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Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

Processo: 399/18.2T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
GRAVAÇÃO DA PROVA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 26-01-2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Tendo a recorrente especificado os pontos da matéria de facto que
considera mal julgados; indicado os concretos meios de prova,
documental e testemunhal, que, em seu entender, impunham decisão
diversa sobre esses pontos de facto; indicado com exactidão as
passagens da gravação em que se funda (o início e o termo de cada um
dos depoimentos), apresentando até a respectiva transcrição; e indicado
a decisão que deveria ter sido proferida sobre os pontos de facto
impugnados, tanto basta para se poder afirmar que a recorrente cumpriu
os ónus que sobre si impendiam quanto à fundamentação da
impugnação da decisão de facto.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:


I.
AA. intentou a presente acção declarativa de condenação com processo
comum contra BB. e marido CC. e DD. e marido EE..
Pedindo que fosse decretada:
a) A nulidade do negócio jurídico celebrado por escritura pública de
compra e venda realizada a 9 de Agosto de 2012, por simulação
absoluta; ou, caso assim não se entenda,
b) A nulidade do negócio jurídico celebrado por escritura pública de
compra e venda realizada a 9 de Agosto de 2012, por o mesmo ser
ofensivo dos bons costumes; ou, caso assim não se entenda,
c) A anulação do negócio jurídico celebrado por escritura pública de
compra e venda realizada a 9 de Agosto de 2012, por o mesmo ser
usurário; ou, caso assim não se entenda,
d) A anulação do negócio jurídico celebrado por escritura pública de
compra e venda realizada a 9 de Agosto de 2012, por o mesmo ser
doloso; ou, caso assim não se entenda,
e) A nulidade parcial do negócio jurídico celebrado por escritura
pública de compra e venda realizada a 9 de Agosto de 2012, por
simulação relativa, validando-se a doação modal realizada, sempre se
constituindo usufruto a favor da autora e do filho desta sobre todos os
imóveis assim doados, e fazendo sempre depender a doação do encargo
sobre os réus e prestação de auxílio e assistência ao filho da autora, nos
termos e para os efeitos do artigo 963.º do CC;
ou, caso assim não se entenda, e no caso de tudo quanto se pede
improceder,
f) Devem os réus ser condenados a pagar à autora o valor de mercado
dos imóveis adquiridos.
Como fundamento, alegou a autora a sua especial fragilidade e
necessidade; que, por via da sua idade avançada, estado de saúde,
analfabetismo e necessidade de acautelar o bem-estar futuro do filho,
que padece de doença psicológica, sucumbiu na teia de promessas
frívolas e astuciosas dos réus, o que determinou a celebração de
negócio totalmente viciado, ferido pela simulação, pela ofensa aos bons
costumes, pela usura e pelo dolo, consistente na declarada venda aos
demais réus de vários imóveis que integravam o património comum da
autora e marido, falecido.
Pessoal e regularmente citados, os réus vieram contestar, pedindo a
improcedência da acção, alegando serem falsos os factos alegados para
substanciar os vícios invocados.
Foi realizada audiência final, após o que foi proferida sentença com
este dispositivo:
Julga-se a acção improcedente, por não provada, absolvendo os 1ºs
réus, BB. e seu marido CC. e 2ºs réus, DD. e marido EE., da totalidade
das pretensões contra si deduzidas, sem prejuízo agora da condenação
dos réus a reconhecerem estarem obrigados a prestar assistência à
autora até à morte desta.
Discordando, a autora interpôs recurso de apelação, que a Relação
julgou improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Ainda inconformada, a autora vem pedir revista, tendo formulado as
seguintes conclusões:
I – No recurso de apelação que a Recorrente interpôs da decisão
proferida em 1ª instância, esta impugnou, além do mais, a decisão
proferida quanto à matéria de facto, cumprindo todas as exigências
legais relativas à impugnação da matéria de facto, nomeadamente as
previstas nos nºs 1 e 2 do artigo 640.º do CPC a saber:
- A especificação dos concretos pontos da matéria de facto que
considera incorrectamente julgados – cfr. páginas 2, 45, 67, 77, 103 e
109 das suas alegações de recurso.
- Especificação e indicação dos meios probatórios que impunham,
sobre aqueles concretos pontos da matéria de facto, decisão diversa da
proferida na sentença recorrida – cfr. páginas 2 a 45; 45 a 67; 67 a 7;
77 a 103; 103 a 109; 109 das alegações de recurso e as conclusões nºs
I a IV; V, VI a VIII; IX a XI; XII e XIII e XIV das suas alegações de
recurso.
- Indicando a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre
cada um dos pontos da matéria de facto por si impugnados – cfr.
conclusões das alegações de recurso nºs IV; V; VIII; XI; XII e XIII e
XIV.
II – Ao rejeitar o recurso em causa, no que respeita à impugnação da
matéria de facto, violou o acórdão recorrido o disposto nos artigos
640º e 662.º do CPC;
III – O acórdão recorrido, ao rejeitar como rejeitou, a impugnação da
matéria de facto com fundamento no não cumprimento dos ónus do
artigo 640º do CPC, violou normas processuais que este Tribunal pode
apreciar – cfr. alínea b) do nº 1 do artigo 674.º do CPC
IV – Razões pelas quais deverá o acórdão em apreço ser anulado,
determinando-se que o processo baixe ao Tribunal da Relação …….,
para que aí seja reapreciada a prova produzida nos autos nos moldes
peticionados pela recorrente e, em consequência, se revogue a decisão
da 1º instância, substituindo-a por outra que reaprecie a matéria de
facto e, em consequência, a matéria de direito.
V- O acórdão recorrido violou o disposto no artigo 640.º do Código do
Processo Civil.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre decidir.
II.
Questões a resolver:
Discute-se se, no recurso de apelação, foram satisfeitos pela recorrente
os requisitos legais da impugnação da decisão de facto.
III.
Foram considerados provados os seguintes factos:
1. A autora e o seu filho, FF., sucederam a GG. que faleceu a …… de
2011.
2. Compunha o património hereditário naquela data os seguintes
imóveis:
- A fracção autónoma designada pela letra “A”, composta pelo rés-do-
chão …, destinado a comércio, do prédio urbano constituído em regime
de propriedade horizontal sito na Rua …….., da freguesia …….,
concelho ………, descrito na Conservatória do Registo Predial ……..
sob o n.º …….. e inscrito na respectiva matriz sob o n.º …….;
- A fracção autónoma designada pela letra “B”, composta pelo ……..
andar ……. e sótão para arrumos, destinado a habitação, do prédio
urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua
……, da freguesia ……., concelho de ….., descrito na Conservatória
do Registo Predial …… sob o n.º ……. e inscrito na respectiva matriz
sob o n.º …….;
- A fracção autónoma designada pela letra “C”, composta pelo ……..
andar …. e sótão para arrumos, destinado a habitação, do prédio urbano
constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua ……, da
freguesia …….., concelho de ……., descrito na Conservatória do
Registo Predial ……. sob o n.º ……. e inscrito na respectiva matriz sob
o n.º ……., tudo nos exactos termos melhor e integralmente constante
do documento junto sob o n.º 1 com a petição inicial e que aqui se tem
por reproduzido para todos os efeitos da lei.
3. No ano de 2012, a herança indivisa de GG. estava em processo de
regularização de dívida tributária, tendo a mesma sido paga em
prestações.
4. Por escritura pública de 9 de Agosto de 2012, os 1.º e 2.ª réus
declararam comprar e a autora vender-lhes os imóveis a que se alude no
ponto 2.
5. Na mesma data foi celebrada uma escritura de constituição de
usufruto a favor da autora relativamente à fracção designada pela letra
“C” identificada no ponto 2.
6. A autora, o filho desta e os restantes réus são vizinhos.
7. O filho da autora outorgou procuração a favor da 1.ª ré, BB., junta a
fls. 21 e 22, que aqui se dá por integralmente reproduzida, mediante a
qual conferia à mesma poderes para em nome dele, vender os imóveis
descritos no ponto 2, pelo preço e nas condições que entendesse, para
dar quitação e ainda celebrar negócio consigo mesma.
8. A 1.ª ré interveio na escritura a que se alude no ponto 4, em
representação do filho da autora, na qualidade de vendedor.
9. Após a morte do seu marido, a autora sentiu-se sozinha e abatida,
pela perda do cônjuge e sempre manifestou preocupação em acautelar o
futuro do seu filho.
10. O filho da autora, apesar de plenamente capaz, padece, ao menos,
de perturbação emocional/comportamental, que se traduz em episódica
falta de vontade em participar nas actividades habituais/normais, num
comportamento ora apático ora hiperactivo, em mudanças imprevistas e
rápidas nos sentimentos e nos níveis de energia; tendo que cumprir
determinada medicação, sob pena de evidenciar ao menos alterações do
humor, da energia e do comportamento social.
11. No quadro deste isolamento/solidão da autora e da preocupação
desta sobre quem a assistiria em caso de doença e no fim da sua vida,
como quem assistiria o seu filho se a autora se tornasse incapaz de o
fazer e quem o faria depois dela falecer, a autora e o seu filho
entenderam que deveriam arranjar alguém que tratasse de ambos,
auxiliando-os na fase em que se encontravam, e auxiliando o filho da
autora depois da morte desta ou quando esta já não pudesse fazê-lo.
12. Os 1.º e 2.º réus eram presença assídua na vida destes e mantinham
com a autora e com o filho desta uma relação de amizade e grande
proximidade existencial, assistindo o filho da autora e a própria,
nomeadamente nas deslocações a médicos, mas ainda na solução de
problemas práticos destes (dívidas fiscais do marido e pai, falecido),
proporcionando-lhes variadas vezes refeições e convidando-os para sair
e conviver, partilhando a vida familiar com eles.
13. Foi neste quadro que a autora e o seu filho combinaram com os réus
a transmissão da propriedade do prédio composto pelas três fracções já
identificadas, conquanto estes assumissem também o encargo de
tratarem da autora e do filho da autora até à morte de ambos, quando
esta já não o pudesse fazer, obrigação, esta, que não ficou consignada
no título de transmissão.
14. O filho da autora tomou conhecimento dos termos do negócio a
outorgar ao menos na ocasião em que passou procuração à co-ré.
15. O preço fixado na referida escritura de compra e venda a que se
alude no ponto 4, é inferior ao valor de mercado dos referidos imóveis.
16. Em Setembro de 2015, os réus ocuparam a fracção “A” e
logradouro que lhe é contíguo, usando aquela fracção destinada ao
comércio.
Foram considerados não provados os seguintes factos:
a) Para além do referido em 9, após a morte do marido da autora, esta
sucumbiu num estado enfermo, afirmando-se para ela a constatação de
uma necessidade prática e urgente de acautelar o futuro do filho, ora
autor.
b) Para além do referido em 10, o filho da autora padece de perturbação
mental, doença mental que se traduz em problemas de concentração e
memória, associado a uma vaga sensação de estar desligado de si
próprio e dos que os rodeiam, medo e desconfiança dos outros e uma
estranha sensação de se sentir nervoso, com alterações graves no sono e
no apetite.
c) O filho da autora, fruto da doença de que padece, é uma pessoa frágil
e influenciável.
d) Se não cumprir a medicação, o filho da autora evidencia alterações
do pensamento.
e) A autora é analfabeta, sabendo apenas desenhar o seu nome.
f) Para além do referido em 11, era urgente/premente a preocupação da
autora em acautelar a situação do seu filho, já que o estado de saúde da
autora piorava a cada dia que passava e também o filho da autora era
assolado por crises próprias da sua perturbação – que o obrigavam a
ficar de cama sem se poder mexer.
g) Para além do provado em 12, a autora combinou com os restantes
réus que lhes doaria a sua casa – prédio composto pelas três fracções já
identificadas.
h) E reservando para ela e para o autor, o usufruto de todas as fracções
autónomas, até á morte de ambos.
i) Foi com vista à celebração de um negócio com este conteúdo que o
filho da autora subscreveu a procuração assente em 7.
j) Munidos dessa procuração, os 1ºs e 2ºs réus conseguiram afastar o
filho da autora da celebração do negócio, proferindo em seu nome,
declaração diversa das instruções dadas pelo mesmo.
l) Conseguiram assim abster-se de constituir usufruto a favor do filho
do autor sobre todos aqueles imóveis.
m) Os réus não pagaram o preço declarado pelos imóveis.
n) A autora, ao outorgar a declaração de venda, pelo estado psicológico
em que se encontrava, o ascendente dos demais réus sobre ela e o seu
analfabetismo, fê-lo porque os demais réus a convenceram que os
termos do negócio como declarado, os beneficiaria (no confronto agora
com o querido) perante a Administração Fiscal, não alterando já as
obrigações assumidas reciprocamente.
o) A autora e o seu filho nunca quiseram o negócio que foi
efectivamente celebrado em seu nome e desconheciam-no, ao menos
nos moldes em que foi celebrado;
p) Os demais réus convenceram a autora a outorgar uma venda não
querida, sob a argumentação de que esta seria fiscalmente mais
favorável para si compradores ou para a vendedora e bem assim a
convenceram a que não ficasse a constar o usufruto a favor daquela e
do filho desta sobre a totalidade dos prédios.
q) A autora suportou os custos associados à transmissão dos imóveis.
r) A autora só consentiu que os réus ocupassem a fracção nos termos
referidos no ponto 16 no pressuposto que estes iriam cumprir o acordo
a que se alude no ponto 13.
s) A autora, após ter recuperado da operação cirúrgica a que foi sujeita
e face à detioração da sua relação com os réus, com a ajuda de
terceiros, em 2017 descobriu que não existia qualquer usufruto a favor
do seu filho e que apenas tinha constituído usufruto a favor dela e de
uma das fracções.
IV.
Afirma-se na fundamentação do acórdão recorrido que a ora recorrente
não cumpriu cabalmente os ónus de impugnação da matéria de facto
nos termos estabelecidos no citado art. 640º do CPC.
A recorrente tem entendimento diferente, defendendo que cumpriu as
exigências legais da impugnação e que o acórdão recorrido incorre em
erro de interpretação e aplicação das referidas normas.
Vejamos.
Dispõe o art. 640º do CPC:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o
recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente
julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de
registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os
pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões
de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o
seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro
na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao
recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva
parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se
funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos
excertos que considere relevantes.
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal,
incumbe ao recorrido (…)
Tem sido reiteradamente entendido neste Supremo que a impugnação
da decisão de facto não se destina a que a Relação proceda a "uma
apreciação sistemática e global de toda a prova produzida em
audiência", "incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto,
que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e
fundamentar"[2].
Recai assim sobre o recorrente "um especial ónus de alegação", quer
quanto à delimitação do objecto do recurso, quer no que respeita à
respectiva fundamentação.
Essa delimitação do âmbito do recurso, circunscrevendo o seu objecto,
concretiza-se através da apontada exigência de especificação dos
concretos pontos de facto impugnados.
Para fundamentar a impugnação deve o recorrente especificar os
concretos meios probatórios que, na sua perspectiva, impunham
decisão diversa da recorrida e, sendo caso disso (prova gravada),
indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda.
O recorrente deve ainda especificar a decisão que, no seu entender,
deve ser proferida no que respeita aos factos impugnados.
É com base nos referidos elementos, assim delimitados e concretizados,
que o tribunal irá reapreciar a prova, sem prejuízo de, oficiosamente,
estender a sua análise a outras provas que tenha por relevantes.
A inobservância pelo recorrente dos apontados requisitos é sancionada
com a rejeição imediata do recurso na parte afectada – citado art. 640º,
nº 1 e nº 2, al. a).
Essa cominação parece indiscutível no que toca às especificações
expressamente previstas no nº 1, dada a sua indispensabilidade:
constituem elementos essenciais e necessários à viabilidade da
impugnação, pelo que parece inevitável e ajustada a rejeição liminar.
Sublinhe-se, no entanto, que, no caso da al. b) do nº 1, a exigência não
fica satisfeita com a mera especificação dos meios de prova: a
fundamentação da impugnação deve ser feita para cada facto distinto,
com indicação dos meios de prova que justificavam uma resposta
diferente da que foi dada a cada um dos factos.
O sistema, como tem sido reconhecido, não admite recursos genéricos
contra a decisão da matéria de facto[3].
Por outro lado, no que respeita ao requisito previsto no nº 2, al. a) –
indicação exacta das passagens da gravação em que se funda a
impugnação –, apesar da letra do preceito, parece justificar-se alguma
maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou
menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a
extensão dos depoimentos e das matérias em discussão; daí que se
entenda que a omissão só deve relevar se dificultar gravemente o
exercício do contraditório pela parte contrária ou o exame pelo tribunal
de recurso[4].
É esta, no fundo, uma preocupação constante na jurisprudência do
Supremo sobre esta questão: em atenção aos princípios que devem
enformar o processo civil (designadamente o da prevalência do mérito
sobre os requisitos meramente formais), as razões que podem obstar à
reapreciação da matéria de facto pela Relação carecem de "uma
interpretação funcionalmente adequada e compaginável com as
exigências resultantes do princípio da proporcionalidade e da
adequação – evitando que deficiências ou irregularidades puramente
adjectivas impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o
conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de
desproporcionadas cominações ou preclusões processuais"[5].
Assim, como se decidiu no Acórdão de 08.11.2016:
"Apenas violações grosseiras, mormente, quanto ocorre omissão
absoluta e indesculpável do cumprimento do ónus contido no art. 640º
do Código de Processo Civil, que comprometam decisivamente a
possibilidade do Tribunal da Relação proceder à reapreciação da
matéria de facto, a saber: a) indicação dos pontos de facto que se
pretendem ver reapreciados; b) indicação dos meios de prova
convocados para a reapreciação; c) indicação do sentido das respostas
a alterar; d) indicação, com referência à acta da audiência de
discussão e julgamento, dos depoimentos gravados em suporte digital,
podem conduzir à rejeição liminar, imediata, do recurso – art. 640º,
nº2, al. a), 1ª parte, do Código de Processo Civil.
Postas estas considerações, vejamos o caso dos autos.
No acórdão recorrido, depois de se expor desenvolvidamente o regime
aplicável, escreveu-se o seguinte:
«"In casu”, analisadas as conclusões do recurso de apelação em apreço,
verifica-se que nelas a apelante referindo-se abundantemente a temática
relativa à impugnação da matéria de facto e à prova gravada, todavia
não indicou os concretos pontos de facto, decididos em 1.ª instância
que no seu entendimento foram incorrectamente julgados, limitando-se
por fim a expressar o que, no seu entender deve ser julgado agora
provado, sendo certo que o teor dessa factologia que agora aventa e
considerando o objecto do recurso quanto à questão da impugnação da
decisão da matéria de facto é sempre a respectiva decisão proferida em
1.ª instância e não um julgamento autónomo feito por este tribunal de
recurso, não corresponde a serem agora julgados não provados, factos
que tenham sido julgados provados em 1.ª instância, nem a que se
julguem agora como provados factos que tenham sido julgados não
provados em 1.ª instância.
Mas mais, foi com muita dificuldade e esforço que não nos é exigível
que, depois da análise das abundantes e manifestamente prolixas
alegações da apelante que chegámos à conclusão que a mesma se
insurge, sem, contudo, nunca o afirmar expressamente, contra as
questões factuais decididas em 1.ª instância e constantes das alíneas a),
c), f), g), h), m), o) e s) do complexo fáctico julgado não provado em
1.ª instância e, contra o facto constante do ponto 15 do complexo
fáctico julgado provado em 1.ª instância. E como acima já deixámos
consignado, relativamente a tais factos decididos em 1.ª instância,
propõe a autora/apelante, ao que nos podemos aperceber, que em
substituição de tais factos se dêem como provados os que agora indica,
os quais, contudo, vendo o teor da sua p. inicial, não correspondem
exactamente ao que alegou nessa peça processual. Ora, como já se
referiu acima, preceitua o n.º 1 do art.º 640.º do C.P.Civil que: “Quando
seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente
obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos
pontos de facto que considera incorrectamente julgados (…)” e como
se entendeu no Ac. do STJ de 1.10.2015, in www.dgsi.pt, “Servindo as
conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser
identificadas com precisão os pontos de facto que são objecto de
impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma
explícita na motivação do recurso”, cujo entendimento, é nesta matéria,
o nosso.
E finalmente, não obstante a apelante ter junto aos autos a transcrição
integral da gravação de todos os depoimentos proferidos em audiência
de julgamento dos autos e de ter ainda, em sede quer de alegações, quer
de conclusões ter indicado com exactidão as passagens da gravação dos
depoimentos em que estriba a sua impugnação da decisão de facto e de
ainda ter procedido à transcrição dos enxertos das mesmas que reputa
de relevantes, certo é que a apelante se limitou a uma tal objectividade,
ou seja, em parte alguma das suas extensas alegações e conclusões a
autora/apelante desenvolveu uma, ainda que mínima, análise crítica
dessas provas, por forma demonstrar a este tribunal de recurso que a
decisão proferida em 1.ª instância sobre cada um desses concretos
pontos de facto não é plausível, possível ou não é a mais razoável.
Na verdade, para que o ónus a cargo do recorrente seja cumprido é
também necessário, isto é, exige-se ao recorrente, uma análise crítica
da prova invocada, em confronto com o que consta da motivação da
sentença recorrida, que permita justificar a alteração da decisão
proferida sobre determinados factos.
Todas estas exigências constituem uma decorrência do princípio da
auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da
decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de
inconsequente inconformismo da parte recorrente com o decidido em
1.ª instância. Trata-se, além disso, da imposição de um ónus
perfeitamente lógico e necessário atendendo, por um lado, que ninguém
está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos
pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de
facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo
sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e,
qual a concreta divergência detectada, não só à luz dos depoimentos
objectivos que invoca, mas e, principalmente, à luz da análise crítica
que o julgador de 1.ª instância fez dos mesmos e, por outro lado, para
permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e
devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar,
assim se garantindo o efectivo cumprimento do princípio do
contraditório, cfr. art.ºs 638.º n.º 5 e 640.º n.º 2 al. b), isto sempre tendo
por fundo a motivação da respectiva decisão ora impugnada constante
da decisão recorrida.
“In casu”, temos de concluir, atento tudo o que acima já deixámos
consignado que a apelante não cumpriu devidamente os ónus de
impugnação da decisão da matéria de facto que sobre si impendiam,
razão pela qual, nos termos do preceituado nas normas citadas e
fundamentalmente no n.º 1 do art.º 640.º do C.P.Civil, pelo que se
rejeita o recurso no que concerne à impugnação da decisão da matéria
de facto proferida em 1.ª instância, excepção feita à peticionada
alteração da resposta dada ao facto 15., do complexo factual julgado
provado em 1.ª instância, que apesar de tudo, em nossa convicção não
merece qualquer censura, devendo manter-se inalterado, já que na
economia de toda a decisão da causa, se trata de uma precisão factual
absolutamente inócua, não obstante resultar do teor do relatório pericial
junto a fls.153 a 161 dos autos.
Improcedem as respectivas conclusões da apelante».
Crê-se que não se decidiu bem.
Como se reconheceu nesta fundamentação, apesar da dificuldade
invocada, a recorrente indicou os pontos da matéria de facto que, em
seu entender, foram incorrectamente julgados pela 1ª instância. É
evidente que a sistematização utilizada na exposição da recorrente
poderia ser diferente, tornando mais clara a especificação dos pontos de
facto impugnados, em consonância e correspondência com a sua
enumeração no elenco dos factos julgados (na maioria) não provados e
respectivo teor.
É indiscutível, porém, que, não obstante essa falta de correspondência
formal explícita, tal não obstou a uma completa identificação dos
pontos de facto em questão, como acabou por ser reconhecido no
acórdão recorrido (e é agora confirmado pela recorrente na revista).
Reconhece-se também no acórdão recorrido que:
- A apelante juntou aos autos a transcrição integral da gravação de
todos os depoimentos prestados na audiência de julgamento;
- Indicou também com precisão as passagens da gravação desses
depoimentos em que fundou a impugnação;
- Transcreveu ainda os excertos das passagens que reputou relevantes; e
- Indicou a decisão que deveria ter sido proferida sobre os pontos de
facto impugnados.
Entendeu-se, porém, no acórdão recorrido que a recorrente não
desenvolveu uma análise crítica das provas por forma a demonstrar a
este tribunal de recurso que a decisão proferida em 1.ª instância sobre
cada um desses concretos pontos de facto não é plausível, possível ou
não é a mais razoável.
Com todo o respeito, afigura-se-nos que esta exigência é excessiva,
carecendo de fundamento legal.
Os requisitos que o impugnante da decisão de facto tem de satisfazer
são os indicados no art. 640º do CPC, como acima se referiu, e nestes
não se inclui a aludida análise crítica das provas, pelo menos com a
amplitude e desenvolvimento exigidos no acórdão recorrido, pois é
certo que o recorrente não deixa de proceder a uma, ainda que mínima,
análise crítica, ao partir de determinados meios de prova e, com base
neles, defender que estes deveriam ter conduzido a decisão diferente da
proferida[6].
No caso, como decorre das conclusões do recurso de apelação e foi
reconhecido no acórdão recorrido, a recorrente identificou os pontos da
matéria de facto que considera mal julgados; indicou a prova
documental e os depoimentos das testemunhas que, em seu entender,
impunham decisão diversa sobre esses pontos de facto; indicou o início
e o termo de cada um desses depoimentos e apresentou a transcrição
dos mesmos; e indicou a decisão que deveria ter sido proferida sobre os
pontos de facto impugnados.
Tanto basta, parece-nos, na linha da jurisprudência acima citada, para
se poder afirmar que a recorrente cumpriu os ónus que sobre si
impendiam quanto à fundamentação da impugnação da decisão de
facto.
O acórdão recorrido não pode, pois, manter-se.
Em conclusão:
Tendo a recorrente especificado os pontos da matéria de facto que
considera mal julgados; indicado os concretos meios de prova,
documental e testemunhal, que, em seu entender, impunham decisão
diversa sobre esses pontos de facto; indicado com exactidão as
passagens da gravação em que se funda (o início e o termo de cada um
dos depoimentos), apresentando até a respectiva transcrição; e
indicado a decisão que deveria ter sido proferida sobre os pontos de
facto impugnados, tanto basta para se poder afirmar que a recorrente
cumpriu os ónus que sobre si impendiam quanto à fundamentação da
impugnação da decisão de facto.
V.
Em face do exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão
recorrido, determinando-se que a Relação proceda à apreciação da
impugnação da decisão de facto formulada na apelação, se possível,
pelos mesmos Srs. Juízes Desembargadores.
Custas desta revista pelos recorridos.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2021
F. Pinto de Almeida (Relator)
José Rainho
Graça Amaral
Tem voto de conformidade dos Exmos Adjuntos (art. 15ºA aditado ao
DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
_______________________________________________________

[1] Proc. nº 399/18.2T8PNF.P1.S1


F. Pinto de Almeida (R. 388)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Preâmbulo do DL 39/95, de 15/2. Cfr. Acórdão de 19.02.2015 e de 28.05.2015, em
www.dgsi.pt, como os demais adiante citados. Também Abrantes Geraldes, Recursos no Novo
Código de Processo Civil, 5ª ed., 163.
[3] Cfr. Acórdão do STJ de 28.04.2016.
[4] Cfr. Acórdão do STJ de 19.02.2015.
[5] Acórdão do STJ de 29.10.2015.
[6] Parecendo, aliás, que, pelo teor das conclusões 4ª, 8ª e 9ª da apelação e no que respeita aos
factos não provados das als. m), g) e h) e o), se vai além desse patamar mínimo.

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