmo Pedro sendo um homem negro percebe-se que esse
ditado popular brasileiro influencia os relacionamentos afetivos ao
longo do conto.
O segundo tópico ressaltado na análise refere-se ao acordo ou
desacordo com a militância negra. A “Associação Bom Crioulo” situa-
se no Bixiga (esse bairro possui uma considerável parcela de negros
em sua composição devido à origem de um quilombo, bem como é
considerado um reduto de resistência da cultura negra). Vale ressaltar
a ironia estabelecida pelo nome da associação, que indica um local,

- 94 -
onde Pedro comportar-se-ia como uma pessoa “boa” e ajustada
dentro das convenções sociais. Pedro trai e/ou mente para a sua
esposa, de acordo com os interesses pessoais, já que a tensão
apresentada aumenta progressivamente até o término do casamento
pela sequência de fatos demonstrados.
A visão de Pedro torna-se clara, um advogado (possui um
escritório e trabalha sozinho nele), que não é solidário ao ativismo, por
causa do pensamento de que essa atitude é considerada racismo ao
inverso e/ou revanchismo contra o branco, além da militância ser mal
vista pelos seus clientes. O fato de Pedro ter conseguido uma
formação universitária, bem como uma agenda de clientes no
escritório de advocacia contribui, para uma situação educacional e
econômica melhor do que a da maioria dos afro-brasileiros.

Como as oportunidades de ascensão são limitadas,


o grosso encara com ressentimento ostensivo as
tentativas do companheiro, avaliando-as,
literalmente, como um esforço para “deixar de ser
preto”. Há clara consciência de que o êxito
implicará na perda do companheiro, que ele
acabará tendo “vergonha” dos seus parentes e
amigos e, o que lhes parece intolerável, ficará
“metido a branco”. (FERNANDES, 1978, p. 231, v.
2).

Esse é um dos diversos discursos que se percebe sobre a


militância negra: o primeiro de Pedro, que, esporadicamente, vai à
associação e contribui com a mensalidade da entidade; em segundo

- 95 -
lugar, o Sinval, que exerce atividades burocráticas nesse
estabelecimento e participa na manutenção da entidade; por último,
os radicais que atuam de modo contundente em ações sobre a
afirmação da “identidade negra” e da redução das diferenças
socioeconômicas.

Ele era contador e prestava serviços gratuitos à


Associação Bom Crioulo. Havia insistido, várias
vezes, para que eu participasse mais em prol da
raça. De minha parte, sempre apresentei
desculpas. No fundo, era meu medo de ser
acusado, por quem quer que fosse, de racista às
avessas, revanchista... A Associação, de tempos em
tempos, promovia atividades culturais, com
palestras, discursos. Surgiram então pessoas
radicais. Eu não queria me envolver. Afinal, se o
fizesse poderia ser mal visto até mesmo por minha
clientela. (CUTI, 1996, p. 20-21).

Um conflito de alguns negros brasileiros é a participação ou


desaprovação do movimento negro, sendo que Pedro busca a
neutralidade nas questões raciais. Esse ato aparece nas pessoas negras
que executam cargos, os quais o vínculo com o movimento negro
influencia na carreira. Nota-se que Pedro também pouco conversa
sobre as relações étnico-raciais, exceto no espaço da militância, por
influência dos ativistas. Sendo assim, o movimento negro para Pedro
é uma forma eventual de preocupação com a temática da negritude,
mas sem o forte embate e/ou confronto nas relações interpessoais da
sociedade.

- 96 -
O terceiro tema na análise refere-se ao desencontro e às
cartas. Pedro encontra a Mulata Recatada na seção de cartas de revista
Prazer Café, escreve um bilhete para ela, mas o rasga. Na “Associação
Bom Crioulo”, mais tarde, Pedro escreve em um guardanapo de papel
uma carta destinada à Mulata Recatada, com o intuito de um
relacionamento extraconjugal.

Prezada (e deixei em branco)


Há algum tempo emprestaram-me uma revista
em que, depois de folhear, encontrei sua proposta
de correspondência.
Muito me alegrou sua ligeira preocupação com os
escândalos amorosos que levam as pessoas,
quase sempre, ao desespero do desamor.
Tomo a liberdade de parabenizar sua proposta de
correspondência e, achando-me no grisalho
próprio da meia-idade, candidato-me, com
humildade, a ser seu correspondente.
Aguardo resposta... (CUTI, 1996, p. 20).

As cartas aparecem como um modo de estabelecimento dos


desejos reprimidos de Pedro, que anseia ter um relacionamento com
a Mulata Recatada; e Lúcia, que manifesta o rompimento com as
mentiras e com as traições por meio desse mesmo veículo. Logo, tanto
o recebimento da chave do apartamento entregue pelo porteiro
Francisco quanto a carta significam a possibilidade do passaporte para
a entrada no âmbito privado da vida de Adelaide, bem como o término
do casamento.

- 97 -
Provavelmente, quem enviou esse envelope foi a esposa ao
descobrir a traição, com o destinatário Mulata Recatada, pois tinha
conseguido o manuscrito do seu marido de tempos atrás na íntegra e
o endereço da residência da amante. Lúcia demonstra uma atitude
assertiva ao romper o casamento com Pedro devido à traição, às
mentiras e à falta de afeto. Logo, a determinação do término do
casamento de Pedro parte de sua esposa, uma mulher branca, a qual
em poucos momentos da narrativa tem seu ponto de vista exibido.
O primeiro desencontro de Pedro realiza-se ao ir ao
apartamento de Adelaide, sem encontrá-la. Já o segundo acontece
como uma consequência do primeiro, no retorno à sua residência sem
encontrar Lúcia. O ato de não estar no lugar combinado gera duas
apreensões, pois o protagonista recebe uma encomenda, que revela o
conhecimento da traição por Lúcia, além do término do casamento. A
dicotomia encontro/desencontro opera-se com o desencontro de
ideias com a esposa e do lugar combinado com Adelaide. Em outros
momentos da narrativa, Pedro encontra o que deseja por meio da
traição à esposa, das revistas eróticas com o anúncio da Mulata
Recatada e do encontro com o Sinval e a Adelaide na “Associação Bom
Crioulo”.
Outro desencontro estabelece-se pelo protagonista ao cogitar
que Adelaide seria a Mulata Recatada, além de possuir um
relacionamento com outro homem. Nota-se o machismo nas relações
de Pedro, pois ele pode se relacionar com a quantidade de mulheres

- 98 -
desejadas, enquanto a esposa e a amante devem relacionar-se
exclusivamente com ele. Percebe-se ainda a sátira ao mencionar que
o descobrimento da sua traição pela esposa e o término do casamento
aconteceu no dia do aniversário de Adelaide, pois, nessa data,
considera-se o período de festividade e de comemorações das
pessoas.
O desencontro de ideias opera-se ao não deixar o
esclarecimento da situação por Adelaide, bem como a dificuldade da
realização de uma conversa pessoal, o que exibe a falta de
proximidade entre as pessoas. “E tal base biológica da relação, que
tem fortes implicações com o uso da palavra e do diálogo, não pode
ser afastada da natureza dos relacionamentos humanos e de suas
vinculações com o que é social.” (LEITÃO; FORTUNATO; FREITAS, 2006,
p. 889). Portanto, os relacionamentos humanos são iniciados ou
terminados por meio de cartas, em que se constata uma
despersonificação das relações, visto que essa palavra origina-se do
latim charta, com o significado de “mensagem”, ou seja, uma maneira
encontrada para a comunicação dessas pessoas.

Vai me explicar, sua puta! Que negócio é esse de


Mulata Recatada? Quem é esse tal de Lúcio?
Eu agitava o envelope ainda fechado. Estava
transtornado. Vociferei e, após tantos outros
impropérios meus, saí, esmagando na porta seu
quase gemido:
Eu não sei, eu não, sei de nada... (CUTI, 1996, p. 24).

- 99 -
Pedro não envia a carta à Mulata Recatada, sem encontrar uma
correspondente, posto que a prostituta estivesse no plano da
imaginação. Desse jeito, a esposa torna-se a correspondente no plano
real, que demonstra os conflitos apresentados por Pedro. O envelope
é enviado para Adelaide com o intuito de aviso do término do
casamento, sendo que o embrulho da amante contém o bolo de
aniversário. Logo, esses dois elementos indicam a surpresa revelada
ao abri-las, sendo que ela é a aproximação ou o término das relações
entre as pessoas.
Acredita-se que a tensão e o descontrole de Pedro crescem
progressivamente com indícios de que a separação do casal
acontecerá em breve. Nesse instante de ansiedade, o protagonista
viola o envelope não endereçado a si, que continha as seguintes
palavras:

“Prezada Adelaide
Há algum tempo emprestaram-me uma revista
em que, depois de folhear...” Era na íntegra o texto
de minha cartinha, mas datilografado com esmero.
Meu nome como signatário e, abaixo, inúmeras
ofensas de baixo calão. Por fim, o nome revelador.
Não era Lúcio, mas Lúcia. Meti a mão no bolso e
puxei a carteira. O manuscrito, ali esquecido,
desaparecera. (CUTI, 1996, p. 24-25).

O drama do poliamor, considerado como uma construção


social nota-se ao burlar os limites impostos por essa convenção. Dessa
forma, a carta significa o descobrimento da traição por Lúcia e o

- 100 -
término do casamento por Pedro, já que as duas cartas que aparecem
não foram enviadas pelo correio, sendo entregues pessoalmente, bem
como deixada sem um intermediário, para serem lidas depois. O
protagonista vê: “[...] sobre a mesinha de centro, encontrei meu
manuscrito. Embaixo dele uma carta. Era a despedida que desfazia um
lar.” (CUTI, 1996, p. 25). Desse modo, o resultado aparece, porque o
casal é afetado pelo conteúdo ali expresso.
O título do conto aponta para o acontecimento de dois
desencontros: Pedro e Adelaide e, Pedro e Lúcia. Pedro tem
discordância com as ideias dos militantes, com a formação religiosa
católica, com as obrigatoriedades do matrimônio e com o serviço de
advocacia. Esses traços percebem-se devido à narrativa ser
autodiegética, que indica Pedro estar advogando a seu favor, com a
presença de poucas intromissões de outros personagens em itálico.
Ademais, o verbo ‘desencontro’ pode ser conjugado no presente do
indicativo como ‘eu desencontro’, desse modo, as diversas formas de
desencontro acontecem no momento presente da narrativa.
O quarto ponto analisado refere-se ao corpo negro de Pedro,
de Mulata Recatada, de Sinval e de Adelaide. O primeiro refere-se ao
corpo de Pedro, o qual deseja ter relações sexuais com a esposa, com
a Mulata Recatada, com a Adelaide e com acompanhantes de luxo. O
protagonista não se enquadra no casamento monogâmico com a
esposa dentro dos parâmetros católicos, sendo que comete o pecado
da traição várias vezes no decorrer do conto.

- 101 -
No artigo “O negro brasileiro: etnografia religiosa e
psicanálise”, Arthur Ramos menciona dois grupos étnicos
predominantes historicamente na formação dos afro-brasileiros: os
“sudaneses” e os “bantos”. “Mas já podemos chegar a uma relativa
clareza, concluindo, da simples leitura dos estudos existentes, e do
largo inquérito a que procedemos sobre as religiões negras, que
entraram, no Brasil, negros dos dois grandes grupos ‘sudaneses’ e
‘bantos’.” (RAMOS, 2007, p. 738). A imposição do matrimônio católico
estabelece uma das formas de alienação de Pedro na sociedade
brasileira, posto que a origem étnica desse personagem pertença à
cultura africana, sendo inclusive permitida a poligamia em muito
desses grupos.
O corpo do homem negro por muito tempo foi visto como
instrumento de reprodução sexual na sociedade escravagista
brasileira, sendo difícil estabelecer vínculos afetivos e familiares. Nota-
se que após a primeira traição, Pedro possui apenas uma relação
sexual com a esposa semanalmente, visto que esse desejo realiza-se
com mais frequência com as amantes. Tanto Pedro quanto a esposa
não mencionam filhos para terem vínculos familiares mais fortes.
Pedro também se aproxima de corpos brancos como ao da
esposa e de clientes do escritório de advocacia para a ascensão social,
sendo que, em contraposição a essa ideia, os corpos negros próximos
ao protagonista são com o intuito de volúpia, tal como o de Adelaide
e de Mulata Recatada. Sendo assim, dois polos estabelecem-se, com o
corpo branco associado ao progresso intelectual e econômico,
- 102 -
enquanto o negro, ao desejo e ao prazer. Logo, essas são as razões
para Pedro suportar o casamento, mesmo não amando Lúcia, sendo
que a pressão social “obriga” ao relacionamento com a mulher branca,
mas a genética, a herança, leva-o a desejar mulheres negras.
Um dos motivos da traição de Pedro é a saída do comodismo
que o casamento tem gerado, bem como a autoafirmação, enquanto
homem. O primeiro aspecto envolve as poucas relações sexuais, a falta
de interação e afetividade a Lúcia. Em relação ao segundo, o
protagonista busca a autoafirmação, enquanto homem, pois, mesmo
com relacionamentos extraconjugais, ele anseia se envolver com mais
mulheres. Dessa forma, a traição parece reproduzir um modelo
machista, no qual Pedro trai várias vezes a esposa, enquanto Lúcia e
Adelaide relacionam-se exclusivamente com o protagonista.
O segundo corpo é do Sinval, sendo que ele identifica-se com a
cultura negra por meio da militância na “Associação Bom Crioulo”. Ele
assume a negritude através do trabalho voluntariado na associação,
da discussão da temática afro-brasileira, da elaboração de bailes e de
ações em prol da militância da integração do negro na sociedade de
classes. As atitudes desse personagem indicam uma forma semelhante
de atuação aos militantes da associação.
O terceiro corpo é de Mulata Recatada, sendo que ele aparece
estereotipado como a fonte de prazer momentâneo, por meio de uma
relação sexual mediante o pagamento da mesma. Dessa maneira, a
prostituição da Mulata Recatada demonstra-se com o intuito de
transmissão da sensualidade e prazer, bem como a companheira em
- 103 -
aventuras amorosas e extraconjugais. Nesse aspecto, essa
personagem é a que está pronta para sanar os desejos sexuais dos
homens, nesse caso de Pedro. Para Nilma Lino Gomes (2011, p. 48),
constata-se que, “Nesse processo, o corpo negro ainda vive situações
que exigem a superação da visão exótica e erótica que sobre ele recai,
oriunda da violência escravista, alimentada pelo sexismo, pelo
machismo e disseminada pelo racismo”.
Essa personagem voluptuosa está associada ao desejo carnal
dos homens. Por isso, a exaltação da beleza da mulata evidencia a
sutileza do preconceito ao qual ela é vítima. A utilização do estereótipo
da mulher negra tem origens no período colonial, mas atravessa os
tempos como reflexo do controle social de uma época. O machismo
do homem branco em torno da mulata exemplifica as relações de
dominação-subordinação herdada por um sistema escravocrata. Logo,
mostra-se como a mulher branca (Lúcia) é voltada para o papel de
esposa e a mulher negra (Mulata Recatada e Adelaide) com forte
estigma sexual cujo corpo serve de espaço de prazer masculino.
Por último, o corpo de Adelaide exibe a mulher negra que
frequenta o espaço de militância. Em relação a essa personagem, não
se menciona o grau de envolvimento com o ativismo social, sendo que
aparece na associação com o intuito de aproximação com Pedro. O
corpo, a exemplo de Mulata Recatada, é belo, o que gera a atração
afetiva e sexual de Pedro.
Uma das consequências da escravidão percebe-se ao
mencionar que homens negros se relacionavam com mulheres
- 104 -
africanas antes da chegada ao Brasil, bem como com afro-brasileiras
durante o período da escravidão. Logo, esse desejo parece influenciar
esse personagem, porque mesmo com o relacionamento de
aparências, ele anseia o relacionamento afetivo com negras.

Conclusões
As questões que envolvem gênero, raça e classe têm sido
constituinte dos padrões estabelecidos pelo imperialismo europeu
imposto às colônias. Os discursos de escritores negros principiaram a
inserção através de personagens e/ou protagonistas também negros
diferentemente, de uma visão anterior, de considerá-los objetos e
com descrições estereotipadas.
Essa é uma das especialidades de Luiz Silva (Cuti), escritor afro-
brasileiro que busca por meio de seus escritos, ressaltar a afirmação
da identidade, a ancestralidade africana, o racismo, a discriminação
racial e a subcondição do negro na sociedade brasileira. O livro Negros
em contos (1996) configura-se como um elemento transgressor por
meio de uma unidade que estabelece uma tensão entre os discursos
pré-estabelecidos e estereotipados da sociedade brasileira nas
relações inter-raciais. Isso se torna mais evidente no conto
“Desencontro”, quando as questões afro-brasileiras surgem em
situações corriqueiras do cotidiano nessa sociedade.

- 105 -
Referências

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2015.

CAVALCANTE, Francys Carla Arraiz Lindoso. Literatura afro-brasileira:


um processo de afirmação identitária e de resistência negra na poesia
de Cuti. São Paulo, Opiniães, ano 6, n. 10, p. 86-102, 2017. Disponível
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pdf/rlpf/v10n4/a15v10n4.pdf. Acesso em: 6 abr. 2019.

- 107 -
Análise do conto “Vitória da Noite” de Luiz Silva

Anderson Caetano dos Santos11

Introdução

No que diz respeito à identidade coletiva, é preciso


encará-la com um conceito plural: os conceitos
estáveis de “caráter nacional”, a identidade
autêntica são modernamente substituídos por uma
noção pluridimensional onde as identidades
construídas por diferentes grupos sociais em
diferentes momentos de sua história se justapõem
para construir um mosaico. As partes se organizam
para formar o todo. No caso, por exemplo, das
escritoras mulheres e negras no Brasil, o texto
literário torna-se o espaço onde as diversas
manifestações identitárias são convocadas a
integrar a trama discursiva: a escritora quer fazer-
se reconhecer por sua presença ao sexo feminino,
ao grupo étnico negro e a sociedade brasileira
(BERND, 1992, p. 15).

A colonização do Brasil demonstra a diversidade cultural do


país, onde no processo de descobrimento a imposição do modo de agir
e pensar dos colonizadores divergiam em muitos pontos dos costumes
indígenas nativos, sendo que esse fator corroborou para a
agravamento dos conflitos entre os grupos constituintes do País.
Descortinado o racismo no Brasil e seu processo de escravização que

11
Mestre em Literatura, UFSC. Professor. E-mail: anderson.c.santos@bol.com.br

- 108 -
deixou marcas severas na história dos africanos e afrodescendentes
que por meio dos maus tratos e das violências sofridas no trajeto
África/Brasil e em sua permanência aqui, colocaram o negro em
condições hierarquicamente inferiorizadas.
O processo de “branqueamento” que o país viveu, onde quanto
mais próximo do estereótipo europeu mais aceito e inserido pela
sociedade o cidadão era, sendo que se esquece cada vez mais da
importância de reconhecer cada pessoa na sua essência cultural.
Sendo assim, o Brasil miscigenado por vários grupos humanos
formadores de uma mesma nação rica em diversidade cultural, a
desigualdade das relações étnico-raciais é um tema atual na nossa
sociedade, pois o preconceito existe e influencia com toda força nas
relações sociais.
Em Peles negras, máscaras brancas, o pensador Frantz Fanon
trabalha com a dicotomia de colonizador e colonizado. Esse autor
disserta sobre o fato do negro buscar “embranquecer-se” como um
modo de superar o complexo de inferioridade. Desse modo, a língua
foi um dos instrumentos utilizados pelos colonizadores na América
Latina para ferir a identidade cultural desse grupo. Frantz Fanon
aponta também para um “[...] complexo de inferioridade devido ao
sepultamento de sua originalidade cultural – toma posição diante da
linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana.”
(FANON, 2008, p. 34).

- 109 -
Precisa-se conscientizar que não existe superioridade entre os
povos, mas diferenças culturais que se deve respeitar seja ela racial,
social ou de gênero. Nesse ponto, a importância de conhecer em que
sociedade vive-se para o entendimento da posição de cada cidadão
com o intuito de procurar soluções para problemas arraigados na
sociedade como o preconceito. Uma das maneiras de redução das
diferencias étnico-raciais é por meio de medidas que contemplem
políticas públicas explícitas no que concerne a educação para a
identificação do outro.
Para isso, escolheu-se o conto “Vitória da Noite”, do livro
Negros em Contos. O escritor desse livro é um dos mais destacados
intelectuais negros contemporâneos – poeta, dramaturgo, crítico
literário, ensaísta, contista e romancista – Cuti, pseudônimo de Luiz
Silva, (Ourinhos/SP, 31/10/1951), formou-se em Letras-Francês pela
Universidade de São Paulo (USP), é Mestre em Teoria da Literatura e
Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP).
As produções literárias de Cuti são marcadas, em grande
medida, pela afirmação de uma consciência étnica afrodescendente, a
qual trabalha prioritariamente os problemas que envolvem os negros.
Dessa maneira, o que interessa neste estudo, porque mais recorrente,
é a faceta empenhada e circunscrita em um engajamento literário. Cuti
escreve num momento de profunda discussão sobre a produção
cultural, bem como sobre as representações literárias e históricas de

- 110 -
brasileiros afrodescendentes, sobretudo nos movimentos e nas
organizações negras.

“Vitória da Noite”
No conto “Vitória da Noite”, os personagens representam a
diversidade de pesquisadores da cultura afro-brasileira durante o
lançamento do livro de poemas Vitória da Noite, de Ednardo Santos,
ocorrido em uma noite de setembro, no Lisboa Cultural Clube. Entre
eles, destacam-se: Mendes Fontoura, o poeta Vieira, Ednardo Santos,
Maria Inês, Ezequiel Agdebola, Olavo Batista, Célia, Berenice, a
pesquisadora de Solano Trindade (apenas mencionada), o porteiro
nordestino, a jovem vítima de racismo, o motorista que comete o ato
de injúria racial, o deputado federal Leonardo, os estudantes
africanos, a declamadora de poemas e o Grupo Negro Universidades
(estudantes acadêmicos) e Grupo Palmarinos. Cumpre observar,
porém, que o narrador em terceira pessoa centra seu foco em três
personagens principais: Mendes Fontoura, Ednardo Santos e Maria
Inês.
São três os ambientes retratados na narrativa: o centro de
militância negra, o interior do carro de Maria Inês, que se desloca em
direção ao apartamento dela, e o próprio apartamento dessa
militante. A ação narrativa desenvolve-se na sede do movimento
negro (primeira parte); dentro do carro e do apartamento de Maria
Inês (segunda); por último (terceira), no Lisboa Cultural Clube e,

- 111 -
novamente, no apartamento de Maria Inês. As ações acontecem
simultaneamente nas três partes mencionadas.
Predomina, dessa forma, um ambiente fechado (no caso do
clube), em que se destaca, em especial, a militância e uma grande
quantidade de negros – tanto que o professor Mendes Fontoura sente-
se incomodado: “Preferia o ambiente universitário, onde negro era
puro conceito, submetido a um bisturi analítico [...]”. (CUTI, 1996, p.
85-86). Além do clube, algumas cenas desenrolam-se, de forma breve,
dentro do automóvel e no apartamento de Maria Inês, quando se
mescla o tempo cronológico a partir do devaneio etílico de Mendes
Fontoura.
O baile, envolvendo a execução de músicas de origem negra e
a união de afro-brasileiros, aparece como uma das estratégias
utilizadas pela militância para angariar fundos e estimular a negritude.
Ele acontece após as atividades culturais de declamação de poemas,
do lançamento do livro Vitória da Noite e dos discursos sobre a
militância negra. Logo, há um primeiro momento destinado à
militância e outro ao divertimento dos participantes.
Sucedem-se, assim, duas formas de manutenção dos ideais
afrodescendentes, a conservação de uma tradição que prima pelo
encontro, pela dança, pela junção da diversão e da arrecadação de
fundos e que se tornou convencional entre os militantes negros no
Brasil e, antes disso, a oportunidade para a valorização dos costumes
da raça, da exaltação cultural. “O som de um atabaque foi abrindo um

- 112 -
espaço. Era o Grupo Palmarinos que iniciava a sua roda de poemas”.
(CUTI, 1996, p. 89-90).
Os temas analisados são: a apropriação cultural pelos
intelectuais brancos da cultura negra, as formas de militância entre os
ativistas afro-brasileiros, as referências aos intelectuais da cultura
negra e o lançamento de livros tanto dos afro-brasileiros quanto de
brancos. Em relação ao primeiro tema analisado, Mendes Fontoura
(branco) é um professor universitário especializado em assuntos
pertinentes ao negro, com a preferência pelo ambiente universitário
ao do ativismo político. A titulação acadêmica legitima um discurso de
Mendes Fontoura, pois os títulos universitários permitem-lhe
discursar sobre um grupo étnico a que não pertence. Esse dado
confirma a pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), que indica que, mesmo com as políticas de ações afirmativas
que têm ocorrido no Brasil, o percentual de afro-brasileiros com título
de doutorado é inferior aos de cor branca12.
Embora Mendes Fontoura não seja portador de uma
subjetividade negra e tenha pouca intimidade com o ambiente da
militância, o reconhecimento internacional possibilita-lhe discursar
sobre a cultura afro-brasileira. Ele é convidado para participar de um

12
Os dados são do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) de 2010, que foram organizados pela Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Os negros têm menor
representatividade conforme aumenta o grau de titulação: eles são apenas 0,11%
dos mestres e 0,03% dos doutores.

- 113 -
encontro em uma associação de cultura negra, em virtude do seu
histórico como sociólogo.

Por mais solidário que seja às mulheres, um


homem não vai vivenciar o temor permanente da
agressão sexual, assim como um branco não tem
acesso à experiência da discriminação racial ou
apenas um cadeirante sente cotidianamente as
barreiras físicas que dificultam ou impedem seu
trânsito pelas cidades. (DALCASTAGNÈ, 2005, p.
19).

A crítica da apropriação cultural de um grupo étnico é visível


porque Mendes Fontoura detém o conhecimento da história dos
negros e sente-se apto a discorrer sobre ela. O sentimento dele, nesse
ambiente, reflete seu o mal-estar e/ou sua falta de jeito, o que
simboliza uma pessoa deslocada do seu círculo de convívio social. O
conflito reside no fato de o professor dedicar-se apenas às pesquisas
acadêmicas, ficando restrito ao plano teórico, enquanto que, no
centro de militância, as propostas de mudança da estrutura social
situam-se no plano prático.
O professor, no conto, encontra-se fora do ambiente
acadêmico. Sua participação no evento deve-se ao fato de ser o
prefaciador do livro Vitória da Noite, de Ednardo Santos. Mendes
Fontoura prefere mais o ambiente acadêmico ao da militância,
sentindo-se deslocado no meio de tantas pessoas negras. A crítica
torna-se visível na inserção de uma pessoa branca no reduto dos
negros, ou seja, uma situação recorrente na sociedade brasileira
- 114 -
inverte-se, já que normalmente vemos poucos negros em cargos de
destaques em uma sociedade dominada por brancos. Florestan
Fernandes (1978, p. 251, v. 2) argumenta que o negro: “[...] nas
sociedades de elite, quando lhe é permitido o acesso, é obrigado a ficar
isolado, não podendo ali se manter”. A sensação do professor é a
mesma de muitos afro-brasileiros, que podem sentir-se isolados em
alguns ambientes de prestígio social frequentados majoritariamente
por brancos.

Diante dele aqueles homens e mulheres


provocavam, contudo, um incômodo, uma falta de
jeito, um certo tremor nas pernas. Preferia o
ambiente universitário, onde o negro era puro
conceito, submetido a seu bisturi analítico, o que
lhe trazia certo prazer, sobretudo quando se
tratava do flagelo dos escravos, a discriminação
tripla da mulher negra e mulata e outros temas
afins. (CUTI, 1996, p. 85-86).

Mendes Fontoura está embriagado desde o início do conto.


Dessa forma, um conflito vislumbra-se com o intelectual nessa
situação. A crítica ao triplo deslocamento exibe-se: o primeiro, um
branco no meio dos negros; o segundo, ele está fora do ambiente
acadêmico; por último, uma referência acadêmica em nível
internacional encontra-se bêbado em um evento solene. Desse modo,
nota-se a sátira a esse personagem por ele ser mostrado ébrio,
enquanto os demais personagens encontram-se sóbrios.

- 115 -
O fato de ministrar cursos, dar palestras (Mendes Fontoura,
por exemplo, palestra sobre Zumbi dos Palmares, na Universidade
Federal do Ceará), a produção acadêmica de livros e a participação em
uma banca de dissertação demonstram a rotina acadêmica do
professor. No conto, Mendes Fontoura está novamente deslocado,
pois divide o evento com duas pesquisadoras negras, além de – há uma
possibilidade –Abdias do Nascimento. Outra crítica nota-se ao ser
mencionado que Mendes Fontoura era o único palestrante branco
entre os negros. Assim, a mesma sensação que teve ao ser inserido no
centro de militância é reproduzida no evento sobre negritude. Além
disso, o professor inveja Abdias do Nascimento – com quem já tivera
atritos ideológicos – em razão de seu desejo de também ter uma
carreira política.

Não, querida. Tenho muito trabalho neste final de


semana. E segunda-feira faço parte de uma banca
examinadora.
Tese, doutor? Perguntou Ednardo.
É. Aliás, você deveria comparecer. É sobre Solano
Trindade. Uma moça muito consciente a
mestranda.
Negra? inquiriu Célia.
Não. Loiríssima. Mas, sabe, pela postura dela, nem
parece que é filha de alemães. Progressista a moça!
(CUTI, 1996, p. 91).

A crítica maior desse conto reporta ao negro que possui um


número reduzido de professores com a titulação de doutorado.

- 116 -
Mendes Fontoura e a pesquisadora de Solano Trindade13 apresentam
estudos produzidos para um grupo étnico diverso do seu. Desse modo,
eles apropriam-se da temática da cultura negra para realização de seus
estudos. Mais uma vez, os universitários brancos trabalham com a
temática da identidade negra no ambiente acadêmico, enquanto aos
afro-brasileiros resta apenas no espaço da militância. Portanto,
Mendes Fontoura costuma participar de eventos acadêmicos rodeado
de pessoas brancas, sendo isso a provável razão do repúdio do
professor ao evento com palestrantes negros.
O poeta Ednardo Santos questiona-se sobre o interesse de
algumas pessoas brancas quanto à temática do racismo, da
discriminação racial e da exclusão do negro: “[...] Por que certos
brancos (e incluía o professor Mendes) intelectuais tanto defendem o
negro?” (CUTI, 1996, p. 91). Logo, essa pergunta reflete a dificuldade
de acesso do negro ao sistema universitário e, consequentemente, do

13
Francisco Solano Trindade nasceu em 24 de julho de 1908, no bairro de São José,
em Recife. Solano Trindade fundou, junto com Abdias do Nascimento, o Teatro
Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro, em 1944. Cinco anos mais tarde, ele
inaugura ao lado da esposa e do sociólogo Edison Carneiro (1912-1972), o Teatro
Popular Brasileiro (TPB), que contava com um elenco formado por domésticas e
operários. Os espetáculos de canto e dança apresentados pelo TPB foram levados a
vários países da Europa. Ele termina seus dias pobre e esquecido numa clínica no Rio
de Janeiro, onde faleceu vítima de pneumonia, em 1974. O escritor publicou Poemas
Negros (1936), Poemas de uma vida simples (1944), Seis tempos de poesia (1958) e
Cantares ao meu povo (1961). Nesses livros é contemplada a condição do afro-
brasileiro e destacam-se os contrastes existentes na sociedade brasileira. Disponível
em: http://150.164.100.248/literafro/data1/autores/129/dados1.pdf. Acesso em:
28 fev. 2017.

- 117 -
desenvolvimento de pesquisas sobre a temática racial pelos próprios
negros.
O segundo tema analisado refere-se às formas de militância
entre os ativistas afro-brasileiros. Desse modo, foca-se em Maria Inês,
no poeta Vieira, em Ednardo Santos, em Ezequiel Agdebola, no Grupo
Negro Universidades e no Grupo Palmarinos. Em relação a Maria Inês,
ela é uma mulher negra militante, solteira, 44 anos de idade,
governanta de uma família tradicional, com independência financeira,
apartamento próprio e possui um relacionamento não oficializado
com o professor Mendes Fontoura.
Essa personagem é responsável pela recepção do professor
Mendes Fontoura no Lisboa Cultural Clube e por conduzi-lo até o
apartamento dela devido à embriaguez. Uma das formas de Maria Inês
assumir sua negritude, além da militância, é através de seu cabelo. Ele
caracteriza-se como um traço corpóreo que demarca o pertencer ao
grupo afro-brasileiro. Assim, os cabelos significam a afirmação ou a
negação de um traço da identidade, de tal modo que o fato de Maria
Inês não alisá-los expressa a afirmação de sua negritude, além do
distanciamento de um ideal de brancura.

Oh, Maria Inês!... Como vai?


É, Ednardo, agora ela está assumindo a identidade
da raça. Não alisa mais o cabelo. Ficou melhor, não
ficou? adiantou-se o mestre, fingindo um
entusiasmo.
Maria Inês riu um pouco sem jeito. (CUTI, 1996, p.
90).
- 118 -
O alisamento do cabelo é um processo no qual as mulheres
negras podem mudar a sua aparência para imitar a dos brancos.
Durante os anos de 1960, os negros trabalhavam ativamente para
criticar, desafiar e combater o racismo, bem como assinalavam a
obsessão dos negros com o cabelo liso, reflexo de uma mentalidade
colonizada. Naquele momento, em que os penteados afros,
principalmente o black, entraram na moda como um símbolo de
resistência cultural à opressão racista, isso foi considerado uma
celebração da condição do(a) negro(a).

O discurso da militância negra em torno do cabelo


é basicamente contestatório e pretende a
destruição de imagem dual construída na
sociedade ocidental. Nela, o negro encontra-se
associado à feiura, à burrice, à sujeira, etc., em
contraposição ao branco, visto como bom, belo e
justo. O discurso do movimento negro, portanto,
propõe uma inversão simbólica. Na perspectiva do
movimento negro, a marca do negro, antes
submetido a um processo de manipulação, visando
ao embranquecimento, torna-se determinante na
construção da identidade negra. (FIGUEIREDO,
2008, p. 249).

Além de Maria Inês, nesse ambiente também se encontra o


pensador africano Ezequiel Agdebola, da Nigéria, um doutor na área
dos estudos africanos. Vale recordar que, em contexto mundial,
aquele país possui o maior contingente populacional de negros, além
de ter sido local de origem de muitos dos escravos trazidos da África

- 119 -
no período colonial brasileiro. O contato com discentes bolsistas ou
estudiosos originários do continente africano acontece para trocas
interculturais, tanto no âmbito de estudos quanto no de estratégias
para a militância.
O poeta Vieira, com o dom da oratória, a exemplo do professor,
também almeja uma carreira política como vereador, com vistas a
estabelecer uma articulação entre o espaço da militância e o da
política, uma vez que Abdias do Nascimento representa um exemplo
bem-sucedido desse modo de atuação. Ele milita no Lisboa Cultural
Clube, reverencia Zumbi dos Palmares e revela para os frequentadores
desse clube um caso de racismo acontecido em outro famoso clube da
cidade.
A participação na política é de extrema importância para
corrigir os “erros” do passado, como a omissão por direitos e o
estabelecimento da soberania de um país marcado pela diversidade.
Com representantes políticos identificados com as pautas dos afro-
brasileiros estabelece-se uma conexão entre o movimento negro e a
criação de leis, por exemplo, para criminalizar a prática de injúria e/ou
de discriminação racial, bem como a elaboração de políticas públicas
afirmativas. Logo, a luta do cidadão negro tem sido contínua na
conquista de seu espaço de direito na sociedade, por igualdade e
justiça em um país regido pela democracia. Florestan Fernandes (1978,
p. 71-72, v. 2) apresenta algumas dessas questões através do
depoimento de um representante do movimento negro.

- 120 -
Nós precisamos ter representantes nas
Assembléias, porque, senão, não teremos meios
para sustentar organizações que trabalhem pelo
levantamento econômico e cultural do negro, pois
a nossa gente é toda pobre e os que melhoram de
vida não querem mais ter relações com os negros.
[...].

Ednardo Santos é o militante negro que lança o livro Vitória da


Noite no encontro do Lisboa Cultural Clube. Ednardo Santos gosta de
bossa nova, segue a religião protestante e desaprova a apresentação
do Grupo Palmarinos, com sons percussivos, além de considerar
ofensiva a leitura de poemas ao som dos instrumentos de percussão.
Em relação ao grupo, Ednardo Santos sente que a leitura de poemas e
o som dos atabaques “[...] e chocalhos davam-lhe nos nervos,
agrediam a sua formação musical erudita e sua religião protestante,
ainda que, esta, um tanto frouxa e, aquela, descontraída pela bossa
nova”. (CUTI, 1996, p. 90). Em outro momento, ele realiza a leitura de
um poema próprio intitulado O início trágico da raça... sobre a história
bíblica de Cam14.

14
Após o dilúvio que deu fim ao caos em que se encontrava a humanidade, os filhos
de Noé: Cham, Sem e Jafé, foram os responsáveis por repovoar a terra com seus
descendentes. Cada um cuidou de repovoar cada continente dos três conhecidos no
Velho Mundo. Sem repovoou a Ásia, Jafé a Europa e Cham a África. O fato que
justificou a inferioridade dos africanos foi uma passagem bíblica em que Cham, seu
filho Canaã e toda sua descendência foram amaldiçoados por Noé. Essa citação
localiza-se no artigo, “Uma abordagem conceitual das noções de raça e racismo,
identidade e etnia”, de Kabengele Munanga. Disponível em:
https://www.ufmg.br/inclusaosocial/?p=59. Acesso em: 28 fev. 2017.

- 121 -
Em outro trecho do conto lemos:

Doutor Mendes...
Pode falar, meu filho.
É o seguinte: o senhor sabe que está chegando
novembro... E o Grupo Universidades Unidas
pretende realizar várias atividades próximas ao Dia
Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro. O
professor começou a ser afetado pela veemência
com que o rapaz passara a expressar-se. (CUTI,
1996, p. 87).

Esse jovem representa uma vertente dos militantes e dos


estudiosos sobre a cultura afro-brasileira no ambiente acadêmico. Tal
grupo constitui-se como um espaço que busca a efetiva cidadania da
juventude negra, o acesso ao ensino superior de qualidade e a
representação de negros na universidade. Diferentemente do Grupo
Palmarinos, que realiza uma apresentação artística com declamação
de poemas ao som de instrumentos percussivos, ou seja, a militância
através da arte.
O Grupo Palmarinos utiliza uma parte do tempo destinado ao
lançamento do livro de Ednardo Santos, recaindo o foco das atenções
sobre o grupo artístico. A cena parece sinalizar a disputa de egos entre
Mendes Fontoura, Ednardo Santos, o poeta Vieira e o Grupo
Palmarinos, pois cada um desses personagens ou o grupo tem o seu
momento de destaque na narrativa – mesmo assim, um deseja
sobressair-se ao outro. Logo, essa disputa aponta para os conflitos

- 122 -
ocorridos entre os participantes e não participantes do ativismo negro
no centro da mesma militância.
O terceiro tema diz respeito à referência a personalidades da
cultura negra. Entre eles, destacam-se: Zumbi dos Palmares, Abdias do
Nascimento, Beatriz Nascimento, Neuza Souza Santos, Solano
Trindade e Carlos Assumpção. Esse dado é interessante por resgatar
personagens reais da cultura afro-brasileira, sendo que se traz para o
espaço da literatura exemplos de militantes e escritores que têm
influenciado a cultura negra na luta antirracista. Logo, essa mescla de
personagens reais e ficcionais demonstra a valorização da
identificação com a memória afro-brasileira.
Zumbi dos Palmares é o maior expoente da resistência afro-
brasileira na época do Brasil Colônia. Ele colaborou para o combate
contra a condição dos cativos por meio de núcleos de resistência desde
o princípio da colonização, no século XVI. Daquele período, destaca-se
o Quilombo dos Palmares, no qual escravos de um engenho
pernambucano, rebelados, refugiaram-se na Serra da Barriga, na
região conhecida como Palmares, onde organizaram um quilombo no
final do século XVI. Zumbi dos Palmares possui papel de protagonista
daquele território, sendo a data da sua morte declarada o Dia Nacional
da Consciência Negra. No conto, justamente nessa data, será realizado
um evento sobre a cultura negra, na Universidade Federal do Ceará
(UFC).

- 123 -
E nesse sentido, além de uma manifestação que a
gente pretende realizar com os africanos bolsistas,
vamos fazer um ciclo de palestras. Já convidamos a
historiadora negra, Beatriz do Nascimento, a
psicóloga, também negra, Neuza Souza Santos e,
para o time de alto nível, gostaríamos de contar
com a sua presença. Será que é possível? (CUTI,
1996, p. 87).

Para o evento estudantil, os intelectuais que confirmam


presença são Beatriz Nascimento15 e Neuza Souza Santos16, além de os
organizadores estarem: “[...] fazendo o possível para trazer o deputado

15
Maria Beatriz Nascimento nasceu em Aracaju-SE, em 12 de julho de 1942. Ela e
seus dez irmãos migraram com a família para o Rio de Janeiro na década de 1950.
Aos 28 anos, iniciou o curso de graduação em História, na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), formando-se em 1971. Concluiu a pós-graduação lato sensu
em História, na Universidade Federal Fluminense (UFF), com a pesquisa Sistemas
alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas, em 1981. Seu
trabalho mais conhecido e de maior circulação foi o filme Ôri (1989), com roteiro de
sua autoria, dirigido pela socióloga e cineasta Raquel Gerber. O filme, narrado pela
própria Maria Beatriz Nascimento, apresenta sua trajetória pessoal como forma de
abordar a comunidade negra em sua relação com o tempo, o espaço e a
ancestralidade, emblematicamente representados na ideia de quilombo. Maria
Beatriz fazia mestrado em comunicação social na UFRJ, sob orientação de Muniz
Sodré, quando sua trajetória foi brutalmente interrompida. A militante foi
assassinada ao defender uma amiga do companheiro desta última. Faleceu em 28 de
janeiro de 1995, no Rio de Janeiro, e deixou uma filha. Disponível em:
http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/mariabeatriz. Acesso em: 2 jan.
2017.
16
Neuza Souza Santos nasceu na Bahia, em 30 de março de 1948. Ela militou contra
o preconceito e pela igualdade racial no país desde a década de 1980. Psicanalista
de formação, escreveu artigos, crônicas e livros. Entre seus escritos destaca-se o
estudo de caso publicado em forma de livro Tornar-se Negro (1982). Nesse livro
demonstra-se como o negro é subjugado em uma estrutura para ele desfavorável,
através de categorias psicanalíticas. Ela faleceu em 20 de dezembro de 2008.
Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=3166&lang=fr. Acesso em: 28 fev.
2017.

- 124 -
federal Abdias do Nascimento”. (CUTI, 1996, p. 87). A articulação do
ambiente da militância traz o nome desses três personagens
consagrados dentro do ativismo social no Brasil. Dessa maneira,
percebe-se a presença de intelectuais negros (tanto do homem quanto
da mulher) que contribuem com perspectivas diferentes sobre a
experiência do negro, bem como a visão a partir do(a) afro-
brasileiro(a) como produtor de um conhecimento no âmbito da
militância ou da academia.
O nome de Abdias do Nascimento, que foi deputado federal
pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) de 1983 e 1987, trouxe
certo desconforto a Mendes Fontoura, porque suas aspirações
políticas foram inviabilizadas devido a seu acanhamento. Cumpre
lembrar que Abdias do Nascimento foi um militante e um acadêmico
que, a partir das experiências com a cultura popular negra, levou tais
experiências para o estudo no âmbito universitário e para a
implementação de políticas públicas, sendo que Mendes Fontoura é
um intelectual estritamente acadêmico, sem o devido
desenvolvimento de uma carreira de ativista e/ou de político.
Em relação a Solano Trindade, destaca-se que ele é o tema de
uma pesquisa acadêmica cuja defesa contará com Mendes Fontoura
na banca de avaliação. A figura de Solano Trindade constitui-se em
verdadeiro ícone no campo da literatura afro-brasileira. Sua atuação
como poeta e agitador cultural destacou-se no momento em que os
brasileiros remanescentes de africanos incrementavam as lutas em

- 125 -
prol de sua afirmação identitária, inclusive, através de organizações de
cunho social e político. Envolvido com o pensamento de esquerda, o
autor construiu uma obra em que o fator econômico e as
desigualdades sociais são abordados em relação íntima com as
questões de raça e cor.
É relevante observar que a poesia desse autor não se volta para
a cultura do povo de modo abrangente, mas se dedica de maneira
muito especial, e até mesmo militante, à cultura afro-brasileira. O
poeta “fala” de dentro dessa cultura, ou seja, o eu lírico é um eu que
se quer e se vê como negro. Assim sendo, a experiência poética
desenvolve-se a partir de um ideal de justiça e liberdade, ainda
distante de ser conquistado pelo segmento popular e negro. Os
poemas de Solano Trindade recorrem à memória e à história dos
afrodescendentes, a poetizar fatos de injustiça e a falta de liberdade
do negro. No conto, além do destaque dado ao poeta Solano Trindade,
parte de um famoso poema de outro poeta negro é citada:

Senhores,
Eu fui enviado ao mundo para protestar
Mentiras, ouropéis,
Nada, nada me fará calar... (CUTI, 1996, p. 96).

Essa segunda estrofe do poema “Protesto” de Carlos


Assumpção17 é mencionada quando Ednardo Santos conversa com o

17
Carlos de Assumpção nasceu em Tietê, São Paulo, em 23 de maio de 1927. Ele é
autor do poema “Protesto”, com o qual ganhou o primeiro lugar no Concurso de

- 126 -
deputado federal Leonardo. O poema carrega em suas palavras um
símbolo de força, recontando a história do negro a partir de seu
próprio ponto de vista. Os militantes negros mencionados, cada um
em seu tempo, contribuíram para a cultura afro-brasileira, seja por
meio das artes e/ou dos estudos acadêmicos.
O quarto tema analisado é o lançamento de livros, tanto dos
afro-brasileiros quanto de brancos. No encontro que se realiza na
agremiação tem-se o lançamento do livro Vitória da Noite, além de
comentários sobre os livros (acadêmicos e um de poesia) publicados
pelo professor Mendes Fontoura. Duas vertentes de escritores são
apresentadas: uma pelo escritor negro Ednardo Santos e outra pelo
professor Mendes Fontoura.
Esse evento caracteriza-se como um encontro de artistas afro-
brasileiros, cujo objetivo é a divulgação de seus trabalhos. Dessa
forma, a cultura afro-brasileira ganha um caráter de ativismo com o
lançamento do livro e da realização do sarau. Ednardo Santos obteve
sucesso com o lançamento do livro (financiado por ele próprio) e a
seção de autógrafos, sendo que, para ter maior prestígio com a
publicação, convocou o intelectual branco (Mendes Fontoura) para a

Poesia Falada, de Araraquara, em 1982. Tal poema marcou época e simbolizou a


ascensão e as reivindicações da intelectualidade negra do estado de São Paulo. Esse
escritor tornou-se referência obrigatória para as novas gerações e foi, ainda, incluído
em diversas antologias em inglês, francês e alemão. O poema é considerado o Hino
Nacional da luta da Consciência Negra Afro-Brasileira. Disponível em:
http://150.164.100.248/literafro/data1/autores/39/dados1.pdf. Acesso em: 28 fev.
2017.

- 127 -
realização do prefácio do livro, – isso para que o Vitória da Noite
tivesse a legitimidade e/ou passasse pelo crivo de um pensador
acadêmico. Sobre a dificuldade de acesso dos membros da
comunidade negra, entre outros grupos marginalizados, às esferas da
produção cultural, Regina Dalcastagné (2005, p. 20) destaca:

É claro que a exclusão de determinados grupos não


é algo exclusivo do campo literário. As classes
populares, as mulheres, os negros possuem
maiores dificuldades para acesso a todas as esferas
de produção discursiva: estão sub-representados
no parlamento (e na política como um todo), na
mídia, no ambiente acadêmico. O que não é uma
coincidência, mas um índice poderoso de sua
subalternidade.

Os afro-brasileiros, bem como outros grupos marginalizados –


tais como as mulheres, os homossexuais e os índios –, além de uma
sub-representação na narrativa do cânone literário, também possuem
dificuldades para lançarem-se escritores. Com a publicação do Vitória
da Noite, Ednardo Santos torna-se um dos poucos escritores negros a
ter um livro lançado. Devido ao sucesso desse livro, ele “Inquietou-se
com o dinheiro e cheques no bolso, resultado do lançamento, pois fora
uma edição por ele financiada”. (CUTI, 1996, p. 98). Diferentemente
de Mendes Fontoura, que lança livros em livrarias e congressos
acadêmicos, Ednardo Santos fica restrito ao ambiente da militância.
Em contraposição ao quadro acima, as características mais
comuns do escritor da literatura contemporânea podem ser

- 128 -
observados a partir do doutor Mendes Fontoura. Ele é branco,
professor universitário, tem mais de quarenta anos de idade, é de
classe média e reside em uma grande cidade. Além disso, conta com
subsídios de instituições públicas e com a participação de editoras para
o lançamento de livros e de artigos sobre a temática da negritude.
Essas características correspondem à observação feita por Regina
Dalcastagnè (2005, p. 15), ao afirmar que: “Os lugares de fala no
interior da narrativa também são monopolizados pelos homens
brancos, sem deficiências, adultos, heterossexuais, urbanos, de classe
média...”
É preciso notar, ainda, que o título do conto e do livro cujo
lançamento realiza-se é “Vitória da Noite”. Na articulação metafórica
desse espaço de narrativa questiona-se: que vitória? Que noite?
Enfim, venceu a noite, representada pelo baile que desalojou a festa
de lançamento? Venceu a noite em que o poeta Ednardo Santos,
afinal, quis dar-se nos braços de Maria Inês? A noite de bebedeira
venceu o intelectual pretensioso e impotente? Ou a vitória é da “raça”,
metaforicamente, na noite? Na verdade, o plano da intelectualidade é
inteiramente descentrado, seja do professor, que não está no
ambiente acadêmico e bêbado, ou do poeta, vencido pelo baile.

Considerações finais
A diversidade étnico-racial brasileira é a sua identidade, por
isso é de pertinente valor aprender o convívio com o outro, com o

- 129 -
conhecimento, a discussão e o respeito, pois o reconhecer-se como
pertencente a um grupo sem preconceitos torna-se de extrema
importância, para que se mostre uma sociedade livre e consciente.
Cada grupo social tem sua cultura e com esta seus costumes, regras e
comportamentos dotados de particularidades. Logo, a cultura é
responsável pela formação da personalidade das pessoas com a
constituição de seres diversos que também são preceptores de
culturas ímpares.
No conto analisado percebe-se a diversidade de personagens
no cotidiano de um encontro em um centro de militância do
movimento negro. As relações étnico-raciais tornam-se presentes ao
destacar personagens afro-brasileiros e brancos em situações de
interação. Nota-se também que os estereótipos relativos aos negros
demonstram-se na discriminação da mulher no trânsito, a estudante
em um clube negro e de um personagem ao tentar adentrar em um
condomínio em uma hora tardia.

- 130 -
Referências

BERND, Zilá. Poesia negra brasileira: antologia. Porto Alegre: AGE: IEL:
IGEL, 1992.

CUTI [Luiz Silva]. Negros em Contos. Belo Horizonte: Mazza Edições,


1996.

DALCASTAGNÈ, Regina. A personagem do romance brasileiro


contemporâneo: 1990-2004. Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea, Brasília, n. 26, p. 13-71, jul./dez. 2005. Disponível
em:
http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/2123/1687.
Acesso em: 26 jul. 2017.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA,


2008.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de


classes. 3. ed. São Paulo: Ática, 1978. 2 v.

FIGUEIREDO, Ângela. Dialogando com os estudos de gênero e raça no


Brasil. Raça novas perspectivas antropológicas. Salvador, 2 ed. rev.
2008. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/
8749/1/_RAC%CC%A7A_2ed_RI.pdf_.pdf. Acesso em: 26 dez. 2016.

MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de


raça e racismo, identidade e etnia. Disponível em:
https://www.ufmg.br/inclusaosocial/?p=59. Acesso em: 28 fev. 2017.

- 131 -
Entre a voz e o silêncio: o mágico e o sagrado como parte da
escrita de vivente de Conceição Evaristo em Histórias de
leves enganos e parecenças

Natália Regina Rocha Serpa18

Introdução
Das histórias, eu não sei dizer qual é mais. Como
uma loboriosa aranha, tento tecer essa diversidade
de fios. Não, meu labor é menor, os fios já me
foram dados, falta somente entretê-los, cruzá-los e
assim chegar a teia final. (EVARISTO, 2017, p. 101).

O processo de colonização instaurou também uma única forma


de pensar o mundo. A racionalidade do europeu foi por muitos séculos
a única maneira de se pensar o ser e nesse contexto a cultura africana
fora relegada ao espaço de subalternidade, chegando no máximo a ser
considerada como exótica, mas nunca levada em consideração como
narrativa válida. A descolonização não impediu os resquícios da
hegemonia europeia sobre a cultura africana. No campo literário, a
escrita negra precisou por muito tempo tatear entre epistemologias e
conceitos deslocados que não davam conta da realidade presente nas
narrativas africanas. Elementos como o maravilhoso, o mágico e o
fantástico sempre estiveram presentes nas narrativas ancestrais dos

18
Doutoranda em História da Literatura, FURG.

- 132 -
pretos, sejam elas orais ou escritas, mas tais elementos só ganharam
notoriedade a partir das publicações de Edgard Alan Poe.
Achille Mbembe, no seu livro Crítica da razão negra (2017) nos
alerta que é necessário e urgente desconstruir a tradição que se coloca
como único discurso e apaga a história dos diferentes. Para Mbembe,
se partirmos do paradigma europeu a África e o negro só existiriam a
partir dos textos que os constroem como ficção do outro e o perigo de
tais construções está no risco de que quando uma voz negra autêntica
tentar exprimir-se fora do discurso preexistente será silenciado, ou
ainda terá seu próprio discurso mascarado pela imitação.
A escrita de Conceição Evaristo, seja em prosa ou em verso, se
aproxima da oralidade e é atravessada por causos extraídos de uma
memória ancestral, causos estes considerados inexplicáveis para a
maioria das epistemologias e categorias analíticas vigentes. São
histórias ligadas a magia religiosa, aos maravilhosos deuses africanos,
aos fantásticos encantados e por vezes a insólita amargura africana
corporificada através do banzo. Para Evaristo a escrita nasce da
memória e se corporifica como ente vivente, é uma escrita que
consegue ser ao mesmo tempo fala, signo e imagem sem perder seu
cunho ficcional. Para Maringolo (2018) a escrita de Evaristo está
intimamente ligada à ancestralidade e esse entrelaçamento é uma
maneira de perceber e contar o mundo de forma crítica e política, uma
forma de afirmar identidades e legitimar vozes.

- 133 -
As mulheres da ficção de Evaristo são a representação de uma
condição social e existencial vivida pela própria autora. As palavras dão
a essa escritora a oportunidade de desnudar-se enquanto mulher
negra e periférica, sua escrita reivindica a ocupação de lugares antes
invisibilizados e através desse desnudamento ressurgem personagens
que assim como sua autora estão ligadas ao mundo sagrado e mágico
da tradição africana e na maioria dos casos é essa tradição que lhes dá
força, que as empodera, transformando-as em um abrigo das
memórias.
Nos escritos de Evaristo o sagrado e o mágico emergem à
superfície narrativa através da ancestralidade, que por sua vez está
intrinsecamente ligada ao mundo dos antepassados, dos seres
sobrenaturais, e na escrita negra essa também é uma forma de pensar
o homem de maneira panteísta, ou seja, de liga-lo à natureza. Oliveira
(2007), comenta a ancestralidade da seguinte maneira:

A ancestralidade é o princípio mítico que permite a


„logia‟, ou seja, a compreensão e a estruturação de
seus mundos que se reflete na concepção de
universo, de tempo, na noção africana de pessoa,
na fundamental importância da palavra e na
oralidade como modo de transmissão de
conhecimento, na categoria primordial da força
vital, na concepção de poder e de produção, na
estruturação da família, nos ritos de iniciação e
socialização dos africanos. (Oliveira, 2007, p. 19).

- 134 -
Como ressalta Oliveira (2007), a ideia de ancestralidade liga-se
diretamente com a formação cultural do sujeito. Assim podemos
entender que a vida cultural, principalmente no ocidente, tem sido
transformada pelas vozes que estão às margens, dentre elas as dos
negros. Conceição Evaristo usa a memória ancestral como matéria
prima de sua construção literária. A autora permeia sua narrativa de
um discurso contra-hegemônico que desautoriza a ideia de
democracia racial, permitindo que vozes subalternas sejam ouvidas,
subvertendo o status quo e tirando os negros do lugar social reservado
a eles pela branquitude. Os escritos de Evaristo tornam os negros e
negras agentes de sua própria história e construtores de seus próprios
discursos.
O livro Histórias de leves enganos e parecenças foi lançado em
2016, pela editora malê. A obra é composta de treze contos e assim
como as outras escritas em prosa de Evaristo, esta também é
permeada pelo elemento lírico. Essa mistura entre a oralidade do
contar e o lirismo poético é um traço característico da autora que
ajuda o leitor a digerir a narrativa por vezes apresentada de maneira
insólita. Conceição tem a incrível capacidade de oralizar as histórias,
os causos, as lendas do povo preto, essas narrativas insurgem, às
vezes, por meio de situações inexplicáveis ou simplesmente mágicas.
O presente artigo busca analisar os contos e a novela presentes
em Histórias de leves enganos e parecenças a partir do olhar da
literatura fantástica, e mágica. O inexplicável aparece em quase todos

- 135 -
os contos e nos é entrelaçado a partir da noção de ancestralidade
africana. Os fenômenos da natureza assumem uma conotação mágica
e aparecem para solucionar os problemas ou mesmo como uma
espécie de anunciação, onde somente os entendidos (normalmente os
anciãos) de tais assuntos conseguem perceber. Nesse sentido,
podemos dizer que a memória, ao dar vida a acontecimentos que só
podem ser concebidos no plano mágico, se transforma numa
estratégia narrativa capaz de revelar ao leitor uma nova forma de
pensar, de ser e de existir de uma dada comunidade cujas origens
advêm da diáspora africana.

A magia das histórias africanas

A palavra é um pacto com o tempo. Mesmo que


seja um tempo fissurado entre realidade e sonho
[...]. Paula Tavares.

A escrita africana enquanto fenômeno da língua carrega na sua


composição todo o contexto do colonialismo e põe a prova toda uma
tradição estética profundamente ancorada nos valores eurocêntricos.
Abdias Nascimento ao propor o seu quilombismo alerta que a única
atividade literária possível ao africano era na forma anônima e
impessoal do folclore. Para Abdias a escrita literária, fora inicialmente,
um oficio amplamente ocupado pelos brancos e mesmo quando estes
tinham as melhores intenções ao compor personagens negros, faltava-

- 136 -
lhes algo além da pura qualificação técnica, faltava-lhes o “lugar de
fala”, faltava-lhes a escrevivência. Nesse sentido, podemos dizer que a
escrita negra emerge já travando uma batalha entre produzir a partir
de um imaginário local e um imaginário hegemônico imposto pelo
colonizador. Com a chegada do pós-colonialismo a escrita negra
reivindica para si o status de Literatura e busca validação a partir de
um espaço escrito onde possa revelar sua alteridade. A cerca disso
Francisco Noa nos coloca:

É assim que, por um lado, no nível da enunciação,


o sujeito se debate, voluntária ou
involuntariamente, entre projetar a sua
subjetividade, ou perseguir o sentido de pertença a
uma comunidade, real ou imaginária. Por outro
lado, no espaço de representação, sobretudo no
nível da narrativa, as personagens e tudo que as
envolvem traduzem as irresoluções relativas à
coabitação, dentro e fora delas, de dois mundos ou
de duas ordens que ora coabitam, ora se
entrechocam. (NOA. 2001.p. 112)

É nesse cenário conflitante que a escrita africana reivindica e


desenha um espaço de possibilidades indeterminadas onde podem
coabitar a história, a memória, a religiosidade, o simbólico e o não-
simbólico, o mágico, o fantástico e o maravilhoso. São narrativas onde
podem ser contadas as práticas dos exercícios ritualísticos sem
julgamentos morais, onde a preservação dos valores transcendentes
da comunidade prevalece sobre os valores individuais.

- 137 -
É importante ressaltar que na escrita, assim como na cultura
africana a ideia de cosmogonia é tratada de maneira harmônica, o
universo das letras africanas é coeso, capaz de abranger até mesmo o
sobrenatural, em tal elemento também habita a harmonia e consegue
subvertê-la instaurando o caos. É importante que percebamos a ideia
de caos não como o contrário do harmônico, mas como parte
integrante do todo, como algo necessário. Nesse sentido o elemento
mágico, produto de feitiçaria (é importante não julgar
pejorativamente o termo) atravessa a maioria das narrativas. O
sagrado e o profano nos são apresentados como face de uma mesma
moeda e isso transforma o africano em um ser diferente que se vê
impossibilitado de apartar o sagrado do secular, o espiritual do
material nas atividades do cotidiano. Dentro da escrita africana há
sempre uma força, um poder ou uma energia latente que permeia
tudo. E isso dá uma outra dimensão a ideia de vida e de morte.
Não podemos negar que as várias formas de magia presentes
em África permeiam a escrita quase que de maneira magnética.
Entretanto, é importante dizer que essas escrituras carregadas de uma
oralidade reatualizada também possuem um grande valor estético,
valor esses nem sempre reconhecido pela crítica literária ocidental.
Nesse sentido, falar na magia na escrita africana não implica em
necessariamente falar apenas de uma narrativa animista pautada nos
mitos e religiosidade locais, até porque o verdadeiro escritor-griot
sabe da impossibilidade de resgatar a inteiramente as tradições

- 138 -
através da escrita, o que o escritor faz ao misturar oralidade e escrita
é traçar um caminho e deixar rastros.

A Literatura negra: um outro olhar através do mágico, do fantástico


e do maravilhoso

Venho de um país de sonho


de uma verdade tão puta
que até mete medo
Ana Mafalda Leite

Ao pensamos a escrita negra seja ela em África ou fora dela,


logo duas imagens nos vem à mente: a primeira delas é de um
continente invadido pelo europeu e submetido por séculos ao tráfico
compulsórios dos negros; a segunda é de um continente já liberto da
escravidão e assolado pela fome e por doenças. Foi a partir dessas
duas visões de mundo que se difundiu a ideia de que a única
possibilidade de escrita africana seria calcada nas memórias dolorosas
ligadas a escravidão e talvez por isso por muito tempo essa escrita fora
destituída do seu valor estético e acusada de não possuir literariedade.
Tzvetan Todorov ao escrever Introdução à literatura fantástica
(2006), define o elemento fantástico como sendo um dilema que se
apresenta ao leitor, pois “em um mundo que é o nosso, (…) se produz
um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo
mundo familiar”. Segundo Todorov após o leitor se ver diante de tal
dilema ele pode adotar duas posturas: a primeira delas seria acreditar

- 139 -
que se trata de um produto da imaginação em que as lógicas racionais
do mundo continuam a regê-lo; a segunda seria acreditar que os
acontecimentos fazem efetivamente parte de uma realidade, e por
isso os confronta com o desconhecimento diante do mundo. Nesses
dois casos é importante lembrar que o leitor precisa estabelecer um
pacto com a narrativa para conseguir a fruição do texto.
O leitor de textos de autoria negra diante das duas opções
apresentadas acima precisa compreender que na escrita africana ou
dispórica o passado e a tradição se metamorfoseiam dando voz a
personagens que são frutos de uma herança ancestral. No caso da
escrita de Evaristo, analisada neste artigo, entre mitos e ritos da
cultura ancestral africana, ecoam as heranças passadas através da
memória. Como é o caso do rito de passagem feminino, vivido por
Ponciá Vicêncio na obra homônima. É importante sinalizar que essa
herança ancestral, bem como o continente africano existiram antes do
período colonial e por isso a escrita negra narra algo muito maior do
que a escravidão.
David Roas, em seu livro A ameaça do fantástico, entende o
fenômeno fantástico presente na literatura, como sendo aquilo que é
impossível de explicar, aquilo que supera os limites da linguagem e por
isso torna-se indizível. Nesse sentido, ainda segundo Roas “o objetivo
do fantástico seria desestabilizar os limites de segurança,
problematizar as convicções coletivas, questionar a validade dos

- 140 -
sistemas de percepção da realidade comumente admitidos”.
(CAMARANI. 2014. p. 168)

a narrativa fantástica provoca – e, portanto,


reflete- a incerteza na percepção da realidade e do
próprio eu; a existência do impossível, de uma
realidade diferente da nossa, leva-nos, por um
lado, a duvidar desta última e causa, por outro, em
direta relação com isso, a dúvida sobre nossa
própria existência, o irreal passa a ser concebido
como real, e o real, como possível irrealidade.
(Roas, 2014. p. 32)

O pensamento desenvolvido por Roas se aplica diretamente as


estratégias usadas por autores africanos ou em situação de diáspora
em suas escritas. Podemos pensar essa escrita como um emaranhado
de vozes dissonantes que gritam o indizível. A prosa de Evaristo é
redimensionada a partir de acontecimentos que não seguem a ordem
natural das coisas e que em um dado momento da narrativa são
aceitos por todos com condição de possibilidade para a apreensão do
mundo. É importante dizer que essa revelação dos mitos, rituais e
valores ancestrais dentro das narrativas ficcionais são uma maneira de
descolonizar o pensamento e evitar uma nova colonização, uma
maneira estética de validar um modo de ser e existir cunhado pela
própria Evaristo como “escrevivência”. Acerca disso Marignolo (2018),
acrescenta:

- 141 -
Debruçar-se sobre a obra de Conceição Evaristo é
deparar-se com uma escrita que foi banhada nas
águas da miséria, mas que sobreviveram e não se
derreteram: os sonhos expressos na narrativa de
Evaristo personificam-se, tornam-se palavra viva,
vivida e transformadora. (MARIGNOLO. 2018. p.
57)

A fala de Marignolo (2018) deixa claro que o projeto literário


de Evaristo é também um projeto crítico e político dentro da literatura
brasileira, um projeto que toma para si “a retomada do passado, da
história, na maior parte das vezes não-oficial”.

O fantástico, o mágico e o maravilhoso presentes nas escrevivências


contadas em Histórias de leves enganos e parecenças.

Lá / do outro lado do céu/ sonhos são pássaros/


buscando poiso nas nuvens/ lá do outro lado desta/
terra/ pesadelos são homens/ buscando poiso em
ruínas/ céu e terra/ pássaros e homens/ nuvens e
ruínas/ são poalhas de um/ tempo/ do outro lado
deste tempo. (Arlindo Barbeitos)

A antologia Histórias de leves enganos e parecenças apresenta


narrativas que dialoga com os outros romances de Evaristo. A autora
mais uma vez faz uso de elementos discursivos recorrentes usados nas

outras escrituras em prosa. A obra em questão leva o leitor a trilhar os


caminhos da literatura fantástica, das narrativas sagradas, contando
causos insólitos que se misturam com suas memórias de infância.

- 142 -
O primeiro conto carrega o título de ‘Rosa Maria Rosa” e conta
a história de uma personagem que apesar de sua doçura nunca
correspondia quando mãos estendidas vinham a sua procura. É um
personagem que se fecha em sua interioridade a procura de elos
emotivos capazes de equilibrarem sua subjetividade bipartida entre o
real e o mágico.

Mas eis que em dia de calor imenso a moça se


distraiu, e calmamente levantou os braços como se
fosse uma ave em ensaio de voo. Todas as pessoas
que estavam por perto viram. A cada gota de suor
que pingava das axilas de Rosa, pétalas de flores
voavam ao vento. Foi descoberto o seu segredo.
(EVARISTO, 2017. p. 20)

A personagem “Rosa Maria Rosa” nos remete as Iyami


Oxorongá, seres que segundo a tradição Iorubá representam o poder
ancestral feminino e os elementos místicos da mulher em seus
aspectos protetor e generoso, perigoso e destrutivo. As Iyami, assim
como a personagem de Evaristo, são conseguem neutralizar os efeitos
negativos de pensamentos, palavras e ações destrutivas que uma
pessoa dirija contra outra ou contra si mesma. Na cena acima nota-se
a presença do maravilhoso através da cosmovisão africana. O
trancamento do corpo de rosa é resolvido quando Homem-natureza-
animal estando em perfeita harmonia revelam a “legendária rosa
negra”. As gotas de suor de Rosa transformam-se em pétalas e essa

- 143 -
transformação é revelada ao leitor quando a autora compara Rosa a
uma ave que tanto ansiava pelo primeiro voo.
Outro conto onde a inserção do maravilhoso fica evidente é no
“Nossa Senhora das Luminescências”. Esta senhora é a representação
da griot africana, responsável por resguardar a ancestralidade da
comunidade. Nesse conto fica evidente a destreza da Evaristo
escritora que consegue captar os ritmos culturais da religiosidade
africana.

Mãe das luminescências também guia o retorno


dos viventes para o lugar de onde viemos. Muitos
tomam os caminhos das viagens derradeira,
seguindo as instruções dela. E, se temerosos estão,
a presença dela é tão confortante que a pessoa
recorda que essa vida terrena é apenas tempo de
preparação para outra vida. (EVARISTO. 2017. p.
36)

A mãe das luminescências é também o retrato do sincretismo


religioso brasileiro. A nossa senhora é uma mistura da religião cristã e
das religiões de matriz africana. Ela passeia por entre os viventes sem
lhes causar espanto e em suas mãos carrega elementos típicos das
religiões africanas. Mais uma vez a harmonia está presente.
No conto “Os pés do dançarino” temos a revelação de um
dançarino que “dançava com a alma nos pés” e por isso conseguiu
grande fama em sua cidade e fora dela. Nesse conto Evaristo adota a
típica postura da griot e deixa que a escrita quase toque a oralidade.

- 144 -
Ela narra um causo que tem como função alertar a comunidade para
que não esqueçam quem são, de onde vieram.

Foi tomado por um desesperado desejo de


arrancar os sapatos que lhes pareciam moles,
bambos e vazios de lembranças em seus pés. Susto
tomou ao puxar os sapatos, quando sentiu as meias
vazias. Deu pela ausência dos pés que, entretanto,
doíam.(EVARISTO. 2017. p. 44)

Os pés de Davenir, o personagem principal, alertam que


memória e esquecimento habitam a mesma morada, ao esquecer de
suas origens ele esquece da alma que habitava em seus pés. No conto
também aparecem as figuras de três anciãs que durante toda vida de
Davenir o ajudaram a seguir em frente, ele não conseguiria ascender
como dançarino sem a ajuda das velhas que representam a
ancestralidade e ao esquecer sua ancestralidade ele esquece de si
mesmo. Na narrativa o estranho e o maravilhoso se confundem
quando os pés do dançarico simplesmente somem e tal fato não causa
nenhum estranhamento em nenhum personagem, nem mesmo no
dançarino.
No conto “Fios de ouro” temos a história da negra Hilama que
tinha os cabelos cor de ouro. Esse conto nos revela que todos
carregamos uma herança ancestral, mas sobre os ombros de alguns
escolhidos pesa a responsabilidade de resguardar essa ancestralidade,
“havia um segredo que só Hilima sabia” e cabia a ela revelar somente
no momento certo.

- 145 -
Os fios começaram a tomar um brilho de ouro. Era
tão reluzente a cabeleira dela que feria os olhos de
quem a contemplava repentinamente. Era preciso
ir olhando pouco a pouco. A notícia correu, era um
comentário só, da senzala à casa-grande. De uma
fazenda a outra. A negra Hilima tinha os cabelos cor
de ouro, pareciam mesmos preciosos. O tempo foi
passando, o espanto e a curiosidade em torno da
aurífera cabeleira foram diminuindo e quase
caindo no esquecimento. Havia um segredo que só
Hilima sabia. Seus cabelos não pareciam ser de
ouro, eram de ouro. (EVARISTO, 2017. p. 50)

O conto caminha na perspectiva das narrativas tradicionais, a


metáfora dos cabelos remete aos quilombos e a resistência dos negros
em suportar a escravidão. A narrativa toma para si o elemento mágico
e o nascer dos fios de ouro já na maturidade de Hilima, é o anuncio de
esperança.

Considerações Finais
Guardadas as singularidades das escrevivências de Evaristo,
torna-se evidente que o fantástico e o mágico são elementos
fundamentais na construção narrativa de Histórias de leves enganos e
parecenças. Temas como a escravidão, a situação dos diaspóricos e a
ancestralidade são narrados a partir de acontecimentos fantásticos,
estranhos e mágicos.
A cosmogonia africana é retratada a partir dos elementos da
natureza. Assim, terra, fogo, água e ar assumem um lugar de destaque,

- 146 -
ocupando por vezes, o status de personagem. Como é o caso do
elemento água presente na novela que finaliza o livro e que tem como
título “Sabela”. A relação da personagem principal com a água dá ao
texto um tom de lembranças ausentes com as quais somente Sabela
sabe lidar.
As narrativas de Evaristo nos mostram que para a escrita negra
o fantástico é parte importante, porque ele sempre fez habitou o
imaginário coletivo africano. A magia emerge no cotidiano dos negros
através das histórias contadas a cada geração e tais histórias assumem
uma representação afetiva.
Esse artigo analisou como a literatura fantástica sempre esteve
presente nas narrativas dos negros. As lendas, os encantamentos, os
ritos de fazem conhecer através de acontecimentos estranhos,
mágicos. É imperioso lembrar que para os negros, que por muito
tempo não tiveram acesso à educação formal, a escrita,
principalmente a literária, além de ser uma forma do sujeito negro
reconstruir a si mesmo é um lugar onde o sujeito em situação de
diáspora pode retornar a sua ancestralidade.

- 147 -
Referências

ARAÚJO. Rosangela de Oliveira Silva. A “escrevivência” de Conceição


Evaristo em Ponciá Vicêncio: encontros e desencontros culturais entre
as versões do romance em português e em inglês. Dissertação de
mestrado. João Pessoa. 2012.

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da


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MARINGOLO, Cátia Cristina Bocaiuva. Ponciá Vicêncio e Becos da


Memória de Conceição Evaristo e a poética da escrevivência. In:
NIGRO, Cláudia Maria Ceneviva; CHATAGNIER, Juliane Camila;
LARANJA, Michelle Rubiane da Rocha (Orgs.) Corpos que se importam:
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Campinas, SP: Pontes Editores, 2018.

NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância


pan-africanista. 3 ed. rev. – São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de
Janeiro: Ipeafro, 2019.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das


Letras. 2001.

- 148 -
Eu-lírico racializado: Corpo e poema

Juliana Cristina Costa19

Introdução
Pensar a literatura como discurso é compreendê-la dentro de
uma esfera discursiva social que pode estabelecer a
interdiscursividade, isto é, a relação com outros discursos já existentes
e que constituem as práticas sociais. Além disso, o discurso é um dos
momentos da prática social e estabelece articulação com outros
momentos: fenômeno mental, relações sociais e mundo material
(RESENDE&RAMALHO, 2011, p.16) e também é um “modo particular
de representar parte do mundo” (op.cit, p.17). O teor ficcional do
discurso literário não anula a presença dos outros momentos da
prática social, apenas o especifica em relação ao seu propósito
enunciativo, entretanto não pode ser visto como desprovido de
investimentos ideológicos, Já que o discurso é ação e representação e
se relaciona dialeticamente com a sociedade (FAIRCLOUGH, 2001). A
partir disto é possível interpelar sobre a categoria “eu-lírico”: Na
poesia contemporânea seria possível considerar a referida categoria

19
Mestra em Estudos Literários, UFJF. Atualmente participa do grupo de estudo
AFECTO (Abordagens faircloughianas de estudos sobre o corpo/discurso
textualmente orientados).

- 149 -
como configurada pela questão racial? Com base na tessitura poética
é possível perceber qual é a identidade racial de quem escreve?
Em sua tese de doutorado Sueli Carneiro a partir da teoria de
Foucault compreende a racialidade como um dispositivo de
poder/saber, isto é, capaz de produzir saberes, poderes e modos de
subjetivação (CARNEIRO, 2005,p.34). Sendo assim, o/a sujeito social
produtor(a) do texto literário estabelece suas interações dentro de um
imaginário onde tal dispositivo, juntamente com outros, opera. Ao
analisar comparativamente o modo como o eu-lírico é configurado nos
poemas de Cristiane Sobral e Ana Elisa Ribeiro é possível perceber que
a identidade racial é perceptível através do modo como o sujeito lírico
é representado. As metáforas do corpo presente nas obras das
escritoras possibilitam observar que o “Eu” em Sobral possui pele
negra e cabelo crespo, já em Ribeiro, o “eu” se configura sem
indicações de características fenotípicas.
As escritoras enquanto sujeitos sociais distintos possuem
diferentes sistemas de representações, isto é, “em uma sociedade com
oportunidades sócio-econômicas e culturais desiguais, não há um
único, mas inúmeros sistemas de representações” (LIMA, 1980, p.70).
Por meio destes sistemas, crenças e valores são sociabilizados, sendo
que pode ocorrer à difusão ideológica, direta ou indireta, de
estereótipos acerca de grupos sociais ou o reforço simbólico do
controle social das ideologias hegemônicas. O “eu” em Ribeiro é
apresentado a partir do sistema de representação da branquitude,

- 150 -
pois dentre as problemáticas do “eu” a questão racial não é relevante,
indicando que o sujeito lírico se encontra na esfera do hegemônico,
não é posto em tensão, embora a temática do gênero esteja presente.
Em A instituição imaginária da sociedade (1982), Cornelius
Castoriadis considera que o imaginário é o componente essencial e
decisivo do simbólico, este último considerado pelo autor como sendo
“a maneira de ser sob a qual se constitui a instituição”. As instituições
são estruturas sociais construídas historicamente e que ditam padrões
de conduta e esquemas de pensamento e percepção e também
exercem o controle social que influenciam na sociabilização dos
sujeitos. Sendo que ao produzir textos, não só literários, a autoria não
se desvencilha do externo, podendo manifestar questões de forma
bastante crítico como reproduzir naturalizações ideológicas.
Sobre a relação do imaginário com o fictício, Wolfgang Iser
expressa que ambos são condição constitutiva do texto literário.
Sendo assim, é possível compreender que a ponte entre literatura e
sociedade é o simbólico e é por meio dele é possível perceber a
interdiscursividade de discursos no âmbito da discursividade literária.
O escritor Cuti esboçou em Literatura negro-brasileira (2010) que “a
literatura alimenta o imaginário” e como discurso é poder.
Nesse artigo visa-se analisar como é apresentado a categoria
eu-lírico nos poemas “Espelhos negros” e “Pérola negra” e de Cristiane
Sobral inseridos na obra Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz
(2014) e, também, os poemas “Aqui começam os meus pés” e “É um

- 151 -
corpo, mas poderia ser um poema” de Ana Elisa Ribeiro inseridos na
obra Anzol de pescar infernos (2013). Nos referidos poemas é possível
perceber diferenças no modo como o eu-lírico é apresentado,
possibilitando perceber questões referentes à racialidade e de forma
concomitante a questão das relações raciais no Brasil.

Cristiane Sobral: A pele preta de um eu-lírico


A poeta contemporânea Cristiane Sobral tem uma produção
literária vasta que de poemas e contas, além de textos para o teatro,
e surgiu no cenário da literatura brasileira em 2010 com a publicação
do livro Eu não vou mais lavar os pratos, porém sua carreira artística
inicia-se na década 1990 como atriz. As obras refere-se à experiências
de pessoas negras, principalmente mulheres negras, e os temas são
variados. A obra Só por hoje vou deixar meu cabelo em paz (2014) fala
do cabelo crespo estabelecendo a crítica aos padrões estéticos
dominantes e evidenciando o quando que o cabelo é uma questão
importante na nossa cultura e por isto é alvo constante de discursos
racistas.
No poema “Espelhos negros” a metáfora do espelho aparece
ligada a questão amorosa, há também a valorização da estética negra
como algo ligado a autoestima.

Quando você apareceu


O eclipse aconteceu
Meu cabelo ficou do jeito que eu queria

- 152 -
Pude cozinhar o secador em “banho maria”

Ainda bem que você surgiu!


Minha autoestima refletiu
Tomei tesão como medicação a semana inteira
A mulher forte e decidida saiu da geladeira
(SOBRAL, 2014, p.23)

A metáfora do eclipse surgi para representar o efeito do


encontro entre o/a eu-lírico e a/o parceiro(a) e o cabelo aparece como
elemento que determina a autoestima. Na segunda estrofe o ponto de
exclamação enfatiza a alegria da presença do ser amado e como esta
presença faz bem e na estrofe seguinte, a terceira, pode-se observa
que este encontro se dá entre dois corpos negros, pautando a questão
do relacionamento afrocentrado.

Mas eu também cheguei!


Cheguei mais perto do espelho do banheiro
Olhei e percebi quão melhor fiquei
Muito mais negra, enfrentando o mundo inteiro

Nós dois, que perigo para humanidade!


Se a comunidade negra
Forte, unidade, de verdade.
Começar a se reproduzir
O mundo inteiro vai sacudir (SOBRAL, 2014, p.23)

Ainda se percebe na terceira estrofe que o/a eu-lírico enuncia


acerca de si, o verbo “cheguei” pode ser visto em relação ao verbo
“surgiu”, lembrando a noção de encontro, fortalecendo a metáfora do
eclipse que perpassa o poema inteiro. O espelho aparece sem
distorções, a contemplação se dá de modo positiva e no verso “muito
- 153 -
mais negra, enfrentando o mundo inteiro” pode-se perceber a
referência de como é a experiência social da mulher negra. Na última
estrofe, o relacionamento afrocentrado é apresentado como algo que
abalaria o mundo, numa lógica heteronormativa este tipo de
relacionamento proporcionaria a reprodução dos sujeitos negros sem
envolver o processo de miscigenação que historicamente era
compreendida como um modo de extinguir o negro da sociedade
brasileira. Alguns antropólogos como Darcy Ribeiro e Lilia Moritz
Schwarcz trataram sobre a questão da miscigenação como um projeto
de anulação do negro na crença no processo de seleção natural em
que o branco prevaleceria. Além desses teóricos, Lourenço Cardoso e
Maria Aparecida Bento trataram da questão do projeto de
embranquecimento ou branqueamento da sociedade brasileira que
foi em dado momento da história do país parte dos discursos de
políticos. Sobre isso, Bento (2002) expressa que o branqueamento
constitui “um processo inventando e mantido pela elite branca
brasileira”, assim, envolve a desvalorização simbólica de tudo que foge
ao universo da “branquitude”20. Na referida obra de Sobral há o

20 A branquitude constitui a identidade racial branca, entretanto sabendo que


nenhuma identidade deve ser definida univocamente. Historicamente, a
branquitude é uma identidade racial excludente, porém estudiosos como Janet
Helms (1990) expressam que é uma identidade que se desenvolve, sendo parte deste
desenvolvimento o reconhecimento desta identidade como sendo uma identidade
de privilégio na sociedade e também como sendo possível a desconstrução simbólica
excludente da identidade branca.

- 154 -
poema “Manual Melanina” em que ironicamente se recomenda o
branqueamento como fonte de sucesso do negro na vida social, ao
realizar o jogo irônico no texto literário Sobral denuncia a ordem
brancocêntrica da sociedade brasileira.
Em outro poema “Pérola negra”, composto por oito estrofes, o
sujeito lírico apresenta sua trajetória, da infância até a fase adulta, nas
quatro primeiras estrofes observa-se a questão da violência de gênero,
assédio sexual, a infância sem muito afeto e a depreciação de sua
estética negra. Os verbos indeterminados na terceira pessoa do plural
é usado para se referir aos autores do desrespeito.
Na quinta estrofe pode observar a enunciação da superação.

Eu me alimentei das minhas ausências


Nem sei como venci todas as minhas urgências
Consegui fazer brotar os frutos (SOBRAL, 2014,
p.39)

O sujeito de lírico expressa que uma postura ativa diante da


adversidade proporcionou a superação, a descrição poética da própria
trajetória é feita mediante um processo reflexivo que também informa
a resistência psicológica e física a determinadas situações vividas pela
enunciadora. Na sexta estrofe é descrito o renascimento como algo
que envolve lidar com própria dor.

Renasci
Triturei minha dor
Comi minhas próprias cinzas

- 155 -
Mas deixei um pouco para forjar uma nova pele
(SOBRAL, 2014, p.39)

Através da metáfora da fênix a angustia do renascimento é


representado no poema. A “dor” reduzida a fragmentos pode ser vista
como as próprias cinzas do sujeito lírico que constituiriam a sua pele,
uma nova pele construída a partir da resistência. Nas últimas estrofes
do poema pode-se observar a vingança simbólica e o fortalecimento
do sujeito através da autonomia e atitude perante a vida.

Eu me vinguei sendo muito mais negra


Eu me vinguei sendo mais sábia
Eu me vinguei sendo muito mais feliz

Hoje sou dona dos meus caminhos


Tatuei as minhas cicatrizes como quem borda
ninhos
Tenho as chaves do meu prazer
Sou pérola negra
Aprendi a receita do bem viver (SOBRAL, 2014,
p.40).

Nos poemas analisados se observa a questão do corpo, tanto


referente ao cabelo como a pele, entretanto a questão do ser negra
(ou negro) apresenta um viés também ideológico que acompanham o
corpo, mas também o imaginário do sujeito, sua percepção de si e da
sociedade o que pode ser percebido “escurecidamente”, que parte do
termo “escurecimento” utilizado pela autora, no verso “eu me vinguei
sendo muito mais negra”.

- 156 -
Ana Elisa Ribeiro: Eu-lírico que não precisa dizer da pele
A poeta mineira Ana Elisa Ribeiro também possui uma vasta
produção literária em sua maioria de poemas e surgiu no cenário da
literatura brasileira em 1997 com a publicação do livro Poesinha. Na
obra Anzol de pescar infernos ( 2013) é possível observar um discurso
literário que dialoga com as questões feministas, porém apresenta
uma perspectiva feminina que se permite a contradições pautando
nos sentimentos que envolve relacionamento, maternidade, tristeza,
por exemplo. A ideia de corpo aparece no início como metáfora do
poema, entretanto o corpo/ poema apresentando sem características
fenotípicas.
No primeiro poema, sem título em destaque, mas que a frase
inicial do poema ocupa esta função no sumário da obra é “Aqui
começam meus pés”, o poema é corporificado e ocorre a aproximação
com o corpo da enunciadora. De modo não convencional, se inicia a
descrição do “corpo” pelos pés, sendo que o esperado seria a
descrição do rosto. O segundo verso do poema é “Estes dedos são
arremedos” (RIBEIRO, 2013, p.15) apontando ao leitor que se trata de
“dedos ficcionais”, indicando a metáfora corpo-poema.

Aqui começam os meus pés


Estes dedos são arremedo.
Começa pelos calcanhares
Subirá até os joelhos –
roliços , mas quebradiços-
e de lá avistarás
um segredo profundo,

- 157 -
que contei para todo mundo. (RIBEIRO, 2013, p.15)

Há também um teor metalinguístico, isto é, o texto falando


sobre si e também há a voz poética informando que corresponde a
uma “imitação” o que será lido, permitindo lembrar a noção de
mimesis em que a arte é uma forma de representação da realidade
elaborada pela interferência da subjetividade de quem escreve (LIMA,
1980). No fim do poema observa o paradoxo “um segredo profundo
que contei para todo mundo” (RIBEIRO, 2013, p.15), ao leitor fica a
sugestão do que poderia ser este segredo: uma parte presente no
corpo de quem enuncia.
No poema, o corpo é representado sem cor e o cabelo é um
elemento que não é descrito nessa obra da autora mineira, diferente
do que ocorre na obra de Cristiane Sobral em que o corpo é provido
de pele cuja cor é negra e o cabelo crespo é tema dos poemas. Ao se
pensar a relação literatura e sociedade sendo a ponte dessa dialética
o simbólico, pode-se constatar que a racialização que permeia as
relações sociais no Brasil pode ser percebida nos textos literários.
Em outro poema, “Se eu fosse apenas cérebro”, pode-se
observar a reflexão acerca da mulher enquanto ser pensante, o sujeito
feminino se apresenta enquanto corpo e alma e demonstra que por
ser assim recebe rejeição.

Se eu fosse apenas cérebro


eu seria máquina,
traste.

- 158 -
E onde iam me descartar? (RIBEIRO, 2013, p.19)

A objetificação da mulher é tema central do poema. O sexismo


presente na sociedade brasileira desconsidera as capacidades
intelectuais das mulheres. O sujeito lírico feminino expressa que,
independente do que seja, o fato de ser mulher faz com que seja
tratada como inferior.

Sendo corpo e alma


(mais mente)
me descarta
ainda mais.
E onde vão me guardar? (RIBEIRO, 2013, p.19)

No final do poema o discurso literário exprime o fato de


quando o sujeito feminino é muito além do que a sociedade
estabelece não deixa de ser alvo do processo social de inferiorização,
sendo “mente”, “corpo” e “alma”, rompendo com a concepção sexista
e machista que coloca as mulheres como meramente “corpo”. O
poema demonstra também a incapacidade, dos homens e da
sociedade em geral, de lidar com este perfil de mulher que não é
determinado pela ordem falocentrica.
Em “Fazer, a poesia” (2013) Jean-Luc Nancy expressa que o
“sentido de “poesia” é um sentido sempre por fazer (op.cit, p.416) o
que possibilita pensarmos se todas as categorias de análise da poesia
estão fechadas em suas definições e se outras categorias são possíveis
de surgirem para se ter um entendimento mais profundo da poesia. A

- 159 -
categoria “eu-lírico” é considerada dissociada da figura do autor,
embora seja possível pensar a construção poético de um sujeito
dentro do texto, o imaginário do sujeito que escreve se manifesta no
“eu” o qual se cria, além de ser a linguagem uma forma de transmitir
crenças e ideologias sócio- historicamente produzidas. Em O arco e a
Lira (1982) Octavio Paz faz a seguinte consideração:

O poema, ser de palavras, vai mais além das


palavras e a história não esgota o sentido do
poema; mas o poema não teria sentido – nem
sequer existência – sem a história, sem a
comunidade que o alimenta e à qual alimenta.
(PAZ, 1982, p.225-226)

O eu-lírico e a própria voz do autor não estão isentos da


realidade que lhe emana, o primeiro é construído pelo segundo
por meio de palavras estas que já em si tem seus sentidos
configurados pelo imaginário social. A história e a comunidade são,
como diz Paz, o que alimenta o poema e que por ele são
alimentadas, o que possibilita entender que o poema emana
sentidos que são produtos também do dialogismo desses fatores.
Ainda o crítico literário explicita que “O poeta consagra sempre
uma experiência histórica, que pode ser pessoal, social ou ambas
as coisas ao mesmo tempo” (PAZ, 1982, p.233). O sujeito poético
e sujeito autor são parte da mesma moeda, o discurso, sendo que
as ideologias que os textos são passíveis de mobilizar
correspondem também a parte do processo de criação poética,

- 160 -
onde os sistemas de representação se relacionam dialeticamente
com os imaginários sociais.

Conclusão
O eu-lírico nos poemas de Ana Elisa Ribeiro é feminino e
branco e o discurso literário de sua obra não reproduz estereótipos
raciais e nem de gênero, ao realizar a metáfora do corpo a única
questão que fica bem clara é que se trata de um corpo feminino,
lembrando a questão do “feminino universal” veiculado por
algumas mulheres brancas que produzem teorias feministas, um
exemplo, é a entrevista recente “A história contada no corpo” da
historiadora Mary Del Priore, organizadora do livro História das
Mulheres no Brasil (2004), em que a mesma traz uma abordagem
generalista acerca da trajetória política da mulher no Brasil e
também desconsiderando a questão racial como capaz de intervir
nas experiências femininas em nossa sociedade racista.
Na obra de Cristiane Sobral, o eu-lírico é feminino e negro,
a temática do cabelo e a cor estão presentes relacionados com
outras temáticas como amor, maternidade, relacionamentos, por
exemplo. Em sua metáfora do corpo a pele está presente, a
questão de gênero atrelada ao racial. Embora, a discussão da
interseccionalidade exista ainda se observam discursos feministas
em que a temática racial é colocada como secundária.

- 161 -
Ambas são escritoras brasileiras cujas identidades raciais
são diferentes, enquanto sujeitos sociais realizam suas produções
literárias em contato com o imaginário social, coletivo e individual,
pelo qual foram (e são) sociabilizadas e experimentam a
desigualdade de gênero, porém a desigualdade racial fornece
privilégios a uma em detrimento da outra. Dialeticamente, as
representações do feminino de Cristiane Sobral e Ana Elisa Ribeiro
possibilitam que se compreenda que “ser mulher” envolve muitas
perspectivas e que as vozes de mulheres são polifônicas e que
precisam ser reconhecidas e ouvidas na mesma proporção de sua
pluralidade.

- 162 -
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Brasil. In Psicologia social do racismo: Estudos sobre branquitude e
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RAMALHO, Viviane; RESENDE, Viviane Melo. Análise do Discurso (para


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Editores, 2011.

RIBEIRO, Ana Elisa. Anzol de pescar infernos. São Paulo: Patuá, 2013.

SOBRAL, Cristiane. Só por hoje vou deixar meu cabelo em paz. Brasília.
Edição do autor, 2014.

- 163 -
Sobre os autores

Anderson Caetano dos Santos


http://lattes.cnpq.br/1900215566776155
Possui graduação em Letras Português/Inglês e respectivas literaturas
pela Unifra (Centro Universitário Franciscano) em 2008. Durante o
curso de graduação foi bolsista do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica (PIBIC) pelo período de (2006-2007). No ano de
2010, realizou um intercâmbio para a Cidade do Cabo na África do Sul
com o intuito de aprimoramento da língua inglesa. Realizou uma
Especialização em Educação a Distância pelo Senac no período de
(2012-2013). Tem trabalhado em escolas públicas tanto estaduais
quanto municipais nas disciplinas de língua inglesa, língua portuguesa,
literatura brasileira e redação no ensino fundamental séries iniciais,
finais e ensino médio. Tem pesquisado sobre construção de identidade
negra, literatura negra brasileira, raça, racismo, negritude, diáspora
africana e escritores negros brasileiros contemporâneos. E-mail para
contato: anderson.c.santos@bol.com.br

Dênis Moura de Quadros


http://lattes.cnpq.br/3223715562579993
Doutorando em Letras- área de concentração História da Literatura
pela Universidade Federal do Rio Grande- FURG, além de ser mestre
em Letras, área de concentração História da Literatura pela mesma
universidade, onde pesquisa sobre literatura brasileira, em especial, as
peças do dramaturgo Nelson Rodrigues; sobre teatro desagradável;
teatro da crueldade a partir de Antonin Artaud; teatro da morte a
partir de Tadeusz Kantor; conceitos da tragédia ática e do drama; Luto
sob as diversas perspectivas psicológicas e psiquiatras; formação do
leitor literário; o negro na literatura brasileira; a literatura produzida
por mulheres e literatura afro-feminina. É graduado em Licenciatura
em Letras- Português e suas respectivas literaturas pela Fundação
Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), campus: Bagé. Sua área

- 164 -
de interesse é no campo da crítica literária, da historiografia literária,
da literatura comparada e da crítica teatral.

Juliana Cristina Costa


http://lattes.cnpq.br/7627489804110748
Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF), graduada em Letras / Literaturas pela Universidade Federal de
Viçosa (UFV). Tem forte interesse em pesquisas que envolva a
literatura contemporânea feita por mulheres e também a análise do
texto literário em dialética com as relações raciais. Sua pesquisa de
mestrado visou observar nas representações do feminino em poemas
de escritoras contemporâneas se há aspectos que possibilitem uma
reflexão a partir do processo de racialização. É escritora dos Cadernos
Negros, importante antologia literária que vem sendo publicada
ininterruptamente desde 1978, exercendo a escrita literária como
possibilidade de questionamento do imaginário social marcado por
estereótipos acerca dos sujeitos que integram algum tipo de
?minoria?, principalmente o que envolve o universo de experiência do
sujeito negro.

Miriam Denise Kelm


http://lattes.cnpq.br/1719845201647993
Possui Graduação em Letras - Língua Portuguesa e Literaturas em
Língua Portuguesa pela Faculdade Porto-Alegrense de Educação,
Ciências e Letras (1986), Especialização em Literatura Brasileira
(PUCRS, 1998), Mestrado em Linguística e Letras (PUCRS, 2000) e
Doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (2006). Atualmente é Professora Associada da
Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), no campus Bagé/RS.
Tem experiência na docência em Letras, com ênfase em Teoria da
Literatura, atuando em pesquisa sobre os seguintes temas: literaturas
de expressão portuguesa, ficção e história, autoria feminina e
literatura memorialista.

- 165 -
Natália Regina Rocha Serpa
http://lattes.cnpq.br/4814010882997612
Possui Graduação em Letras pela Faculdade Atenas Maranhense
(2004) e Mestrado em Letras e Literatura pela Universidade Estadual
do Piauí - UESPI (2014). Doutoranda do Programa de pós Graduação
em História da Literatura da Universidade Federal do Rio Grande -
FURG. Professora Efetiva da Carreira EBTT do Instituto Federal do
Maranhão - IFMA. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase
em História da Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas:
memória, identidade, feminismo, ancestralidade e escrita de si.
Atualmente atua como pesquisadora no NEPA - Núcleo de Estudos e
Pesquisas Afro / UESPI e no Grupo de Estudos em Fronteiras Literárias
- GEFLI do IFMA.

Rosângela Aparecida Cardoso da Cruz


http://lattes.cnpq.br/7687097595624751
Possui graduação e especialização em Letras - Português e Literaturas,
pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), campus de
Rondonópolis. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
( PPGedu-UFMT). Doutoranda em Letras/Estudos Literários, dentro da
linha de pesquisa intitulada Literatura e Construção de Identidades,
pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual
de Maringá (UEM). Membro do Grupo de Estudos em Literatura de
Autoria Feminina Brasileira (LAFEB), pesquisadora das temáticas
relacionadas às questões de Gênero, ao Silêncio, à literatura
contemporânea de autoria feminina e à literatura afro-brasileira,
produzida por mulheres negras.

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