Você está na página 1de 14

PHILOSOPHIA ANTIQUA

Princípios essenciais da
Via Ativa-Sapiencial
O filósofo, a filosofia e a sabedoria

O filósofo está a meio caminho entre a


sabedoria e a ignorância. Quanto à
sabedoria, devemos entender que se
trata de um estado transcendente, pois
somente os deuses são sábios. Pode-se
admitir que a sabedoria representa a
perfeição do saber identificado à
virtude. Mas na tradição grega o saber
ou sophía é menos um saber puramente
teórico que um saber-fazer, um saber-
viver, e nele sempre se reconhecerão
traços da maneira de viver, não o saber
teórico.
1
Há duas categorias de seres que não
filosofam: os deuses e os sábios, por
serem eles precisamente sábios, e os
ignorantes, por crerem ser sábios.
Nenhum deus filosofa ou deseja ser
sábio (sophós) – pois já o é –, assim
como, se alguém mais é sábio, não
filosofa. Nem também os ignorantes
filosofam ou desejam ser sábios; pois é
nisso mesmo que está o difícil da
ignorância, no pensar, quem não é um
homem distinto e gentil, nem
inteligente, que lhe basta assim. Não
deseja, portanto, quem não imagina ser
deficiente naquilo que não pensa lhe ser
preciso.

2
Quem são então os que filosofam, se
não são nem os sábios nem os
ignorantes? São os que estão entre esses
dois extremos, e um deles seria o
filósofo. Com efeito, uma das coisas
mais belas é a sabedoria, e a filosofia é
amor pelo belo, de modo que é forçoso
o filósofo estar entre o sábio e o
ignorante.

O filósofo, portanto, nada deve saber


como os ignorantes, mas que, ao
mesmo tempo, é consciente de nada
saber: ele é diferente dos ignorantes
pelo fato de consciente de seu não-
saber, desejar saber, mesmo que sua
representação do saber seja
profundamente diferente da
3
convencional. Privado de sabedoria, de
beleza, do bem, deseja, ama a
sabedoria, a beleza, o bem. Ele é o
Desejo, não um desejo passivo e
nostálgico, mas um desejo impetuoso.

Aparentemente, não há nada mais


simples e mais natural do que essa
posição intermediária do filósofo. Ele
está a meio caminho entre o saber e a
ignorância. Pode-se pensar que lhe
bastará praticar sua atividade de
filósofo para superar definitivamente a
ignorância e alcançar a sabedoria. Mas
as coisas são muito mais complexas.

Com efeito, no segundo plano dessa


oposição entre sábio, filósofos e
4
ignorantes, é possível vislumbrar um
esquema lógico de divisão de conceitos
que é muito rigoroso e não autoriza
uma perspectiva tão otimista. Na
medida em que se opõem os sábios e os
não-sábios, isto quer dizer que há uma
oposição de contradição que não
admite nenhum intermediário: ou se é
sábio ou não, não há meio-termo. Desse
ponto de vista, não se pode dizer que o
filósofo seja um intermediário entre o
sábio e o não-sábio, pois se não se é
“sábio”, se é necessária de
decididamente “não-sábio”. Ele está
votado a jamais alcançar a sabedoria.
Mas nos não-sábios introduz-se uma
divisão: há os que são inconscientes de
sua não-sabedoria, e estes são
5
propriamente os ignorantes, e há os que
são conscientes de sua não-sabedoria, e
estes são os filósofos. Dessa vez, pode-
se considerar que, na categoria dos não-
sábios, os ignorantes, inconscientes de
sua não-sabedoria, são o contrário dos
sábios e, segundo esse ponto de vista,
isto é, conforme essa oposição de
contrariedades, os filósofos são
intermediários entre os sábios e os
ignorantes, na medida em que são não-
sábios conscientes de sua não-
sabedoria: eles não são sábios nem
ignorantes. Essa divisão é paralela a
outra que fora muito corrente na
antiguidade, a distinção entre “o que é
bom” e “o que não é bom”. Entre os
dois não há meio-termo, pois se trata de
6
uma oposição de contradição. Mas,
nisso que não é bom, pode-se distinguir
entre o que não é bom nem mau e o que
é mau. Agora, a oposição de
contrariedade estabelecer-se-á entre o
bom e o mau, e haverá um
intermediário entre o bom e o mau, a
saber, o que não é “nem bom nem
mau”. Esses esquemas lógicos tiveram
importância muito grande na
antiguidade. Com efeito, eles servem
para distinguir as coisas que só se
conhecem mais ou menos e as que são
suscetíveis de graus de intensidade. O
sábio ou o que é bom são absolutos,
eles não admitem variações: não se
pode ser mais ou menos sábio ou mais
ou menos bom. Mas o que é
7
intermediário, o que não é “nem bom
nem mau”, ou o “filósofo”, é suscetível
de mais ou menos: o filósofo jamais
atingirá a sabedoria, mas pode
progredir em sua direção. A filosofia,
portanto, não é a sabedoria, mas um
modo de vida e um discurso
determinado pela idéia de sabedoria.
A etimologia da palavra philosophia, “o
amor, o desejo da sabedoria”, torna-se
então o programa da filosofia como
corrente histórica de realização
espiritual. Pode-se dizer que, deste
modo, a filosofia toma definitivamente
na história uma tonalidade a um só
tempo irônica e trágica. Irônica porque
o verdadeiro filósofo será sempre
aquele que sabe nada saber, que sabe
8
que não é sábio nem não-sábio, que não
está, por sua vez, no mundo dos
ignorantes nem no mundo dos sábios,
nem totalmente no mundo dos homens
nem totalmente no mundo dos deuses,
inclassificável, portanto, sem casa ou
lugar. Trágico, também, porque esse ser
bizarro é torturado e dilacerado pelo
desejo de alcançar essa sabedoria que
lhe escapa e que ama. O filósofo sabe
que não pode alcançar seu modelo e
que jamais será totalmente o que
deseja. Instaura-se, assim, uma
distância insuperável entre a filosofia e
a sabedoria. A filosofia define-se por
ser aquilo do que é privada, isto é, por
uma norma transcendente que lhe
escapa e, contudo, que possui em si de
9
certa maneira. É porque o filósofo
apresenta-se a um só tempo como
aquele que pretende não ter nenhuma
sabedoria e como um ser de quem se
admira a maneira de viver. Porque o
filósofo não é um ser intermediário,
mas um mediador. Ele revela aos
homens alguma coisa do mundo dos
deuses, do mundo da sabedoria. Ele é
como os moldes de silenos que,
exteriormente, parecem grotescos e
ridículos mas, apenas abertos, vê-se que
têm estátuas de deuses.

O filósofo, que toma consciência de si


mesmo aparece não sendo totalmente
do mundo, nem totalmente de fora do
mundo. Ele tem a capacidade de
10
permanecer contente em todas as
circunstâncias. Ele é indiferente a todas
as coisas que seduzem os homens,
beleza, riqueza, vantagem ou outra
coisa qualquer, e que lhe pareça sem
valor. É aquele que aprendeu a ver a
verdadeira beleza; aquele que teve tal
visão atingirá a única via que vale a
pena ser vivida e obterá, dessa maneira,
a excelência (aretê), a virtude
verdadeira. A filosofia aparece dessa
vez como uma experiência de amor.
Assim, o filósofo revele-se como um
ser que, mesmo não sendo um deus,
pois se apresenta antes de tudo como
um homem comum, é superior aos
homens: é um daímon, amálgama de
divindade e humanidade, mas um
11
amálgama não existe por si, ele é
necessariamente ligado a uma
estranheza, quase a um desequilíbrio, a
uma dissonância interna.

Essa definição do filósofo terá


importância capital em toda a história
da filosofia antiga. O filósofo é, por
essência, diferente do sábio e, na
perspectiva dessa oposição de
contradição, o filósofo não se distingue
do comum dos mortais. Pouco importa
que se encontre a um côvado ou a cento
e cinqüenta braças na água, não se
estará menos afogado. Há, de alguma
maneira, uma diferença de essência
entre o sábio e o não-sábio, no sentido
em que somente o não-sábio é mais ou
12
menos suscetível, enquanto o sábio
corresponde a uma perfeição absoluta
que não admite graus. Porém, o fato de
o filósofo ser não-sábio não quer dizer
que não haja diferenças entre o filósofo
e os outros homens. O filósofo é
consciente de seu estado de não
sabedoria, pois deseja à sabedoria,
procura progredir na direção da
sabedoria, que é uma espécie de estado
transcendente que só pode ser atingido
por uma mutação brusca e inesperada.
E, por outro lado, o sábio não existe ou
existe muito raramente. O filósofo pode
progredir, mas sempre para o interior
da não-sabedoria. Ele tende para a
sabedoria, mas de maneira assintótica,
sem jamais poder atingi-la.
13
Por fim, desde a antiguidade, a filosofia
culmina numa “epóptica”, isto é, como
nos mistérios, na revelação suprema da
realidade transcendente. Ela foi
concebida como um itinerário espiritual
ascendente, que corresponde a uma
hierarquia de suas partes. A Ética
assegura a purificação inicial da alma; a
Física revela que o mundo tem uma
causa transcendente e induz, assim, a
que se estudem as realidades
incorpóreas; a Metafísica ou Teologia,
denominada também epóptica – pois
ela é, como nos mistérios, o termo da
iniciação – leva finalmente à
contemplação de Deus.

14

Você também pode gostar