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O aparelho formal da enunciação:

que aparelho é este?


Claudia Toldo*

Resumo Considerações iniciais


A proposta deste trabalho aborda o
Esta pesquisa quer pensar o trabalho
ensino de língua portuguesa na escola
a partir de uma perspectiva enuncia- com o texto em sua dimensão de leitura
tiva, mais precisamente, uma reflexão na escola. Isso é no mínimo desafiador
que proporcione ao aluno da educação e instigante, uma vez que, hoje, prati-
básica a oportunidade de se enunciar,
camente todo professor de português
na e pela linguagem, e se colocar
como sujeito de sua enunciação na fala em texto e usa textos, de diferentes
escola enquanto espaço privilegiado gêneros, em suas aulas. Mas o que temos
para se pensar o uso da língua. Para observado é que isso não tem trazido
isso, a discussão ampara-se no texto uma melhora significativa nem na lei-
do linguista Émile Benveniste, O apa-
relho formal da enunciação, publicado
tura, nem na escrita dos estudantes que
em 1970 na revista Langages, e cons- estão em nossas salas de aula da educa-
titutivo da segunda parte dos Proble- ção básica. Já se sabe que não há como
mas de linguística geral II dedicada analisar qualquer fato da língua sem
à comunicação. Nesse artigo dirigido
considerar o funcionamento do texto/
especificamente a linguistas, Benve-
niste procede a uma distinção entre o discurso até porque as pessoas usam a
emprego das formas e o emprego da língua para produzir sentido e dizer algo
língua. É essa dicotomia que justifica umas para as outras e para organizar o
a necessidade de se pensar o ensino mundo sob seu ponto de vista. As pes-
da língua a partir da enunciação, haja
vista que o aluno-locutor, ao se apro- soas usam a língua para ler o mundo e
priar das formas, se encontra numa
relação absoluta com a escola, com a *
Doutora em Linguística Aplicada pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com
sociedade, com o mundo e, sobretudo, Pós-doutorado em Linguística – estudos do texto pela
com uma língua que sirva para viver. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professo-
ra e Coordenadora do PPGL – Doutorado e Mestrado
Palavras-chave: Aparelho formal da em Letras na Universidade de Passo Fundo. Realiza
pesquisas em Teorias da Enunciação, principalmente,
enunciação. Emprego das formas. estuda as reflexões teóricas de Émile Benveniste.
Emprego da língua. Ensino de língua Pesquisadora CNPq. E-mail: claudiast@upf.br
portuguesa.
Data de submissão: set. 2018 – Data de aceite: dez. 2018
http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v14i3.8607

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dizê-lo em textos. Assim, pode-se pensar Enunciação, e com ele e a partir dele (re)
que nem a língua em si mesma nem a pensar as práticas escolares de leitura
palavra isolada nos dão sua dimensão na sala de aula de língua portuguesa,
semântica. Isso só é possível no texto. principalmente. Junto com isso, discutir
Nesse particular, a construção do sentido os dois conceitos trazidos por Benvenis-
das palavras dá-se a partir da organiza- te – emprego das formas e emprego da
ção (textual) das unidades linguísticas língua –, propondo um deslocamento teó-
– disponíveis na língua – colocadas em rico para refletir o que significa ensinar
relação e em funcionamento, ou seja, é o português na escola.
próprio sistema de regras da língua posto
em funcionamento por alguém. O Aparelho: o das formas
Assim, essas observações se inserem
na linha teórica relativa aos estudos
e o da língua
da linguagem, especialmente na teoria Inicio com algumas considerações,
enunciativa de Émile Benveniste. Esse e não outras2, que entendo pertinentes
teórico não discute diretamente a res- para a organização de minha reflexão.
peito da noção de texto ou de leitura ao Vamos a elas. O texto O Aparelho Formal
longo de seus Problemas de Linguística da Enunciação, de Émile Benveniste,
Geral – ao menos não como isso é feito publicado originalmente em 1970, na
nos parâmetros atuais da linguística. revista Langages, mais conhecido em
Mas acreditamos ser possível inferir de 1974 quando publicado nos Problemas de
seus trabalhos uma noção sintonizada Linguística Geral II, sintetiza3 questões
de uso e de organização da língua em que configuram o que hoje chamamos
dada situação. E é em Benveniste que de “Teoria da Enunciação”. Obviamente
a escrita deste trabalho se inspira. Por que essa “Teoria” não se construiu nes-
isso, apoiamo-nos na ideia de que “a se único texto, o de 70, mas foi sendo
linguagem serve para viver” (BENVE- construída. Construída num tempo em
NISTE, 1967/1989, p. 222). que Benveniste percebeu que tudo mo-
Interessados por “esse viver”, nosso difica: o homem, o mundo, a língua. Um
objetivo maior é realizar estudos que tempo (1940-1970) em que se dedicou a
provoquem reflexões sobre o trabalho construir conceitos e a sintetizar, teorica-
de leitura, enquanto possibilidade de mente, o que mais se colocou a observar:
aprendizagem da língua, na escola de a língua e a linguagem humana. Texto
educação básica. este que, como sabemos por sermos es-
Portanto, o objetivo principal deste tudiosos de Benveniste, destaca-se por
estudo1 é trazer o conceito de enunciação, reunir reflexões suas anteriores a 1970,
concebido por Émile Benveniste, em seu por ser dirigido a linguistas, publicado
texto-síntese, O Aparelho Formal da no décimo sétimo número da revista

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Langages4 e a pedido de Tzvetan Todorov é essa leitura que se vai encontrar agora.
(apenas!!!) que argumentou com Ben- Já no início do texto, Benveniste (1989,
veniste, através de uma primeira carta p. 81) pontua que “todas as nossas des-
enviada em 1968, que não faria sentido crições linguísticas consagram um lugar
um número da referida revista sobre frequentemente importante ao emprego
enunciação sem um texto dele – afinal das formas.” O que isso significa? Ben-
Benveniste estava “inaugurando” um veniste (1989, p. 81) afirma se tratar
novo campo, uma nova perspectiva de de um “conjunto de regras fixando as
ver a língua e a linguagem. O texto de condições sintáticas nas quais as formas
1970 também se destaca pelo impacto podem ou devem normalmente aparecer,
que causou na comunidade linguística da uma vez que elas pertencem a um para-
época– e ainda causa –, por ser o único digma que arrola as escolhas possíveis.”
texto (de Benveniste) que carrega – já Entendo que, para Benveniste (1989), é
no título – a palavra enunciação. Como fundamental a essa discussão de 1970
foi um texto escrito para linguistas, por trazer a diferença entre emprego das
estar publicado na revista Langages, formas e emprego da língua, uma vez
foi possível escolher e tratar de temas que ele entende este último (o emprego
próprios e específicos do campo, ques- da língua) numa dimensão enunciativa
tioná-los, estudá-los, mobilizando crí- e aquele (o emprego das formas) numa
ticas e observações acerca dos estudos perspectiva da linguística que se fazia
normalmente feitos e propondo outras naquele tempo. Afirmo isso amparada
visões sobre o que se estava fazendo na no que Benveniste (1989, p. 81) defende:
linguística da época. Destaca-se que Ben- Gostaríamos, contudo, de introduzir aqui
veniste, apenas, acolheu a provocação de uma distinção em um funcionamento que
Todorov5. Sublinho, ainda, que, para esta tem sido considerado somente pelo ângulo
da nomenclatura morfológica e gramatical.
reflexão que proponho hoje, a clareza e a As condições de emprego das formas não
explicitude de Benveniste em expor um são, em nosso modo de entender, idênticas
conceito – o de enunciação – a partir de às condições de emprego da língua. São, em
realidade, dois mundos diferentes, e pode
outra reflexão distintiva: o emprego das ser útil insistir nesta diferença, a qual im-
formas e o emprego da língua, este, para plica uma outra maneira de ver as mesmas
Benveniste, motivo de destaque neste coisas, uma outra maneira de descrever e de
as interpretar.
texto de 1970, é de uma geniosidade que
o tempo conserva. Benveniste faz uma distinção entre
Proponho aqui uma leitura linear do as condições de emprego das formas e da
texto O Aparelho porque, como já afir- língua. Diz que são “mundos diferentes”
mei, quero trazer o conceito de enuncia- e que isso implica “uma outra maneira
ção com a distinção da dupla: o emprego de ver as mesmas coisas” e salienta o
das formas e o emprego da língua. Então, que para mim, neste estudo, é primor-

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dial “uma outra maneira de descrever e [...] é um conjunto de regras fixando as con-
de as interpretar”. Sem dúvida alguma, dições sintáticas nas quais as formas podem
ou devem normalmente aparecer uma vez
essa diferença deve ser feita. E deve ser que elas pertencem a um paradigma que
feita com o rigor que lhe é peculiar. Só arrola as escolhas possíveis.
gostaria de chamar a atenção, primeira-
Se voltarmos no tempo, Benveniste,
mente, que esses “mundos diferentes” me
em 1954, quando refletiu sobre as ten-
parece que não são tão diferentes assim.
dências recentes em linguística geral, fez
Afinal, estamos falando de língua, esse
reflexões sobre a organização interna e
mundo é a língua, mas o modo como a
as leis de organização dos traços distin-
vemos é diferente. Isso é fundamental.
tivos. Afirma Benveniste (1995, p. 9):
Isso é o que traz um mundo diferente.
Esses elementos ordenam-se em séries e
Precisamos entender muito bem isso que mostram em cada língua arranjos particu-
diz Benveniste. lares. Trata-se de estrutura, em que cada
Quando Benveniste (1989) traz o peça recebe a sua razão de ser do conjunto
que serve para compor.
emprego das formas, ele traz as rela-
ções internas da língua, as condições Mais adiante, nessa mesma reflexão,
sintáticas, ou seja, as relações de ordem ainda afirma:
sintagmática e paradigmática da língua. Entende-se por estrutura, particularmente
Esse é o emprego das formas da língua. na Europa, o arranjo de um todo em partes
Conforme Flores (2013, p. 163), e a solidariedade demonstrada entre as
partes do todo, que se condicionam mutua-
[...] se restringe à investigação das regras mente [...] (BENVENISTE, 1995, p. 9).
que fixam as condições sintáticas, das pos-
sibilidades paradigmáticas, das regras de Se quiséssemos ainda insistir no
formação, das ocorrências morfológicas, das assunto, Benveniste, em 1963, no texto
possibilidades combinatórias, entre outras
relações do âmbito da forma linguística. Vista d’olhos sobre o desenvolvimento
da linguística, refletindo sobre a função
Sem dúvida, uma parte necessária de da linguística, afirma: “Trata-se, com
toda descrição linguística, uma vez que efeito, de saber em que consiste e como
esse emprego está ligado às estruturas funciona uma língua.” (1995, p. 22). E
linguísticas, necessárias de observação mais adiante, ratifica o que já havia dito
a toda descrição. Aresi (2012, p. 70) em tempo pretérito:
afirma que
[...] a língua é um arranjo sistemático de
[...] “o emprego das formas” remeteria, partes. Compõem-se de elementos formais
portanto, às regras internas de formação e articulados em combinações variáveis, se-
de emprego dos signos, os quais conferem à gundo certos princípios variáveis, segundo
língua o seu caráter estrutural. certos princípios de estrutura (1995, p. 22).

A essas regras, o próprio Benveniste O que temos aqui? Uma reflexão já


(1989, p. 81), no primeiro parágrafo, já anterior de que o emprego das formas
dedica um comentário: da língua diz respeito ao arranjo intrín-

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seco, sintagmático e paradigmático da colocar para ensinar a língua. Acredito
língua, já proposto no CLG, se podemos que não podemos esquecer o que diz o
nos arriscar a dizer isso, sem aprofundar CLG:
a questão nesse momento. Temos aqui o [...] é necessário colocar-se primeiramente
emprego das formas numa perspectiva no terreno da língua e tomá-la como norma
da gramática da língua. de todas as outras manifestações da lingua-
gem (SAUSSURE, 2006, p. 16-17).
Flores (2013, p. 163), ao pontuar a
diferença trazida por Benveniste ao Mas não esquecer das manifestações
binômio emprego das formas e emprego da linguagem, ou seja, da língua em
da língua, na seção 5.1 em que trata da uso. Enfim, voltemos ao Aparelho para
enunciação: uma definição, afirma: “É entender este emprego da língua.
sobre o emprego da língua que Benve- Ao trazer o emprego da língua, Ben-
niste constrói sua reflexão a respeito veniste (1989, p. 82) afirma que o “me-
da enunciação [...].” E questiona: “que canismo total e constante que, de uma
consequências é possível tirar dessa dis- maneira ou de outra, afeta a língua
tinção à qual se liga a definição clássica inteira.” Já de chegada, Benveniste
da enunciação como ato individual de (1989) afirma que esse mecanismo, esse
utilização da língua?” A partir do seu aparelho, afeta não parte da língua,
próprio questionamento, responde: “En- mas a língua inteira, toda a língua. Isso
tende-se, com isso, que ela é um ponto é importante, porque já temos aí uma
de vista da análise que considera o sen- noção de enunciação (“coisa” diferente
tido, que incide em cada um dos níveis do emprego das formas da língua). E
separadamente e/ou em inter-relação.” imediatamente pontua a dificuldade:
E conclui: “Benveniste, assim, opera, já A dificuldade é apreender este grande fenô-
no início do texto, uma ruptura com uma meno, tão banal que parece confundir com a
própria língua, tão necessário que nos passa
certa visão estratificada de língua e um
despercebido (BENVENISTE, 1989, p. 82).
alargamento da análise enunciativa es-
tendendo-a a todos os níveis da língua.” Isso vai nos trazer o conceito, a seguir,
Trago Flores (2013), neste início de re- de enunciação: “A enunciação é este co-
flexão sobre o emprego da língua, para locar em funcionamento a língua por um
auxiliar a elaborar minhas considerações ato individual de utilização.” Utilização
acerca desse significativo conceito que de quê? Do aparelho. Do aparelho da
impactou a comunidade linguística da língua que, mobilizado, constrói o apa-
época e continua nos tirando do lugar e relho da enunciação. Voltarei a isso na
nos conduzindo a olhar a língua de modo próxima seção.
desconforme, singular, único a cada vez. Quando Benveniste traz o conceito de
Acredito que é desse lugar que um pro- enunciação, ele chama a atenção para seu
fessor de língua portuguesa precisa se objeto de estudo à medida que trata da
condição específica da enunciação. Não va-

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mos esquecer o rigor teórico do linguista, locutor com a língua, em dada situação
de que o artigo de 1970 foi escrito “moti- comunicativa, esta sempre nova, única,
vado” pela carta de Todorov, pelo desafio singular, irrepetível; processo, algo que
de escrever a um público peculiar – os lin- se renova a cada instância de discurso,
guistas –, e poderíamos ainda assinalar, quando o aparelho da língua é colocado
da importância que o campo tomava lugar. em funcionamento. É desse processo de
Diz Benveniste (1989, p. 82, grifo meu): “é agenciamento de formas e sentidos que
o ato mesmo de produzir um enunciado, Benveniste explica três aspectos que a
e não o texto do enunciado, que é nosso enunciação comporta: a) o aspecto vocal
objeto.” Esse ato evidencia a ação do lo- da língua, observando os sons emitidos
cutor que mobiliza a língua por sua conta, e percebidos. Nesse aspecto, Benveniste
ou seja, o locutor que emprega as formas traz a diversidade de situações nas quais
da língua – o aparelho da língua – e com uma enunciação pode ser produzida.
elas produz diferentes enunciações. Flores Esse aspecto é inconcluso em Benvenis-
(2013) chama a atenção para as palavras te; aliás, como muitos outros elementos
ato e processo usadas por Benveniste, na teoria, mas nesse especificamente fica
uma depois da outra, para dizer o que é claro que muito há por fazer quanto ao
enunciação. Vejamos o que diz o texto de aspecto vocal da língua. O próprio Ben-
70: “Este ato é o fato do locutor que mobi- veniste, ao final do Aparelho, ressalta a
liza a língua por sua conta.” Em seguida: necessidade de distinguir a enunciação
“Este grande processo pode ser estudado falada da enunciação escrita, ou seja,
[...]” (BENVENISTE, 1989, p. 82). Diante algo resta a ser feito; b) a conversão da
dessas palavras de Benveniste, afirma língua em discurso, pensando como o
Flores (2013, p. 164): sentido se forma em palavras (temos aí
O primeiro ponto que chama a atenção aqui a semantização da língua). Flores (2013,
é o fato de Benveniste dizer que a enuncia- p. 165) faz um questionamento:
ção é um grande processo, tendo, logo antes,
afirmado que ela é um ato. A questão aqui O que é a semantização? A definição apa-
é: a enunciação é um ato ou um processo? rentemente é textual: conversão da língua
Ou ambos? É possível observar tanto o em discurso. No entanto, essa definição não
lado processual quanto o lado acional da parece muito distinta da definição geral de
enunciação: ela é uma porque, através dela, enunciação, já que converter a língua em
o locutor transforma a língua em discurso discurso não é muito diferente de dizer que
e essa transformação se dá, entre outros enunciar é um ato de utilizar a língua. Qual
motivos, como um processo de agenciamento a diferença?
de formas e sentidos. Por isso, a enunciação Sem dúvida alguma, Benveniste,
comporta múltiplos aspectos.
nesse segundo aspecto que a enuncia-
Farei um parêntese aqui, pois os ção comporta, chama a atenção para o
conceitos de ato e processo me são caros fato dos procedimentos pelos quais as
e entendo que preciso pensá-los simulta- formas linguísticas se diversificam e se
neamente. Ato diz respeito à relação do

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engendram. Chama a atenção ao fato de nova enunciação. E o processo, de que
o locutor, ao mobilizar a língua, construir antes tratávamos, está justamente nesse
sentidos através das palavras, ou seja, sempre novo constituir sentido: apro-
semantizar a língua; c) o quadro formal priar-se do aparelho formal da língua
de sua realização através do ato, da e enunciar-se, o qual traz a posição do
situação e dos instrumentos. O quadro locutor, que implanta o outro diante de
formal de sua realização é, para Benve- si. O locutor refere, pelo discurso, uma
niste, o objeto de seu texto, ou seja, nesse vez que a “referência é parte integrante
texto de 1970, ele trata mesmo do quadro da enunciação.” Isso traz algo muito
formal de realização da enunciação. E particular: a situação que se manifesta
isso pauta a partir do ato individual de por um jogo de formas específicas – o
utilização do locutor que atualiza o apa- aparelho formal da língua que mobili-
relho da língua a cada vez que o coloca zado constrói um aparelho formal de
em funcionamento. Essa língua que lhe enunciação. Esse jogo coloca o locutor em
é própria desde já. Isso nos aponta um relação necessária com sua enunciação,
percurso “metodológico”. Benveniste através do emprego de formas específi-
(1989, p. 83) afirma: “Na enunciação con- cas: os índices de pessoa, de ostensão e de
sideraremos, sucessivamente, o próprio tempo. Que se renova a cada vez. A cada
ato, as situações em que ele se realiza, tempo. A cada mobilização do aparelho
os instrumentos de sua realização.” Ou formal da língua. Essa relação “neces-
seja, a partir do ato (individual do locu- sária” acentua a relação discursiva de
tor que mobiliza o aparelho formal da um locutor com seu parceiro/alocutário.
língua), observa-se a situação em que Isso caracteriza a enunciação. E nessa
esse ato se dá e, então, descrevem-se relação discursiva encontramos os ins-
as formas e os recursos linguísticos que trumentos (específicos e acessórios) que
concretizaram tal enunciação. Flores estão ligados à singularidade do locutor.
(2013, p. 116) comenta: Ou seja, está ligado ao que cada um,
Em outras palavras é assim que deve pro- pela sua experiência de língua (por que
ceder o linguista para a análise: partir do não dizer de leitura), consegue e sabe e
ato, examinar a situação em que se dá esse aprendeu mobilizar e colocar em jogo a
ato e, finalmente, descrever os recursos lin-
guísticos (os instrumentos) que tornaram cada enunciação.
possível o ato.

Então, poderíamos ponderar que o O Aparelho: um


ato, que é individual, introduz o locutor deslocamento necessário
como condição necessária para enun-
ciação. Benveniste (1989, p. 84) pontua Esta seção intitulada O aparelho: um
que antes da enunciação a língua é deslocamento necessário precisa ser lida
apenas possibilidade e depois suscita a partir de três perspectivas: 1ª) a seção

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anterior trouxe, conscientemente, uma das formas que sinalizam a língua (in-
leitura incompleta e lacunar do texto de teira, toda) em emprego.
1970. Trouxe apenas o que seria neces- Assim, vejo um emprego influen-
sário para pontuar, nesta seção, que ora ciando outro emprego. De que se trata
quero trazer como prospectiva de leitura aqui? Acho importante uma reflexão: o
desse texto em razão da pesquisa que emprego das formas traz o emprego das
hoje realizo; 2) todas as leituras anterio- estruturas linguísticas disponíveis na
res que, automaticamente, fazemos num língua e o emprego da língua é o meca-
movimento intertextual, quando lemos nismo total, o aparelho formal da língua,
Benveniste, ainda mais nesse texto de que reúne todos os empregos das formas
1970 que tratei como síntese, portanto, que, por sua vez, afeta a língua toda, a
retrospectivo, devem ser consideradas, língua inteira. Aprecio muito esse “lín-
mas impossíveis de serem assinaladas gua toda, inteira”. Então, esse emprego
neste curto espaço comunicativo; 3ª) das formas nos traz um locutor que mobi-
quero propor um deslocamento. Um liza a língua por sua conta e coloca-a em
deslocamento justamente na diferença funcionamento, por um ato individual de
pontual que Benveniste faz nesse célebre utilização. Eis o conceito de enunciação!
texto de 1970: o emprego das formas e o É essa relação do locutor com a língua
emprego da língua. Coaduno com todas que determina o emprego das formas e,
as suas observações e todas as suas ques- então, a língua em emprego.
tões teóricas dedicadas à instância do Isso, para mim, é o significativo! É esse
homem na língua. Mas, neste momento, “mobilizar a língua por sua conta” que
sinto necessidade de um deslocamento. deve ser ensinado nas salas de aula de
Talvez um passo atrás, a saber: conside- língua portuguesa na escola. Mas o que
rar os dois empregos, o das formas e o da se pode dizer disso? Como entender essa
língua, como (inter) dependentes. afirmação? Acredito que, se o domínio
Esse deslocamento se justifica, uma das formas, bem como a ciência de seu
vez que considero que o emprego das funcionamento e o domínio das regras
formas se dá a partir das escolhas feitas que possibilitam escolher as formas e
pelo locutor que “mobiliza a língua por colocá-las em uso, de tal forma que pro-
sua conta”, evidenciando o emprego da duzam sentido forem ensinadas, o locutor
língua inteira. Explicando melhor: essas – nossos alunos – aprende a usá-las. O
escolhas feitas pelo locutor, que se dirige que um aluno na sala de aula em que se
a um alocutário, trazem “um inventário” ensina língua portuguesa, falante nati-
do emprego das formas e, em consequên- vo desta língua que está “aprendendo”,
cia, uma imagem da língua em emprego. precisa aprender? Precisa aprender a
Então, acredito que, pelas escolhas do gramática da língua. Precisa aprender a
locutor, temos determinados empregos combinar as formas da língua e construir

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sentidos com as palavras. Precisar ana- para construir sentido e construir um
lisar a língua em uso em dada situação “aparelho de enunciação” e empregar a
comunicativa, observando os recursos em- língua toda. O professor precisa ensinar
pregados pelo locutor para construir tal seu aluno a tornar a língua sua; a mobi-
ou tal sentido. Acredito que é necessário lizá-la por sua conta.
refletir sobre o emprego das formas, sobre Portanto, acredito poder afirmar
as leis internas da língua, a existência e que ensinar, pela leitura de diferentes
a organização das regras que, colocadas textos, a empregar as formas da língua,
em funcionamento, trazem o emprego da significa ensinar o aluno/locutor a re-
língua. Destaco que o atual ensino de lín- fletir sobre o emprego dessas formas de
gua portuguesa ainda é metalinguístico, tal maneira que encontre, no aparelho
não só porque ensina nomenclaturas, mas formal da língua, possibilidades combi-
porque traz um ensino sobre a língua; não natórias para construir sentidos outros
temos um ensino linguístico da língua o e “afetar” a língua inteira, construindo
qual o professor mostre aos seus alunos e um aparelho de enunciação. Para isso,
faça-os refletir sobre as escolhas que um suas experiências e práticas de leitura
locutor faz ao colocar a língua em funcio- devem ser sempre estimuladas, sempre
namento. Isso não acontece na escola! E fomentadas na escola, sempre uteis para
isso é ensinar língua! que se reflita a língua.
Acredito que isso possa ser ensina- À vista disso, assumo a responsabili-
do através da leitura. Aliás, ensinar a dade em afirmar: ensinar a ler significa
ler – para mim – é isto: ensinar a ler as ensinar a pensar sobre o aparelho formal
estruturas da língua que foram mobiliza- da língua, colocado em funcionamento, e
das por alguém, para produzir sentidos com ele construir um aparelho de enun-
num texto que se pode ou se quer ou se ciação. Aí chego ao título deste texto:
necessita ler. Ler textos também faz o O Aparelho Formal da enunciação: que
coração vibrar. Lembram o que dizia aparelho é este? É o aparelho que o locu-
Sapir nas palavras iniciais? Esta é a tor constrói a cada vez que se enuncia. A
minha hipótese: se uma língua vale a cada vez que constrói (novos) sentidos.
pena ser estudada, porque há textos A cada vez que se torna sujeito de seu
bons para ler nessa língua, então vamos dizer. Portanto, o aparelho formal da
ensinar e aprender a ler. Vamos ensinar língua deve ser reconhecido, compreen-
nosso aluno-locutor a refletir sobre o dido, lido, apreendido nos diferentes
funcionamento da língua, analisar e textos usados em sala de aula, para que
entender o emprego das formas da lín- nossos alunos-locutores possam, a cada
gua, percebendo as relações linguísticas vez que se enunciam – e esperamos que a
construídas pelo emprego das formas, escola possa permitir isso cada vez mais
ou seja, pelo aparelho formal da língua, –, construir um aparelho da enunciação

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que se renova a cada vez que se fala. A são significativas as descobertas dos
cada vez que faz vibrar o coração. diferentes empregos das formas e seus
Acredito, portanto, que o aparelho inteligentes arranjos combinatórios. Afi-
formal da língua tenha de ser ensinado nal, a língua do homem fala em palavras.
nas atividades de leitura realizadas na Portanto elas – as palavras – precisam
escola. Para que o aparelho formal da ser lidas, para que se compreendam as
enunciação possa ser construído a cada possibilidades desses arranjos combi-
enunciação de nossos alunos. Precisa- natórios (emprego das formas), a fim de
mos, sim, de professores que descrevam semantizá-los e afetar a língua inteira
as estruturas linguísticas, ou o aparelho (emprego da língua), possibilitando
formal da língua, mas aproximem essa uma verdadeira leitura de textos, para
descrição da língua em uso. Caso con- entendê-los e escrevê-los, seja como res-
trário, não servirá para nada. E o pior, posta a uma leitura anterior, seja como
não se ensinará língua portuguesa na necessidade de se ser livre, porque a
escola. Afinal, saber uma língua serve língua – assim – permite.
para quê? Serve para ler bons textos,
como diz Sapir, ou (apenas) serve para The formal apparatus
viver, como diz Benveniste. of enunciation:
what apparatus is this?
Considerações (nunca)
finais Abstract
The proposal of this study deals
Finalizando, nunca definitivamente, with the teaching of the Portuguese
trago Sapir (1969, p. 42): language in school from an
A linguística não oferece nem o arroubo enunciative perspective, a reflection
nem o poder instrumental da matemática that provides the elementar school
e também não apresenta o apelo estético student an opportunity to enunciate,
universal da música, mas sob seu aspecto in language and by language, and to
técnico de caranguejo a se arrastar oculta- be the subject of its own enunciation
-se aquele mesmo espírito clássico, aquela in the school as a privileged space
mesma liberdade na contensão, que anima to think the use of the language.
a matemática e a música nos seus momentos For this, the discussion is supported
mais puros” (grifo da professora de sintaxe by the text of the linguist Émile
que hoje apresenta essas reflexões). Benveniste, The formal apparatus of
enunciation, published in 1970 in the
Portanto, apropriar-se do aparelho
periodic Langages, and constituted
formal da língua (pela leitura) e cons- part of the Problemas de linguística
truir com ela um aparelho de enuncia- geral II. In this article addressed
ção pode ser libertador. Pode deixar as especially to linguists, Benveniste
makes a distinction between the use
aulas de língua portuguesa na escola
of forms and the use of language.
mais significativas, justamente porque

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This dichotomy justifies the necessity BENVENISTE, Émile. (1963). Vista d’olhos
of thinking the language teaching sobre o desenvolvimento da linguística. In:
from an enunciative perspective ______. Problemas de linguística geral I. Tra-
given that the student-speaker, when dução Maria da Glória Novak e Maria Luisa
appropriating the forms, is in an Neri. Campinas, SP: Pontes, 1995. 19-33.
absolute relation with the school, BENVENISTE, Émile. (1970). O aparelho
with society, with the world and, formal da enunciação. In: ______. Problemas
above all, with a living language. de linguística geral II. Tradução Eduardo
Guimarães et al. Campinas, SP: Pontes,
Keywords: Formal apparatus of enun- 1989. p. 81-90.
ciation. Use of forms. Use of the lan-
guage. Teaching Portuguese language. FLORES, Valdir do Nascimento. Introdução
à teoria enunciativa de Benveniste. São Pau-
lo: Parábola, 2013.
Notas SAPIR, Edward. Linguística como ciência.
Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1969.
1
Este texto traz parte da minha pesquisa atual,
cujo título é “Ler e escrever textos na escola: SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguís-
atividades, necessariamente, enunciativas”, tica geral. Tradução Antônio Chelini, José
projeto de pesquisa produtividade CNPq. Paulo Paes, Izidoro Blikstein. Organização
2
Sugiro a leitura da Dissertação de Mestrado Charles Bally, Albert Sechehaye. Colabora-
de Fabio Aresi. Brilhante estudo que traz uma
ção de Albert Riedlinger. 27. ed. São Paulo:
análise minuciosa sobre O Aparelho Formal da
Enunciação.
Cultrix, 2006.
3
“Sintetiza” porque tomo este texto, principal-
mente, como um organizador dos anteriores. Há
leitores que o tomam, apenas, como prospectivo
da Teoria da Enunciação.
4
Langages, Paris, Didier – Larousse, 5º ano,
n. 17, p. 12-18, 1970.
5
Fonds Benveniste, BnF (apud FENOGLIO,
2011, p. 275-276).

Referências
ARESI, Fábio. Síntese, organização e abertu-
ra do pensamento enunciativo de Émile Ben-
veniste: uma exegese de O Aparelho Formal
da Enunciação. 2012. Dissertação (Mestrado
em Letras) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
BENVENISTE, Émile. (1954). Tendências
recentes em linguística geral. In: ______.
Problemas de linguística geral I. Tradução
Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri.
Campinas, SP: Pontes, 1995. p. 3-18.

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