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VII Seminário Vozes da Educação

VII Seminário Vozes da Educação

Daniel de Oliveira
Letícia Pacheco de Mello Trotte
Mairce da Silva Araújo
Maria Tereza Goudard Tavares
ORGANIZADORES

SEMINÁRIO VOZES DA EDUCAÇÃO

Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação:


Regina Leite Garcia, presente!

1ª edição

FFP UERJ

São Gonçalo
2019

sumário 1
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Projeto Gráfico
Daniel de Oliveira

Diagramação
Daniel de Oliveira
Letícia Pacheco de Mello Trotte

CIP - Catalogação na publicação


Elaborada pela bibliotecária Gabriela Faray (CRB7-6643)

Índices para catálogo sistemático:


1. Docentes : Formação de profissional : Educação 370.71

Os direitos dessa obra são reservados aos autores. Qualquer parte dessa obra pode ser
arquivada e/ou reproduzida para fins de estudo e pesquisa, sem fins lucrativos, desde
que devidamente referenciada. Demais usos estão condicionados à autorização por
escrito pelos autores.

1ª edição
2019

Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Faculdade de Formação e Professores
Rua Dr. Francisco Portela, 1470
Patronato, São Gonçalo – RJ

sumário 2
VII Seminário Vozes da Educação

VII SEMINÁRIO VOZES DA EDUCAÇÃO:


RESISTÊNCIAS POLÍTICAS E POÉTICAS NA VIDA E NA EDUCAÇÃO

Comissão organizadora
Prof.ª Dr.ª Maria Tereza Goudard Tavares – FFP UERJ (Coordenação Geral)
Prof.ª Dr.ª Adriana Almeida – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Anelice Astrid Ribetto – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Elaine Ferreira Rezende de Oliveira – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Inês Ferreira de Souza Bragança – UNICAMP
Prof.ª Dr.ª Heloisa Josiele Santos Carreiro – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Lúcia Velloso Maurício – FFP UERJ
Prof. Dr. Luiz Fernando Conde Sangenis – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Mairce da Silva Araújo – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Márcia Soares de Alvarenga – FFP UERJ

Secretaria Geral
Cintia Larangeira – PPGEdu FFP UERJ
Danusa Tederiche Borges de Faria – PPGEdu FFP UERJ

Comissão Científica
Prof.ª Dr.ª Inês Ferreira de Souza Bragança – UNICAMP (coordenação)
Prof.ª Dr.ª Adriana Almeida (coordenação)
Prof.ª Dr.ª Adriana Varani – UNICAMP
Prof.ª Dr.ª Alexandra Garcia – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Andrea Feztner – UNIRIO
Prof.ª Dr.ª Anelice Astrid Ribetto – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Cláudia das Chagas – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Claudia Miranda – UNIRIO
Prof.ª Dr.ª Daniela Finco – UNIFESP
Prof.ª Dr.ª Denize de Aguiar Xavier Sepulveda – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Elaine Ferreira Rezende de Oliveira – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Fabiana Eckhard – Universidade Católica de Petrópolis
Prof.ª Dr.ª Gilcelene Damasceno Barão – UERJ/ FBEF
Prof.ª Dr.ª Helena Amaral da Fontoura – FFP UERJ
Prof. Dr. Heli Sabino de Oliveira – UFMG
Prof.ª Dr.ª Heloisa Josiele Santos Carreiro – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Licia Cristina Araujo da Hora – IFMA
Prof.ª Dr.ª Lúcia Velloso Maurício – FFP UERJ
Prof. Dr. Luiz Fernando Conde Sangenis – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Mairce da Silva Araújo – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Márcia Soares de Alvarenga – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Maria Antonia Manresa – Universidad Andina Simón Bolivar/ Sede Quito, Equador
Prof.ª Dr.ª Maria Clarisse Vieira – UNB
Prof.ª Dr.ª Maria Isabel Gutiérrez Chávez – Universidad Nacional de Cajamarca e Escuela Campesina
Alternativa de Pomabamba/ Peru
Prof.ª Dr.ª Maria Tereza Goudard Tavares – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Nilda Guimarães Alves – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Rosimeri de Oliveira – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Sônia de Oliveira Câmara Rangel – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Vania Finholdt Angelo Leite – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Vânia Araújo – UFES

Comissão Cultural
Prof.ª Dr.ª Elaine Ferreira Rezende de Oliveira – FFP UERJ
Prof.ª Dr.ª Maria Tereza Goudard Tavares – FFP UERJ
Mestrando Carlos César de Oliveira

sumário 3
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Bolsistas de Apoio
Coordenação: Profª Drª Heloisa Josiele Carreiro
Adrielle Lisboa – PPGEdu FFP UERJ
Bruna Botino – PPGEdu FFP UERJ
Carlos César Oliveira – PPGEdu FFP UERJ
Clarissa Moura Quintanilha – PPGEdu FFP UERJ
Euridice Hespanhol Macedo Pessoa – PPGEdu FFP UERJ
Glasiele Lopes – PPGEdu FFP UERJ
Larissa Denny Ré – FE UNICAMP
Letícia Pacheco de Mello Trotte – PPGEdu FFP UERJ
Victoria Guilherme Guedes de Moura – PPGEdu FFP UERJ
Mariel Costa Moderno – Bolsista Proatec FFP UERJ

Bolsistas de Extensão do Vozes da Educação


Leonardo Coutinho de Souza
Tamyres de Miranda
Thaís Alves de Souza

Monitores do VII Seminário Vozes da Educação


Aline Benvinda Bastos
Ana Carolina Paulo da Cruz
Arina Martins
Camile Abreu
Daiana Pilar Andrade de Freitas Silva
Derick Garcia Fonseca
Eliane Bastos Salomão
Elisanete Alves de Oliveira
Erica Renata Vilela de Morais
Evelyn Montenegro Carvalho
Gabriely Santana de Souza Pereira
Ingrid Gomes de Oliveira da Venda
Ingrity Leandro da Silva
Isabela Santiago Franca
Isabele Cristina Fonseca Ramos
Jennifer Schulze da Silva
Juliana de Oliveira Galvão
Juliana Peres
Ketley Flor Soares Bially
Lays Duarte
Leidiane dos Santos Aguiar Macambira
Lidiane Dias de Oliveira
Maria Clara Fortes
Maria da Conceição de Brito Borges
Maria José da Silva Vaz
Maria Martinha Barbosa Mendonça
Mariana da Silva Machado Nascimento
Nayara de Oliveira Nunes
Paulo Felipe Passos
Phellipe Patrizzi Moreira
Raquel Rosa Reis Monteiro
Regina Aparecida Correia Trindade
Rejane Lucia Amarante de Macedo
Roberta Dias de Sousa
Rosângela Tavares Araújo
Samira Lucia Dias dos Santos de Sousa
Sara Busquet
Tatiane Oliveira Santos Pereira Abreu
Thaís Coutinho
Wendy Timotio Gomes
Yngrid Lopes de Medeiros

sumário 4
VII Seminário Vozes da Educação

PROGRAMAÇÃO GERAL DO EVENTO

DIA 02 DE DEZEMBRO DE 2019 – SEGUNDA-FEIRA


Horário Roteiro
08:00 – 18:00h Credenciamento
12:00 – 14:00h Almoço
13:00 – 14:00h Tertúlia do Vozes (atividade cultural simultânea)
MPB
14:00 – 16:00h Mini-curso (atividade simultânea)
Redes de Colectivos Argentinos que hacen investigación em
las escuelas: a Red DHIE
Professoras Natalia Lago e Cecília Iglesias
Instituto Superior de Formación Docente Paulo Freire- sede
Centenário/Neuquén/Argentina
14:00 – 15:00h Apresentação de trabalhos Rodas de conversa
15:00 – 17:00h Vozes em tela (atividade cultural)
Filme: Sr. Juareis
Direção Romário Regis
17:00 – 18:00h Vozes da (Re)existência
Roda cultural de Alcântara – RCA
18:00h Mesa de abertura do VII Vozes da Educação
19:00 – 21:00h Conferência de abertura do VII Vozes da Educação
Por uma vida digna de ser vivida: resistências plurais
Prof. Dr. Pedro Cunca Bocayuva (UFRJ)
Prof.ª Dr.ª Carmen Lúcia Vidal Peres (FE/UFF/GRUPALFA)
Coordenação: Prof.ª Dr.ª Mairce Araújo (Vozes da Educação/
FFP UERJ)

sumário 5
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

DIA 03 DE DEZEMBRO DE 2019 – TERÇA-FEIRA


Horário Roteiro
08:00 – 18:00h Credenciamento
08:00 – 10:00h Apresentação de trabalhos Rodas de conversa
10:00 – 12:00h 1ª Mesa coordenada
Políticas, Poéticas e Resistências em Educação: o que pode a escola?
Profª. Drª. Célia Linhares (FE/UFF)
Prof. Dr. Márcio Rodrigo Caetano (FE/FURGS/RS)
Coordenação: Prof.ª Dr.ª Anelice Ribetto (Vozes da Educação/ FFP UERJ)
12:00 – 14:00h Almoço
12:00 – 13:00h Vozes do Vozes (atividade cultural simultânea)
Contação de História
Professora Heloisa Carreiro – FFP UERJ
13:00 – 14:00h Tertúlia do Vozes (atividade cultural simultânea)
Forró
14:00 – 15:30h Apresentação de trabalhos Rodas de conversa
14:00 – 16:00h Mini-curso (atividade simultânea)
Redes de Colectivos Argentinos que hacen investigación em las escuelas:
a Red DHIE
Professoras Natalia Lago e Cecília Iglesias
Instituto Superior de Formación Docente Paulo Freire- sede
Centenário/Neuquén/Argentina
15:00 – 17:00h Vozes em tela (atividade cultural simultânea)
Filme: Costureiras
Direção Mailsa Passos, Virgínia Gualberto e Rita Ribes
17:00 – 18:00h Vozes da (Re)existência (atividade cultural)
Mesa Professoras Tecelãs
Mairce Araujo e Reinaldo Fleuri
19:00 – 21:00h 2ª Mesa coordenada
Pode a professora falar? Contribuições de Regina Leite Garcia à questão
da professora-pesquisadora
Profª. Drª. Carmen Sanches (FE/UNIRIO)
Profª. Drª. Edwiges Zaccur (FE/UFF)
Coordenação: Prof.ª Dr.ª Heloisa Carreiro (Vozes da Educação/ FFP
UERJ)

sumário 6
VII Seminário Vozes da Educação

DIA 04 DE DEZEMBRO DE 2019 – QUARTA-FEIRA


Horário Roteiro
8:00 – 18:00h Credenciamento
8:00 – 10:00h Apresentação de trabalhos Rodas de conversa
10:00 – 12:00h 3ª Mesa coordenada
Diálogos sobre diálogos: a formação de professores(as) e os desafios do
tempo presente
Prof. Dr. Wanderley Geraldi (FE/ UNICAMP)
Prof. Dr. José Valter Pereira (UFRRJ)
Coordenação: Prof.ª Dr.ª Elaine Oliveira (Vozes da Educação/ FFP UERJ)
12:00 – 14:00h Almoço
12:00 – 13:00h Vozes do Vozes (atividade cultural simultânea)
Poesias na escada
Eurídice, Liliana, Líbia e Carlos
13:00 – 14:00h Tertúlia do Vozes
Samba
14:00 – 15:30h Apresentação de trabalhos Rodas de conversa
14:00 – 16:00h Mini-curso (atividade simultânea)
Redes de Colectivos Argentinos que hacen investigación em las escuelas: a
Red DHIE
Professoras Natalia Lago e Cecília Iglesias
Instituto Superior de Formación Docente Paulo Freire- sede
Centenário/Neuquén/Argentina
15:00 – 17:00h Vozes em tela (atividade cultural simultânea)
Filme: Anamnese
Direção: Clementino Júnior
16:30 – 17:30h Lançamento de Livros (atividade cultural simultânea)
Coordenação: Prof. Luiz Fernando Conde Sangenis (Vozes da Educação/
FFP UERJ)
Local: Miniauditório
17:00 – 18:00h Vozes da (Re)existência
Slam Paz e Guerra
18:00 – 20:00h 4ª Mesa coordenada
A Educação contra a barbárie e a produção da vida
Prof. Dr. Waldeck Carneiro (FE/UFF)
Prof. Dr. Paulo Carrano (FE/UFF)
Coordenação: Prof.ª Dr.ª Marcia Alvarenga (Vozes da Educação/ FFP
UERJ)
20:00h Encerramento do VII Seminário Vozes da Educação

sumário 7
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Dedicado às Professoras
Regina Leite Garcia e Jacqueline Morais
(in memoriam).

sumário 8
VII Seminário Vozes da Educação

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 24
EIXO 1 ......................................................................................................................... 27
MEMORIAL – CONTAR-ME PARA ENCONTRAR-ME COM A
PESQUISA | Mishelle Ninho de Almeida ............................................................ 28
A ESCOLA COMO LUGAR DE MEMÓRIAS E IDENTIDADE:
HISTÓRIA DA ESCOLA MUNICIPALIZADA PROFESSORA NIUMA
GOULART BRANDÃO A PARTIR DAS VOZES DE SEUS SUJEITOS |
Adriana de Freitas Salomão do Nascimento .......................................................... 43
A (AUTO)BIOGRAFIA COMO INSTRUMENTO DE ANÁLISE PARA
PENSAR PROCESSOS FORMATIVOS | Luzia da Silva Henriques ........... 57
REGINA LEITE GARCIA E EU, EM ALGUMAS DE NOSSAS TANTAS
PARCERIAS – ACERCA DA FORMAÇÃO PERMANENTE E
CONTINUADA | Nilda Alves ............................................................................... 72
NARRATIVAS DE PROFESSORAS: FORMAÇÃO E IMPLICAÇÕES
DO FAZER DOCENTE | Flaviane Coutinho Neves Americano Rego ....... 83
FORMAÇÃO ENTRE PARES E A ESCRITA DEPROFESSORAS/ES:
AÇÃO ENTRE COLETIVOSDOCENTES DO BRASIL E PERU | Mairce
da Silva Araújo, Jacqueline de Fatima dos Santos Morais, Danusa Tederiche
Borges de Faria ............................................................................................................ 93
MONITORIA EM EDUCAÇÃO PARA A PAZ | Tania Maria Cordeiro de
Azevedo ...................................................................................................................... 104
RODAS DE CONVERSAS, NARRATIVAS INFANTIS E
EXPERIÊNCIAS FORMATIVAS: ESTÁGIOS SUPERVISIONADOS
COMO CAMPOS DE PESQUISA | Maria Luisa Furlin Bampi, Virginia
Georg Schindhelm .................................................................................................... 115
SOBRE O PAPEL DA EDUCAÇÃO MUSICAL NA REAFIRMAÇÃO DA
MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA | Flavia de Oliveira Barreto ............ 127
ALÉM DOS MUROS: PESQUISA-FORMAÇÃO EM CAMPO | Aline
Benvinda Bastos, Isabela Santiago Franca, Gabrielly Santana de Souza Pereira
... ................................................................................................................................... 138
O DIÁLOGO COMO CAMINHO PARA A PESQUISA: DAS
ORIENTAÇÕES COM REGINA LEITE GARCIA ÀS NARRATIVAS
DO GEPPALFA | Luciana Teixeira Guimarães de Britto .............................. 148

sumário 9
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

FORMAR, LEMBRAR, NARRAR: PERSPECTIVA NEGRA SOBRE A


CONSTRUÇÃO DO SUJEITO DA EXPERIÊNCIA. | Tais de Almeida
Costa ............................................................................................................................ 163
A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE NO ENSINO
BÁSICO DA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE MINAS GERAIS |
Uilmer Rodrigues Xavier da Cruz, Mishelle Ninho de Almeida ...................... 175
OS IMPACTOS DAS REPRESENTAÇÕES DE POBREZA NAS
DIDÁTICAS DOS EDUCADORES DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL EM SÃO GONÇALO – RJ | Thiago Simão Dias, Arthur
Vianna Ferreira .......................................................................................................... 190
CONTRADIÇÕES DA NOVA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
NO MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO | Lays Duarte, Adriana de Almeida
...................................................................................................................................... 204
A MEMÓRIA DA FORMAÇÃO E DO TRABALHO DOCENTE DE
PROFESSORAS RURAIS EM NOVA IGUAÇU-RJ | Jéssica Cristina
Ferreira Félix .............................................................................................................. 217
NAS LINHAS E ENTRELINHAS DO COTIDIANO ESCOLAR | Renata
Lúcia De Morais Fernandes .................................................................................... 228
PENSAR O COTIDIANO ESCOLAR A PARTIR DAS TESES
DOCENTES: FIOS QUE SE ENLAÇAM COLETIVAMENTE | Sandro
Tiago S. Figueira ........................................................................................................ 237
SALA AMBIENTE: UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA | Dayse
Gonçalves Fontenelle ............................................................................................... 251
ESCRITA DE SI COMO PROCESSO (AUTO)FORMATIVO DOCENTE:
UMA EXPERIÊNCIA DE OFICINA DE PRODUÇÃO COLETIVA |
Helena Amaral da Fontoura .................................................................................... 263
A “ESCRITA DE SI” EM UM MEMORIAL DE FORMAÇÃO:
DIALOGANDO COM A PROFESSORA JACQUELINE DE FÁTIMA
DOS SANTOS MORAIS | Claudia Jorge de Freitas, Jonê Carla Baião ....... 278
NARRATIVAS PROFUNDAS: REFLEXÕES AUTOBIOGRÁFICAS NA
DISCIPLINA DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO | Vânia Medeiros
Gasparello ................................................................................................................... 292
SOBRE VIVER NA UNIVERSIDADE: POR ONDE VOAM OS VAGA-
LUMES? CONVERSAS SOBREVIVENTES COM UM ESTUDANTE DO
CURSO DE PEDAGOGIA/UFF | Luis Alberto Silva Gonçalves .............. 305
PESQUISA-FORMAÇÃO NARRATIVA (AUTO) BIOGRÁFICA:
PROCESSO DE FORMAÇÃO DAS PROFESSORAS DE APOIO
EDUCACIONAL ESPECIALIZADO RECÉM-CONCURSADAS E

sumário 10
VII Seminário Vozes da Educação

PROFESSORAS REGENTES DO MUNICÍPIO DE NITERÓI - RJ |


Joyce da Silva Costa Gonçalves .............................................................................. 321
HISTÓRIA DE VIDA E NARRATIVA (AUTO) BIOGRÁFICA: A
EXPERIÊNCIA DE PESQUISAR “VOZES” NA EDUCAÇÃO COM A
PROFESSORA JACQUELINE MORAIS E O GRUPO DE PESQUISA
ALFABETIZAÇÃO LEITURA E ESCRITA (GPALE) | Rejane Dias Correa
Machado, Antonio Silva de Araujo, Tatiane Nogueira da Silva ....................... 333
QUAIS MARCOS E DATAS COMPÕEM NOSSAS MEMÓRIAS DE
INFÂNCIA? | Marta Maia ...................................................................................... 343
INVESTIGANDO AS TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS DE EGRESSOS
DA PEDAGOGIA-UERJ | Liliane Sant’Anna de Souza Maria .................... 355
“CINECONVERSAS”: CINEMA E REDES EDUCATIVAS | Rosa Helena
Mendonça, Rossana Maria Papini .......................................................................... 366
A NARRATIVA COMO EXPERIÊNCIA RESSIGNIFICADA NO
TEMPO | Joelson de Sousa Morais, Inês Ferreira de Souza Bragança ......... 379
AS HISTÓRIAS DE VIDA DE PROFESSORAS INICIANTES NO
PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA DOCÊNCIA | Joelson de Sousa
Morais, Inês Ferreira de Souza Bragança ............................................................. 391
EDUCAÇÃO E CIDADE: POSSIBILIDADES PARA EXPLORAR A
TEMÁTICA AFRO-BRASILEIRA | Érica Renata Vilela de Morais, Luiz
Fernando Conde Sangenis ....................................................................................... 405
UMA EXPERIÊNCIA IMAGINATIVA EM PSICOLOGIA DA
EDUCAÇÃO: PRESENÇA, ATENCIONALIDADE E
RESPONSIVIDADE NO TRABALHO DOCENTE | Clarissa de Arruda
Nicolaiewsky .............................................................................................................. 416
INVESTIGAÇÃO-FORMAÇÃO – PRÁTICAS PEDAGÓGICAS PARA
AIMPLEMENTAÇÃO DA LEI FEDERAL 10.639/03 | Lidiane Dias de
Oliveira ........................................................................................................................ 432
PENSAR A FORMAÇÃO DOCENTE NA ALFABETIZAÇÃO NA EJA A
PARTIR DA NARRATIVA DA PRÓPRIA PRÁTICA | Daniel de Oliveira,
Mairce Araújo ............................................................................................................ 447
FIAR COM... A FORMAÇÃO TECIDA NO ENCONTRO | Luciana
Ostetto, Marta Maia, Cristiana Callai..................................................................... 458
AVALIAÇÃO EXTERNA E (IN)DEFINIÇÕES DO FAZER DOCENTE:
O QUE CABE À PROFESSORA? | Bruna de Souza Fabricante Pina,
Fabiana Eckhardt ...................................................................................................... 471
NARRATIVAS DE MEMÓRIAS NA EJA A PARTIR DO LITERÁRIO |
Laís Lemos Silva Novo Pinheiro ........................................................................... 483

sumário 11
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

EDUCAÇÃO INTEGRAL: UMA LEITURA TRANSDISCIPLINAR |


Clarissa Moura Quintanilha, Juliana Godói de Miranda Perez Alvarenga ..... 497
EXPEDIÇÃO PEDAGÓGICA: VIAGENS, ENCONTROS E
CAMINHOS DE FORMAÇÃO DOCENTE | Isabele Cristina Fonseca
Ramos, Jacqueline de Fátima dos Santos Morais ................................................ 507
CAMINHOS PERCORRIDOS EM BUSCA DE UMA EDUCAÇÃO DE
QUALIDADE | Gracielli da Cruz Silveira Rocha ............................................ 519
O CINEMA ATRAVÉS DA FÉ – QUESTÕES CURRICULARES
COTIDIANAS | Juliana Rodrigues, Izadora Agueda....................................... 530
NARRATIVAS DISCENTES: DIÁLOGOS ENTRE A EXPERIÊNCIA
DE FORMAÇÃO DOCENTE E A UNIVERSIDADE PÚBLICA |
Verônica Fabiola Neves Rodrigues, Heriédna Cardoso Guimarães ............... 539
ECOAM AS VOZES: ENCONTROS E CONVERSAS NA/DA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES | Simone de Alencastre Rodrigues,
Viviane Lontra, Soymara Vieira Emilião .............................................................. 554
ECOLOGIAS DOCENTES: NARRATIVAS NOS COTIDIANOS
ESCOLARES | Ilana Maria Bittencourt Martins, Isabela do Patrocínio
Rodrigues dos Santos, Rithianne Barbosa Pereira dos Santos ......................... 566
FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ENSINO NORMAL: UMA
ANÁLISE DO CURRÍCULO MÍNIMO DO RIO DE JANEIRO (2013) |
Rodrigo de Brito dos Santos, Maria Cristina Ferreira dos Santos ................. 5811
CAMINHOS ESTÉTICOS PERCORRIDOS POR PROFESSORES EM
FORMAÇÃO: REMEMORAR, REFLETIR E TRANSFORMAR-SE |
Monique de França Peixoto da Silva ................................................................... 5922
LEITURA, LITERATURA E NARRATIVAS: UMA EXPERIÊNCIA DE
FORMAÇÃO | Jacqueline Martins da Silva ....................................................... 602
O RACISMO NOS COTIDIANOS ESCOLARES: CONVERSAS NAS
REDES DOS ‘PRATICANTESPENSANTES | Brenda de O. Coutinho de
Araújo, Elaine Sotero ............................................................................................... 613
O DIREITO AO ACESSO A ESCOLA DA POPULAÇÃO NEGRA
BRASILEIRA E PROCESSOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES |
Roberta Dias de Sousa ............................................................................................. 625
NARRATIVAS (AUTO)BIOGRÁFICAS EXPERIÊNCIAS DE VIDA E
FORMAÇÃO | Roberta Dias de Sousa, Jane Marchon Cordeiro Celestino.638
DEZ ANOS DO PROJETO ESTUDO DE EGRESSOS DA
FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA UERJ:
ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A FORMAÇÃO POLÍTICA NA
FORMAÇÃO DOCENTE | Maria Tereza Goudard Tavares ..................... 6466

sumário 12
VII Seminário Vozes da Educação

Dez anos de Estudos de Egressos na Faculdade de Formação de Professores


da UERJ: percursos formativos e inserção Profissional em debate | Mariel
Costa Moderno .......................................................................................................... 657
NARRATIVAS DOCENTES: A FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM
COLETIVOS LATINO-AMERICANOS | DanusaTederiche ................... 6677
ANÁLISE DA DIDÁTICA E MEDIAÇÃO DO CONHECIMENTO DOS
PROFESSORES DE GEOGRAFIA EM SÃO GONÇALO –
CONDIÇÕES DOS PROFESSORES FRENTE À ESCOLA PÚBLICA |
Beatriz Carvalho Torres ......................................................................................... 6788
A ESCRITA COMO COMPANHEIRA – A ESCRITA COMO
POSSIBILIDADE: NARRATIVA DA EXPERIÊNCIA DE PESQUISA-
FORMAÇÃO EM ANDAMENTO | Liliam Ricarte de Oliveira ................. 693
NOS (DES)CAMINHOS DA PESQUISA-FORMAÇÃO NARRATIVA
(AUTO)BIOGRÁFICA EM EDUCAÇÃO - FRAGMENTOS DA
EXPERIÊNCIA COMO INGRESSANTE NO PROGRAMA DE
MESTRADO PROFISSIONAL EM EDUCAÇÃO ESCOLAR DA
UNICAMP | Juliana Vieira .................................................................................... 702
O CURSO NORMAL ENTRE MÍDIAS E NOVAS TECNOLOGIAS: UM
OLHAR ATENTO SOBRE AS POLÍTICAS EM TEXTO | Ana Paula da
Silva Conceição Oliveira............................................................................................ 715
O COTIDIANO NO ESPAÇO ESCOLAR VIVIDO POR UM
ESTUDANTE DIAGNOSTICADO COM CEGUEIRA | Vanessa de
Araújo Canela............................................................................................................. 731
ESTÁGIOS E NARRATIVAS: UMA REDE DE POSSÍVEIS NO
PERCURSO FORMATIVO DE LICENCIANDAS DE PEDAGOGIA |
Ana Carolina Fernandes de Lima, Barbara da Silva Santos Corrêa ................. 744
VOZES DA EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DAS AÇÕES COMO
BOLSISTAS DE EXTENSÃO | Tamyres Athaide Buczynski Patti de
Miranda ....................................................................................................................... 757
EXPERIÊNCIAS FORMATIVAS, ESTUDOS E REFLEXÕES DE
PROFESSORES SOBRE O INÍCIO DA CARREIRA DOCENTE | Ana
Carolina Paulo da Cruz ............................................................................................ 767
PERU-BRASIL: ROMPENDO FRONTEIRAS ATRAVÉS DE CARTAS
ENTRE DOCENTES | Thaís Coutinho de Barros Coelho, Maria Clara
Rodrigues Fortes ....................................................................................................... 776
CURSO REALIDADE BRASILEIRA: UM INTERCÂMBIO DE
EXPERIÊNCIA MILITANTE | Dennys Henrique Miranda Nunes........... 786

sumário 13
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

DESCOLONIZAÇÃO DOS CURRÍCULOS: NARRATIVAS E


EXPERIÊNCIAS | Jéssica Gomes Carvalho, Mariana Carlos Alves .......... 796
OFICINA PEDAGÓGICA: A LITERACIA HISTÓRICA E A
FORMAÇÃO EM SALA DE AULA | Jéssica Guimarães Barbosa ........... 810
EIXO 2 ....................................................................................................................... 821
HISTÓRIAS, POLÍTICAS E DIREITO À EDUCAÇÃO RESSONÂNCIAS
DO CAPITALISMO DEPENDENTE BRASILEIRO NA EJA | Adalberto
de Moraes Gomes Filho .......................................................................................... 822
A JUVENILIZAÇÃO DA EJA NO ENSINO MÉDIO NO ESTADO DO
RIO DE JANEIRO | Marcos Vinicius Reis Fernandes ................................... 833
MICROFEITURAS ENTRE TRAJETÓRIAS E PRÁTICAS
FORMATIVAS NA DIFERENÇA | Raquel Rosa Reis Monteiro ............... 847
A ESCUTA DOS SUBALTERNOS: REFLEXÕES E EXPERIÊNCIAS
DE EDUCAÇÃO POPULAR EM DUAS FAVELAS CARIOCAS |
Carolina Silva de Alencar, Keila Maria de Araujo Silva ..................................... 861
ENLACES ENTRE EXTENSÃO E PESQUISA DO GRUPO VOZES DA
EDUCAÇÃO: POLIFONIA E DIALOGISMO COMO PERSPECTIVAS
EPISTEMOLÓGICAS | Marcia Soares de Alvarenga, Ana Carolina Paulo da
Cruz, Tamyres Athaide Buczynski Patti de Miranda .......................................... 876
O INSTITUTO PROFISSIONAL ORSINA DA FONSECA E AS
RELAÇÕES INTRINCADAS DA GOVERNAMENTABILIDADE DO
CORPO SOCIAL E INDIVIDUAL | Ma. Teresa Vitória F. Alves, Denize
Sepulveda .................................................................................................................... 891
PRÁTICAS POTENCIALIZADORAS NA ESCOLA PÚBLICA: O
PALCO SAI DA ESCOLA E AS PIPAS SÃO O CENÁRIO | Verônica
Gomes de Aquino ..................................................................................................... 907
FONTES E METODOLOGIAS PARA O ESTUDO DE TRAJETÓRIAS
DOCENTES EM IGUAÇU (1933) | Amália Dias, Sara Cristina Gomes
Barbosa................................................................................................................. 920920
PROVIMENTO DAS ESCOLAS PÚBLICAS PELOS EGRESSOS DA
ESCOLA NORMAL DA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO: UMA
ANÁLISE A PARTIR DOS RELATÓRIOS OFICIAIS E DOS CASOS DE
MAGÉ E ESTRELA | Angélica Borges, Beatriz Souza dos Santos, Kimberly
Araújo Gomes Pereira .............................................................................................. 933
EXPERIENCIA EDUCATIVA DE LA ESCUELA CAMPESINA
ALTERNATIVA | María Isabel Gutiérrez Chávez ........................................ 9488
AVANÇO CONSERVADOR X EMANCIPAÇÃO HUMANA | Marcos
Luis Oliveira da Costa .............................................................................................. 961

sumário 14
VII Seminário Vozes da Educação

UM OLHAR PARA ALÉM DAS FRONTEIRAS: CRIANÇAS


REFUGIADAS EM ESCOLAS PÚBLICAS DE SÃO GONÇALO | Juliana
de Oliveira Galvão, Thaís Alves de Souza .......................................................97272
PROGRAMA EDUCACIONAL NO COTIDIANO ESCOLAR: UMA
PESQUISA EXPLORATÓRIA | Tania de Assis Souza Granja, Sonia Maria
Cerqueira de Brito ..................................................................................................... 983
PELO BRASIL SÃO: EDUCAÇÃO SANITÁRIA PROMOVENDO A
HIGIENE E A PROFILAXIA DA POPULAÇÃO RURAL (1919) | Luiza
Pinheiro da Silva, Victoria Guilherme................................................................... 992
QUESTÕES HISTÓRICAS E POLÍTICAS ACERCA DA CONSTITUIÇÃO
DA CRIANÇA COMO CIDADÃ | Cintia Larangeira .................................... 1005
CURRÍCULO NACIONAL DE EDUCACIÓN BÁSICA DE PERÚ
APROXIMACIONES SOCIO CRÍTICAS | Manuel Gonzalo Angulo León,
María Elizabeth Zavaleta Chang .......................................................................... 1020
ORGANIZAÇÃO POPULAR E A LUTA POR CRECHES PÚBLICAS
NO MUNICÍPIO DE NOVA IGUAÇU – RJ | Lidiane Barros Lobo ...... 1034
PERSPECTIVAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS NAS PESQUISAS
SOBRE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS, PUBLICADAS NA
REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS (RBEP) DE
1980 ATÉ 2016: DESTACANDO O DESCRITOR ALFABETIZAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS | Marcia Araújo Ribeiro Lima......................... 1043
O PRÉ-VESTIBULAR POPULAR PEDRO POMAR E A LUTA PELO
DIREITO AO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL | Adrielle Lisboa ..... 1059
AS EXPRESSÕES DE GESTÃO DEMOCRÁTICA PRESENTES NA LEI
DE DIRETORES DO MUNICÍPIO DE MACAÉ | Alessandra da Silva
Rezende Souza Martins .......................................................................................... 1073
ARTE E PESQUISA-DEVIR-CONVERSA COM A EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS | Fernanda Cavalcanti de Mello ......................... 108383
UNIVERSALIZAÇÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL NO BRASIL:
ACESSO E PERMANÊNCIA DA POPULAÇÃO NEGRA NA ESCOLA|
Maria Martinha Barbosa Mendonça ............................................................... 109696
O MODELO DO ENSINO SUPLETIVO EM TEMPOS DE CONTROLE
E CENSURA NO REGIME MILITAR (1964-1985) | Rosa Monaco 1106106
O DIREITO À EDUCAÇÃO E A BNCC DESAFIOS PARA ESCOLAS
UNIVERSIDADE PÚBLICA NA FORMAÇÃO DOCENTE | Sueli de
Lima Moreira, Carla Gonçalves, Ruth Bandeira Ramiro ................................. 1118
MOVIMENTOS DE EDUCAÇÃO PELO RÁDIO: O SERVIÇO DE
RADIODIFUSÃO EDUCATIVA (1943) E O PROJETO MINERVA
(1970) | Cinthya Nunes, Rosa Monaco .............................................................. 1129

sumário 15
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O DIREITO À CIDADE E A PESQUISA COM CRIANÇAS NA


PERSPECTIVA DA CIDADANIA DA INFÂNCIA: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES | Elisanete Alves de Oliveira ..................................... 114040
ESTADO, GOVERNO E SOCIEDADE: UM BREVE EXAME SOBRE
SUAS REPERCUSSÕES NA CONSOLIDAÇÃO DA EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS COMO MODALIDADE DA EDUCAÇÃO
BÁSICA | Alcedino Alves de Oliveira .......................................................... 115555
AVALIAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO
ESPECIAL: AMEAÇA AO RETROCESSO NO ATENDIMENTO DE
ALUNOS COM NECESSIDADES ESPECIAIS | Ielva Maria Costa de
Lima Ribeiro, Márcia Lucas de Oliveira ........................................................ 116969
IDEOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO NA ABORDAGEM DAS
CONCEPÇÕES E NOÇÕES EDUCACIONAIS | Michelle Pinto Paranhos
............................................ ................................................................................ 1184184
PERCURSOS E PERCALÇOS DA EJA EM SÃO GONÇALO | Paulo
Felipe Passos, Eliane Bastos Salomão, Adriana de Almeida.................... 1200200
COMBATENDO “AS TREVAS DA IGNORÂNCIA”: CAMINHOS DO
ENSINO PRIMÁRIO MARICAENSE (1889-1926) | Renata Toledo Pereira
..................................................................................................................................1211211
SENSO COMUM E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS ESCOLAS | Ana
Valéria Dias Pereira ........................................................................................... 122626
A EDUCAÇÃO INFANTIL EM TEMPO INTEGRAL: DIÁLOGOS COM
FAMÍLIAS DAS CAMADAS POPULARES EM UMA ESCOLA PÚBLICA
NA REGIÃO METROPOLITANA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
| Fabiana Nery de Lima Pessanha .................................................................. 123636
VOZES DO POVO: A IMPRENSA POPULAR E OS SENTIDOS
ATRIBUÍDOS A EDUCAÇÃO PARA OS TRABALHADORES NAS
PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX NO RIO DE JANEIRO
|Renata Rodrigues Chagas Pessoa.................................................................. 125151
A CATEGORIA FUTURO NA EDUCAÇÃO: QUANDO O OBJETO
PASSA A SER O TEMPO | Natacha Ribeiro de Souza-Pinto ............... 126666
A RELAÇÃO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE NO CONTEXTO DA
CONTRARREFORMA DO ENSINO MÉDIO | Glasiele Lopes de
Carvalho Ribeiro ................................................................................................ 127878
POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À EDUCAÇÃO E A PRODUÇÃO
DE DESIGUALDADES SOCIAIS | Maria Beatriz Lugão Rios ......... 1292292
CARTAS DE MARIA LACERDA DE MOURA PARA FÁBIO LUZ: SOB
O OLHAR INDISCRETO DO PESQUISADOR | Jodar de Castro Roberto
..................................................................................................................................1306306

sumário 16
VII Seminário Vozes da Educação

AS ATAS DA CÂMARA ENQUANTO FONTE PARA HISTÓRIA DA


EDUAÇÃO LOCAL: O CASO DO MUNICÍPIO DE DUQUE DE
CAXIAS (1947-1955) | Angélica de Sá de Oliveira Bauer Rodrigues ... 1321321
OLHARES PARA UMA POLÍTICA PÚBLICA NO COTIDIANO DA
EDUCAÇÃO INFANTIL SOB A PERSPECTIVA DA PARTICIPAÇÃO
DAS CRIANÇAS | Débora Assumpção dos Santos Rodrigues .............. 133636
O PROGRAMA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO INTEGRAL EM
TEMPO INTEGRAL DE MARICÁ | Lúcia Velloso Maurício, Rodrigo de
Moura Santos ...................................................................................................... 135050
MAIS UMA VEZ CONVOCADOS: O MANIFESTO DOS
EDUCADORES DE 1959 COMO RETRATO DA EDUCAÇÃO NA
DÉCADA DE 1950 | Luciano Faria da Silva ............................................. 136565
PROGRAMA EDUCACIONAL NO COTIDIANO ESCOLAR: UMA
PESQUISA EXPLORATÓRIA | Tania de Assis Souza Granja, Sonia Maria
Cerqueira de Brito .............................................................................................. 137575
O SISTEMA DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA E A
QUALIDADE NA/DA EDUCAÇÃO INFANTIL NO MUNICÍPIO DE
SÃO GONÇALO | Elane Neves da Matta Souza ...................................... 138484
CARTOGRAFIA DA AÇÃO: UM BALANÇO DA PRODUÇÃO DA
PESQUISA PODER LOCAL E O DIREITO À EDUCAÇÃO NO
MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO (2008-2019) | Thaís Alves de Souza,
Marcia Soares de Alvarenga ........................................................................... 1393393
DIRETO À EDUCAÇÃO NO ENFRENTAMENTO DAS
DESIGUALDADES: TECENDO CAMINHOS PARA ORGANIZAÇÃO
ESCOLAR EM CICLOS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS |
Regina Aparecida Correia Trindade ............................................................. 1404404
GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL NA ESCOLA: QUESTÃO DE
DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA | Maria Eugênia Brêttas Veiga
..................................................................................................................................1418418
OS NÚMEROS DO PLANO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO EM SÃO
GONÇALO/RJ: A INFÂNCIA SILENCIADA | Mônica de Souza Motta,
Graciane de Souza Rocha Volotão ...................................................................... 1428
EIXO 3 ..................................................................................................................... 1440
IDENTIDADES, INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO ANÁLISIS
DE LOS FACTORES QUE AFECTAN EL USO DEL QUECHUA EN
LOS ESTUDIANTES DE LA INSTITUCIÓN EDUCATIVA
ASILLOPATA DEL DISTRITO DE COPORAQUE PROVINCIA DE
ESPINAR REGIÓN CUSCO | Roxana Alencastre Caballero, Danilo Pezo
Carreón...................................................................................................................... 1441

sumário 17
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

CULTURA VISUAL E IDENTIDADES AFROBRASILEIRAS NA


ESCOLA: VISUALIDADES E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
ANTIRRACISTAS | Maria Cecília Castro ................................................... 144848
“DESCOLONIZAÇÃO” DO PENSAMENTO DE BOAVENTURA
SOUSA SANTOS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA PENSAR A
EDUCAÇÃO PARA RELAÇÕES RACIAIS | Gracyelle Silva Costa .. 145757
OS CORPOS DOS DISCENTES NEGROS NA ERA VARGAS | Maiza da
Silva Francisco ................................................................................................... 147070
RESENHA CRÍTICA - BHABHA, HOMI K. NUEVAS MINORÍAS,
NUEVOS DERECHOS, NOTAS SOBRE COSMOPOLITISMO
VERNÁCULO (2013) | Soraia Sant’Anna Gomes ........................................ 148282
SINCRETISMO RELIGIOSO AFRO-BRASILEIRO NA
REPRESENTAÇÃO IMAGÉTICA DE SANTO ANTÔNIO DE LISBOA
E DO ORIXÁ EXU NO PERÍODO COLONIAL | Samira Lucia Dias dos
Santos de Sousa, Luiz Fernando Conde Sangenis ....................................... 148989
ERA UMA VEZ, ABIOYE: A PRINCESA NEGRA DE CINDERELA E
CHICO REI COMO POSSIBILIDADE DE REEDUCAÇÃO DAS
RELAÇÕES RACIAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL | Sylvia Soares de
Souza .................................................................................................................. 1501501
WEB-TV E FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA UMA EDUCAÇÃO
DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS | Graziele Lira, Valter Filé ......... 1516
PERCEPÇÃO DO ENTENDIMENTO DOS ALUNOS DE UMA
ESCOLA PÚBLICA EM SÃO GONÇALO-RJ DO CONCEITO DE
DESIGUALDADES E DIFERENÇAS, NAS AULAS DE EDUCAÇÃO
FÍSICA: IMPORTÂNCIA DOS TEMAS TRANSVERSAIS | Marcio Ramos
................................................................................................................................. 1527
“OLHA A CRÍTICA!”: ENREDOS EMBLEMÁTICOS INTEGRANTES
DE UMA PEDAGOGIA DE MASSAS A PARTIR DOS ANOS 80 NO
CARNAVAL CARIOCA | Phellipe Patrizi Moreira .................................... 1539
EIXO 4 ................................................................................................................ 154848
LINGUAGENS, SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS YOUTUBE: O
LUGAR DO OLHAR E DA PALAVRA NA COMPREENSÃO DE UMA
NOVA FORMA DE MEDIAÇÃO | Alessandra da Costa Abreu ........ 154949
APRENDER NAS RUAS: POR UMA PRÁTICA EDUCATIVA
TRANSVERSALIZADA | Maria Beatriz Albernaz .................................. 156161
BIBLIOTECA ESCOLAR: DESAFIOS, PERSPECTIVAS E MINHA
EXPERIÊNCIA | Amanda do Nascimento dos Santos Almeida .......... 157373
CONCEPÇÕES DE ENSINO DA MATEMÁTICA E
FORMAÇÃOCONTINUADA DE PROFESSORES NO ÂMBITO DE

sumário 18
VII Seminário Vozes da Educação

PROJETOS INSTITUÍDOS NA REDE MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO


DE NITERÓI(2015-2019) | Cristiane Custódio de Souza Andrade .... 1586586
FANZINES E RELATOS DE MEMÓRIA: SEJA PROTAGONISTA DE
SUA HISTÓRIA! | Andrea Gomes Barbosa ............................................ 1597597
AS LINGUAGENS INSERIDAS NA PRODUÇÃO DE VÍDEOS COM
CELULAR DE CRIANÇAS DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL | Bernadete Collares Barroso Bento ....................... 1610610
MULHERES SEM LEITURA E SEM ESCRITA NA REPÚBLICA
“DEMOCRÁTICA” | Aline Bernar ........................................................... 1625625
A NARRATIVA DO PASSADO COMO DESJEJUM DAS VOZES | Aline
Bernar ................................................................................................................. 1635635
UMA APOSTA NO TEATRO COMO CUIDADO DE SI, EM
COMPANHIA DE FOUCAULT E STANISLAVSKI | Líbia Busquet,
Rosimeri de Oliveira Dias .............................................................................. 1650650
CAMINHANDO, PENSANDO, CRIANDO COM OS MOVIMENTOS
MIGRATÓRIOS E AS REDES EDUCATIVAS | Marcelo Machado, Maria
Cecilia Castro .................................................................................................... 1663663
CONVERSAS E ESCRITAS DIARÍSTICAS: ENCONTROS ENTRE
PROFESSORAS DE APOIO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO |
Jussara Silva Cavalcante, Sara Busquet......................................................... 1673673
CRIANÇAS EM MOVIMENTO – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
SOBRE OS ESPAÇOS DE CUIDADO E RECREAÇÃO PARA AS
CRIANÇAS NA CSP – CONLUTAS | Ticyane Madeira Cavalcanti .. 1683683
LINGUAGEM ESCRITA: REFLETINDO SOBRE A PRODUÇÃO
ACADÊMICA NO CONTEXTO DE UMA FACULDADE DE
FORMAÇÃO DE PROFESSORES | Victoria Wilson da Costa Coelho, Ana
Caroline Viegas ................................................................................................. 1699699
RELATO DE PRÁTICA DOCENTE: O TRABALHO COM A
METODOLOGIA DE PROJETO NA EDUCAÇÃO INFANTIL | Jéssica
Caroline P. Da Silva Costa ............................................................................. 1713713
ENSINO DE GEOGRAFIA NA UNIVERSIDADE PARA
DEFICIENTES VISUAIS: DESAFIOS E POSSIBILIDADES | Vanderlei
Balbino Costa, Barbara Priscila Gomes Policarpo .................................... 1723723
A MEMÓRIA DA DOR DA COLONIALIDADE À
DECOLONIALIDADE DO SER | Eliane Almeida de Souza e Cruz . 173434
A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA COMO POSSIBILIDADE DE
TROCAS DE SABERES ENTRE A ACADÊMIA E SEU ENTORNO |
Alan Navarro Fernandes, Arthur Vianna Ferreira ....................................... 174848

sumário 19
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ENCONTROS (TRANS) FORMADORES: A CONSTRUÇÃO DE


OUTRAS PERCEPÇÕES SOBRE A DEFICIÊNCIA NA PEDAGOGIA |
Jessica Damiana de Magalhães Bastos Fernandes, Caroline Moraes Silva de
Lima, Silvania Inocencio do Carmo Monteiro ............................................. 176161
POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS NA ESCRITA CURRICULAR
DOCENDO: UMA PESQUISA NOSDOSCOM OS COTIDIANOS |
Sabrina Mendonça Ferreira .............................................................................. 177575
PROCESSOS FORMATIVOS DISCENTES: DESDOBRAMENTOS
ACADÊMICOS E PROFISSIONAIS | Alice Pereira Xavier Lage ....... 178585
MAPEAMENTO DO PERCURSO HISTÓRICO DA INFORMÁTICA E
TECNOLOGIA NAS ESCOLAS BRASILEIRAS: TECENDO ALGUMAS
REFLEXÕES | Danielli Cristina Machado Lidugério .............................. 179898
A GREVE DOS CAMINHONEIROS E OS SABERES INFANTIS NA
ORDEM DO DIA | Aline Lima ................................................................. 1813813
SOBRE A EXPERIÊNCIA DE VIVENCIAR COM CRIANÇAS E
ADULTOS A PARTICIPAÇÃO E A ESCUTA EM UMA ESCOLA DE
EDUCAÇÃO INFANTIL POPULAR | Fabiane Florido de Souza Lima,
Maria do Nascimento Silva .............................................................................. 182424
EDUCAÇÃO, ARTE, INFÂNCIAS: DIÁLOGOS | Graziela Ferreira de
Mello, Iasmim Cavalcanti Caballero Lira ....................................................... 183535
A BUSCA PELO ÍNTIMO: DIÁLOGOS ATRAVESSADOS PELO
AUDIOVISUAL ENTRE MULHERES NEGRAS PENSANDO A
EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS | Leidiane dos Santos
Aguiar Macambira, Shirley Martins da Silva Camillo, Steffanie Moreno da
Costa ..................................................................................................................... 184545
ESCOLAS POSSÍVEIS E PROFESSORAS NEGRAS: COSTURANDO
RELAÇÕES QUE PRODUZAM UMA EDUCAÇÃO OUTRA | Rejane
Lucia Amarante Macedo ................................................................................... 185757
MEMÓRIA: HISTÓRIA DE VIDA E NARRATIVAS
(AUTO)BIOGRÁFICAS SOBRE A GESTÃO ESCOLAR | Fabiana de
Oliveira Machado ............................................................................................... 186767
A LITERATURA DE CORDEL | NO PROCESSO DE ENSINO-
APRENDIZAGEM | Rosana da Silva Malafaia ......................................... 187777
LA ESCRITURA Y LECTURA EN LOS ESPACIOS HABITADOS:
TRABAJANDO LA ESCRITURA CON NIÑAS Y NIÑOS MENORESDE
5 AÑOS | Yajaira Terán R., Antonia Manresa ............................................ 189090
CONVERSAR NA ESCOLA PÚBLICA: TRAVESSIAS NA EDUCAÇÃO
DE SURDOS EM UMA ESCOLA DE NITERÓI - RJ | Arina Martins1901901

sumário 20
VII Seminário Vozes da Educação

ENTRE MEIOS, QUARTOS, OITAVOS... A EXPERIÊNCIA DE


ENSINAR FRAÇÕES PELA PERSPECTIVA DOS REGISTROS DE
REPRESENTAÇÕES SEMIÓTICAS | Fernanda Medeiros Alves Besouchet
Martins, Vania Finholdt Angelo Leite .......................................................... 1916916
DESNATURALIZANDO O ESPECISMO NA ESCOLA BÁSICA | Ana
Luiza Gonçalves Dias Mello ............................................................................ 193232
RESSIGNIFICANDO O ERRO NA MATEMÁTICA | Alessandra H. C.
Mendes, Vania Finholdt Angelo Leite ........................................................... 194444
DO JOGO AO JOGO DA ÁGUA DO MUSEU DA VIDA, CASA DE
OSWALDO CRUZ, FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ (2001) | Cíntia
Mariza do Amaral Moreira, Juliano Melquíades Vianello, Rosilene de Athayde
Gonçalves ............................................................................................................ 195555
(INTER)RELAÇÕES CARNAVALESCAS NA PRAÇA: “ABRINDO
ALAS” PARA A COMPREENSÃO DA LITERATURA COMO UM
DIREITO HUMANO | Mariana da Silva Machado Nascimento, Nayara de
Oliveira Nunes, Ingrity Leandro da Silva ...................................................... 196767
COMO A MÚSICA TEM SIDO VISTA NOS ESPAÇOS DA EDUCAÇÃO
INFANTIL? RELATOS DE UMA EXPERIÊNCIA | Karine Corrêa Nunes
.................................................................................................................................
197979
DA TELA PARA A TELINHA: O FILHO DO HOMEM, DE
MAGRITTE, E A DONA DO PEDAÇO, DA REDE GLOBO | Daniella
Oliveira ................................................................................................................. 199191
“VOZES” JUVENIS DESVELANDO A “CULTURA DO SILÊNCIO”
NA/DA ESCOLA | Carlos César de Oliveira ................................................. 2002
TECNOLOGIAS DE REAÇÃO NO TEMPO DA CIBERCULTURA:
ASTÚCIAS DOS NORMALISTAS EM RELAÇÃO ÀS MÍDIAS NA
ESCOLA | Ana Paula da Silva Conceição Oliveira .................................... 2020177
SENTIR O MUNDO: ‘SABERESFAZERES’ DISCENTES E
DOCENTES NA SALA DE AULA, CONVERSANDO SOBRE
MIGRAÇÃO E REFÚGIO | Renata Rocha, Thamy Lobo .................. 2029029
ENCONTROS E DESENCONTROS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:
AÇÃO DOCENTE E A REALIDADE ESCOLAR | Elienae Genésia
Corrêa Pereira ..................................................................................................... 204141
O LUGAR DA INFÂNCIA NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO: A
PERSPECTIVA DA ALFABETIZAÇÃO DISCURSIVA
CONTRIBUINDO PARA A AUTORIA E O PROTAGONISMO
INFANTIL | Amanda de Sousa Pestana ..................................................... 205757

sumário 21
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

CIBERFEMINISMO: ENSINAR E APRENDER NAS REDES! | Desirée


de OliveiraPires .................................................................................................. 206969
SABERES EXPERIENCIAIS E O CURRÍCULO PRATICADO:
QUANDO O PROFESSOR CONSTRÓI A TEORIA NA PRÁTICA |
Barbara Priscila Gomes Policarpo .................................................................. 208181
“HOJE TEM HISTÓRIA?”: PROTAGONISMO DAS CRIANÇAS NOS
MOMENTOS DE LEITURA LITERÁRIA | Naila de Figueiredo Portugal,
Nayara Alves Macedo ........................................................................................ 209191
CONSTRUINDO ALGUMAS REFLEXÕES EM TORNO DA AULA DE
HISTÓRIA: PERCEPÇÕES SOBRE A PERFORMANCE DOCENTE E A
PRODUÇÃO DE PRESENÇA | Hosana do Nascimento Ramôa...... 2101101
POR QUE VOCÊ ESTÁ AQUI HOJE? ESCOLA E DEMOCRACIA:
UMA QUESTÃO PÚBLICA | Renata Ramos ......................................... 2113113
O ESTILO E A SUBJETIVIDADE NO PROCESSO DE ESCRITA DE
TEXTOS: UMA EXPERIÊNCIA EM CURSO | Rosilene Jorge dos Ramos
.................................................................................................................................
212424
UMA EXPERIÊNCIA FORMATIVA: A MONITORIA NA DISCIPLINA
DE EDUCAÇÃO ESPECIAL DA FFP/UERJ | Anelice Ribetto, Evelyn
Montenegro, Juliana Peres ................................................................................ 214141
SOMOS GRAMA QUE BROTA PELO CAMINHO | Fabiana Rodrigues
.................................................................................................................................
215454
FREE FIRE: AMIZADE E VIOLÊNCIA ENTRE JOVENS QUE VIVEM
O MUNDO DO CRIME | Giulia de Vito Nunes Rodrigues.................. 216464
CORPOREIDADE E OLHAR DOCENTE: UMA REFLEXÃO A
PARTIR DO TRABALHO COM CRIANÇAS PEQUENAS | Larissa
Cristina Barros dos Santos, Ingrid Gomes de Oliveira da Venda ............ 217777
SALAS DE LEITURA E SUAS HETEROTOPIAS | Liliana Secron,
Rosimeri de Oliveira Dias ..................................................................................... 2187
POR ENTRE GESTOS, CARTAS E CONVERSAÇÕES: UMA
EXPERIÊNCIA NOS ENCONTROS LITERÁRIOS | Daiana Pilar
Andrade de Freitas Silva ............................................................................... 22022202
CORPO, ESCOLA E RESISTÊNCIA VISUAL | Bianca de Menezes Castro
da Silva ...................................................................................................................... 2218
MOVIMENTAÇÕES DE UMA PESQUISA COM O COTIDIANO: A
PARTILHA DA PALAVRA E DOS SABERES QUE NASCEM DAS
NOITES | Fabiano Soares da Silva .................................................................... 2230

sumário 22
VII Seminário Vozes da Educação

PRODUÇÃO DA ESCRITA EM CLASSE DE ACELERAÇÃO - DOIS


OLHARES: VISÕES DA EDUCAÇÃO E DA PSICOLINGUÍSTICA |
Patrícia Tavares da Silva, Tania de A.S. Granja, Kátia Abreu ....................... 2240
MARIANA SÓ PENSA EM COMIDA: AQUAPONIA ENSINA SAÚDE
E ALIMENTAÇÃO SUSTENTÁVEL EM UMA ESCOLA PÚBLICA DE
PERIFERIA | Adriane Ayub Correa Satyro, Fábia Moreira Silva, Silvia
Beatrix Tkotz ........................................................................................................... 2256
PROFESSORES QUE ENSINAM MATEMÁTICA NOS ANOS INICIAIS
DO ENSINO FUNDAMENTAL: PERSPECTIVAS E DESAFIOS NA
PRÁTICA DOCENTE | Letícia Pacheco de Mello Trotte .......................... 2271
MEDIAÇÃO LITERÁRIA: EXPERIÊNCIAS DE SE LER EM PRAÇA
PÚBLICA | Maria José da Silva Vaz, Heloisa Josiele Santos Carreiro ........ 2282
EXISTE OU NÃO EXISTE DINOSSAURO? DA PERGUNTA AO
PROJETO DE INVESTIGAÇÃO NO COTIDIANO DA UMEIRAC |
Andréa Gonçalves ................................................................................................... 2295
A REESCRITA NA SALA DE AULA E O DIALOGISMO NA
CONSTRUÇÃO DO SUJEITO-AUTOR | Silviene Florentino .............. 2305
IMPLICAÇÕES DA CULTURA LÚDICA NA ESCOLA – o projeto
BRINQUEDOTECA | Maria Cristina Soto Muniz ..................................... 2317
“ONDE FICA O ESPAÇO DO BRINCAR?” UM DIÁLOGO, VÁRIOS
QUESTIONAMENTOS: RELATOS DE UMA UNIDADE DE
EDUCAÇÃO INFANTIL EM (RE)CONSTRUÇÃO | Luziane Patricio
Siqueira Rodrigues .............................................................................................. 2332
OS MOVIMENTOS MIGRATÓRIO E O FILME ‘MALALA’ –
TECENDO CONVERSAS NO COTIDIANO ESCOLAR | Thamy Lobo,
Marcelo Machado ............................................................................................... 2347

sumário 23
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

APRESENTAÇÃO

O VII Seminário Vozes da Educação RESISTÊNCIAS POLÍTICAS E


POÉTICAS NA VIDA E NA EDUCAÇÃO aconteceu nos dias 02 a 04 de dezembro
de 2019, organizado pelo Grupo de Pesquisa: Vozes da Educação memória(s),
história(s) e formação de professores/as. O evento congregou pesquisadores/as e
professores/as de renomadas instituições brasileiras (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Universidade Federal Fluminense
(UFF), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (FURG), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e
estrangeiras: Instituto Superior de Formación Docente Nº9 Paulo Freire (Argentina);
Red Desenredando Nudos (REDENU) ( Peru), Programa Escuelas Lectoras ( Equador)
com os quais o grupo Vozes vêm mantendo intenso e profícuo intercâmbio e
desenvolvendo relevantes parcerias e interlocuções.

Em números podemos traduzir a importância do evento pela participação de,


aproximadamente, 500 congressistas inscritos, nas categorias de Pesquisadores(as),
Professores(as) do Ensino Superior, Professores(as) da Educação Básica, Estudantes de
Graduação e Pós Graduação, Estudantes do Curso Normal, com 204 trabalhos
acadêmicos aprovados, na categoria comunicação a serem apresentas em cinco sessões
de Rodas de Conversa nos três dias de Seminário.

Sendo uma realização integrada com a Faculdade de Formação de Professores


da UERJ (FFP/UERJ) e com o Programa de Pós-graduação Mestrado em Educação:
Processos Formativos e Desigualdades Sociais (PPGedu), o referido Seminário buscou
ampliar o diálogo que vimos travando ao longo de duas décadas, com diferentes
interlocutores, sejam da Universidade, dos Centros de Pesquisa, da Escola Básica e dos
Movimentos Sociais organizados ou não.

O VII Seminário Vozes da Educação RESISTÊNCIAS POLÍTICAS E


POÉTICAS NA VIDA E NA EDUCAÇÃO é uma ação que dá continuidade e
aprofunda a relação do Grupo de Pesquisa: Vozes da Educação memória(s), história(s) e
formação de professores/as com a localidade de São Gonçalo. A partir de uma inserção
local/regional orgânica, o referido grupo vem desenvolvendo uma relação próxima e

sumário 24
VII Seminário Vozes da Educação

cotidiana com as demandas e desafios colocados por questões centrais da vida


econômica, política e social da realidade gonçalense e dos municípios do entorno,
destacando-se os relativos ao diálogo com as redes educacionais, ao cotidiano da escola,
aos processos formativos iniciais e contínuos de professores, bem como as repercussões
sociais e culturais da instituição escolar e dos movimentos sociais.

A 7ª edição do Seminário Vozes da Educação se configurou neste conjunto de


compromissos políticos e acadêmicos, aprofundando e consolidando um processo
sistemático e dialógico de projetos co-formativos entre universidade, escola básica,
redes de ensino e movimentos sociais, tendo como objetivos:

• Congregar professores e pesquisadores que desenvolvem estudos articulados


às políticas públicas, formação de professores e ensino no âmbito da
Educação Pública, laica e democrática;
• Socializar e aprofundar o debate sobre a produção do conhecimento no
campo da Educação pública no campo e na cidade, suas relações com as
práticas educativas escolares e não-escolares, bem como os processos que
envolvem a formação de professores, políticas públicas, contribuições
teórico-metodológicas para este setor educativo;
• Dar visibilidade aos estudos e trabalhos desenvolvidos pelos professores e
pesquisadores dos Núcleos de pesquisa envolvidos, da Faculdade de
Formação de Professores, que tomam como perspectiva teórico-
metodológica as possibilidades de trabalho abordagens qualitativas
referenciados na diversidade dos sujeitos, teorias e práticas no âmbito da
Educação Pública, laica, democrática e inclusiva;
• Estabelecer parceria com as esferas públicas de ensino, em especial, com os
governos locais, bem como com os movimentos sociais organizados, visando
incentivar a promoção e a reflexão sobre as práticas sociais e educacionais
desenvolvidas e acumuladas pela Educação Pública, laica, democrática e
inclusiva.

O VII Seminário Vozes da Educação RESISTÊNCIAS POLÍTICAS E


POÉTICAS NA VIDA E NA EDUCAÇÃO-Regina Leite Garcia, Presente! elegeu
como eixos temáticos:

Eixo 1: Formação Docente, Memórias e Narrativas


Formação de professores: políticas e práticas; profissionalização; identidades
docentes; memórias e narrativas docentes; histórias de vida e narrativas (auto)
biográficas.

sumário 25
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Eixo 2: História, Políticas e Direito à Educação


História da educação brasileira; História dos sistemas educacionais; História das
lutas pelo direito à educação; currículos e instituições escolares; educação patrimonial;
centros de memória; arquivos escolares.

Eixo 3: Identidades, Interculturalidades e Educação


Interculturalidade; processos de ensino e aprendizagem em espaços escolares e
não-escolares; diálogos e saberes nos contextos da educação indígena; quilombola;
étnica-racial; do campo.

Eixo 4: Linguagens, Saberes e Práticas Educativa


Cultura escrita e linguagens; saberes escolares; saberes docentes e discentes;
contextos educativos formais e formais; cotidiano escolar e relações de ensino-
aprendizagem.

Assim, entendemos que a expressiva e intensa participação de pesquisadores(as)


sinalizam as contribuições do seminário para os processos de formação e qualificação
docente, bem como para o enfrentamento dos problemas relativos à baixa qualificação
das redes educacionais do entorno, possibilitando a consolidação de parcerias fecundas
entre a Universidade e as escolas das redes públicas municipais e estadual.

Este E-book que ora apresentamos é, portanto, o resultado dos trabalhos


apresentados durante o evento. Divide-se em quatro seções, seguindo os eixos que
organizam o VII Seminário Vozes da Educação RESISTÊNCIAS POLÍTICAS E
POÉTICAS NA VIDA E NA EDUCAÇÃO-Regina Leite Garcia, Presente!

Os trabalhos estão listados por ordem alfabética definida pelo nome dos autores.
Pela natureza internacional do evento, este E-book traz textos tanto em português, como
em espanhol.

Agradecendo a todos e todas que participaram do VII seminário, desejamos que


os textos que constituem esta publicação possam alimentar novas interlocuções e
inspirar outras investigações e parcerias.

São Gonçalo, dezembro de 2019.


Comissão Organizadora do Evento.

sumário 26
VII Seminário Vozes da Educação

EIXO 1
FORMAÇÃO DOCENTE, MEMÓRIAS E NARRATIVAS

sumário 27
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

MEMORIAL – CONTAR-ME PARA ENCONTRAR-ME COM A PESQUISA

Mishelle Ninho de Almeida


CEDERJ
mial10@live.com

Não é que nos seja impossível estar certos de alguma


coisa: impossível é estar absolutamente certos, como se
a certeza de hoje fosse necessariamente a de ontem e
continue a ser a de amanhã (FREIRE, 1995, p.18).

Após imensas tentativas de um mergulho em minhas vivências, o encontro das


minhas lembranças com o que hoje compreendo do que foi vividosó foi
verdadeiramente possível nos dias que antecederam estas palavras. Existem saberes que
só se desenvolvem através da prática da escrita, no momento da intervenção ou
antecedem a ela, quando nos propomos a fazer uma autoanálise. “A análise das
implicações é o cerne do trabalho socioanalítico e não consiste somente em analisar os
outros, mas em analisar a si mesmo a todo momento, inclusive no momento da própria
intervenção” (LOURAU, 1993). O problema não é o obstáculo, pois o caos nos
apresenta enfrentamentos, a possibilidade de alargamento do pensar, a possibilidade de
pensar de outra maneira, de forçar o pensamento a pensar.
Passei a semana mergulhada nestas vivências e nestes saberes que, até então,
estavam adormecidos por não terem sido convidados aparecer e, assim, me desapegar
dos meus próprios clichês, daquilo que conhecia de mim através do olhar dos outros.
“Daí a importância de educar a curiosidade, a qual se constitui, cresce e se aperfeiçoa no
próprio exercício” (FREIRE, 1995, p.19). Se o mundo é feito de perguntas e foram as
perguntas que, possivelmente, tiraram os homens das cavernas, as perguntas que tanto
permearam meus pensamentos nos dias que antecederam a escrita da minha história me
tiraram, ao menos, do meu lugar comum. “Rever o antes visto quase sempre implica ver
ângulos não percebidos” (FREIRE, 1995, p. 24). Algo aconteceu.
A partir da leitura do livro À sombra desta mangueira, de Paulo Freire, pude
revivenciar os momentos mais marcantes do meu caminhar, certa de que as certezas que
tenho hoje não foram as contidas nestes momentos e não serão as que construirei
amanhã. “Saber o que já sei às vezes implica saber o que antes não era possível saber”

sumário 28
VII Seminário Vozes da Educação

(FREIRE, 1995, p. 19). Os saberes não são estáticos, eles são construídos, certos de
suas incertezas e ressignificados a cada instante.

A certeza fundamental: a de que posso saber. Sei que sei. Assim como sei
que não sei o que me faz saber: primeiro, que posso saber melhor o que já
sei; segundo, que posso saber o que ainda não sei; terceiro, que posso
produzir conhecimento ainda não existente (FREIRE, 1995, p. 18).

Minha história não começa em um quintal como a de Paulo Freire e não tenho
saudade das árvores frutíferas que nunca tive. Estes cheiros não conheci. Meus
primeiros dias, passos, falas, aprendizados, cheiros e gostos, aparentemente, se fazem
tristes para alguns. Mas somente os que viveram uma história como a minha e se
perderam nas ruas estreitas, tortas de um universo paralelo independente que coexiste
com o restante da sociedade, com seus modos próprios de realidade, puderam se achar
nas vielas da esperança que ficam logo ali, após a outra esquina. Um dia após o outro e
vamos nos fazendo e refazendo. Vamos nos quebrando e consertando, aos poucos, com
jeito para não quebrarmos novamente.
Natural de Niterói, de uma comunidade intitulada por “favela 1 Nova Brasília”,
de uma família humilde, que se esforçou durante alguns anos para continuar seus
estudos enquanto meus pais construíam o nosso lar e o restante da nossa família, que se
concretizou com a chegada da minha irmã mais nova e, posteriormente, de meu tio
Ubernan, que era esquizofrênico. Filha de pais jovens, de famílias díspares, que
demoraram para se respeitar. Chefe da família, meu avô paterno era negro2, do asfalto,
policial militar de classe média, que acreditava que uma moça loira da favela poderia
não ser boa companhia. Em desconforme, do outro lado, estava a minha avó: chefe da
família materna, deserdada pela família após optar pelo desquite de um casamento
arranjado e infeliz e, com isso, perdeu o título de fazendeira e assumiu o de favelada.
Professora loira, que criou os filhos sozinha e achava que um “rapaz mulato3”, filho de
um policial negro e do asfalto, poderia não ser boa companhia.

1
Favelas são grandes conjuntos habitacionais abertos, loteamentos irregulares, cortiços etc. Estruturas
espaciais construídas principalmente entre os anos 1950 e 1980 que se tornaram sub-bairros, que abrigam
milhares de pessoas que, em geral, são concentradores de pobreza, altas taxas de criminalidade, altos
índices de desemprego e baixa educabilidade (CAMPOS, 2013, p. 262).
2
Segundo a classificação oficial do Censo, são cinco cores que se apresentam: branca, preta, parda,
amarela e indígena. Negro é uma categoria não oficial, que inclui os pardos que é utilizada no Rio de
Janeiro para se referir aos pretos e pardos. Acessado em 12 de março de 2018:
https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/caracteristicas_raciais/default_raciais.shtm
3
Embora o conceito de mulato seja bastante controverso, foi mantido no texto apenas para manter a
fidedignidade das palavras de minha avó. Sabemos, porém, que o conceito provém de estudos

sumário 29
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Mas o casamento aconteceu num cartório com apenas dois amigos como
testemunhas. As famílias não participaram, sequer souberam. Um casamento simples
que durou quase quatro décadas e contrariou todas as profecias. Eu cheguei um ano
depois e acabei aprendendo, a duras penas, o funcionamento daquele regime hostil, que
começava pelas crianças. De todas as formas de viver tão diferentes que aprendi
naquele espaço, a que mais me marcou foi a “lei do mais forte”. Tive muitos amigos,
companheiros diários das brincadeiras presentes nas vielas, ao entardecer, com pão na
mão. Muitos, embora tenham seguido caminhos condenados pelo restante da sociedade,
os mantenho até hoje. Mesmo assim, muitos deles descobriram que me bater era tarefa
fácil. Então, apanhava até pela grade do meu portão, diariamente. Um dia compreendi
que, para sobreviver, precisava me adaptar ao meio. Aprendi, aos quatro anos, a impor o
respeito pela força. Para não apanhar, tive que bater.
Na mesma época aprendi a ler e a escrever no único cômodo da minha casa. Aos
cinco anos, entrei para a escola municipal mais próxima. Na escola brincava com
brinquedos que não tive e comi alimentos que não conhecia. Senti o gosto das frutas,
mas ainda não conhecia as árvores. Na favela brincávamos ao sol e à chuva também.
Ouvíamos os gritos de nossas mães a nos chamar e corríamos na direção contrária. Sons
que ecoavam pelos becos à nossa procura. Precisei desenvolver habilidades específicas
para subir e descer todo aquele labirinto quando chovia e a lama nos fazia patinar.
Poucos eram os brinquedos, todos improvisados com latas, paus e pedras, mas capazes
de fazer dos nossos dias felizes. “Minha terra envolve o meu sonho de liberdade”
(FREIRE, 1995, p. 28). Hoje observo minhas filhas brincando no quintal de casa e
percebo o quanto me diverti, gargalhei com vontade e o quanto a vida com a liberdade
da favela era engraçada.
Passei boa parte da minha infância em meio à violência ocasionada pelas
desigualdades sociais e, na escola pública, a violência simbólica de um sistema
classificatório e excludente que demarcava, a todo o instante, o meu território. “Minha
terra é dor, fome, miséria, é esperança também de milhões, igualmente famintos de
justiça” (FREIRE, 1995, p. 26). Tal violência não dizia apenas onde eu estava, mas
delimitava, também, minhas possibilidades e meus sonhos. A distância geográfica é
pequena, mas com distâncias sociais que mais parecem um deserto a ser vencido.

poligenistas realizados na Sociedade Anthropologica de Paris, liderados por Paul Broca, famoso
anatomista e craniologista, que “acreditava na imutabilidade das raças e traçando, inclusive, paralelos
entre o exemplo da não-fertilidade da mula e uma possível esterilidade do mulato” (SCHWARCZ, 1993,
p. 54-55).

sumário 30
VII Seminário Vozes da Educação

“...discutir favelas é falar também de preconceitos e discriminação por parte dos


moradores de grandes centros urbanos” (CAMPOS, 2013, p. 243). E, embora não me
enquadrasse no modelo eurocentrado de ser humano legitimado pela sociedade,
contrariei as estatísticas destinadas à mulher mestiça e pobre e conclui o Ensino Médio.
A comunidade na qual convivi, embora ainda muito jovem, deixou recordações
ainda mais fortes que as que tenho posterior a esta vivência, talvez, pela sua
complexidade. Eu saí da favela, a favela não saiu de mim. Com todas as suas boas
lembranças e lições que só poderia ter aprendido ali, a favela foi se reinventando, se
moldando a uma nova forma de sobrevivência e regência. Nós funcionamos, todos, em
todos os lugares, sob a heterogestão; ou seja, "geridos" por "outrem". E a vivemos,
geralmente, como coisa natural (LOURAU, 1993). O asfalto chegou para secar a rua
nos dias chuvosos, os becos ganharam números, as casas e barracos que conheci ainda
pequena pareciam mais cansados, mais tortos e mais velhos. Alguns barracos de tábua
ganharam roupagem de tijolos e o céu parecia ofuscado pela quantidade de luzes das
casas que foram subindo morro acima. Segundo Campos, “a expansão das favelas de
1980 em diante foi imensa tanto em número de habitantes quanto de domicílios,
aumentando, os conflitos entre o poder público, a população dita da cidade formal e os
moradores das favelas” (CAMPOS, 2013, p. 256).
O progresso chegou, mas a ordem ganhou novas configurações e hierarquias
que, aos poucos, inibiram os verdadeiros donos daquele lugar: as famílias de
trabalhadores pobres empurrados pela sociedade para lá. Para Campos a favela
representa uma área de segregação induzida tratada como uma área à parte da cidade “...
são contempladas com o ‘resto’ da atenção pública, à medida em que os serviços e as
políticas públicas são desenvolvidos para a ‘cidade formal’” (CAMPOS, 2013, p. 262).
Meus amigos e eu fomos sendo ensinados, ao longo dos anos, que estudando e
trabalhando, não conseguiríamos galgar novos espaços (aqueles tidos como aceitáveis).
Acreditávamos, todos, nos discursos produzidos nos lugares que tínhamos acesso:
escola, casa e rua.
Lembro-me, de que os próprios professores diziam ser muito bom cursar uma
universidade, ter uma profissão, porém, diziam abertamente nas escolas públicas por
onde eu passei que universidade não era para nós, pobres oriundos da escola pública. E
quando sugeriam alguma profissão, quando muito, sugeriam um curso técnico. No
ensino médio não tínhamos acesso a informações básicas, não havia incentivo para
prestarmos vestibular. Estudávamos com o objetivo de começar a trabalhar após a

sumário 31
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

formatura. Eu achava que a academia não era um lugar para mim/nós, moradores de
favela. Hoje, propagandas explicativas sobre o Exame Nacional do Ensino Médio -
ENEM, Programa Universidade Para Todos - PROUNI 4 , avisando sobre a data de
inscrições e como o jovem deve fazer para se inscrever, pode ser considerado um
enorme avanço. Fui a primeira de minha família a ingressar em um curso superior.
Minha família também não sabia. Meus vizinhos também não. O Objetivo era concluir o
ensino médio (que ali representava um enorme mérito) e começar a trabalhar. Foi o que
eu fiz. É como se diz: “É o que temos pra hoje!”. Um dia, por incentivo de um amigo e
por curiosidade, me inscrevi e passei para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
na Faculdade de Formação de Professores - FFP e para a Universidade Federal do Rio
de Janeiro - UFF (em Psicologia). Não estudei, pois tinha certeza de que não passaria,
fiz de brincadeira. Eis que os caminhos foram mudando e hoje estou aqui.
Mas, naquele momento, a vida parecia terminar na fronteira entre a favela e o
asfalto. Muitos sucumbiram, exaustos, a essa modalidade de comércio de entorpecentes
e pessoas. Alguns ficaram pelo caminho marcado de confrontos. Outros simplesmente
pararam de nadar contra a maré e, finalmente, aceitaram seus destinos. Apenas
crianças, que tiveram seus sonhos calados, pois não podiam deixar de servir à classe
dominante com lugares previamente estabelecidos. “Quando penso nela, vejo o quanto
ainda temos de caminhar, lutando, para ultrapassar estruturas perversas de espoliação”
(FREIRE, 1995, p. 26). Quando retorno, pouco reconheço do lugar em que cresci, mas
revejo muitas dessas crianças, em outros rostos, com os sonhos roubados e praticamente
impedidas de enfrentar seus desafios.
Um café quente, uma cadeira qualquer e muitos sorrisos acontecem nesses
encontros. Alguém anuncia alto a minha chegada e outros companheiros de brincadeira
surgem dos becos sem fim. Lá sabemos o que é unidade. O tempo passou e muitos
caminhos diferentes foram seguidos, destinos cumpridos. Pessoas dotadas da valiosa
simplicidade de saberes acumulados atrás de um balcão, ou limpando o chão. Amigas

4
O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) foi criado em 1998 para ser uma avaliação de desempenho
dos estudantes de escolas públicas e particulares do Ensino Médio. Desde 2009, o Enem agregou outra
função ao seu currículo: tornou-se também uma avaliação que seleciona estudantes de todo o país para
instituições federais de ensino superior e para programas do governo federal, como o Sistema de Seleção
Unificada (Sisu), o Programa Universidade Para Todos (PROUNI) e o Fies (Fundo de Financiamento
Estudantil). Já oPrograma Universidade Para Todos (PROUNI) é uma medida do governo federal que
oferece bolsas de estudo para estudantes de baixa renda ingressarem em uma universidade privada.Esses
programas, bem como a divulgação do modo como funcionam, facilitam a vida de quem sempre sonhou
em estudar em universidade pública ou precisa de incentivo do governo para pagar a mensalidade da
universidade particular.

sumário 32
VII Seminário Vozes da Educação

que criam filhos sozinhas e, para isso, se preciso for, traficam, ou se traficam. Lá os
sonhos estão em liquidação e muitos aproveitam com parcelas que cabem em muitos
bolsos, em muitas consciências. Amigos que encontraram na bebida ou drogas a
motivação para continuar acordando. “Quando penso na minha Terra, tanto me lembro
da soberba do rico, de sua raiva pelos pobres, quanto da desesperança destes, forjada na
longa vivência de exploração ou na esperança que gesta na luta pela justiça” (FREIRE,
1995, p. 28). Mas, acima de tudo, amigos que gostaria que estivessem hoje, lutando ao
meu lado.
Vejo o que a sociedade vê pelos jornais e pela TV, um lugar marcado pela
violência extrema e por crianças que parecem estar fadadas a um mesmo destino.
Aquelas pessoas humildes, honestas, ainda estão lá. Continuam sem alternativa, sem
conseguir enxergar um horizonte. Silenciadas por essa nova maneira de hierarquia
violenta organizada pelo tráfico dentro da comunidade em que vivem, rejeitadas por
aqueles que vivem além dessas fronteiras e abandonadas pelo estado, que age enquanto
facilitador da exclusão e exploração neste espaço.

Em se tratando de Rio de Janeiro, ficam evidentes tais preconceitos, pois


desde a sua origem, se pensar em um processo, os lugares ocupados pelos
mais pobres recebem pouca atenção do poder público no que se refere ao
tamanho dos problemas sociais. Entretanto, como no passado, em sua versão
anterior a República: o quilombo, a favela recebe uma atenção especial do
aparelho policial, tendo em vista que favelas e favelados são considerados
como caso de polícia, mas não como um problema da sociedade (CAMPOS,
2013, p. 243).

O tráfico entra pelo abandono deixado pelo estado, gerando mais exclusão e
violência. Eu perdi alguns amigos e ainda posso perder outros, já que muitos desses
amigos e o restante de minha família ainda habitam aquele lugar. Novas gerações
chegaram com suas novas maneiras de viver e sobreviver. Meu primo, com menos de
vinte anos, perdeu todos os amigos da mesma faixa etária numa única noite de
confronto.
A necessidade diária de convívio neste território me fez aprender diversas coisas
na velocidade que era preciso. Não me lembro, em tempo algum, na escola ou fora dela,
durante toda a minha existência, de ter aprendido tanto e de tais conhecimentos, bons ou
não, internalizarem tão fortemente em mim. Necessidade? Possivelmente sim. O fato é
que hoje encontro facilmente essas experiências do tempo em que prefiro chamar de
“escola da vida” na minha leitura de mundo. De lá trouxe cicatrizes, mas também trouxe

sumário 33
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

o meu tio Ubernan, personagem mais importante de toda a minha existência e que me
ensinou, mesmo sem querer, que podemos conviver com as maiores diferenças, lutar
pelo direito de tê-las e ainda sermos felizes. Esquizofrênico, viveu todos esses anos
achando ser mais novo que eu, pois sequer reconhecia suas rugas no espelho. Pouco
falava, mas nos trouxe mais alegrias que qualquer outra criança da família. Mesmo
incapaz de retribuir afetos se tornou o filho preferido, mais amado, mais cuidado. Meu
filho também. Hoje percebo que a vida me proporcionou ensinamentos únicos, mesmo
em espaços condenados pelo restante da sociedade ou pela oportunidade única do
convívio com meu tio. Um verdadeiro presente.
Na Escola Municipal Julieta Botelho, em Niterói, formalizei minha
alfabetização, pois já entrei sabendo o que era preciso para ler e escrever. Uma escola
maravilhosa, com parquinho de areia, sala com estantes repletas de brinquedos até o teto
e sorvete de sobremesa. Todos muito afetuosos, inclusive a minha professora que,
mesmo cansada de uma vida dedicada à educação e prestes a se aposentar, permanecia
amável. Fui percorrendo meu caminho, sem noção de que existia um mundo inteiro bem
diferente do que eu estava acostumada. Conheci a disciplina Moral e Cívica no Ensino
Fundamental I, que fui obrigada a cursar, e que se tornou a minha maior inquietação
enquanto aluna e educadora. Disciplina que tentava me ensinar, com cunho religioso e
patriótico, o certo e o errado, o bom e o mau e o bem e o mal. Apenas tentava me
ensinar, pois já nessa época tinha consciência de ser e pertencer ao modelo errado,
embora fosse boa e praticasse a bondade. Na época eu não sabia, mas minha pesquisa se
iniciou ali, com aquela disciplina e inspirou a escolha do meu objeto de pesquisa da
monografia da graduação, das pós-graduações e do mestrado. Durante esse período,
além das aulas forçadas de Moral e Cívica, assistia aos cultos da igreja Batista que
aconteciam na casa do meu avô e recebia orientação religiosa protestante.
A violência se fixou e fez jus ao nome da comunidade (Nova Brasília) 5 ,
conhecida por ser a favela mais perigosa do município e análoga ao estado em que há a
maior concentração de corrupção e produção de violência contra as camadas mais
empobrecidas do país. Famílias inteiras foram obrigadas a deixar a favela. As que
conseguiram, claro! Por sorte, recebemos a ajuda de parentes e conseguimos sair
daquela zona de perigo. Nos mudamos, então, para São Gonçalo, deixando o espaço de

5
A favela Nova Brasília está localizada na zona norte de Niterói, no Rio de Janeiro, é dominada pelo
Comando Vermelho e fica próxima a comunidade Coronel Leôncio, dominada pelo Terceiro Comando
Puro.

sumário 34
VII Seminário Vozes da Educação

convivência da minha família materna para, a partir daí, morar ao lado da minha família
paterna. Moravam ao lado de nossa casa a minha bisavó, que criou meu pai e que foi a
figura materna da sua vida, e seu marido, Alcebíades que, mesmo não tendo laços
consanguíneos, foi o melhor pai e avô que eu poderia ter tido, criando laços conosco
que nem o tempo nem a memória que, às vezes nos prega peças, seriam capazes de
desfazer.
Nos horários livres de sonecas à tarde eu dormia na esteira da varanda enquanto
meu avô, mesmo idoso, permanecia de vigília, às vezes por horas, me abanando para se
certificar que nenhuma mosca posasse em mim. Com ele aprendi a valorizar a vida, mas
não só a vida, mas a qualquer ser que a possua. A justiça dos homens passou a ter outro
significado: o de bondade. Fui incentivada a fazer mais por aqueles que pouco ou nada
tinham e que respeito pela vida não se restringia a um simples sentimento, mas sim a
um movimento, a um posicionamento e, mais do que isso, a uma atitude. Certamente
meu avô foi o grande promotor do meu amor incondicional pelos animais, fazendo com
que, mesmo após a sua morte, eu acolhesse em minha casa tantos animais de rua até
hoje. Seus ensinamentos se tornaram a maior e mais importante referência de professor
da minha vida, embora ele não possuísse licenciatura alguma. Foi neste momento que
aconteceu o meu despertar para a educação e a minha vontade de ser professora. Mas
isso não acontece, não foi um acontecimento, foi mais um arrebatamento como ocorre
com os apaixonados.
Neste momento a história da minha família se refaz e, com ela, surgem novos
aprendizados. Se antes meus saberes permeavam o instinto de sobrevivência hoje eram
pautados apenas em paz e tranquilidade. Continuávamos muito humildes, passando de
uma casa de dois para uma casa de quatro cômodos, porém, extremamente felizes. A
constante inquietação com a minha transcendência me fez buscar a Igreja Católica e fiz
a Catequese. Acabei participando de muitos outros grupos existentes ali, como o Cor
mirim e jovem, a Crisma, o Grupo Jovem, a Legião de Maria e a Pastoral da Criança e
permanecendo praticante até a fase adulta. Quando as perguntas sem resposta se
tornaram uma constância, busquei respostas no espiritismo kardecista. Compreendi,
com o tempo, que minhas perguntas não precisavam ser respondidas e deixei de
perseguir as respostas.
Terminei o Ensino Fundamental e, logo em seguida, ingressei no Curso Normal
no Instituto Estadual de Educação Clélia Nanci, onde cursei o primeiro ano do antigo
segundo grau. Neste curso permaneci apenas por um ano e meio, pois tinha a

sumário 35
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

necessidade de trabalhar para ajudar no sustento da minha família e o curso funcionava


durante o dia. Já trabalhava desde os meus treze anos e, mesmo querendo cursar o
magistério, tive que optar por trabalhar por pertencer a uma classe subalternizada.
Segundo Garcia (2001), “subalterno implica a problematização da relação dos que
ocupam uma posição subalterna na relação com os grupos que estão no poder e exercem
hegemonia, seja nas formas coercitivas, seja pela dominação ideológica” (2001, p. 12).
E, embora convivesse com a negação de ascensão social às classes subalternizadas ,
contrariei as estatísticas destinadas à mulher mestiça e pobre e conclui o Ensino Médio.
De onde eu venho se diz: “Consegui concluir o Ensino Médio!” Mesmo que seja em um
supletivo, o CES (Centro de Estudos Supletivos).
No vestibular passei nas opções em que concorri, mas optei pela Faculdade de
Formação de Professores da UERJ, no curso de Pedagogia, ingressando em 2008 e
terminando meu curso em 2012. Dentre muitas alegrias e tristezas percorri o longo
caminho da graduação. Alegria de voltar a estudar, tendo em vista que sempre fui
apaixonada, de sair de certas aulas com a sensação boa de estar no lugar certo e de não
ter perdido meu tempo, de mergulhar sem medo, e de realizar um sonho antigo.
A partir desta inquietação concluí, no curso de graduação em Pedagogia, na
Faculdade de Formação de Professores da UERJ, com a monografia “A educação
religiosa nas escolas: disputas de poder pela fé”6, no ano de 2013, em que realizei uma
pesquisa de campo com turmas de ensino religioso confessional em escolas estaduais do
município de São Gonçalo – RJ, entrevistando suas respectivas professoras. Nesse
trabalho ficou evidenciada a dificuldade das docentes em trabalhar os diferentes credos
existentes naquela realidade escolar. Assim, uma das entrevistadas, afirmou, na
entrevista que “pegava o que era igual e não falava no diferente”. O “pegar o que é
igual”, nesse caso, era trabalhar o cristianismo católico, já que o ensino religioso no
Estado é confessional e a professora era católica, com aceitação ao protestantismo, no
máximo.
A monografia da graduação foi o primeiro passo em direção à minha opção pela
temática de pesquisa, que seguiu durante o curso de Pós-graduação em Gestão Escolar,
também realizada na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, em que busquei
respostas sobre a administração do Estado com o concurso de ensino religioso das

6
Orientada pela ProfªDrª. Adir da Luz Almeida.

sumário 36
VII Seminário Vozes da Educação

escolas estaduais 7 . Com essa monografia intitulada “O ensino religioso nas escolas:
disputas de poder pela fé” 8 , percebi que o Estado não é responsável por esses
professores, mas os credos aos quais eles pertencem, inclusive o acompanhamento, a
formação, oferecimento de material didático etc. Observei, também, que muitos credos
não participavam do concurso, embora estivessem autorizados a participar ou possuíam
um quantitativo muito pequeno em relação aos credos cristãos. Busquei, então, as
federações (as que possuem) e/ou as religiões autorizadas a participar do concurso a fim
de conseguir respostas. Dentre elas tive êxito com os islâmicos, os judeus, os espíritas e
os pertencentes ao candomblé.
Incluí na pesquisa, também, uma entrevista com a coordenadora da disciplina
ensino religioso do município de Itaboraí, que trabalhava a Lei 10.639/03 na prática da
disciplina naquele momento, como uma alternativa ao que vem sendo posto pela “fé do
colonizador”, o cristianismo. Nas práticas do município de Itaboraí existia, naquele
momento, o esforço em valorizar tanto as múltiplas identidades quanto as diversidades
culturais produzidas, ainda que as escolas, algumas vezes, manifestassem resistência.
“Tais manifestações culturais hegemônicas também estão presentes no currículo de
forma esmagadora na tentativa de coibir sem chance de emergir aqueles que estão em
condição de silenciados ou marginalizados pela sociedade” (GOMES, 2012). E o
confronto com a hegemonia reproduzida no currículo requer conflito, que é necessário
para que algo novo aconteça.
Sempre estive envolvida com diversos programas sociais, municipais, estaduais
e federais, como o Enter Jovem Plus 9 , lecionando empregabilidade, informática e
Sociologia para alunos do Ensino Médio do estado; Programa Brasil Alfabetizado 10,
com alfabetização de turmas de EJA tanto no estado quanto no município, Projeto Mais
7
A Constituição Federal de 1988, ao falar de educação, determina que o Ensino Religioso, mesmo
facultativo para o aluno, esteja obrigatoriamente presente como disciplina dos horários normais das
escolas públicas de Ensino Fundamental (art. 210), a Lei LDB no seu art. 33 e a Constituição do Estado
do Rio de Janeiro de 1989 (Art. 313) seguiram essa mesma determinação. A Resolução CNE/CEB N°
07/2010 do Conselho Nacional de Educação institui as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a
Educação Básica e estabelece o ensino religioso como “componente curricular obrigatório”. A Resolução
nº 1.568, de 06 de outubro de 1990, da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, dispõe sobre
o ensino religioso nas escolas da rede pública estadual. E a lei estadual nº 3459/2000 dispõe que o ensino
religioso nas escolas da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro seja confessional.
8
Orientada pelo Prof. Dr. Luiz Fernando Conde Sangenis
9
O Enter Jovem Plus é o resultado de uma parceria das Secretarias de Estado de Trabalho e Renda
(SETRAB) e Educação (SEEDUC), com o governo dos Estados Unidos para o Desenvolvimento das
políticas de ensino, qualificação profissional e intermediação de mão de obra no estado do Rio de Janeiro.
10
O Programa Brasil Alfabetizado é um programa formulado e implementado pelo Ministério da
Educação, voltado para a alfabetização de jovens, adultos e idosos. Desenvolvido em todo o território
nacional, com o atendimento prioritário a municípios que apresentam alta taxa de analfabetismo, visando
garantir a continuidade dos estudos aos alfabetizandos.

sumário 37
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Educação11, com reforço escolar de várias disciplinas no contraturno para alunos do


Ensino Fundamental I do estado e tantos outros trabalhos em que estive envolvida me
remetiam as vielas do labirinto, aparentemente, sem perspectivas da minha infância.
Escolhi uma temática de pesquisa com a qual eu me identificasse e, desde o
início dessa escolha, não tive dúvida: o fenômeno religioso me despertava interesse
profundo e, mais do que isso, me afetava na medida em que minha observação se fazia
mais presente no ensino público. Comecei a lecionar no Estado durante a minha
formação acadêmica e, nos colégios do Município de São Gonçalo, nos quais trabalhei,
pude observar que, em cada série, os alunos passavam por uma espécie de "doutrinação"
com suas respectivas professoras e essa doutrinação estava sujeita à orientação religiosa
professada pela mesma. Na medida em que passava pelos corredores, escutava numa
sala uma professora cantando um hino protestante, na outra sala a professora ensinava,
um por um, os dez mandamentos católicos. Estas correntes doutrinárias se faziam
presentes, também, nas festas comemorativas das escolas: como no dia das mães,
encerramento e tantas outras; em que a temática das músicas, tanto das festas quanto das
apresentações dos alunos, eram sempre de cunho religioso.
Além das influências das professoras do currículo regular, as crianças têm aulas
de religião, que fazem parte do currículo oficial obrigatório, mas acontecem entre as
aulas de Matemática e Geografia, por exemplo. Não constatei, em minhas pesquisas
anteriores na prática gonçalense, o caráter facultativo, já que em nenhum dos colégios
nos quais lecionei ou realizei pesquisas, existiam atividades alternativas sendo
oferecidas durante as aulas de religião, nas quais os alunos pudessem optar por fazer. Os
alunos eram proibidos pela direção das escolas de permanecer no pátio no horário de
qualquer aula, obrigando-os, assim, a assistirem as aulas de ensino religioso. Logo, a
minha hipótese é que há doutrinação religiosa a partir dos credos religiosos dos
professores e/ou da direção das escolas.
Conheci alguns professores de ensino religioso nestas escolas e percebi que
pregam, em suas aulas, o respeito à vida, a criação do universo, mas sempre sobre a
perspectiva criacionista e da sua religião. Segundo estes professores, deve-se respeitar a

11
O Programa Mais Educação, criado pela PortariaInterministerial nº 17/2007 e regulamentado
pelo Decreto 7.083/10, constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para indução da
construção da agenda de educação integral nas redes estaduais e municipais de ensino que amplia a
jornada escolar nas escolas públicas, para no mínimo 7 horas diárias, por meio de atividades optativas nos
macrocampos: acompanhamento pedagógico; educação ambiental; esporte e lazer; direitos humanos em
educação; cultura e artes; cultura digital; promoção da saúde; comunicação e uso de mídias; investigação
no campo das ciências da natureza e educação econômica.

sumário 38
VII Seminário Vozes da Educação

diversidade religiosa, mas presenciei, por diversas vezes, contraditoriamente, alunos


sendo constrangidos no colégio pelo racismo religioso. Além das aulas de ensino
religioso, o criacionismo, termo muito utilizado para além do estudo da criação do
universo nas aulas de ensino religioso, também se espraiou para a disciplina de
Ciências, em contraposição às ideias científicas de origem do universo. Ou seja, em
muitas escolas, esta também é uma realidade.
Sendo assim, com a marca religiosa de base cristã em nossas escolas, presenciei
crianças chorando, uma mãe sendo menosprezada, acuada e a direção informando que a
criança não deveria fazer apologia ao “diabo” dentro da escola. Testemunhei, muitas
vezes, alunos pequenos, do segundo, terceiro ano do ensino fundamental I, porque
haviam cantado um "ponto de macumba" (que são músicas próprias utilizadas
em rituais de religiões afro-brasileiras e africanas), ou porque haviam clamado por
algum santo de sua religião. De acordo com Silva, “A abrangência de cultos que sob o
termo ‘macumba’ eram conhecidos parece ter sido um dos motivos de sua popularidade
e de seu uso indiscriminado para se designar as religiões afro-brasileiras”. (1994, p. 87).
Para Caputo (2012, p. 43) “o termo macumba é utilizado, muitas vezes, de forma
generalizada ao se referir às práticas religiosas ou às religiões de matrizes africanas,
mas também pode ter um sentido pejorativo”.
Herdamos, desde a colonização, o racismo que permeia a sociedade e as escolas
e que delega ao mal às religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras, mesmo sendo
manifestações religiosas e culturais de igual valor a outra expressão religiosa. Existe a
intolerância e o preconceito de diversos modos, porém, quando se trata das religiões
afro-brasileiras podemos afirmar que se trata do racismo, que apenas se encarrega de
delegar à fé do negro ao mal. “Essa identificação ocorre mesmo quando a associação
raça-religião é feita de forma velada, disfarçada” (CAPUTO, 2012, p. 245).
Muitos são os modos de praticar um racismo religioso dito “velado”, porém, ao
refletir sobre esse tema, ao atentar para a realidade cotidiana, percebe-se que não estão
tão velados assim. Exemplos desse racismo que parece crescente na sociedade, estão
presentes na perseguição e derrubada dos terreiros de candomblé e umbanda no Rio de
Janeiro. Velado ou não, desperta em mim a razão para que esta escrita aconteça: o
desejo de contribuir, de lutar e de construir uma sociedade mais justa e igualitária, em
que sejamos capazes de praticar o respeito em nome de um deus, muitos deuses ou
nenhum. Caminhos de luta acadêmica, social, política, profissional e cotidiana. Assim, a
luta permaneceu viva com a pesquisa desenvolvida no curso de Mestrado em Educação

sumário 39
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

na Faculdade de Professores da UERJ, com o título “Vivendo entre dois mundos e


aprendendo com a sabedoria de um terreiro de candomblé sob a mira do racismo
religioso12”, defendida em fevereiro de 2019.
Esta pesquisa, que apenas se inicia no curso de mestrado, começa a se desenhar
quando percebi que o preconceito, seja ele pelo gênero, raça, religião, é mais do que
aparenta ser. É ocultada aí uma polaridade que se conecta, se entrelaçada a fatos
históricos, sociais, ideológicos e políticos, tornando-o, assim, um questionamento de
alta complexidade e de profundo teor polêmico. Por isso venho investigando a maneira
com que as religiões se colocam dentro dos espaços escolares, uma vez que vivemos
numa sociedade que carrega o preconceito racial como marca.
Com mais de dez anos de experiência, lecionei tanto em escolas privadas quanto
em escolas públicas do Estado e municípios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí. Hoje
sou bolsista UAB13 como professora tutora do Cederj pela Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro com as disciplinas Prática de Ensino I (Didática e Formação de
professores), Prática de Ensino II (Currículo) e Prática de Ensino III (Avaliação).
Diversas experiências contribuíram para a escolha do meu objeto de pesquisa e,
dentre eles, está a minha vivência enquanto estudante, o território de poucos recursos
onde morei e os inúmeros preconceitos que vivenciei em minha infância e juventude.
Mulher, mestiça, da favela, filha de pai negro do asfalto e mãe loira da favela, mãe,
aluna de escolas que discursavam que a universidade não seria o meu lugar e agnóstica.
Como Paulo Freire, eu também... “Sou brasileiro [a], sem arrogância; mas pleno[a] de
confiança, de identidade, de esperança em que, na luta, nos refaremos, tornando-nos
uma sociedade menos injusta” (FREIRE, 1995, p. 26). Brasileira que sou, busco no
direito do outro a liberdade e a beleza de ser uma mulher mestiça, composta de
inúmeras ancestralidades.
Carrego dentro de mim o sincretismo de muitas ideologias religiosas. Rogo a
São Lázaro e São Francisco de Assis quando resgato um animal da rua, distribuo doces
no dia de São Cosme e São Damião sem saber, ao certo, se por devoção ou por me
remeter às doces lembranças dessa data na minha infância pobre sem balas o ano
inteiro. Às vezes gosto de pensar que terei outra vida, outra chance de acertar e aprender
o que não foi aprendido, como uma eterna aluna/professora que “aprende enquanto

12
Orientada pela Profa. Dra. Regina de Fatima de Jesus.
13
Bolsista CAPES da Universidade Aberta do Brasil.

sumário 40
VII Seminário Vozes da Educação

ensina e ensina enquanto aprende”, como me ensina o mestre Paulo Freire. Mas o fato é
que passei a valorizar mais as mãos que ajudam que as bocas que rezam. Lutar por esses
direitos não é uma escolha, nunca foi pra mim. Lutar, nesse caso, significou minha
sobrevivência. Lutar, agora, significa minha essência, que se intensificou com a minha
inserção no curso de Pedagogia, que passou a ser, também, um compromisso político
que assumo a cada vez que entro pela porta da sala de aula enquanto professora sempre
em busca da transformação social.
Cada dia é um novo dia, uma nova descoberta e com novas experiências. Quem
sabe, um dia, eu faça as pazes com Deus 14 . Enquanto isso gostaria de não ter que
desenvolver trabalhos e apresentações com cunhos religiosos nas escolas públicas por
onde eu passo/atuo. Assim como quero que meus alunos tenham o direito de professar a
sua fé, ou fé nenhuma. O direito de sermos quem somos, com nossas múltiplas
identidades, ancestralidades e fés. Por isso busco pensar de que maneira as religiões se
colocam dentro dos cotidianos escolares, sendo a escola um ambiente de múltiplas
identidades, manifestações culturais e símbolos, deve, também, a escola ser um espaço
que esteja preparado para receber e trabalhar com as diferenças.

Ao falar da minha Terra, menciono o ideal que comungo com um sem-


número de brasileiros e brasileiras: a realização de uma terra em que amar
seja menos difícil e as classes populares tenham voz, sejam uma presença
participante e não sombras assustadoras diante da arrogância dos poderosos
(FREIRE, 1995. p. 35).

Não seria capaz de conseguir detalhar precisamente todos os acontecimentos.


“Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos
desconhecidos – e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que
um dia nos encontrássemos?” (NIETZSCHE, 1998, p. 8). Enfim, diversos sentimentos
me tornam, me definem. Como qualquer ser, trilhei por tristeza e felicidade e meu

14
Aqui segue uma síntese, tentando explicar essa frase, pois muito do que escrevo, parece contradizê-la
(chamou atenção minha orientadora do mestrado Regina de Fatima de Jesus), mas tentarei explicar: eu
tive orientação religiosa desde criança. Primeiro protestante, depois católica. Na fase adulta procurei o
kardecismo. Porém, ao longo dos anos, fui deixando de ser cristã e me tornando agnóstica. Algumas
práticas permaneceram (como dar doces) ou rogar por alguns santos nos quais tenho afinidades ou admiro
a história de vida. Não sigo mais a bíblia, pois há coisas que não compreendo, não concordo ou interpreto
de maneira diferente. Quando digo “fazer as pazes com Deus”, é nesse sentido (de voltar a crer nele).
Creio que há algo, mas não sei o que é. Tenho uma outra visão de um criador que é diferente da que
conheci durante a vida, pois não consigo compreender como um Deus pode ser bom para minhas filhas ao
mesmo tempo em que vejo tamanho sofrimento em tantas outras crianças mundo afora. Acredito no
equilíbrio das forças da natureza e das pessoas e gosto de pensar, às vezes, que posso recorrer aos meus
ancestrais e, assim como os candomblecistas, cuido para que meus ancestrais sejam preservados mediante
as escolhas que faço hoje.

sumário 41
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

trabalho está sendo feito. Na verdade, é apenas o começo e espero que permaneça
assim: sempre um começo. Desejo ainda muito desenvolvimento. Na verdade, tudo
acontece a todo o momento e isso nos forma, nos deforma e nos transforma. Ninguém
pesquisa se não desconfia da certeza e é por esta razão que hoje me encontro aqui.

Referências
CAMPOS, Andrelino. Quilombos, favelas e os modelos de ocupação dos subúrbios:
algumas reflexões sobre a expansão urbana sob a ótica dos grupos segregados. In:
JESUS, Regina de Fatima de. ARAÚJO, Mairce da Silva. CUNHA Jr, Henrique Cunha
(Org). Dez anos da Lei nº 10.639/03: memórias e perspectivas. Fortaleza: Edições
UFC, 2013.

CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com
crianças de candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho D’água, 1995.

GARCIA, Regina Leite. Para quem investigamos, para quem escrevemos: reflexões
sobre a responsabilidade social do pesquisador. In: MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa
et al (Org.). Para quem pesquisamos, para quem escrevemos: o impasse dos
intelectuais. São Paulo: Cortez, 2001.

GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos


currículos. Currículo sem Fronteiras, v. 12, p. 98-109, 2012.

LOURAU, R. René Lourau na UERJ. Análise institucional e prática de pesquisa.


Editora da UERJ, Rio de Janeiro, 1993.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia


das letras, 1998.

SILVA, Vagner Gonçalves da. Candomblé e umbanda: caminhos da devoção


brasileira. São Paulo: Editora Ática S. A., 1994.

sumário 42
VII Seminário Vozes da Educação

A ESCOLA COMO LUGAR DE MEMÓRIAS E IDENTIDADE:


HISTÓRIA DA ESCOLA MUNICIPALIZADA PROFESSORA NIUMA
GOULART BRANDÃO A PARTIR DAS VOZES DE SEUS SUJEITOS

Adriana de Freitas Salomão do Nascimento


UFF
adrianasalomaouerj@gmail.com

Uma breve introdução: os caminhos percorridos na produção do texto


Ao longo de minha carreira docente, a busca por caminhos para melhorar minha
prática alfabetizadora e para superar as inquietações em relação à aprendizagem das
crianças das classes populares tem movido minhas opções de formação e de trabalho.
Nessa perspectiva, cheguei ao Curso de Pós-Graduação Lato Sensu -
Alfabetização das Crianças das Classes Populares, na Universidade Federal Fluminense,
onde fiz parte da turma que comemorou os 25 anos de existência do Curso e recebeu o
nome de Regina Leite Garcia, a professora emérita que foi a sua criadora.
Em função de minha história de formação, ponto de partida desse trabalho optei
por desenvolver esta investigação de final de curso, na Escola Municipalizada
Professora Niuma Goulart Brandão, com objetivo de contribuir para a construção de
uma história da educação e das práticas escolares gonçalenses, que priorize as vozes dos
sujeitos que estão na escola. Assim, intitulei a pesquisa como: “A escola como lugar
de memórias: Histórias da Escola Municipalizada Professora Niuma Goulart Brandão, a
partir de seus sujeitos”.
Buscar a história de uma comunidade junto aos sujeitos que a construíram, nos
permite trazer um outro olhar sobre a história das escolas, que nos ajude a compreender
a perspectiva educacional que vivemos hoje. Pensar na escola como lugar de memória,
pode ser um caminho para não ceder ao esquecimento.
Pierre Nora (2003) ao trazer o conceito de lugar de memórias, nos lembra que
estes são espaços onde se cruzam memórias coletivas e individuais. Olhares e
conversas são lugares de memória. A rua, o bairro, a escola, o museu, a universidade, o
sindicato, as fundações, as ruínas, a paisagem, os clubes, a associação de moradores,
todossão lugares de memória. Os lugares de memória também podem ser imateriais

sumário 43
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

como: os sabores da comida, os ensinamentos transmitidos pela família, lugares que


ficam muitas vezes adormecidos em nossa memória e precisam ser revividos e
revisitados para a continuidade da história de uma comunidade e de um povo.
Park (2003, p. 31), dentre outras autoras, tem nos lembrado que “quando
trabalhamos com memória também trabalhamos com o esquecimento”.Entendendo que
a Escola Municipalizada Professora Niuma Goulart Brandão também tinha uma história
a ser contada. O que me levou a reflexão do seguinte pensamento, por que depois de
quarenta e sete anos uma comunidade continuava a reconhecer a escola a partir de uma
diretora? A meu ver esta história não poderia cair no esquecimento, resolvi tomar o
local como ponto de partida e chegada da pesquisa e ouvir alguns de seus sujeitos
autores que participaram da organização da escola e contribuíram para o que se tornou
hoje.
Acredito que ao dedicar-me a ouvir os sujeitos que participam cotidianamente da
construção da escola pública, estarei dando prosseguimento não só ao meu processo
formativo, como também contribuindo para fazer circular vozes de protagonistas que
têm sido secundarizadas na produção da história do magistério.

Do Jardim São Lourenço da minha infância ao Complexo do Salgueiro

O lugar é a oportunidade do evento. E este, ao se tornar espaço, ainda que


não perca as suas marcas de origem, ganha características locais. É como se a
flecha do tempo se entortasse em contato com o lugar. O evento é, ao mesmo
tempo, deformante e deformado. Por isso fala-se na imprevisibilidade do
evento, a que Ricoeur (1986) chama de autonomia, a possibilidade, no lugar,
de construir uma história de ações que seja diferente do projeto dos atores
hegemônicos. (Milton Santos).

Investigar a Escola Estadual Municipalizada Niuma Goulart Brandão como um


lugar de memórias, suscitou em falar do lugar que cresci, corri, brinquei, estudei e fui
professora trabalhando com meninos e meninas da comunidade. Assim, continuo meu
texto, buscando entender as relações entre lugar e evento de que fala Milton Santos na
epígrafe. Que histórias de ações foram construídas no lugar que chamamos Escola
Estadual Municipalizada Niuma Goulart Brandão?
Em busca de traçar algumas respostas para tal questão, construí o texto
entrecruzando as falas de Lucília e Renata, minhas interlocutoras no movimento de
entender a formação do bairro e da escola, com outras fontes tais como jornal e
fotografias, que o pouco tempo reservado a pesquisa me permitiu levantar.

sumário 44
VII Seminário Vozes da Educação

A cidade de São Gonçalo possui a segunda maior população do estado do Rio de


Janeiro, com mais de 1 milhão de habitantes, e a terceira maior população do Estado.
Encontra-se no lado oriental da Baia de Guanabara, chamada também de leste
Guanabarino, e é atravessado por três grandes vias de acesso: RJ-106 (estrada litorânea
– direção Região dos Lagos Fluminense), RJ- 104 (indo até Magé em direção as cidades
serranas) e BR-101. Limita-se ao Norte, com Itaboraí e a Baía da Guanabara. Ao Sul,
com Maricá e Niterói. A Leste, com Itaboraí e Maricá a Oeste, com Baía de Guanabara
e Niterói, possui uma proximidade com a cidade do Rio de Janeiro, no quetange à
distância entre as duas prefeituras de aproximadamente vinte quilômetros.
Tavares e Araújo (2003), trazem alguns elementos da história gonçalense
relevantes para o estudo que aqui fazemos:

A partir da década de 70, São Gonçalo viveu um acelerado crescimento


populacional, que atingiu principalmente os bairros periféricos, com a
facilidade de acesso ao Rio de Janeiro, proporcionada pela Ponte Rio Niterói,
inaugurada em 1974. A distância Rio - São Gonçalo, encurtada pela ponte,
tornou o município um local de moradia alternativa, por ter aluguéis com
preços mais baixos. O crescimento industrial de grande porte cedeu lugar à
era dos serviços, da pequena e média empresas, iniciando-se também a
desindustrialização. A cidade passa a ser considerada como “cidade
dormitório” à medida que sua população começa a trabalhar fora do local de
moradia (TAVARES; ARAÚJO, 2003, p.6).

Contudo, o grande aumento populacional não foi acompanhado pelo


desenvolvimento estrutural que a cidade necessitava como: saneamento básico,
transporte, saúde, educação. O município apresenta assim bolsões de pobreza, baixo
índice de escolaridade, alto índice de desemprego, além de registrar um alto índice de
violência contra a juventude, neste contexto social de desigualdade está inserido o
bairro do Complexo do Salgueiro.
O bairro do Salgueiro, pertence ao primeiro distrito de São Gonçalo e localiza-se
na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.A história do bairro do Salgueiro
compreende dois tempos distintos. Sua origem e nome provêm de Arthur da Silva
Salgueiro, um imigrante português, que se instalou nessas terras, em 1928, plantando e
vendendo seus produtos para a ilha de Paquetá, na Baía de Guanabara. O Sr Salgueiro
foi proprietário de uma fazenda, cujo tamanho correspondia às terras hoje encontradas
entre a Estrada das Palmeiras e a Estrada da Sapucaia. Contudo, “Salgueiro” é apenas o
nome de quatro quadras do bairro, que em sua totalidade se chama “São Lourenço”.

sumário 45
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A Fazenda São Lourenço, que existia naquela região, foi loteada na década de
1960 pelo Banco Nacional da Habitação (BNH), com vistas a construção de casas
populares. A construção de um conjunto habitacional com 710 casas pelo BNH-
CEHAB, teve início em 1973 com a finalidade de abrigar os moradores retirados de
diversas favelas de Niterói como Maverói, Favela do Maracanãzinho, Morro do Estado,
Morro do Palácio, Morro da Marinha, entre outras. Posteriormente, foram chegando
para a região moradores advindos de diversas localidades, sendo reconhecidos como
invasores.
O bairro do Salgueiro, portanto, é demarcado pela parte planejada pelo BNH,
simbolizada pela caixa d‘água que abastecia o conjunto habitacional, e a parte que foi se
expandindo com a chegada desses novos moradores.
Meu pai, minha mãe e eu chegamos ao Salgueiro, provenientes do Bairro do
Barreto, em Niterói, em 1976, quando o conjunto habitacional possuía apenas três anos
de existência. Naquele momento, as casas da Rua Ricardo Leon, onde morávamos,
localizada na parte de trás do Jardim São Lourenço, como era chamada na época, eram
amplas, com quintal e muitas árvores frutíferas. A maioria das residências tinha e ainda
mantém essas características. Alguns vizinhos eram oriundos do nordeste e de regiões
rurais do Rio de Janeiro. Nossas casas eram separadas por cercas de pau, que aos
poucos foram sendo substituídas, pelos arames farpados e, por último, pelos muros.
Concomitantemente, outras mudanças iam acontecendo demarcando outras
separações dentro do mesmo bairro: na parte da frente era a favela, na parte de trás, o
conjunto habitacional, a parte nobre do bairro onde estavam os moradores que tinham
um poder aquisitivo um pouco melhor. Na favela, vielas, casas pequenas, coladas umas
às outras, sem calçadas, sem muros e sem quintal. Na parte de trás, casas maiores,
terrenos amplos, arborizados, separação entre as casas.Com a divisão dentro do bairro,
já não podíamos mais circular livremente.
Ir à casa de amigas que moravam na favela foi se tornando impossível. A favela
era o “lugar dos marginais”. Vivíamos como se existissem vários Salgueiros dentro do
mesmo local. A “sensação de paz terminara”.
Entre 1980 e 1990, os muros de concreto já não “barravam” o perigo. A
violência já se instalara em toda comunidade, e “os efeitos do lugar”, como nos ensina
Bourdieu, foram se tornando cada vez mais visíveis. “O espaço social se retraduz no
espaço físico”. (BOURDIEU, 2008, p.160), ou seja, na parte da trás do bairro, moravam
“os cidadãos”, os que tinham acesso à água e ao esgoto, os que possuíam as casas

sumário 46
VII Seminário Vozes da Educação

amplas e ventiladas, já na parte da frente, “os marginais”, “os bandidos”, num espaço
muito mais precarizado.
As próprias amizades iam sendo adaptadas à lógica do capital, reprodutora dos
efeitos do lugar, já não dava mais para fazer trabalhos escolares na casa da amiga que
morava na favela.

(...) os que não possuem capital são mantidos à distância, seja física, seja
simbolicamente, dos bens socialmente mais raros e condenados a estar ao
lado das pessoas ou dos bens mais indesejáveis e menos raros. A falta de
capital intensifica a experiência da finitude: ela prende a um lugar.
(BOUDIEU, 2008, p.164).

Mesmo partilhando de locais próximos e até sofrendo de algumas carências


comuns, como o caso da luz, que era difícil para todos, os lugares sociais iam sendo
demarcados pela estrutura social. Os cidadãos “de bem” e “os marginais” que nem eram
considerados cidadãos.
Os efeitos do lugar reificam estruturas sociais, determinam o lugar de cada um,
naturaliza valores e visões de mundo, “quem mora na favela é marginal”, “se é pobre e
mora longe é por falta de esforço e porque não gosta de trabalhar”. Lógicas que
legitimam as desigualdades sociais.
Meio século já se passou entre o Jardim São Lourenço da minha infância ao
Complexo do Salgueiro, que se tornou referência das páginas policiais das manchetes
dos jornais. Incorporando outros bairros próximos tais como Itaúna, Recanto das
Acácias, Fazenda dos Mineiros e os Conjuntos da PM e da Marinha, Complexo do
Salgueiro é o nome como a região é hoje conhecida.
Ahomogeneização espacial da região produz a sua estigmatização. A
denominação favela provoca os efeitos do lugar nas trajetórias dos indivíduos oriundos
dessas localidades, reconhecidas como “lugar perigoso”, onde, consequentemente,
“moram pessoas de pouca educação e nível social inferior”. É o local estigmatizando os
sujeitos e sobrecarregando-os de significados e estigmas.
A manchete do Jornal O São Gonçalo, do dia 15 de outubro de 2018, desenha
em parte o panorama social do Complexo do Salgueiro

A Polícia Federal (PF), com apoio das Forças Armadas, está realizando uma
mega operação, na manhã de hoje (15), nas comunidades do Complexo do
Salgueiro, em São Gonçalo. Segundo informações, a ação mobiliza mais de
1000 homens do Exército e 30 da PF. Carros blindados e aeronaves estão

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

sendo utilizadas na operação. Pessoas que entram e saem da comunidade


estão passando por revista pessoal. (O SÃO GONÇALO, 2018, p.1)

Mesmo considerando a defasagem dos dados, que remetem a quase uma década
atrás, mais a proporção entre 1030 homens do exército e da PF para fazer operações
junto a uma população de 9.182 residentes é, no mínimo, muito assustadora, pois,
segundo dados do IBGE, em 2010, portanto, há quase uma década, o Salgueiro estava
composto da seguinte forma: são 9.182 residentes, sendo que 51% se consideram
pardos; 16%, negros; 32%, brancos e 5%, amarelos. Ou seja, a composição de
negros/pardos ultrapassa os 67%. Por outro lado, já se sabe hoje a maioria da população
pobre brasileira é constituída por negros e pardos.
De acordo com dados do Projeto de Trabalho Técnico Social, órgão vinculado à
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (PTTS/SMDS), no raio de ação do
Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) do Salgueiro,em 2011, havia 11
mil famílias em situação de risco e de vulnerabilidade social.
Ao longo dos anos houve um aumento da violência no Complexo do Salgueiro,
especialmente, a partir das mudanças nas políticas de segurança pública do Estado do
Rio de Janeiro, com a implantação das Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Um dos
efeitos colaterais de tal política foi o deslocamento criminal das favelas cariocas para as
cidades próximas. São Gonçalo foi uma dessas cidades.
Após retornar à comunidade como professora vivenciei o crescimento da
violência durante os nove anos que lecionei na escola. A chegada do Batalhão de
Operação Policiais trazia uma sensação de tranquilidade apenas passageira. A equipe
escolar se mantinha unida para se fortalecer e manter o propósito de educar e cuidar.

A História da Escola a partir do olhar de uma mulher guerreira, negra e militante


Com a crescente necessidade de uma escola no bairro foi fundada a Escola
Estadual Professora Niuma Goulart Brandão, por meio do Decreto N° 3.140, de 30 de
abril de 1962, publicada no Diário Oficial, datado em 02 de maio de 1962, com oferta
do Ensino Pré – Primário e Primário na época.
A Escola Municipalizada Professora Niuma Goulart Brandão se localiza na rua
Capitão Antônio Franklin, S/N, no 1º distrito, na comunidade do Salgueiro, bairro
periférico, do município de São Gonçalo, atendendo a moradores dos bairros vizinhos:
Palmeiras, Fazenda dos Mineiros, Itaúna e Luiz Caçador.

sumário 48
VII Seminário Vozes da Educação

O nome da escola foi escolhido para homenagear uma professora nascida no


bairro de Alcântara, no município de São Gonçalo, em 29 de julho de 1940, que veio a
falecer num trágico acidente em 25 de abril de 1977. O perfil religioso da professora,
bem como sua inserção na Paróquia de Alcântara, foram as características centrais que
moveram essa escolha, segundo o Projeto Político Pedagógico da escola
A escola era constituída por uma casa bem simples, doada ao Estado pelo sr.
Salgueiro, proprietário da Fazenda São Lourenço. A origem da escola, portanto, se
assemelha a tantas outras escolas de São Gonçalo, que também tiveram suas origens a
partir de doações particulares.
A professora descreve a escola: uma única sala de aula de oito por seis metros
de comprimento. Não havia banheiro no prédio da escola. A escola funcionava em três
turnos das 7h às 10h30m, 10h30m às 14h30m e 14h30m às 17h30m, eram três horas de
aula, porém, não tinha luz e atendia a 80 alunos. Relatando sua chegada, a professora
descreve:

O bairro tinha uma linha de ônibus precária, que não passava pela escola, a
professora e os moradores precisavam andar muito para chegar ao destino
desejado, os residentes eram hospitaleiros e sabiam a importância da escola
que era na zona rural. (Trecho da entrevista de Lucília de Oliveira em
02/08/2018).

O corpo administrativo e docente da escola era composto pela diretora Maria


Bernadete Rebelo Alves e três professoras, sendo Dona Lucília uma dessas professoras.
Todas eram professoras concursadas, porém, tal quadro administrativo-docente não
permaneceu durante muito tempo, como relata a professora:

Com o passar do tempo a diretora Maria Bernadete Rebelo Alves se


aposenta, as outras professoras saem da escola e o Estado não mandava
outras professoras para ocupar o lugar das que saíram... assim acabei ficando
sozinha na escola e responsável por todos os documentos e por todas as
turmas. (Trecho da entrevista de Lucília de Oliveira em 02/08/2018)

Uma outra hipótese, não levantada pela professora, para a não chegada de outras
docentes para escola, pode estar articulada ao reconhecimento do bairro como um local
como perigoso, dificultando a complementação do quadro docente.
Assim, assumindo o lugar de diretora e querendo resolver o problema da falta de
professoras, Dona Lucília começou a recorrer à comunidade convidando

sumário 49
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

professorasrecém-formadas, não concursadas, para dar aulas na escola. Além de acionar


a comunidade para a resolução de outros problemas.Como relata a entrevistada:

Todos tinham algum tipo de conhecimento para ajudar na escola. O portão da


escola sempre esteve aberto para todos e sempre houve respeito, quem sabia
cozinhar fazia a merenda e almoçava na escola, quem podia limpar as salas e
banheiros ajudava e assim a escola se manteve por anos. A unidade
funcionava durante os finais de semana com bazar, catequese para as
crianças, culto evangélico, dentre outras atividades. Era um espaço vivo com
uma proposta de mudança social. (Trecho da entrevista de Lucília de Oliveira
em 02/08/2018)

A história da escolar vai mostrando como a própria comunidade vai se


organizando para suprir o papel que o Estado não cumpre.

Associação de Moradores, a Escola de Samba Quero Dizer Mas Não Posso.


... todos que podiam lutar, reclamar e ajudar para promover mudanças no
bairro... muitas pessoas se reuniam em favor da escola, eu chamava de “as
Forças Vivas do Salgueiro”. Essas vozes chegaram ao Governo Federal, e a
comunidade ganhou PRODASEC. (Trecho da entrevista de Lucília de
Oliveira em 02/08/2018)

Dona Lucília relata parte do movimento vitorioso que levou à conquista do


programa social:

Foram muitas as tentativas e pedidos para melhorar a estrutura da escolar.


Muito ofícios foram enviados pra Coordenadoria Estadual de Educação de
São Gonçalo. Muitas idas e vindas sem sucesso. Até que junto com a
Associação de Moradores e as “Forças Vivas do Salgueiro” alugamos um
ônibus e fomos na Coordenadoria do Estado do Rio de Janeiro, levando
nossas denúncias e reivindicações (Trecho da entrvista de Lucilia de
Oliveiraem 02/08/2018)

Com este movimento a escolar ganha o programa educativo-cultural lançado


pelo Ministério da Educação e Cultura em 1980: o Programa Nacional de Ações
Socioeducativas e Culturais para as Populações Carentes Urbanas. (PRODASEC).
Segundo informações levantadas pelo programa educativo-cultural, PRODASEC, tinha
como meta relacionar educação, trabalho produtivo, vida comunitária e cultura, tendo
sido o plano geral do programa.
A partir do financiamento proporcionado pelo PRODASEC a escolar, em 1980,
já com vinte 20 anos de existência, pode reformar o telhado, que fora interditado pela
defesa civil, causando a suspensão das aulas. Além do telhado a escola recebeu
mobiliário novo.

sumário 50
VII Seminário Vozes da Educação

A suspensão das aulas, em função da reforma do telhado, aconteceu no meio do


ano letivo. O que fazer com os estudantes? As crianças não poderiam ficar sem aula. A
solução encontrada pela escola foi alocar as turmas em casas que haviam sido
abandonadas pelos primeiros moradores em função do aumento da violência do bairro.
Os moradores entregavam as chaves para a diretora. Enquanto duraram as obras do
telhado as turmas funcionaram nas casas cedidas pelos moradores. A cozinha
permaneceu funcionando na escola e os alunos após as aulas retornavam para almoçar.
Após o término do telhado, a escola volta a funcionar, porém o aumento do
quantitativo de alunos impossibilitou a liberação total do uso das casas. Sendo assim,
algumas turmas continuam funcionando em casas (a diretora não informa quantas).
Encontrar ou mesmo inventar uma solução para que as crianças não ficassem
sem aulas, não foi apenas uma atitude isolada de um determinado momento. O que os
relatos da diretora vão nos trazendo é que esse, muitas vezes, é um modo de
funcionamento, que historicamente muitas escolas assumem diante de um poder público
que se ausenta de suas responsabilidades.
A história da Escola Municipalizada Professora Niuma Goulart Brandão vai
confirmando uma realidade que não é só dela, mas de tantas outras escolas públicas,
seja de São Gonçalo, seja de outros municípios brasileiros: os alunos com menor poder
aquisitivo, moradores de periferias, muitas vezes vivendo em situação de risco, que
deveriam ter garantido o direito a um ensino de qualidade, que contribuísse para reduzir
as desigualdades sociais, estão, na maioria das vezes, em escolas mais despreparadas,
no mais amplo sentido: estruturalmente, pedagogicamente, e com falta de profissionais.
Este muitas vezes é o retrato “da escola do pobre”. Uma escola, não por coincidência
que fornece o mínimo necessário para os filhos dos pobres.
Uma das implicações deste retrato é que, enquanto a escola dos pobres for pobre
de instalações físicas, humanas, alunos serão considerados/as incapazes e os/as
professors/as, quando não reconheciodos/as como incompetentes e responsáveis pelo
fracasso escolar,deles/delas se espera a “salvação da pátria”, aqueles/as que podem fazer
milagres.
Arroyo (2013) ao discutir em“A pobreza, uma questão moral?", quando reflete
sobre a construção histórica da hierarquia na distribuição dos direitos:

Em realidade, a caracterização dos(as) pobres como inferiores em


moralidade, cultura e civilização tem sido uma justificativa histórica para
hierarquizar etnias, raças, locais de origem e, desse modo, alocá-los(as) nas

sumário 51
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

posições mais baixas da ordem social, econômica, política e


cultural.(ARROIO,2013,p.12)

Assim, o sucesso e o fracasso nas escolas, que são mais fragilizadas, em função
das próprias condições políticos-sociais, são justificados não a partir destas condições,
mas sim a partir da (in)competência de seus sujeitos, justificando o lugar que ocupam na
sociedade. Se, por um lado, a história da escola nos provoca tais reflexões, por outro,
confirma também para nós, que os sujeitos que atuam dentro dela, não se entregam aos
determinismos.
Assim, o sentimento de descaso do Poder Público em relação à escola, que
parecia entregá-la ao seu próprio destino, tinha como contrapartida respostas de
resistência e não conformismo. Um exemplo dessas ações foi contratar uma moradorada
comunidade professora alfabetizadora, para suprir uma turma de alfabetização que
estava sem docente. Quem traz o relato é a própria professora:

Em 2003 fui convidada por Dona Lucília para trabalhar na escolar como
alfabetizadora. A turma era composta por trinta e cinco crianças, o desafio e a
responsabilidade eram grandes. No final do ano letivo, todos estavam
alfabetizados. O pagamento no princípio era uma ajuda de custos que a
diretora pagava com sua gratificação de diretora do Estado. Um dia estava
em minha sala de aula quando a escolar recebeu a visita da supervisão do
Estado. Durante todo o tempo a escolar nunca recebera a visita de um técnico
administrativo escolar estadual, que condenou a atuação da atuação da
professora sem vínculo dentro da unidade. A diretora após questionada pela
supervisora, explica que só perderia a educadora se o Estado enviasse uma
professora alfabetizadora. Como o Estado não mandou nenhum professor o
trabalho continuei normalmente com as crianças, depois de passados alguns
meses o Estado abriu contrato temporário para docente e fui
contratada.(Entrevistarealizada com Renata Luiz em 23/07/2018)

Da mesma forma que resolveu o problema da falta de professora alfabetizadora,


a diretora ia implementando outros projetos na escola. No fragmento da entrevista
abaixo, Dona Lucília relata

Preocupados com o aprendizado dos alunos buscamos os nossos parceiros da


comunidade, para estender o horário das aulas atendendo as crianças que
apresentavam dificuldades de aprendizagem e as crianças que as mães
trabalhavam fora e não tinham com quem deixar. A escolar oferecia
também,oficinas de crochê, aula de capoeira oval, música, canto e reforço
escolar. O objetivo da escolar era inserir os alunos na sociedade. (Trecho da
entrevista de Lucília de Oliveira em 02 /08/2018)

Em sua entrevista aprofessora Renata relembra o grande envolvimento da


diretora nos processos pedagógicos:

sumário 52
VII Seminário Vozes da Educação

Algumas aulas eram ministradas pela diretora Lucília, as crianças eram


alfabetizadas ao som do violão com músicas cantadas e tocadas pela
alfabetizadora. Ela fazia desenhos no quadro e o barulho das palavrinhas, as
leituras eram tomadas no colo da alfabetizadora e as crianças com mais
dificuldades tinham uma educação diferenciada, só eram liberadas quando
entendiam a lição que era realizada de diversas formas para alcançar o
aluno.(Trecho da entrevista de Renata Luiz em 23/07/2018)

Outras parcerias, outros projetos, que confirmavam as ações de resistência da


escola foram aparecendo na rememoração da diretora.

A escola criou um projeto junto com a Coordenadora do Centro Social


Urbano do bairro, onde as crianças e os pais participavam de oficina
resgatando a integridade, identidade coletiva da escola, favorecendo a
aprendizagem de alunos e alunas dentro e fora dos espaços escolares.
Durante o período de recesso escolar realizava colônia de férias que
aconteciam no Centro Social Urbano da comunidade, com os voluntários da
escola, essa parceria favorecia a todos os envolvidos no processo.
Comoaquelas crianças nos ensinavam.(Trecho da entrevista de Lucília de
Oliveira em em 02/08/2018)

Centro Social Urbano faz parte do Programa Nacional de Centros Sociais


Urbanos (CSU) criado no governo do Presidente Ernest Geisel nos anos de 1974 a
1979, através do Decreto nº 75.922, de 1º e julho de 1975. O Programa,ainda existente,
tem a finalidade de promover a integração social nas cidades, através do
desenvolvimento de atividades comunitárias nos campos da educação, cultura e
desporto, da saúde e nutrição, do trabalho, previdência e assistência e da recreação e
lazer.
As instalações, do CSU de Salgueiro eram usadas para as aulas de futebol,
formatura, teatro, festas, colônia de férias, tudo articulado à escolar.Um outro
investimento da escola que aparece na entrevista da professora está relacionado à
questão do esporte

Como eles gostavam muito de jogar bola, foi realizado pela escola o “Projeto
Corpo São Mente Sã” organizado pelo estudante de educação física da
comunidade, o Time de futebol intitulado Falcão, criando espaços formativos
não formais. Em todas as ações primeiro era trabalhado a autoestima e a
confiança. A comunidade não tinha o que oferecer de esporte e lazer para os
salgueirenses, a escola como instituição pública realizava seu papel em todas
as esferas, tentando e suprindo as necessidades dos educandos entendendo
que através da atividade física o cognitivo também irá evoluir, um dos
objetivos do projeto era identificar jovens talentos e promover a inclusão
social. (Trecho da entrevista de Lucília de Oliveira em 12/11/2018)

O Concurso de xadrez, mais uma iniciativa que nasce de um encontro casual:

sumário 53
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A ideia de ensinar xadrez na escola aconteceu quando me encontrei com o


César, ex-aluno da escola e descobri que ele se tornara professor nessa
modalidade, não tive dúvidas, fiz o convite na mesma hora: - Volte pra escola
e ensine as crianças, tudo que você aprendeu, leve o exemplo para eles.
César aceitou o desafio e as aulas começaram com a turma da 4ª série da
professora Renata Luiz. Percebendo grandes habilidades nas crianças o
professor as inscreveu para participarem do Concurso de xadrez em São
Gonçalo, quando se tornaram campeões dentro do município. Com o título
participaram do Concurso de Xadrez Estadual do Rio de Janeiro. No Clube
Israelita, em 2007. As categorias eram divididas por ano escolar- 2ª,3ª e 4ª
série. O melhor xadrezista foi da 4ª série, aluno da escola que ganhou o
primeiro lugar e recebeu uma bicicleta de presente. No retorno à comunidade,
vitorioso com seu presente, ele mostrava para as outras crianças como era
possível. (Trecho da entrevista de Lucília de Oliveira em 12/11/2018)

Em dezembro de 2007 concretizou-se o processo de municipalização da escola


encerrando-se a gestão Estadual e tendo início a gestão municipal.
Assim, Dona Lucília, uma funcionária com vinculação estadual, termina sua
gestão dentro da comunidade do Salgueiro e é transferida para a Escola Estadual Carlos
Marighella, no bairro de Itaoca, em São Gonçalo. Permanece nesta escola entre os anos
2008 e 2010, sendo aposentada pela Lei complementar que define as aposentadorias
compulsórias dos servidores públicos, aos 75 anos (setenta e cinco) anos de idade.
A opção por entrevistar a Professora Lucília para conhecer a história da escola,
em minha pesquisa, foi motivada pela compreensão que tive, durante o período em que
lá permaneci como decente. Uma apreensão a me dizer que, embora o nome oficial da
escola fosse Escola Estadual Municipalizada Niuma Goulart Brandão, o nome pelo qual
a mesma foi conhecida durante anos, Colégio Dona Lucília, que despertara meus
desejos de menina, como relatei anteriormente, o nome que dava a identidade da escola.
Os relatos da professora fortaleceram esta minha hipótese, na medida em que traziam
para nós a história de um cotidiano de resistência e luta pelo direito à educação.
As memórias da diretora me remeteram a Freire (1996) para quem não sou
apenas objeto da História, mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da
cultura, da política, constato não para me adaptar, mas para mudar. (FREIRE, 1996,
p.77). Na história da escola, narrada por Dona Lucilia, o impulso para as tentativas de
mudança e a busca de solução para os problemas da escola e da comunidade, o objetivo
de fazer a escola funcionar a qualquer custo, parecia falar mais alto do que uma atitude
conformista que, às vezes, se instala em realidades muito desafiadoras.
Conhecendo melhor a comunidade a partir de seus relatos, pude fazer uma volta
ao passado, relembrando momentos vividos com minhas turmas e entender um pouco

sumário 54
VII Seminário Vozes da Educação

melhor as aspirações e reivindicações de meus alunos em relação à arte, à música, aos


jogos, ao esporte. Tais propostas faziam parte da história da escola, desde as gerações
anteriores, gerações que abrangiam seus pais, que também haviam sido estudantes da
escola.

Em dezembro de 2007 realizamos a última formatura da minha turma da 4ª


série, sendo a escola ainda pertencente à rede estadual de ensino. Foi um
momento marcante para mim, pois tratava-se de uma turma que eu
acompanhara como docente desde a alfabetização. A escola foi
municipalizada naquele ano. Não houve nenhum processo especial de
transição, apenas terminou-se uma gestão e começou-se uma outra. (Trecho
da entrevista de Renata Luiz em 23/07/2018)

Considerações Finais
A escola é um espaço de acontecimentos e saberes vividos, um espaço plural
com diferentes sujeitos e culturas. Resgatar acontecimentos, processos vividos e
silenciados, narrar as experiências são movimentos que fazem da escola um centro
recriador da memória local e cultural.
Como regente na escola tive várias experiências que me completaram como ser
humano e professora, em busca de lutar por uma educação pública de qualidade e fazer
a diferença no meu local de trabalho, acreditando em uma concepção humanista e
libertadora de educação.
Desejo que este trabalho, ao completar algumas lacunas sobre a memória e a
história da Escola Estadual Municipalizada Professora Niuma Goulart Brandão, possa
contribuir para a reinvenção da escola como um lugar apto a acolher o passado e a
criar o futuro, além de instigar novas investigações a partir de tantas questões que não
foram objeto de reflexão da presente monografia: projetos educativos em contextos de
violência; o descaso da gestão pública nas escolas municipais de São Gonçalo, dentre
outras. Espero que esse estudo possa contribuir para estimular a pesquisa de tais
temáticas, bem como sugerir e aprofundar outras questões não visualizadas no presente
processo.

Referências
ARAUJO, Mairceda Silva. Cenas do cotidiano escolar: olhando a escola pelo avesso.
In: GARCIA, R L. Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro, DP&A, 2003

ARROYO, Miguel Gonzalez. Os coletivos empobrecidos repolitizam os currículos.


In: SACRISTÁN, José Gimeno (Org.). Saberes e Incertezas sobre o Currículo. Porto
Alegre: Penso, 2013.

sumário 55
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

BRASIL. Lei complementar Nº 152, Lei Nº 9.394/96, de 3 de dezembro de 1996.


Dispõe sobre Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, 2005. Disponível em:
www2.senado.leg.br Acesso em: 10 set 2019.

BOUDIEU,Pierre. Os excluídos do interior.In: NOGUEIRA, Maria Alice;CATANI,


Afrânio(ORG.). Escritos de educação.10. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1996

POLÍCIA FEDERAL e exército fazem operação no morro do salgueiro. O São


Gonçalo, São Gonçalo, p.1, 15 out. 2018. Disponível em:
www.osaogoncalo.com.br/?page=1&q=A+Polícia+Federal+%28PF%29%2C+com+apo
io+das+Forças+Armadas. Acesso em: 24 ago. 2019.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Revista de
Pesquisa Histórica, São Paulo, n. 10, p. 1-178, dezembro de 2003.

PARK, Margareth Brandini.Formação de Professores: memória, patrimônio e meio


ambiente. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2003.

SANTOS, Milton. O lugar e o cotidiano. In: SANTOS, Boaventura de Sousa;


MENESES, Maria Paula(org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010

sumário 56
VII Seminário Vozes da Educação

A (AUTO)BIOGRAFIA COMO INSTRUMENTO DE ANÁLISE PARA PENSAR


PROCESSOS FORMATIVOS

Luzia da Silva Henriques


UERJ/FFP
luziahenriquess@hotmail.com

O trabalho em desenvolvimento tem como propósito organizar uma narrativa


(auto)biográfica de Luziete Sousa da Silva Henriques, minha mãe. A primeira
problematização a ser apresentada refere-se justamente ao fato de denominar o trabalho
como (auto)biográfico e não apresentá-lo como uma narrativa de natureza
exclusivamente biográfica. Considero desta forma porque assumo o trabalho de
levantamento de dados, organização e a seleção de uma narrativa da qual faço parte.
Deste modo, considero que o trabalho a ser desenvolvido sobre Luziete é também a
narrativa de minha própria trajetória de vida.
No tocante aos procedimentos metodológicos, a narrativa conta com
depoimentos, dados documentados, registros iconográficos como fotografias e
experiências próprias para melhor ilustrar, do ponto de vista de filha e pesquisadora,
este projeto.

Sobre as motivações para o trabalho


Como estudante de graduação em Letras – Português/Inglês, vejo a necessidade
de enfatizar a importância do gênero (auto)biográfico no cenário literário. Por muito
tempo, as narrativas (auto)biográficas foram vistas apenas como documentação
histórica, mas cada vez mais a aproximação entre história e literatura tem se feito
presente nessas obras, que apresentam discurso narrativo em prosa. Tendo isso em
mente, este trabalho passa a ser, para mim, um exercício de produção literária,
acrescentando experiência produtiva também nesse âmbito da minha área de estudo.
No dia 14 de novembro de 2017 minha mãe veio a óbito, consideravelmente
jovem, aos seus 54 anos, devido a um infarto no miocárdio. Eu estava a dois dias de
completar 21 anos quando tudo aconteceu. A partida repentina de minha mãe, atrelada
ao sentimento de que o tempo com ela nesse plano não foi suficiente, me veio a vontade

sumário 57
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de tentar conhecer a mulher com quem convivi toda a minha vida até o momento e a
pessoa que eu mais admirei desde que consigo me lembrar. Além disso, considerar de
que forma o relato biográfico dela veio a contribuir para o meu próprio processo
formativo como universitária e futura professora.
Ao dar início a esse projeto, já tinha em mente que gostaria de estudar e
pesquisar a vida de minha mãe, com a esperança de me sentir mais próxima a ela e, de
certa forma, conhecê-la através de um olhar mais pesquisador, apesar de nunca
conseguir ser imparcial ou me colocar de fora de qualquer situação relatada. Não posso
deixar de ver essa oportunidade como de extrema importância para meu
desenvolvimento acadêmico e profissional. Acredito que essa experiência me ajude a,
como estudante de Letras, aprimorar minhas habilidades discursivas e textuais, além de
me entrosar com um gênero até então pouco conhecido por mim, a (auto)biografia.
Por considerar a (auto)biografia uma forma de grande importância para
preservar a memória de alguém, decidi que no momento não há outra pessoa que eu
gostaria mais de pesquisar e escrever sobre, do que minha própria mãe. Não sei se um
dia terei filhos, e ainda se não tiver, tenho sobrinhos, primos, ou seja, futuras gerações
que eu gostaria muito que tivessem conhecido a pessoa fenomenal que foi minha mãe,
então esse trabalho tem como objetivo, além do que já foi citado anteriormente, deixar
uma espécie de acervo para as próximas gerações da minha família que não tiveram o
privilégio de conviver com ela.
Acontecimentos como o nascimento em uma família pobre em pleno regime
militar, crescimento sem a figura paterna, o casamento precoce, a também precoce
chegada dos dois primeiros filhos, a viuvez de forma abrupta e violenta, o desemprego e
a precariedade financeira, o novo casamento, os empregos para complementar a renda
familiar, etc. Tudo isso será problematizado neste trabalho e nos levará a refletir,
principalmente, sobre o papel da mulher na sociedade da metade final do século XIX e
início do XXI, as dificuldades de uma mulher ao ser mãe e os desafios enfrentados.
Minha mãe nasceu na década de 60, em uma família onde já viviam seis crianças
e viriam a existir mais cinco. Com um pai ausente e uma mãe que se desdobrava para
dar conta de alimentar seus filhos, ela viu o casamento precoce como saída para essa
situação. Casamento esse que não durou muito, aos 24 anos ela se viu viúva e com dois
filhos pequenos para criar. Após alguns anos de precariedade financeira, casou de novo
com o homem que viria ser meu pai. Foram casados por quase trinta anos completos e
sinto que ainda estariam, se ela aqui estivesse.

sumário 58
VII Seminário Vozes da Educação

Em um cenário de luta desde muito jovem, minha mãe foi uma verdadeira
sobrevivente de uma infância pobre e complicada, um primeiro casamento acomodado e
com fim trágico, anos de extrema pobreza e luta para criar os primeiros filhos,
divergências com a família do segundo marido, perda de dois filhos natimortos, trabalho
integral consideravelmente pesado, entre outras mazelas da vida. Contudo, apesar de
tudo isso, me lembro da minha mãe sempre com um sorriso no rosto e sempre tendo
resposta para todos os meus problemas. Não havia nada mais esperançoso ou
reconfortante que seu sorriso.
Não se aplica a ideia de ser imparcial ao executar um trabalho como este. Atuo
como pesquisadora, mas isso não apaga minha fala de filha nesta pesquisa. Procuro
passar as informações, de acordo com o que for pesquisado, no entanto não há como
excluir o fato que sou uma filha ao falar da própria mãe. Ao pesquisar a vida de alguém
que foi tão próximo a mim, me deparo com informações novas e desconhecidas. É
impossível segurar a emoção ao pensar que de certa forma, estou próxima de minha mãe
novamente, ainda que não seja fisicamente. Não precisamos esperar as pessoas não
estarem mais entre nós para realizarmos um trabalho tão bonito e importante como este,
espero conseguir expressar isso também.

Sobre a família
Para pensar a família objeto de minha pesquisa procurei encontrar em Claude
Lévi-Strauss fundamentos para identificar o tipo de família a qual iria pesquisar. O
autor apresenta a noção de estruturas complexas de parentesco, em contraposição às
estruturas elementares de parentesco que se baseiam em sistemas preferenciais e
sistemas prescritivos para o estabelecimento de laços de casamento. “Entramos no
domínio das estruturas complexas de casamento quando a razão da prescrição ou da
preferência depende de outras considerações” (Lévi-Strauss, 1976, p. 30) O autor se
refere a outras referencias mais presentes nas sociedades complexas da modernidade,
nas quais atributos físicos, poder econômico e outros que não referidos aos laços de
consanguinidade se tornam as referencias variáveis para que se realizem casamentos.
Embora pareça um pouco estranho considerar como desafio estudar a própria
família da qual se faz parte, ao contrário, parece que quando estamos muito próximos e
inseridos em uma realidade cotidiana se torna difícil ter uma visão mais abrangente
sobre esta inserção como um objeto de estudos. Assim foi o esforço para organizar a
árvore genealógica de minha família.

sumário 59
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Um dos resultados alcançados no projeto de pesquisa foi a montagem da árvore


genealógica de minha família, consideravelmente complexa, com muitos membros. O
desafio teve início ainda durante as primeiras pesquisas sobre como montar uma árvore
genealógica. Buscando meios de como começar, já me deparei com a dificuldade em
relação aos sobrenomes. Aparentemente adquirimos o costume de nos chamarmos
apenas pelo primeiro nome, ignorando os sobrenomes e origens dos mesmos. O que
passa despercebido nessa prática é a perda do interesse pelo passado que ela demonstra.
Ignorar sobrenomes significa ignorar origens, pois eles nada mais são do que a
identificação que você pertence a uma família e que essa família possui uma história
que pode ultrapassar os séculos.
No Brasil, conhecer as gerações anteriores da nossa família é considerado raro.
Principalmente bisavós e tataravós, por exemplo. Essa perda da identidade histórica
familiar reflete de maneira que pode causar a falta de sensação de pertencimento nas
gerações mais novas, que dificilmente irão conhecer a história de seus antepassados.
Falando por experiência própria, precisei perguntar a diversos parentes, solicitar a
retirada de documentos antigos do fundo dos armários e, após muita busca, pude enfim
descobrir quem foram minhas bisavós de uma parte da minha família, o lado paterno.
Ainda assim, só consegui ter acesso aos nomes, através das certidões de óbito de meus
avós. Nem as tias que eu questionei, nem mesmo meu próprio pai faziam ideia dos
nomes e sobrenomes de suas avós. Tentar encontrar algo anterior a essas duas foi
impossível, uma vez que eles alegaram ser parte de uma época muito remota de suas
vidas. Acredito que nunca chegaram a ter contato com essa parte de suas histórias.
Como apresentei em minha árvore genealógica, só possuo dados a respeito de duas
bisavós paternas, nenhum bisavô. Coincidentemente, as duas tiveram o mesmo nome:
Josefa. Meus avós paternos, Cícera e José não foram registrados pelos pais, então não
tenho acesso a esses nomes.
Minha tia Maria (conhecida por todos como Tânia), sendo a que tenho mais
proximidade, conversou comigo algo que sua mãe a havia confessado anteriormente.
Ela me disse que era muito comum as mulheres grávidas paraibanas dos anos 30 não
terem seus filhos registrados pelos pais. Algumas dessas crianças eram geradas por
meio de adultério, então a fim de evitar escândalos, os homens simplesmente ignoravam
suas existências. Por falta de conhecimento, ou até mesmo buscando preservar seus
filhos, a maioria dessas mulheres não recorria à justiça. Não pude comprovar a
veracidade dessa informação porque todos os envolvidos já vieram a óbito e nunca

sumário 60
VII Seminário Vozes da Educação

chegaram a afirmar tal fato a alguém, mas poderia justificar essa ausência de dados
paternos nos registros de meu avô e minha avó.
Do lado materno de minha família, o progresso em relação a descobertas de
dados do passado foi ainda mais complicado. Na maior parte de minha pesquisa, recorri
à minha tia mais velha, Lizete, a quem eu chamo de “vó” desde que consigo me
lembrar. Não sei o motivo real que me levou a chamá-la assim, se foi a carência de ter
alguém para chamar de avó, pois nunca cheguei a conhecer as minhas de fato.
Minha avó Luzia, mãe de minha mãe, faleceu pouco tempo antes do meu
nascimento, por este motivo levo o nome dela, em forma de homenagem. Nunca tive
contato com avó alguma, cresci em uma casa localizada em um quintal familiar, uma
espécie de vila onde todos temos parentesco. Moramos na última casa, bem nos fundos
do terreno. À frente temos minha tia Lizete e três filhas dela, cada uma com a sua
residência. Crescer ouvindo os netos de Lizete a chamando de “vó” pode ser um motivo
para que eu começasse a chamá-la dessa forma ainda na primeira infância. Sendo minha
mais próxima fonte de informações, recorri a ela para que me ajudasse em minha
“viagem ao passado”, como gosto de chamar. Imaginei que por ser a primeira de um
total de doze filhos, ela me daria mais respostas que qualquer um. Minhas expectativas
não foram de todo atendidas.
Ao longo de minha pesquisa, descobri que a memória humana pode
falhar ou nos pregar peças e que é preciso ter muito cuidado. A ideia de que as
experiências passadas seriam memorizadas, conservadas e recuperadas em toda sua
integridade se torna insustentável (CANDAU, 2018). O mnemotropismo (termo criado
pelo autor, vem da junção de mnemosyne, deusa grega da memória, e aproximação) é
basicamente a aproximação da memória. Conforme fui colhendo os depoimentos para
montar a árvore genealógica de minha família, percebi como esse conceito funciona na
prática, como a memória é recuperada de forma pessoal, levando em conta os interesses
de quem a retoma, e acaba não sendo de forma plena, ou seja, retratada exatamente
como aconteceu. A memória humana não é como a de um computador, por exemplo. Os
dados não são acessados de forma mecânica, mas a partir das experiências e vivências
de cada pessoa. São vários os fatores que levam alguém a ter memórias mais claras ou
mais turvas. Se a lembrança é de alguma forma traumática, o próprio cérebro faz a
anamnese, ou seja, o esquecimento desse momento em questão. Agora se a memória é
boa, se tem valor sentimental, se as pessoas envolvidas ainda mantêm contato e
costumam conversar sobre ela, dificilmente será esquecida. Em parte fazendo uso da

sumário 61
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

memória por estímulos de documentos, conversas e tomada de depoimentos, em parte a


partir do emprego da metamemória, buscando problematizar e elaborar as imagens e
fatos que foram sendo resgatados como memória desta narrativa (auto)biográfica, o
processo de estruturação desta narrativa está em andamento e desde o início se
configura como um desafio instigante.
Sem o auxílio de documentos, a busca por dados do passado se tornou
muito difícil. Lizete, sendo a irmã mais velha, havia ficado com os documentos da mãe,
como identidade, certidão de óbito, entre outros. Em relato, ela me contou que sua casa
havia sido inundada por uma enchente há muitos anos atrás, o que ocasionou a perda de
todos esses documentos, dificultando ainda mais minha busca. Diante da falta de dados
registrados e com as memórias um tanto quanto misturadas, uma das partes mais
complicadas da minha pesquisa foi em relação aos meus tios que faleceram quando
crianças. Não havia como perguntar a outra pessoa, Lizete era a única que conheceu os
irmãos, ainda que não tivesse saído da primeira infância nessa época. Pouquíssimas são
as lembranças reais dos irmãos, apenas o nome e a causa da morte são certos em sua
memória. Sobre o irmão que veio a óbito na juventude, eu mesma já havia ouvido falar
através de minha mãe, que sempre guardou com muito carinho a lembrança do irmão.
Nenhum de meus tios tem contato ou sequer conhecimento de tios, irmãos, avós, primos
ou pessoas com qualquer tipo de parentesco com seus pais.
Sobre o próprio pai, as informações já são bem poucas. Lizete me
confessou que poucas vezes o pai os visitou após o divórcio com a mãe. Ela, por ser a
mais velha ainda tem mais lembranças da figura paterna. Minha tia Elaine, por outro
lado, a mais nova das irmãs, me relatou que raramente teve contato com ele na infância,
o que fez com que a presença dele se tornasse inexistente conforme foi crescendo.
Ambas falam com pesar, mas orgulhosas, sobre o quanto a mãe precisou trabalhar e se
esforçar para criar todos os filhos. Outra pessoa sempre ausente, mas que eu fiz questão
de tentar descobrir mais a respeito da vida dele, é meu tio, irmão de minha mãe, João
Cláudio, que foi criado pelos avós paternos, nunca teve muito contato com os irmãos e
hoje em dia mora fora do país. Essa é toda informação que tive sobre ele, infelizmente.
Sobre minha avó Luzia (conhecida por todos como Lucy), mãe de minha mãe, sempre
ouvi que era amorosa, cuidava de todos os netos, tinha alguns preferidos, mas que não
negava ajuda a nenhum filho quando este necessitava, ainda que tivesse pouco até para
ela mesma. Tanto que recebeu minha mãe em momentos de necessidade, como quando
a mesma ficou viúva. Acolheu filha e netos e ajudou no que foi possível. Viveu os

sumário 62
VII Seminário Vozes da Educação

últimos anos de sua vida no bairro de Pedra de Guaratiba, na cidade do Rio de Janeiro.
Bairro pacato, casa simples que herdou minha tia Lia ao falecimento da mãe. Sobre meu
avô materno, Ezequiel, raras foram as vezes que minha mãe comentou sobre ele para
nós. Acredito que porque também raras foram as aproximações que tiveram após a
separação dos pais.
Sobre minha avó por parte de pai, Cícera (de apelido Ciça), nem sempre
ouvi coisas boas. Minha mãe e ela sempre tiveram uma relação conturbada, o que
acarretou em comentários não muito bons a respeito dela. A dificuldade ao pesquisar
sobre minhas avós foi que conheci as duas através da visão de outras pessoas.
Infelizmente nunca tive a oportunidade de tirar minhas próprias conclusões, o que teria
sido bem melhor, acredito. Em relação a meu avô paterno José (o conhecido Seu Zé),
nem sempre tive contato com ele. Consigo me lembrar que houve ressentimento da
parte do meu pai durante boa parte da minha infância em relação ao meu avô, por tudo
que ele os privou quando os deixava na Paraíba e vinha para o Rio de Janeiro.
Calculando pelas minhas lembranças, acredito que eles reataram contato quando eu
estava na pré-adolescência, por volta de 2007/2008, mas ainda assim não tivemos muito
contato ao longo dos anos que nos restaram. Lembro de meu avô como um senhor
parecidíssimo com meu pai, barba branca, voz tranquila e que me chamava de “Luziê”,
apelido que nunca entendi, mas que gostava, pois era uma coisa única, algo que me
fazia me sentir querida e um pouco mais próxima de uma relação avô/neta com ele.
Outra parte que considerei complicada ao montar a árvore genealógica
foi quando precisei falar dos cônjuges anteriores de meus pais. Quando eu era bem
pequena, sempre estranhei o fato de os meus irmãos por parte de mãe não chamarem
meu pai de “pai”, bem como os de parte de pai não chamarem minha mãe assim. Levou
um tempo até que eu entendi o que se passava na minha família. Apenas eu era filha
daquele casal, mas ambos já haviam tido um passado que os gerou outros filhos. Minha
mãe sempre teve guardado, no alto do guarda-roupas, um álbum de fotos antigas e
várias delas eram de um homem que depois de um tempo, entendi que se tratava do pai
dos meus irmãos, falecido marido dela. Muito parecido com meu irmão Marcus, meu
irmão Antônio leva seu nome, sua mãe morou um tempo conosco quando esteve doente,
pois não tinha mais nenhum parente. Antônio (Toninho) sempre foi tão falado que
parece até que eu o conheci. Por outro lado, temos a falecida esposa de meu pai, mãe
dos meus irmãos, que não muito tempo atrás eu não sabia sequer o nome. Não sei por
que razão nunca conversamos muito sobre Solange. Sempre foi um assunto muito

sumário 63
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

delicado, minha irmã sempre chora ao lembrar da mãe, e nunca conversamos muito
sobre ela. Recentemente descobri que sua morte foi graças a um aborto espontâneo que
gerou infecção em seu organismo. Em conversa com meu pai sobre como era sua vida
antes de conhecer minha mãe, ele me retratou um pouco como era a vida de casado com
Solange, sobre costumes religiosos da Umbanda que ambos praticavam e sobre como
foi difícil se ver viúvo tão jovem e com três filhos pequenos para criar.
Já que citei essa questão de diferenças entre o lado paterno e materno de
minha família, chegamos ao ponto que mais me marcou durante todo esse trabalho com
a minha árvore genealógica. Enquanto fazia a pesquisa do lado materno, vi que
conhecia praticamente todos os meus tios (exceto a dificuldade citada anteriormente, tio
João Cláudio), todos os meus primos, seus cônjuges, seus filhos (que são meus primos
de segundo grau). Alguns conheço tão bem que só precisei fazer perguntas para
confirmar o que eu já sabia, como grau de formação, nome completo, etc. Em
contrapartida, sobre o lado paterno eu posso dizer que cheguei a momentos de exaustão
e ainda assim não consegui descobrir todos os componentes da família. Existem tios que
eu não consigo me lembrar de já ter visto, descobri primos que eu sequer sabia da
existência, fiz descobertas grandiosas sobre essa parte da minha história, como por
exemplo que meu tio Antônio teve duas filhas gêmeas, assim como meu pai. O que se
mostra claramente como uma característica genética desse lado da família.
Confesso que pensei em não colocar no esquema essas pessoas sobre as
quais eu não consegui descobrir muitas coisas, mas isso soou tão errado que tão rápido
quanto veio, a ideia foi embora. Não é possível apagar algumas pessoas da história da
minha família só porque não convivo com elas. Infelizmente não consegui mais
informações, porém elas estão representadas ali. Não sei o que justifica esse fato, mas
imagino que possa ser por ter crescido em meio a parentela de minha mãe, desenvolvi
mais afinidade com essa parte da família, assim tendo acesso a informações
privilegiadas que, infelizmente, não possuo sobre o lado paterno.
A experiência de estudar a árvore genealógica da minha família me enriqueceu
de uma forma que eu nem imaginava ser possível. Estive em contato com parte da
minha história que não conhecia, conheci pessoas através dos olhos de outras. Essa
atividade me “obrigou” a entrar em contato com pessoas que eu já havia perdido, me
aproximou de muitas outras. Em uma família grande como a minha, poucas coisas nos
unem dessa forma, e geralmente são coisas negativas. Seguindo o conceito de memória
coletiva de Candau, ela é um enunciado que membros de um grupo vão produzir acerca

sumário 64
VII Seminário Vozes da Educação

de uma memória supostamente comum a todos os membros desse grupo. Essa memória
coletiva une um determinado grupo de pessoas.
Pesquisar a árvore genealógica se tornou desculpa para estar junto com pessoas
com as quais possuo laços de consanguinidade e de afeto. Consegui ver que pessoas se
mobilizaram para me ajudar, procurando documentos, registros, resgatando lembranças
nem sempre prazerosas, e isso me fez refletir sobre a importância da família. Cheguei à
conclusão de que passe o tempo que for, ainda que as relações se esfriem, as histórias de
que fazemos partes são os laços que nos ligam.

Sobre Luziete
Luziete Sousa da Silva nasceu em 28 de agosto de 1963, no bairro de Realengo,
zona oeste da cidade do Rio de Janeiro e estado de mesmo nome. Nasceu em uma
família de baixa renda, que viria a ser constituída por uma mãe, doze irmãos e um pai
ausente. Sua mãe nasceu em Ponte Nova, no estado de Minas Gerais e se mudou para o
Rio de Janeiro ainda muito nova, tendo sido mãe muito nova, assim como suas irmãs e
outras mulheres que antecederam sua geração. Aos 15 anos teve sua primeira filha,
Lizete. Essa mudança ainda na infância de minha avó para o Rio custou à minha mãe e
seus irmãos a falta de contato com parentes como primos e tios, mantendo contato
apenas com a avó materna.
Através dos relatos de minhas tias Lizete e Elaine, pude conhecer mais de um
passado que minha mãe nunca chegou a conversar comigo. Como, por exemplo, a
convivência com a avó materna durante a infância, enquanto a mãe precisava trabalhar.
Há a presença forte da lembrança de que a maior parte dos dias não se tinha carne para
as refeições, além de contar que em alguns dias, as refeições eram com mingau salgado
de fubá, conhecido popularmente como “vovô suado”, o que nos leva a perceber como
era precária a situação financeira da família. Minha mãe frequentou a escola por
pouquíssimo tempo, ainda durante a infância na zona oeste do Rio de Janeiro. Não se
lembrava exatamente em que série havia parado ou quais escolas frequentou, sua
memória não a ajudava com esses detalhes. “A ideia segundo a qual as experiências
passadas seriam memorizadas, conservadas e recuperadas em toda sua integridade
parece ‘insustentável’”. (CANDAU, 2018.)
Por ser uma das irmãs mais velhas e vendo toda a luta de sua mãe para criar os
filhos, Luziete optou por sair de casa muito jovem ainda, e naquela época, a única
maneira de uma filha sair da casa dos pais era se casando. Seu primeiro namorado foi

sumário 65
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Antônio, com quem se casou pouco tempo depois. Minha mãe sempre me contou uma
história engraçada de sua adolescência. Quando começou a namorar com Antônio, era
muito inocente e conversas sobre como se portar com os namorados não eram bem
vistas naquele tempo para se ter com a mãe. O caso era que ao chegar a casa após um
passeio de moto com o namorado, minha mãe acreditou estar grávida e ficou
desesperada. Somente algum tempo depois, ela entendeu que beijos inocentes e passeios
de moto não engravidavam ninguém.
Ao compartilhar esse relato, pretendo ilustrar como era a mentalidade de uma
jovem que tinha tamanha inocência, mas que já pretendia se casar. Grande parte da
motivação para o matrimônio era também a vaidade. Por ter crescido em uma casa com
muitas irmãs, Luziete possuía poucas coisas para considerar dela, de fato. As casas
simples por onde morou, com poucos quartos sempre dela e das irmãs, além de roupas
que eram passadas da mais velha para a mais nova, ter produtos de beleza ou até mesmo
roupas vindas da loja era sonhar com um luxo muito maior do que a situação atual da
família podia oferecer. O casamento, além de trazer a sonhada independência,
alimentava a certeza de que teria suas próprias coisas, sem precisar compartilhar com
tantas pessoas.
A década de 80, marcada no movimento feminista pela criação do conselho dos
direitos das mulheres e no cenário brasileiro pelo fim da ditadura militar e criação da
nova constituição dos direitos civis que trouxe esperança de recomeço para muitas
pessoas, trouxe outro tipo de conflito para Luziete. Com seus quase 17 anos completos,
mais especificamente no ano de 1980, minha mãe casou e descobriu o que muitas
mulheres já sabiam: o marido nem sempre é quem aparenta ser durante o
relacionamento. Ao se casar, minha mãe que esperava sair da situação de pobreza que
sua família enfrentava, entrou em um casamento onde o marido tinha como maior
defeito a avareza. Viviam uma situação simples, em uma casa ao lado da sogra, que era
quem supria algumas necessidades de higiene que o marido de minha mãe via como
capricho, como produtos para cabelo, por exemplo. Apesar disso, minha mãe levou o
casamento adiante e engravidou no fim dos seus 17 anos e aos 18, deu à luz ao meu
irmão mais velho Antônio Júnior. Alguns anos depois, nasceu meu outro irmão, Marcus
Vinícius, “cuspido e escarrado o pai”, como dizia minha mãe se referindo à semelhança
dos dois. Há quem diga que essa expressão é, na verdade, o ditado “esculpido e
encarnado”, vindo de um comentário sobre uma estátua de Michelangelo, artista
renascentista, mas minha mãe não sabia nada sobre isso e repetia a apropriação popular

sumário 66
VII Seminário Vozes da Educação

brasileira. Outros que insistam que o dito seria “esculpido em carrara” ou seja, uma
escultura talhada em mármore, e que tal expressão teria sido deturpada ao longo dos
anos por pessoas de camadas mais pobres até chegar ao que conhecemos hoje, minha
família e as de tantos outros. Ainda que as duas teorias sejam bastante interessantes,
entendi a fala de minha mãe no instante em que vi uma fotografia de Antônio, guardada
em um álbum de família muito antigo. De fato, Marcus era a cópia mais jovem do pai.
Três anos após o nascimento do filho mais novo, Antônio acabou envolvido em
uma briga de bairro e foi baleado. Vítima de um crime jamais solucionado, teve os dias
ceifados, além de deixar esposa, filhos e mãe que só tinham a ele. Ainda bem jovem e
com dois filhos pequenos, minha mãe voltou a viver com minha avó, que na época
morava em Nova Iguaçu, em uma casa muito simples, localizada em área de risco,
terreno íngreme e construção com possibilidade de alagamentos e infiltrações. Paredes
de tijolos, sem reboco ou pintura nas paredes, junto com suas outras irmãs Liane, Lia,
Lizete e respectivas proles que também acabaram tendo que retornar ao redor de sua
mãe. Estar de volta à casa de onde tanto desejou se ver independente, com duas crianças
nos braços foi uma situação muito complicada vivenciada por minha mãe, relatada por
ela como humilhante. Ainda que a mãe ajudasse, alguns dias precisava comer metade do
prato do almoço para que os filhos tivessem o que jantar. Conseguir vagas para as
crianças em um Ciep, escola onde naquela época os alunos entravam às 7:00 e saíam às
17:00 tendo aulas, recreação e três refeições diárias foi uma espécie de vitória,
considerando as condições em que se encontravam no momento.
Mesmo sem nunca ter tido uma relação muito íntima com a sogra, recebia
alguma verba da senhora para ajudar com as crianças. Um fato interessante sobre as
duas é que quando dona Alaíde, mãe de Antônio, chegou a uma fase em que sua saúde
esteve muito delicada, minha mãe a acompanhou até não poder mais. Esteve com ela
durante a internação que durou meses, a abrigou em sua casa e cuidou dela até o fim de
seus dias. Naquela época, eu não entendia muito bem o que estava acontecendo,
crianças veem tudo com muita simplicidade, mas hoje sei que minha mãe fez isso tudo
porque se tratava da avó de seus dois filhos. Admirei ainda mais minha mãe quando vi a
grandeza que havia em cuidar tão dedicada e intimamente de uma senhora que não era
necessariamente considerada de sua família, quando já estava casada com outro homem,
quando não tinha a obrigação de fato. Contudo, ela tomou a responsabilidade para si e
lidou com a situação da melhor forma que pôde.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O segundo casamento de minha mãe foi com meu pai. Eles se conheceram em
uma festa junina, onde minha mãe era dançarina do grupo de “quadrilha” em que minha
tia Tânia, irmã do meu pai, também fazia parte e namorava o organizador. Minha mãe e
suas irmãs tinham essa tradição de se apresentarem na caravana organizada pelo
namorado de Tania para levá-los a festas juninas em diversos lugares do estado. Como
as condições financeiras eram precárias, minha mãe passava o ano inteiro costurando
seu vestido para que pudesse se apresentar. Esse era um dos poucos momentos de prazer
que tinha ao longo do ano. O relacionamento de meus pais nem sempre foi tranquilo, na
verdade, começou de forma bem turbulenta. Minha irmã Leandra não aceitava o fato de
meu pai ter levado alguém para “tomar o lugar de sua mãe”, em sua opinião. As duas
travaram embates por muitos e muitos anos, aproximadamente quinze, até conseguirem
se entender e deixar o passado para trás. Nos últimos anos, as duas se deram
incrivelmente bem. Além de minha irmã, um dos problemas enfrentados por minha mãe
era a nova sogra.
Minha avó paterna não nutria sentimentos agradáveis pela nora, o motivo é que
minha mãe já tinha dois filhos, e meu pai tinha três. Minha avó não concordava que
meu pai casasse com uma pessoa que já havia tido filhos, ou que sequer já havia sido
casada. Algumas tias minhas também demonstraram o mesmo preconceito. Esse foi
mais um dos motivos para minha mãe decidir vir morar perto de sua família, não mais
em um ambiente onde não era querida por praticamente ninguém. Após alguns anos de
relacionamento, minha mãe engravidou, era um menino, saudável até os nove meses,
quando infelizmente veio à óbito ainda no ventre de minha mãe. Foi um choque para a
família, mas meus pais não desistiram de ter mais filhos, algum que fosse dos dois,
dessa vez. Na segunda tentativa, minha mãe ficou grávida de gêmeas, duas meninas,
como meu pai havia sonhado. Infelizmente, mais uma criança não resistiu à gestação e
minha mãe saiu da maternidade apenas com uma das filhas, a qual batizou de Luzia,
para homenagear a mãe que havia falecido há pouco tempo.
Depois desses infortúnios, por continuar sendo maltratada entre os parentes do
meu pai, minha mãe decidiu se mudar para Queimados, onde uma de suas irmãs morava
com os filhos, e meu pai a acompanhou. Compraram a parte de trás do terreno dela e se
mudaram para um quartinho na casa de Lizete até que sua casa ficasse pronta, tamanho
era o desespero de sair daquele lugar. Eu tinha pouco mais de um ano de idade nessa
época, o ano é 1998. A vida em Queimados era mais tranquila para Luziete, após sua

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VII Seminário Vozes da Educação

filha ter crescido um pouco, ela retomou às atividades de trabalho, conseguiu emprego
como auxiliar de serviços gerais, servente em uma escola técnica do Rio de Janeiro.
Um dos maiores problemas enfrentados por minha mãe nessa nova casa era o
conflito entre o marido e o filho mais velho. Conforme foi crescendo, meu irmão passou
a apresentar comportamento autoritário, por muitas vezes falava alto com as pessoas,
não media as palavras ao se comunicar com a mãe e passava longe de respeitar o
padrasto. Meu pai não tolerava esse tipo de atitude, além de ter de aceitar a recusa de
Junior em relação a ajudar financeiramente nas despesas da casa, ainda que consumisse
muito e apresentasse condições para contribuir, estando trabalhando. Luziete sempre
ficava entre os dois durante as discussões, mas sempre deixou claro que apoiaria o filho
em todos os momentos, independente de seus erros. Acredito que a rebeldia de meu
irmão possa ter sido oriunda de um sentimento de ciúmes em relação ao padrasto. De
certa forma, se sentia deslocado diante da “nova família” na qual a mãe havia
construído, ainda que ela sempre tenha deixado clara o laço forte que os dois tinham.
Viveu anos muitos felizes, onde compartilhou momentos com amigos, seus
filhos, irmãos, primos, sobrinhos, afilhados. Minha mãe sempre foi a mãe de muitas
pessoas. Confesso que até sentia certo ciúme, mas o jeito com que sempre cuidou de
todos à sua volta, a tornou um ícone entre os seus. Cedia moradia a quem precisasse,
tanto que abrigou em sua casa sobrinhos como Flávio e Simone. Era sempre o local
preferido dos sobrinhos Rafael e Jhonatan. Estar perto de minha mãe era motivo de
felicidade para todos, sempre foi assim. Uma mulher que sempre teve uma fé invejável,
mas pouquíssima religiosidade. Nunca foi de frequentar igrejas, mas sempre se
considerou cristã, batizou seus três filhos na religião católica, mas nunca os fez
frequentar nada que não fosse de sua particular vontade. Minha mãe praticava o amor ao
próximo, a tolerância às diferenças e o respeito acima de tudo. Frequentou escolas por
muito pouco tempo, não teve oportunidade de ir mais adiante, pois as mudanças de
casas eram constantes em sua infância. Depois veio a adolescência e com ela
necessidades que antecedem a do estudo. Minha mãe foi alfabetizada, frequentou as
duas primeiras séries do que temos hoje como primeiro ciclo do Ensino Fundamental.
Apesar da pouca escolaridade, lia, interpretava textos e conhecia as palavras como
ninguém. Sofreu preconceito por ter sido por muito tempo, dona de casa, por ser
servente de escola, mas nunca abaixou a cabeça por isso, pelo contrário, fez amizades
em setores considerados mais prestigiados que o dela e todos tinham boas coisas a dizer
a seu respeito.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Considerações finais
Procuro com este trabalho, além de desenvolver uma biografia a nível de
pesquisadora acadêmica, encontrar uma forma de aproximação com minha mãe e tentar
fazer com que o leitor reconheça características de força, determinação e gana em suas
próprias mães. Minha mãe foi uma mulher que com pouquíssimo estudo conseguiu
educar e incentivar seus filhos a serem pessoas íntegras; e apesar de não ter o primeiro
ciclo do ensino fundamental completo, me incentivou mais do que ninguém a conseguir
entrar em uma universidade pública. Luziete foi uma mulher que sofreu e que apesar de
todas as dificuldades e preconceitos que vivenciou, nunca perdeu a vontade e a alegria
de viver, era uma pessoa iluminada e eu espero conseguir transmitir essa luz com esse
trabalho.
Pensar em como a biografia de minha mãe me ajudou a repensar o lugar da
mulher na sociedade. Seja como mãe, como esposa, dona do lar, mas também como
universitária, também como pesquisadora, como professora. Estudar a trajetória de
minha mãe pela perspectiva familiar me ajuda a construir uma ponte entre os processos
formativos que levam as pessoas ao que elas são. Uma mulher tem sempre uma história,
uma trajetória e um caminho percorrido que a levou a ser o que ela é. O trabalho de
pesquisa segue em andamento, mas já conseguimos perceber, desde o primeiro
momento, o grau de importância que o trabalho de recuperação de registros tem para a
compreensão de processos formativos, bem como a importância da memória através de
narrativas biográficas.

Referências
ALBERTI, Verena. Ouvir contar Textos em História Oral. Rio de Janeiro: FGV,
2017.

______.Manual de História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2017.

BARROS, Myriam Lins de. Autoridade e afeto. Avós filhos e netos na família
brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

BAUER, Martin W., GASKELL, George. Pesquisa Qualitativa com Texto, Imagem e
Som. Um manual prático.Petrópolis: Vozes, 2013.

CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2018.

sumário 70
VII Seminário Vozes da Educação

LEJEUNE, Philippe. O pacto (auto)biográfico De Rousseau à internet. Belo


Horizonte: UFMG, 2008.

LEVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Tradução de


Mariano Ferreira. Petrópolis, Vozes; São Paulo, Ed. Da Universidade de São Paulo,
1976.

OLIVEIRA, Maria da Gloria de. Escrever vidas, narrar história. Rio de Janeiro:
FGV, 2011.

sumário 71
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

REGINA LEITE GARCIA E EU, EM ALGUMAS DE NOSSAS TANTAS


PARCERIAS – ACERCA DA FORMAÇÃO PERMANENTE E CONTINUADA

Nilda Alves
UERJ
Nildg.alves@gmail.com

Introdução
A Comissão organizadora do VII Vozes da Educação teve a linda ideia de
dedicar esta edição do congresso a Regina Leite Garcia! Assim que soube disto, através
de um convite para ser membro de um de seus comitês, me perguntei: como estar
ausente dele se, com certeza, fui a colega que o maior número de ações, publicações e
parcerias teve com ela?
Decidi, então apresentar um trabalho composto por narrativas e comentários
acerca de alguns trabalhos que realizamos juntas, dentro do eixo 1 – Formação docente,
memórias e narrativas. Nessas memórias, busco mostrar especialmente que esses
trabalhos/parcerias significavam uma verdadeira formação conjunta que incluía pensar a
formação de nossos orientandos e estudantes, também.
Com isso, creio ser possível trabalhar com ideias acerca do significado de
formação na graduação e na pós-graduação - por via de pesquisas feitas e da escritura
permanente de textos, bem como o uso e a criação de artefatos vários – tanto de seus
discentes como de seus docentes. Entendo ser este, ainda, um bom exercício para
exemplifica as redes educativas15, que formamos e nas quais nos formamos, ideia com
que trabalho há muito e que, certamente, teve sua gênese nas tantas conversas que
Regina e eu desenvolvíamos por anos a fim, sem nos cansarmos, nunca.
Assim, neste texto, desenvolverei narrativas acerca de algumas parcerias,
indicando como isto significava uma co-formação continuada e um permanente

15
No presente, identifico essas redes com as seguintes denominações: das ‘práticasteorias’ da formação
acadêmico-escolar; das ‘práticasteorias’ pedagógicas cotidianas; a das ‘práticasteorias’ de
criação e “uso” das artes; das‘práticasteorias’ das políticas de governo; das ‘práticasteorias’
coletivas dos movimentos sociais; das ‘práticasteorias’das pesquisas em educação; das ‘práticasteorias’
de produção e ‘usos’ de mídias; das ‘práticasteorias’ de vivências nascidades, no campo e à beira das
estradas (ALVES, 2019: 203)

sumário 72
VII Seminário Vozes da Educação

pensamento acerca da formação continuada dos discentes, nossos orientandos de


mestrado e doutorado, bem como nossos estudantes de graduação, incluindo os bolsistas
de Iniciação científica. As parcerias escolhidas para serem escritas não são superiores a
outras tantas que existiram. Elas aparecem porque meu coração assim o exigiu. Ou em
outras palavras, são aquelas que mais fortemente me marcaram e que precisaram ser
escritas neste artigo.

I. A coleção “O sentido da escola”16


Quando, em conversas – foram diversas – com o Antonio de Paula, então o
diretor e editor da editora DPA, resolvemos lançar uma coleção de livros que trouxesse
a escritura de docentes em serviço em todos os graus de ensino e que fosse barata para
poder ser comprada por qualquer professor, Regina e eu não imaginávamos que
chegaríamos a uma coleção de trinta livros! Pensada em 1999, a coleção só começou a
ser publicada em fins de 200017.
Pouco a pouco, fomos acordando, ainda com o editor, o formato do livro e entre
nós duas, os temas e os organizadores/organizadoras de cada livro. Os nossos
orientandos de mestrado e doutorado foram inteiramente envolvidos na aventura: temas,
textos, editoração. A publicação de cada livro era comemorada nos grupos como uma
conquista de todos e todas. Pensar em um livro, escolhendo os autores de texto,
organizar uma apresentação, passar pelas várias correções de texto, tudo isto ia nos
formando a todas e todos, nos dois grupos e mesmo fora deles.
As temáticas foram tantas – só uma apareceu em dois livros: a da infância. Para
não lembrar todos os títulos (repito: foram trinta!) farei referência a alguns18. Desses
trinta livros, alguns nós duas organizamos juntas: o primeiro da coleção que teve como
título aquele que identificaria a mesma: “O sentido da escola”. Outro a lembrar, seria
aquele que intitulamos de “A invenção da escola a cada dia”.

16
Mais adiante, depois de diversos livros publicados, Regina e eu nos dizíamos que, coerente com o que
pensávamos acerca da multiplicidade dos cotidianos, dos sentidos e das escolas, a coleção deveria se
chamar “Os sentidos dos cotidianos das escolas”.
17
Esse atraso se deu porque em dezembro de 1999 eu assumi a Presidência da ANPEd e o ano de 2000
foi dedicado a fazer a primeira Reunião nacional da ANPEd aos cuidados da Diretoria que eu presidia.
Naturalmente, naquele estilo “cobrador” de Regina, lembro que no primeiro momento em que nos
encontramos, no hall do Hotel Glória, em Caxambu, ela me parou e disse: “engraçado, sua tese (se
referindo à tese de titular da UFF que estava sendo foi publicada naquele ano) está à venda. Por que nossa
coleção não começou a ser publicada, também?” Naturalmente, dei a única resposta possível: “Boa
pergunta. Por quê? Já que é “nossa”... Eu estava organizando esta ‘pequena’ reunião, por que você não
tratou de publicá-la?” Como sempre acontecia, ela “caiu na real”.
18
Todos os livros aqui citados estão nas referências.

sumário 73
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Regina organizou alguns sozinha: “Crianças essas conhecidas tão


desconhecidas”, por exemplo. Entre outros, escolhi este porque, nele, Jacqueline
Morais, então orientanda de Regina, tem um texto. Gostaria de lembrar que Regina
sugeriu e decidimos que alguém do grupo dela organizaria alguns livros. Dois
exemplos: “A magia da linguagem”, organizado por Edwiges Zaccur; “Professora-
pesquisadora – uma práxis em construção”, organizado por Maria Teresa Esteban e
Edwiges Zaccur.
No grupo que era por mim coordenado o movimento era igual e coordenado,
naquele então, também por Inês Barbosa de Oliveira19. Assim, alguns números foram
organizados por mestrandos ou doutorados de Inês ou meus. Como exemplo cito alguns
livros com seus organizadores: “Como me fiz professora”, organizado por Geni
Vasconcelos; “Cultura e conhecimentos de professores”, organizado por Aldo Victorio
Filho e Solange Castellano; “Batuques, fragmentações e fluxos”, organizado por Valter
Filé. Inês também organizou sozinha um livro: “A democracia no cotidiano da escola”.
Isto mostra como, no processo de nos formarmos como organizadoras de uma
coleção de livros, pensávamos que aqueles que estávamos formando em mestrado e
doutorado, deveriam também se formar na organização de livros, passando por todo o
processo de editoração de um livro: solicitar textos a colegas, estabelecendo prazo de
entrega dos mesmos; receber os textos e guardá-los em arquivo apropriado, na ordem
em que fossem sendo entregues; reler cada texto, indicando possibilidades de mudanças
na escritura dos mesmos; encontrar erros de digitação em uma primeira revisão;
solicitar as modificações necessárias a seus autores quando percebia-se alguma
incongruência na escritura; recebidos todos, organizar sua ordem no livro e escrever
seu sumário; escrever uma apresentação; entregar o livro ao editor. E ter a enorme
satisfação de ver o livro publicado!
Em todos os livros, sempre que possível, trazíamos algum autor do exterior,
certas de que suas contribuições eram importantes para as redes que íamos formando,
indicando a importância disto aos organizadores/organizadoras dos livros. Assim
tivemos contribuições, entre outros, de: Edgard Morin, Jean Houssaye, Manuel Jacinto
Sarmento, Jesus Martin-Barbero. Muitos autores nacionais conhecidos em outras áreas
entravam em alguns volumes, como Muniz Sodré, por exemplo.

19
Inês Barbosa de Oliveira só criou seu próprio grupo depois que voltou do pós-doc, feito em Coimbra,
com Boaventura de Sousa Santos. Logo depois de sua volta, tivemos uma longa conversa na qual ficou
claro que este deveria ser o movimento a ser feito.

sumário 74
VII Seminário Vozes da Educação

Assim, nos educávamos e articulávamos nossos orientandos nessas tantas redes


que formávamos, indicando a importância das contribuições das diversas áreas, de
diferentes tessituras teóricas, de países diversificados. Nisso estava embutida a ideia de
internacionalização que praticávamos e acerca da qual teorizávamos. Questão que hoje,
vem se colocando na ordem do dia e que já percebíamos como central, naquele
momento.

II. O curso de Pedagogia em Angra dos Reis


Outra intensa atividade que realizamos juntas – Regina e eu – foi a criação de
um curso experimental de Pedagogia da UFF, em Angra dos Reis.
Quando eu estava como Diretora da Faculdade de Educação, da UFF, e tendo
sido implantada a obrigatoriedade de formação docente no curso superior, fui procurada
por inúmeros secretários e secretárias de Educação de diversos municípios fluminenses,
na tentativa de organizarmos um curso de formação de docentes nos seus municípios.
Iniciaríamos, assim, o processo de interiorização de cursos universitários o que veio a
ser um movimento importante nos governos de Lula e Dilma Roussef bem
posteriormente. Foram onze as possibilidades que se abriam. Juntamos as características
de cada proposta que foram levadas ao Conselho departamental da Faculdade de
Educação para estudo, discussão e decisão. O município de Angra dos Reis foi o
escolhido porque: 1) tinha naquele momento o maior salário de professores do Brasil; 2)
oferecia condições de locomoção, estadia e prolabore para os docentes da Faculdade
que se deslocassem para ministrar o curso; 3) o Secretário de Educação e a
Subsecretária aceitaram participar do planejamento de um curso experimental durante
um certo tempo com reuniões semanais a serem realizadas uma semana em Niterói e na
semana seguinte em Angra dos Reis; 4) já possuíamos contato com o município através
de um curso de extensão que nele se desenvolvia; 5) o município estava realizando
inúmeros concursos de professor com a finalidade de completar seu quadro com muitas
precariedades, anteriormente.20
Como na atividade anterior, esta também envolveu muitas pessoas. Em
princípio: as referidas autoridades educacionais de Angra dos Reis; a Diretora da

20
O município foi um dos muitos que elegeram um governo do PT, naquele momento. Neirobis Nagae
foi prefeito de 1º de janeiro de 1989 a 31 de dezembro de 1992. O município elegeu em seguida mais dois
prefeitos do PT: Luiz Sergio Nóbrega de Oliveira (que até recentemente era deputado federal) e José
Marcos Castilho. O curso na sua qualidade de experimental continuou a existir nessas três gestões. Com o
prefeito a seguir – Fernando Jordão (do PDT) – e por decisão da UFF, deixou seu caráter experimental e
passou a ter um currículo extremamente próximo aos cursos em geral.

sumário 75
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Faculdade de Educação (eu); Regina Leite Garcia; Luiz Carlos Manhães, Angela
Siqueira e Gelta Xavier, professor e professoras da Faculdade de Educação que
desenvolviam um curso de extensão no município de Angra dos Reis, há algum tempo,
e que serviram de contato com as autoridades do município. O Conselho departamental
elegeu esta comissão que toda semana se reuniu – entre setembro de 1990 a agosto de
1991 – para produzir uma proposta de um curso experimental.
A partir daí, as instâncias oficiais da UFF passaram a discutir a proposta desta
inédita proposta experimental: Conselho departamental da Faculdade de Educação;
Conselho do Centro no qual se localizava a Faculdade de Educação (hoje inexistente);
CSEP; CUV.
Enquanto isto, continuávamos as conversas para a abertura do curso em Angra
dos Reis, em sua parte operacional: onde funcionaria (no turno noturno de uma das
escolas públicas); escolher seu coordenador (Luiz Carlos Manhães); indicar seus
professores dos primeiros períodos; e sua inauguração...Esta se deu, no dia 29 de junho
de 1992, com uma linda lua cheia, no Convento de S. Bernardino, com as presenças das
autoridades locais e da Reitor da UFF, Prof. Raimundo Martins Romeo.
A estrutura experimental do curso foi possível pois tinha apoio na LDB de
21
então e a compreensão que tínhamos da necessidade de criação de novas
possibilidades, graças ao poderoso movimento organizado desde 1983 pela Comissão
Nacional pela Formação de Professores e, a partir de 1989, pela Associação Nacional
pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE).
Na UFF, essa proposta feita – eu quase escrevi “achada” na Lei por mim – teve
sua potência maior graças as inovadoras e audaciosas propostas feitas por Regina e
pelos outros membros da referida Comissão de criação do curso. Os períodos receberam
nomes (e sobrenomes) e eram entendidos como Núcleos de Estudos e Atividades
pedagógicas (NEAP). O número de disciplinas foi substantivamente diminuídos e
ocupavam os 5 dias da semana da seguinte maneira: três noites eram ocupadas com três
disciplinas formadoras, com as quais se buscava articular ‘práticasteorias’ em torno do
campo da Educação e entendidas como básicas à formação de professores; uma noite –
a quarta-feira – era ocupada com um componente curricular criado, o PPP (Pesquisa e
Prática Pedagógica), no qual as práticas vividas em toda e qualquer experiência
pedagógica nos tantos ‘dentrofora’ das escolas eram trazidos para grupos organizados

21
Ela existiu em todas as LDB que tivemos e continua a existir na atual. Mas não conheço outro curso
que o tenha usado.

sumário 76
VII Seminário Vozes da Educação

para discuti-las, sempre com um docente orientando; neste componente eram


especialmente buscadas modos de articular questões práticas de processos pedagógicos
com as teorias circulantes no campo; esta orientação se dava dentro do entendimento de
que ‘aprenderensinar’ envolve, sempre, complexos processos de
‘verouvirsentirpensar’, concomitantes e constantes. Nesses grupos, os estudantes, ao
final do curso, escreviam suas monografias, na variedade das temáticas que tinham
escolhido, com a formação ‘práticoteórica’ que tinham feito com a orientação do
docente de PPP que os tinha acompanhado, bem como orientado seus processos de
escritura. Por fim, um outro componente curricular foi criado: o Estudo dirigido. Já que
o curso era noturno reunia estudantes que trabalhavam durante o dia e que precisavam
de tempo para ler a bibliografia das disciplinas desenvolvidas em cada NEAP. Um
professor era designado, em cada período, para trabalhar com cada turma existente.
Nesta noite dia, se lia, se conversava acerca do lido, se questionava o lido, com um
atento professor/professora que ia orientando esses movimentos.
Nos dois primeiros anos – “para animar”, como dizíamos – entraram duas
turmas, uma por semestre. A partir daí, o ingresso era de uma só turma por ano.
Os estudantes eram majoritariamente do munícipio de Angra dos Reis, mas
vinham também, de municípios vizinhos – Parati, Mangaratiba, Volta Redonda, Barra
do Piraí... Enfrentavam, todas as noites, viagens demoradas e perigosas, por estradas
mal- conservadas. Também os/as docentes enfrentavam isto, voltando para suas casas
em Niterói ou no Rio. Em um determinado momento, conseguimos que vários
pudessem dormir, pois davam em disciplinas e assumiam, também, um dos grupos de
PPP. Por esta circunstâncias, houve aluguel de apartamentos e de quartos em hotel, com
a convivência tendo que ser aprendida para além do contato pedagógico.
Um aspecto importante indicado como necessário por Regina e sugestão que foi
acatada e incorporada pela Comissão de criação do curso, foi a existência de um período
entre os NEAPs no qual se desenvolveria em conjunto – entre docentes e discentes –
uma avaliação de um período e o planejamento do seguinte. Esta
avaliação/planejamento começava em uma sexta à noite e continuava em todo o sábado
e em todo o domingo. As refeições eram planejadas para serem feitas também na escola
na qual desenvolvíamos o curso, o que permitia momentos de conversas variadas e
tranquilas.
Para acompanhar, o regime experimental em sua aplicação, foi criada uma
reunião de todos os docentes que atuavam no curso em Angra dos Reis, todas as 2as

sumário 77
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

feiras de 9h às 12h, quando então os que tinham turma da 2ª feira e o coordenador


almoçavam e partiam para a viagem de no mínimo 3h e30min até Angra.
Um outro componente criado foi chamada de “atividades culturais”. Esta talvez
tenha sido a mais forte contribuição de Regina ao curso. Ela entendia que a formação de
docentes exigia uma intensa articulação com a cultura: conhecer aspectos culturais em
que vivia cada estudante; as produções culturais locais, regionais, nacionais e mundiais.
Todos os modos e expressões artísticas deveriam estar disponíveis à curiosidade dos
estudantes que se formavam para docente. Suas falas, em especial nas reuniões de 2ª
feira nos ensinaram imensamente sobre a importância disto. Aos poucos fomos
percebendo as múltiplas formas com que essas atividades poderiam acontecer: vir em
um sábado ao Rio de Janeiro visitar uma exposição ou assistir a um espetáculo teatral
ou de dança ou um concerto de música; ir visitar algum lugar próximo ou distante –
Armando Martins, professor de História e que foi um dos coordenadores do curso – em
certa ocasião levou um grupo de estudantes a Ouro Preto; trazer artista que faziam
palestras ou realizavam espetáculos alguma noite, trazido por algum professor; realizar
uma semana de cultura, entre dois NEAPS, com grupos do município de cultura popular
– jongo, folia de reis – ou trazidos de outras regiões do estado; realizar mesas ou
palestras acerca de temas que surgiam, nos estimulando a pensá-los.
Com relação a este componente um momento de ‘aprendizagesnensino’
recíproco entre docentes do curso se deu quando precisamos resolver “a nota que
daríamos” aos estudantes. Regina, mais uma vez, teve importância decisiva na
resolução da questão, quando em uma reunião de 2ª feira, em meio a discussões
acaloradas disse: “quando qualquer um de nós assiste a uma peça de teatro, por
exemplo, para a qual levamos um filho ou um neto ao sairmos do espetáculo, o que
fazemos? Pedimos que ele faça um relatório? Não, nós vamos a um lugar gostoso,
tomarmos um café, um chá, um suco ou um refrigerante e “conversamos” sobre o que
assistimos, sobre o que ‘vimosouvimossentimospensamos’ naquele período. Por que,
agora, queremos dar notas aos estudantes querendo que façam um relatório para nos
mostrarem o que “aprenderam”? Não se trata aqui de aprender, mas de sentir. Como
medir o que sentimos com nossos contatos com as artes?” Esta fala dela mudou
inteiramente o rumo da conversa e a decisão foi tomada: como a UFF exigia uma nota,
daríamos 10 a quem fizesse a atividade e 0 (zero) a quem não fizesse. Como quase
todos os estudantes realizavam as atividades, nelas se envolvendo fortemente, os zeros
não apareceram.

sumário 78
VII Seminário Vozes da Educação

Na organização do curso que se dava permanentemente, aprendíamos uns com


os outros sempre. A cada momento em que alguma nova decisão precisava ser tomada,
percebíamos a importância do outro com suas posições e modos de pensar. Esta forma
de ‘fazerpensar’ um curso experimental com suas tão diversas atividades gerava uma
potência no grupo envolvido - docentes e discentes – permitindo questionamentos
permanentes, criação de ideias novas, entendimento de condições complexas na
realização do curso.

III. Artigos comuns


Regina Leite Garcia e eu publicamos – além da coleção a que faço referência
acima – diversos artigos em comum, tanto para publicação em revistas e livros, como
para apresentação em congressos. Quanto a artigos publicados com dupla autoria, farei
referência a um único, comentando o modo como trabalhávamos e chegávamos a escrita
comum. Reforço: todo o processo era, sempre, de formação comum uma da outra. Ao
nos encontrarmos para conversarmos acerca do que escreveríamos, trazíamos novas
referências; apresentávamos formas novas de ‘fazerpensar’ as atividades que
desenvolvíamos ‘dentrofora’ da Universidade, com os inúmeros grupos com que nos
relacionávamos; criticávamos algumas posições uma da outra – entre essas, havia
sempre uma que não conseguíamos resolver: citar ou não citar trechos dos autores com
que trabalhávamos? Regina entendia que não devíamos citar, já que o que líamos
entrava em nosso pensar e se transformava em ‘nosso’ e devíamos escrevê-lo tal como o
tínhamos entendido e queríamos usá-lo; eu, em minha posição preferida – formadora de
docentes – entendia que devíamos citar os autores com suas palavras para mostrar, aos
que nos liam e em especial aos nossos estudantes, como esses autores escreviam
lindamente aquilo que queriam expressar. Posições diferentes que nunca chegaram a um
acordo, mas que ia nos formamos em cada discussão que tínhamos acerca disto – e
foram tantas!
Vou trazer somente um desses artigos: aquele que saiu publicado no livro “A
Bússola da Educação”22 e que teve como título: “A necessidade da orientação coletiva
nos estudos sobre cotidiano – duas experiências”. Como sempre, tempos depois,
dizíamos que o título do artigo deveria ter sido “A necessidade da orientação coletiva
nas pesquisas com os cotidianos – duas experiências”...

22
Garcia; Alves, 2002.

sumário 79
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Quando Bianchetti nos convidou para escrever um artigo para o livro que estava
organizando, imediatamente, Regina e eu decidimos que contaríamos como, em nossas
pesquisas, entendíamos que a orientação coletiva era uma necessidade.
Para escrever um texto, nos reuníamos – em geral na casa de Regina, tomando
chá – e conversávamos durante umas duas horas, acerca do mesmo. Esta conversa era
gravada e, algumas vezes, era transcrita por algum de nossos bolsistas de IC. No caso
deste artigo, conversamos, gravamos, mas pela estrutura que decidimos dar ao mesmo,
não foi necessária a transcrição: haveria no mesmo uma introdução que falaria das
pesquisas nos/dos/com os cotidianos: seus movimentos que eu tornara público em artigo
publicado em 200123; descreveríamos a importância que víamos naquilo que o outro –
nossos parceiros de pesquisa – acrescentava de observações a partir de leituras que
desenvolvia dos textos de cada membro do grupo produzia e tudo aquilo que
desenvolvia ao falar, buscando aprimorar o que escrevêramos; e por fim,
desenvolvíamos os diversos aspectos acerca do que no texto chamamos de “o princípio
da orientação coletiva” indicando: I) “a importância do olhar do outro” que via aquilo
em que era preciso avançar no trabalho acerca do qual conversávamos; II) “mais que a
soma – as diferenças”, entendendo que nas reuniões de grupo o que nos trazia potência
eram as diferenças que apareciam quando ao que era discutido; III) “escrever e fazer
escrever”, compreendendo que nós orientadores e todos os membros do grupo, ao
discutirmos os trabalhos escritos, estimulávamo-nos a escrever sempre24; IV) “sobre o
‘entre lugar’ que significavam aquelas reuniões de grupo que realizávamos criando
espaços vazias que permitiam o aparecimento de novas ideias; terminávamos, o artigo,
por indicar que escrever uma dissertação ou uma tese exige compreender que se trata de
um processo em permanente trançado, com muitos outros, nas artes do ‘fazerpensar’.
Tratávamos de tudo isto na conversa que fizemos e fomos desenvolvendo na ida para
uma, volta para outra, várias vezes, o texto do livro.

23
Em livro lançado este ano (2019), com a ajuda de Nívea Andrade e Alessandra Caldas, escrevemos um
artigo que avança – criticando – esses movimentos. Sugiro sua leitura (ANDRADE; CALDAS; ALVES,
2019).
24
Naturalmente, ao começar a trabalhar com imagens, eu percebi – e acerca disto muito conversamos
Regina e eu – que “escrever” era insuficiente, pois ia compreendendo a importância de se produzir outras
formas de ‘conhecimentossignificações’ para além do texto.

sumário 80
VII Seminário Vozes da Educação

Concluindo

Todas estas atividades – e muitas outras – em que nos envolvemos juntas –


Regina e eu - propiciaram que nossa formação continuada se desse entre nós, incluindo
todos e todas as que participavam dos grupos de pesquisa que coordenávamos e de
outros tantos grupos que formávamos e nos quais nos formávamos. A ideia de redes
educativas que hoje está implantada nas pesquisas com os cotidianos, foi se formando
nesta experiência ímpar que era criar ‘conhecimentossignificações’, ‘fazeressaberes’,
‘práticasteorias’ com Regina Leite Garcia.

Referências

ALVES, Nilda. Práticas pedagógicas em imagens e narrativas – memórias de


processos didáticos e curriculares para pensar as escolas hoje. S. Paulo: Cortez, 2019

ANDRADE, Nívea; NUNES, Alessandra, Nunes; ALVES, Nilda. Os movimentos


necessários às pesquisas com os cotidianos – após muitas ‘conversas’ acerca deles. In:
OLIVEIRA, Inês Barbosa de; PEIXOTO, Leonardo Ferreira; SUSSEKIND, Maria
Luiza. Estudos do cotidiano, currículo e formação docente – questões
metodológicas, políticas e epistemológicas. Curitiba: CRV, 2019: 19-45.

ESTEBAN, Maria Teresa; ZACCUR (orgs). Professora-pesquisadora – uma práxis


em construção. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

FILÉ, Valter (org). Batuques, fragmentação e fluxos. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

GARCIA, Regina Leite (org). Crianças essas conhecidas tão desconhecidas. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002.

GARCIA, Regina Leite; ALVES, Nilda (orgs). A invenção da escola a cada dia. Rio
de Janeiro: DP&A, 2000 b.

GARCIA, Regina Leite; ALVES, Nilda (orgs). O sentido da escola. Rio de Janeiro:
DP&A, 2000a.

GARCIA, Regina Leite; ALVES, Nilda. A necessidade da orientação coletiva nos


estudos sobre cotidiano – duas experiências. In BIANCHETTI, Lucídio; MACHADO,
Ana Maria Netto (orgs). A bússola do escrever – desafios e estratégias na orientação de
teses e dissertações. S. Paulo/ Florianópolis: Cortez/Ed da UFSC, 2002: 255- 296.

OLIVEIRA, Inês Barbosa. A democracia no cotidiano da escola. Rio de Janeiro:


DP&A, 2001.

VASCONCELOS, Geni A Nader. Como me fiz professora. Rio de Janeiro: DP&A,


2003.

sumário 81
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

VICTORIO Filho, Aldo; MONTEIRO, Solange Castellano Fernandes (orgs). Cultura e


conhecimento de professores. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

ZACCUR, Ewiges (org). A magia da linguagem. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

sumário 82
VII Seminário Vozes da Educação

NARRATIVAS DE PROFESSORAS: FORMAÇÃO E IMPLICAÇÕES DO


FAZER DOCENTE

Flaviane Coutinho Neves Americano Rego


FFP UERJ
flavicoutinho@hotmail.com

A inspiração para este trabalho surgiu da relação que tenho com a Escola
Municipal Vereador João da Silva Bezerra, Barra de Maricá - Maricá/RJ. Esta unidade
escolar fez parte do meu percurso de formação durante os primeiros 12 anos de vida
estudantil. Poder retornar à escola que integra meu percurso de formação é poder
experenciar este espaço como professora pesquisadora e de alguma forma devolver o
que ela me proporcionou.
A proposta deste trabalho é investigar os processos formativos nas relações que
se dão dentro e fora da escola, tendo como tema da pesquisa a formação de professores,
suas experiências e práticas docentes, assim como as reflexões e contribuições para a
construção do sujeito, do se tornar professor e as implicações do fazer docente.
Trazendo o cenário desta instituição, assim como as relações professor – aluno; aluno –
aluno; professor – professor; escola – comunidade, compreendo a escola como um
espaço que propicia interação, diálogo, troca, aprendizagem, assim como um espaço
possível de transformação que oportuniza a ascensão social, assim como me propiciou
ultrapassar as barreiras das desigualdades sociais presentes na minha vida.
De acordo com o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2010, p.970), o
vocábulo formação deriva do latim “formatione” e significa o ato, efeito ou modo de
formar. O verbo formar e os mais diversos sentidos de formação vão compor este
ensaio. Neste sentido desejei construir esta pesquisa em um lugar que faz sentido para
minha própria formação enquanto sujeito e profissional, uma escola municipal que fez
parte da minha trajetória de formação durante 12 anos. Revisito esta escola, com o
objetivo de trazer as narrativas de formação, as experiências e práticas das professoras
do Ensino Fundamental I e suas contribuições para a produção do conhecimento.
Esse trabalho é construído pelas histórias de vida e formação de três professoras
do Ensino Fundamental I em diferentes percursos de formação, considerando a

sumário 83
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

perspectiva da formação em processo, o tempo de formação docente, a certificação, o


pertencimento à comunidade escolar, a significação e a ressignificação deste espaço
formativo, a escola.
Para Menezes, “busca-se entender a escola como um lugar privilegiado de
memórias. Os objetos/memórias do cotidiano escolar que nos fazem lembrar da escola e
de como ela contribui para a formação da personalidade dos sujeitos.”(2007, p.23) Com
efeito, a E. M. V. João Bezerra é para mim um lugar privilegiado de memórias e
sentidos, pois ao habitar este território escolar, as recordações e experiências vividas
saltaram como que espontaneamente e ao rememorar pude trazer à tona os significados
e sentidos que atribuí à escola em seus diversos eixos e que trouxe para minha vida
contribuindo assim na formação da identidade, na construção do sujeito e na
composição da profissão.
Durante a realização desta pesquisa, foi intenso perceber os significados e
sentidos da escola através dos gestos, olhares, através do dia a dia e da construção do
saber dos alunos, da parceria com os professores, alunos e funcionários da escola.
A metodologia desenvolvida está embasada na pesquisa qualitativa, nas narrativas
autobiográficas e utiliza as rodas de conversa como ponto de partida na busca de dados
e material de análise, considerando depoimentos e relatos sobre as experiências das
professoras que durante os encontros partilharam os percursos de formação, assim como
assim como as implicações da profissão.
Segundo Fontoura (2011), os dados não falam por si em pesquisa qualitativa,
então precisamos problematizar o que encontramos através do diálogo entre o que
encontramos e a teoria. Para isso, a estratégia utilizada será a tematização e
estabelecemos alguns passos para as análises das narrativas. São eles: transcrição de
todo omaterial coletado, leitura cuidadosa para conhecimento do material, demarcação
do que será considerado importante, levantamento dos temas, definição das unidades de
contexto, esclarecimento do tratamento de dados, a partir da separação das unidades de
contexto do corpus e, por fim, a interpretação propriamente dita, à luz dos referenciais
teóricos.
Rememorar os percursos e as análises de implicação na construção do sujeito faz
diferença na prática docente; para Souza (2007), as narrativas ganham sentido e
potencializam-se como processo de formação e de conhecimento, porque têm na
experiência sua base existencial. Nesse movimento, interessou-me investigar Como

sumário 84
VII Seminário Vozes da Educação

chegaram à sala de aula para lecionar? Como foi a trajetória de vida destas educadoras?
Quais experiências lhes atravessaram? O que dá sentido à escolha de educar?
Justifica investigar o percurso de vida e formação das professoras, pois neste
movimento busquei compreender através das narrativas das educadoras como foi o
processo formativo, assim com as implicações do fazer docente em suas práticas
pedagógicas. Consequentemente, entender o que confere sentido à escolha pela
profissão e as dimensões afetivas das experiências que marcaram o exercício da
docência.
O ato de narrar faz parte do nosso cotidiano, seja dentro ou fora da escola, e
torna-se relevante para a escrita de si e dos outros, sobre o que se observa e se aprende.
Nestas produções cotidianas, as narrativas autobiográficas são metodologias
importantes para o ato de refletir, pois neste processo de falar/escrever sobre si, as
experiências do campo afetivo, cognitivo, sociocultural vão se potencializando. Somos
repletos das marcas que trazemos ao longo de nossa história, que nos fazem ser quem
somos através das constantes mudanças vividas nas experiências e memórias em nossa
existência.
Segundo Pierro:

A narrativa é ponto central na comunicação entre os seres humanos,


quando falam do que se passa e dão sentido a seu mundo usando a
linguagem e padrões que são compartilhadas pelos outros para serem
entendidos. Tomar as narrativas como objeto de reflexão é acreditar
que, no âmbito da educação, elas compõem um método de construção
do conhecimento que fundamentam a reflexão. Essa noção transfere-
se para a concepção da educação como construção e reconstrução de
histórias pessoais e sociais, transversalizando e revelando cenas
comuns e experienciais do cotidiano escolar afirmando a
singularidade dos processos de aprendizagem e formação (2015, p. 8).

A autora salienta que por meio das narrativas, os seres humanos criam uma
forma de se comunicar lançando mão da linguagem que faz parte de si e da sua vida,
afinal ao narrar uma história o ser humano lança mão de estratégias para se fazer
entender, principalmente no campo educacional, quando ao relatar suas narrativas o
professor tem a capacidade de colaborar com a construção e a reinvenção de si, das suas
práticas, das suas experiências e de todo o ambiente que o cerca. Desta forma, o
educador ao habitar e se deixar tocar pelos gestos mínimos da instituição, tanto o corpo
discente quanto docente participa da construção do saber, pois as relações e as trocas
entre os sujeitos vão entranhando no processo da escrita de si e neste processo de

sumário 85
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

aprendizado se dá a construção do conhecimento como consequência da transformação


dos sujeitos envolvidos neste processamento.
Nóvoa (1995), Souza (2007) e Passegi (2011) corroboram com esta perspectiva
quando afirmam que a autobiografia perpassa o caminho da formação e deve provocar a
atitude reflexiva sobre si mesmo e sobre as experiências vividas ao longo do percurso
de vida e formação, através da rememoração dos acontecimentos vividos e seus
processos de ressignificação. Rememorar acontecimentos lembrar-se das experiências
que tenha afetado e causado marcas na vida intelectual e profissional pode ser o
primeiro ponto a ser tratado para que haja uma “costura” no trajeto percorrido. Como
nos relata Passegi (2011) o termo experiência, deriva do latim experientia/ae e remete à
“prova, ensaio, tentativa”,o que implica da parte do sujeito a capacidade de
entendimento, julgamento, avaliação do que acontece e do que lhe acontece (p. 148).
Para a construção dessa narrativa, contei com a colaboração de três professoras
do Ensino Fundamental I de uma escola municipal de Maricá, RJ. Optei por nomeá-las
como professora 1, professora 2 e professora 3, sem identificá-las.
Os processos formativos da professora 1 tiveram início no pré-escolar II, em
uma escola particular, no bairro da Penha/RJ, por um curto período, retornando à escola
na alfabetização. Formou-se no Curso Normal e cursou História na Universidade
Federal Fluminense em Niterói. Posteriormente, reingressou na UFF no curso de
Pedagogia, mas não concluiu.
O percurso de formação da professora 2 teve início no Jardim de infância, em
uma escola pública no bairro de Barra de Maricá – Maricá/RJ. Formou-se no Curso
Normal e cursou Pedagogia com bolsa de 100% no ISAT (Instituto Superior Anísio
Teixeira), em São Gonçalo. Fez pós-graduação pela Cândido Mendes, especializando-se
em Supervisão e Orientação Educacional.
O caminho de formação da professora 3 teve início na alfabetização. Formou-se
no Curso Normal e deu início à sua graduação na UNIVERSO (Universidade Salgado
de Oliveira) com bolsa de 80%, após 15 anos de magistério reforçada pela demanda da
LDB/1994, que exige a licenciatura plena para lecionar. Não concluiu o curso, mas tem
o desejo de voltar a estudar para concluir.
Na análise das entrevistas com as professoras, destaco que a escolha pela
profissão docente foi o pontapé inicial de carreira para irem à busca de algo que elas
consideravam maior. Esta escolha foi incentivada, sobretudo por uma pessoa da família,
na qual a opinião fez toda a diferença, entre eles, tia, mãe e avô. Mas também teve um

sumário 86
VII Seminário Vozes da Educação

estímulo por parte de alguns professores que se tornaram exemplos para seguir a
carreira.
O maior incentivo na vida da professora 1 para trilhar os caminhos do magistério
veio de sua tia que também era professora; a sua proximidade e a sua admiração por ela
fizeram toda a diferença para a decisão quando estava em desespero por não saber o que
fazer no nível superior. As mulheres de sua família sempre apoiaram a sua decisão de
seguir o caminho do magistério, mas para seu pai ser professora nunca foi uma boa
opção; ele queria que a filha seguisse a sua carreira de química. Ainda segundo sua fala,
ela acredita que o pai já aceita e respeita a sua escolha.
A professora 2 não tem nenhum (a) professor (a) na família. Sua maior
incentivadora mesmo foi sua mãe, e ela agradece pela persistência, pois foi
acostumando, foi gostando e teve bastante apoio da família para continuar na área da
Educação.
A professora 3 não tem apenas uma professora na família, mas sim sete. Seu avô
foi o grande incentivador para seguir o caminho do magistério. A sua inspiração para
seguir a carreira pedagógica veio deste ambiente familiar, inclusive era o seu sonho se
tornar professora. Também teve na sua tia que era professora uma fonte de inspiração;
tinha muita admiração em ver sua tia com tantas pastas, papeladas e tinha um desejo
enorme de mexer em seu mimeógrafo.
Por mais que os caminhos percorridos e até mesmo os motivos que as levaram
escolher a docência tenham sido diferentes para cada professora, percebi que atualmente
se dedicam ao magistério e fazem o que realmente acreditam, pois entendem a
importância da profissão professor e tudo compõe o processo de aprendizagem.
Amadureceram e ao longo dos anos de prática pedagógica puderam se transformar
enquanto sujeito e transformar também suas práticas mediante a reflexão causada por
alguma experiência.
As educadoras entendem que a prática pedagógica acontece através da vivência
e das experiências no cotidiano escolar.Em suas práticas pedagógicas, as professoras
buscam fazer um diagnóstico da turma visando trabalhar de maneira a entender suas
particularidades, procurando conhecer a turma compreendendo o momento em que a
turma está, podendo desta forma planejar a prática, visando não uma prática engessada e
presa, pois vai depender da rotina da sala que é composta por acontecimentos do
cotidiano, portanto flexível.

sumário 87
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Para melhor entendimento desta questão, trago o conceito de prática de acordo


com o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2000, p. 550) diz que significa “ato ou
efeito de praticar, uso, exercício, rotina, hábito, saber provindo da experiência,
aplicação da teoria, discurso rápido, conferência, licença a navegantes para
comunicarem com um porto ou uma cidade”.
No âmbito educacional podemos então definir a prática como tudo aquilo que
engloba a instituição de ensino, bem como as concepções pedagógicas, as estratégias, os
objetivos e a interação que há entre os sujeitos. A prática pedagógica, portanto, se dá
através do processo e das relações interpessoais. É no exercício da profissão que a
mesma pode ser construída, aplicada e aperfeiçoada, de acordo com cada turma.
Ressalto a fala da professora 1 quando diz que prática é o que se faz e dá certo, pois
você faz e dá errado não deve se tornar uma prática, pois foi uma experiência que não
vai querer repetir.
Problematizando desta forma a visão de mundo que a criança traz consigo, seus
conhecimentos prévios adquiridos, afinal de contas o educador lida com vidas, assim
entendendo que o aluno é o protagonista do processo de aprendizagem. Aqui as
professoras conversam com o educador Paulo Freire (1996) quando o mesmo nos diz
que ensinar exige respeito aos saberes dos educandos.
As professoras mantiveram um diálogo com os pensamentos de Paulo Freire e
suas reflexões acerca da educação e o ato de ensinar quando priorizam o diálogo como
forma de manter uma boa relação do educador com o educando, porque ensinar exige
saber ouvir. Isto fica claro quando a professora 2 cita novamente o educador
concordando com sua afirmativa sobre a troca de experiências e saberes entre professor
e aluno, não sendo o professor dono da verdade. A criança não está na escola sem
nenhum saber, o professor é o mediador no processo de construção do conhecimento.
Segundo Freire (1996):

É preciso que, pelo contrário desde os começos do processo, vá


ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem
forma se forma e reforma ao formar e quem é formado forma-se e
forma ao ser formado. É nesse sentido que ensinar não é transferir
conhecimentos, conteúdos, nem formar é a ação pela qual um sujeito
criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado.
Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos,
apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de
objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende
ensina ao aprender (p. 25).

sumário 88
VII Seminário Vozes da Educação

O diálogo se mantém quando a professora 3 traz em sua fala a importância de


valorizar os conhecimentos que seus alunos têm adquiridos e priorizar a leitura de
mundo deles. Que ensinar não é apenas uma questão de conteúdo, mas se trata também
de quem ele é e dos saberes dos alunados.
Destacaram a importância de a equipe escolar desenvolver o trabalho
promovendo o protagonismo do aluno, lançando mão de ferramentas para melhor
qualidade de ensino e parceria com famílias e comunidade. Ao que tudo indica na fala
das professoras, a escola funciona de maneira a exercer uma gestão democrática visando
uma educação autônoma, democrática e humanizada, com a participação ativa dos
sujeitos envolvidos no processo da aprendizagem como protagonistas, bem como a
equipe escolar e a comunidade.
A princípio, a relação das professoras 1 e 3 com a escola era distante, pois
acreditavam que estavam desempenhando o seu papel muito bem que era dar aulas, até
que o trabalho desenvolvido por elas mereceu a atenção da equipe pedagógica e gestora
estreitando assim os laços com a unidade de ensino, o que passou a ser também uma
relação afetiva e não mais apenas profissional. A professora 1 conclui que na relação
que foi estabelecendo com os seus alunos acredita estar fazendo uma poupança para sua
velhice, pois se seus alunos forem bem formados hoje, amanhã serão bons cidadãos.
Para ela é um investimento.
Para a professora 2, a relação afetiva com a escola iniciou quando ainda era
aluna desta unidade, passando mais de 10 anos habitando este território como estudante
e os laços se fortaleceram ao retornar como professora, o que caracteriza como sonho
realizado.
Compreender o que determinadas experiências fizeram de si, sua importância e
seus desdobramentos também permeiam o campo da pesquisa autobiográfica. Quais
foram os desafios, conflitos, medos, dúvidas e estranhamentos que causaram
deslocamentos e lhe fizeram desejar a docência, por exemplo. É através da
autobiografia que o sujeito, enquanto protagonista do processo de formação, reinventa-
se e procura dar sentido e ressignificação às suas experiências. Passegi (2011) e Larrosa
(2002) concordam ao afirmar que a experiência e o saber que dela emanam através das
aprendizagens constituem-se neste encontro entre o que nos acontece e a significação
que conferimos ao que nos afetou e que nos outorga apropriarmo-nos de nossa própria
vida mediante percebermo-nos autores de nossa própria história e que isso se dá
mediante o ato de dizer, de narrar, (re)interpretar as lembranças que nos compõem.

sumário 89
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Outra importante dimensão da pesquisa autobiográfica que é apresentada por


Souza (2007) está no fato de que ao narrar as histórias de vida, o sujeito protagonista
deste processo tem a possibilidade de ser formado e de se autoformar, pois as narrativas
correspondem a um lugar de autoria e de construção do sujeito e da identidade e do
autoconhecimento, e de dar sentidos e significados aos valores apreendidos ao longo do
percurso de formação e autoformação, sendo esses valores pessoais, familiares e que
compõem o ato de educar.
Segundo Souza:

A pesquisa com narrativas auto (biográficas) ou de formação inscreve-


se neste espaço onde o ator parte da experiência de si, questiona os
sentidos de suas vivências e aprendizagens, suas trajetórias pessoais e
suas incursões pelas instituições, no caso, especificamente a escola,
pois as nossas histórias pessoais são produzidas e intermediadas no
interior e no cotidiano das práticas sociais instituídas e
institucionalizadas (2007, p. 18-19).

Expressar tais narrativas e aproximá-las das minhas proporcionou reflexões


acerca de nós e das nossas experiências. Souza (2007) e Pierro (2015) concordam com
Josso (2002) quando nos dizem que enquanto atividade formadora, a narrativa de si e
das experiências vividas ao longo da vida caracteriza-se como “processo de formação” e
“processo de conhecimento”. É o encontro do pesquisador com a pesquisa, que ao
mesmo tempo em que pesquisa se forma.
O professor traz consigo muitas marcas que foram construídas ao longo da
jornada, por isso o educador transmite muito do que viveu para seus alunos, que vai
além do conteúdo, que de fato fez e faz sentido. São estas marcas que o ajudam a se
formar enquanto pessoa e profissional, pois não se nasce professor, torna-se um. Como
bem declarou o educador Paulo Freire “Ninguémcomeça a ser educador numa certa
terça-feira às 4 horas da tarde... Ninguém nasce educadorou marcado para ser educador.
A gente se faz educador, na práticae na reflexão sobre a prática.” (1991, p. 58)
Há uma relação afetiva entre as narrativas e a formação docente, na medida em
que as histórias de vida e formação refletem na atuação pedagógica e como essa atuação
reflete no espaço escolar e afeta todos os sujeitos envolvidos no processo. Por isso, a
presente pesquisa buscou destacar a importância das narrativas de vida e formação,
compreendendo os desafios, descobertas, inquietudes que esculpem o fazer-se
professor.

sumário 90
VII Seminário Vozes da Educação

Para Souza (2007), é preciso buscar refletir sobre as condições e processos de


aprendizagem e de conhecimento que nos possibilitaram aprender a ser
professor/professora. Portanto, ao trazer suas histórias de vida e de formação, as
professoras estiveram em constante movimento na aquisição de conhecimento e
aprendizagem; ainda segundo Freire (1996), me movo como educador, porque,
primeiro, me movo como gente. E as professoras puderam refletir sobre as práticas e
experiências entendendo que é através da reflexão que podemos repensar nossa
formação e transformar nossa prática, concordando com Souza (2007), Freire (1996) e
Pierro (2015).
Não é minha intenção encerrar esta narrativa, porque a formação é constante e os
desassossegos e indagações irão continuar a existir no decorrer do percurso, ainda mais
porque assim como Freire (1996) entendo o inacabamento do ser humano. O que
pretendo é que o olhar atento se volte à importância da pesquisa autobiográfica a
formação do sujeito e da profissão docente.
Faz-se necessário investimento nas produções de pesquisa na qual o professor
narra seus processos formativos no campo para que haja melhor entendimento do
profissional de educação, suas trajetórias, atravessamentos, necessidades, visando
ampliar o debate em torno das contribuições que este tema proporciona e de que
maneira pode intervir nos ambientes escolares de modo a gerar uma educação
emancipatória.
Buscamos compreender, através das narrativas das professoras o que permeia os
processos de formação e a relação que fazem entre os conhecimentos construídos na
formação e os conhecimentos que identificam como necessários para o
desenvolvimento profissional, ou seja, o que os educadores constroem em suas práticas
docentes a partir dos saberes apreendidos. Espera-se que este estudo possa responder o
quão importante é focar a questão das narrativas e suas experiências, entrelaçando a
formação e a prática docente.

Referências
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Coordenação Marina Baird Ferreira, Margarida dos Anjos. 5. Ed. Curitiba: Positivo,
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múltiplos olhares em pesquisa. Niterói: Intertexto, 2011.

sumário 91
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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Paulo: Paz e Terra, 1996 (coleção Leitura).

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a sala de aula e o fazer docente. In: Histórias de vida e formação de professores. PGM 2
Salto para o futuro. MEC Boletim 01, Mar. 2007. P. 23-40.

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PASSEGI, Maria da Conceição. A experiência em formação.Educação, Porto Alegre,


v. 34, n. 2, p. 147-156, maio/ago. 2011

PIERRO, Gianine Maria de Souza. Infância e escola: descortinando um universo


singular. Anais, XII Congresso Nacional de Educação. UFPR. Curitiba/PR. 2015.

SOUZA, Elizeu Clementino de. Abordagem experiencial: pesquisa educacional,


formação e histórias de vida. In: Histórias de vida e formação de professores. PGM
1Salto para o futuro. MEC Boletim 01, março 2007. p. 15-22.

sumário 92
VII Seminário Vozes da Educação

FORMAÇÃO ENTRE PARES E A ESCRITA DEPROFESSORAS/ES: AÇÃO


ENTRE COLETIVOSDOCENTES DO BRASIL E PERU

Mairce da Silva Araújo


FFP/UERJ
mairce@hotmail.com

Jacqueline de Fatima dos Santos Morais


FFP/UERJ

Danusa Tederiche Borges de Faria


FFP/UERJ
danusa.tederiche@hotmail.com

Introdução

Este trabalho tem como objetivo socializar ações que integram um projeto de
pesquisa, constituído a partir do diálogo entre coletivos docentes de dois países da
América Latina: “Rede de docentes que estudam e narram sobre infância, alfabetização,
leitura e escrita” (Redeale), localizado em São Gonçalo, no Brasil e Rede Desenredando
Nudos, localizada em Cajamarca, no Peru.
Nosso coletivo, Redeale, está vinculado à Faculdade de Formação de
Professores, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e localizado na cidade de São
Gonçalo, município do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. O grupo vem se reunindo
desde 2015, mobilizados pelo objetivo de compartilhar experiências docentes na
educação infantil, na alfabetização e no ensino superior.
A Faculdade de Formação de Professores atende a mais de 3.000 alunos
provenientes de diversos municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e do
interior fluminense, inscritos em cursos de licenciatura em Pedagogia, História,
Geografia, Matemática, Letras e Biologia, além de cerca de uma dezena de Cursos de
Pós-graduação Lato Sensu e Cursos de Pós-graduação Stricto Sensu, Mestrado e
Doutorado em educação: processos formativos e desigualdades sociais, articulado ao
Departamento de Educação e Mestrado e Doutorado em História social do território,
articulado ao Departamento de Ciências Humanas.
São Gonçalo é uma cidade periférica, com uma população, estimada em mais de
um milhão de habitantes, sendo o segundo município mais populoso do Estado do Rio

sumário 93
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de Janeiro. Dentre os 92 municípios que compõem o Estado do Rio de Janeiro a cidade


encontrava-se no vigésimo segundo lugar em qualidade de vida. Com uma trajetória que
remonta a ocupação dos índios Tamoios e a ocupação portuguesa, São Gonçalo vem, ao
longo de sua formação social, lutando por uma construção política, história e cultural.
Os dois coletivos docentes, Redeale e Desenredando Nudos, vêm alimentando
uma profícua interlocução que teve início no “VII Encuentro Iberoamericano de
Coletivos e Redes de Maestros y Maestras que hacen investigacion e innvación desde su
escuela y comunidad” que ocorreu em Cajamarca, no Peru, em julho de 2014. Nossa
comunicação vem acontecendo desde então, tanto virtualmente, numa periodicidade que
busca ser mensal, a partir das redes sociais, quanto, presencialmente, em encontros
anuais dos coletivos peruanos.
Os encontros virtuais têm sido realizados ora na Faculdade de Formação de
Professores, ora na residência de um/uma componente do grupo e contam com a
presença de professores(as) de redes públicas de ensino e da universidade,
graduandos/as, mestrandos/as e mestres25, que compartilham experiências escolares e de
vida. Essa composição fundamenta-se no princípio freireano (1979) de que "ninguém
educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam
em comunhão, mediatizados pelo mundo". Precisamos de outros pensamentos, outras
ideias, para trilhar caminhos mais amplos.

Fig.1: Imagem de um encontro virtual entre os dois coletivos em 2018. Acervo: REDEALE.

25
Os mestrandos/as e mestres são oriundos do Programa de Pós-graduação em Educação: Processos
Formativos e Desigualdades Sociais tendo em vista que a coordenação do REDEALE é feita por
Jacqueline Morais e Mairce Araújo, docentes do programa.

sumário 94
VII Seminário Vozes da Educação

Entendemos que o diálogo entre as redes de coletivos docentes constitui uma


forma de resistência ao reafirmar os/as docentes como intelectuais, autores(as) e
produtores(as) de suas práticas. Buscamos, assim, fortalecer a luta por uma escola
popular emancipadora na América Latina, no qual os(as) professores(as) não sejam
meros(as) repetidores/as de conteúdos e os alunos(as) recipientes ou depósitos de
informações.
Compartilharemos um processo de escrita de relatos pedagógicos vividos num
processo de formação entre pares entre tais coletivos que envolvem professores/as e
estudantes. A escrita de relatos que traz o foco para as experiências docentes dá
visibilidade, documentam e disponibilizam saberes pedagógicos construídos na carreira
profissional. Desta forma, nos parece fundamental do ponto de vista ético e político, a
produção de textos que mostrem escola e docentes como sujeitos que produzem modos
de viver o ensino e a aprendizagem com alegria e abertura.
O presente trabalho busca analisar o processo vivido no Brasil que implicou:
identificar e selecionar experiências pedagógicas; escrever y reescrever as narrativas;
editar, ler, comentar e conversar sobre os relatos; publicar e circular os escritos; trocar
correspondência com os/as docentes peruanos/as.
Este trabalho foi proposto levando em conta a importância de que professoras e
professores escrevem como um modo de exercer a docência. Mesmo sabendo que a
escrita faz parte do nosso cotidiano escolar, boa parte das vezes propomos que o outro
escreva, nossos alunos. Mas nós, docentes, não escrevemos. Não registramos em
linguagem escrita nossas experiências. A proposta da escrita de narrativas que trazem
acontecimentos educativos, se apoia no princípio de as narrativas decorrentes desse
processo, tem visibilizado variados saberes docentes, apontando para a vivência de
práticas educativas que criam pedagogias emancipatórias e confirmam o processo
vivido entre pares como uma experiência formativa transformadora.

Alguns aportes teóricos da experiência


Os processos investigativos-formativos que temos vivido no diálogo Redeale e
Rede Desenredando Nudos reafirmam o/a docente como pesquisador/a de sua própria
prática, como condição para construirmos novas compreensões sobre a escola, o
processo ensino-aprendizagem, as questões políticas-ideológicas que permeiam o
cotidiano, as práticas pedagógicas e o próprio ser docente.

sumário 95
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Nesse sentido, temos defendido junto com Lima, Geraldie Geraldi (2015) que o
melhor caminho para compreender as práticas das professores/as nas escolas, e junto
com eles/elas produzir uma epistemologia da prática, é ouví-las/os, reconhecê-las/os
como narradores/as do próprio trabalho e do seu ser docente, apoiando-as em seu
processo de se fazerem professoras e pesquisadoras, sujeitos que querem compreender
o que lhes toca, o que lhes acontece e o que fazem acontecer.( p. 42).
Suárez (2017) vem chamando atenção para a existência de uma “memória
pedagógica silenciada” sobre a escola e as práticas docentes, uma vez que o que
prevalece nos estudos e análises sobre a realidade escolar, na maioria das vezes, são os
discursos oficiais en el lenguaje técnico, pretendidamente objetivo, neutral, desafectado
de subjetividad, que imponen las modalidades dominantes de gobierno educativo. (p.2)
È nessa perspectiva que a história da escola e das práticas docentes tem sido
hegemonicamente documentada no Brasil e na América Latina.
Contudo, Ezpeleta e Rockwel (1989) discutem desde a década de 1980, a co-
existência de uma história documentada pelos discursos oficiais e uma outra história não-
documentada, através da qual a escola toma forma material, ganha vida. (1989, p 13).
Histórias locais, protagonizadas por sujeitos desimportantes, narradas de forma oral, que
passam de escola em escola, que atravessam gerações, que muitas vezes são transformadas
em anedotas. Histórias que confirmam a multiplicidade de experiências que emergem
cotidianamente.
Da necessidade de contar histórias não-documentadas e construídas
cotidianamente, grávidas de elementos que nos ajudem a construir uma epistemología
da prática, nasceu a proposta da produção de um livro composto por narrativas
pedagógicas dos/das componentes dos dois coletivos docentes.
Os textos que compõem o livro, em processo de edição no Peru, tratam de
experiências narradas por estudantes e docentes, brasileiros(as) e peruanos(as) a partir
das suas práticas cotidianas, que foram produzidas ao longo do ano de 2018. Como
parte do projeto de produção do livro, efetivou-se o que chamamos de leitura entre
pares. Nela, cada coletivo recebeu e leu o conjunto de textos produzidos pelos docentes
do país parceiro. Ler com atenção, buscando valorizar o texto produzido, mas também
apontar detalhes que poderiam ampliar sua compreensão foram alguns dos objetivos da
leitura entre pares. Ao todo, foram escritos doze textos brasileiros e dezesseis textos
peruanos. A aposta na leitura entre pares envolvendo os dois países, que possuem
idiomas diferentes, trouxe o desafio de compartilhar os diferentes sentidos produzidos a

sumário 96
VII Seminário Vozes da Educação

partir da leitura das narrativas.


Ao propor aos/as professores/as e futuros/as docentes, transformar narrativas
oraissobre experiências pedagógicas relevantes, que viviam como memória entre nós,
em narrativas escritas na primeira pessoa , buscamos produzir documentos [ que se
]constituyen materiales inigualables para conocer lo que hacen, piensan, saben y
sienten los que habitan el mundo de la vida escolar. (SUÁREZ, 2017, p.5)
O processo que vivemos exigiu de cada um e uma de nós disponibilidade para
escrever e reescrever. Ler e reler. Não apenas o seu relato, mas também os relatos dos
demais componentes do grupo. Desde a proposta de escrita de um relato pedagógico, até
o dia em que estes foram dados como finalizados, se passaram 3 meses, nos quais,
quase que semanalmente, nos reuníamos em roda para discutí-los. Este processo,
portanto, não representou apenas a escrita de narrativas docentes, mas também resultou
em um processo de (auto)formação docente.

Alguns flashes da experiência em movimento: construindo as narrativas


brasileiras

Em busca de favorecer a escrita de experiências pedagógicas consideradas


marcantes para quem a viveu, optamos, coletivamente por adotar um gênero textual que
favorecesse uma escrita amorosa, fluida, significativa e prenhe de saber da experiência,
como dizia, Freire (1979).
Nesse sentido propusemos a escrita das “narrativas pedagógicas”: pequenos
textos, construídos a partir de lições do cotidiano, cuja concepção e estilo teve origem
no Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Continuada (GEPEMC), coordenado por
Guilherme Val Toledo Prado, na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de
Campinas, na cidade de Campinas, em São Paulo, Brasil.
Na definição de Geraldi (2014) as narrativas produzidas por professores e
professoras constituem um “gênero próprio de expressar os saberes docentes do
trabalho”. (p.10). Este gênero de escrita se assemelha a pequenas crônicas sobre o
cotidiano escolar. Algumas trazem situações cômicas, outras inusitadas, outras ainda
relavam dramas ou acontecimentos que, a princípio, não foram fáceis de lidar. Mas
todas, inevitavelmente, trazem uma lição, resultaram em um aprendizado, se
constituíram como um dispositivo formativo.

sumário 97
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Destacamos que houve necessidade de ampliação dos estudos acerca de


narrativas enquanto metodologia. Isso exigiu que nos debruçássemos sobre cada texto,
no sentido de perceber o que era relevante a ser compartilhado. Não foi simples abrir
mão de certas partes do texto que havia sido escrito. Para isso, foi fundamental o debate
com o grupo e o olhar de cada um sobre o texto.
A dinâmica de trabalho necessita a criação de condições para a produção de
texto dos professores. Tudo começa pela decisão de aceitar o desafio de escrever.
Depois, de viver um processo de colaboração grupal, no qual colegas estabelecem
acordos sobre como, quando e onde se encontrarão para viver o processo de escrita e
revisão textual.
Em nosso caso, os encontros ocorreram no espaço da Faculdade de Formação de
Professores, às quintas-feiras, de 9h as 12h. Neste dia, sentados/as em roda, líamos os
textos e fazíamos ponderações sobre os sentidos que cada um tecia sobre os escritos. A
partir das observações, os/as autores/as retornavam a seus textos a fim de reelaborar,
reescrever, reeditar.

Fig.2: Lendo e comentando as pipocas pedagógica Fig.3: Reescrevendo a pipoca com a contribuição
A cada texto lido emergiam inúmeras
no grupo. questões
do grupo.provocando novas reflexões
acerca: da formação docente; da participação de crianças nos processos escolares; das
muitas linguagens presentes na escola; da importância dos pequenos gestos nas relações
entre os sujeitos na escola; dos efeitos das desigualdades sociais que atravessam o
cotidiano escolar; da importância do registro, da discussão entre pares como experiência
formativa, entre tantas outras. Questões que nos convidavam a ir ao encontro de uma
epistemologia da prática.

sumário 98
VII Seminário Vozes da Educação

Nesses encontros algumas perguntas eram recorrentes. Uma delas era: este texto
é uma narrativa pedagógica? Tal questão se dava pela presença ainda muito forte de
marcas de textos acadêmicos mais tradicionais. Fugir do modelo que aprendemos a
valorizar na academia em direção a narrativa mais pessoal, era uma meta.
Neste sentido, foi uma aprendizagem para todo o grupo identificar uma
experiência pedagógica que pudesse ser escrita sob forma de relato. Isso supõe refazer,
pela memória, o caminho do vivido, os rastros da experiência, para reconstruí-las de
modo mais reflexivo. Um dos desafios que se vive na escrita do relato é conseguir
eleger aspectos relevantes a fim de conseguir produzir um texto que dialogue com seu
leitor – em geral, outro docente.
Uma questão importante que destacamos no processo de escrita de narrativas
docentes é pensar: que lições a experiência relatada, revela? Que aprendemos com a
narrativa lida ou ouvida? Aqui alguns exemplos que encontramos nos próprios relatos:

Muitas vezes, as exigências de um currículo engessado ou as burocracias


cotidianas, dificultam a construção de um olhar e de uma escuta sensível. Daí
a importância de promover situações em que as crianças possam participar das
decisões e expressar seus sentimentos posicionando-se frente às questões do
mundo (Narrativa de Amanda Pestana).

Diante dessa experiência, percebi o quanto é necessário observamos


criticamente pequenos fatos do cotidiano escolar. Situações como essa, por
exemplo, podem suscitar reflexões e questionamentos que, muitas vezes, estão
para além das fichas... (Narrativa de Isabele Ramos).

Começava ali minha paixão pela potência libertadora dos pequenos gestos
infantis que rompem com formas de viver as normas e tradições. Começava ali
meu desejo de ser professora da infância (Narrativa de Jacqueline Morais).

A correspondência: ampliando o diálogo com as narrativas peruanas

Em busca de um gênero textual que potencializasse a comunicação entre os(as)


autores(as), tendo em vista as diferenças de idiomas (português e espanhol), surgiu em
nosso coletivo¸ a proposta de escrevermos correspondências aos professores(as)
peruanos(as). Entendemos que tal opção seria uma forma afetiva e carinhosa de ampliar
o diálogo e a compreensão entre os(as) autores(as) dos dois países. Uma carta poderia
favorecer o diálogo por permitir um estilo informal, no qual perguntar, sugerir, expor o
sentido construído a partir da leitura, poderia acontecer de maneira mais leve, ao mesmo
tempo, sem perder o padrão que o próprio gênero textual apresenta.
Levamos a proposta à coordenadora do coletivo peruano

sumário 99
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Isabel
Nosotros, de nuestro coletivo, combinamos de escribir cartas como
respuestas a los maestros de Peru.
Grandes besos,
Jacqueline e Mairce
(texto do e-mail entre as coordenadoras dos coletivos).

A resposta veio de imediato, revelando a surpresa e o aceite da proposta

Jacqueline, Mairce,
muy buena idea de las cartas. Estoy tentada de proponer que nosotros
también podemos escribir cartas en lugar de fichas.
Un abrazo muy fuerte,
Isabel
(texto do e-mail entre as coordenadoras dos coletivos).

A opção pela leitura de pares a partir da produção das cartas nos possibilitou
romper com um formato acadêmico mais impessoal, que se orientava por um roteiro
para avaliar o atendimento aos quesitos combinados entre os grupos, e investia numa
relação de mais proximidade e amorosidade. A escrita das cartas, favorecia o clima de
roda de conversa, característico do compartilhamento de experiências que costumamos
vivenciar no cotidiano escolar.

Prezada Professora Hortência Villar Aquino,

Como vai? Espero que estejas muito bem!


Para mim, foi uma imensa satisfação ler a sua carta; que belo conto!
Fiquei a imaginar as cenas enquanto eu lia a história. Pelo que você diz
eles também apreciaram. Qual a área de conhecimento que você leciona?
O que a inspirou a escolher esse conto sobre o arco-íris e a planta?
Curioso que tenhas também o nome de uma flor [...].
Fiquei também interessado em saber um pouco mais sobre o que vocês
conversaram a partir do conto, que experiências foram possíveis
compartilhar [...] (Daniel de Oliveira).

O diálogo favorecido pela correspondência, agilizada pelo correio eletrônico,


trazia novos significados ao processo formativo vivido entre pares, superando desafios
colocados pela distância física, pela diferença cultural, pelo uso de dois idiomas. O
diálogo favorecido pela troca de cartas nos aproximava dos objetivos comuns: refletir
sobre a prática e investir na construção de uma pedagogia comprometida com o
rompimento de políticas colonizadoras inspiradas no projeto neoliberal.
Assim, a troca das cartas entre pares reafirmava que a escrita sobre a prática
como processo formativo é também um caminho para refletir sobre ela e produzir

sumário 100
VII Seminário Vozes da Educação

conhecimentos que transbordam a experiência vivida, como Freire nos convida a pensar
ao enfatizar que faz parte da própria natureza da prática docente a indagação, a busca,
a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se
perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador (1996, p.32).
Além de proporcionar refletir sobre as ações pedagógicas e transformar nossas
ações, também estreita laços, constrói relação de parceria, cumplicidade e empatia,
como podemos perceber na carta que a professora peruana, LuzSánchez, enviou à
professora brasileira, Bernadete:

Agradecida de dar lectura a su experiencia pedagógica, me hace recordar


situaciones vividas parecidas en el tiempo que voy trabajando como
maestra, su experiencia me invita a reflexionar y a no juzgar las
acciones de quienes pasan un tiempo valioso de su vida, situaciones
irremplazables que nos ayuda a crecer personal y profesionalmente (Luz
Sánchez).

Reflexões finais

Esse trabalho nos oportunizou afirmar a importância do outro nos processos


formativos, tanto o outro que fez parte das experiências narradas, quanto o outro que
esteve presente nas leituras entre pares. Tivemos oportunidade de tomar conhecimento
de diversas ações pedagógicas em diferentes níveis e modalidades de ensino, com seus
desafios e potencialidades.
A metodologia da leitura entre pares a partir de coletivos docentes pode
contribuir para os processos de ensino e aprendizagem desde a Escola Básica até a
Universidade, por trazer possibilidades de reflexão, discussão e ampliação dos saberes,
pois,

a educação é, necessariamente, um empreendimento coletivo. Para educar


– e para ser educado – é necessário que haja ao menos duas
singularidades em contato. Educação é encontro de singularidades. Se
quisermos falar espinhosamente, há os bons encontros, que aumentam
minha potência de pensar e agir – o que o filósofo chama de alegria – e há
os maus encontros, que diminuem minha potência de pensar e agir – o
que ele chama de tristeza. A educação pode promover encontros alegres e
encontros tristes, mas sempre encontros (GALLO, 2008, p. 01).

Assim, além da escola, esses “encontros alegres” podem se expandir para outros
territórios que se interessam pela educação com vias à emancipação, e também para
outras esferas.

sumário 101
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Tais encontros trazem também à tona a possibilidade de percepção e afirmação


de potência a partir do exercício de reflexão que cada um/a tem feito acerca de suas
incursões, seus mergulhos nessas práticas. Reconhecer-se e valorizar-se como autor/a,
pesquisador/a e escritor/a pode fortalecer o ser docente, favorecendo a abertura
necessária e desejável para a circularidade dos saberes, seja na escola e no mundo, via
intercâmbios.
Finalizamos este texto com a certeza de que os acontecimentos escolares
considerados comuns são importantíssimos. Há que dar espaços de visibilidade,
registrá-los e pensar sobre eles.

Fig. 4: Lendo a correspondência peruana.

Referências Fig.5: Nossos textos, nossas vozes.

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professores. 1.ed. Campinas: Librum Editora, 2013, p. 125-140.

SUARÉZ, Daniel. Conversas sobre formação de professores, práticas e


currículos.Revista Teias,v. 18, n. 50, (Jul/Set), Rio de Janeiro, 2017.

sumário 103
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

MONITORIA EM EDUCAÇÃO PARA A PAZ

Tania Maria Cordeiro de Azevedo


UFF
tcordeiro@id.uff.br

O projeto de monitoria denominado “Fundamentos da Educação para a paz” faz


parte da Pró-Reitoria de Graduação-PROGRAD/Divisão de Monitoria-DMO, da
Universidade Federal Fluminense, (UFF). É vinculado ao Departamento de Educação
Física, através da disciplina eletiva, “Corporeidades e Cultura de paz”, que é oferecida
por esse Departamento a alunos e alunas de todos os cursos de graduação, da UFF. O
referido Programa visa o estímulo e a capacitação à docência em nível superior.
Portanto, projetos de monitoria estão estreitamente vinculados à formação de futuros/as
professores/as.
A disciplina eletiva ‘Corporeidades e Cultura de paz” foi criada em 2008 pela
profa. Dra. Tania Maria C. de Azevedo e, inicialmente, foi denominada “Corpo,
corporeidades e cultura de paz: uma abordagem transdisciplinar”. Optou-se por
simplificar seu nome por questão de espaço em documentos. Essa disciplina é teórica e
prática e tem duas horas de duração, em cada dia, uma vez por semana. Tem apoio,
principalmente, nos princípios propagados pela Universidade Internacional da paz
(UNIPAZ), que em termos básicos são: desenvolver a sensação de paz, ter relações
pacíficas com os outros e com o meio ambiente. E ainda, cuidar de si, cuidar dos outros
e do meio ambiente. (Vale lembrar que somos meio ambiente, separamos os temas,
apenas, para melhor nos comunicarmos).
Segundo Boff:

Existem duas maneiras de vivenciarmos o mundo: o modo-de-ser-cuidado e o


modo de-ser-trabalho. No primeiro, a relação deixa de ser sujeito-objeto.
Passa a ser sujeito-sujeito; abandona-se a maneira utilitarista de se relacionar
com as pessoas e com a natureza.
[...] cuidar das coisas implica ter intimidade, senti-las dentro, acolhê-las, dar-
lhes sossego e repouso. Cuidar é entrar em sintonia com, auscultar-lhes o
ritmo, afinar-se com ele. A razão analítico-instrumental abre caminho para a
razão cordial, o esprit de finesse, o espírito de delicadeza, o sentimento
profundo. A centralidade não é mais ocupada pelo Logos, razão, mas, pelo
pathos, sentimento. É preciso abandonar o existir pelo co-existir com todos
os outros seres. A relação não é de domínio sobre, mas, de con-vivência. Não
é pura intervenção, mas, inter-ação e comunhão. O modo-de-ser– trabalho

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VII Seminário Vozes da Educação

tem a ideologia latente da dominação, da conquista do outro, do mundo, da


natureza, na forma do submetimento puro e simples. Esse modo de ser mata a
ternura, liquida o cuidado e fere a essência humana” (BOFF, 1999, p. 8).

Pierre Weil foi o primeiro Reitor da UNIPAZ, ganhou o Nobel da paz da


UNESCO de Paris no ano 2000 e foi indicado ao Nobel da paz em 2002, pelo seu
trabalho pela Educação e Cultura de paz. Ele afirma que:

A educação para a paz é um processo que tem base nos métodos ativos de
ensino–aprendizagem, (os alunos são coparticipantes do processo), concebe a
pessoa como um todo, mantendo ou estabelecendo a harmonia entre
sentimento, razão e intuição. Entre suas “metas, estão a saúde do corpo, o
equilíbrio mente e coração e o despertar de valores humanos. [...] o
cumprimento desses objetivos é requisito básico para o desenvolvimento da
capacidade de administrar conflitos, através de uma abordagem não-violenta.
(WEIL, 2004, p. 15).

Essa perspectiva inclui ações nos campos político, econômico e outros.


Pode-se acrescentar que a educação para a paz tem como meta,
fundamentalmente:

[...] promover a cultura de paz, que é conjunto de valores, atitudes, tradições,


comportamentos e estilos de vida que são, essencialmente, de jurisdição
interna dos Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e o
Direito Internacional, baseados:
a) no respeito à vida, no fim da violência e na promoção e na prática da não-
violência, por meio da educação, do diálogo e da cooperação;
b) no pleno respeito aos princípios de soberania, integridade territorial e
independência política dos Estados e de não ingerência nos assuntos;
c) no pleno respeito e na promoção de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais;
d) no compromisso com a solução pacífica dos conflitos;
e) nos esforços para satisfazer as necessidades de desenvolvimento e
proteção do meio ambiente para as gerações presentes e futuras;
f) no respeito e na promoção do direito ao desenvolvimento;
g) no respeito e no fomento à igualdade de direitos e oportunidades de
mulheres e homens; h) no respeito e no fomento ao direito de todas as
pessoas à liberdade de expressão, opinião e informação;
i) na adesão aos princípios de liberdade, justiça, democracia, tolerância,
solidariedade, cooperação, pluralismo, diversidade cultural, diálogo e
entendimento, em todos os níveis da sociedade e entre as nações. (Programa
de Ação sobre uma Cultura de Paz, ONU, apud AZEVEDO, 2008, p .15).

Essa disciplina objetiva dar subsídios para que alunos/as possam “construir”
suas corporeidades (tudo o que o corpo demonstra: maneira de andar, de se movimentar,
de falar e até a maneira de pensar), dentro dos princípios acima referidos.
Sabe-se que corporeidades são formadas, diferentemente, de acordo com sexos,
gêneros, faixa etária, contextos e classes sociais, épocas, etnias etc. Por exemplo, uma

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

das observações feitas, em 2016, pelo aluno monitor, durante a parte prática das aulas,
foi a de que alunos do sexo masculino andavam com os braços semiflexionados e bem
junto ao corpo e as alunas andavam com os braços relaxados, soltos e tinham maior
amplitude de movimentos de membros superiores do que seus colegas de sexo/gênero
masculino. No entanto, observou-se também, nessas aulas, que dois alunos do sexo
masculino, de intercâmbio, franceses, não movimentavam seus braços como os alunos
brasileiros do mesmo sexo deles, isto é, apresentavam seus braços relaxados e com
maior amplitude de movimento do que seus colegas brasileiros. Para além de questões
relacionadas a sexo/gênero, a etnia e o meio social foram fatores que influenciaram
cabalmente a corporeidade desses alunos.
Weil expõe que a UNESCO está executando a decisão das Nações Unidas
(ONU) de transformar a cultura de guerra e violência em cultura de paz e não-violência.
E destaca a assertiva da UNESCO, segundo a qual, “se as guerras nascem
primeiramente no espírito/mente dos homens, a paz também lá nascerá” (WEIL, 2004).
Visando uma cultura de paz, esse autor propõe três ecologias: a ecologia pessoal, a
ecologia social e a ecologia ambiental.
Em relação à ecologia pessoal, o autor destaca o controle de emoções e o
desenvolvimento da sensação de paz, para que se possa favorecer a saúde e ter relações
pacíficas com os outros. Para isso, recomenda meditação, relaxamento e a prática de
Yoga ou Tai Chi, dentre outras. “A verdadeira paz de espírito se encontra no espaço
entre dois pensamentos [...]. É esse espaço que a prática da meditação lhe ajudará a
descobrir de modo vivenciado” (WEIL, 2017).
Sobre a ecologia social, o referido autor recomenda, por exemplo, só procurar
alguém para se resolver conflitos, quando as emoções se acalmarem. Recomenda
também lembrar de coisas boas que a pessoa fez, antes de conversarmos com ela.
Ratifica ainda que somente desenvolvendo a sensação de paz, pode-se ter relações
pacíficas com os outros.
No entanto, pode-se fazer mais, na perspectiva da ecologia social. O referido
autor propõe que:

[...] se ao assistir a filmes de terror você percebe que isso o torna


pessoalmente tenso e tira sua paz interior, você pode parar de assistir a filmes
desse tipo. Se além disso, você tomar conhecimento das pesquisas da
UNESCO sobre a influência destrutiva dos programas violentos na TV sobre
as crianças, você pode decidir aderir a um movimento para reduzir esses
programas ou mesmo procurar um deputado da sua região e pedir para ele

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VII Seminário Vozes da Educação

apresentar um projeto de lei nesse sentido. Tudo isso pode ser feito de modo
calmo e harmonioso, isto é, sem perder a paz pessoal (WEIL, 2017, p. 17).

A ecologia ambiental critica o modo exploratório e ganancioso como, em geral,


se trata a natureza. Uma das provas disso são as queimadas que persistem em nossas
florestas. Weil chama a atenção para a ilusão de separatividade que nós, seres humanos,
temos em relação a tudo que existe. Segundo a física quântica, tudo o que existe está
interligado. Então, a natureza não está separada de nós.

Na realidade, essa divisão é ilusória, pois a ciência nos ensina que tanto o ser
humano, como também todos os objetos e o mundo em redor, são
constituídos de energia, e da mesma energia. Assim, nada é separado, nesse
nível de compreensão, da verdadeira natureza das coisas (WEIL, 2017, p.
10).

Segundo esse autor, a Ilusão de separatividade é a causa de todos os problemas, pois,

nos apegamos a tudo que nos dá prazer, repudiamos o que nos causa dor e
ficamos indiferentes ao que não nos causa prazer e nem dor. Essa é a raiz da
raiva, da possessividade e indiferença. Por exemplo: [...] a possessividade dos
madeireiros e seu apego ao lucro sem fim causam a devastação de nossas
florestas tropicais (WEIL, 2017. p. 11).

Observando-se a vida cotidiana, constata-se que o estresse e a agressividade são


elementos constantes que prejudicam a saúde dos indivíduos. E muitos alunos e alunas
relatam sentirem tensão e ansiedade, devido, também, às exigências do mundo
acadêmico.
Sendo assim e levando-se em conta a ecologia pessoal acima referida, durante a
parte prática das aulas, objetiva-se o desenvolvimento da sensação de paz interior,
melhoria da consciência de si/ corporal, da condição física e da auto-estima, enfim, uma
melhor qualidade de vida. Com essa finalidade são feitos, pelos alunos e alunas
exercícios de conscientização corporal, localização de pontos de Acupuntura e técnicas
de Yoga como: posições físicas, exercícios respiratórios, meditação e relaxamento. A
parte prática das aulas proporciona também maior integração de alunos/as de vários
cursos de graduação da universidade, que é um dos objetivos das disciplinas eletivas do
Departamento de Educação Física.
Alunos e alunas, que participaram das aulas, relataram na avaliação da
disciplina, em vários semestres, que sentiram diminuição da tensão muscular, do
estresse e da ansiedade, obtiveram melhoria na qualidade do sono e que conseguiram

sumário 107
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

prestar atenção por mais tempo, durante as aulas de outras disciplinas. Alunos/as
afirmaram também que a relação com outras pessoas apresentou melhoria quanto à
irritabilidade e paciência, principalmente em relação a seus familiares. Alguns/mas
relataram, ainda, terem maior criatividade em seus trabalhos acadêmicos.
Alunos/as só podem atuar como monitores/as, após terem cursado a disciplina
‘Corporeidades e Cultura de paz”. Assim, podem auxiliar durante a parte prática das
aulas, ensinando, juntamente, com a professora, a execução de técnicas, como as
posições do Yoga, exercícios respiratórios e outras técnicas. Auxiliam também na
localização de pontos de acupuntura, para serem pressionados com os dedos (DO-IN),
visando o alívio de dores e diminuição de tensões musculares (LIAN; CHEN;
HAMMES, KOLSTER, 2011).
O/as Monitores/as tomam conhecimento de métodos e técnicas de ensino,
aprendem a fazer, planos de aula, planos de curso, sobre formas de avaliação, bem
como tomam conhecimento da importância da progressão pedagógica, no processo
ensino-aprendizagem. E em relação à parte teórica da disciplina, os/as monitores/as
ajudam a selecionar textos e filmes, conversam com a professora orientadora sobre seus
conteúdos para esclarecimento de dúvidas, fazem cópias dos textos em papel, montam
os aparelhos para alunos/as assistirem a filmes e os auxiliam na compreensão de textos,
em horários extraclasses; participam também da construção de material didático sobre
os conteúdos práticos e teóricos das aulas.
Além de textos de Weil, sobre Educação e Cultura de paz, também são lidos e
debatidos em aula estudos como o de Emoto, que faz a seguinte experiência: expõe a
água à vibração de palavras e, quando essas são positivas, produzem cristais de água,
lindos e harmoniosos. Quando a vibração é de uma de palavra negativa, os cristais se
apresentam deformados e desarmônicos. Por exemplo, as expressões eu consigo e eu
não consigo ou as palavras amor e ódio. Esse autor chama atenção para o fato de que
somos formados por 70% de água e que, por isso, deve-se prestar atenção às palavras,
pensamentos, emoções e sentimentos, no sentido de contribuirmos com a nossa saúde.
Expõe também a deformação que cristais de água, belos e harmônicos, sofrem com
irradiações de forno e de celular que emitem microondas, televisores, computadores e
outros. Destaca ainda que o cristal que mais resistiu a essas irradiações foi o formado
com a vibração do amor e da gratidão. Assim, o acima referido autor enfatiza a
importância de se desenvolver esses sentimentos para a manutenção da saúde (EMOTO,
2008).

sumário 108
VII Seminário Vozes da Educação

Trabalhamos também com o estudo do médico Daniel Goleman que, na década


de setenta, comprovou os efeitos benéficos da meditação e do relaxamento para a saúde,
em sua tese de doutoramento (PHD), em Harvard, EUA. Esse autor comprova que a
incidência de “ansiedade e de distúrbios psicossomáticos” é bem menor em meditantes.
Comprova ainda que “a prática regular de meditação diminui a frequência de resfriados
e dores de cabeça e reduz a gravidade da hipertensão” (GOLEMAN, 2018). Tanto
técnicas de meditação quanto de relaxamento aumentam os anticorpos e contribuem
para a diminuição da pressão sanguínea. Por exemplo,

[...] idosos internos de um asilo que faziam exercícios de relaxamento


mostraram um grande reforço de suas defesas imunológicas contra tumores e
vírus. Estudantes de medicina que usaram técnicas para combater o estresse,
que surge em época de provas, revelaram níveis maiores de células auxiliares
que protegem contra doenças infecciosas. Essas descobertas explicam porque
a meditação, aumenta a resistência a gripes e resfriados”.
[...] informaram que a meditação diminuía a resposta do corpo à
norepinefrina, um hormônio que o organismo libera em reação ao estresse.
Apesar de a norepinefrina normalmente estimular o sistema cardiovascular,
aumentando a pressão sanguínea, ela não produziu o mesmo efeito em
pessoas que costumavam meditar. Em vez disso, a pressão sanguínea
diminuiu. Essa reação é igual a dos betabloqueadores receitados para
controlar a pressão (GOLEMAN, 2018, p. 40-41).

O mais interessante é que, segundo o referido autor, os efeitos benéficos


persistiram, quando deixaram de praticar meditação, mesmo depois de passados quatro
anos. Mas,

os benefícios para pacientes com problemas cardíacos vão além do controle


da pressão sanguínea. Revelou-se que o relaxamento ajuda a aliviar as dores
da angina e a arritmia e baixa os níveis de colesterol no sangue. [...] aumenta
o fluxo de sangue para o coração, diminuindo o perigo de uma isquemia.
Estudos comprovam que a meditação melhorou a regulagem de glicose em
pacientes com diabetes adquiridas na fase adulta e melhorou o fluxo de ar em
vias respiratórias obstruídas de asmáticos. Além de ser utilizado como
coadjuvante na psicoterapia, o relaxamento também é promissor no combate
aos efeitos colaterais da hemodiálise, da quimioterapia, das desordens
gastrointestinais, da insônia, do enfisema e de doenças de pele”.
(GOLEMAN, 2018. p. 42-43).

Tendo em vista que a Ilusão de separatividade, segundo Weil, seria a causa de


muitos problemas, na parte teórica das aulas, são utilizados textos introdutórios de
Física quântica e, mais frequentemente, livros de Laszlo, filósofo e cientista que há mais
de trinta anos desenvolve estudos nesse campo de conhecimento.
Esse autor afirma que:

sumário 109
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O organismo vivo apresenta extraordinária coerência, [pois,] todas as suas


partes estão multidimensionalmente conectadas com todas as outras partes de
maneira dinâmica e quase instantânea. O que acontece com uma célula ou
órgão também acontece de alguma maneira, com todas as outras células e
órgãos. O organismo também é coerente com o mundo ao seu redor: o que
acontece no ambiente externo ao organismo é refletido de várias maneiras em
seu ambiente interno (LASZLO, 2008, p. 49).

O autor acima referido afirma também que:

[...] as interações entre as coisas no mundo físico são mediadas pela energia,
e que esta pode adotar muitas formas - cinética, térmica, gravitacional,
elétrica, magnética, nuclear e efetiva ou potencial - mas em todas as suas
formas a energia produz algum efeito, de uma coisa para outra, de um lugar e
um tempo para outro lugar e outro tempo [...]. Mas, esta energia, precisa ser
transportada por alguma coisa. Ela atua no Vácuo quântico que é um plenum
cósmico ativo e fisicamente real que transporta luz, gravitação e energia em
suas várias formas, bem como, transporta a informação; mas, exatamente, a
in-formação. (LASZLO, 2008, p. 73-82).

E é esta “in-formação” que interliga todas as coisas.


O autor explica que “in-formação” nada tem a ver com “informação” em
qualquer de suas definições científicas ou cotidianas e também não é o conhecimento
recebido a respeito de um fato ou evento.

A in-formação é uma conexão sutil, quase instantânea, não-evanescente e não


energética entre coisas em diferentes locais do espaço e eventos em
diferentes instantes do tempo. Tais conexões são denominadas “não-locais”
nas ciências naturais e “transpessoais” nas pesquisas sobre a consciência. A
in-formação liga coisas (partículas, átomos, moléculas, organismos,
ecologias, sistemas solares, galáxias inteiras, assim como a mente e a
consciência associadas com algumas dessas coisas) independentemente de
quão longe elas estejam umas das outras e de quanto tempo se passou desde
que se criaram conexões entre elas (LASZLO, 2008, p. 73-74).

Laszlo afirma também que é a partir do ‘Vácuo ou Vazio quântico’ que tudo que
existe é criado, materializado:

Ele é campo original de onde emergiram as partículas e átomos, as estrelas e


planetas, os corpos humanos e animais, e todas as coisas que podem ser
vistas e tocadas. É um meio dinâmico, repleto de energia em flutuações
incessantes. [...]. Essas coisas não apenas se originaram no mar de energia do
vácuo, elas interagem continuamente com ele. Elas são entidades dinâmicas
que lêem seus traços no Campo A [campo de in-formação] do vácuo e por
intermédio desse campo interagem umas com as outras (LASZLO, 2008, p.
81-120, grifo meu).

É interessante observar que esses conceitos estão de acordo com a sabedoria


antiga de culturas como, por exemplo, a indiana, através do conceito de Akasha:

sumário 110
VII Seminário Vozes da Educação

[...] o universo é composto de 2 materiais, um dos quais se chama Akasha.


Ele é a existência que tudo penetra e permeia. Todas as coisas que têm forma
evoluíram de Akasha [...]. Ele não pode ser percebido; é tão sutil que está
além de toda percepção ordinária; ele só pode ser visto quando se tornou
espesso, quando tomou forma [e é chamado Prana]. No princípio da criação,
há somente Akasha. No final do ciclo, o sólido, os líquidos e os gases
fundem-se todos novamente em Akasha e a criação seguinte procede de
maneira semelhante [...]. (VIVEKANANDA apud LASZLO, 2008, p. 81).

E também encontra similaridade com a sabedoria dos antigos chineses, pois,


segundo Souza, em sua tese de doutoramento em Saúde Pública na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ),

Consta no livro Dào Dé Jing que foi compilado por Wang BI (226-249),
pertencente à elite intelectual da Disnastia Hàn, que o Dào, ‘Caminho’,
apresenta dois aspectos principais: um é transcendente e outro imanente. O
primeiro dá origem ao mundo manifesto. É o não ser, o prolífico vazio
primordial (Wú JI), infinito, incalculável e que dá origem a todas as formas, à
manifestação, assumindo assim, seu segundo aspecto, permanente e
imanente, presente em toda a criação, como sustentador do mundo. (SOUZA,
2008, p. 71-72, grifo meu).

O mais significativo para alcançarmos um mundo melhor é a “mudança da


separação para a totalidade-um reconhecimento revigorado da totalidade e da
interconexidade de todos os aspectos da vida e da realidade” conclui (LASZLO, 2011).
Tendo em vista o Artigo 1° da Declaração e do Programa de Ação sobre uma Cultura de
Paz, da ONU, de 13 de setembro de 1999, anteriormente citada, principalmente, em
seus itens referentes ao

respeito e ao fomento à igualdade de direitos e oportunidades de mulheres e


homens [...] e na adesão aos princípios de liberdade, justiça, democracia,
tolerância, solidariedade, cooperação, pluralismo, diversidade cultural,
diálogo e entendimento, em todos os níveis da sociedade [...]. (Organização
da Nações Unidas apud AZEVEDO, 2008, p. 15).

Durante as aulas alunos/as, monitor e professora sentam em círculo, pois, é a


disposição espacial em que os/as participantes ocupam posições igualitárias e são
trazidos também para debate assuntos ligados a representações sociais limitadoras do
pleno desenvolvimento dos indivíduos e de suas ações, relacionadas a gênero,
sexualidade, etnias, enfim, à diversidade cultural. Esses debates visam à desconstrução
daquelas representações sociais e ao respeito às diferenças e têm apoio, notadamente,
em (LOURO, 1997; 2001).

sumário 111
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A disciplina eletiva Corporeidade e Cultura de Paz contou com monitores nos


anos de 2016 e de 2018. Por questões de critérios internos do Departamento de
Educação Física e do número reduzido de bolsas, em relação ao número de projetos de
monitoria, destinadas aos departamentos da UFF, não se pode contar com monitores/as
todos os anos. Os dois alunos que atuaram como monitores dessa disciplina são
oriundos do curso de Arquitetura e Urbanismo. Não houve alunos do curso de
Licenciatura em Educação Física inscritos no processo seletivo para monitoria dessa
disciplina, naqueles anos. Ambos os alunos selecionados para exercer monitoria
declararam que não entraram na universidade pensando em dar aulas, mas, que haveria
essa possibilidade. O monitor atuante no ano de 2016 declarou, via email, que nesse ano
de 2019 fará prova para o mestrado e que posteriormente fará o doutorado. Mostrando-
se, dessa maneira, motivado a exercer a docência. O monitor do ano de 2018, embora
esteja ainda iniciando seu curso de graduação, mostrou-se aberto à possibilidade de dar
aulas, segundo seu relato de monitoria. Considera-se que alunos e alunas provenientes
de cursos de bacharelado são bastante beneficiados por atuação em projetos de
monitoria, se quiserem dar aulas no futuro, pois, não contam com disciplinas
pedagógicas, como Didática, por exemplo. Ambos os monitores declararam que os
conteúdos e sua atuação nas aulas abriram sua visão também para a confecção de
projetos de Arquitetura em que o entorno das construções são levados em conta, no
sentido da preservação do meio ambiente.
Para finalizar, parte do Relato de Monitoria feito pelo monitor do ano de 2018
será abaixo reproduzido, em que ele destaca o reconhecimento de que representações
sociais podem ser preconceituosas e discriminatórias, que relações pessoais podem ser
mais humanizadas, que o meio ambiente deve ser preservado e que há possibilidade de
exercício de docência no futuro. O referido monitor se refere, em seu relato de
monitoria, (não publicado) aos

[...] estudos em Teoria quântica, que provam que há conexão entre todas as
coisas existentes, [...]. Sendo assim, a preservação do meio ambiente é
extremamente, importante, para a nossa saúde e para a manutenção da Vida.
São estabelecidos diálogos sobre conteúdos e sobre ações cotidianas que
podem contribuir para minimizar a degradação ambiental. [...]. No âmbito da
corporeidade, que em termos gerais, é a forma do sujeito ser e de se expressar
no mundo e que sofre influência de faixas etárias, etnias, gênero,
sexualidades, classes sociais etc. são feitas “discussões”, sempre de maneira
respeitosa, observando-se as diferenças e analisando possíveis elementos
histórico-sociais para sua construção. Pode-se então, perceber o poder que
crenças e representações sociais têm de tornar atos discriminatórios em atos
comuns/banais. Esse projeto contribui, para a minha formação como

sumário 112
VII Seminário Vozes da Educação

Arquiteto e Urbanista, pois ele promove uma visão de mundo diferente da


convencional, me permitindo analisar de maneira integral e humana as
relações entre os indivíduos e destes, com o entorno. O projeto, também,
favorece a uma possível carreira acadêmica, pois, me proporciona contato
com planejamento- plano de curso e de aulas, escolha e organização de
conteúdos, formas de avaliação- dentre outros.

Espera-se que esse projeto de monitoria possa contribuir positivamente com


monitores/as, não só em termos de formação de professores, o que é muito importante,
mas também em relação aos aspectos profissionais de sua área específica e ainda em
termos pessoais, nos relacionamentos com sua família, e amigos e em diversos
contextos sociais.

Referências
ONU. Assembléia Geral das Nações Unidas. Declaração e Programa de Ação sobre
uma Cultura de Paz: Artigo 1°, 1999. In: AZEVEDO, Tania Maria Cordeiro de. O
projeto Tô na Paz com Basquete para todos. Revista Interagir: pensando a
extensão:revistadaUniversidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ, Rio de Janeiro, n.
13, p. 11-18, jan./dez. 2008.

AZEVEDO, Tania Maria Cordeiro de. O projeto Tô na Paz com Basquete para todos.
Revista Interagir: pensando a extensão:revistadaUniversidade do Estado do Rio de
Janeiro-UERJ, Rio de Janeiro, n.13, p.11-18, jan/dez. 2008.

BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela Terra. Petrópolis:
Vozes Ltda., 1999, 108 p.

EMOTO, Masaru. O milagre da água. São Paulo: Cultrix, 2008. 126 p.

GOLEMAN, Daniel. A arte da meditação: aprenda a tranquilizar a mente, relaxar o


corpo e desenvolver o poder da concentração. Rio de Janeiro: Sextante, 2018. 110 p.
(Inclui CD com quatro técnicas de meditação).

LASZLO, Ervin. A Ciência e o Campo Akáshico: uma teoria integral de tudo. São
Paulo: Editora Cultrix, 2008.

LASZLO, Ervin. O ponto do caos: contagem regressiva para evitar o colapso global e
promover a renovação do mundo. São Paulo: Editora Cultrix, 2011. 216 p.

LIAN, Yu-Lin; CHEN, Chun-Yan; HAMMES, Michael; KOLSTER, Bernard C. Atlas


Gráfico de acupuntura: manual ilustrado de pontos de acupuntura. Verlagen: H. F.
Ullmann, 2011. 351 p.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-


estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. 179 p.

sumário 113
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

LOURO, Guacira Lopes. O Corpo educado: Pedagogias da sexualidade. Belo


Horizonte: Autêntica, 2001. 174 p.

SOUZA, Eduardo Frederico A. Amaral de. Nutrindo a vitalidade: questões


contemporâneas sobre a racionalidade médica chinesa e seu desenvolvimento histórico
social. Rio de Janeiro: UERJ, 2008. Tese apresentada à Universidade do Estado do Rio
de Janeiro-UERJ, 2008. Disponível em: http:bases.bireme.br. Acesso em: 25 fev. 2012.

UNIPAZ. Disponível em: www.unipaz.org.br. Acesso em 23 set. 2019.

WEIL, Pierre. A arte de viver em paz: por uma nova consciência e educação. São
Paulo: Editora Gente/UNESCO, 2004. 173 p.

WEIL, Pierre. A arte de viver a vida. Petrópolis: Vozes, 2017.

sumário 114
VII Seminário Vozes da Educação

RODAS DE CONVERSAS, NARRATIVAS INFANTIS E EXPERIÊNCIAS


FORMATIVAS: ESTÁGIOS SUPERVISIONADOS COMO CAMPOS DE
PESQUISA

Maria Luisa Furlin Bampi


Faculdade SENAI Rio – UERJ/FFP
luisa.bampi@uol.com.br

Virginia Georg Schindhelm


UFF/INFES –
psicovir@terra.com.br

Introdução
O objeto deste texto nasce das inquietações vividas em um locus instigante de
atividade do estágio supervisionado e compreende as narrativas escritas, lidas e
refletidas em rodas de conversas, que juntas colocam em movimento uma série de
questões como: O que as crianças nos falam sobre a escola? O brincar é considerado
como eixo norteador das práticas pedagógicas com os pequenos? Seria o estágio um
campo de investigação no processo formativo?
Nossa proposta busca enlaçar a experiência de alunos/estagiários na Educação
Infantil com a experiência das brincadeiras infantis considerando que, tanto as
narrativas dos nossos alunos quanto as vivências lúdicas das crianças, configuram-se
como linguagens singulares e subjetivas em suas especificidades.
Referente a proposta metodológica de pesquisas biográficas com crianças,
Passeggui (2016) faz uma reflexão sobre noções terminológicas de uma pesquisa
(auto)biográfica com crianças afirmando a legitimidade de suas palavras como um ser
capaz de narrar e refletir sobre as próprias experiências e como um sujeito de direitos. A
autora sinaliza ainda que escrever pesquisa (auto)biográfica como práticas evidenciam a
natureza fundante e possibilitam a reinvenção de si: “O (auto) entre parênteses para dar
conta, sinalizar o deslizamento disciplinar em Literatura, que pode dar a entender uma
biografia enquanto gênero literário, ou a campos da sociologia e a Educação, para o
binômio narrativa de si e Educativa”. (PASSEGGI, 2016, p.51).
Narrar a própria vida/experiência transforma a narradora numa pesquisadora em
formação assim como também desenvolve paralelamente a formação em pesquisa.
Além disso, (PASSEGGI 2016) coloca em questão outras evidências que chama de

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

heterobiografização, que compreende a leitura ou a escrita de uma narrativa como essa


exige da parte do leitor ou ouvinte, um duplo trabalho: o de interpretação e o de
retextualização, porque põe em jogo a empatia pela história do outro.
Heterobiografização “praticamos quando nos confrontamos com a narrativa de outrem”.
(PASSEGGI 2016, p.55 apud DELORY- MOMBERGER, 2014, p58).
A proposta de estreia de ação para o estágio supervisionado é a de observação.
Desse modo, iniciamos trabalhando o olhar. Qual o significado da observação?
Da palavra observ(ação) subentende-se uma ação sobre o observar. A inserção
inicial no estágio faz-se no cotidiano da escola, sendo a via que consolida a inter-relação
teoria e prática. Ampliando um pouco mais nossa análise da ação sobre o “olhar” é
importante destacar que se refere àquele que observa e ao que se sente observado. Desse
modo, aquele que observa provoca algo também no que é observado, trata-se de uma
via de mão dupla.
Fazemos referência à etapa de estágio como um período de muita ação de todos
envolvidos nessa experiência, crianças, os docentes, os estagiários e toda a comunidade
educativa. Desse modo evidencia-se uma construção de sentidos coletiva, não apenas
dos que observam, mas também dos que são observados, ou seja, de todos que estão em
ação.
Esse momento/processo merece atenção. Durante o período de desenvolvimento
das nossas atividades foi sugerida a leitura do prefácio do livro Culturas infantis em
creches e pré-escolas Silva, (2011), cujo objetivo nos incita a pensar o campo de
estágio como uma oportunidade de “educar o olhar”. Sim porque o olhar nos remete aos
múltiplos sentidos dados ao que o olhar captura. Pode-se olhar e não ver nada, ou se
perder em um olhar vazio descrevendo fatos de forma objetiva, conforme Benjamin
(1986) quando o vivido se restringe à mera vivência individual (Erlebnis), cujo
significado dessa se faz em um cotidiano sem vida. Segundo, Gurgel, (2014, p.868), o
vazio dessa vivência individual é engendrado por uma ação que se limita a si própria;
a qual não faz outra coisa senão repetir a história e reificar a ordem. Ela tende, na
verdade, ao apagamento da experiência que a precedeu.
Apoiamo-nos nos postulados de Benjamin (1989) sobre a diferença entre uma
vivência (Erlebnis)e uma experiência (Erfahrung) quando se contrapõe ao conformismo
e à indiferença, mas enaltece tudo aquilo que permanece. Para o autor avivência refere-
sea uma ação/reação que se esgota no momentode suarealizaçãoe por isso éfinita,a
experiênciadizrespeito aovividoque épensado,narrado,umaaçãoqueécontadaa um

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VII Seminário Vozes da Educação

outro,compartilhadae,por isso,coletiva e infinita,comumcaráterhistórico, de


permanência, deiralémdo tempo vivido.
Diante desses fundamentos nossas rodas de conversas evidenciaram que o
olhar/experiência suscitava muitas narrativas que foram apresentadas nas leituras dos
diários de estágio. Somadas a isso, as experiências de manuseio e leituras dos cadernos
de campo: acesso à arte do registro presente pela diversidade de anotações e formas de
expressão escritas, fotográficas, desenhos e ilustrações que vão dando vida e sequência
aos cadernos é uma outra via que tende à permanência e que não se repete.
Frente a essas considerações iniciais, nesse trabalho apresentamos três eixos
para discussão: (1) a importância do estágio para a formação de professores; (2) as
intervenções que evidenciam o momento de estágio enquanto um campo de formação e
autoformação e (3) os “elementos coletados” e registrados nos cadernos de campo
relativos às brincadeiras infantis como linguagens infantis que se configuram como
material rico de pesquisa.

Registros que refletem e artes que narram: cadernos do estágio supervisionado

O caderno de campo com narrativas (auto)biográficas e as lembranças da


Educação infantil são as “caixas de presentes” que a memória se encarrega de
desembrulhar, para que possam desvelar, por meio da linguagem aquilo que a
consciência apresenta, mas está embrulhada e só o narrador tem a possibilidade de abrir,
porque desvincula o passado e o presente. Assim, as memórias da educação infantil por
meio de experiências vividas e objetos que pudessem representar foram se apresentando
pelo olhar e pelos registros das estagiárias.
Para esses pacotes de memória serem abertos torna-se necessário lançar mão da
mediação da linguagem que expressa nossas lembranças. É por meio dela que a
memória ganha forma e destaca o narrador como um sujeito da linguagem e em
construção, conforme nos ensina Dahlet (2016, p.69):

Além de dar forma, ordem e estrutura, a linguagem media o sujeito que passa
do estágio de sujeito impresso (pela memória) ao de sujeito expresso (pela
escritura da narrativa). A expressão do sujeito consiste na conversão da
memória latente e silencianda, ainda em gestação, e de um sujeito ele
também latente e silenciado, numa memória ativada e num sujeito patente
que se manifesta enquanto sujeito em construção.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O sujeito da linguagem que narra sobre si mesmo, reflete sobre os fatos vividos
em um processo constante ir e vir sobre o passado e o presente, por ser constituído nesse
tempo todo vivido, por ele e somente ele, e do qual não consegue desarticular. Essas
“lembranças” ou recordações indicam a subjetividade do sujeito que percebe o que
ninguém mais perceberia, como nos dizem nossas alunas: “Eu estava lá e não percebi
isso que você narrou/escreveu” (Roda de conversa, junho, 2019).
Vigotski (2001) faz a distinção entre o sentido e significado das palavras e pode
ilustrar a nossa narradora. Para o autor, diferente do sentido, o significado das palavras
representa a soma de todos os acontecimentos psicológicos que a mesma palavra
desperta em nossa consciência; desse modo, cada sujeito será despertado por algo
distinto, porque as palavras são o reflexo do mundo.

A consciência se reflete na palavra como o sol em uma gota de água. A


palavra está para a consciência como o pequeno mundo está para o grande
mundo, como a célula viva está para o organismo, como o átomo para o
cosmo. Ela é o pequeno mundo da consciência. A palavra consciente é o
microcosmo da consciência humana (VIGOTSKI, 2001, p.486).

Vigotski (2001), faz referência à linguagem escrita assinalando sua natureza


multifuncional, diferente do discurso oral, no discurso escrito precisamos usar mais
palavras, pois não temos o recurso do gesto, da voz, do olhar, e tantos outros que são
inerentes a constituição de cada sujeito. O discurso do outro é sempre algo pessoal.

[...] para compreendermos o discurso de outrem, não basta compreender as


suas palavras — temos que compreender o seu pensamento. Mas também isto
não basta — temos que conhecer também as suas motivações. Nenhuma
análise psicológica de uma frase proferida se encontra completa antes de se
ter atingido esse plano (VIGOTSKI, 2001, p. 505).

Na interlocução de saberes, fazeres que os cadernos/diários de campo de nossas


alunas registram e expressam, mostraram-se como ferramenta pedagógica de reflexão
sobre a prática e formas mais elaboradas de olhar e narrar. Primeiro foram descrições
mais superficiais apresentando objetivamente o que havia sido desenvolvido, com o
passar do tempo emergiram as experiências das “palavras-ouvidas e narradas” que
acolheram mais vozes, mais detalhes e maior aprofundamento e refino do “olhar”.
Somos levadas a afirmar que nossas alunas estagiárias “veem” o mundo e
percebem os cenários escolares, a partir dos seus próprios “óculos sociais”, ou melhor
explicando, a partir de estereótipos culturais geradores de conteúdos registrados

sumário 118
VII Seminário Vozes da Educação

primeiramente como vivências em suas memórias para, posteriormente, constituírem-se


como experiências que serão narradas em nossos encontros e discussões.
Por outro lado, nosso papel como professoras orientadoras de estágios, é ensinar
nossas alunas a importância de saber fazer as escolhas mais adequadas para construir
discursivamente o olhar singular e subjetivo sobre um mundo já criado ou existente.
Nesse sentido, resgatamos Larossa (2017, p. 5) quando nos ensina que a experiência e
não a verdade, é que dá sentido à escritura. Segundo o autor,

[...] escrevemos para transformar o que sabemos e não para transmitir o já


sabido. Se alguma coisa nos anima a escrever é a possibilidade de que esse
ato de escritura, essa experiência em palavras, nos permita liberar-nos de
certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outras
coisas, diferentes do que vimos sendo (LAROSSA, KOHAN, 2017).

Considerando que um estágio supervisionado se constitui como um campo de


conhecimento, implica em atribuir-lhe um estatuto epistemológico que supera sua
tradicional redução à atividade prática instrumental. Enquanto campo de
conhecimentos, o estágio se produz na interação dos cursos de formação com o
camposocial no qual se desenvolvem as práticas educativas. Nesse sentido, o estágio
poderá se constituir em atividade de pesquisa.
Entretanto, KRUG (2008) defende que um estágio deve ser concebido como
uma experiência, ou seja, como um conjunto de vivências significativas através das
quais o estagiário identifica, seleciona, destaca os conhecimentos necessários e válidos
para a atividade profissional. Larossa e Kohan (2017, p. 5) reforçam essa ideia quando
apontam que

[...] a experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à educação. Educamos


para transformar o que já sabemos, não para transmitir o já sabido. Se alguma
coisa nos anima a educar é a possibilidade de que esse ato de educação, essa
experiência em gestos, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a
deixarmos de ser o que somos, para ser outra coisa para além do que vimos
sendo.

Assim sendo, trabalhamos as experiências de nossas alunas de modo a


entenderem as práticas do estágio como elementos importantes para as suas construções
reflexivas, mostrando aspectos capazes de incitar dúvidas e fornecer pistas que
estimulem seus processos de autoria. Por sua vez, podem, também, favorecer a
construção de conhecimentos que possam entender ou até mesmo explicar práticas,

sumário 119
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

instrumentos ou mesmo as contradições próprias do nosso tempo no campo


educacional.

Roda de Conversas: o presente tecido pelos fios das memórias infantis

Lembrei que quando eu era criança mamãe dizia: acabou a hora de brincar!
Agora você tem que ir para a escola! Lembro-me que pensava: - Como
assim? E perguntava a ela: - Acabou a hora de brincar? Mas, mamãe falava: -
Não, você só para de brincar um pouquinho, depois você volta. (L. Retirado
do diário da roda de conversas, 2019.)

O final da manhã dos dias de estágio era marcado pelas narrativas de questões
ocorridas nas “vivências” ou seriam “experiências”? A questão em epígrafe evidencia o
quanto a vivência pode servir de estopim para narrar uma experiência vivida, passada e
que, no momento e no contexto atual, se faz presente.
A narrativa decorreu de um fato narrado sobre a utilização dos espaços da sala
de aula pouco explorados. As alunas/narradoras trazem as evidências de crianças
pequenas tendo suas brincadeiras monitoradas, podendo brincar somente sentadas nas
mesinhas. Não podem ir para o chão ou ocupar outros espaços da sala. Os brinquedos
não são acessíveis às crianças. Quando autorizadas as crianças podem pegar um
brinquedo, mas a brincadeira estava reservada ao brincar contido, sentados nas cadeiras
em suas mesinhas conforme observado pelas estagiárias.
Todos os dias de estágio, naturalmente nos encontrávamos no horário de
chegada, antes do horário da entrada das crianças. Nesse horário sempre “aconteciam”
fatos que merecem ser narrados. O momento de maiores trocas era no final das
atividades, quando nos reuníamos para conversar sobre as atividades e acontecimentos
do dia, que chamamos de Roda de conversas e leituras dos diários.
A roda de conversas se constitui como momento de narrar/analisar o cotidiano
do campo de estágio na educação infantil. As lembranças de experiências do passado
são o momento em que L. explica o presente. A cultura infantil capaz de transver a
realidade: - Como assim? A escola não é o lugar de brincar? Aprender e brincar não
andam juntos?
De fato, conforme Benjamin (1996) a história narrada pelo adulto não é a
experiência vivida da criança, mas, o que existe é um acontecimento narrado pelo
adulto, que hoje se interroga sobre esse descompasso entre o tempo para brincar e o

sumário 120
VII Seminário Vozes da Educação

tempo para aprender, como se ambos não fossem prazerosos e pudessem comungar dos
mesmos objetivos na vida dos pequenos.
Na narrativa de L. se apresenta uma reinterpretação do passado, colocando em
evidência as contradições que se apresentam para as crianças. Importante salientar que o
olhar da estagiária é permeado pelas categorias de análise numa perspectiva crítica
dando ênfase às contradições. O presente vivido na escola ilumina o passado, que vem
carregado de significados do que a escola significava e o que a escola no presente
significa para L. Nas palavras de Benjamin (1996, p. 205)

[...] a narrativa [...] é ela própria, num certo sentido, uma forma
artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o
“puro em si” (grifo do autor) da coisa narrada como uma informação
ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do
narrador como a mão do oleiro na argila do vaso.

Mediante tais fundamentos de Benjamin, nossas reflexões e discussões sobre as


experiências trazidas por nossas alunas, vão se apresentando como tímidas palavras que
se apresentam sob a forma de rastros, ou melhor, de pequenas aberturas que suas
memórias deixaram aparecer como feixes de luz para nossa discussão. Em suas teses, o
autor esclarece que o passado não é imóvel quando resgatado pela memória, nas
rememorações estarão presentes todas as vivências e experiências que nos constituem.
O passado será interpretado no presente.
Em cada um de nós presentes na roda, certamente muitas lembranças surgiram
dos escaninhos da memória. Alguém logo falou: “Ah! Eu ia à escola para brincar. Os
melhores momentos eram os de entrada, recreio e saída”. Entretanto, quantas vezes
observamos a criança impedida de brincar na escola. Como se o brincar não fosse uma
atividade associada ao aprender e à Educação Infantil. Nossas alunas nos trazem nas
narrativas que brincar é concebido como perder tempo ou mesmo que essa atividade não
é séria, e tantas outras designações que desqualificam o brincar na infância.
Estamos aqui refletindo sobre as indignações do adulto que, em seus processos
de formação docente, por meio de suas experiências presentes lembra do passado
narrando o paradoxo/engodo/agressão da infância na escola que é impedida de
movimentar-se e levantar da cadeira e precisa ficar de cabeça deitada na mesa, como
destacam as estagiárias em suas observações. Basta o mínimo de conhecimento sobre
motricidade infantil para entender a necessidade do movimento para o desenvolvimento

sumário 121
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

psicomotor, para as noções espaciais, visomotoras que acontecem com o movimento e


movimento na infância tem a ver com as brincadeiras que são as atividades das crianças.
Nos processos de formação docente, as políticas públicas de educação são
discutidas e aqui retomamos as da Educação Infantil. O MEC – Ministério da Educação
brasileira indica nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, que
determinam a brincadeira como um eixo norteador. De acordo com esse documento, é
indicado em seu:

Art. 9º: As práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da


Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a
brincadeira [...] (BRASIL, 2009) (grifo nosso).
Art. 10. As instituições de Educação Infantil devem criar procedimentos para
acompanhamento do trabalho pedagógico e para avaliação do
desenvolvimento das crianças, sem objetivo de seleção, promoção ou
classificação, garantindo: I - a observação crítica e criativa das atividades,
das brincadeiras e interações das crianças no cotidiano (BRASIL, 2009)
(grifo nosso).

Entretanto, essas não são compreendidas e devidamente consideradas no


cotidiano da Educação Infantil, como mostram nossas alunas/estagiárias em nossas
discussões e confirmado por autores como Alves e Sommerhalder (2006), que referem
notar evidências de práticas pedagógicas desarticuladas ao discurso de acolher as
construções elaboradas pelas crianças em suas brincadeiras e a marginalização do
brincar das atividades pedagógicas. Em contrapartida, o “uso” (grifo nosso) de
atividades de jogos como mecanismo facilitador da aprendizagem, desarticulando o
jogo de sua função livre e de fruição para jogo dirigido e com regras.
Alves e de Paula (2011) fazem uma reflexão sobre a ampliação das concepções
de educação escolar (grifo nosso) na educação infantil. Em virtude disso, é necessário
nos atentarmos para a especificidade desse segmento, que precisa contemplar outros
aspectos característicos da primeira infância, para que as crianças sejam crianças e
vivam suas infâncias e que a educação infantil não se reduza ao sinônimo de ensino.
Desse modo, não podemos conceber a Educação Infantil reduzida ao modelo escolar
tradicional, pois essa área do conhecimento ultrapassa a da transmissão de
conhecimentos. Tais questões têm surgido em nossas reflexões com futuros professores
em seus processos de formação. Precismos respeitar os direitos das crianças, dentre eles
o brincar e a “indissociabilidade” (grifo nosso) entre o cuidar e o educar na Educação de
crianças.

sumário 122
VII Seminário Vozes da Educação

Trazemos para o debate as contribuições de Marcellino (1997) que indica o furto


do lúdico da cultura da criança pelo impacto da obrigatoriedade da educação que
caracteriza a escolarização da infância. Cada vez mais cedo as crianças ingressam nas
creches, ou em outras atividades como aula de judô, futebol, dança, inglês e tantas
outras, não tendo mais tempo para a brincadeira livre. Essa é a memória de infância que
clama por brincar, enquanto que o adulto leigo pensa que o tempo de escola é um tempo
sem brincadeira. O que pensar das crianças em escola desde primeiros meses de vida e
sem a possibilidade de brincadeiras livres?
Como afirmam Silva, Rojas e Hammes (2013), o brincar é inerente à infância e
uma forma de comunicação anterior a linguagem oral. O brincar é uma das primeiras
formas de experimentar o mundo e de expressão simbólica, que fazem parte do
comportamento natural das crianças. As primeiras interações estão presentes no jogo
interativo dos bebês como o de brincar de “escondeu-achou” e que possibilitam
descobertas sobre si mesma e dos outros.
Vários autores se debruçaram nos estudos referentes ao papel do jogo e do
brinquedo e enfatizam sua importância como atividade fundamental para o
desenvolvimento infantil.
Freud (1920/1996) observando seu netinho nos presenteia com a interpretação
do jogo de carretel, quando a criança brinca sem o compromisso e nem a orientação do
adulto. Repete o movimento de jogar o carretel e o mesmo voltar para si mesma.
Continua a brincadeira de carretel repetindo vai e vem. Ensaiando e superando suas
angústias de separação da mãe. Aqui as inferências do avô que interpreta a saída da
mãe, mas que irá voltar, porque tudo que vai vem de volta. Piaget (2002) sinaliza a
importância da brincadeira no desenvolvimento humano caracterizando-a
evolutivamente desde as brincadeiras sensório motoras, jogo simbólico e o jogo com
regras.
Vigotski (2001)faz uma excelente contribuição nos estudos sobre o brincar,
especialmente no que diz respeito aos jogos de faz-de-conta, antes mesmo de utilizar a
linguagem a criança é capaz de simbolizar, por exemplo as primeiras brincadeiras de
esconder e achar, as possibilidades de representar papeis são os primórdios da
capacidade de representação simbólica. É pela brincadeira que a criança utiliza objetos
de forma subjetiva. A criança é capaz de desarticular as características de um objeto
socialmente utilizado e utilizá-lo para representar outra coisa. Um lápis pode representar
uma nave espacial. Da mesma forma que utilizamos a linguagem para representar

sumário 123
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

objetos, de forma simbólica. Além da possibilidade do jogo de faz-de-conta propiciar


zonas de desenvolvimento proximal, por meio do qual a criança não apenas reproduz a
realidade, ela reflete e a reconstroi a partir da brincadeira. Para brincar de mamãe ela
assume um papel muito além de sua idade, faz uma análise sobre o mesmo e o
(re)produz, segundo suas concepções do papel de mamãe.
Enfim, o brincar é uma linguagem infantil, uma porta para a capacidade de
simbolização dos seres humanos e presente muito cedo no desenvolvimento infantil.
Decorre disso a importância de um olhar sensível para os comportamentos da cultura do
brincar na infância, destacando a atenção que deve ser dada às suas especificidades por
representarem formas singulares de compreensão e apreensão do mundo em diferentes
contextos sócio-hitóricos e culturais.
Nesse sentido, continuamos nossas reflexões sobre as práticas de educação
infantil que privilegiam o lúdico e o brincar para a construção de uma pedagogia
transformadora na educação infantil. Como referem Alves e de Paula (2011) indicando
como referência de uma profissional da Educação Infantil não uma professora sinônimo
de transmissora de conhecimentos/conteúdos, mas que seja promotora da criação de
espaços para a vivência das culturas infantis.

Considerações finais

O presente trabalho evidenciou que as narrativas do estágio supervisionado, no


espaço da Educação Infantil contribuíram para o diálogo e reflexão da realidade vivida e
das diversas construções históricas, sociais e teóricas, especialmente, na perspectiva de
respeitar e promover a expressividade infantil por meio dos jogos e brincadeiras.
Por outro lado, enquanto orientadoras de estágios, enfatizamos a importância dos
saberes construídos na vivência profissional enquanto fundamentos para as práticas das
futuras profissionais docentes. Nossa proposta buscou relacionar as experiências
formadoras narradas pelas alunas/estagiárias sobre o estágio supervisionado na escola-
campo de estágio às reflexões sobre essas de forma pessoal, analisando, contudo, a
potencialidade formativa dessas experiências no âmbito profissional e também social.
Cabe ressaltar as evidências já apontadas anteriormente sobre o uso das
narrativas e as reflexões das práticas pedagógicas como um processo evolutivo de
formação. Os “acontecimentos” são revelados nos registros iniciais dos cadernos de

sumário 124
VII Seminário Vozes da Educação

estágio limitados a relatar objetivamente os fatos, como evidenciado por Gurgel (2014)
uma vivência individual que faz apenas repetir a história.
Entretanto, a partir das rodas de conversas, das reflexões e análises os
significados do vivido nas experiências cotidianas da Educação Infantil e das múltiplas
linguagens e vozes inscritas em suas constituições enquanto pessoas foram se
manifestando nas narrativas, e apresentaram-se como “experiências” com caráter de
permanência, que não se esgotam no presente, como nos ensina Benjamin (1989) e por
isso infinitas e históricas.
As informações obtidas e as relações estabelecidas com todos os atores que
fizeram parte das narrativas de formação promoveram reflexões coletivas sobre o fazer
pedagógico na educação infantil, inevitavelmente promoveram o processo de
construção coletiva e que modificaram e ampliaram o olhar e as concepções do estágio
e da docência no contexto da infância.
Destacamos a importância de entrelaçar as narrativas adultas com as atividades
infantis como importantes nos estágios supervisionados, de modo a refletirmos sobre as
experiências passadas de nossa sociedade para transformá-las em novas descobertas e
novas construções como vivenciam as crianças as suas atividades cotidianas. Dessa
forma estaremos em constantes tentativas de levantar a máscara do adulto chamada
“experiência”, inexpressiva, impenetrável e sempre a mesma, conforme nos alertou
Benjamin (2002, p.21). Não queremos que nossas alunas construam suas experiências
como “aquilo que é o eternamente-ontem”, com pobreza de ideias e lassidão daqueles
que já experimentaram isso, conforme revela o autor (ibidem, p. 22).
Todavia, nosso desejo é que possam nos diálogos, gestos, olhares e afetos
conviver com o êxtase infantil e apropriarem-se da língua da escola que contribui para o
fazer cotidiano dando sentidos próprios ao mundo para formar a si próprias pela prática,
pelo estudo, pelas habilidades e pelo conhecimento.
Finalmente, evidenciamos a impossibilidade de conceber o estágio como um
procedimento instrumental, todavia como um campo de conhecimentos e também de
pesquisa, produzido na interação dos cursos de formação com o camposocial no qual se
desenvolvem as práticas educativas.

Referências

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Brasiliense, 1996.

sumário 125
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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significado e importância sob a ótica dos acadêmicos do curso de licenciatura. Grupo de
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Acesso em 08/08/2019.

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(org) Elogio da escola. Tradução Fernando Coelho. 1 ed. Belo Horizonte, MG:
Autêntica Editora, 2017 (Coleção Educação: Experiência e Sentido).

MARCELLINO, Nelson Carvalho. Pedagogia da animação. 2 ed. Campinas: Papirus,


1997.

PIAGET, J. (2002). Seis estudos de psicologia. 24a, Ed. Rio de Janeiro: Florence.

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Pesquisa. São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. In:
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Cristiane. Algumas reflexões sobre as linguagens do Brincar na educação infantil.
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VIGOSTI, Lev Semenovich. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução


de Paulo Bezera. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

sumário 126
VII Seminário Vozes da Educação

SOBRE O PAPEL DA EDUCAÇÃO MUSICAL NA REAFIRMAÇÃO DA


MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA

Flavia de Oliveira Barreto


FFP UERJ
flaviabarreto2011@gmail.com

Sem a música a vida seria um erro.


(Friederich Nietzche).

Este texto apresenta reflexões acerca da Educação Musical e reflete acerca de


alguns anos de exercícios práticos sobre a proposta de dinamizar reflexões e debates no
que tange ao campo da produção artístico-musical, a memória e ao patrimônio cultural e
artístico musical brasileiro, objetos obrigatórios de uma Educação Musical aplicável.
Fruto de mobilização social, a Lei 11769/2008, ainda em vigência sobre a
Educação Básica, apresenta no texto da Lei uma proposição de Educação Musical para
a Educação Básica obrigatória. Sem a devida clareza de como tornar realidade o
propósito do disposto no texto da Lei, muitas iniciativas esparsas fazem a interpretação
sobre os objetivos a serem alcançados. Acreditamos que foi considerado na maioria das
iniciativas tomadas as possibilidades de implementar uma Educação Musical
direcionada para a formação de instrumentistas ou cantores, e nesse sentido,
testemunhamos uma série de exercícios que pouco contribuem para a formação de uma
geração de apreciadores da arte musical.
Em algumas escolas, professores esforçam-se para ensinar os fundamentos da
escrita musical, entremeando aulas enfadonhas com o canto de hinos; em outras, se
compõem, a guisa de uma releitura da pedagogia musical que Villa-Lobos organizou, na
década de 40 durante o Governo Vargas, ao produzir apresentações de corais orfeônicos
gigantescos compostos por vozes infantis, como foram certa ocasião, arrumadas para a
apresentação em um estádio de futebol. O compositor pretendeu na ocasião oferecer ao
público, com tal iniciativa, um exemplo da amplitude do alcance de uma política de
educação musical do governo Vargas. Este mesmo exemplo, de organizar apresentações
com muitos integrantes, executores de um mesmo instrumento, inspirou a apresentação

sumário 127
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

das centenas de moças acordeonistas sob a batuta do professor Mascarenhas, na década


de cinquenta, no campo de atletismo do estádio do Maracanãzinho. A concepção de
execução musical por um grupo massivo de pessoas parece então ter se consolidado em
nossa memória como a possibilidade única de exibir a amplitude e a eficácia de uma
Educação Musical oferecida às crianças e aos jovens nos espaços escolares. Ainda hoje
assistimos as pequenas (muitas vezes, com desempenhos terríveis) orquestras de muitas
flautas, organizadas para apresentarem os filhos aos pais orgulhosos pela formação
criativa que os filhos estão a receber nas escolas particulares.
As flautas, além dos corais, estão em voga por motivos de fácil entendimento:
porque são baratas, não ocupam lugar e justificam que se atribua aos pais a necessidade
de que estes sejam estes os encarregados de comprar os instrumentos para seus filhos.
Tal atitude por parte dos governantes responsáveis pela sustentação do projeto político
de uma Educação Pública e Gratuita para todos e os dirigentes das escolas particulares,
os desincumbe financeiramente de adquirir o suporte necessário para viabilizar a
Educação Musical de seus alunos. Quanto aos corais, nem é preciso estender a
explicação: a utilização musical da voz humana não depende de maiores investimentos.
Se a proposta de Educação Musical fosse realmente direcionada à formação
obrigatória de instrumentistas minimamente hábeis na Educação Básica, o compromisso
de adquirir instrumentos numerosos e variados correspondendo à formação de pequenas
orquestras para cada escola deveria ter sido também uma imposição clara ao Estado, no
momento da aprovação da Lei. Todavia, nada está disposto sobre a necessidade de uma
estrutura minimamente suficiente. Se tal dispositivo fizesse parte do texto da Lei, ficaria
clarificaria de forma definitivamente inquestionável que o propósito da Educação
Musical seria formar musicistas.
Verdadeiramente, nem todas as crianças e jovens que estão em período escolar
tem pendores para se expressar como instrumentistas ou cantores. Nem pendores e nem
sequer a necessária paixão para suportar com prazer a obrigatoriedade permanente de
uma dedicação incansável e ininterrupta, própria da formação do musicista mediano. E
no caso de não haver a empatia pelo domínio e uso de um instrumento, tudo o que
advém deste movimento é a lembrança de horas de um esforço que se torna tão
desagradável, quanto o castigo de um aprendizado insuportável para aquele aluno que se
percebe como vitimado por um processo de exigências de aprendizado de disciplinas
com as quais o aluno não se identifica de nenhuma maneira.

sumário 128
VII Seminário Vozes da Educação

Porém, de forma paradoxal, todos, indiscriminadamente apreciam a música e se


deixam tocar por ela de alguma maneira. Independente da faixa etária, do credo
religioso, da etnia, da orientação sexual ou das inserções de classe, não existe ser
humano que rejeite se deixar tocar de alguma maneira por esta ou aquela outra
manifestação musical. A música é certamente uma linguagem de sons e sentimentos. A
humanidade como um todo é sensibilizada pela música.

Compreendemos o que é música quando ao ouvirmos uma,


experimentamos sensações impossíveis de serem expressas por
meio de palavras. São momentos oníricos em que
transcendemos e nos vemos transportados para lugares nunca
dantes visitados, quiçá inexistentes, mas possíveis de serem
sentidos, infinitamente, por meio de uma comunhão que se faz
entre o ouvinte e a música.
Nesses momentos a música deixa de ser um problema de ritmo,
de harmonia ou de melodia, como diria um teórico e passa a ser
tão somente as ‘asas da alma’ (BARRETO, F.O., LEAL,
R.C.S, 2016, p. 138-139).

Todavia, é relevante ressaltar que a possibilidade de apreciar a música de forma


ampliada, assim como a possibilidade de fruição de demais linguagens artísticas está
diretamente ligada ao percurso de formação, à inserção social, ao momento histórico, ao
horizonte de perspectivas, ao acesso a um maior nível de conhecimento sobre o próprio
campo artístico em si.
Observemos que a produção e a veiculação da música agregam várias dimensões
da vida social tais como a economia, a política, a arte e a sensibilidade que articulam-se
em uma dinâmica de geração de emprego e renda, consumo e produção, disputas e
afirmações de grupos de interesses econômicos, políticos e culturais. Deste modo, a
consolidação da memória e a possibilidade de constituição do patrimônio musical e
artístico, além de ação política, é parte necessária de um debate que estimula a inclusão
social, promove a democratização do acesso à cultura e à arte, constituindo-se, por
conseguinte, a Educação Musical em instrumento relevante para a redução e
flexibilização de barreiras sociais.
Entendemos que o acesso ao patrimônio cultural e musical brasileiro, na forma
em que este se encontra enquanto um patrimônio memorável, em condições de difícil
acesso e em completa desordem, é uma tarefa restrita aos iniciados, pesquisadores e
colecionadores. Por este motivo, uma aproximação depende em grande medida do gosto
que se pode desenvolver para que se promova então o exercício esforçado por esta

sumário 129
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

busca de conhecimento. Trata-se verdadeiramente de um trabalho quase arqueológico


de busca pelas veredas perdidas da musicalidade brasileira.

Alguns exercícios de desenvolvimento da apreciação musical.


Desde a implementação na FFP/UERJ das Oficinas de Apreciação Musical,
alguns exercícios, a meu ver, se destacaram como uma iniciativa relevante e desejada
para a complementação da formação de professores, portanto interessante e ao mesmo
tempo reveladora da precária possibilidade dos participantes em relação à apreciação da
linguagem musical. Apresento os temas a seguir como suficientemente
exemplificadores da necessidade urgente de trabalharmos a formação de público, a
ampliação da apreciação musical, como uma resposta à limitada percepção que foi
insistentemente revelada pelos participantes destas oficinas.
Os temas especialmente referidos a: música e letra; melodia e harmonia;
diversidade de sons dos instrumentos musicais envolvidos em uma execução; gênero e
estilo; despertaram muita curiosidade e permitiram aos participantes destas oficinas
dimensionarem o próprio desconhecimento em relação àquilo que declaram apreciar: a
música. Sem mencionar o desconhecimento em relação a memória da arte musical
brasileira, ou seja, os nomes dos inúmeros e importantíssimos compositores, porque isso
é amplamente percebido. Aqueles que permanecem por algum tempo na memória das
novas gerações são exclusivamente os nomes dos que estão atualmente divulgados pela
mídia massiva.
No que diz respeito à distinção entre música e letra, a confusão é constante.
Costumeiramente, acontece durante a realização de trabalhos em diversas disciplinas,
que os alunos envolvidos avisem que irão apresentar uma música e, no entanto, na
ocasião, procedem à leitura de um poema, muitas vezes sem sequer cantar a embalagem
do dito poema pela música, e afirmam que não cantam porque se sentem inibidos para
isso. Permanecendo a música ausente da apresentação e a letra que na verdade é um
poema, ao ser lida recebe o título de “música”. Tal procedimento faz desaparecer da
percepção de todos os que assistem a tais apresentações a linguagem musical em sua
especificidade, reafirmando uma percepção de senso comum equivocada em relação à
impossibilidade de dissociação entre música e letra, reafirmando a noção de que a
música é na verdade uma letra entoada de maneira específica.
Melodia e harmonia também é um tema que suscita a curiosidade, pois sempre,
indiscutivelmente, todos desconhecem a distinção entre estes dois aspectos da

sumário 130
VII Seminário Vozes da Educação

composição musical. Embora seja recomendada uma iniciação mínima em relação à


escrita musical para que seja facilitada a noção de melodia e harmonia, a percepção
auditiva que habilita o apreciador da arte musical a distinguir ambas é um dos
aprendizados necessários para embasar inclusive a ampliação do gosto pela música.
Quem toca? Quais são os instrumentos utilizados? Após uma audição de
qualquer composição apresentada durante as oficinas, por mais que se esforcem em
perceber, na medida em que vão sendo exigidos e a atenção vai gradativamente se
aguçando, os participantes das oficinas permanecem mudos ante o questionamento
sobre quais foram os instrumentos que participaram da execução da música que
acabaram de ouvir. Alguns ousam afirmar que havia “uma bateria e a música”. Por
desconhecimento, não se dedicam a ouvir e buscar distinguir as execuções distintas,
apreciando as performances dos instrumentistas nas suas execuções personalíssimas.
Esta impossibilidade perceptiva reduz e empobrece a audição dos apreciadores da
música.
Quanto ao tema gênero e estilo reside neste binômio o maior
desconhecimento de todos. Assistimos durante os séculos de práticas sociais que
permearam a formação social brasileira o surgimento de uma diversidade de gêneros
musicais que entre outras propriedades como a originalidade, a expressão de seus
segmentos sociais de origem, os contextos históricos em que foram produzidos, o
espaço-tempo destes surgimentos, atestam também a diversidade cultural e a
multiplicidade de influências étnicas presentes e atuantes até nossos dias, a permear a
expressão artística pelo meio da linguagem musical em nosso país. Há um afastamento
das novas gerações em relação a estas obras o que produz o esquecimento, e a
conseqüente desvalorização da memória que esvazia o patrimônio artístico e musical
brasileiro. Além do mais, se não há o conhecimento dos gêneros, a percepção distinta e
aprimorada em relação aos estilos não pode sequer ser alcançada.
Este afastamento da memória da arte musical tem se tornado inclusive um motor
produtivo de preconceitos e restrições em relação à compreensão sobre o que vem a ser
verdadeiramente a dimensão da linguagem musical. O texto de autoria de José Miguel
Wisnick está citado como um exemplo significativo da hostilização de que foi alvo o
pianista brasileiro André Mehrmari ao apresentar o gênero musical Choro, para um
público infanto-juvenil por meio das composições de Ernesto Nazareth, um ods nossos
compositores da maior importância para a música brasileira e que está reservado às

sumário 131
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

névoas do esquecimento por falta de conhecimento e trabalho sobre a memória e a


consolidação do patrimônio musical brasileiro entre as novas gerações:

André foi participar de um espetáculo para 600 crianças de


escolas públicas, com idades entre 10 e 12 anos, num dos
teatros municipais de Campinas, no bairro da Vila Industrial.
Acho que o programa se chama “Ouvir para crescer”, e se
iniciava com uma parte em que atores apresentavam de
maneira divertida, caracterizados como palhaços, as
características da linguagem musical. Até aí o roteiro
pedagógico-cultural transcorria sem sustos. Em seguida entrava
André, que apresentaria músicas de Ernesto Nazareth, fazendo
as pontes, que ele é mestre em fazer, com outros repertórios.
Ao começar uma explicação sobre a sua participação, e mesmo
antes de tocar, começou a receber vaias e xingamentos
pesados, intensivos, que se multiplicaram e continuaram ao
longo de toda a apresentação (WISNICK, José Miguel, 2013).

Ao tratarmos da questão da memória e do patrimônio cultural musical brasileiro


atravessamos o campo do debate sobre a questão da cultura e da identidade nacional. No
debate sobre cultura, alguns autores dedicados ao caso brasileiro debruçam-se
incansáveis, através dos anos, em busca de elementos que possuam a propriedade de
articular a memória cultural e a identidade nacional brasileira.

Patrimônio cultural e memória


Renato Ortiz resgata e apresenta como parte do debate em relação à questão da
cultura nacional, a noção de cultura popular em Werneck Sodré que afirma a percepção
de que só pode ser identificado como nacional o que é proveniente de uma origem
popular, inspirado pela ideia de mistura racial noção presente nos autores que o
precederam como Silvio Romero, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Quer seja a partir
de uma perspectiva racista como em Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, ou abarcando
a ideia de homem sincrético, produto do cruzamento entre três culturas distintas há uma
preocupação que ocupa os intelectuais brasileiros nos anos 50 e 60 no Século XX:
distinguir os elementos constitutivos da identidade nacional como fundamento do
Estado brasileiro. E nesse âmbito insere-se o desafio que é dimensionar e delimitar a
questão da cultura nacional.
Em relação à cultura brasileira, Ortiz apresenta a leitura que Roger Bastide faz
do conceito de memória coletiva em Halbwachs para afirmar que há uma “miniatura da
África” na ritualização das religiões afro-brasileiras atualizando e revivificando

sumário 132
VII Seminário Vozes da Educação

celebrações de cunho religioso. Presente nesta abordagem a ideia de uma composição


étnica no tocante à uma cultura que se pode tipificar como “brasileira”.
Porém, ainda cabe problematizar a noção de africanidade como constituinte de
uma identidade nacional posto que a partir das práticas culturais experimentadas pelo
espaço continental que é o Brasil o que se pode encontrar é a mais diversificada
pluralidade, estendida para muito além da memória de uma África que não é país de
uniformidade cultural e sim continente composto de infinidade de etnias e
religiosidades. Sem esquecer-se de mencionar o hábito de fazer ausente a contribuição
cultural significativa emanada das etnias indígenas que habitam o território brasileiro
desde muito antes da invasão física e cultural européia.
De forma muito pertinente, Ortiz retoma o debate e separa a memória coletiva da
memória nacional, conforme Halbwachs também o faz, dimensionando o problema da
memória coletiva como uma prática social que se manifesta ritualmente e que é tanto ou
mais presente quanto menor é o grupo que a compartilha, enquanto que a memória
nacional é fruto de um constructo ideológico e se ancora em narrativa estabelecida em
dialogo com a História que se pretende prevalecer como ideário hegemônico. Ou seja, o
problema permanece e parece tornar a pretensa identidade nacional vinculada à cultura
nacional sempre intangível enquanto conceituação estável.
Retornemos aos esforços dos historiadores de tempos remotos para construção
de uma narrativa que dê conta das origens da “nação” com o propósito explícito de
conformação de um ideário de nação. Um dos recursos utilizados para a construção de
uma narrativa referente à construção do imaginário sobre o que é uma nação, e de que
forma a ela nos dedicamos a celebrar o pertencimento, nos primórdios da historiografia
encontramos as narrativas biográficas.
Para recorrer a um dos clássicos entre autores dedicados à biografia, podemos
citar Plutarco, autor de “Vidas Paralelas”, cujo trabalho que contém o esforço de texto
biográfico que narra em paralelo a vida e as peripécias de 23 (vinte e três) duplas greco-
romanas cujo propósito foi o de apresentar um panteão de homens notáveis que
condensam em suas vidas as principais características de cada uma das duas nações, de
modo a identificar os atributos mais relevantes de cada povo: Coragem, inteligência,
perseverança, inventividade... A utilização do recurso da biografia como instrumento
que sedimenta a possibilidade de fundamentar a narrativa da história de um povo
acompanhou os esforços historiográficos de muitas gerações de historiadores. Esse
caminho tornou possível um tipo de elaboração de biografias cujas narrativas

sumário 133
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

restringiram-se, durante muito tempo, aos exemplares humanos escolhidos como


representativos de um protagonismo nas cenas principais da sociedade: a política, a
economia, o poder.
No momento presente, podemos considerar a aplicabilidade das narrativas
(auto)biográficas a partir de outras perspectivas teóricas que atravessam as ciências
sociais e que tiveram o mérito de contribuir para uma renovação no entendimento das
possibilidades de criação de documentos e registros de natureza (auto)biográficas e as
contribuições que estes documentos podem oferecer para a consolidação do que se
pretende como memória coletiva, memória cultural e histórica, os componentes de um
patrimônio cultural a ser preservado.
Remontando aos clássicos, Max Weber inspira abordagens que trazem à cena a
criatividade inventiva dos indivíduos ao se apropriarem do sentido das normas sociais
traduzindo-as na sua prática, dinamizando a vida social nas ações sociais que
protagonizam. Seguindo a linha da sociologia compreensiva e no viés de valorização
do cotidiano, Michel de Certeau e Michel Maffesoli trazem ao centro do foco da
pesquisa o cotidiano simples, o homem ordinário, o conhecimento comum como o lócus
da inventividade que institui a realidade social, sempre dinâmica, em movimento e
transformação. Esta linha de pensamento que absorve o desafio da inclusão do plano do
sensível no olhar objetivo do pesquisador, sustentado por uma metodologia que não
apenas inclui, mas pretende que se torne explicitada a abordagem dos sentidos, dos
sentimentos, das sensibilidades de todos os tipos.
Por este caminho reflexivo entendemos que o oferecimento de experiências de
apreciação musical vinculadas à aproximação dos compositores pela narrativa
(auto)biográfica vem a oferecer aos apreciadores da arte musical em formação
experiências de entendimento aprimorado em relação à arte, posto que propicia a
vinculação do que se ouve com os contextos sociais, culturais, econômicos, políticos e
históricos em que se situam os compositores e suas manifestações musicais. Este tipo de
aproximação também adiciona a possível vinculação afetiva ao personagem do qual se
passa a conhecer não apenas a obra, mas a vida e as vivências desafiadoras que
enfrentou, durante os momentos em que se dedicou a musicalizar as expressões de suas
trajetórias sociais. Redobrando-se a intensidade sensível que complementa
inefavelmente o gosto da descoberta e a apreciação das manifestações artísticas por
parte do público.

sumário 134
VII Seminário Vozes da Educação

Esta é a linha teórica assumida como referência neste texto que reflete sobre a
Educação Musical como uma possibilidade de contribuição para a
reafirmação/construção de uma memória musical brasileira compartilhada, pontilhada
pelas contribuições dos talentosos indivíduos que foram produtores dentro do campo de
uma linguagem artística que expressa a relação tempo-espaço de suas produções e do
público que as reverenciam, ressaltando a importância da narrativa (auto)biográfica para
a aproximação das novas gerações de forma afetiva e identificada com os compositores
e por conseguinte com a memória da arte musical produzida no Brasil.

Conclusões iniciais
O processo de amadurecimento e implementação de uma proposta que emerge
das demandas sociais como foi o caso da promulgação da Lei 11769/2008, exige um
esforço de reflexão e debate que impõe o exercício teórico e a vivência de muitas
experimentações práticas.
Com o objetivo de participar do debate acerca da Educação Musical, este
trabalho desenvolvido através das ações promovidas dentro do espectro de atividades
projetadas no Projeto de Extensão Laboratório de Educação Musical FFP/UERJ
propomos que seja abraçada como sugestão para a implementação da Lei, que a
Educação Musical seja ampliada em sua concepção para abarcar a proposta de formação
de público, pelo exercício da apreciação musical.
A apreciação reduzida da arte musical ou de qualquer outra arte tem inúmeras
conseqüências para a formação dos educadores e do público em geral. Trata-se de um
tipo de inabilidade restritiva que acaba por sustentar as imposições de uma mídia
massiva cujo compromisso maior cultural é com o lucro e não com a divulgação das
iniciativas de produção que emergem incessantemente nos tecidos sociais. A este tipo
de ação, soma-se a restrição do acesso pelo público a manifestação original que emerge
nos mais distintos contextos sociais e o conseqüente processo de esquecimento a que
são submetidas tanto as mais novas quanto as mais antigas criações artísticas.

A segunda industrialização, que passa a ser a industrialização


do espírito, a segunda colonização que passa a dizer respeito à
alma progridem no decorrer do século XX. Através delas
espera-se esse progresso. Através delas, opera-se esse
progresso ininterrupto da técnica, não mais unicamente votado
à organização exterior, mas penetrando no domínio interior do
homem e aí derramando mercadorias culturais (MORIN, 1975,
p.9).

sumário 135
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Toda esta “colonização do espírito”, como denomina Morin, sedimenta apenas o


Estado e o capitalismo como os únicos protagonistas atuantes na cena cultural brasileira,
em detrimento da presença dos que durante todo o período de formação da sociedade
brasileira viveram no território nacional dedicando-se a produção de manifestações
através da aplicação da linguagem artística musical.
Porém, muito se conhece sobre a dificuldade de preservação da memória
histórica possivelmente relacionada a monumentos, construções, documentos, ou outros
tipos de ícones representativos dos processos instituintes de uma noção de nítida
brasilidade em nosso país. Atribui-se em parte a isso a existência de frágil apego e
sentimento de pertencimento à nação.
Se estivermos interessados em participar da disputa de moldagem de um
sentimento de brasilidade que dialogue com a realidade vivida por personagens
múltiplos, imersos muitas vezes em contextos de grande precariedade, como é o público
escolar, podemos contribuir ativamente participando do esforço de manter vivo, na
memória das novas gerações a contribuição de inúmeros e magníficos artistas musicais
brasileiros. Nossos artistas e a arte musical brasileira, embora muito apreciados no
exterior, permanecem relegados ao véu do desconhecimento entre nós. O que se sabe
sobre Cussy de Almeida? Luperce Miranda? Lorenzo Fernandez, Ernesto Nazareth,
Carlos Lira, e um sem número de outros nomes que soam no vazio aos jovens ouvintes.
Consideremos o cenário de vivencia do sentimento de brasilidade como um
momento em geral resumido à celebração de eventos esportivos e enquanto educadores,
consideremos a pertinência de nos ocupar das novas gerações que se encontram
absorvidas, quase que exclusivamente, pelo que lhes é apresentado pelos programas
televisivos massivos, oferecendo-lhes a oportunidade de navegar por este mar de sons e
paixões brasileiras.

Referências
BARRETO, Flavia de Oliveira; LEAL, Rita de C.S. Cartografia musical Rio de
Janeiro 450 anos. Rio de Janeiro: LetraCapital, 2016.

BRASIL. Lei 11769/2008.

CANDAU, Jöel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2018.

sumário 136
VII Seminário Vozes da Educação

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes,


1994.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.

MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. O espírito do tempo. Rio de


Janeiro: Forense universitária, 1975.

WISNICK, José Miguel. Não ouvir. Rio de Janeiro: Caderno Cultura. Jornal O Globo,
2013. https://https://oglobo.globo.com/cultura/2013/05/25/nao-ouvir

sumário 137
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ALÉM DOS MUROS: PESQUISA-FORMAÇÃO EM CAMPO

Aline Benvinda Bastos


UERJ-FFP
aline.benvinda@hotmail.com

Isabela Santiago Franca


UERJ-FFP
isabela.santy@gmail.com

Gabrielly Santana de Souza Pereira


UERJ-FFP
suliana620@hotmail.com

O presente trabalho propõe-se a relatar o movimento gerado dentro dos dois


grupos de pesquisa: Grupo de Estudos e Pesquisas Alfabetização, Memória, Formação
Docente, Relações Etnicorraciais (ALMEFRE) e o Grupo de Pesquisa Alfabetização,
Leitura e Escrita (GPALE) - coordenados pela Prof.ª Dra. Mairce Araújo e Prof.ª Dra.
Jacqueline Morais. Movimento este que possibilitou a ida de seis bolsistas da graduação
do curso de pedagogia, integrantes dos referidos grupos de pesquisa para participar de
uma apresentação de trabalho no evento IX Fala Outra Escola: Co-Lecionar práticas
humanizadoras com e para liberdade, na Universidade Estadual de Campinas, em São
Paulo. Evento este que tem o intuito de possibilitar que professores e profissionais da
escola possam partilhar seus conhecimentos e saberes constituídos com seus estudantes
e construídos no cotidiano educativo-escolar.
Nos últimos anos, as universidades públicas brasileiras vêm atravessando um
momento difícil com relação a cortes de verbas e investimentos na educação,
especialmente no incentivo às pesquisas científicas. Diante deste cenário que se
acentuou no ano de 2019, os grupos de pesquisa se mobilizaram na busca de estratégias
para contornar a situação e podermos compartilhar nossos trabalhos em outro espaço
acadêmico.
A pesquisa investe na articulação de Ensino e Pesquisa. As produções de
trabalhos são realizadas na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro a partir de nossas investigações que, posteriormente, são
compartilhadas em outros espaços.

sumário 138
VII Seminário Vozes da Educação

Movimento do grupo de pesquisa

Os grupos de pesquisa se encontram uma vez na semana. Em um dos encontros,


foi proposto pelas Prof.ª Mairce Araújo e Jacqueline Morais que participássemos do IX
Fala Outra Escola que ocorreria em São Paulo para apresentarmos nossas produções
realizadas na pesquisa. A princípio, parecia uma ideia inviável, discutimos sobre as
condições que cada uma enfrentava naquele momento, a disponibilidade de ficarmos
três dias no evento e como faríamos para nos locomover até a cidade de Campinas.
Pensando em uma solução, muitas hipóteses foram levantadas: parcelamento das
passagens e hospedagens no cartão, fazermos rifas para vender, porém nenhuma dessas
ideias foram de fato colocadas em prática.
Em uma outra semana de encontro, o grupo decidiu colocar a viagem ao evento como
uma meta. Neste mesmo encontro, uma bolsista se oferece para produzir os doces que
seriam vendidos e outra para fazer as vendas dos doces. Uma das outras bolsistas sugere
como arrecadação do valor a criação de uma “vakinha” online.
Uma vaquinha consiste em uma atividade onde pessoas se juntam dando
contribuições para atingir determinado objetivo financeiro. Criado em 2009, o site “O
Vakinha foi feito para permitir que qualquer pessoa tivesse a oportunidade de iniciar
uma campanha de maneira fácil e rápida. A maioria das campanhas possuem um
objetivo bem claro: são causas sociais, casos de saúde, ajuda para custear algum sonho,
arrecadações solidárias e, até mesmo, projetos para financiamento de estudo, viagem,
produtos, livros, casamentos, formaturas e projetos pessoais.
A primeira etapa foi fazer um balanço dos gastos da viagem, e assim, saber o
valor que precisaríamos para a arrecadação. Após um total estipulado, acontece a
criação da “Vakinha” online que tinha como título “Ajuda para viagem estudantil”.
Colocamos como objetivo conseguir arrecadar dinheiro para a realização de uma
viagem acadêmica de São Gonçalo, Rio de Janeiro, à Campinas, em São Paulo, em
busca de apresentarmos nossos trabalhos produzidos na pesquisa. Apresentamo-nos
como alunas do curso de Pedagogia, da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e que estávamos em busca de uma
colaboração para realizar um trabalho no Seminário FALA OUTRA ESCOLA, na
Universidade Estadual de Campinas.

sumário 139
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Figura 1 - Apresentação e divulgação da Vakinha

Fonte: Facebook

Diante do contexto que as universidades públicas se encontram, estávamos em


busca de uma oportunidade de estar reafirmando o espaço o qual estamos inseridas
mostrando nossas produções realizadas dentro das escolas públicas nas periferias de São

sumário 140
VII Seminário Vozes da Educação

Gonçalo com crianças, além de expressar suas potencialidades como pesquisas na


educação básica.
Após a abertura da Vakinha, nosso próximo passo foi a divulgação. Foi então
que nos espantamos com a grande repercussão gerada pela nossa vaquinha. Cada vez
que uma doação era realizada na nossa página no site, eles mostram um percentual do
quanto estamos próximos de atingir o objetivo. Em três dias de divulgação, já tínhamos
alcançado 20%! Fato que nos motivou a continuar divulgando em diversas redes sociais,
como grupos da faculdade, instagram, twitter, e-mail, entre outras ferramentas de
divulgação online. Do outro lado, tínhamos as outras bolsistas que estavam na
realização das vendas de doces, o que também gerou um valor que nos ajudou bastante
no orçamento. Destacamos que a bolsista responsável por fazer os doces não teria a
disponibilidade de viajar e, ainda assim, tivemos sua solidariedade em nos ajudar na
arrecadação.

Figura 2 - Comentários de solidariedade

Fonte: Facebook

Nossa arrecadação alcançou grupos políticos, professores da faculdade, amigos e


familiares, chegando até mesmo em outros estados. Tivemos também o apoio de nossas
orientadoras que nos ajudaram desde o início da proposta da viagem. A união do grupo
conseguiu impulsionar o nosso objetivo de ir à Campinas para o evento. Além do valor
recebido, muitas foram as palavras de incentivo para chegar ao nosso objetivo e as
mensagens de felicitações pela nossa iniciativa, tendo em consideração a conjuntura

sumário 141
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

atual na educação pública, que sofre com os problemas de descaso e sucateamento.


Nosso movimento se tornou um ato de resistência e luta pela educação.
Ao atingirmos o valor de nossa meta em dois meses, os próximos passos foram
de organização da viagem. Uma bolsista ficou encarregada de planejar a viagem em si
ao se responsabilizar pela compra das passagens, pela reserva da hospedagem,
garantindo que todo o dinheiro fosse corretamente investido.

Figura 3 – Valor arrecadado para a viagem

Fonte: Site Vakinha

Uma experiência de pesquisa-formação: reflexões de uma viagem acadêmica

Ao fazer parte de um grupo de pesquisa, produzimos diversas temáticas de


trabalhos e também nos apresentamos em diferentes lugares. A cada novo lugar, novas
experiências nos atravessam, seja o local, as trocas de conhecimentos que os espaços
nos fornecem e até mesmo as conversas com outras pessoas. Viajar para a UNICAMP
não seria diferente, saímos do Rio com várias hipóteses de como seria a nossa primeira
viagem acadêmica. Para algumas ali, era a primeira viagem à São Paulo e para outras, a

sumário 142
VII Seminário Vozes da Educação

primeira viagem longa de ônibus ou até mesmo, a primeira viagem sozinha, sem a
família, entre outras experiências singulares.
O movimento que nos levou até São Paulo já nos provocou antes mesmo de sair
do estado do Rio. Vimos de perto o ato solidário e a importância que ainda segue firme
para aqueles que acreditam nas pesquisas acadêmicas e que nos fortalecem na luta pela
nossa universidade pública. Todo nosso processo antes da viagem já foi formativo e
assim, percebemos que um mesmo lugar, o espaço que já convivíamos uns quatro anos,
pôde nos proporcionar outras experiências e descobertas. Sobre a importância da
experiência na formação de professores Nóvoa (2001) aponta em uma entrevista:

A experiência é muito importante, mas a experiência de cada um só se


transforma em conhecimento através desta análise sistemática das práticas.
Uma análise que é análise individual, mas que é também coletiva, ou seja,
feita com os colegas, nas escolas e em situações de formação.

O trajeto que nos levava até São Paulo nos permitiu conhecer um pouco da
cidade, conhecemos também pessoas durante a viagem que nos falavam dos diferentes
costumes encontrados na cidade do Rio e no interior do estado de São Paulo. Muitas
histórias foram compartilhadas no ônibus até nossa chegada, a partir dali, sabíamos que
nossas experiências estavam apenas começando. No dia seguinte, já iriamos até a
universidade e assim que chegamos, percebemos o quão grande era UNICAMP. Havia
placas de prioridade ao pedestre dentro da universidade e logo nos espantamos, mesmo
tendo como referência a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como cidades universitárias, nunca havíamos visto
algo parecido, bastava colocar o pé na faixa e os carros paravam.
Ao chegar ao evento, que tanto lutamos para participar, percebemos a
movimentação que ocorria naquele espaço. Conversas acerca das práticas dos
professores nas sessões de diálogos, nos reafirmaram o papel do professor-pesquisador.
Dentro de suas práticas, questionavam, dialogavam e aprendiam com as experiências
dos outros. Vivenciamos um espaço de pesquisa-formação onde se propuseram a
investigar questões que emergiam no espaço da escola em conjunto com outros
docentes, buscando uma reflexão coletiva que pudesse promover novos olhares e
conhecimentos acerca daquela realidade e repensar coletivamente as ações sobre ela.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Figura 4 - Bolsistas no “FALA OUTRA ESCOLA”

Fonte: Arquivo pessoal das autoras

Tivemos nosso espaço para apresentarmos nossas pesquisas, dialogamos acerca


de todos os trabalhos apresentados e assim, vivenciamos uma troca de experiências que
nos fazia questionar sobre as práticas, promovendo um processo formativo naquele
espaço. Segundo Nóvoa (1997, p.26), “a troca de experiências e a partilha de saberes
consolidam espaços de formação mútua, nos quais cada professor é chamado a
desempenhar, simultaneamente, o papel de formador e de formando”. Neste contexto, as
vivências compartilhadas ganhavam um sentido potencializador, favorecendo uma
atitude reflexiva em todos os presentes.
Percebemos que esse espaço de diálogo possibilita aos professores a
compreensão de si mesmo e de sua prática, promovendo aprendizagens que resultam em
tomadas de consciência. Tomadas estas que nos movimentos formativos são
desenvolvidos a partir de problematizações, de reflexões sobre a prática e de

sumário 144
VII Seminário Vozes da Educação

ressignificações das experiências. A oportunidade do diálogo possibilita a produção de


saberes e fazeres docentes, em diálogo com as compreensões de singularidade (NEGRI,
2003), sendo essas conversas capazes de potencializar os coletivos para uma
mobilização em prol da transformação social (GARCIA, 2015). Essa união de
singularidades é capaz de dar força para essa luta constante que é a educação. Tecemos
juntos reflexões e isso amplia nossa compreensão sobre como é diferente e importante
pensar os contextos escolares a partir do que é produzido no cotidiano da escola.
Nesta perspectiva, professores passam a perceber que isso potencializa o fazer
docente, permitindo novas possibilidades de ver e agir na docência, nos encorajando a
optar por outros caminhos pedagógicos que rompam e ultrapassem os desafios postos
pela realidade escolar.

Figura 5 - Grupos ALMEFRE e GPALE no evento

Fonte: Arquivo pessoal das autoras

Tecendo as considerações finais

sumário 145
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Todos os processos da viagem acadêmica nos atravessaram com os novos


saberes que conquistados a partir dos relatos de professores que buscam se manter em
práticas que se adaptam ao contexto, ao cotidiano e às crianças. Ser educador é formar
seres pensantes que percebam que podem transformar as suas vidas e a de outras
pessoas. Paulo Freire (1985), em seus estudos relata que o indivíduo deve saber sobre a
sua realidade, para só então buscar transformá-la.
A UNICAMP nos proporcionou momentos únicos em nossa formação como
futuras professoras-pesquisadoras, nos deu a oportunidade de conhecer e reconhecer um
espaço singular e de formação, onde fomos capazes de identificar e compreender os
vários saberes que sustentam a prática profissional. Garcia (2009) afirma que o
professor pesquisador seria aquele professor que busca questões relativas à sua prática
com objetivo de aperfeiçoá-los.

A pesquisa acadêmica tem a preocupação com a originalidade, a validade e a


aceitação pela comunidade científica. A pesquisa do professor tem como
finalidade o conhecimento da realidade para transformá-la, visando à
melhoria de suas práticas pedagógicas e à autonomia do professor. Em
relação ao rigor, o professor pesquisa sua própria prática e encontra-se,
portanto, envolvido, diferentemente do pesquisador teórico. Em relação aos
objetivos, a pesquisa do professor tem caráter instrumental e utilitário,
enquanto a pesquisa acadêmica em educação em geral está conectada com
objetivos sociais e políticos mais amplos. (Garcia 2009, p. 177)

O deslocamento até Campinas nos proporcionou um exercício de reflexão e de


interrogação quanto aos fatores que permeiam a educação e, concomitantemente, a
nossa formação. Nesse tempo, realizamos uma exploração de saberes, de memórias
escolares, formação acadêmica, nos fazendo pensar em questões de desafios reais na
educação, além de nos direcionar na busca de caminhos potencializadores para a vida
das crianças.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 14. ed. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A,
1985.

GARCIA, A. O encontro nos processos formativos: questões para pensar a pesquisa e a


formação docente com as escolas. 37° Reunião da ANPED, Florianópolis, out. 2015.
Disponível em: >http://37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-
GT13-4497.pdf

sumário 146
VII Seminário Vozes da Educação

GARCIA, Vera C. G. Fundamentação teórica para as perguntas primárias: O que é


Matemática? Porque Ensinar? Como se ensina e como se aprende? Revista
Educação. Vol. 32. nº 2. Porto Alegre, 2009.

NEGRI, A. Cinco lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

NÓVOA, Antonio (coord). Os professores e sua formação. Lisboa-Portugal, Dom


Quixote, 1997.

NÓVOA, Antônio. O professor pesquisador e reflexivo. Entrevista concedida em 13


de setembro de 2001.

sumário 147
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O DIÁLOGO COMO CAMINHO PARA A PESQUISA: DAS ORIENTAÇÕES


COM REGINA LEITE GARCIA ÀS NARRATIVAS DO GEPPALFA

Luciana Teixeira Guimarães de Britto


Colégio Pedro II – SCI
lucianatgbritto2@gmail.com

A motivação para escrever sobre o tema veio da minha própria experiência como
participante de um coletivo de formação de professores cujo trabalho, no início,
organizou-se essencialmente sobre estudos de textos, principalmente da obra de Paulo
Freire, de maneira informal.
Nos textos de Freire, diversos, ecoavam os questionamentos que emergiam da
prática educativa de cada uma das integrantes do nosso coletivo, que contava como
integrantes professoras dos Anos Iniciais da Rede Municipal de Educação da Cidade do
Rio de Janeiro inicialmente, algumas migrando mais tarde para o CAp-UERJ e Colégio
Pedro II.
Sem que tivéssemos feito uma programação consciente para falarmos a respeito
de nossas questões práticas de sala de aula, os primeiros encontros para o diálogo
transcendiam os horários formais teoricamente dedicados ao estudo na Rede Municipal
de Educação do Rio de Janeiro26 ou mesmo o espaço físico da escola: aconteciam nos
corredores, entre um intervalo e outro das atividades escolares, salas dos professores,
horário de recreio das crianças, travessias do trabalho para casa, nos encontros sociais e
virtualmente, nas redes sociais. Aconteciam espontaneamente conforme nossas
disponibilidades de tempo iam convergindo e emergiam de nossa necessidade de
dialogar sobre nossas atividades, por vivermos relações profissionais cotidianas imersas
na realidade de uma mesma rede de ensino. Essa realidade nos aproximava e embora
soubéssemos que cada sala de aula apresentava-se como um universo de possibilidades
único, sabíamos também quais eram os pontos para os quais nossas perguntas seguiam

26
Aqui é preciso esclarecer: nessa época a Rede Municipal do Rio de Janeiro contava com um horário
oficial de estudos denominado “Centro de Estudos”. Os CEs, aconteciam para os docentes do primeiro
segmento sempre às quartas feiras, por duas horas e meia no início ou ao final do turno, de quinze em
quinze dias, com dispensa dos alunos, que ficavam meio turno na escola. Eram sempre conduzidos pela
coordenadora pedagógica ou direção, que recebiam diretrizes das Coordenadorias Regionais de Educação
e estas, por sua vez do Nível Central: a Secretaria Municipal de Educação.

sumário 148
VII Seminário Vozes da Educação

para a mesma direção: o porquê do fracasso discente e o porquê do tempo oficial da


nossa Rede para a formação em serviço não nos contemplar satisfatoriamente.
Assim nasceu nosso grupo de estudos e a partir desses encontros, a vontade de
cursar a pós em alfabetização. Posteriormente surgiu a ideia do tema para a pesquisa da
dissertação.
Cursando a pós já mencionada e tendo a oportunidade de ter Regina Leite Garcia
como minha orientadora, conheci a história de Jorge Luís Borges, escritor, poeta, crítico
literário, tradutor e ensaísta argentino. Sua trajetória de vida e profissional chama
atenção por uma questão curiosa e que contém em si uma certa atmosfera poética
atribuída ao diálogo. Borges ficara cego aos cinquenta e seis anos por trinta anos até sua
morte. Leitor voraz, questionou a Deus como alguém que amava tanto os livros poderia
perder a visão, mas como tinha o hábito valioso de agradecer por todas as experiências
que vivia, à medida que foi se adaptando, viu beleza e utilidade em sua nova condição.

UNS QUINHENTOS ANOS antes da era cristã aconteceu na Magna Grécia a


melhor coisa registrada na história universal: a descoberta do diálogo. A fé, a
certeza, os dogmas, os anátemas, as preces, as proibições, as ordens, os tabus,
as tiranias, as guerras e as glórias assediavam o orbe; alguns gregos
contraíram, nunca saberemos como, o singular costume de conversar.
Duvidaram, persuadiram, discordaram, mudaram de opinião, adiaram. (...)
Sem esses poucos gregos conversadores, a cultura ocidental é inconcebível
(BORGES, 2009, p.27).

Segundo Osvaldo Ferrari (2009), jornalista argentino, com o qual Borges


estabeleceu uma relação de parceria e produtividade, Borges tornou-se o melhor
“conversador”27 de Buenos Aires. Impedido de ver o mundo com os olhos, passou a lê-
lo através das conversas que mantinha. Assim, aceitando um convite de Ferrari, Borges
passou a participar de um programa de rádio onde os dois conversavam. Essas
conversas foram registradas e transformadas em uma série de três livros com os títulos a
saber: A filosofia e outros diálogos, A amizade e outros diálogos e Os sonhos e outros
diálogos, onde os dois autores registraram as impressões de suas conversas sobre os
temas em questão (BORGES e FERRARI, 2009, apud COLOMBO, 2009).
Borges (2009) tinha uma relação muito peculiar com o diálogo. Na introdução
do livro Sobre a filosofia e outros diálogos, Walter Carlos Costa (2009), relata que o
autor argentino, ao longo da vida, fez uso de conversas com amigos intelectuais como
fontes tão confiáveis quanto qualquer citação de seus respectivos livros.

27
Termo usado por Ferrari em entrevista concedida à Colombo (2009) sobre Jorge Luis Borges.

sumário 149
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Para o autor, o diálogo é um método que proporciona entendimento e um ícone


que denota civilização e não o considera menos valioso que a leitura. Assim
considerava e essa consideração acerca da potência dialógica foi ampliada quando o
sentido da visão lhe faltou. Tanto que criou o que chamou de “teoria do diálogo”
(BORGES, 2009, p.18), que praticou em diversos projetos com a colaboração de
amigos intelectuais:

Este livro de diálogos possui também uma teoria do diálogo. Embora visto
como inferior à leitura, para Borges o diálogo é meio privilegiado para se
chegar ao entendimento (Henríquez Ureña) e é também signo de civilização
(cultura japonesa). (...) Borges levou à prática sua teoria do diálogo,
planejando e executando uma série de projetos com uma grande variedade de
colaboradores (COSTA, 2009, p.19).

Engana-se quem acredita que para Borges o diálogo acontece no campo da


oralidade e por isso se perde. Segundo Costa (2009):

(...) a concepção oral de Borges é complexa: não se trata simplesmente de


conversa para fins de comunicação imediata, tampouco se trata de conversa
de salão literário: é uma conversa elaborada, em que os interlocutores
compartilham leituras e opiniões sobre os problemas do ofício (COSTA,
2009, p.20).

Assim, como disse Ferrari (2009), o diálogo para Borges “era uma maneira
indireta de escrever, continuava a escrever através dos diálogos. (...) A magia de lê-lo,
correspondia a magia de ouvi-lo.” (FERRARI, 2009, p.30).
A obra escrita de Borges e Ferrari é uma coletânea de diálogos transcritos por
meio da qual fica claro que a leveza da linguagem falada pode ser mantida nessa
passagem para a escrita e me mostra um caminho de inspiração cheio de possibilidades
que posso nitidamente transportar para o terreno da formação de professores quando
essa elege o diálogo como meio de leitura do outro – parceiro/a de formação - e
revelação de mim mesma. A história de parceria entre Borges e Ferrari lança uma luz
sobre minha própria trajetória formativa, minha relação com o diálogo e a troca e
transformação que esse proporciona, servindo-me como fonte de grande inspiração.
Quem me apresentou Borges e Ferrari e essa relação de amizade, troca e
produção de saberes foi Regina Leite Garcia durante as sessões de diálogo das
orientações coletivas para a tessitura do TCC da pós-graduação da UFF, concluída por
mim em janeiro de 2014. Recordo-me que fiquei bastante impactada com a importância

sumário 150
VII Seminário Vozes da Educação

do diálogo para que Borges pudesse continuar inserido num universo de leitura e
produtividade. O diálogo, sua nova visão.
No período de orientações, a professora Regina nos chamou atenção para o
diálogo como possibilidade de metodologia de pesquisa, justificando que através dele
recolhemos dados qualitativos que nos auxiliam a compreender como o outro pensa e o
que pensa sobre determinado assunto. Assim percebi o quanto o diálogo já fazia parte
da minha trajetória profissional e o quanto revelava sobre mim. Hoje percebo o quanto o
diálogo foi relevante para que minha pesquisa pudesse acontecer.
Em 2014, quando tive a oportunidade de ter Regina Leite Garcia como
orientadora, pude aprender, dentre tantos ensinamentos, que a pesquisa da/na minha
própria prática se faz essencial para que meu trabalho possa estar em constante
aperfeiçoamento.
Com Regina, que reunia em sua casa suas orientandas para um trabalho de
orientação coletiva, percebi que meu ofício de professora dos anos iniciais da Escola
Básica era um importante caminho para a militância política: ecoava tanto na minha
formação, quanto na formação de meus alunos. Ali, naqueles encontros, pude discutir o
que era fazer pesquisa. Entendi um pouco mais o que era a pesquisa com o cotidiano e
ao voltar meu olhar para a minha sala de aula, agora como pesquisadora, minha visão
havia se ampliado. Aquelas conversas com as colegas de pós e com a professora Regina
me ajudaram a dar mais um passo em minha trajetória profissional.
Nossa orientadora nutria profundo respeito pelas professoras da Escola Básica e
ouvia atentamente nossas narrativas a respeito de nosso trabalho. Sua sinceridade para a
crítica assustava... ao mesmo tempo que sua capacidade de se encantar com nossas
histórias e nos contar sobre a época em que também era professora alfabetizadora nos
fazia voltar à calma e equilibrava o clima dos encontros, fazendo com que nossas
conversas fossem sempre produtivas. Saíamos dali, a cada encontro, expandidas.
Voltávamos diferentes para nossas salas de aula.
Nunca saí da casa de Regina com respostas. Saía com incômodos. Por vezes
suaves. Outras vezes eram incômodos de tanta grandeza que me tiravam o sono:
conseguia perceber o que não queria mais repetir em minhas práticas, porém não
conseguia definir alternativas e isso me angustiava.
Dos encontros para orientação coletiva, nos moldes de rodas de conversa, fui
redefinindo minhas expectativas a respeito de minhas possibilidades dentro da
profissão: decidi tentar o concurso para o Colégio Pedro II, mais confiante em minha

sumário 151
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

capacidade de ir cada vez mais além e desejosa de ter qualidade de tempo para ampliar
minha formação.
Como professora pesquisadora, aprendi com Regina que minha prática é teoria
em movimento. Regina nos mostrava que a pesquisa em educação passava
necessariamente pelas nossas salas de aula e ninguém mais preparado para falar da sala
de aula com autonomia do que nós professoras:

Ao se tornar pesquisadora vai se tornando capaz de encontrar/construir novas


explicações para os problemas que enfrenta em seu cotidiano. Aprende a ver
com outros olhos, a escutar o que antes não ouvia, a observar com atenção o
que antes não percebia, a relacionar o que antes não parecia ter qualquer
relação, a testar suas intuições através de experimentos, a registrar o que
observa e experimenta a ler teoricamente a sua própria prática, a acreditar em
sua capacidade profissional na medida em que elabora estratégias
metacognitivas e metalinguísticas. Torna-se uma professora que pesquisa e
uma pesquisadora que ensina (GARCIA, 2003, p.21).

Era característico das aulas da pós e naturalmente dos encontros com Regina, o
pensamento em movimento por meio das palavras nas conversas. Quem chegou naquele
espaço buscando receitas para alfabetizar se decepcionou ou redefiniu suas buscas:
aprendemos ali a questionar, a duvidar e consequentemente, a pesquisar e a buscar
alternativas de caminhos. Tudo construído no diálogo. Mais uma vez o diálogo: antes,
com minhas colegas professoras na escola municipal em que trabalhava e na UFF, nas
aulas e orientações coletivas. O impulso que me motivou a seguir e que me segue até
hoje.
Conceber o ofício de professor sem a presença do diálogo é impossível. Sendo a
profissão docente uma profissão de natureza relacional, onde, na convivência entre
indivíduos, concretiza-se a atividade docente, há de se considerar a qualidade dos
diálogos que acontecem para tornar as experiências terreno fértil de mudanças
satisfatórias, tanto pessoais, como profissionais e sociais. Para tratar da natureza do
diálogo, considero as afirmações de Freire (2013; 2014) que aborda o diálogo como
sendo o terreno fértil das ideias de conscientização, que embora individual, é elaborada
na troca com outros indivíduos.
Ao resgatar minha história de formação, descrita na introdução da dissertação de
mestrado intitulada “Saberes docentes produzidos no cotidiano: a formação docente
continuada por meio do diálogo em um coletivo de formação docente” defendida em
agosto de 2018, pesquisa essa acolhida pelo CAp- UERJ, orientada pela professora
Andrea da Paixão Fernandes e usada como justificativa de escolha do tema da pesquisa,

sumário 152
VII Seminário Vozes da Educação

desde meu despertar para a possibilidade de um fazer diferente ao observar colegas de


trabalho em seus fazeres do dia a dia, até os encontros nas disciplinas e orientações
coletivas da pós-graduação da UFF, com Regina Leite Garcia, vejo o diálogo como o
fio condutor no qual me mantenho conectada e sempre interessada no movimento que
esse é capaz de produzir: o ir e vir das ideias, suas transmutações e seus impactos sobre
aqueles que dialogam. O diálogo tece uma rede de conceitos capaz de interligar, análoga
à teia de aranha: cada fio se conecta ao próximo sem se desligar do anterior. Assim
percebo: uma teia que se amplia, sendo tecida a partir do fio da minha palavra e/ ou da
palavra outro, parceiro nessa conversa, desenhando novos conhecimentos que se aderem
uns aos outros produzindo um caleidoscópio de sentidos.
Dialogar com um/ uma colega sobre minha e sua prática constitui um
movimento vivo de troca cotidiana, que de maneira nenhuma tem como característica a
neutralidade. Ao falar sobre meus atos e ouvir os dos outros, colocamos em movimento
um balé de palavras que nos circula e afeta, produzindo efeitos sobre os dois lados.
Naturalmente podemos concordar ou discordar, mas jamais sairemos de uma conversa
sem marcas: se nossas opiniões forem opostas, por exemplo, ao menos me perguntarei o
que pode levar o outro a pensar tão diferente de mim. Que caminhos foram percorridos
para que aquele saber fosse construído? Freire (2013) nos dá um direcionamento da
importância do diálogo respeitoso quando diz que:

Viver a abertura respeitosa aos outros e, de quando em vez, de acordo com o


momento, tomar a própria prática de abertura ao outro como objeto da
reflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente. A razão ética da
abertura, seu fundamento político, sua referência pedagógica; a boniteza que
há nela como viabilidade do diálogo. (...) O sujeito que se abre ao mundo e
aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma
como inconclusão em permanente movimento da história (FREIRE, 2013, p.
133).

O autor destaca o poder da relação dialógica. Ele nos diz que “não há portanto
na teoria dialógica da ação, um sujeito que domina pela conquista e um sujeito
dominado. Em lugar disto, há sujeitos que se encontram para a pronúncia28 do mundo,
para sua transformação” (FREIRE, 2014, p. 227).
Freire nos ensina assim que não deve existir hierarquização de saber na troca
dialógica, porque não se pode hierarquizar saberes diferentes. A troca de saberes produz
novos saberes, pertencentes às duas partes do diálogo, portanto não deveria pressupor

28
Grifos do autor.

sumário 153
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

dominação de uma parte sobre a outra, como por muitas vezes presumidamente
acontece, mas sim transformação mútua. Dois saberes distintos, iguais em importância,
se entrelaçam no diálogo, produzindo um terceiro saber, pertencente e derivado dos dois
primeiros.
Para Freire (2014), é muito importante situar o diálogo como sendo essencial no
processo de transformação do mundo e, portanto, transformação de homens e mulheres
que nele estão. Freire (2014) nos diz que “a existência, porque humana, não pode ser
muda, silenciosa, nem tampouco nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras
verdadeiras com que os homens transformam o mundo” (FREIRE, 2014, p. 108).
Por fazer parte da essência humana, o diálogo é primordial para a comunicação
entre os indivíduos como processo de interação, troca de ideias, construção de conceitos
coletivos a respeito dos fenômenos sociais nos quais estamos imersos a todo tempo e
dos quais somos autores. Mas Freire (2014) nos chama a atenção a respeito da palavra
verdadeira, pronunciada certeiramente para produzir transformações positivas.
O autor diz que a própria palavra é o diálogo, mas nos diz que precisamos buscar
os elementos que o constituem e não só um meio para que ele aconteça. Não se deve
considerar o diálogo pelo diálogo somente, porque a palavra vazia nada mais é que um
discurso estéril e precisamos de palavras cheias de significado para efetivar mudanças.
Para Freire (2014), a palavra verdadeira é a práxis, pois pode-se dizer que “a palavra
verdadeira seja transformar o mundo” (FREIRE, 2014, p. 107). O contrário de práxis na
concepção freireana é a inautenticidade.
Freire (2014) nos mostra o quão perniciosa pode ser a palavra vazia, porque
priva os homens e mulheres não só de transformar o mundo, mas, consequentemente, a
palavra inautêntica os priva, homens e mulheres, de denunciá-lo principalmente.
O cotidiano docente é costurado por questões inerentes à sua prática, mas não só
por essas questões. É alinhavado, sobretudo, por questões relativas ao sistema29 no qual
estão inseridos e ao qual estão submetidos professoras e professores.
Quando um docente precisa dispor de um tempo que inicialmente não seria
empregado para dialogar sobre sua prática, como já dito, no contrafluxo de seu horário
diário de trabalho, mesmo quando dispõe, como no caso da Rede Municipal de
Educação do Rio de Janeiro, de um horário oficial de estudos, é porque, de alguma

29
A palavra ‘Sistema’ aqui se refere à Rede Educacional no qual o docente está inserido. Cada Rede,
pública ou privada, possui normas próprias que determinam, entre outras regulamentações, se os docentes
possuem tempo oficial de estudos.

sumário 154
VII Seminário Vozes da Educação

maneira, esse horário oficial não oferece espaço para discutir suas demandas cotidianas
de sala de aula, seja porque não está sendo cumprido, seja porque está sendo ocupado
com discussões que se enquadram no conceito de palavra inautêntica apresentado por
Freire (2014).
Eliana Perez Gonçalves de Moura (2009), chama a atenção para um aspecto da
formação docente, chamada de formação em serviço, que é aquela que acontece dentro
do local e durante o horário de trabalho. Para Moura (2009), a formação em serviço
pode ter como recurso o alinhamento da formação, de caráter corretivo da formação
inicial, com a lógica administrativa a que estão submetidos os docentes. Esse
alinhamento de formação de que trata a autora muitas vezes visa alcançar a
padronização das condutas cotidianas dos professores (MOURA, 2009, p.159). Essa
padronização pode mesmo alterar ou constranger comportamentos que não
correspondam ao padrão de procedimentos que se espera no ofício docente. Essa visão
de formação apresentada por Moura (2009) pode alimentar uma boa comparação com o
conceito de humanização proposto por Freire (2014). Uma formação que formata,
padroniza segundo regras e possivelmente descaracteriza a individualidade sendo
comparada com a proposta humanizadora de Freire (2014) é um convite à uma
discussão.
O diálogo, para Freire (2014), deve consolidar o agir e o refletir. Somente
assim se transforma num terreno produtivo. O diálogo humaniza à medida que produz
transformações autênticas. E assim deve acontecer no terreno do diálogo docente.
O respeito ao outro com quem diálogo é traduzido na coerência entre minha fala
e minha ação, como nos diz Freire (2013) em Pedagogia da Autonomia:

É no respeito às diferenças entre mim e eles ou elas, na coerência entre o que


faço e o que digo, que me encontro com eles ou com elas. É na minha
disponibilidade à realidade que construo a minha segurança indispensável à
própria disponibilidade”30 (FREIRE, 2013, p. 132).

Assim, alinhando conceitos, Freire (2013) considera a coerência entre a fala e a


ação, como nos apresentou o próprio autor sobre a palavra inautêntica, a falta de
reflexão. Nos diálogos travados entre docentes, deve ficar clara essa disponibilidade à
realidade, essa busca coerente entre o falar e o agir, para que, cada vez mais a ação de
dialogar produza bons efeitos no sentido de reelaboração da prática, de transformação,

30
Grifos do autor.

sumário 155
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

diminuindo a distância entre os pares e os fazeres e colaborando para que aos poucos a
necessidade de buscar pelo parceiro de trabalho para a prática dialógica aumente até se
tornar indispensável. A ideia desse movimento é tornar a distância entre o que se diz e o
que se faz cada vez menor, vivendo, dia a dia, o que Freire (2014) chamou de “inédito
viável” (FREIRE, 2014, p.130), que vem a ser a predisposição constante de fazer
acontecer as possibilidades do tempo presente, deixando para realizar no futuro as
impossibilidades desse tempo. Não se trata de utopia inatingível, mas de possibilidades
reais de transformação: a utopia como o horizonte que nos mantém caminhando.
A busca pelos pares em diálogos pressupõe que o outro, docente também, tem
muito a contribuir com sua experiência no crescimento profissional daquele com quem
se propõe dialogar. Quando entendemos que não somos detentores de todo o saber, nos
colocamos em posição de ouvir o outro e aprender com ele. Quando entendemos que
temos a ensinar, não nos subalternizamos acreditando que apenas o outro, mais
experiente em sala de aula ou com maior tempo no magistério, sabe mais ou sabe
melhor por isso. É preciso entender o diálogo como uma via que vem e vai. Freire
(2013), nos mostra isso quando diz:

Minha segurança não repousa na falsa suposição de que sei tudo, de que sou
o ‘maior’. Minha segurança se funda na convicção de que sei algo e de que
ignoro a que se junta a certeza de que posso saber melhor o que já sei e
conhecer o que ainda não sei (FREIRE, 2013, p. 132).

Esses encontros promovidos pelos diálogos cotidianos, organizados em coletivos


que se estruturam por adesão voluntária para estudar a teoria e dialogar sobre ela,
promovendo também uma discussão sobre a prática, podem ser esse caminho descrito
por Freire (2013), numa busca constante por saber mais e melhor.
Nóvoa (2016), me oferece suporte quando afirma que os professores e
professoras precisam dialogar sobre suas práticas, pois assim consolidam saberes que
delas emergem, produzindo uma transformação de perspectiva.
No artigo Formação de professores e profissão docente, o autor explicita a
necessidade de voltarmos os olhares para a formação de professores e professoras não
como depositária de conceitos e modismos sobre formação docente, mas como
produtora de conhecimento que emerge da prática.
Recentemente o autor, em uma palestra na Universidade Federal do Rio de
Janeiro, em 2016, afirmou que nós, docentes brasileiros, não dialogamos sobre nossas

sumário 156
VII Seminário Vozes da Educação

práticas e assim nos privamos do registro sobre os saberes provenientes desse diálogo.
Segundo ele, somos, nós docentes, aqueles melhores capacitados para teorizar sobre o
que acontece dentro de nossas escolas.
Dialogar sobre a prática é uma ferramenta de pesquisa, se bem direcionada. Se
minha atenção se volta às possibilidades que posso vir a ter, o olhar do outro sobre o
que apresento para ele através da minha prática, se torna um mecanismo importante de
auto avaliação e reformulação de caminhos.
Como diz Serpa (2010), ao falar da subjetividade do conhecimento porque o
saber provém da relação: ao dialogar com meus pares, ao me relacionar com eles,
entrelaço saberes e produzo novos saberes, subjetivos. Essa subjetividade diz respeito
ao fato que os saberes podem não ser aplicáveis a todas as realidades, mas certamente
servem de ponto de partida de reflexão sobre elas.
Aproveito para acrescentar uma definição de diálogo da professora Marilza
Maia, do GEPPALFA31 – Grupo de Estudos, Práticas e Pesquisas em Alfabetização do
Colégio Pedro II – campus São Cristóvão I - que possui muita beleza e concorda com as
concepções dialógicas apresentadas nesse estudo. O GEPPALFA foi o grupo com o
qual estabeleci a parceria formativa que deu voz à minha pesquisa, que tornou-se nossa.

Pra mim o diálogo é estar primeiro aberto a ouvir o outro: diálogo também
pode ser silêncio. Às vezes eu preciso ouvir pra eu pensar sobre determinada
atitude minha, sobre determinada forma de pensar alguma abordagem... pra
mim o diálogo é isso e... a gente tem marcado muito isso aqui no grupo e
você vai ouvir o tempo todo: diálogo é também o que a gente encontra no
GEPPALFA... é saber se ouvir, saber ponderar quando o outro pensa
diferente, que eu não preciso pensar igual a elas, eu não preciso é... comungar
das mesmas ideias, das mesmas concepções, apesar de a gente aqui ter um
alinhamento de trabalho. Do jeito que a gente vê o diálogo, a gente já tem
uma maturidade pra alcançar esse respeito, essa sensibilidade pra ouvir o
outro... é isso. (MAIA, 2018)32

Assim, o diálogo é posto como um caminho para descobertas, mas não se mostra
solitário. É que o diálogo tem essa característica de estender diante de nós mais e mais
caminhos. Quanto mais percorremos as opções que se apresentam, mais trajetos surgem
adiante. O diálogo permite esse movimento de caminhada constante e dentro dele surge
uma gama de conceitos que vão permitindo a liquidez da conversa e apresentando novas

31
O GEPPALFA é o grupo que fez parte da pesquisa de mestrado citada.
32
Essa fala é uma transcrição literal do material em áudio captado durante os encontros com o grupo que
serviram como base para essa pesquisa.

sumário 157
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

perspectivas. É a utopia do horizonte, que jamais será alcançado, mas que está longe de
não ter utilidade justamente por isso. É o que nos mantém caminhando.
O diálogo é um conceito que não se encerra em um único uso e sua definição, ou
definições, abre/ abrem precedentes para outros tantos conceitos que imersos nele
tomam sentidos diversos.
O primeiro de muitos conceitos imersos no diálogo pelo conceito freireano do
inacabamento humano que nos dá a dimensão de que somos “seres históricos (...). Por
isso mesmo é que os reconhece como seres que estão sendo, como seres inacabados,
inconclusos em e com uma realidade que, sendo histórica também, é igualmente
inacabada.” (FREIRE, 2014, p.101).
Somos seres inacabados no sentido de que enquanto vivermos estaremos em
constante interação com diversos saberes, com outros indivíduos e com as
circunstâncias que nos rodeiam e nas quais somos atores diretos ou indiretos,
produzindo assim cultura e conhecimentos de e para um determinado tempo. Essa
produção nos constrói à medida que avançamos em nossas vivências pessoais e
profissionais.
Assim seremos sempre “seres que estão sendo” (FREIRE, 2014, p.101), mas
seremos sempre mais, porque a consciência do inacabamento faz de nós seres que
nasceram para a busca, para utopia do horizonte simbólico, não para uma caminhada
eterna e sem sentido, mas porque a própria caminhada é por si o objetivo. Se tomamos
consciência de que o inacabamento é uma condição humana, esse entendimento nos dá
a felicidade de uma busca lúcida, embora eterna. A utopia freireana.
A busca que não cessa dos seres inacabados provoca mudanças. É certo que,
muitas vezes, a mudança pode gerar algum desconforto, porque pode ser assustador sair
de uma situação de suposta segurança.
Assim acontece em tantas áreas da vida, nossas experiências nos dizem isso,
não seria diferente na Educação, onde lidamos com diferenças sociais, diferenças de
ideias e concepções sobre a própria Educação, diferenças de ordem pessoal, como
algumas representações que carregamos acerca de algo, valores. Assim o diálogo é o
campo onde o inacabamento do ser avança da insegurança pelo novo que vem, para a
certeza de que é sempre melhor o movimento que a inércia, embora o destino final seja
desconhecido ou mesmo inexista, existindo de fato apenas o caminho. É sempre melhor
a troca, a reflexão, do que um pensamento engessado. Quem melhor que meu par no

sumário 158
VII Seminário Vozes da Educação

diálogo para me ajudar nessa caminhada: dois ou mais seres inacabados que acabam por
se conectar no diálogo, tecendo caminhos?
O conceito de inacabamento liga-se diretamente ao conceito do “ser mais”
(FREIRE, 2014, p. 104), à ideia de humanização.
Historicamente, como bem apresentado pelo autor, observamos a humanização
como o que deve ser construído em oposição à desumanização, que é largamente
observada no curso da história.

Mas, se, ambas são possibilidades, só a primeira nos parece ser o que
chamamos de vocação dos homens. Vocação negada, mas também afirmada
na própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão,
na violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça,
de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada.
A desumanização que não se justifica apenas nos que têm sua humanidade
roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que roubam, é
distorção da vocação do ser mais (FREIRE, 2014, p.40).

Ser mais é a capacidade que temos de irmos além das expectativas sociais pré-
estabelecidas, é a vocação que todos temos para a luta pela humanização que nos é
viável e intrínseca à nossa natureza de seres inacabados. É, sem dúvida, a possibilidade
do rompimento do círculo de opressão pelos próprios oprimidos, acabando com o
despertar cíclico de novos opressores. Compreender que nos desumanizamos quando
lutamos uns contra os outros é, por si, um ato de humanização.
Muitas vezes o oprimido crê que é menos quando aceita que merece ser
desumanizado, quando aceita que determinadas conquistas ou determinadas posições
sociais não são para um desumanizado como ele. Está tão entranhada no tecido social a
existência de posições que não devem ser ocupadas por determinados atores sociais
oprimidos, que a situação se naturaliza. Não é uma questão de aceitar o fardo, na
verdade. Talvez seja mais uma questão de falta de consciência política, porque uma vez
libertos da ideia de submissão, os opressores serão capazes de compreender que podem
ser mais. Esse é o ensinamento de Freire (2014) quando disse que “só o poder que nasça
da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”
(FREIRE, 2014, p. 41). É a educação para a liberdade. Liberdade de pensamento, de
reflexão, de diálogo, de ação, de existência, de ser mais.
Não posso deixar de traçar um paralelo entre as relações com o saber e a relação
entre opressores e oprimidos, proposta por Freire (2014). O autor falava diretamente

sumário 159
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

aqueles a quem chamava “esfarrapados do mundo”33: homens e mulheres humildes,


que submetidos às relações de poder, se mantém à margem das decisões políticas,
recebendo as providências tomadas por uma elite muitas vezes como benesses,
submetidos à cultura dessa elite e acreditando que o que fazem e sabem são saberes
menores ou nem saberes são.
Cabe apresentar alguns relatos das professoras do GEPALFA onde o viés
político se faz muito marcado e por onde podemos compreender, pela narrativa das
docentes, o conceito de ser mais e a necessidade de implementarmos em nosso
cotidiano o conceito de humanização proposto por Freire (2014).

A forma como eu milito em Educação. O seu fazer está sempre a serviço de


algum projeto. Que projeto de sociedade você está construindo com a sua
prática? A serviço de quê você está pondo o seu trabalho? Acho que essa
consciência que me fez, é, acreditar que a ação política mais efetiva que eu
possa fazer é ensinar. Não deixar de ocupar esse lugar do meu trabalho. Eu
tenho um compromisso político. Eu estou a serviço da população brasileira.
A ideia do servidor público: quem me sustenta nesse lugar e a serviço de
quem eu vou me colocar? Que interesses...? Então isso foi... claro, né, a
minha formação no Pedro II foi ampliando, porque eu acho que essa escola...
pela sua proximidade com as esferas de poder, é assim que eu avalio, não sei
se quem tá de fora como vê, né? Não vivi as realidades das grandes redes, eu
não posso falar sobre isso, mas em geral o poder, a representação do poder
não tá ali dentro da escola nas grandes redes, aqui não, o poder tá ali do outro
lado na reitoria. Aqui em São Cristóvão então: a reitoria ali, o sindicato ali, a
ADCPII34 ali, então... você está na efervecência política, então é claro que
isso foi também, né, ampliando a minha concepção. Eu já militei, eu já
panfletei, eu já tive na Cinelândia. Eu fui revendo, como todo mundo foi se
reconfigurando. Estamos discutindo os caminhos da esquerda hoje. Eu fui me
desidentificando com alguns lugares...mas a minha formação se deu, essa
formação inicial, num processo de redemocratização do país. Não tem como
sair desse momento histórico em que eu fui formada. (VIDAL, 2018)35

A professora Angela Vidal nos fez esse relato salientando que o maior ato de
militância, o mais potente de fato, é o ensinar, é o estar com os alunos em sala de aula.
Um aluno que reflete sobre seu papel, ou papeis, que pode assumir na sociedade,
que compreende que as amarras sociais impostas podem ser vencidas embora saiba
também que para que isso aconteça precisa existir uma força social que as rompam, é
capaz de fazer a reflexão que Ana Paula fez e nos apresentou:

Como a gente vai se sentindo ao longo da vida: o não ser suficiente... Vou
ouvindo essas coisas e vou indo lá pra sala (se remete à sala de aula). Não

33
Termo usado pelo próprio Freire (2014) na epígrafe de sua obra Pedagogia do Oprimido, 2014.
34
Associação de Docentes do Colégio Pedro II.
35
Essa fala é uma transcrição literal do material em áudio captado durante os encontros com o grupo que
serviram como base para essa pesquisa.

sumário 160
VII Seminário Vozes da Educação

consigo me desvincular desse lugar... e quanto a atuação da gente com essas


pessoas é importante. O quanto que a gente fala pra elas, o quanto que a
gente mostra pra elas, constrói nelas esse sentimento de ‘Eu sei, eu posso, eu
consigo, eu sou potente...ou eu não sou...’ E assim... falas que a gente vai
ouvindo ao longo da vida, de colegas professores e que vão fazendo a gente
ou afirmar esse lugar de que eu vou fazer diferente, eu preciso fazer diferente
porque estou lidando com seres humanos e quando a gente lamenta pela vida
das pessoas que passam na mão daqueles colegas. Eu ouvi isso quando eu
tava fazendo a graduação: era um curso só para professores então todas
aquelas pessoas que estavam ali eram professores e uma colega de turma, em
uma discussão que eu já não me lembro mais como começou dizendo: ‘Ah,
eu trabalho lá no Morro dos Macacos, né? Eu vou lá e eu faço o que dá pra
fazer porque eu sei que dali não vai sair nada. Eu já sei que eles vão ficar ali
naquele lugar.’ Aquilo me tomou, que é uma expressão que eu gosto muito
de usar, aquilo me tomou de um jeito (...), que eu tive que dizer para aquela
pessoa ‘Eu preciso te dizer uma coisa. Eu preciso dizer pra você que eu sou
uma dessas crianças. Eu sou uma criança que não tem pais escolarizados. Eu
sou uma dessas crianças de famílias desestruturadas, dessas aí que a gente
ouve falar tanto. Eu sou uma dessas crianças que a vida inteira estudou numa
escola pública. Se hoje eu estou aqui nessa universidade...porque eu estudei a
vida inteira nessas escolas que você tá falando que você trabalha? Nessas
escolas municipais? Eu nunca tive ninguém pra me ensinar nada. Eu usei
uniforme que os colegas davam. Também recebia material da escola. Eu sou
essa criança aí que você tá falando e eu não posso dizer que eu não cheguei a
lugar nenhum não, porque eu cheguei aqui, porque eu tenho duas matrículas
na prefeitura... e porque eu penso que eu posso fazer diferente na vida de
alguém. Então eu cheguei a algum lugar e graças a Deus eu não tive uma
professora igual a você, porque se eu tivesse uma professora como você
talvez eu não tivesse chegado aqui não. Eu tive professoras que acreditaram
em mim. (CAETANO, 2018)36

O relato da professora Ana Paula Caetano é a confirmação prática do conceito


freireano de ser mais como condição humana. Ana Paula nos apresenta a superação das
amarras fatalistas da desumanização impostas por uma crença social, partilhada por
muitos, fundada na exclusão dos mais pobres creditando a eles somente a perpetuação
de uma condição de limitação: “Ninguém pode ser, autenticamente, proibindo que os
outros sejam. Esta é uma exigência radical. O ser mais que se busque no individualismo
conduz ao ter mais egoísta, forma de ser menos. De desumanização.” (FREIRE, 2014,
p.105)
Faz-se necessário salientar que a concepção freireana de relações não propõe
uma guerra entre opressores e oprimidos, mas uma relação de amorosidade, pautada no
diálogo.
O Conceito de amorosidade em Freire (2014) pressupõe a aplicação da
dialogicidade. Uma postura antidialógica (FREIRE, 2014, p.226) admite a subjugação
de um sujeito por outro que se supõe hierarquicamente mais forte, mais bem preparado,

36
Essa fala é uma transcrição literal do material em áudio captado durante os encontros com o grupo que
serviram como base para essa pesquisa.

sumário 161
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

mais consciente. O diálogo, portanto, contribui para a tomada de consciência de forma


amorosa e generosa, pois embora o processo de conscientização seja individual, ele é
fruto também das conjecturas que se estabelecem no diálogo.
Enveredar-me em uma pesquisa sobre os coletivos de formação docente que se
fundam sobre o diálogo amoroso entre os pares, antes de ser uma alternativa proposta
aos educadores e educadoras para quem escrevo é, antes de tudo, uma oportunidade de
transformação pessoal e profissional. Cheguei ao final dessa pesquisa transformada e
determinada a fazer parte do GEPPALFA. Nesse lugar de troca, estudo e pesquisa, sinto
o pulsar dos ensinamentos da professora Regina. Sou professora pesquisadora de minha
própria prática e junto com minhas parceiras de caminhada, dia a dia, rumo ao
horizonte.

Referências

BORGES, Jorge Luis; FERRARI, Osvaldo. Sobre a filosofia e outros diálogos. São
Paulo: Hedra, 2009.

COLOMBO, Sylvia. Papo com Borges. Folha de São Paulo, São Paulo 31 de out.
2009. Ilustrada, p. 1.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 58.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 46.ed. Rio


de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

GARCIA, Regina Leite. A formação da professora alfabetizadora: reflexões sobre a


prática. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2003.

MOURA, Eliana Perez Gonçalves de. Gestão do trabalho docente: o “dramático” uso
de si. Revista Educar, n.33, pp. 157-169. Editora UFPF: Curitiba, 2009.

NÓVOA, Antônio. Para uma formação de professores construída dentro da


profissão. Recuperado em 16 de outubro de 2019. Disponível em:
http://www.revistaeducacion.educacion.es/re350/re350_09por.pdf

SERPA, Andréa. Quem são os outros na/da avaliação? Caminhos possíveis para uma
prática dialógica. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense – UFF, 2010.

sumário 162
VII Seminário Vozes da Educação

FORMAR, LEMBRAR, NARRAR: PERSPECTIVA NEGRA SOBRE A


CONSTRUÇÃO DO SUJEITO DA EXPERIÊNCIA.

Tais de Almeida Costa


UFRRJ
taisagbara@oi.com.br

Ser negro é, tomar consciência do processo ideológico


que, através de um discurso mítico acerca de si,
engendra uma estrutura de desconhecimento que o
aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece.
Ser negro é tomar posse desta consciência e criar uma
nova consciência que reassegure o repeito às diferenças
e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de
exploração (Neusa dos Santos Souza).

Formação da introdução

As relações raciais, particularmente as produções humanas que envolvem o


movimento com/contra o corpo negro nas instituições de ensino tem sido o grande foco
dos meus estudos. Neste artigo que é parte de minha dissertação de mestrado defendida
em fevereiro de 2016, me proponho a pensar sobre formação como acontecimento,
atribuindo sentido às experiências que vieram antes da minha formação profissional e o
quanto estas foram importantes para minhas “escolhas” ao longo da vida, a exemplos:
minha relação com o meu corpo de mulher negra, capoeirista, jongueira, e os outros
corpos com os quais interajo cotidianamente: alunos, professores, amigos e família.
Os estudos das relações étnico-raciais, estudos dos/nos cotidianos na Educação,
estudos de narrativas e textos autobiográficos, têm me permitido conhecer desde que
entrei para o mestrado em Educação no ano de 2014, uma outra forma de fazer pesquisa
diferente das propostas mais cartesianas que predominam no meio acadêmico brasileiro,
buscando entender como as histórias singulares se conectam às grandes narrativas
mesmo quando o discurso hegemônico tenta apagá-las. Neste senttido, tentarei destacar
a importância da subjetividade não só na escrita de um texto acadêmico, mas
principalmente em nossas formações no sentido mais amplo que essa palavra permite.

sumário 163
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Formação da subjetividade

Minhas implicações com as questões étnico-raciais iniciaram dentro de minha


própria família, filha de pais pretos, funcionários públicos, os dois com nível superior
completo, nunca passamos por necessidades financeiras. Pela classificação
econômica, pode-se dizer que fazemos parte de uma “classe média trabalhadora”. No
entanto, sempre foi enfatizado por eles, o quanto era mais difícil para nós pretos
alcançarmos “boas oportunidades” dentro da nossa sociedade; de que o racismo, o
preconceito e a discriminação sempre existiram e por isso nossa conduta (minha e de
meus irmãos) devia ser sempre “correta”, pois na “opinião” deles, o negro no Brasil
sempre é posto em situação de suspeita e demérito.
Minha mãe dizia praticamente todos os dias que devíamos dar nosso melhor em
tudo que fôssemos fazer, para que nunca houvesse a possibilidade de duvidarem da
nossa capacidade pelo fato de sermos pretos, pois algum dia fatalmente seríamos
vítimas de preconceito racial. Depois do falecimento do meu pai quando eu tinha 17
anos, as “verdades” dela se reforçaram como as minhas crenças, pois eu sendo preta,
devia dar o meu melhor em tudo, já que “para os negros tudo é mais difícil!”, ela
sempre dizia isso. “Ser melhor! Na realidade, na fantasia, para se afirmar, para
minimizar, compensar o ‘defeito’, para ser aceito. Ser o melhor é a consigna a ser
introjetada, assimilada e reproduzida. Ser o melhor, dado unânime em todas as histórias
de vida” (SOUZA, 1983, p.40).
Assim eu fazia, apesar de naquela época nunca ter sentido “na carne” tal
situação, e mesmo quando muitas vezes ouvia das pessoas com as quais eu convivia que
eu não era preta e sim morena, eu não entendia isto como uma forma de discriminação
negativa, mas estava sempre pronta para corrigir: “preta!”, pois eu fazia questão de
dizer que sendo filha de dois pretos, eu só poderia ser preta também.
Ser chamado de moreno no imaginário nacional significa a representação da
“mistura”, a miscigenação tão característica a nós brasileiros, efeito da ideologia racial
de se tornar branco um dia ou clarear a família e supostamente amenizar a condição de
negro, que nos foi imposta de maneira monocultural. A gradação de cores demonstradas
pelo senso do IBGE na década de 80, foi analisada por Munaga (1999) como sendo uma
classificação dos indivíduos não somente em função de seus fenótipos, mas também e
sobretudo em função de sua posição na sociedade. Ou seja, quanto maior a ascensão

sumário 164
VII Seminário Vozes da Educação

econômica, menos preto se é. E como minha família estava inserida na classe média,
nós não éramos vistos como pretos por boa parte das pessoas ao nosso redor ou será que
nos viam como “negros de alma branca”?
Como disse no início, a presença do racismo em nossa sociedade era assunto
constante em casa, mesmo que algumas vezes de forma generalizada. Tenho certeza de
que foram essas conversas que me impediram de acreditar no mito da democracia racial
tão difundido entre nós brasileiros. Por isso, toda vez que este assunto é posto em
discussão seja entre amigos ou mesmo nos ambientes de trabalho, faço e continuarei
fazendo questão de deixar explícita a minha posição, afirmando que o racismo está
presente todos os dias, inclusive nos pequenos gestos, que antes eu não era capaz de
reconhecer. Infelizmente, muitas pessoas ainda não o reconhecem, assim como meus
alunos e dezenas de pessoas com as quais eu já tive oportunidade de conversar sobre
esse assunto, fazendo com que o racismo estrutural continue disfarçado de
“brincadeira”, o que é tão peculiar a nós brasileiros.
“A ausência de tensões abertas e de conflitos permanentes é, em si mesma,
índice de ‘boa’ organização das relações raciais?” (FERNANDES, 1972, p. 21). Este
questinamento de Florestan Fernandes em plena década de 70 mantém-se tão atual
porque nossa sociedade, que há muito acompanha o pensamento moderno-ocidental
reproduziu a ideia da boa convivência entre negros e brancos sem se preocupar com as
“funções/lugares” demarcados.
O que sempre foi “função/lugar” de preto ou o que sempre foi “função/lugar” de
branco, se não forem maculadas, não se conjuga como um problema. No entanto,
muitos acreditam que se for por mérito, esses “lugares” podem até ser desconfigurados,
mas justifica-se a falta de equilíbrio entre a quantidade de negros e brancos nas mesmas
posições sociais, como sendo responsabilidade de quem se vitimiza e não se esforça
para ascender social e economicamente.
Não me recordo de durante a minha infância e adolescência encontrar atores
negros que fossem protagonistas ou que interpretassem personagens da classe média e
alta nas novelas, os “lugares” em eram sempre muito bem marcados, sempre papéis
secundários e subalternizados, os comerciais e propagandas da TV não tinham os afro-
brasileiros como público-alvo.
Graças à militância dos movimentos negros, esse quadro vem se modificando
ainda que timidamente, sendo um pouco menos frequente a presença de negros
retratados de forma estereotipada pelos meios de comunicação, mas que ainda não são

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

suficientes e tampouco impedem os casos de racismo e desrespeito que acontecem


cotidianamente, como o que me ocorreu no início do ano de 2014, no qual uma
discussão no trânsito resultou em uma agressão verbal (ato criminoso) por parte da outra
motorista que se referiu a mim como: “Crioula safada, sua macaca!”.
Essas situações acontecem com tanta frequência em qualquer lugar do Brasil,
que nos acostumamos a olhar de forma bastante naturalizada, sem buscar as devidas
resoluções legais, evitando a “exposição” frente às autoridades, porque um crime de
injúria não possui a mesma pena de um crime de racismo, e muitas vezes “não dá em
nada”, passando longe de serem noticiados pela mídia, a não ser quando ocorrem com
pessoas famosas.
Posso afirmar que foi a partir do mestrado que fui capaz de perceber a
necessidade de se investigar como e por que surgem afirmações como estas. Estudando
sobre as relações étnico-raciais no Brasil encontrei algumas referências que
fundamentam e corroboram o pensamento de boa parte da nossa população, assim como
o meu, de meus alunos e o de minha família em algumas situações como estas. A que
escolhi para utilizar nesse momento foi a do sociólogo norte-americano George Reid
Andrews que ao pesquisar a história dos negros - particularmente dos negros na
América Latina, veio para o Brasil e constatou, assim como outros pesquisadores a
presença do mito da democracia racial, que consiste na convivência harmoniosa entre
brancos e negros sob condições de “quase completa igualdade”. Sua pesquisa se
concentrou no estado de São Paulo nos anos finais da década de 70 e em suas
observações e análises, acabou confirmando e registrando no livro Negros e brancos em
São Paulo (1888-1988), esse mesmo pensamento tão naturalizado e perpetuado por uma
parcela considerável de brasileiros:

Esta “ideologia dos brancos” (ideologia racista) também contém um


poderoso componente de estereótipo antinegro que tem suas raízes profundas
na história, no folclore, na cultura brasileira, mas que vai soar dolorosamente
familiar a qualquer cidadão dos Estados Unidos. Os negros são vistos como
criminosos, preguiçosos, estúpidos, irresponsáveis, promíscuos, mal
cheirosos – a essência do Outro que contamina a sociedade. No grau em que
estas imagens negativas são aceitas e acreditadas no Brasil – e o grau é
realmente alto, em todos os níveis da sociedade (...) (ANDREWS, 1991, pp.
262-263).

Nessa mesma linha de investigação que questiona tal mito, em âmbito nacional o
sociólogo brasileiro Florestan Fernandes foi um dos precursores, quando para compor o
projeto UNESCO na década de 60, escreveu o Ensaio O negro no mundo dos brancos,

sumário 166
VII Seminário Vozes da Educação

para a coletânea de pesquisas sociais sobre a situação do negro no Brasil, analisada


também a partir do estado de São Paulo. Porém sua análise que se embasava no aspecto
de classes, não atendeu completamente às peculiaridades inerentes às relações raciais no
Brasil. Reforçou o conceito de anomia social pressupondo que o negro não tinha
condições nem capacidade de acompanhar o crescimento econômico e o
desenvolvimento sociocultural em que se encontrava a cidade de São Paulo na época.
Para justificar tal conceito ele falou sobre seus fatores e efeitos, na obra A integração do
negro na sociedade de classes, que foi lançada alguns anos depois do ensaio para a
UNESCO. “(...) Ao que parece, neles se encontram as ‘fontes de inércia’ que
neutralizaram ou tardaram o empenho de classificação e de ascensão sociais da gente
negra (grifo do autor)” (FERNANDES, 2008, p. 120-121). Passando a receber muitas
críticas de outros pesquisadores posteriormente. Este conceito desenvolvido por
Florestan Fernandes, ainda é muito forte em nossa sociedade, mesmo após quase
sessenta anos ainda é bastante comum se ouvir discursos como este, da anomia social
sofrida pela população negra, inclusive entre os negros.
Acredito que a maior e melhor intenção dos meus pais ao fazer tais comentários
era de nos proteger de um possível sofrimento, como encontrarmos dificuldades em
arrumar um emprego quando nos tornássemos adultos em função de nossa cor.
Provavelmente também cresceram e se formaram enfrentando essas mesmas condições,
talvez por isso nos alertavam e cobravam tanto. E assim, sob esses cuidados fui
trilhando meu caminho, tentando seguir os ensinamentos e passos de meus pais.
Bastante do que vivi com minha família, estava em parte de acordo com o
pensamento de Neusa dos Santos Souza em seu livro Tornar-se Negro, quando diz que a
ascensão social do negro está atrelada à construção de sua emocionalidade. “A
emocionalidade, era a tentativa de livrar-se da concepção tradicionalista que via o negro
econômica, política e socialmente inferior e submisso, sendo obrigado a tomar o branco
como modelo de identidade” (SOUZA, 1983, p.19). Digo “em parte”, porque muito da
identidade negra não se perdeu, ou melhor, não foi abandonada, na medida em que o
samba, a umbanda e o grupo de origem se mantiveram. A ideologia do branqueamento
como aponta a autora, não se instituiu completamente, pois mesmo de forma
“inconsciente” meus pais nos reforçaram a ideologia de negritude contra o mito negro e
o mito da democracia racial.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Incrustrado em nossa formação social, matriz constitutiva do superego de


pais e filhos, o mito negro, na plenitude de sua contingência, se impõe como
desafio a todo negro que se recusa à submissão, posição de subalternidade.
Interpelado num tom e numa linguagem que nos dilacera por inteiro, nós
negros nos vemos diante do desafio de conhecê-lo e eliminá-lo(...) (SOUZA,
1983, p. 26).

Neste sentido, concordo com a autora que obviamente cabe a negros e não-
negros a execução desta tarefa, pois é fácil constatar que o mito negro é feito por
imagens fantasiosas e depreciativas compartilhadas por ambos. Cabe à sociedade, mas
principalmente a mim como professora negra que se incomoda com essa situação, a
linha de frente dessa luta, assumindo o lugar de sujeito ativo e da pesquisa. E é isso que
eu gostaria de motivar em meus alunos, que ainda se encontram no ensino fundamental,
principalmente os dos anos iniciais.
Um pouco do que venho aprendendo nas leituras sobre o tema, junto ao que
meus pais me ensinaram em como ser negra e pricipalmente ter orgulho por tudo que
muitos de nossos ancestrais deixaram como legado. Todavia, a naturalização do racismo
perpassa toda a nossa história e mesmo com resistências, se renova a cada dia aqui no
Brasil, revelando a maneira como ele estrutura praticamente todos os tipos de relações e
faz com que as pessoas considerem “normal” a falta de equidade entre a nossa
população, reduzindo-o apenas à questão social , quando é dificultado para alguns o
acesso à educação, como já foi exposto, aos serviços públicos, ao poder político, ao
capital financeiro, às boas oportunidades de emprego, às estruturas de lazer, ao
tratamento igualitário pelos órgãos judiciais, em detrimento de vantagens, benefícios e
liberdades que a sociedade concede abertamente para outros, tudo em função do
fenótipo, como analisa Moore (2012, p.229).

Formação acadêmica

Iniciei minha graduação em 2002 na UFRRJ Campus Seropédica e o quadro


pouco havia se modificado comparado à escola. Claro que havia alunos negros cursando
a licenciatura em Educação Física, mas não chegava nem a um terço da minha turma de
sessenta alunos, nessa época ainda não existia a política de cotas nas universidades, mas
eu já estava acostumada com tudo aquilo, “era assim mesmo”, ainda que as pessoas não
externassem, a impressão que me dava era de que aquele lugar estava reservado para
poucos negros ou de preferência nenhum. Mérito dos esforçados, sempre me
qualificaram como tal e era nisso que eu acreditava, então merecia estar ali. Mas ainda

sumário 168
VII Seminário Vozes da Educação

assim, eu tinha o desejo de poder ver mais alunos negros na “minha” universidade,
porque eu sabia que as oportunidades não eram iguais para todos. Eu e minha família
estávamos fora das estatísticas voltadas para os afro-brasileiros.
Assim como tantos professores, não tive a oportunidade de tomar conhecimento
sobre a lei 10639/03 (lei federal que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e
cultura africana e afro-brasileira no currículo das redes de ensino no Brasil) durante meu
curso de Licenciatura Plena em Educação Física, que teve início em 2002 e durou até
2006. Destacando principalmente as competências técnicas e burocráticas dos “saberes
escolares”, pouquíssimas questões relativas à raça e ao racismo foram inseridas nas
discussões acadêmicas durante o meu processo formativo “oficial”. Independentemente
da área e do tempo de criação da lei citada, ainda se tem conhecimento de que muitos
cursos de formação de professores não abordam de maneira adequada os objetivos e a
sua efetiva implementação, estabelecendo a falta de “preparo”, limites ideológicos e
manutenção do status quo por parte dos novos educadores.
Através dos estudos para a pesquisa da dissertação e que se mantém até hoje,
procuro também buscar compreender os efeitos nesses mais de dez anos de
promulgação da lei 10639/03 e as tentativas de implementação de políticas de ações
afirmativas que de acordo com a SEPPIR visam corrigir desigualdades raciais presentes
na sociedade, acumuladas ao longo de anos., objetivando reverter a representação
negativa dos negros; promover igualdade de oportunidades e combater o preconceito e o
racismo. Mas para além disso, propõem:

Uma Educação para as Relações Etnicor-aciais, orientada para a divulgação e


produção de conhecimentos, bem como atitudes, posturas e valores que
eduquem cidadãos quanto à pluralidade etnicorracial, tornando-os capazes de
interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos
direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da
democracia brasileira (CNE, 2004, p. 15).

Esta citação me faz lembrar muito bem das palavras de minha mãe e o quanto
ela já se preocupava em fazer isso conosco quando éramos crianças (mesmo que
algumas vezes se desse de forma equivocada), pois sempre dizia que nunca poderíamos
sentir vergonha do que somos e menos ainda permitir que nos humilhassem por conta
disso, que deveríamos valorizar nossa “cultura” e especialmente nos aceitar com todas
as nossas características (cabelos crespos, lábios mais grossos, o nariz achatado, a cor
da pele mais escura, a bunda grande), mas pra isso teríamos que nos agarrar ao maior

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

bem que eles poderiam nos garantir que era a Educação, e aí sim disputar pelas
“mesmas oportunidades” em condições iguais e respeitados pela sociedade, assim como
as outras pessoas.
Todas essas orientações foram muito importantes para que eu me tornasse a
mulher que sou hoje, contudo, ao longo desses anos de estudos, venho tentando além de
ampliar os conceitos para o aprofundamento das pesquisas, inserir os processos que me
fizeram refletir sobre o que foram e o que poderão ser as minhas experiências pessoais,
profissionais e sociais em cada novo artigo.
Ser disciplinada, dedicada aos estudos no período escolar, eram para mim o
sinônimo da boa educação que recebi de meus pais, saber me comportar, saber me
impor, não envergonhá-los, etc. Mas pude perceber que era exatamente esse o
parâmetro que eu vinha exigindo dos alunos que passaram por mim nesses dez anos de
magistério, apenas reproduzindo um papel de vigilante dos alunos, submetendo-os todos
a um mesmo modelo, desconsiderando muitas vezes suas subjetividades. O sonho da
maioria dos professores da educação básica, manter a turma sob controle e
disciplinados, em que passei a me perguntar: Estava realmente ensinando ou somente
disciplinando?
Mesmo com todas as adversidades inerentes à escola pública no Brasil, nunca
me imaginei lecionando fora desse espaço, nem o fato de poder dar continuidade à
minha formação acadêmica, onde o “caminho comum”, poderia ser deixar o ensino
fundamental e médio e partir para o ensino superior. Pois é o trabalho com esse
segmento que me toca e tem me possibilitado compreender as facetas de um racismo
pseudoingênuo que passeia pelos corredores e salas de aula e que se reforçam no
cotidiano por alunos e professores. E como eu poderia entender o que se passava na
escola sem estudar seus cotidianos? Cotidiano que sempre fez parte de mim, pois nunca
me distanciei deste lugar e aqui estou eu, hoje como professora-pesquisadora, que tenta
lutar por uma educação antirracista e acredita que esta mudança de paradigmas só será
possível se os sujeitos cotidianos puderem ter visibilidade, se tiverem a oportunidade de
serem ouvidos. E assim foi feito em minha pesquisa com meus alunos para o mestrado.
Preciso destacar que foi a partir das orientações coletivas no período do
mestrado que entendi a necessidade de me assumir também como sujeito da pesquisa e
me comprometer de fato com ela. Estudar “sobre” o espaço escolar, era antes me
colocar a olhar de fora, achar de maneira leviana que poderia não interferir nos

sumário 170
VII Seminário Vozes da Educação

processos e que uma metodologia bem definida, facilitaria todo o “andamento” da


pesquisa, porque assim se pensa antes o que pode acontecer.
Na busca por compreender a importãncia de não me ausentar dos meus textos,
me deparei com Ferraço e seu artigo Eu, caçador de mim, no qual ele consegue deixar
muito claro e ainda potencializar o sentido de se estudar “com” os cotidianos, porque
“Somos, no final de tudo, pesquisadores de nós mesmos, [em alguma medida] somos
nosso próprio tema de investigação” (Op. cit., p. 160).
Na medida em que fui me deparando com outras possibilidades de ver o mundo,
determinadas leituras, assim como esta que citei, foram me ajudando a refletir e a
questionar o quanto naturalizamos as narrativas hegemônicas e como damos tão
pouca/nenhuma importância aos acontecimentos que nos atravessam. Acredito que essa
produção de autoconhecimento utilizada por mim e por outros, reflete um “sujeito
individual, sujeito são e maduro, definido normativamente em termos de
autoconsciência e autodeterminação, e no qual temos certa tendência a nos reconhecer,
ao menos idealmente, (…)” (LARROSA, 1994, p. 40).
Este autor me abriu uma via para exercitar a desfamiliarização de mim mesma,
exercício muito mais penoso do que o exercício físico, o qual eu estou tão acostumada a
fazer. E por que foi/tem sido tão difícil me desfamiliarizar? Aos 36 anos, estou me
dando conta de que ainda não dou conta de mim mesma! “Porque a ideia do que é uma
pessoa, ou um eu, ou um sujeito, é histórica e culturalmente contingente, embora a nós,
nativos de uma determinada cultura e nela constituídos, nos pareça evidente e quase
‘natural’ esse modo tão ‘peculiar’ de entendermos a nós mesmos” (Op. Cit., 1994).
Seguindo o fluxo e acompanhando a produção das grandes narrativas, eu
acreditava ter recebido uma “boa educação”, mas que para essa nova contigência não
foi suficiente para responder a tantos questionamentos que foram surgindo no decorrer
desse trabalho, e fizeram-me perguntar novamente: Que boas escolas foram essas, que
nunca me proporcionaram discussões sobre o fato de eu estar ali e representar um
número tão pequeno entre tantas pessoas brancas sentadas naqueles bancos?
Nesses anos atuando como professora, percebo que houve avanços, no mínimo
nas escolas onde trabalho que são das esferas estadual e municipal. O corpo docente já
possui uma quantidade relevante de professores negros e os serviços oferecidos pelo
“pessoal de apoio” como cozinheiros/as, serventes, porteiros/as, já não constam em sua
maioria de pessoas negras. Em contrapartida, estas para o senso comum, apresentam

sumário 171
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pouca “qualidade no ensino”, principalmente por conta dos/das alunos/as que recebem,
sendo sua maior parte de alunos/as pobres e negros/as.

Esse tratamento que é dado ao signo na escola pública, (...) vem se refletir na
desqualificação da cultura dos/das professores/as, de seus alunos e suas
alunas, que em sua maioria pertencem às classes populares e são afro-
descendentes, quando lhes é imposta como única e verdadeira, a visão da
classe hegemônica, que é eurocêntrica (JESUS, 2004, p. 57).

A educação pública de “antigamente” considerada por muitos como a “boa”


educação, estava vinculada à mecanismos excludentes, como os exames admissionais
que foram mencionados acima, (que acontecem ainda hoje nas instituições federais
tanto no ensino fundamental, quanto no ensino médio e superior). Porém, no período da
República e início do século XX, em muitos casos, esses exames selecionavam os
alunos a partir da procedência familiar, ou seja, o acesso poderia ser facilitado aos
alunos que comprovadamente tivessem condições de acompanhar o nível de ensino em
função de já apresentarem “bases” éticas e morais compatíveis com a instituição.
Consequentemente, uma grande parcela de alunos das classes populares se viam
impossibilitados de disputar uma vaga, além de apresentarem muitas dificuldades para
dar prosseguimento às exigências escolares, fosse em função da fome, ou do trabalho,
ou falta de adequação ao sistema, ou falta de incentivo familiar, dentre outros.
Mas ainda assim, existe um discurso muito forte da população brasileira em
geral, de que é esse o sistema que deveria retornar e prevalecer para que a “qualidade”
na educação pudesse ser retomada.

Formação de considerações

O fato de atuar profissionalmente em escolas públicas da Baixada Fluminense


(RJ) e lidar com alunos negros há alguns anos, me conferia certa segurança ao falar
sobre aquilo que eu acreditava e pretendia pesquisar, mesmo sem nunca ter parado para
questionar minha práxis tanto em sala de aula quanto na quadra e tampouco as relações
com os alunos.
Me ver como sujeito da experiência era algo que eu jamais havia imaginado. O
que poderia ser importante em mim que deveria estar nas pesquisas sobre relações
raciais na escola? Eu não era capaz de me ver em meus alunos, não acreditava que parte
dos meus problemas podia ser os mesmos problemas deles, e apesar de negra, não
entendia que a minha realidade não era muito diferente da deles, me levando a pensar

sumário 172
VII Seminário Vozes da Educação

que era sobre a influência do racismo nos corpos deles é que eu deveria falar e não de
mim.
Assumo a natureza subjetiva deste trabalho também como uma dimensão
política. O autoconhecimento em função da problemática da pesquisa pode ser uma
(outra) das maneiras de fazer. Por isso as próprias práticas, crenças e hábitos do
pesquisador funcionarão como objeto de investigação, e esse(s) outro(s) jeito(s) de
pensar foram bastantes complexos pra mim, ao contrário do que muita gente pensa, não
seguir a norma padrão e escolher outro caminho fora do pensamento hegemônico é bem
mais difícil do que parece. Se colocar efetivamente como autor de um texto, lidar com a
exposição de uma escrita subjetiva e autobiográfica, não significa escrever de qualquer
modo, ou qualquer coisa acerca de si, mas sim utilizar a escrita e a leitura como
“lugares de experiência” (LARROSA, 2014).

Referências

ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Tradução:


Magda Lopes. Revisão Técnica e apresentação: Maria Lígia Coelho Prado. Bauru, SP:
EDUSC, 1991.

BRASIL.Lei Federal n°. 10.639, De 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20


de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e
Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Brasília, 2003. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em 25 jan, 2015.

______. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:


Educação física/Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997, p.
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23 jan, 2015.

CAMARGO, Maria Rosa Rodrigues Martins de (Org.); SANTOS, Vivian Carla Calixto
dos (Colab.). Leitura e escrita como espaços autobiográficos de formação. São
Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. Disponível em:
http://books.scielo.org. Acesso em 14 abr, 2014.

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos (Org.). Educação anti-racista: compromisso


indispensável para um mundo melhor. In:______. Racismo e anti-racismo na
educação: repensando nossa escola. São Paulo: Summus, 2001. p.141-160.

CRUZ, Mariléia dos Santos. Uma abordagem sobre a história da educação dos negros.
In: ROMÃO, Jeruse (Org.) História da Educação do Negro e outras histórias.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. – Brasília: Ministério
da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. 2005. p.
21-33.

sumário 173
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

FERRAÇO, Carlos Eduardo. Eu caçador de mim. In: GARCIA, Regina Leite. Método:
pesquisa com o cotidiano. RJ: DP&A, 2003.

FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo, SP:
Global Edito

______. A integração do negro na sociedade de classes: O legado da raça branca. 5.


ed. São Paulo, SP: Editora Globo, 2008. ra, 2007.

LARROSA, Jorge. Tremores: Escritos sobre a experiência. Tradução Cristina Antunes,


João Wandeley Geraldi - 1. ed. - Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. – (Coleção
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MOORE, Carlos. Racismo e Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o


racismo. 2. ed. - Belo Horizonte: Nandyala, 2012.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. 3. ed. 1. reimp. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2012 – (Coleção Cultura Negra e Identidades).

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negra. Petópolis, RJ: Vozes, 1999.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro


brasileiro em ascensão social. 2. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. Coleção
Tendências; v.4.

sumário 174
VII Seminário Vozes da Educação

A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE NO ENSINO BÁSICO DA


SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE MINAS GERAIS

Uilmer Rodrigues Xavier da Cruz


Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
uilmer@ufmg.br

Mishelle Ninho de Almeida


Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
mial10@live.com

Introdução

A questão central, fio-condutor deste momento de reflexão, busca compreender


como as relações de poder nas escolas públicas interferem nas condições de trabalho de
professores designados no Estado de Minas Gerais. Com esse questionamento, este
artigo pretende demonstrar de que modo as relações que ocorrem em diferentes níveis e
em/para diferentes direções, constituem o cotidiano do professor e da professora do
Ensino Básico em escolas públicas do Estado, que têm suas inserções nesse espaço a
partir da contratação temporária e que, através dessa condição, têm suas vivências de
trabalho perpassadas pela vulnerabilidade e instabilidade profissional.
Para que se construam argumentos acerca do questionamento central
supracitado, foram criadas três subquestões que, de maneira relacional, visam
corresponder ao objetivo. A primeira subquestão concentra-se na compreensão de como
se dá o acesso e permanência dos professores designados nas Escolas Públicas do
Estado de Minas Gerias. Por conseguinte, a segunda subquestão busca compreender
como são as relações de poder instituídas por esses professores. Finalmente, a
subquestão três estabelece uma discussão de como são as suas condições de trabalho no
espaço das escolas. Deste modo, o curso deste texto tratará as questões supracitadas de
maneira respectiva, segundo a ordem apresentada, embora não divididas em subtópicos.
Massey (2008) argumenta que o espaço pode ser definido a partir de três
marcadores. O primeiro trata o espaço enquanto resultante das interrelações. Para a
autora, as relações sociais instituem o espaço, bem como se estabelecem espacialmente.
Por segundo, o espaço é esfera de multiplicidades. Por se estabelecer a partir das inter-

sumário 175
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

relações e, deste modo, ser um componente de sujeitos sociais, o espaço é


multifacetado, com diferentes particularidades, especificidades e multiescalar. Ou seja,
o espaço é soma e encontro de trajetórias, é um misto de diferentes sujeitos que o
instituem através de suas relações. O terceiro marcador apontado pela autora trata o
espaço enquanto dinâmico, um processo inacabado, uma soma de ‘estórias-abertas-até-
agora’. A interface entre os dois marcadores primários constroem o terceiro marcador,
de modo que a interrelações são sempre mutáveis através de suas multiplicidades, então
o espaço trata-se de um devir, com um futuro sempre aberto.
Essa compreensão acerca do conceito permite a afirmação de que as escolas da
Rede Estadual de Minas Gerais (a que este artigo se refere enquanto recorte específico à
vivência profissional de professores designados pelo Estado) constituem-se de espaços
instituídos a partir das inter-relações dos sujeitos, cujas trajetórias ali se encontram e,
deste modo, carregarão multiplicidades destes sujeitos e, se alterarão conforme as inter-
relações também se alterem.
Convém afirmar que as contratações de professores designados para as escolas
públicas do Estado de Minas Gerais ocorrem por meio da Resolução 3995/2018, que
“Dispõe sobre critérios e define procedimentos para inscrição, classificação e
designação de candidatos para o exercício de função pública na Rede Estadual de
Ensino da Secretaria do Estado de Educação de Minas Gerais (SEE-MG)”
(RESOLUÇÃO 3995/2018, Minas Gerais). Essa resolução prevê, dentre outros pontos,
a contratação de professores pelo período de um ano, conforme a inscrição do indivíduo
no município ou Secretaria Regional de Educação, escolhidos pelo mesmo.
A interface entre a resolução supracitada e o argumento apontado a respeito das
escolas públicas do Estado de MG serem espaços instituídos por diferentes sujeitos
(sendo que, neste caso, preocupamo-nos com as relações profissionais estabelecidas
pelos professores designados), leva a considerar que, nas escolas, as inter-relações
correspondem a uma lógica de poder perpassada pela posição dos profissionais que
nelas se estabelecem, de modo a centralizar e marginalizar os sujeitos conforme seus
papéis.
Ao longo do texto, busca-se destacar quais são os fatores que posicionam os
sujeitos que compõem profissionalmente a espacialidade escolar e, sobretudo, colocam
professores designados em condições marginais em relação a outros professores, à
direção e ao Estado.

sumário 176
VII Seminário Vozes da Educação

As condições de trabalho desses sujeitos são perpassadas pelas relações de poder


estabelecidas pelos mesmos, na compreensão de que toda relação social é perpassada
pela condição de uma relação de poder.
Diante desta breve introdução, busca-se, com o presente artigo elucidar o
questionamento central, a partir de um olhar geográfico, compreendendo o espaço
enquanto intrínseco às relações sociais e, deste modo, as escolas públicas do Estado de
Minas Gerais enquanto espacialidades onde as relações de poder são perpassadas pelas
trajetórias de vida de diversos profissionais, dentre eles, professores designados
conforme a Resolução citada. Não é um objetivo, no entanto, esgotar as possibilidades
de olhares sobre esses sujeitos e suas condições de trabalho, já que esta reflexão trata-se
de apenas um ponto de vista construído sob o cruzamento da legislação específica ao
fenômeno, da teoria Geográfica e de disciplinas científicas correlatas, bem como, do
acesso ao relato de professores que compõe essa realidade.

Discussão

O objetivo deste texto fora destacado na introdução do artigo, com base naquilo
que foi chamado de questão central e, por suposto, também através das questões
específicas (3). Tendo isso definido, a compreensão acerca da realidade profissional de
professores designados da Rede Pública de Ensino do Estado de Minas Gerais é
perpassada por especificidades relacionadas à legislação estadual, através de leis e
resoluções, bem como através do Plano Nacional de Educação (PNE).
A interface entre essas questões atreladas ao Estado e suas políticas públicas,
com a vivência cotidiana desses professores, corresponde justamente ao que se busca
aqui compreender. Deste modo, nesta seção, tratar-se-á a respeito da temática segundo
as subquestões apontadas anteriormente, na ordem em que foram apresentadas, com o
intuito de esclarecer de maneira mais clara e elucidativa as respostas acerca do que se
questiona.
A realidade escolar brasileira responde à legislação representada através do
Plano Nacional de Educação (PNE), cuja lei correspondente é a 13.005/2014 . O PNE,
aprovado durante o governo da presidenta Dilma Rousseff, traça as diretrizes e metas
para a educação básica do país, em que, dentre as 10 diretrizes descritas, o item de
número 9 destaca: “valorização dos (as) profissionais de educação” (BRASIL, 2014).

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A gestão escolar e, por suposto, a maneira como a escola é vivenciada e


planejada, bem como, a maneira como a educação é aplicada depende, dentre vários
fatores, internos e externos à escala espacial escolar, também de como o professor e a
professora transmitem conhecimento. O questionamento conveniente para este
momento é: O profissional da educação está sendo valorizado tal como trata a legislação
federal?
Do mesmo modo que a legislação define enquanto uma de suas diretrizes a
valorização dos (as) professores (as), seguem os padrões da autonomia de Estados e
Municípios da federação. Isso significa que, ao passo que legisla e orienta as escalas
federativas a seguirem os objetos da lei, preserva a possibilidade do modo como cada
um dos governos, nas diferentes escalas, porão tais estratégias em funcionamento, como
aponta o art. 8º, destacado a seguir:

Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão elaborar seus


correspondentes planos de educação, ou adequar os planos já aprovados em
lei, em consonância com as diretrizes, metas e estratégias previstas neste
PNE, no prazo de 1 (um) ano contado da publicação desta Lei. (Art. 8º,
BRASIL, 2014)

Neste aspecto, o Estado de Minas Gerais, o qual corresponde à escala da


presente análise, com sua legislação específica, tem o corpo docente do Ensino Básico
Público formado a partir de três categorias, como apontam Amorim et. al (2018). As
três categorias compreendem a professores efetivos, designados e efetivados. A
primeira trata-se de profissionais que garantiram sua colocação profissional por meio de
concurso público, tal como garante a Constituição da República Federativa do Brasil
(1988), como apontam as autoras.
No entanto, estes profissionais podem ser deslocados de seus postos por diversos
motivos, como licenças remuneradas ou não, aposentadorias, alteração de cargos e
funções. Por essas ocorrências, as escolas passam a ter um número deficitário em
relação aos (às) professores (as) e, então, através da Lei Estadual 18.185/2009, autoriza
a contratação de profissionais temporários, tal como aponta o inciso 5, art. 2º:

Art. 2º - Consideram-se hipóteses de necessidade temporária de excepcional


interesse público, para fins de contratação temporária nos termos desta Lei:
(...) V - Número de servidores efetivos insuficiente para a continuidade dos
serviços públicos essenciais, desde que não haja candidatos aprovados em
concurso público aptos à nomeação, ficando a duração dos contratos limitada
ao provimento dos cargos mediante concurso público subsequente (Lei
18.185, 2009, Minas Gerais)

sumário 178
VII Seminário Vozes da Educação

Ainda, segundo a referida Lei, em seu art. 4º, o período máximo de contrato dos
profissionais tratados a partir do art. 2º, inciso 5, tais como os professores da Rede
Pública, dos quais se trata a presente reflexão, é de 2 anos. Apoiados nessa legislação,
bem como da resolução nº. 3.995/2018, citada na introdução deste trabalho, é que os
professores designados da Rede Estadual de Ensino no Estado de Minas Gerais acessam
as espacialidades escolares, com seus contratos temporários, excetuados de garantias e
benefícios, quando se compara aos professores efetivos, como também colocam Amorin
et. al (2018).
A terceira categoria apontada pelas autoras, citada anteriormente, é a de
professores efetivados. Como destacam, segundo a Lei Estadual nº. 100/2007,
professores designados anteriormente e com anos de trabalho, foram efetivados pela
ação do poder legislativo.
Para o momento, o foco deste artigo concentra-se na segunda categoria de
profissionais do ensino acima listada: a de professores designados. Como se refere a Lei
18.185/2009, a respeito do tempo máximo de contrato destes profissionais ser de até 2
anos, a partir da resolução 3.395/2018, os contratos seguem o prazo de 1 ano. A
resolução em questão também define a respeito da classificação destes profissionais a
partir de seu edital.
A partir da seção V, Artigo nº. 19, os candidatos inscritos para professores de
Educação Básica serão classificados em listas diferentes, conforme os municípios
optados pelos profissionais no ato da inscrição. A ordem de classificação então
respeitará as formações destes professores – Licenciatura Plena, Bacharelado (com
especialização na área pedagógica) ou Graduação em curso (nas disciplinas específicas
de atuação, sendo o curso superior uma licenciatura). A partir de classificados,
correspondendo às exigências presentes no edital, havendo similaridade de condições,
os candidatos serão submetidos a critérios de desempate, sendo, respectivamente: 1)
Maior tempo de serviço comprovado (nos termos aplicados pelo Estado); 2) Idade
maior e, por último; 3) Ordem de inscrição.
Nestes termos, é válido destacar que os critérios listados podem colaborar, já no
acesso dos professores e professoras classificados (as), para a marginalização de alguns
em detrimento de outros, dado, principalmente, o fator de ordem de classificação por
tempo de serviço, possibilitando a exclusão daqueles profissionais que estão em início

sumário 179
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de carreira ou, que por outra condição, ainda não acessaram a espacialidade escolar na
condição de professores ou professoras.
Outro ponto a ser exposto trata a respeito do tempo de contrato, que, embora se
defina em 01 ano, segundo referido acima, também pontua a possibilidade do
desligamento destes profissionais, mesmo antes do encerramento de seus contratos. A
dispensa dos servidores designados ainda os impede de serem designados novamente no
período de 60 dias, após o desligamento/encerramento do contrato em que estavam
empregados, conforme aponta o artigo nº 63 da Resolução 3995/2018.
Ainda, a resolução traz os pontos que justificam o desligamento destes
profissionais de seus ofícios , no artigo nº. 64. Dentre estes pontos estão destacados a
dispensa dos servidores por inconsistências com a lei no ato da designação, o não
comparecimento no ato determinado para praticarem o exercício da profissão, faltas
graves comprovadas (como, por exemplo, imposição de castigo físico ou humilhante
para com o corpo de discentes, atos de pedofilia etc.), dentre outros, justificáveis sob o
aspecto ético.
No entanto, no que tange este artigo, os pontos que aqui interessam, tratam
daqueles que enfraquecem a estabilidade profissional destes professores e professoras,
embora apresentem suficiência em suas práticas profissionais e correspondam às
necessidades da escola e do ensino público. Deste modo, a mesma resolução também
pontua, ainda no artigo nº. 64, a dispensa destes profissionais justificada a partir:

(...) I - redução do número de aulas ou de turmas ou de setores de inspeção


escolar;
II – provimento do cargo, movimentação ou remanejamento de servidor
efetivo;
III – retorno do titular;
(...)
V – alteração da carga horária básica de professor efetivo;
VI – alteração da carga horária do professor designado;
VII – requisição das aulas por professor efetivo habilitado no componente
curricular específico, quando assumidas por designado não habilitado. (Art.
64, Resolução SEE 3995, Minas Gerais, 2018)

Os pontos supracitados colaboram para a compreensão acerca do que se trata a


presente reflexão, no tocante à instabilidade profissional e à (des)valorização do (a)
professor (a) de Ensino Básico no Estado de Minas Gerais. Como referido na introdução
dessa discussão, as relações de poder que se estabelecem no espaço escolar das Escolas
Públicas do Estado em questão, em suas dinâmicas, são perpassadas pela
posicionalidade dos sujeitos e seus papéis, bem como, de questões estruturais, tais como

sumário 180
VII Seminário Vozes da Educação

a legislação que ampara as relações profissionais dos servidores do Estado, como a


Resolução 3995/2018 e a Lei 18.185/2009, tratadas aqui.
Tratam, ainda, das diretrizes que definem a contratação de professores
designados e, ao mesmo tempo, estabelecem a possibilidade da dispensa, corroborando
para a instabilidade profissional e marginalização desses profissionais, que são pilares
para a desigualdade das relações de poder presentes de modo inter-escalar com relação
ao espaço das escolas.
Como apontado na introdução desta reflexão, a compreensão assumida para o
momento, das relações sociais e, por suposto, de poder, é assimilada a partir da noção
de que estas são perpassadas pela constituição de um espaço, conforme o argumento
defendido por Massey (2008). Deste modo, o modo desigual como as relações de poder
estabelecidas nas escolas públicas do Estado de Minas Gerais são instituídas, estão
diretamente relacionadas ao espaço constituído por essas relações, na escala destas
mesmas escolas.
Porém, como se tem no argumento da autora, embora os espaços se constituam
intrínsecos às relações e possam ser recortados através de escalas, estes espaços são
inter-escalares, na medida em que as relações sociais ocorrem por meio de sujeitos que
têm suas trajetórias em diferentes caminhos e que, através destes espaços, encontram-se.
Isso significa que a multiplicidade destes sujeitos e a característica dinâmica destas
relações também se fazem presentes neste espaço instituído.
O ponto em que aqui se estabelece o foco trata-se do fato de que o modo como
as relações de poder se estabelecem, por se manifestarem de maneira inter-escalar,
carregam significados atribuídos aos sujeitos, a partir de seus papéis, que, neste caso,
são apoiados nas Leis do Estado. Como apontado no início desta seção, a partir de
Amorim et. al (2018), há três modalidades de servidores públicos na área da educação
do Estado de Minas Gerais.
Para além destas três modalidades, quando se trata da função destes sujeitos na
escola, é possível que se afirme acerca dos funcionários do administrativo, tais como os
que compõem a direção das escolas e, ultrapassando os muros destas instituições, que
compõem a Secretaria de Educação na posição de tomadas de decisão. Isso significa
que todos estes sujeitos agirão não apenas por suas apreensões culturais e trajetórias de
vida, como também a partir de um regimento definido pelo Estado, tais como a
Resolução 3995/2018 e a Lei 18.185/2009.

sumário 181
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Assim, a posicionalidade dos funcionários públicos ligados à educação


respeitará o modo de funcionamento construído pelo Governo. Neste aspecto, o
diagrama abaixo apresenta, de modo ilustrado, como se configuram as relações de poder
que ocorrem no âmbito das escolas e a posicionalidade dos professores designados:

Figura 1. Diagrama (pirâmide) representativo de relações de poder entre Estado,


Direção e Professores (as) da Rede Pública Estadual de Ensino do Estado de Minas
Gerais, Brasil.

Org.: Uilmer Rodrigues Xavier da Cruz, 2019.

O ilustrado acima expõe, de modo simples, os sujeitos que compõem a realidade


da Rede Pública Estadual de Ensino do Estado de Minas Gerais, bem como representa
de modo hierarquizado a posição destes sujeitos que, por suposto, assumirão papéis
mais ou menos limitados acerca de suas práticas cotidianas. Como afirmado
anteriormente ao diagrama, as relações de poder são perpassadas pela legislação
vigente. Destaca-se a vulnerabilidade daqueles que estão na base da pirâmide acima ou,
em outras palavras, à margem espacial nas escolas públicas estaduais.
Foucault (1995) argumenta que as relações de poder ocorrem através do que
compreende enquanto ações de sujeitos com outros sujeitos, com práticas de opressão e
resistência. Para o autor, para que exista poder, é necessário que sejam estabelecidas
relações de tensão ou aliança entre sujeitos. Deste modo, dois ou mais sujeitos que
compõem as relações sociais exercerão seus papéis através de ações que partem de
diferentes posições para diferentes sentidos. Isso significa que os professores
designados, embora se estabeleçam à margem em referência a outros sujeitos, também

sumário 182
VII Seminário Vozes da Educação

exercerão seus papéis, porém com um arranjo de possibilidades reduzido em relação aos
professores efetivos e efetivados, à direção e ao Estado.
O mesmo autor, em outra obra, Foucault (1999), argumenta que as relações de
poder e a posicionalidade dos sujeitos nestas relações que, aqui destacamos como
intrínsecas a espacialidades, tal como o espaço das escolas públicas do Estado de Minas
Gerais, está relacionada à presença de discursos que, de maneira histórica e validada
constantemente, interferem no funcionamento dos fenômenos, tal como se pode
perceber no seguinte trecho:

Em suma, pode-se supor que há, muito regularmente, nas sociedades, uma
espécie de desnivelamento entre os discursos: os discursos que “se dizem” no
correr dos dias e das trocas, e que passam com o ato mesmo que os
pronunciou; e os discursos que, indefinidamente, para além de sua
formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer. Nós os
conhecemos em nosso sistema de cultura: são os textos religiosos ou
jurídicos (...). (FOUCAULT, 1999, P. 22)

O modo como as relações de poder entre os professores designados se


estabelecem, estão configuradas a validar a posição dos outros sujeitos que compõem o
espaço escolar público do Estado, marginalizando estes mesmos professores. Tal
condição é justificada a partir da instabilidade profissional institucionalizada por e a
partir da legislação tocante a essa realidade, como demonstrado anteriormente e agora
elucidado a partir da reflexão de Foucault (1999), utilizada enquanto instrumento pelos
outros sujeitos (Estado, Direção da Escola e Professores Efetivos e Efetivados).
Para além destas relações de poder que ocorrem de maneira direta entre os
professores designados e as outras duas categorias de professores, bem como com a
direção, o Estado compõe um importante papel de poder de controle, a respeito das
condições de trabalho destes profissionais, quando da ‘superdesignação’ de professores
enquanto uma estratégia de preenchimento de lacunas no ensino básico público.
Do mesmo modo que os professores designados se estabelecem
profissionalmente de maneira instável, em decorrência do curto período de contratação
e ainda da possibilidade de desligamento, justificada pela centralidade dos professores
efetivos e efetivados e da decisão da direção sobre a manutenção de seus trabalhos,
também têm suas trajetórias profissionais transpassadas pela ausência de concursos
públicos que garantam estabilidade profissional e maior valorização (existência de
garantias, melhor distribuição de carga horária, dentre outros fatores). Neste sentido,
Amorim et. al (2018) apontam:

sumário 183
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O quadro de “superdesignação” revelado, surpreendente tamanha as suas


proporções, configura problema grave na gestão em Minas Gerais, o que
impõe, tendo em vista a promoção da educação pública, gratuita e de
qualidade, um redirecionamento da ação do Estado. (AMORIM et. al, 2018,
P. 19)

A ausência de garantias e de estabilidade profissional (contratual), o modo de


classificação e ordem de chamada para o exercício profissional, a possibilidade de
dispensa antes do término do contrato (ligada aos fatores já apontados anteriormente,
como o retorno de um docente efetivo ou efetivado de licença ou afastamento, a
adaptação de carga horária ou a realocação de cargos de funcionários concursados, entre
outros), são fatores que colaboram para que as condições de trabalho dos profissionais
designados sejam pouco promissoras – senão precárias.
Uma das fontes na qual este artigo se baseia concentra-se no relato de um
professor designado do ensino básico de uma escola pública de Minas Gerais que, por
questões de ética, não terá seu nome verdadeiro revelado, porém será chamado de
Professor Xavier. A partir de seu relato, Professor Xavier, afirma que as relações que
ocorrem de maneira assimétrica no espaço das escolas, em diferentes direções e que
emanam dos diferentes sujeitos que compõem este espaço, consolidam as condições
precárias em que os professores designados se encontram.
Um ponto importante destacado a partir de seu relato trata da descentralização
de reuniões do espaço escolar para aplicativos de mensagens para smartphones,
aumentando de maneira indireta a carga horária destes profissionais e estendendo o
trabalho para outros espaços, tais como a residência que, em tese, não deveriam ser
tratados como espacialidades ligados ao trabalho. O relato abaixo, cuja linguagem
apresentada pelo professor em questão foi preservada de maneira fidedigna, trata dessa
questão de maneira mais detalhada:

(...) Todas as funções administrativas da escola já foram transferidas para o


whatsapp, sendo assim, os professores, no geral, são compelidos a
responderem e estarem disponíveis 24 horas para a secretaria e também para
resolverem assuntos pedagógicos. Principalmente, no fim do bimestre,
período em que o grupo fica recebendo várias mensagens para consertar
notas etc. (Professor Xavier, relato pessoal fornecido pelo sujeito em julho de
2019)

O exposto colabora para a afirmação de que os professores designados têm seus


cotidianos diários perpassados pela pressão atrelada às suas relações de poder,

sumário 184
VII Seminário Vozes da Educação

suprimindo-os em uma condição instável profissional que, para além dos espaços que
envolvem a prática de seus trabalhos, também interfere na trajetória de vida destes
sujeitos, influenciando em suas condições de saúde.
Silva et. al (2018) afirmam que professores da rede pública de ensino no Brasil
configuram-se enquanto um público vulnerável a desenvolver transtornos
psicopatológicos, tais como burnout e depressão. Para tanto, utilizaram enquanto
recorte 25 escolas públicas municipais no interior do Estado de São Paulo, onde 100
professoras foram acessadas e questionadas a partir de um questionário geral.
Nisto, identificaram que o ambiente de trabalho, as condições de exposição
destas profissionais à condições precárias, a responsabilidades para além do suportável,
das relações desenvolvidas dentro do espaço escolar, são fatores que colaboram para o
desenvolvimento de quadros de insalubridade. No entanto, também identificaram que
alterando estes quadros de maneira positiva, imediatamente a propensão a essas
psicopatologias diminui.
Essas afirmações podem ser relacionadas à realidade de Minas Gerais, quando
do quadro apresentado por Amorim et. al (2018) acima destacado e com o que vem
sendo exposto neste artigo. A realidade de precarização de trabalho, tanto relacionada
aos outros sujeitos (como os professores efetivos e efetivados), como perpassada pela
estrutura do Estado e a ausência de estabilidade profissional, é um problema relacionado
à ausência de políticas públicas que levem em consideração a valorização da categoria,
de modo a marginalizar estes professores ainda além dos já marginalizados outros
professores em relação a outras categorias profissionais.
Ainda é válido destacar que, como já argumentado anteriormente, a estrutura
material do espaço escolar, intrinsecamente ligado às práticas laborais cotidianas, como
o preenchimento de diários de classe, também é perpassado pela precarização. Se as
relações de poder e a legitimação do Estado que justificam a marginalização destes
professores e fortalecem a condição precária de trabalho dos mesmos se fazem
presentes e já foram relatadas, mesmo que pontualmente, nesta reflexão, um ponto
fundamental de necessária abordagem se apoia neste trecho, também relatado por
Professor Xavier:

(...) Falta treinamento no sistema de gestão escolar (DED), pois não tem
condições de existir a quantidade de relatos referentes a preenchimento do
sistema, todos os treinamentos são via whatsapp; o meio de comunicação
escolar oficial são as mídias sociais. Além do mais, o sistema possui vários

sumário 185
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

erros e nota-se que este foi implementado sem o devido treinamento pela
PRODENGE, ficando a cargo das secretarias fazê-lo.
Como se não bastasse, o sistema, este com certeza não deve ter sido
homologado, pela sequência e relato de erros de vários professores. Caso os
erros aconteçam, o sistema perde sua validade, pois os professores, para se
livrar e resolver o problema, dão a senha e login para que as secretarias
resolvam, ou seja, não há critério algum. Simplesmente, a única vontade de
se livrar e resolver o problema, afinal, estão de férias, ou no fim de semana.
(Professor Xavier, relato pessoal fornecido pelo sujeito em julho de 2019)

Embora o trecho destacado trate de uma questão pontual, é um fato que o relato
se refere a uma questão estrutural, relacionada ao modo como o Estado se relaciona com
estes profissionais e, por sua vez, tal relação se materializa na ausência de boas
condições de trabalho para esses sujeitos.
Há, ainda, importantes problemas a serem considerados na esfera da sociedade e,
por suposto, no Estado de Minas Gerais, tais como a soma de fatores, apoiados nas
relações de poder apontadas ao longo do texto e na legislação que, de certo modo, é
intrínseca a tais relações enquanto um instrumento de legitimação de discurso e de
posicionalidade dos diferentes componentes destas relações.
Além disso, a materialidade presente na realidade escolar também que corrobora
para a marginalização destes sujeitos e a precarização intensa de sua categoria
profissional, a desvalorização e a invisibilidade da importância de seus papéis junto da
sociedade são outros problemas a serem considerados.
Ainda no início deste trabalho, foi destacada a Lei 13.005/2014, Plano Nacional
de Educação, com suas diretrizes e metas. O modo como o Estado interfere de modo
negativo na realidade das Escolas Públicas de Minas Gerais caminha, justamente, na
contramão do PNE. A valorização dos (as) profissionais da educação, destacado no
escopo desta lei, fica claramente colocada enquanto uma ‘não prioridade’ dentro das
políticas públicas do Estado em questão. A relação direta destes profissionais com a
escola e, por suposto, a vulnerabilidade constante na vida dos professores designados
em termos de estabilidade profissional, é fruto do sucateamento do Ensino Público
Básico nesta escala.
Pode ser considerada, para o momento, a noção de que, no Sistema Capitalista
de Produção, segundo Harvey (2011), a precarização de trabalho consta enquanto uma
estratégia da pequena porcentagem de ‘capitalistas’ que ocupam o centro das relações
de poder, para o controle populacional e a geração de mais-valia.
O Estado, correspondendo à lógica capitalista, constitui-se, então, de um
instrumento de validação desta lógica e de sua manutenção, tal como ocorre na ausência

sumário 186
VII Seminário Vozes da Educação

de concursos públicos constantes, na ‘superdesignação’ de professores e, na


instabilidade profissional que, de certo modo, produz medo e insegurança nestes
sujeitos, fazendo-os se manterem nesta realidade precária e desigual.
Assim, as escolas tornam-se espaço de desigualdade e palco de desvalorização
profissional, de modo a corresponder às dinâmicas do Capitalismo, tal como ocorre no
Estado de Minas Gerais em ação validada por discursos da lei/jurídicos (FOUCAULT,
1999) e que colocam professores designados sob condições precárias de trabalho e, por
sua vez, de desenvolvimento de suas atividades, afetando diretamente a qualidade de
ensino.

Considerações finais

O questionamento central, apresentado na introdução deste trabalho, objetivou


discutir, de maneira crítica e reflexiva, a questão das condições de trabalho vivenciadas
pelos chamados ‘professores designados’ da rede de ensino público do Estado de Minas
Gerais, segundo suas contratações perpassadas pela Lei Estadual 18.185/2009, que
garante a contratação de profissionais temporários no serviço público, mediante a
necessidade de preenchimento de cargos vagos, e a Resolução 3395/2018, que trata a
respeito exclusivamente da contratação de profissionais de educação na rede pública de
ensino básico do Estado.
Para além, buscou-se destacar a influência destes textos jurídicos nas relações de
poder que ocorrem de maneira inter-escalar no espaço escolar público, além do quadro
de ‘superdesignação’, denunciado por Amorim et. al (2018), bem como, as condições
precárias que influenciam no cotidiano de trabalho destes profissionais, inclusive na
instabilidade de permanência no ofício de professores.
Primeiramente, o texto buscou evidenciar os termos das acima referidas Lei e
Resolução que, de certo modo, relacionam-se à Lei Federal 13.005/2014, que dispõe
sobre o Plano Nacional da Educação. Em outros termos, o modo como os professores
aos quais a presente reflexão se refere acessam a espacialidade das escolas públicas de
Minas Gerais enquanto profissionais visa garantir o funcionamento de um serviço
público essencial, como a Educação.
No entanto, como já trata um dos pontos do PNE, a respeito da valorização do
profissional da educação, a política de designação do Estado acaba por pormenorizar a
importância destes professores, quando da ausência de direitos e garantias trabalhistas

sumário 187
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

em relação aos professores efetivos e os efetivados e, para além, com a fragilidade


contratual de duração de apenas 01 ano, destinando estes professores a se inscreverem a
cada ano novamente para o mesmo processo seletivo, além da possibilidade de dispensa
antecipada ao término do contrato, previstas nos textos da Resolução.
Por segundo, o artigo apresentou uma relação direta do discurso legitimado a
partir dos textos da resolução e da lei estadual, enquanto um instrumento de
centralidade nas relações de poder para os professores efetivos e efetivados, a direção e
o Estado, de modo a marginalizar os professores designados no espaço escolar,
tencionando os cotidianos de trabalho e colocando estes sujeitos enquanto ainda mais
vulneráveis a condições precárias no exercício de suas profissões.
Destacou-se que as relações de poder podem se basear em discursos
constantemente construídos e reafirmados, incluindo o discurso jurídico, tal qual tratam-
se as leis e resolução e como tal condição constrói um espaço desigual para a vivência
dos professores designados no Estado de Minas Gerais.
Finalmente, refletiu-se de que modo as relações de poder e a legislação
interferem nas condições de trabalho desses professores. É mister afirmar que o Estado
precariza o cotidiano profissional destes sujeitos e, de certo modo, também influencia
na má qualidade educacional, não correspondendo às metas e diretrizes do PNE (2014),
além de interferir na qualidade de vida destes profissionais, como se pode constatar a
partir dos argumentos de Silva et. al (2018), a respeito da saúde mental de professores e
a relação desta saúde com seus ambientes de trabalho.
Seria leviano trazer a afirmação de que este se trata de um trabalho conclusivo a
respeito das condições em que se encontra a realidade da educação básica pública do
Estado de Minas Gerais e, por suposto, da qualidade de vida dos professores designados
que desempenham importante papel nas escolas. Porém, buscou-se com essa breve
reflexão, produzir uma discussão que evidenciasse como políticas públicas paliativas,
tal como a Lei Estadual 18.185/2009, que sustenta a Resolução 3.395/2018, em MG,
interferem no espaço escolar público de modo negativo, quando não aplicadas de
maneira responsável, além de transpassarem o cotidiano de profissionais de modo
bastante agressivo e produtor de instabilidade em diversos aspectos.

Referências

AMORIM, Marina Alves; SALEJ, Ana Paula; BARREIROS, Brenda Borges Cambraia.
“Superdesignação” de professores na rede estadual de ensino de Minas Gerais. Revista

sumário 188
VII Seminário Vozes da Educação

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24782018230053. Acessado em: 15 de agosto de 2019.

Brasil. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação –


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Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica.
Rio de Janeiro: Universitária, 1995, p. 231 – 249.

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GOMES, Paulo Cesar da Costa. Um lugar para a geografia: Contra o simples, o banal e
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exercício de função pública na Rede Estadual de Ensino da Secretaria de Estado de
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SILVA, Rogério Silva; BOLSONI-SILVA, Alessandra Turini; LOUREIRO, Sonia


Regina. Burnout e depressão em professores do ensino fundamental: Um estudo
correlacional. Revista Brasileira de Educação, v. 23, 2018. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/s1413-24782018230048. Acessado em: 15 de agosto de 2019.

sumário 189
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

OS IMPACTOS DAS REPRESENTAÇÕES DE POBREZA NAS DIDÁTICAS


DOS EDUCADORES DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL EM
SÃO GONÇALO – RJ

Thiago Simão Dias


UERJ/FFP
thiago.dias.educ@gmail.com

Arthur Vianna Ferreira


UERJ/FFP
arthuruerjffp@gmail.com

A Teoria das Representações Sociais

A Teoria das Representações Sociais (TRS) foi desenvolvida pelo psicólogo


social romeno Serge Moscovici (1928-2014), sendo introduzida no campo
epistemológico da Psicologia Social na década de 1960, como resultado das suas
pesquisas e da publicação da obra La psychanalyse, son image, son public (1961).
Nessa ocasião, ao aprofundar suas investigações voltando-se para as questões acerca das
representações dentro das sociedades, ele vai contestar o pensamento do sociólogo
Émile Durkheim (1858-1917), na qual se estabeleceu o conceito de representações
coletivas.
Diante disso, conforme a análise de Moscovici (2003), Durkheim considerou –
ao elaborar seus estudos sobre o funcionamento da sociedade, dos fenômenos sociais e
dos variados grupos atuantes em seu interior – que no sistema social existe uma
distinção entre as representações individuais separadamente daquelas que constituem a
coletividade.
As representações individuais seriam variáveis, pois têm em sua essência a
consciência particular de cada pessoa, assim como sua forma de perceber, sentir e
conceber as realidades sociais frente as suas experiências de mundo dos sujeitos. Por
sua vez, as representações coletivas são exteriores às consciências individuais e
englobam a sociedade como um todo, ou seja, são ao mesmo tempo gerais dentro de
determinado grupo social e independem das expressões individuas, com isso, acaba se
estabelecendo uma natureza de preservação da imutabilidade dessas representações.

sumário 190
VII Seminário Vozes da Educação

Perante essa ótica, Moscovici (2003) afirma que, na estrutura sociológica


proposta por Durkheim, as representações coletivas têm por finalidade disseminar a
ideia de uniformidade entre cidadãos, condicionando-os a terem comportamentos –
formas de agir, pensar e se relacionar – padronizados, conservando tais costumes em
seus grupos sociais. Além disso, os fatos sociais foram postos em evidência e, mesmo
que exista na coletividade dissemelhanças, há uma característica intrínseca de
invariabilidade das representações que as sustentam e as preservam perpassando por
gerações.
Opondo-se a essa concepção, Moscovici faz a asserção de que as representações
não são estáticas nem podem ser determinadas previamente, uma vez que são
concebidas e internalizadas simultaneamente no e pelo coletivo social, ou seja, na
dinamicidade e multiplicidade constante das relações sociais. Sendo assim, sobre o
prisma de que os indivíduos, os conhecimentos e as sociedades se forjam imbricados em
constantes movimentos de transformações e recriações mútuas oriundas das relações
socioculturais, nascem os estudos das Representações Sociais.
Dessarte, as representações sociais são:

Um conjunto de conceitos, proposições e explicações criado na vida


cotidiana no decurso da comunicação interindividual. São equivalentes, em
nossa sociedade, dos mitos e sistemas de crenças das sociedades tradicionais;
podem ainda ser vistas como a versão contemporânea do senso comum.
(MOSCOVICI, 1981, p. 181).

As representações sociais, portanto, são caracterizadas como formas de


conhecimento prático – forjado e internalizado simultaneamente nas ações empíricas,
que não possuem em si fundamentos científicos, mas que sobrevivem ao tempo e
buscam explicar os acontecimentos, hábitos e as relações mantidas dentro dos grupos
sociais.
De forma mais sintética e de fácil entendimento, Denise Jodelet define as
representações sociais como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e
partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade
comum a um conjunto social" (2001, p. 22).
Dentro disso, as representações que os sujeitos fazem dos objetos são sempre de
simbolizações e (re)interpretações, cujos processos sociocognitivos, as características
psicológicas das pessoas, seus sentimentos, suas participações na sociedade e suas
manifestações culturais são imprescindíveis para a produção e preservação das

sumário 191
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

representações culturais. Logo, é válido destacar que, para realização de seus estudos, é
preciso considerar as características do espaço-tempo onde essas manifestações
psicossociais de desenvolvem, pois, segundo Moscovici (2003, p. 63), “representando-
se uma coisa ou uma noção, não produzimos unicamente nossas próprias idéias e
imagens: criamos e transmitimos um produto progressivamente elaborado em inúmeros
lugares e segundo regras variadas”.
Nessa circunstância, nas ações práticas das relações sociais, busca-se, por parte
dos indivíduos e do coletivo em geral, tornar familiar os fenômenos sociais, as ideias e
os conceitos que se apresentem como estranhos ou incomuns a eles, em virtude da
familiaridade garantir a segurança do funcionamento e da explicação da realidade
social, tal qual a conversação dos valores e sentimento de pertença grupal. Para que isso
ocorra, há dois processos ou mecanismos basilares que constituem as representações
sociais: a ancoragem e a objetivação.
A ancoragem é a nomeação e categorização dos objetos, das ações humanas e
dos fenômenos que se apresentam na sociedade. Ela desenrola-se em prol da
familiarização dos indivíduos com o mundo externo, para que ele possa se apropriar das
coisas, explicar os acontecimentos e interagir em seu meio social.

Ancorar é, pois, classificar e dar nome a alguma coisa. Coisas que não são
classificadas e não possuem nome são estranhas, não existentes e ao mesmo
tempo ameaçadoras. Nós experimentamos uma resistência, um
distanciamento, quando não somos capazes de colocar esse objeto ou pessoa
em uma determinada categoria, de rotulá-la com um nome conhecido. No
momento em que nós podemos falar sobre algo, avaliá-lo e comunicá-lo [...]
então nós podemos representar o não usual em nosso mundo familiar
(MOSCOVICI, 2003, p.62).

Já a objetivação, que ocorre concomitantemente ao processo supracitado, é a


materialização de ideias, noções e imagens simbólicas, ou seja, de elementos abstratos –
que se transformam mediante aos recursos de pensamento e da linguagem – em
concretos, passando a constituir a organização a realidade.

Objetivar é descobrir a qualidade icônica de uma ideia ou ser impreciso; é


reproduzir um conceito em uma imagem. Comparar é já representar, encher o
que está naturalmente vazio, com substância. [...] Um enorme estoque de
palavras, que se referem a objetos específicos, está em circulação em toda a
sociedade e nós estamos sob constante pressão para provê-los com sentidos
concretos equivalentes (MOSCOVICI, 2003, p.72).

sumário 192
VII Seminário Vozes da Educação

Por conseguinte, esses dois processos têm o intuito de promover – por


intermédio da atribuição de valores a partir daquilo que é ou não preferível para um
grupo específico dentro da sociedade – o deslocamento do exterior para o interior de
algo que é estranho/desconhecido ao sujeito e ao grupo. Para isso, o indivíduo,
permeado na parcialidade, realiza a rotulação e a classificação de alguma coisa,
enquadrando-a junto àquilo que é comum aos seus conhecimentos, pautando-se em
algum tipo de hierarquia que atenda os processos representativos correspondentes ao
seu grupo social.
Dessa forma, a ancoragem e a objetivação se configuram como recursos típicos
das representações sociais para propiciar mediações sociocognitivas, nas quais os
sujeitos tendem a alocar a produção dos saberes abstratos (simbólicos) ao grau mais
possível de materialização (concretude) dos conhecimentos, tornando-os, assim,
próximos (comuns) à vida social. À medida que esse processo se desenvolve de modo
permanente e dinâmico entre os objetos sociais (fenômenos) e as pessoas em constante
interação – por afetar as estruturas psicossociais de todo corpo social envolvido – ele se
coloca como um elemento essencial para a composição das identidades dos grupos
sociais e dos indivíduos.

As representações sociais de pobreza e o “aluno-pobre”

Atravessado pela pluralidade polissêmica e sendo passível de diversas


interpretações de acordo com o campo epistemológico trabalhado, ressalta-se que o
termo “pobreza”, aqui apresentado, é definido mediante uma abordagem psicossocial.
Nessa perspectiva, tomando como base os estudos de Arthur Ferreira, os
“alunos-pobres” (ou “educandos-pobres”) são aqueles que sofrem a ação (a atribuição)
de empobrecimento através das relações interpessoais mantidas com os membros do
grupo socioeducacional onde está inserido, em especial, dos educadores que os
atendem. Nessa compreensão:

O termo ‘educando-pobre’ não carrega em si o sentido discriminatório


negativo em relação a outros sujeitos do campo educacional. Ao contrário,
situa o local do grupo de pertença no qual se encontram os sujeitos e suas
relações, sua realidade social e suas necessidades específicas que precisam
ser atendidas na sociedade. (...) O termo ‘educando-pobre’ traz em si valores,
sentidos, crenças, significados, atitudes, imagens e informações que se
organizam através de representações construídas pelos diversos grupos na
história e que vão sendo transmitidos pelos sujeitos sociais em suas relações
com os distintos grupos. (FERREIRA, 2017, p. 277).

sumário 193
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Diante disso, essa pobreza pode ser social, econômica, afetiva, cultural, psíquica,
motora, cognitiva etc., a depender da particularidade de como se desenvolvem em seus
grupos sociais. Ou seja, de como, onde e quando ela se manifesta e do modo que é
sustentada pelos sujeitos em suas interações socioeducacionais cotidianas.
Ferreira (2006; 2012; 2016; 2017), em suas pesquisas relacionadas à
constituição da identidade profissional do educador social, ao propor o conceito de
“aluno-pobre”, evidencia alguns possíveis tipos de representações de pobrezas
atribuídas ou relacionadas aos grupos sociais formados pelos educandos empobrecidos,
dentro ou fora do ambiente de educação formal. Dentre as principais manifestações ou
conceitos estão: a “esteganalteridade”, a “cegueira institucional”, a “naturalização da
prática” com os pobres, a “iconidentidade profissional” e a “potencialidade
disciplinar”.
A “esteganalteridade” – conceito composto pelos termos “estegano”, que
significa "esconder" ou "mascarar"; e “alteridade”, definida como "o outro diferente" –
está relacionada às ações nas quais os educadores ocultam as necessidades reais
advindas dos educandos passando a ofertar um serviço pedagógico incompatível com
aquilo que irá atender efetivamente tal público.

Se a relação de alteridade no processo de identidade profissional for uma


representação social do grupo a respeito do 'outro', isto pode resultar em uma
'estegano-alteridade', ou seja, uma 'imagem' criada por um grupo em relação
ao 'outro' da sua prática profissional, e com o qual o profissional irá construir
as suas relações de alteridade, em detrimento ao 'outro-presente' que se
encontra em seu campo de trabalho (FERREIRA, 2012, p. 150).

Ou seja, à simbolização criada nas representações sociais resulta na


incapacidade dos educadores em perceberem as demandas dos alunos, levando os
professores a enxergarem aquilo que eles acham que os educandos precisam, não
atendendo as verdadeiras carências expostas, criando-se, assim, um “pseudoeducando”,
gerando um “pobre” e “pobrezas” idealizadas.
Diante da relação como o “estegano-outro” (o educando empobrecido com uma
ilusória “falta”), os educadores podem desenvolver duas posturas que atendam
majoritariamente (ou unicamente) as expectativas que eles próprios têm frente as suas
práticas didáticas – servindo muito mais para suas formações identitárias e para
alimentar o sentimento de pertença grupal – do que propriamente suprir as necessidades

sumário 194
VII Seminário Vozes da Educação

das crianças. Sendo elas: a “cegueira institucional” e a “naturalização da prática”


com os pobres.
A “cegueira institucional” o levará a considerar o "outro" idealizado como se
fosse o "outro" presente, ou seja, sua atuação profissional estará voltada para algo ou
alguém inexistente (ou não condizente com a realidade), embora o educando esteja ali
presente expondo suas necessidades mais latentes. Com isso, os educadores tenderão a
priorizar demandas não concretas.
Já a “naturalização dos trabalhos” com os pobres é o processo de internalização
(enraizamento) que grupo de educadores desenvolve cristalizando a ideia de que os
educandos possuem certas condições de pobreza intrínsecas e indissociáveis a eles.
Consequentemente, as opções prático-metodológicas direcionadas para essas crianças
serão baseadas no “estegano-outro”, isto é, no “outro” alegórico.
Conforme descrito por Ferreira (2012), esses dois movimentos significativos no
processo de negociação identitária se daria da seguinte forma:

[...] primeiro, uma 'cegueira institucional', o fará enxergar o 'estegano-outro'


como sendo o 'outro-presente' de sua prática profissional. Desta forma, o
profissional valorizará o primeiro como objeto de sua realização profissional,
não conseguindo enxergas as necessidades do 'outro-presente' que é,
concretamente, o sujeito que partilha de suas práticas; a segunda é a
'naturalização de sua prática', ou seja, as escolhas sobre as práticas
profissionais serão realizadas a partir do 'estegano-outro' da sua relação de
alteridade. (FERREIRA, 2012, p. 151)

Por sua vez, a relação forjada diante da alteridade na dinâmica da dialética


educador-educando, pode levar a construção de uma “iconidentidade profissional”,
sendo essa a supervalorização (criação de uma imagem) que o grupo de educadores faz
dele mesmo por ajudar os “alunos-pobres”, os supostamente necessitados, aqueles que
carregam a “falta”.
Esse movimento corresponde à identidade para si e às atribuições profissionais
por eles mesmo organizadas, na qual os educadores irão definir as características
substanciais para executar suas práticas didáticas, legitimando, salvaguardando e
justificando possíveis insucessos no processo educativo.

A 'iconidentidade profissional', originada da presença da representação social


do 'outro' no processo de formação da identidade do profissional, não viria
apenas para legitimar a figura do profissional ou criar uma identidade
superior às demais no contexto social. Ela é uma 'identidade preventiva', ou
seja, ela viria para proteger os sujeitos dos grupos sociais dos problemas

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

oriundos da relação de alteridade ocorrida no contexto social em que os


sujeitos atuam como profissionais. (FERREIRA, 2012, p. 152).

Por fim, nessas circunstâncias, pode surgir o fenômeno da “potencialidade


disciplinar”, que é a valoração de determinadas disciplinas ou conteúdos escolares em
relação a outras (os), onde os agentes da educação vão selecionar o que deve ser
ensinado para melhor sanar a “pobreza” daquele grupo de educandos, compreendendo
que alguns saberes são mais relevantes ou eficientes que os outros.
Sendo assim, de acordo com Ferreira (2017, p. 165), a “potencialidade
disciplinar” é: “a ênfase dada aos estudos de algumas disciplinas, consideradas pela
sociedade capitalista como mais importante em relação a outras”. Por conseguinte,
haveria disciplinas/conhecimentos menos fundamentais ou até mesmo desnecessários.
As representações, sociais ou não, de pobreza que o grupo de educadores
manifesta para com os “alunos-pobres” contribuem para estabelecer parte da formação
identitária desses profissionais e do grupo. Elas implicam no modo como as práticas
(didáticas) educacionais irão de suceder (suas prioridades, organização etc.), moldando
a forma como se constrói e se dá a manutenção do convívio com os educandos e com os
demais educadores.
Em vista disso, as possíveis representações de pobreza podem exercem
diferentes formas de impactos nos educadores – que internalizam e projetam
preconceitos e estereótipos – e, consequentemente, afetam seus alunos de maneiras
variadas e particulares, pois cada grupo cria concepções de pobreza diferenciadas.
Portanto, as representações sociais de pobreza tendem a conduzir a forma de se
relacionar com o sujeito empobrecido, dentro ou fora do ambiente educacional,
definindo o que ele precisa, ou não, para sanar a sua falta (nas mais diversas condições).
Atuando como mecanismos de coesão interna do grupo, as
representações de pobreza – ao pautar valores, regras, ideias e significações para com
“alunos-pobres” – acabam por interferir no processo de atribuição e pertença desses
profissionais, onde ocorrerão negociações as identitárias dos educadores, uma vez que
há um acordo subentendido entre dos educadores que pertencem àquele grupo
socioeducacional sobre o que deve ou não ser ensinado e qual a forma de tratamento
dada aos educandos empobrecidos.
Dessa forma, representações sociais de pobreza podem criar – de forma
idealizada, não precisamente condizente com a realidade apresentada pelos educandos –
a “falta” de desinteresse ou atenção das crianças, a “falta” de responsabilidade, de

sumário 196
VII Seminário Vozes da Educação

comprometimento, a “falta” de maturidade, de educação e a “falta” de cultura. Também,


a “falta” de capacidade intelectual para desenvolver as tarefas, “falta” de
apoio/acompanhamento da família; dentre outras “pobrezas” que possam tentar
“explicar” as relações entre docentes e discentes.
Nesse âmbito, os professionais buscam corresponder às expectativas do grupo
com objetivo de se manterem na dinâmica no mesmo (não serem excluídos ou bem-
aceitos). Esse paradigma de como se constitui a identidade socioprofissional dos
educadores poderá ser interpretado na Teoria da identidade proposta por Claude Dubar.

A constituição da identidade socioprofissional em Dubar

A noção de identidade pode ser construída por diversos prismas


epistemológicos, na qual cada um deles carrega as particularidades de suas acepções.
Diante disso, a concepção aqui preconizada, elaborada por Claude Dubar (2009),
entende que a construção das identidades está imbricada nas mudanças e na dinâmica do
fazer empírico de cada espaço-tempo vivido, nas relações sociais e no permanente
processo de reformulação dessas identidades.
Nesse contexto, a identidade não é fixa (estática) nem estipulada previamente,
tampouco determinada unilateralmente (seja pelo próprio indivíduo ou pelo grupo onde
está inserido), mas assim, ela é o resultado de identificações circunstanciais compostas
pela díade: “diferenciação” e “generalização”.
A “diferenciação” pretende estabelecer a diferença, colocando em evidência a
singularidade de algo perante alguma coisa ou alguém diante de outrem, logo, a
identidade corresponde à diferença, (cf. DUBAR, 2009, p. 13). Já a “generalização”
busca encontrar um ponto comum dentre os elementos existentes, entre tudo ou todos,
portanto, a identidade se dá mediante ao pertencimento daquilo que é ou aparenta ser
semelhante.

Essas duas operações estão na origem do paradoxo da identidade: o que há


de único é o que é partilhado. Esse paradoxo só pode ser solucionado
enquanto não se leva em conta o elemento comum às duas operações: a
identificação de e pelo outro. (DUBAR, 2009, p. 13).

Sendo assim, a alteridade é componente essencial e indissociável do


processo de constituição das identidades, que são impactadas pelo contexto histórico-
social no qual se desdobram. À vista disso, esse paradigma não se propõe definir, de

sumário 197
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

antemão, as identidades, portanto, recusa entendê-las de modo dado (instalado) e


acabado. Compreende-se que as formas de identificação estão imersas na historicidade
do grupo social e nas vidas particulares nela inseridas. Esse sistema é composto,
essencialmente, por modos de identificação de duas espécies: as identificações
projetadas pelos outros (“identidades para o outrem”) e a identificação postulada pelo
próprio indivíduo (“identidades para si”).
Esse processo é formado por uma dialética (conciliatória ou não) que gera
desdobramentos – (re)ajustes ou ampliação das divergências – entre o "mim"
identificado por “outrem”, que me reconhece como integrante daquele grupo social, e o
"eu", que vai ao sentido de se apoderar de um papel singular cuja atuação ativa se
enquadre dentro dos valores cultivados pelo grupo e que estimule o sentimento de
pertencimento do "eu" para com o “outro”. Nisso, o indivíduo, ao buscar o êxito da sua
afirmação no grupo social, ele está permeado constantemente no processo de
socialização.
Com isso, a construção operacional das identidades socioprofissionais ocorrerem
permeadas nas relações sociais construídas nas particularidades dos grupos, no qual os
sujeitos, em constante interação, estabelecem diálogos que levam ao reconhecimento
(ou não) das características dos demais membros do grupo, tornando-se, assim, uma
construção conjunta, recíproca e incessante. "As identidades resultam, pois, do encontro
entre trajetórias socialmente condicionadas e campos socialmente estruturados."
(DUBAR, 2005, p. 94).
Nessa perspectiva, o âmago da teoria da construção dos processos identitários
socioprofissionais está na articulação desses mecanismos de identificação social.

Denominamos atos de atribuição os que visam a definir “que tipo de homem


(ou de mulher) você é”, ou seja, a identidade para o outro; atos de
pertencimento os que exprimem “que tipo de homem (ou mulher) você quer
ser, ou seja, a identidade para si". (DUBAR, 2005, p. 137).

Frente a isso, não existe, obrigatoriamente, uma similitude entre a "identidade


predicativa para si" – cuja expressão dá-se pela subjetividade da pessoa com sua história
particular – e as identidades "atribuídas pelo outro".
Por ser um naturalmente um Ser social, o indivíduo, ao constituir sua identidade
social, encontra-se no jogo da “dualidade identitária”. Assim sendo, as identidades
“para o outro” e “para si” são indissociáveis e potencialmente conflituosas. Isso, pois,

sumário 198
VII Seminário Vozes da Educação

não se separam haja vista que a "identidade para si" está articulada ao reconhecimento
do "outro" (só posso me reconhecer e me definir a partir da existência dos demais). E
conflituosa uma vez que as formas de sentir e as experiências do "outro" não podem ser
percebidas pelo meu “eu” da mesma forma, pois no processo de comunicação
elaboramos um entendimento particular do que venha ser aquilo que o outro nos
atribuiu para, com isso, construirmos nossas identidades.

Eu nunca posso ter certeza de que minha identidade para mim mesmo
coincide com a minha identidade para o Outro. A identidade nunca é dada,
ela sempre é construída e deverá ser (re)construída em uma incerteza maior
ou menor e mais ou menos duradoura. (DUBAR, 2005, p. 135).

Nesse caso, durante o processo de atribuições e pertenças, o sujeito pode recusar


ou aceitar as formas identitárias que lhe atribuem, estando aberta a possibilidade dele se
identificar de modo convergente ou não às identificações externas.
É na interação interpessoal, nas atividades sociais e profissionais (nos sistemas
de ação, nas trajetórias sociais) que o sujeito será identificado pelo outro, sendo
obrigado a reafirmar (incorporar) ou renunciar (negar) as variadas formas de
identificação oriundas das instituições onde ele é membro e dos outros com quem
convive. Diante disso, é através dos conflitos e negociações impulsionadas por esses
modelos de identificações que, progressivamente, vai se construindo a configuração
identitária do grupo social ou de um sujeito.

Disso resultam "estratégias identitárias" destinadas a reduzir a distância entre


as duas identidades. Elas podem assumir duas formas: ou a de transações
"externas" entre o indivíduo e os outros significativos, visando a tentar
acomodar a identidade para si à identidade para o outro (transação
denominada "objetiva"), ou a de transações "internas" ao indivíduo, entre a
necessidade de salvaguardar uma parte de suas identificações anteriores
(identidades herdadas) e o desejo de construir para si novas identidades no
futuro (identidades visadas), como vistas a tentar assimilar a identidade-para-
o-outro à identidade-para-si. (DUBAR, 2005, p. 140).

As identidades profissionais correspondem às identificações, às formas


reconhecidas socialmente que um sujeito tem dentro do campo do emprego (área na
qual ele atua), mediante ao trabalho que exerce (aquilo que realiza nas funções). Por sua
vez, a identidade social é definida como: “a dupla articulação problemática de uma
orientação ‘estratégica’ e de uma posição ‘relacional’ resultante da interação entre uma
trajetória social e um sistema de ação.” (DUBAR, 2005, p. 92).

sumário 199
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Partindo da abordagem sociológica acerca dos estudos das identidades


desenvolvidos por Dubar (2005),

[...] a identidade nada mais é que o resultado a um só tempo estável e


provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural,
dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os
indivíduos e definem as instituições. (p. 136, grifo do autor).

Sendo assim, a identidade socioprofissional é o reconhecimento que o indivíduo


tem em seu âmbito social mediante aquilo que exerce em suas funções profissionais, a
sua formação e às relações interpessoais que cultiva. É a noção e o sentimento de
pertença na qual a sociedade enquadra uma pessoa em determinada tarefa, posição ou
categoria, tendo o cerne do seu processo de construção imbricado na dualidade social,
cuja pessoa forja sua própria identidade (identidade para si) e, concomitantemente, o
grupo social onde ela está inserida irá projetar o seu reconhecimento (identidade para o
outro), com isso, definindo-se o perfil identitário.
Perante a isso, a construção da identidade contempla um amplo processo que vai
implicar antes mesmo de indivíduo entrar no âmbito profissional, vai perpassar suas
ações presentes e visar suas condições sociais futuras. Nessa ótica, insere-se a
identidade herdada (aquilo que ele já traz de carga histórica, trajetória de formação
pessoal e acadêmica); e também a identidade futura (seus anseios e planejamentos
diante daquilo que pretende alcançar em sua vida profissional e particular), uma vez que
isso interfere a sua forma de organizar suas atividades didáticas e de se relacionar com
os demais membros do grupo.
Em conformidade com essa teoria, Ferreira (2012, p. 114), em seus estudos, vai
afirmar que “a identidade é um processo contínuo de negociação entre elementos
psicossociais contraditórios entre si e que são partilhados entre os sujeitos e os grupos
em um processo de socialização.”. Nesse entendimento, o autor amplia e direciona a
visão de Dubar ao acrescentar elementos psicossociais que, neste caso, correspondem às
representações sociais de “aluno-pobre”, no qual se estabelece o enfoque deste trabalho.
Com o intuito de sintetizar e ilustrar de forma didática, o mesmo autor
organizou, a partir da teoria da identidade socioprofissional de Dubar, um quadro que
apresenta a relação entre essas categorias identitárias. Vejamos, a seguir, os quatro
movimentos da identidade.

sumário 200
VII Seminário Vozes da Educação

Quadro 1: Organização e negociação da identidade socioprofissional dos indivíduos.

PROCESSO DE FORMAÇÃO IDENTITÁRIA


O que os outros
O que o sujeito
lhe atribuem e é
atribui a si Biográfica Relacional
aceito pelo
mesmo como para si para o outro
sujeito como
parte da sua (Identidade para si) (Identidade para o outro)
parte de sua
identidade
identidade
O que o sujeito Identificações
constitui como Relacional recebidas
Biográfica
projeto de para si anteriormente
para o outro
futuro a (Identidade constituída no processo de
(Identidade herdada)
respeito de si para si) socialização
mesmo primário
ATRIBUIÇÃO PERTENÇA
(FERREIRA, 2019)

Nessa perspectiva, o campo social que forja a negociação da identidade


socioprofissional é composto por quatro maneiras de identificação (identidades: "para
si", "para o outro", "herdada" e "futura") que refletem nas atuações particulares e
coletivas dos indivíduos diante das instituições sociais. Esse sistema de negociação
identitária é dividido no campo que expressa das interações sociais (o relacional) e no
campo referente instância particular do sujeito (o biográfico).
A organização do eixo vertical da organização da identidade
socioprofissional é configurada pelas formas “biográfica para o outro” e “relacional
para si”.
Representando a identificação herdada pelos indivíduos por intermédio de suas
respectivas gerações, a “biográfica para o outro” traz consigo os elementos herdados
culturalmente em seu grupo local, como, por exemplo, as crenças, valores e a língua.
Eles são provenientes dos processos de socialização que ficam enraizados na vida
cotidiana das pessoas.
Já a forma “relacional para si” é oriunda da deliberação na qual o sujeito define
para ele mesmo um projeto de vida (e de identidade) que contém suas expectativas,
buscando se articular com os demais que possuem projetos semelhantes, pois é esperada
a recognição de “outrem”. Logo, trata-se da “face do eu que cada um deseja ver
reconhecida pelos ‘outros significativos’ que pertencem à sua comunidade de projeto”
(DUBAR, 2005, p. 51).

sumário 201
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Apresentando-se como alicerce o outro processo de processo de negociação


identitária, “esse eixo será constantemente consultado para a organização da sua
identidade profissional e suas relações estabelecidas nos diversos campos sociais em
que os sujeitos se encontrarem.” (FERREIRA, 2019, p. 39).
Por sua vez, o eixo horizontal é composto pelas formas “biográfica para si” e
“relacional para o outro”, integrandos os movimentos básicos da negociação identitária:
os atos de atribuição e pertencimento.
A forma “relacional para o outro” – tendo como finalidade a identificação do
indivíduo a partir do papel que ele desenvolve em seu grupo social – é determinada
mediante a interação do indivíduo com os sistemas institucionais e seus mecanismos de
hierarquização. Com isso, na organização de valores, ideais, objetivos, normas,
condutas etc., construídas nas relações sociais, ocorrem as atribuições vindas dos
“outros” e que implicam no reconhecimento, aceitação e validação da atuação
profissional do sujeito e na aprovação para aderência ao grupo.
Por fim, a forma “biográfica para si” é:

composta pelo questionamento feito pelo sujeito-profissional das identidades


atribuídas pelos outros para si (relacional para o outro) em relação à
longevidade do seu projeto de vida e seu reconhecimento e pertença a um
grupo socioprofissional (eixo horizontal da formação identitária).
(FERREIRA, 2019, p. 40).

Diante disso, o sujeito vai reafirmar as escolhas realizadas perante o processo de


construção da identidade em conformidade com certas categorias e componentes sociais
existentes no eixo horizontal. Simultaneamente, no âmbito profissional, vai se
moldando e se organizando diante das atribuições que os outros lhe confere.
Portanto, a constituição da identidade socioprofissional do educador estará
inserida no processo básico de atribuição e pertença, que se dá através de permanentes
negociações pautadas na concretude das relações sociais das quais são utilizadas
“estratégias identitárias” para que se defina a aderência e a continuidade dos indivíduos
nos seus espaços de trabalho e grupos sociais.
Ao passo que ocorre a adesão ao grupo, os sujeitos – articulando com suas
categorias herdadas durante seus processos de socialização ao longo de suas vidas –
definem expectativas que irão se incorporar aos desejos e necessidades para se
manterem como membros significativos em seus grupos socioprofissionais, ou seja,
procurando estabelecer a aderência às instituições à medida que atendem as categorias
trazidas por elas.

sumário 202
VII Seminário Vozes da Educação

Dessa maneira, as ações práticas desenvolvidas na relação educador-educando,


nesse caso, do grupo atuante nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental – dentro e fora
da sala de aula –, aparecem como ocasiões imprescindíveis que contribuem para a
formação das identidades dos professores.
Essas identidades são impactadas diretamente pelos efeitos gerados nas trocas
socioculturais durante as trajetórias de experiências concebidas no trabalho desses
profissionais e têm com elemento substancial o “outro”, a alteridade.

Referências
DUBAR, Claude. A crise das identidades - A Interpretação de uma Mutação. Tradução
de Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: EdUSP, 2009. 292 pp.

______. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. 1. ed. São


Paulo: Martins Fontes, 2005.

JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET,


Denise. (Org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.

MOSCOVICI, Serge. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,


1981.

______. Representações Sociais - Investigações em Psicologia Social. Petrópolis:


Vozes, 2003.

FERREIRA, Arthur Vianna. Convivência e Itinerância: uma abordagem psicossocial


para revitalização das relações agostinianas. Maringá (PR): A. R. Publisher Editora,
2019.

______. Percursos de iniciação científica: a prática da pesquisa nos espaços


educativos. O "aluno-pobre", as representações sociais e as práticas de iniciação
científica na formação docente em história. Rio de Janeiro, p. 148-175, 22, junho. 2017.

______. Por que eles foram embora? As representações de pobre em oficinas de


capacitação profissional para adultos em uma instituição educacional confessional.
2006. 150f. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Estácio de Sá, UNESA,
RJ.

______. Representações Sociais e evasão em espaços educacionais não escolares. 1.


ed. Curitiba, PR: CRV, 2016.

______. Representações Sociais e Identidade Profissional: práticas educativas com


camadas empobrecidas. Rio de Janeiro: Letra Capital Editora, 2012.

sumário 203
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

CONTRADIÇÕES DA NOVA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO


MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO

Lays Duarte37
FFP/UERJ
laysdsduarte@gmail.com

Adriana de Almeida38
FFP/UERJ
adryanaalmeida@gmail.com

Introdução
A denominação “Nova EJA” foi incorporada no cenário educacional do Estado
do Rio de Janeiro, para atender uma demanda de uma formação que considerasse a
realidade dos jovens e adultos do Estado e, também, a urgência em uma formação
continuada para os professores que atuam na modalidade. Inicialmente, o Estado propôs
uma sequência de formação online, uma parceria entre a SEEDUC e a Fundação
CECIERJ que visa oferecer a todos os professores de turmas de EJA nas unidades
escolares uma formação contínua e relacionada com o cotidiano da sala de aula,
percorrendo o conteúdo expresso no material didático do estudante, fomentando a
criação de novas práticas pedagógicas pelos professores, bem como sua experimentação
opcional das mesmas, definidas no material impresso e multimeios do professor e na
avaliação do aluno. O objetivo, portanto, era realizar um material didático-pedagógico
próprio que atendesse a demanda dos alunos e dos professores. No entanto, a pesquisa
demonstra que a mudança de nomenclatura não significou uma alteração real nas
condições de vida e de trabalho dos jovens e adultos e, tampouco, promoveu alterações
significativas na forma como os professores veem e percebem a sua atuação na EJA. A
entrevista realizada com a coordenação da EJA do município de São Gonçalo, esclarece
que não há efetivamente nenhum programa ou projeto de formação continuada para os
professores e para ela é urgente a necessidade de uma formação contínua que atenda as
carências formativas dos professores e, assim, auxilie na redução dos índices de evasão
que são altos no município.

37
Graduanda do Curso de História, bolsista IC- FFP/UERJ
38
Prof. Adjunta do Departamento de Educação FFP/UERJ

sumário 204
VII Seminário Vozes da Educação

Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP,


2018), o município de São Gonçalo apresentou os seguintes índices de evasão por
etapa/modalidade:

Figura 1 - Indicadores de evasão/modalidade EJA

FONTE: INEP, 2018.

Os indicadores do Instituto Nacional de Pesquisa Anisio Teixeira (INEP) dizem


respeito ao rendimento e ao fluxo escolar. Os indicadores de rendimento: se referem à
situação final do aluno declarada na segunda etapa da coleta do Censo Escolar e
consideram os dados de alunos que ao final do ano letivo foram aprovados ou
reprovados ou que durante o ano letivo abandonaram a escola. Já os indicadores de
fluxo escolar: avaliam a transição do aluno entre dois anos consecutivos considerando
os seguintes cenários possíveis: promoção, repetência, migração para EJA e evasão de
escola.
A EJA, no município de São Gonçalo está assim distribuída:

TABELA I – ESCOLAS DO MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO


Escolas com a modalidade EJA NÚMERO DE ALUNOS NÚMERO DE TURMAS
18 4.010 132
FONTE: SEMED/SG, 2018. Elaborado pelas autoras, 2019.

sumário 205
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

No que se refere, ao público da Nova EJA, que é coordenada pela rede pública
de ensino estadual, os jovens e adultos encontram 15 colégios que ofertam essa
modalidade de educação. É comum nos discursos da oferta de vagas a palavra
“supletivo” para caracterizar a Nova EJA. Há também a oferta da modalidade em 13
escolas particulares.
Entende-se que o direito fundamental à educação e, em particular, da educação
de jovens e adultos ainda é um direito a ser efetivamente legitimado na sociedade
brasileira. Partimos do pressuposto de que a EJA insere-se na perspectiva de uma
educação de classe, subalterna em suas condições de vida sociais, culturais e
econômicas. Dentro da análise do desenvolvimento desigual e combinado, compreende-
se que a modalidade de educação da EJA vive em um cenário de correlação de forças e
de ações polarizadas e descontínuas, sendo facultado ao próprio sujeito construir
mecanismos de resistência social para continuar as suas trajetórias escolares, pois nem
sempre o espaço escolar consegue trabalhar com as desigualdades, diferenças culturais e
outras questões que constituem a vida dos jovens e adultos.
Serra, Ventura, Alvarenga e Reguera (2017) esclarece que em 2011 havia 31
escolas com turmas de EJA no Estado do Rio de Janeiro, já em 2015 apenas 18 escolas
ofertam a EJA, as quais permaneceram em 2018. Portanto, pode-se perceber o grande
déficit que se tem na Educação de Jovens e Adultos, pois de acordo com o último censo
(2010) existem 999.728 habitantes e destes, 3,56% são analfabetos. Considerando esse
censo já ultrapassado acredita-se que essa quantidade pode ser menor ou maior, mas
considerando a quantidade de habitantes, podemos perceber que essa quantidade de
escolas não atendem a todos os que precisam da EJA. Se consideramos o número de
sujeitos que não possuem os anos obrigatórios de escolaridade, essa estatística se eleva
e demonstra a desigualdade de acesso e de permanência na escola dos cidadãos
brasileiros.
Classicamente, a literatura tem entendido que os sujeitos que interromperam
seus estudos para trabalhar na adolescência e hoje desejam retomar as suas atividades,
porém muitas vezes não o fazem por conta de não haver uma escola perto de sua
residência ou por conta da violência instaurada em alguns bairros do município.
Nesse sentido, objetivo deste trabalho é investigar a relação estabelecida entre
trabalho e educação, bem como a trajetória formativa perquirida pelos estudantes da
Educação de Jovens e Adultos em uma instituição de ensino do município de São

sumário 206
VII Seminário Vozes da Educação

Gonçalo, priorizando a experiência e o trabalho educativo realizado pelos próprios


sujeitos a partir do princípio da formação integral e refletindo sobre as práticas
discentes. Para apreender essa finalidade, entende-se a necessidade de analisar os
índices da escolaridade brasileira e questiona-se a efetividade da proposta pedagógica
para os sujeitos da EJA, e como se dá a sua formação. O estudo está ancorado na
perspectiva de fundamentação teórica-metodológica do materialismo histórico dialético
e coaduna-se com a pesquisa qualitativa.
Thompson (2004) caracteriza a EJA enquanto classe social em seu "fazer-se",
tendo em vista a valorização do saber cotidiano e do dia a dia dos sujeitos. Nesse
contexto, a classe é um fenômeno histórico e ela não é uma “estrutura” ou “categoria”.
A classe é formada por homens, como resultado de experiências ou vivências comuns
(herdadas ou partilhadas), lugar onde se sente e se articula a identidade de mesmos
interesses entre si e contra outros homens de interesses diferentes, que geralmente se
opõem dos seus.
A partir da categoria experiência, com base nos estudos de Thompson,
compreendemos que ela é determinada pelas relações de produção nas quais os homens
nasceram ou entraram involuntariamente. A experiência precisa ser valorizada, pois
muita das vezes um sujeito que só possui a experiência, sabe muito mais do que um
sujeito que só possui a prática, é necessário entender que o aprendizado não formal vale
tanto quanto a escolaridade.

2 O Currículo da Nova EJA e a formação de Professores no Estado do Rio de


Janeiro.

O denominado “Manual de Orientações da Nova EJA, construído pela rede


pública estadual de ensino em parceria com o Consórcio Cederj esclarece que o objetivo
do programa está ancorado na perspectiva de consolidar uma escola de qualidade,
conectada ao século XXI, capacitada para preparar os jovens e adultos para o mercado
de trabalho, estimular o desenvolvimento de suas habilidades, constituindo no espaço
escolar as condições propícias para conquista de sua autonomia e inserção nos
diferentes e diversos espaços da vida social: exercício da cidadania plena, o trabalho,
participação comunitária, atuação no cenário político. Nesse sentido, percebe-se a
perspectiva restrita curricular proposta para a EJA, em que o objetivo principal visa as

sumário 207
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

características do mercado de trabalho, típica centralidade da dualidade histórica


estrutural da educação.
O documento propõe que cada módulo tenha a duração de um semestre letivo,
totalizando, para efeito de conclusão do Ensino Médio, em 4 (quatro) semestres letivos
ou 2 (dois) anos. A carga horária diária de aulas, compreendida em turnos de 4 horas,
será de 4 tempos de 50 minutos de aulas das disciplinas obrigatórias e 50 minutos para
disciplinas optativas e dependência. Assim, finaliza o documento sobre a orientação
para composição da matriz curricular:

No mesmo turno serão oferecidas aulas de Ensino Religioso (1 x semana),


Língua Estrangeira optativa (1 x semana) e dependência. Estas aulas, de 50
minutos, acontecem antes de iniciar o turno de aulas da EJA Ensino Médio,
ou ao final entre um turno e outro.
Considerando-se o horário operacional da EJA, quatro tempos de 50 minutos,
a alocação dos professores poderá ser efetivada de acordo
com as sugestões abaixo:
7h50 – 11h10 (Diurno)
12h50 – 16h10 (Vespertino)
18h50 – 22h10 (Noturno)
Não há, no âmbito do desenvolvimento pedagógico da aula, nenhum
impedimento quanto à distribuição de quatro tempos consecutivos de uma
mesma disciplina, em uma mesma turma. Desse modo, a alocação de um
professor que possua uma matrícula em quatro dias, não se justifica, mesmo
com a alocação deste em fases da Eja do Ensino Fundamental ou em turmas
do Ensino Regular (RIO DE JANEIRO, 2015, p.8).

Para cumprir esse currículo, o documento sugere a realização de uma formação


de professores por meio da utilização de ferramentas tecnológicas midiáticas, ou seja,
uma formação na proposta de EAD, oferta semi-presencial, porém com a maioria das
atividades e discussões realizadas na plataforma online do Cederj. O currículo e a
proposta de formação apontam para a necessidade do trabalho com a especificidade dos
jovens e adultos, no entanto, o trabalho não é uma categoria central de proposta. Para
Santos (2011) A problematização e a análise do mundo do trabalho, portanto, devem se
constituir em ações educativas fundamentais para uma proposta curricular que considere
a ressignificação do saber da experiência e a construção de um pensamento crítico e
autônomo por parte dos alunos. Pois, conforme o autor, isso torna extremamente
desafiador o trabalho docente e exige dos conhecimentos disciplinares a busca pela
melhor forma de contribuir para esse processo, pois nem sempre a tradição seletiva do
currículo das escolas para crianças contempla temas, abordagens e exemplos do mundo
adulto.

sumário 208
VII Seminário Vozes da Educação

A ausência de um currículo que compreenda a EJA em sua totalidade, também


está presente nos cursos de formação inicial.

Quadro 1 - Disciplinas de EJA nas universidades do estado do RJ


IES DISCIPLINA EMENTA

Uerj - Maracanã Abordagens pedagógicas na EJA - Apreender concepções teórico-


OBRIGATÓRIA metodológicas que fundamentam e
subjazem a propostas da educação de jovens
e adultos. Compreender as relações entre
concepções e expressões pedagógicas que
organizam políticas, programas e projetos.
Explorar variedade de políticas, programas e
projetos, buscando concepções e lógicas que
os orientam. Experienciar a produção/
formulação de propostas para a diversidade
de sujeitos na educação de jovens e adultos.
Analisar criticamente políticas, programas e
projetos, identificando concepções,
fundamentos teóricos e epistemológicos,
metodologias.
UFF No curso de pedagogia, não possui Não disponibilizada
a disciplina EJA como obrigatória,
porém possui as disciplinas: “
Educação de Jovens e Adultos II
(desativada)” e “Tópicos Especiais
em Educação de Jovens e Adultos”

UFRJ Abordagem didática e educacional Abordagem histórico-político-social da EJA


de jovens adultos - no Brasil. A EJA como conseqüência dos
OBRIGATÓRIA processos da exclusão social inerentes ao
não cumprimento dos objetivos da educação
na modalidade regular. Perspectivas teóricas
possíveis para as práticas pedagógicas que
resgatam o saber de indivíduos jovens,
adultos e idosos. O perfil do aprendiz. O
letramento como uma nova visão sobre a
alfabetização. Currículos, materias didáticos
e formação de professores específicos de
EJA
Universo Pedagogia do Saber Docente e Não disponibilizada
Estágio: Educação de Jovens e
Adultos. - OBRIGATÓRIA
Isat Educação de Jovens e Adultos - - Não disponibilizada
OBRIGATÓRIA
FONTE: autoras, 2019.

sumário 209
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Em quase todas as universidades do Rio de Janeiro, somente nos cursos de


pedagogia possuem a disciplina voltada para a educação de Jovens e Adultos, são raros
as universidades em que existe disciplina voltada para a Educação de Jovens e Adultos
como eletivas, na qual as demais licenciaturas poderiam fazer. A questão que se
observa, é o fato de pessoas que também estão se preparando para serem professores,
assim como os pedagogos, não possuem um preparo para o ensino da EJA e este fato
poderá desencadear uma grande falta no momento em que entrarem em uma sala de
aula e seus alunos não forem alunos com a idade regular para tal turma no qual o
mesmo faz parte.
Corrobora-se com Santos (2011) que a análise do conhecimento escolar revela
um hibridismo contraditório de tendências e concepções pedagógicas que se legitimam
nas Políticas oficiais curriculares para a EJA, tanto no que diz respeito as propostas para
a Educação Básica como para a Educação Superior. Esse hibridismo perpetua as
práticas pulverizadas e fragmentadas que têm sido destinadas ao público jovem e adulto,
colaborando para o fortalecimento de uma educação precarizada para a modalidade.

3 O cenário da pesquisa e os seus resultados.

A pesquisa foi realizada em duas instituições de ensino que ofertam a EJA no


período noturno no Município de São Gonçalo. Essas escolas foram escolhidas porque
em sua trajetória escolar são instituições que tem se preocupado com a formação de
professores e, também, procuram realizar um trabalho crítico em relação as políticas
educacionais que são incorporadas ao seu cotidiano. Foram entrevistados 16 jovens e
adultos a fim de compreender a relação entre trabalho e educação que esses sujeitos e
como têm traçado às suas próprias trajetórias de formação. Também foram entrevistadas
duas professoras e investigou-se a dinâmica didática e relação entre professoras e alunos
durante às aulas.
De acordo com a análise de Martins, Abrantes e Facci (2016) é possível realizar
algumas reflexões de alguns aspectos importantes a respeito da juventude, velhice e
trabalho pode-se entender através dos estudos psíquicos que cada parte do
desenvolvimento de um sujeito é caracterizado por uma atividade que ele desempenha e
essa atividade se torna a principal forma de relacionamento com seu entorno social,
fazendo assim com que esse indivíduo se desenvolva socialmente.

sumário 210
VII Seminário Vozes da Educação

O jovem das classes populares têm a necessidade de se inserir no mercado de


trabalho e os jovens que tem apoio econômico sonham com uma formação profissional
superior e tem acesso às atividades intelectuais, em contraponto que os jovens das
classes populares se entregam aos trabalhos braçais, não tendo tempo e oportunidade
para vislumbrar uma carreira intelectual.
A autora também nos traz questões como o toyotismo, que diminui a quantidade
de trabalhadores substituindo-os por máquinas e como resultado disso, os jovens das
classes populares acabam ficando desempregados.
Ao chegar na velhice, os idosos tendem a se sentir desvalorizados e então
procuram ocupações, como cuidar de netos ou voltam a trabalhar mesmo que já
aposentados, pois dessa forma eles se sentem com um lugar na sociedade, na EJA
vemos grande quantidade de idosos, e a partir dessa leitura pode-se perceber que eles
procuram um lugar para estar, onde eles tenham voz e sejam reconhecidos pelo o que
fazem.
Nessa pesquisa, optamos em utilizar pseudônimos para preservar a identidade
dos jovens e adultos entrevistados, porém utilizamos nomes comuns para retratá-las a
fim de garantir o caráter de relação direta com a experiência e especificidade própria da
EJA.
Observamos a relação entre trabalho e escola e avaliamos a percepção deles em
relação a esses dois “universos”. A escola possui 265 alunos matriculados na EJA e 13
professores, entre professores para alunos especiais, professora de artes, professor de
educação física e o professor de informática. A turma de alfabetização possui apenas 01
professora, muito querida e elogiada por todos os alunos. Nesta turma, 08 alunos
aceitaram participar da pesquisa.
A maioria dos sujeitos dessa turma são idosos ou de meia idade, não tem
nenhum adolescente ou jovem, mas mesmo sendo mais velhos, seus sonhos e desejos
não foram esquecidos, muitos tem vontade estudar e chegar até a universidade. As
motivações deles para ler e escrever são as mais variadas, ouvi falar sobre aprender a ler
para começar e terminar um livro, aprender para tirar a habilitação, aprender apenas
para ajudar os filhos ou só pela vontade de saber, os sonhos são grandes, como por
exemplo cursar direito.
O primeiro entrevistado, foi seu Belarmino, seu Belarmino é um sujeito
sonhador, ele foi o mais aberto para conversar e o que mais contou sobre a sua vida e
família. Ele tem 68 anos, nasceu em Iuperas no Ceará e atualmente mora no Engenho do

sumário 211
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Mato, na região oceânica de Niterói. Ele está no Rio há 23 anos e veio para cá com o
intuito de conseguir um emprego melhor. Apesar de não ser alfabetizado, ele teve dois
filhos que conseguiram concluir o Ensino Médio. Seu Belarmino é pedreiro e ele
atualmente encontra-se aposentado, porém ainda trabalha quando tem oportunidade. Ele
parou de estudar porque precisou trabalhar, os pais dele até tinham recursos financeiros
para mantê-lo na escola, mas não queriam que ele estudasse.
Atualmente, ele voltou para a escola para realizar um sonho, o sonho de tirar a
habilitação. O segundo aluno no qual eu entrevistei, foi o Antônio, ele tem 36 anos,
nasceu em Pernambuco e veio para o Rio há 04 anos, ele é solteiro e veio para cá em
busca de uma oportunidade de emprego e por curiosidade, segundo ele seu sonho era
conhecer o Rio de Janeiro. Ele trabalha em um condomínio como jardineiro, mas na
verdade ele disse que faz tudo lá. O Antônio nunca havia estudado, seu pai dizia que
não era necessário estudar, apenas trabalhar.
O terceiro sujeito é a Lina, tem 77 anos e é moradora de Itaipú, há 03 anos ela
veio para Niterói, antes ela morava em Cabo Frio.Ela nasceu em Minas e veio para o
Rio com 10 anos. Seus pais vieram para cá em busca de uma condição melhor para criar
os filhos, pois no interior de Minas não havia muitos recursos. Lina tem 5 filhos e todos
são formados no ensino superior. Ela nunca trabalhou, mas sempre sentiu vontade de
estudar pois ela tinha muita vontade de aprender coisas novas. O sonho de Lina é
terminar a escola e cursar Direito.
Agora vou falar sobre a Alexandra, ela nasceu no Rio e tem 38 anos, ela tem 03
filhos, os dois mais novos ainda estudam, o mais velho tem 23 anos, mas não terminou
a escola. Ela voltou a estudar porque seu sonho é começar um livro e terminar, sem
pedir a ajuda de ninguém.
O Leandro, tem 34 anos e veio para Niterói a 20 anos, antes ele morava em
Campos/RJ. Ele tem 05 filhos, todos eles estudam. Ele percebeu a necessidade de
estudar, quando precisou ensinar aos filhos os exercícios da escola, ele relata que é
muito ruim ele não poder ajudar os filhos, mas que agora todos aprendem juntos. Ele
relata que antes não gostava de estudar e que por isso havia desistido da escola, mas
agora segundo ele os planos são outros, ele deseja terminar e fazer Gastronomia.
A Rosana nasceu em Sergipe e há 03 anos veio para o Rio, ela tem 02 filhos. Ao
conversar com ela, ela me relata que anteriormente parou de estudar porque era a mais
velha dos irmãos e precisou parar de estudar para cuidar deles. Ela trabalha como
doméstica e só quer estudar para terminar a escola.

sumário 212
VII Seminário Vozes da Educação

A Nair tem 59 anos, ela veio do Recife para o Rio quando tinha apenas 13 anos,
atualmente mora em Piratininga. Ela saiu de sua cidade natal com o objetivo de vir
trabalhar no Rio e atualmente ela trabalha como babá. Antigamente ela já havia
estudado, mas seus pais a colocaram para trabalhar. O seu objetivo é apenas terminar a
escola e ela decidiu voltar à escola, pois segundo ela: “A leitura faz falta né”.
A última entrevistada dessa turma foi a Rita. Ela nasceu na Bahia e veio para cá
aos 14 anos, sua mãe veio para cá em busca de uma oportunidade melhor de vida. Mas a
Rita nunca estudou, ela ficava em casa para cuidar de seus irmãos. Atualmente Rita tem
39 e 03 filhos, um abandonou a escola, o outro estuda e o mais novo faleceu. Rita
trabalha como auxiliar de limpeza em um mercado, ela decidiu voltar à escola para
aprender a ler e escrever, porque para ela a escola a ajudará a melhorar de vida. Ela
pretende fazer uma faculdade ou um curso.
O primeiro ponto que se pode observar nesses alunos, é que a maioria deles vem
de outro estado para o Rio de Janeiro em busca de uma condição melhor de vida e
quando eles não pensavam isso, seus pais pensavam.

Gráfico 1 - Naturalidade, turma 1, 2018.

Bahia
Naturalidade Ceará
Maranhão
Minas
Pernambuco
Recife
Rio de Janeiro
Sergipe

FONTE: As autoras, 2019.

Outra característica desses sujeitos é que a maioria nunca esteve na escola,


nunca estudou e isso se deu por sua necessidade de trabalhar. Mas pode - se pensar em
um direito que lhes foi tirado, pois em grande maioria os seus pais não permitiram que
eles estudassem.
Vê-se que esses alunos escolheram romper com coisas que estavam “impostas” a
eles, pois estudar e trabalhar não é uma coisa fácil, e a necessidade faz com que eles
tenham tamanha força de vontade. Pode – se perceber também que todos esses alunos
percebem a importância que a escola tem em seu dia a dia. Pode-se perceber por essa

sumário 213
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

turma a importância do papel do professor, no caso em questão, a professora Ana Paula


é quem os impulsiona a vôos altos, segundo eles, ela é a maior incentivadora de seus
sonhos. Elogios a ela foram feitos em todas as entrevistas para essa pesquisa, seu
carinho e total dedicação eram sempre relatados.
Ao entrevistar a outra turma, percebeu-se uma grande diferença intergeracional.
A turma possui alunos 16 anos até idosos. Grande maioria dos alunos não trabalham,
apenas estudam e a maioria dos alunos são naturais do Rio de Janeiro.
O André tem 16 anos e nasceu no Rio de Janeiro, quando criança ele não
gostava de estudar, e sua mãe, segundo ele “não se importava”, mas quando ele foi
morar com o pai, o pai disse que ele teria que estudar e trabalhar. Ele trabalha como
jardineiro, em frente a sua casa. Segundo André ele também sentia falta da escola, então
não “se importou” com a condição que seu pai impôs.
A Fabiana tem 39 anos e nasceu no Maranhão, ela veio para o Rio com o intuito
de conseguir um emprego, uma melhor condição de vida. Atualmente ela trabalha como
depiladora e manicure e consegue conciliar o trabalho e a escola por que ambos são
próximos a sua residência. A Fabiana tem o sonho de cursar direito.
A Claudia veio do Recife para o Rio quando tinha 14 anos, atualmente ela tem
42 anos. Sua mãe veio para o Rio a procura de emprego e com isso a Josi veio junto. Ela
parou de estudar aos 12 anos para trabalhar e ajudar sua mãe em casa. Atualmente, a
Josi trabalha como doméstica, mas tem o sonho de terminar a escola e cursar uma
faculdade, ela acredita que o estudo dará a ela uma profissão melhor.
O Celso, é natural do Rio e tem 42 anos. Ele nunca havia estudado, pois segundo
ele próximo a sua casa não tinha escola e também porque ele começou a trabalhar. Ele
decidiu voltar a estudar por que pretende fazer um concurso público. Atualmente ele
trabalha como construtor.
A Tainá, tem 17 anos e uma filha de 02 anos. Ela relatou que não trabalha, mas
que já trabalhou fazendo faxina. Ela parou de estudar, voltou a estudar e engravidou,
com isso precisou parar novamente. A Tainá pretende fazer uma faculdade, mas ainda
não escolheu o que pretende cursar. Outra entrevistada foi a Joelma, ela tem 42 anos e
nasceu no Rio de Janeiro. Joelma me relata que ela já trabalhou em uma fábrica, mas
que atualmente não está trabalhando. Ela parou de estudar aos 14 anos por que mudou
de cidade e ao se estabilizar em outro local, decidiu que iria trabalhar. Segundo Joelma,
a escola a ajudará a melhorar a sua vida e a conseguir um bom emprego.

sumário 214
VII Seminário Vozes da Educação

A Yasmin, tem 16 anos e nasceu no Rio. Ela nunca trabalhou, mas decidiu parar
de estudar e ficou 04 anos fora da escola, ao voltar foi matriculada na EJA. Ela nos
relata que pretende concluir a escola e fazer faculdade de psicologia.
O último entrevistado é o Alexandre, ele tem 15 anos e também nasceu no Rio
de Janeiro. Atualmente Alexandre não está trabalhando, mas já trabalhou na praia
entregando guarda sol e cadeiras. Ele nunca parou de estudar, mas já repetiu de ano, por
isso ele foi para a turma da EJA.
O perfil dessa turma é bem diferente da outra, a primeira turma era mais aberta a
conversas e a exposição de seus pensamentos, já os alunos da última turma entrevistada
são mais introvertidos e não gostam muito de falar sobre as suas vidas. Porém, é
perceptível que ambos os grupos reconhecem a necessidade da escola e do aprendizado
em suas vida. Nenhum dos entrevistados ouviu falar que da Nova EJA, para eles nunca
houve nenhuma diferença desde que entraram na escola, a forma de trabalho e
metodologia dos professores sempre foi igual. O material que utilizam, normalmente, é
trazido pela professora, as escolas até contam com material didático de apoio, porém,
ele não utilizado pelas professoras, porque, segundo elas, não atende as características e
tampouco as necessidades de cada turma.
As duas professoras não participaram de nenhuma formação continuada
oferecida pelo Cederj, alegaram que nem tinham conhecimento dessa formação.
Apontaram que a escola faz o possível para que haja um apoio pedagógico, todavia,
ainda é escasso o tempo para que essa formação se realize.

Considerações

A partir dos estudos feitos e das colaborações da pesquisa, pode-se analisar que
a relação entre o trabalho e a escola, se tornou uma relação de condição, pois através da
fala dos sujeitos percebe-se que eles estudam em busca de uma melhor condição de
vida, porém esse objetivo nem sempre está coadunado com o currículo e com as
políticas educacionais.
Em relação aos que não tiveram oportunidade de estudar anteriormente ou os
que precisaram parar, vê-se que muitos deles foram privados de seus direitos por seus
pais pela necessidade do trabalho e por outras situações geradas por suas condições
sociais e culturais. Estar e permanecer na escola é um esforço cotidiano para a
maioria desses trabalhadores, porém, é um desafio e responsabilidade ética-profissional

sumário 215
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

para todos os envolvidos com a educação a luta diária para que o direito pleno e total à
educação se realize de maneira que fortaleça não só a continuidade dos estudos para
esses sujeitos, mas, também, a inserção profissional e social de que tanto necessitam e
são privados cotidianamente em muitos espaços sociais.

Referências

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 12a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: os intelectuais. O princípio educativo.


Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, v. 2.

LIBÂNEO, J. C. Educação, pedagogia e didática – o campo investigativo da pedagogia


e da didática no Brasil: esboço histórico e buscas de identidade epistemológica e
profissional. In: PIMENTA, S. G. (org.). Didática e formação de professores:
percursos e perspectivas no Brasil e em Portugal. 6. Ed. São Paulo: Cortez, 2011, p. 89-
148.

MARTINS, L.M.; ABRANTES, A.A.; FACCI, M.G.D. (org.). Periodização histórico-


cultural do desenvolvimento psíquico: do nascimento à velhice. São Paulo: Autores
associados, 2016.

RIO DE JANEIRO. Governo do Estado do Rio de Janeiro. Secretaria de Estado de


Educação. Manual de Orientações da Nova EJA. 2015. Disponível em:
http://projetoseeduc.cecierj.edu.br/eja/manual-eja.pdf. Acesso set.2019.
SANTOS, E. S. O mundo do trabalho na geografia a ser ensinada na educação de jovens
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SERRA, E.; VENTURA, J. ALVARENGA, M.; REGUERA, E. Interrogando o direito


à educação: oferta e demanda por Educação de Jovens e Adultos no estado do Rio de
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Crítica Educativa. Sorocaba, SP., v. 3, n. 3, p. 25-41, ago./dez.2017. Disponível em:
http://www.criticaeducativa.ufscar.br/index.php/criticaeducativa/article/view/243/349.
Acesso abril, 2018.

THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses e outros. 2.ed. São


Paulo: Editora da Unicamp, 2012.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.


Tradução de Rosaura Eichenberg. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade.


Vol. I. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

THOMPSON, E.P. Educação e experiência. In: Doroty Tompson (Org.). Os


Românticos: a Inglaterra na era revolucionária. Tradução de Sergio Moraes Rego Reis.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

sumário 216
VII Seminário Vozes da Educação

A MEMÓRIA DA FORMAÇÃO E DO TRABALHO DOCENTE DE


PROFESSORAS RURAIS EM NOVA IGUAÇU-RJ

Jéssica Cristina Ferreira Félix


UFRRJ/Nova Iguaçu
jessicacristinaferreira@hotmail.com

Introdução

Este trabalho se constitui em uma pesquisa que buscou analisar a profissão


docente ligada à prática de professoras que atuaram em espaços rurais, discutindo sobre
os processos de formação inicial e formação continuada, assim como suas histórias de
identificação com o espaço rural e as práticas pedagógicas em sala de aula. O universo
da pesquisa foi constituído por sete professoras que exerceram a docência em escolas
rurais no município de Nova Iguaçu na Baixada Fluminense-RJ durante o período de
1969 a 1990.
O estudo aqui apresentado tem como objetivo entender o processo de formação
de professoras rurais a partir de sua prática docente e suas práticas de formação. Como
metodologia, a pesquisa utilizou o recurso à técnica da entrevista narrativa a qual
possibilita à entrevistada uma autorreflexão da sua prática e sua vida, particularmente
no que se refere ao seu processo de formação.
Considerando o objetivo acima indicado, se buscou investigar alguns aspectos
dos processos de formação docente e trabalho cotidiano de professoras atuantes no meio
rural do município de Nova Iguaçu, localizado na região socialmente delimitada como
Baixada Fluminense no estado do Rio de Janeiro.
A Baixada Fluminense, como área administrativa, é formada por vários
municípios do entorno da cidade do Rio de Janeiro. Apesar da proximidade e das fortes
ligações econômicas com essa cidade, até a fusão ocorrida em meados da década de
1970 a região pertencia politicamente ao estado do Rio de Janeiro, desvinculada do
Distrito Federal ou, posteriormente à década de 1960, do estado da Guanabara.
A partir da década de 1930, com a drenagem das áreas alagadiças, a Baixada
Fluminense passou gradativamente da condição de área de economia rural para a de
periferia urbana. A construção dos ramais ferroviários e o loteamento de grandes áreas,

sumário 217
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

principalmente nos municípios de Nova Iguaçu e de Duque de Caxias (que


posteriormente perderiam parte de seu território para os novos municípios de São João
de Meriti e Nilópolis), atraíram milhares de trabalhadores e imigrantes, que ali se
fixaram pela possibilidade de compra de terrenos baratos e pelo transporte relativamente
fácil e rápido para os locais de trabalho.
O aumento populacional não foi acompanhado de uma adequada urbanização e
da consequente expansão de serviços urbanos essenciais, como educação e saúde.
Tal fenômeno chama mais ainda a atenção quando se considera que a região viu
ocorrer no período histórico mencionado a instalação tanto de grandes
empreendimentos industriais estatais, como a Fábrica Nacional de Motores (FNM) e a
Refinaria Duque de Caxias (REDUC), quanto também de empresas privadas, como
químicas e metalúrgicas de grande porte, empresas alimentícias e de transportes e um
sem-número de pequenas empresas, as quais deram à região uma importância
econômica considerável.
Dentro deste quadro histórico mais amplo, a expansão da escolarização na região
da Baixada Fluminense caminhará seguindo tanto o movimento de implantação de
novos empreendimentos fabris na esteira da abertura da Rodovia Presidente Dutra
quanto o processo de urbanização acelerada da região.
Outro fato importante a se notar é que, apesar da proximidade e das fortes
ligações econômicas com a cidade do Rio de Janeiro, até a fusão ocorrida na década de
1970 a Baixada pertencia politicamente ao estado do Rio de Janeiro, desvinculada do
Distrito Federal ou, posteriormente à década de 1960, do estado da Guanabara.
Vemos assim que no período 1950-1980 – marcado pela ocupação dos
loteamentos criados anteriormente –, tendo o chamado “milagre brasileiro” do começo
dos anos 1970 como momento de particular importância em termos da atração de
expressivo contingente populacional para as principais regiões metropolitanas do país, a
região já então nomeada como “Baixada Fluminense”, e Nova Iguaçu em particular, vê
sua população aumentar aceleradamente sem que a infraestrutura urbana e a oferta de
serviços públicos essenciais tenha acompanhado tal aumento.
Tal processo implicou no aumento significativo da demanda por acesso à escola
e os poderes públicos responderam a tal demanda com uma política de expansão da
oferta de educação a qual, porém, sempre esteve muito aquém do atendimento das
necessidades da população da Baixada, especialmente nas áreas mais afastadas dos
centros urbanos dos municípios que a compõem.

sumário 218
VII Seminário Vozes da Educação

Sendo assim, a atuação das professoras nas escolas construídas em tais


localidades se encontrou na maioria dos casos condicionada pelo signo da precariedade
e urgência em relação às condições criadas para que a escola realizasse o seu papel
social.
Para fins do estudo ora apresentado, foi utilizado o recurso a entrevistas
semiestruturadas com professoras que atuam ou atuaram em escolas de áreas rurais do
município de Nova Iguaçu nas quais se buscou despertar as memórias sobre as
trajetórias de vida pessoal e profissional e, mais particularmente, acerca dos processos
de formação inicial e formação continuada, bem como também averiguar o grau de
identificação com o meio rural e as práticas docentes em sala de aula.
Para Maurice Halbwachs (2006) não há como pensar as problemáticas que
envolvem as recordações isoladamente dos contextos sociais que fundamentam a
reconstrução da chamada memória. De igual modo, são as memórias construídas e
partilhadas pelos indivíduos que lhes identificam como parte de um determinado grupo
social, num curto espaço de tempo ou não. Podemos viver numa comunidade a vida
toda e, por partilhar das memórias daquele grupo, somos parte daquele grupo. Da
mesma maneira, podemos estudar durante dois anos numa determinada escola e fazer
parte daquele grupo durante aquele período, e depois, mesmo distante, fazer parte dele
por mais um tempo, através das memórias partilhadas (ainda que ocasionalmente)
daquele período. (HALBWACHS, 2006)
Este estudo parte, portanto, da compreensão de que as memórias das professoras
entrevistadas evocam as condições em que se realizou a escolarização de parte
importante da população infantil do município de Nova Iguaçu assim como nos
fornecem um retrato do fazer(-se) professora no contexto de uma escola muitas vezes
marcada pelo descaso das autoridades públicas em relação tanto à aspectos estruturais
quanto em relação à oportunidades de formação posterior à entrada nas redes de ensino
públicas.

Os momentos da formação inicial e da formação continuada


Ao buscar saber da vida de uma professora é necessário desenvolver uma escuta
sensível a toda sua história, seus saberes e caminhos construídos no decorrer da sua
formação docente. Nessa perspectiva a memória tem sido uma importante ferramenta
para entender o processo da trajetória pessoal e profissional. Como afirma o filósofo
Walter Benjamin:

sumário 219
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

(...) a memória não significa apenas acontecimentos e lembranças, mas sim


experiência, afetividade, sensibilidade, subjetividade, esquecimento,
entrecruzamento de sujeitos e, principalmente, experiências vividas. O ato de
rememorar possibilita que dimensões pessoais que foram perdidas com o
avanço do mundo moderno e capitalista sejam recuperadas na relação
temporal entre passado, presente e futuro. Rememorar é partir de indagações
e trazer o passado como possibilidade de construir rumos atentos para
presente e futuro. (apud ROSA & RAMOS, 2008, p. 3)

As docentes entrevistadas, ao serem perguntadas sobre o principal motivo para a


escolha da carreira docente, relacionaram tal escolha a diversos fatores, sendo
apontados como principais os seguintes: ser um sonho de infância, a influência familiar
ou a admiração por uma professora em sua trajetória educacional. Como se pode ver nas
falas abaixo:

Eu sempre gostei do magistério, até porque naquela época não era tão difícil
igual hoje. Mais eu sempre desde criança fui apaixonada por dar aula, por
ensinar. Eu sempre gostei do magistério, sempre gostei de criança, isso ai já é
um dom meu mesmo. (Sônia Maria, 59 anos).
Olha é uma coisa de crianças, olha que coisa de maluco. Minha professora do
pré (sic) contava várias histórias, a aula dela era um enfeite então eu queria
ser igual a ela. Ai eu coloquei isso na cabeça quando criança e fui levando
isso. Acabou que eu segui a carreira. (Adriana Silva, 52 anos).

Algumas entrevistadas contaram que a carreira docente não foi sua primeira
escolha, mas foi a única possível devido a distância da escola e até mesmo a condição
financeira da sua família para dar continuidade aos estudos:

No princípio a minha escolha não seria na carreira docente, eu tinha vontade


de fazer Agronomia. Foi uma questão assim, eu fui para um colégio agrícola
na Nilo Peçanha na época e assim eu fiquei apaixonada pela escola, mas era
internato. Quando eu fui para fazer matricula no ensino médio não tinha mais
vaga e o internato tinha acabado e como eu morava longe, tinha que ir e
voltar para Pinheiral todos os dias. Ficaria contramão, então eu desisti e fui
fazer o curso normal. (Suzana Ferreira, 63 anos).

Foi possível observar em todas as entrevistas a forte presença da influência


familiar como um dos principais motivos da escolha docente, mesmo que os pais não
fossem professores, muitos almejavam que seus filhos o fossem por admirar a profissão
e por ver a continuação dos estudos como um sonho que não se pode realizar,
projetando isso na vida de suas filhas, as professoras entrevistadas.

sumário 220
VII Seminário Vozes da Educação

O início da atividade docente das entrevistadas foi marcado por uma formação
escolar voltada para a formação de professores na escola normal, e só com o tempo as
docentes buscaram a graduação e outras especializações.
Durante o percurso de formação todas relataram grandes dificuldades para
concluir o estudo ou trabalhar, como por exemplo, a gravidez:

Até hoje é muito difícil, eu fiz o magistério e era solteira, mas quando estava
me formando eu fiquei grávida e meu pai me expulsou de casa. (Adriana
Silva, 52 anos).

A distância entre casa e a escola ou do trabalho para a faculdade:

Eu tive dificuldade para estudar, a gente não podia. Morava na roça eu fazia
transporte a cavalo para estudar, ficava numa casa de uma tia. Não tínhamos
condição de morar na cidade e nem dava para ir e voltar. Foi muito difícil.
(Nerci Quintal, 73 anos).
Eu tentei, só que eu trabalhava o dia inteiro e ia para o fundão porque era
presencial. Parei de estudar porque eu chegava atrasada, tinha muita
dificuldade e comecei a ficar reprovada. (Adriana Silva, 52 anos).

Além desses fatores, também apareceu menção ao machismo que fez com que
uma delas abandonasse a carreira em um dado momento, problemas em conciliar o
estudo e o trabalho, entre outras adversidades relatadas pelas entrevistadas que ainda
hoje podemos relacionar como principais desafios para dar continuidade a uma
formação.
A profissão docente requer, geralmente, dedicação, gosto pelo que se faz,
conhecer a si mesmo e o local em que atua, cada docente possui uma trajetória de vida
que compõe sua história.
Ao tratar de professores que atuam em escolas rurais, observa-se a atuação
profissional que nasce de uma educação vagarosa, que surge e continua até hoje
baseado no modelo de educação do meio urbano. Por isso, o docente formado no meio
urbano, que vai atuar no meio rural, necessita de uma formação adequada e continuada
para trabalhar com os sujeitos da área rural.
De acordo com as entrevistadas, no espaço rural há ausência de uma formação
específica para a prática docente nesse meio, tendo a formação inicial das docentes
tradicionais, puramente moral e intelectual, onde não havia espaços para os debates
sobre a temática de escola do campo ou do meio rural, assim não auxiliando o professor

sumário 221
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

a ensinar cada vez melhor, refletindo sua prática e adaptando a realidade inserida, e o
aluno aprender cada vez mais de acordo com a sua realidade.

Não, a minha formação foi tradicional, numa escola católica. Ela tinha todo o
jeito de uma escola tradicional e nunca foi abordado o tema de escola rural
dentro da minha escola, da minha formação. (Adriana Silva, 52 anos).
A inicial não, nadinha. Tradicional, fechada, roxa. Nem pensar, escola de
campo, zona rural, essas coisas. (Suzana Ferreira, 63 anos).
A eu que eu estudei era bastante tradicional, a que eu trabalhei era mais nem
tanto como a que eu estudei. (Nerci Quintal, 73 anos).

Devido a inexistência de discussões dessa temática na formação inicial e a falta


de um curso para atender ao magistério no meio rural, as professoras relataram a
dificuldade de atender às demandas e adaptar as práticas para a melhoria da qualidade
de ensino dos alunos inseridos naquele meio.
Por meio de uma docente entrevistada, Nerci Quintal, foi relatado que na época
em que atuava não havia a oferta de cursos de formação em serviço para a promoção de
uma prática adaptada ao meio, fato que também foi mencionado pela maioria das
demais entrevistadas, enfatizando o seu despreparo inicial para atender o magistério no
meio rural.
O início da formação em serviço de acordo com as docentes começou através de
cursos oferecidos por meio de parcerias entre a Secretaria de Educação e a Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), situada em Seropédica, além de outras
parcerias internacionais que foram mencionadas durante as entrevistas. Antes disso não
foi possível identificar incentivos de capacitações para a melhoria da qualidade do
processo de ensino-aprendizagem.

Não, nem fazem essas diferenças e está muito difícil, cada dia parece estar
mais complicado, mais difícil. Porque na formação, até teve alguma
formação em parceria da Secretária de Educação com a Rural, mas a Rural
sempre teve muita dificuldade em relação a própria Secretária de Educação.
[...] Então, a gente teve formações voltadas para a área rural, mas que não
dependesse da Secretária ou do Governo vem pela parceria e alguns
professores. (Suzana Ferreira, 63 anos)

As professoras que tiveram a oportunidade de fazer a formação em serviço não


viam relação com a escola em que atuavam. Segundo, por exemplo, Adriana Silva,
quando tinha a oferta dessa formação continuada direcionada para a escola de campo,
elas não entendiam a importância de uma maior ênfase na parte das atividades
relacionadas às práticas mais ligadas à vida rural e relacionavam tal ênfase

sumário 222
VII Seminário Vozes da Educação

automaticamente a uma possível diminuição do tempo reservado à aprendizagem de


conteúdos curriculares.
E na hora de articular a teoria e a prática muitas docentes sentiram dificuldade,
pois os temas que eram abordados nas palestras geralmente não contemplavam a
realidade do município de Nova Iguaçu já que este não possuía mais uma raiz
puramente agrícola haja vista que, apesar de toda a sua história passada de importante
centro produtor de laranja (daí o apelido de “cidade perfume” por conta do cheiro da
flor das laranjeiras), a população, segundo aparece nas falas das entrevistadas como um
tema constante:

(...) não se vê na terra, eles querem sair da terra e arrumar um emprego no


shopping porque grande parte das escolas estigmatiza o agricultor. Isso faz
com que as crianças pensem que trabalhar na roça é para quem não tem
estudo. Um erro, pois o conhecimento é útil em todas as áreas. (Adriana
Silva, 52 anos)
Eles não se veem muito assim com esse pertencimento de um lugar com essa
característica diferente, que é até melhor. Eles não têm esse pertencimento e
vemos isso nas famílias que vem a escola. Quando a gente conta que a
história do Brasil passou aqui, quando falamos da importância da região eles
até escutam, mas é como se não tivesse importância. (Suzana Ferreira, 63
anos).

Constatou-se que as professoras formadas nas regiões urbanas e que foram


designadas para o meio rural nem sempre tiveram subsídios necessários para atender
uma determinada realidade local, a qual muitas vezes é distante à sua vivência. Neste
caso, as atuações docentes desenvolvidas, provenientes de zonas urbanas em um meio
rural, mostraram-se interessadas a realidade dos sujeitos sendo adaptada, de acordo com
Sônia Maria, com bastante criatividade a cada dificuldade imposta, para assim atender a
realidade do âmbito escolar.

A atuação docente e a relação com o meio rural


As docentes que estão inseridas no meio rural, diariamente modificam a sua
prática através do exercício em sala de aula, pois acabam encontrando diversas questões
para resolver. A atuação docente no contexto rural é definida pela formação que esta
professora possui e a que se afeiçoam durante sua profissão.

sumário 223
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

É possível ver nas narrativas uma dificuldade, que ainda hoje acaba atrapalhando
muitos docentes que vão ensinar nas escolas rurais, que é a não existência de um projeto
político-pedagógico adaptado à vivência dos sujeitos rurais o que faz com que haja uma
omissão de temas e metodologias adaptadas especificamente à vivência cotidiana dos
alunos.
Ainda com relação à atuação docente, as professoras relacionaram como
principal motivo da escolha que as levaram ao magistério no meio rural uma
identificação com este mesmo meio e seu contexto, afirmando que lá resgataram suas
raízes e sentiram-se acolhidas.
E além dessa identificação com o espaço, algumas mostraram a vantagem de
trabalhar nesse meio: poucos alunos e maior tempo para planejar suas aulas. Como se
pode ver nas falas abaixo:

Sinceramente, poucos alunos para fazer um bom trabalho. Eu sempre gostei


do que eu faço, só que com uma sala repleta de 50 alunos fica muito difícil
você alfabetizar. Então eu fui para a área rural até por achar que é mais
calma, tranquila, poucos alunos e dá para fazer um trabalho melhor. (Sônia
Maria, 59 anos).
Depois que eu passei a trabalhar na escola de campo, eu resgatei coisas
minhas. Meu avô, minha avó sempre plantaram, sempre lidaram com a terra,
as criações. O que me fez olhar para isso é que a zona rural, aqui na zona
rural de nova Iguaçu eles estão perdendo isso. Eu fiquei assim quando eu
resgatei o meu, eu falei gente não pode deixar perder porque é muito
importante. (Adriana Silva, 52 anos).
A minha família e a do meu marido veio do meio rural, nós somos
agricultores lá no Espírito Santo plantamos café. (Luana Martins. 37 anos)

Quanto aos conteúdos que eram ministrados, as docentes demonstraram uma


grande preocupação pelo fato de o meio urbano ter sido parâmetro central para sua
aprendizagem, se distanciando da realidade dos alunos inseridos no espaço rural. Sendo
perceptível a utilização da horta como um recurso pedagógico para enfatizar a realidade
e construir saberes:

Eles não mandavam muitos materiais, faltavam cadernos. Na época tinham


cartilhas, algumas vezes faltavam cartilhas e tinham que dividir ou passar
atividade. A cartilha não tinha assunto rural, era tudo da cidade. Eu planejava
minhas aulas, não podia colocar muito além então eu seguia o que eles
viviam. (Nerci Quintal, 73 anos)
Nós fazíamos canteirinho, colocávamos nas latinhas algumas plantas. Pra
enfeitar a escola, os pais às vezes até traziam algumas mudinhas. Eles
falavam que tinham, mas era pouca coisa. Eu plantava algumas cebolinhas,
salsas, que você plantava numa canequinha. Ensinava eles a molharem as
plantinhas. (Nerci Quintal, 73 anos)

sumário 224
VII Seminário Vozes da Educação

A constante falta de investimentos por parte do poder público provocava uma


série de ações pensadas e realizadas pelas professoras para suprir a carência de
conteúdos que compreendiam a vida dos sujeitos para a promoção de uma
aprendizagem significativa.
Com essa inexistência de incentivos e projetos que valorizassem a área rural e
até mesmo a falta de verbas para a compra de materiais básicos como cadernos, lápis e
borrachas, muitos docentes retiravam do seu próprio salário uma quantia para a compra
desses materiais, já que os alunos possuíam uma condição financeira precária e não
recebiam incentivos para os estudos, tendo em vista que a maioria dos pais era de
analfabetos.
Desse modo, a escola junto com os professores promovia eventos para atrair a
comunidade do entorno para esse espaço e contavam com a participação dos mesmos
para o conserto de algum equipamento ou a doação de um tempero, já que a verba era
insuficiente para os problemas que a estrutura das escolas apresentava além de a falta de
mantimentos para a alimentação dos alunos se apresentar como algo constante.

Conclusão
A narrativa constrói para quem a realiza uma compreensão sobre o seu fazer –
mesmo que parcial, na medida em que todo conhecimento sobre o mundo objetivo é
sempre parcial e passível de superação – que torna possível justamente uma tomada de
posição frente a este. Caráter político da narrativa, portanto. E maior será tal força
política da narrativa quanto maior for seu grau de entrelaçamento com as narrativas
produzidas pelos que vivenciam conosco um mesmo cotidiano profissional
compartilhado.
Quanto maior for seu poder de criar um reconhecimento de que as experiências
que vivencio na realização do meu trabalho diário se assemelham, mesmo que em graus
e formas diferentes, aquelas vivenciadas e narradas pelos que estão iguais a mim no
âmbito do processo formativo escolar.
Pode-se entender, portanto, que a forma da narrativa memorialística apresenta-se
fértil de possibilidades como recurso de preservação das formas assumidas pela
experiência de produção de uma identidade individual e coletiva, incluindo as
manifestações de ordem cultural, política e material através das quais aquela identidade
adquiriu formas permanentes no espaço físico do território da Baixada Fluminense, do
qual o município de Nova Iguaçu é tomado como modelo típico.

sumário 225
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Neste sentido, considera-se que o relato de estilo narrativo pode se apresentar


como fonte primária em um duplo sentido. Por um lado, é instrumento através do qual o
movimento histórico de produção do território e do particular processo de escolarização
nele materializado pode ser investigado e, por outro lado, as formas assumidas pela
narrativa constituem, elas mesmas, fonte importante para a investigação na medida em
que representam a manifestação de uma apropriação e releitura do passado à luz da
experiência de vida do sujeito que narra e (re)cria sua história.
Considerando-se tais questões, o recurso à narrativa memorialística apresenta-se
como praticamente o único recurso mais efetivo tendo em vista um esforço de
reconstituição histórica do fazer-se do processo de escolarização da população da
Baixada Fluminense e, em particular para os fins da presente proposta de pesquisa, do
município de Nova Iguaçu.
Ainda são poucos os estudos que buscam estabelecer uma visão mais coletiva de
um dado processo de desenvolvimento da escola pública no Brasil recorrendo aos
relatos daquelas mulheres que, como professoras, estiveram na linha de frente daquele
mencionado processo.
Entende-se que na realidade particular da Baixada Fluminense as narrativas
docentes sobre o caminhar da escolarização pública em Nova Iguaçu podem vir a
constituir uma fonte importante de compreensão de muitos dos aspectos relativos ao
cotidiano escolar ontem e hoje ainda, bem como um instrumento de avaliação e
aprendizagem relativo ao pensar as próprias práticas docentes para aquelas professoras
que ainda se encontram no exercício da profissão.
Diante disso, o estudo com as narrativas de vida possibilita ao sujeito pensar no
que mais o marcou durante o processo de vida e formação, resgatando as experiências
significativas.
Essa pesquisa deu evidência ao saber e fazer docente de professores na área rural
que habitualmente enfrentam diversos desafios durante sua prática docente, onde sua
formação profissional esteve distante da realidade das escolas rurais e da vida dos
indivíduos que ali residem. A ausência de uma prática adaptada ao meio e a falta de
incentivos para a formação continuada foram questões que permearam as narrativas
docentes.
Contudo, observa-se a preocupação nas narrativas docentes com a valorização
do meio rural para a melhoria da qualidade de ensino, promovendo a aprendizagem dos
novos valores por parte das crianças, dos pais e do entorno da comunidade da escola

sumário 226
VII Seminário Vozes da Educação

para construir um sujeito político capaz de modificar as práticas produtivas e a


concepção de mundo.

Referências

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. Tradução Beatriz
Sidou.

ROSA, Maria Inês Petrucci; RAMOS, Tacita Ansanello. Memórias e odores:


experiências curriculares na formação docente. Rev. Bras. Educ. [online]. 2008, vol.13,
n.39.

sumário 227
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

NAS LINHAS E ENTRELINHAS DO COTIDIANO ESCOLAR

Renata Lúcia De Morais Fernandes


UNICAMP
rlmfernandes@gmail.com

Iniciando o percurso

Este trabalho pretende apresentar o caminho de uma pesquisa de mestrado


profissional em educação, que se encontra em andamento, procurando a partir da
própria escrita, compreender tal caminho e em qual lugar do percurso a pesquisa se
encontra. A escrita desse texto é o momento da parada, de olhar para trás pra poder
entender o que vem pela frente. Posso considerar que sempre acreditei que a pesquisa
começaria no momento em que eu ingressasse no programa de mestrado, mas hoje já
acho que não. O ponto disparador para percorrer esse caminho foi o 8º Seminário Fala
Outra Escola “Re-existir nas pluralidades do cotidiano”, organizado pelo Grupo de
Estudos e Pesquisas em Educação Continuada - GEPEC, da Unicamp em, 2017. Fui ao
evento de maneira despretensiosa, pensando apenas no desafio de apresentar um
trabalho sobre a escola que eu dirigia, mas que havia sido desenvolvido no ano em que
eu era coordenadora pedagógica. A ansiedade estava toda em torno das dúvidas sobre
como seria a apresentação, o que as pessoas pensariam a respeito daquele trabalho, e
principalmente, uma certa desconfiança com relação ao valor que um trabalho tão
prático teria em um seminário na universidade: o lugar das teorias.
Quando cheguei no evento, encontrei um professor da graduação, 15 anos
depois. Quando o vi no seminário Fala Outra Escola, tive a impressão de que nesse
tempo fora, ele se tornou um gigante. Uma referência. Minhas suspeitas se confirmaram
quando na abertura, ouvi suas palavras e vi sua emoção ao falar sobre a educação, sobre
a escola. Emoção de quem, nesse tempo, deve ter tido encontros e lutas, de quem
acredita e não desiste. Me surpreendi reconhecendo em suas palavras a escola que eu
trabalhava, pela qual eu também lutava e tanto acreditava. Me reconheci na emoção que
sua voz e lágrimas traziam ao falar sobre a educação. Passei os dias todos do evento
processando a informação de que a escola pública tinha um lugar especial dentro da
Unicamp.

sumário 228
VII Seminário Vozes da Educação

Não bastasse todas essas experiências me atravessando nestes dias, encontro


ainda uma professora, recém-chegada à Unicamp, e já gigante! Dona de uma fala cheia
de ternura e sabedoria, que em um dos momentos de café, após escutar minhas palavras
deslumbradas e entusiasmadas, fez uma provocação: Por que você não presta o
mestrado?
Não voltei a mesma para Ilhabela. Não deu mais para continuar só lá! Aquela
Ilha foi ficando pequenininha e eu sentia que precisava ampliar meu espaço de diálogo.
Passei então a constituir com um grupo de professoras um coletivo, que não por acaso
se chamava Diálogos que brotam do chão. Foram quatro meses de encontros com
rodas de conversa, filmes e convidados especiais para falar sobre educação. Esse
período foi importante para que eu conseguisse perceber a partir das próprias vivências,
a força que tem o coletivo, e o quanto os professores, quando juntos, se fortalecem. No
ano seguinte esse coletivo perdeu forças, e cada um dos participantes foi em busca de
outros diálogos interrompendo o movimento que vinha acontecendo.
Em 2018 voltei a atuar como coordenadora pedagógica, sempre buscando
compreender o papel do coordenador dentro da escola, muitas vezes com a impressão
de que esta era uma função que não trazia suas atribuições bem definidas. Enquanto
coordenadora, compreendia minhas ações como parte de um processo de formação
continuada para os professores com quem trabalhava, assumindo a concepção de
PLACCO e SILVA, apud CUNHA, 2006:

Processo complexo e multideterminado, que ganha materialidade em


múltiplos espaços/atividades, não se restringindo a cursos e/ou treinamentos,
e que favorece a apropriação de conhecimentos, estimula a busca de outros
saberes e introduz uma fecunda inquietação contínua com o já conhecido,
motivando viver a docência em toda a sua imponderabilidade, surpresa,
criação e dialética com o novo (p.27).

Partindo desse pressuposto entendo que a formação continuada é um processo


indissociável à prática docente daquele professor militante, que busca refletir sobre sua
experiência a fim de ressignificá-la. Soligo define um ‘militante na profissão’, quando
educador, tem uma preocupação obsessiva com os resultados de seu trabalho não
porque seja simplesmente perfeccionista, mas porque tem um compromisso ético com
os sujeitos a quem o seu trabalho se destina. (SOLIGO, 2007).
A essa altura comecei a perceber o espaço da escola como um terreno fértil para
a construção de muitos saberes, mas não para que dialogássemos sobre eles ali. Não era

sumário 229
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

possível falar sobre a escola, dentro da escola. Não de uma forma reflexiva, construtiva.
Aquele espaço era para alguns o lugar das obrigações e dos deveres, de reprodução,
lugar do conhecimento que vem pronto para ser transmitido, seja na relação do
coordenador com os professores, ou dos professores com os alunos.
Para Nóvoa (1954, p. 26) a organização das escolas parece desencorajar um
conhecimento profissional partilhado dos professores, dificultando o investimento das
experiências significativas nos percursos de formação e a sua formulação teórica. Esse
desencorajamento reverbera nos profissionais que atuam na escola, impactando nas
ações dos professores.
Damasceno e Prado (2007), consideram que é fundamental conhecer a escola
como espaço/mundo do questionamento, da mediação/confronto entre teorias e práticas,
da recriação de teorias e práticas, da necessidade de saber sempre mais e melhor, da
construção de novas formas de olhar a realidade e do encontro de senhas que darão
pistas de como enfrentar os dilemas/desafios postos pelo trabalho docente no contexto
real pedagógico.
Afinal, se a escola pode ser o lugar da mediação, da recriação, por que não é
entendida também como o lugar de formação do professor? Por que os saberes
produzidos ali são desencorajados, desacreditados e tão desvalorizados? Porque os
discursos encontrados na escola buscam responsabilizar o outro pelo fracasso ali
presente, sem propor um movimento de olhar para as próprias ações e falar sobre elas?
Entendendo a escola como um lugar potente para a produção dos saberes dos
sujeitos que ali estão, passei a enxergar a formação continuada centrada na escola uma
opção a ser considerada, pois fazendo uma retrospectiva da minha atuação profissional
percebi que não foi apenas na graduação que eu aprendi a ser coordenadora, e sim, no
chão da escola, sendo. Segundo Barroso apud. Canário (1999, p.79) essa modalidade
“deve permitir que os próprios professores disponham de um conhecimento
aprofundado e concreto sobre a sua organização, elaborem um diagnóstico sobre seus
problemas e mobilizem as suas experiências, saberes e ideias para encontrar e aplicar as
soluções possíveis” (p. 75).
Procurando leituras acerca das atribuições do coordenador, compartilhando
experiências em reuniões, preparando pautas de htpc, acompanhando o trabalho dos
professores, atendendo pais e alunos, escrevendo sobre o que fazia e refletindo sobre
meu próprio fazer foi que eu me tornei coordenadora pedagógica. Então por que não
considerar que os professores se formam também, na escola? Por que não enxergar as

sumário 230
VII Seminário Vozes da Educação

ações formativas do coordenador com o professor como uma possibilidade de formação


continuada que vem de dentro, que emerge das necessidades advindas da realidade em
que estamos inseridos, tendo a própria prática como instrumento de análise e reflexão?
Para Canário (1999) “A escola é habitualmente pensada como o sítio onde os alunos
aprendem e os professores ensinam. Trata-se, contudo, de uma ideia simplista. Não
apenas os professores aprendem nas escolas, como aprendem, aliás, aquilo que é
verdadeiramente essencial: aprendem a sua profissão.” Para CUNHA e PRADO (2010,
p. 102)

A formação centrada na escola, é aquela que acontece no contexto de


trabalho, privilegiando a colaboração, a interlocução sobre as práticas, as
necessidades e os interesses dos professores que participam da construção e
da gestão do plano de formação e são corresponsáveis pelo seu
desenvolvimento.

Nesse mesmo período fui remanejada para outra escola e passei a atuar também
como formadora de professores pela secretaria de educação. A falta de vínculo com a
escola e a incompatibilidade de concepções com a proposta de formação que a
secretaria trazia foram gerando um sentimento de não pertencimento e eu já não
conseguia mais calar todas essas questões. Acreditando que a formação não se constrói
por acumulação (de cursos, se conhecimentos ou de técnicas), mas sim por meio de um
trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de
uma identidade pessoal (Nóvoa, 1995, p.25), não poderia permanecer como formadora
de professores e coordenadores na contra mão daquilo que eu acreditava. O trabalho de
formadora de professores acontecendo ao mesmo tempo em que desenvolvia ações
enquanto coordenadora dentro da escola, era bastante conflitante, uma vez que na escola
“a coordenadora pedagógica é convocada a assumir sua tarefa de formadora de
professores e a escola passa a constituir-se como cenário para as mudanças necessárias
para a educação” CUNHA (2006, P.35).
A solução começou a ser desenhada em um encontro com outros dois colegas
que assim como eu, queriam um espaço para pensar a escola, mas não o encontravam
dentro dela. Um encontro entre duas coordenadoras pedagógicas e um professor na
busca pelo diálogo, pois, acreditávamos que o diálogo entre os professores é
fundamental para consolidar saberes emergentes da prática profissional (Nóvoa, 1995.
P. 26). Comentei com eles sobre o Grupo de Terça, do GEPEC, e nos propusemos a
fazer encontros para partilhar tantas questões vividas na escola. O Grupo de Terça é um

sumário 231
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

espaço aberto, com encontros quinzenais às terças-feiras, em que os profissionais da


educação podem permanecer pelo tempo que desejarem. Os temas que se convertem em
conteúdo de discussão não são estabelecidos a priori, mas definidos pelos próprios
integrantes, tendo em conta suas inquietações e necessidades advindas da prática
pedagógica em diferentes instâncias educativas. (PRADO; ROSA; SADALLA;
GERALDI, 2008; p.67).
Assim, passamos a nos encontrar quinzenalmente, às sextas-feiras, para
vivermos uma experiência de formação marcada pela diversidade e pela multiplicidade
de olhares de sujeitos que exercem diferentes papéis na educação (PRADO; ROSA;
SADALLA; GERALDI, 2008; p.67), e que nos proporcionasse escuta, partilha e a
transformação da nossa prática com e a partir do outro. Passamos a constituir um grupo
reflexivo disposto a olhar para o cotidiano escolar com o “objetivo de refletir sobre suas
experiências a fim de melhor compreender a historicidade de suas aprendizagens e
modificar as relações consigo mesmo e com o outro, percebendo-se enquanto sujeitos
históricos” (GASPAR e PASSEGGI, 2013, p. 68)
Convidamos outros professores que tinham os mesmos interesses e nos
encontramos pela primeira vez enquanto Grupo de Estudos das Práticas Pedagógicas de
Ilhabela (GEPPI) em abril de 2018, buscando criar a identidade de um grupo reflexivo
por meio da partilha de saberes e experiências, tendo as narrativas autobiográficas como
dispositivo metodológico, admitindo “como hipótese que ao narrar e refletir sobre o que
foi significativo para a formação intelectual e profissional, a pessoa não muda os fatos,
mas pode melhor situá-los historicamente e lhes dá uma nova interpretação” (GASPAR
e PASSEGGI, 2013, p. 68)

O grupo reflexivo tem como um de seus objetivos primordiais desconstruir as


relações verticalizadas e fomentar entre adultos mais autonomia de modo que
o acompanhamento se realize em processos de trocas horizontais entre os
participantes, convidando, nesse sentido a novas aprendizagens sobre si
mesmo e sobre o outro como partícipes autônomos e responsáveis no seio de
uma ação coletiva. (GASPAR e PASSEGGI, 2013, p. 67).

No primeiro dia conversamos bastante sobre a proposta dos encontros e as


necessidades de cada um, compartilhamos pipocas pedagógicas do GEPEC e outras
feitas por nós, e percebemos que este era um movimento muito potente e necessário a
cada um dos participantes que ali estavam. As pipocas pedagógicas são escritos de
professores que participam do Grupo de Terça do Gepec, (Grupo de Estudos e Pesquisa

sumário 232
VII Seminário Vozes da Educação

em Educação Continuada) e que nos contam sobre o cotidiano escolar. Para CAMPOS
(2016,p.28), as “Pipocas Pedagógicas são um olhar de boa vontade do professor para o
invisível que acontece na sala de aula. Boa vontade porque muitas vezes o professor,
para enxergar o invisível, terá que sair da zona de conforto que está acostumado. Sejam
os diálogos entre os alunos, entre professor e aluno, ou de acontecimentos que parecem
banais, mas que dão o tom e a importância da aula, que transformam essa aula em
acontecimento”.
Nesses encontros percebemos muitas angústias em comum e uma grande
identificação com a necessidade de compartilhar as experiências no cotidiano e também
de deixar emergir aqueles saberes que vínhamos construindo dia após dia, individual e
coletivamente, mas que estava calado.
Decidimos que os encontros do grupo se dariam para que compartilhássemos
nossas narrativas sobre o cotidiano escolar, entendendo-as como uma “estratégia/opção
docente para socializar e divulgar as experiências acontecidas no âmbito docente,
preservando a identidade do professor e da professora enquanto autores sociais de suas
práticas” (Damasceno e Prado, 2007).

A narrativa provoca mudanças na forma como as pessoas compreendem a si


próprias e aos outros. Tomando-se distância do momento de sua produção, é
possível, ao “ouvir” a si mesmo ou ao “ler” seu escrito, que o produtor da
narrativa seja capaz, inclusive, de ir teorizando a própria experiência. Este
pode ser um processo profundamente emancipatório em que o sujeito
aprende a produzir sua própria formação, autodeterminando sua
trajetória(Cunha, P. 201).

Entendíamos que as narrativas escritas eram um instrumento valioso de reflexão


e partilha, para que pudéssemos por meio delas, direcionar nossos encontros e
ressignificar aqueles saberes de um cotidiano tão rico e valioso que o chão da escola
vinha nos proporcionando.
Iniciei um processo de diálogo com os professores Guilherme do Val Toledo
Prado e Inês Ferreira de Souza Bragança, aqueles que desde sempre, mesmo sem saber,
foram os gigantes incentivadores de tudo isso e a partir desse diálogo e dos encontros
com o GEPPI decidi participar do processo de seleção para o mestrado profissional.
Ao ingressar percebi que o movimento da pesquisa começara muito antes do que
eu imaginava. Passei a reconhecer-me como uma professora-coordenadora que pesquisa
a própria prática, e que, muito antes de fazer parte de um programa de pesquisa, já fazia
reflexões, buscava diálogos com pessoas e tentava ressignificar seus fazeres.

sumário 233
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Desses fazeres, de professora e coordenadora, a escrita era sempre algo que me


intrigava. Após todos esses anos de atuação, percebo que entre tantas estratégias
formativas o registro escrito tem se destacado pela sua potência no auxílio à reflexão do
professor sobre sua prática pedagógica. WASCHAUER (1993, p.35) afirma que tal
reflexão “consiste num re-pensar a ação pedagógica, num momento posterior a ela.
Neste momento, o professor toma uma distância de seus atos e da realidade da sala de
aula, de forma a distinguir-se do vivido para olhá-lo de uma forma particular”.
Acredita-se que o registro do professor seja um potente instrumento para que
essa reflexão aconteça num caminho que o permite praticar refletindo e teorizar
praticando (WASCHAUER, 1993, p.35). Esse movimento ganha mais força quando o
coordenador pedagógico surge como interlocutor nesse processo, a partir da leitura dos
escritos dos professores, “considerando que a educação somente se dá pelo processo de
mediação entre sujeitos e que a leitura é uma das formas de interação entre os homens”
(GERALDI, 2015, 32). Na coordenação fiz diversas vezes com os professores leituras
de textos na tentativa de incentiva-los a escrever. Procurava nos registros de cada um
pistas sobre suas aulas e buscava respondê-los em um diálogo que acredito formativo.
Uma ação de formação continuada centrada na escola.
Com o início do mestrado passei a viajar semanalmente para Campinas para
cursar as disciplinas, e com isso a minha vida profissional passou por algumas
mudanças que interferiram diretamente no que pretendia pesquisar. No início do ano
recebei a proposta de assumir a coordenação pedagógica de um PEII -Pólo de
Educação Integrada e Ilhabela, projeto que atende as crianças no contraturno escolar.
Permaneci no PEII por seis meses, até ser remanejada para a Secretaria de Educação,
para desenvolver a função de coordenadora técnica. Entre travessias de balsa e muitas
horas na estrada, tantos percalços nos caminhos em busca de um objeto de pesquisa, até
que em uma conversa com a minha orientadora, ela mostrou-me que o interesse pela
escrita sempre esteve presente, e que este poderia ser o fio condutor do trabalho. Com
todas essas mudanças no campo profissional, em conversa com a orientadora, Inês,
decidimos que uma possibilidade de olhar para a escrita dos professores como
instrumento formativo e proporcionar que os mesmos reflitam sobre seus fazeres e
saberes pedagógicos, valorizando e reconhecendo o chão da escola como um espaço de
formação continuada, pensamos em oferecer um curso de extensão aos professores e
coordenadores do município, evitando assim que futuras mudanças no meu campo de
atuação profissional tenham novo impacto na pesquisa.

sumário 234
VII Seminário Vozes da Educação

O Curso de Extensão constitui-se como uma proposta de formação continuada


apresentada à Secretaria Municipal de Educação de Ilhabela, enquanto projeto de
pesquisaformação com as/os professoras/es e coordenadoras/es pedagógicas/os da
Rede Municipal de Ensino e em articulação com a Universidade Estadual de Campinas ,
através do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada - (GEPEC) e com os
participantes do Grupo de Estudos das Práticas Pedagógicas de Ilhabela (GEPPI).
Trata-se de uma pesquisaformação que pretende compreender quais são e como
ocorrem os processos reflexivos e formativos das/os professoras/es e coordenadoras/es
pedagógicas/os da rede municipal de ensino de Ilhabela, a partir das narrativas
(auto)biográficas sobre as experiências vividas no e sobre o cotidiano escolar, uma vez
que “são as experiências formadoras, na força do que nos atinge, que nos sobrevêm, nos
derrubam e transformam, inscritas na memória, que retornam pela narrativa não como
descrição, mas como recriação, reconstrução” BRAGANÇA, 2011.
Propor um curso de extensão em parceria com a Unicamp, em um município que
apresenta tantas dificuldades de acesso às universidades públicas, principalmente por
ser uma ilha, é uma oportunidade de oferecer um percurso inédito no município, de
formação reflexiva, valorização dos fazeres e saberes dos professores e de ressignificar
a história pessoal e profissional de cada um.

Referências

BRAGANÇA, I.F.S. Sobre o conceito de formação na abordagem (auto)biográfica.In:


Educação, Porto Alegre, v.34, n2, p. 157-164, maio/ago.2011.

CAMPOS, Cristina Maria. Cumplicidade e fantasia na composição do trabalho


docente: as narrativas pedagógicas no cotidiano escolar. Tese (doutorado) -
Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP, 2016.

CAMPOS, P.R.I. Ensinar e aprender: Coordenação pedagógica e formação docente.


São Paulo: Edições Loyola, 2014.

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sumário 235
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 236
VII Seminário Vozes da Educação

PENSAR O COTIDIANO ESCOLAR A PARTIR DAS TESES DOCENTES:


FIOS QUE SE ENLAÇAM COLETIVAMENTE

Sandro Tiago S. Figueira


SMERJ
figueiras.tiago@gmail.com

Pensar o cotidiano docente conjugadamente com os profissionais que o vivem e


tecem é, em nosso entendimento, traçar um caminho epistemológico aonde vamos
descobrindo coletivamente outras formações que são produzidas no dia a dia das escolas
e das salas de aulas. Nesse processo de descoberta, vamos ecoando práticas potentes que
são silenciadas pela perspectiva da racionalidade técnica e do positivismo que veem os
professores como simples executores.
Com Gatti (2013) vemos que esse silenciamento se faz na ausência do professor
como sujeito em muitos estudos da área da formação docente. Para a autora, a
concretude dos atores e fatores presentes na situação escolar nem sempre é trazida à luz,
tratando-se, por exemplo, o professor como vaga abstração, um ser universal
despessoalizado e descontextualizado. Diante disso, ainda a autora, pontua a
necessidade de construção de uma área de conhecimento sobre modos possíveis de
trabalhar a educação das novas gerações implicada numa intensa relação entre
pensamento e as ações concretas situadas nas salas de aula.
Comungando com Gatti (2013) e assumindo o desafio de produzir
conhecimentos implicados no cotidiano escolar, desenvolvemos o conceito de teses
docentes (FIGUEIRA, 2017) para aglutinar esse conhecimento construído pelos
professores. Procurando o significado da palavra tese no dicionário online Aulete
Digital, identificamos especificações desta como proposição que se enuncia, expõe ou
sustenta sobre qualquer princípio de arte ou ciência. Partindo dessa fonte vocabular
acolhemos o termo tese enquanto proposições mobilizadas pelos professores para criar,
inferir e compreender suas ações pedagógicas. Essas proposições pautam-se em uma
relação indissociável entre o conhecimento e as práticas concretas de sala de aula.
As teses docentes foram descortinadas numa pesquisa de doutorado em
investigamos as dinâmicas formativas oferecidas aos professores iniciantes na rede

sumário 237
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pública municipal de ensino do Rio de Janeiro focalizando as estratégias metodológicas


e didáticas. Para isso, traçamos objetivos que permitissem a identificação da concepção
de ensino-aprendizagem que sustentava o Sistema de Tutoria, as estratégias didáticas
para o ensino de Ciências e a percepção dos tutores perante esse processo tendo em
vista a construção de teses docentes sobre aprendizagens em contextos de tutoria.
Assumimos uma postura de questionamento das formações meramente técnicas,
que não contemplam as concepções, representações, saberes e práticas dos professores.
Com esse entendimento, desvelamos os processos de aviltamento, controle e
massificação do trabalho docente, indicando estratégias de ação que são usadas pelos
professores como ato de subversão da ordem e criação de novos percursos de formação
e ação no cotidiano da escola.
A partir das análises do material empírico oriundo das entrevistas e
questionários percebemos a formação de professores como fundamental para a
desconstrução da dinâmica social individualista, instável e para reconstrução de uma
sociedade marcada pela consciência social e ecológica (MATURANA, 2001), onde os
sujeitos assumam suas responsabilidades éticas, sociais e planetárias. Que construam
seus conhecimentos e saberes nas heterogeneidades culturais, isto é, rompendo com
anseios de uma ciência e cultura universal.
Dos resultados evidenciamos as teses docentes (FIGUEIRA, 2017), que são
tecidas no interior das práticas e erguem-se a partir da centralidade do viver a escola e
das convivências das pessoas com o conhecimento nas esferas de participação
horizontal. Situam-se justamente no agir estabelecido entre os professores e a sua
trajetória profissional sem hierarquização e fragmentação.
Encontramos nos estudos de Zeichner (1993, 2008, 2010) sinalizações que
corroboram com a nossa perspectiva, de que os professores ao pensarem sobre seu
próprio fazer elaboram teses referentes à própria ação de ensinar e aprender. Para este
autor, a produção de conhecimento sobre ensino-aprendizagem não é propriedade
exclusiva das universidades, pois os professores têm teorias que podem contribuir com
uma base de conhecimentos para o ensino. Reforça que a melhoria escolar não pode
depender só dos conhecimentos produzidos nas universidades (ZEICHNER, 1993,
p.16).
A colocação de Zeichner (1993) sublinha a necessidade de reconhecer os
professores como produtores de teorizações acerca do seu próprio trabalho e faz frente
à rejeição das abordagens que concebem esses profissionais como reprodutores

sumário 238
VII Seminário Vozes da Educação

acríticos. O autor explica que, “diferença entre teoria e prática é, antes de mais nada, um
desencontro entre a teoria do observador e a do professor, e não um fosso entre a teoria
e a prática” (p.93).
Nóvoa (2017) em um estudo recente nos convoca construir outro lugar para a
formação de professores, numa dimensão que consolide a posição de cada pessoa como
profissional e a própria posição da profissão. Essa convocação parte de seu
reconhecimento do atual momento marcado pelo sentimento de insatisfação e por
políticas de desprofissionalização a partir das lógicas de burocratização, privatização e
controle. Em face desta situação, o autor saliente que precisamos recuperar a ligação
com as escolas e os professores no sentido de superar a distância entre as ambições
teóricas e a realidade concreta das escolas e dos professores.
O lugar a que Nóvoa (2017a) se refere deve ser um espaço de encontro e de
junção das várias realidades que configuram o campo docente, “não só no plano da
formação, mas também no plano de sua afirmação e reconhecimento” (p. 1115).
Partindo dessa explicitação, entendemos que a evidenciação das teses docentes pode
constituir-se numa ambiência promotora da construção de conhecimentos no contexto
escolar assim como da legitimação do professor enquanto autor e sujeito de sua ação.
Em busca desse lugar, que coloque os professores e a escola da educação básica
numa posição legítima de potência formativa e de produção de conhecimentos,
elaboramos o presente texto como forma de compartilhar o pensar a prática pedagógica
com o outro a partir das teses docentes de nove professores. Para isso, nos inscrevemos
na abordagem qualitativa tendo o processo de tematização (FONTOURA, 2011) como
perspectiva de análise dos dados.
Nosso caminho metodológico pautou-se na realização de entrevista
semiestruturada composta por quatro questões versando sobre a área de formação, o
tempo de experiência na docência, o modo de enfrentamento com o cotidiano escolar e
as dinâmicas das aulas dos professores. As respostas foram encaminhadas por e-mail
devido à dificuldade de convergência de horários entre os professores da investigação.
As entrevistas foram enviadas no mês de julho de 2018 aos professores
participantes e ex-participantes do grupo de pesquisa “Inserção Profissional Docente”
que se situa na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (FFP/UERJ). Para a identificação dos sujeitos participantes, utilizamos a
letra P (professor) seguida do número em ordem crescente de retorno das entrevistas.

sumário 239
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Os professores, sujeitos da pesquisa em tela, tem como característica comum à


vivência em programas de pós-graduação lato sensu ou stricto sensu e atuam na
educação básica. O tempo de experiência na docência integram a faixa dos 6 – 36 anos,
com formações nas áreas de Ciências Biológicas (2), Ciências Sociais (1), Ciências da
Computação (1), Geografia (1), Letras (1) e Pedagogia (3). Acreditamos que essa
diversidade da formação pode favorecer interlocuções transversais (GATTI, 2013) entre
conhecimentos teórico-práticos variados, potencializando assim projeções das práticas
educacionais.
O encaminhamento das análises apoiou-se nas etapas da tematização
(FONTOURA, 2011), iniciando com uma leitura em profundidade dos depoimentos,
com o objetivo de clarificar uma ideia do todo. Esse processo pautou-se em leituras
sucessivas, pois entendemos que cada leitura revela novos conteúdos. Após essa etapa,
exploramos o material demarcando o corpus para análise, primeiramente com recortes
considerados significativos atrelados a ideias-chave, seguido por agrupamentos dos
depoimentos em temas de acordo com os princípios de coerência interna, semelhança
temática e pertinência com o referencial teórico.
Prosseguimos com a definição das unidades de significado originadas nos
depoimentos e finalizando com a análise temática, isto é, a descoberta dos núcleos de
sentido. Identificamos quatro núcleos de sentido integrando teses docentes sobre
objetivos solidarizados, reinvenção metodológica, experiência em movimento e pensar
com o outro.
Apresentamos no quadro 1 o núcleo de sentido objetivos solidarizados

Quadro 1 – Núcleo de sentido objetivos solidarizados

Respostas Unidades de significado Núcleo de sentido


P1 – Assim, participar de
ações que melhorem as
condições do ambiente
escolar, promover uma Promover aproximações
aproximação deste com a
família dos alunos.

P2 – Compartilhar meu prazer


Objetivos solidarizados
com a língua e literatura,
propor produções honestas e Compartilhar
criativas afim de construir a
tão sonhada autonomia.
Elaboração do autor (2018)

sumário 240
VII Seminário Vozes da Educação

Quadro 1 – Núcleo de sentido objetivos solidarizados (continuação)

Respostas Unidades de significado Núcleo de sentido


P5 – Estimular o
pensamento crítico e
Estimular o pensamento
criativo das crianças
crítico e criativo
através de jogos e
brincadeiras.

P6 – Desafiar o aluno a
desenvolver sua
Desafiar o aluno Objetivos solidarizados
criatividade, a
observação e leitura.

P9 – Então, trabalhar
com respeito, trabalhar
Trabalhar com respeito
com essas dimensões
às dimensões culturais
culturais, a escola tem
como fazer, é papel da
escola trabalhar isso.
Elaboração do autor (2018)

Entendemos que os professores ao sinalizarem objetivos pedagógicos


envolvendo ações de aproximação entre família e ambiente escolar, de compartilhar
sentires, de estímulo e desafio ao pensamento bem como o respeito às dimensões
culturais desvinculam-se de perspectivas disciplinarizantes e fragmentadas imprimindo
dimensões solidárias no processo de ensino-aprendizagem.
Gatti (2013) explica que a educação escolar pressupõe, especificamente, uma
formação social, cognitiva e afetiva, requerendo formas adequadas que possam dar
suporte inter-relacional à aprendizagem numa posição contrária a desconexão
tradicional entre o todo que constitui o humano. Dessa forma, se procura considerar
todas as relações entre os conjuntos de diferentes fatores pertinentes às questões ligadas
às ações educacionais: aluno, professor, conhecimento, situação e contexto em uma
perspectiva solidária e de responsabilidade social.
Nas últimas décadas, segundo Nóvoa (2017a), temos assistido uma vulgarização
de longas listas de competências, habilidades e capacidades que são incapazes de
traduzir a complexidade da atuação docente. Para enfrentarmos esse “elenco
interminável de qualidades” precisamos integrar-se, horizontalmente, em temáticas de
referência, isto é, fomentar um conhecimento diferente ancorado na compreensão das

sumário 241
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

potencialidades para a formação de um ser humano num percurso relacional e


colaborativo.
Com Gatti (2013) e Nóvoa (2017a) entendemos que as teses docentes expressas
nos depoimentos dos professores (quadro 1) evidenciam um compromisso com práticas
pedagógicas humanizantes, que escapam das amarras de abordagens tecnicistas
fundadas em objetivos operacionais vazios de sentido social. Mostra-se uma perspectiva
de objetivo plural, enfocando diferentes inspirações de conhecimentos para a
compreensão da condição humana e da própria vida.
Articulados à definição de objetivos educacionais pelos professores têm-se a
escolha da metodologia para o desenvolvimento das aulas e alcance das metas
estabelecidas. Assim sendo, ao analisar os depoimentos identificamos teses docentes
que comportam outros modos de organização do trabalho pedagógico com autoria
profissional e múltiplas contextualizações, conforme expressamos no quadro 2.

Quadro 2 – Núcleo de sentido reinvenção metodológica

Respostas Unidades de significado Núcleo de sentido


P1 – Busco trabalhar inserindo
a ludicidade nos vários
Trabalhar a ludicidade
momentos pedagógicos, tendo
em vista a realidade de meus
alunos, suas vivências e
perspectivas.
Choque de ideias
P4 – Gosto muito de iniciar
sempre com um choque de
ideias, saber o que eles
pensam ou já ouviram falar de
determinado assunto.
Criar associações e
P7 – Busco criar atividades
interdisciplinaridade Reinvenção
associadas ao conteúdo
primário do curso com metodológica
interdisciplinaridade com
algumas disciplinas.

P8 – Abertura do processo,
Abertura às variadas formas
permitindo que o aluno se
de expressão
expresse através da música, do
teatro, da leitura, da escrita, da
dança, entre outros.
Elaboração do autor (2018)

sumário 242
VII Seminário Vozes da Educação

Ao nos trazerem os percursos metodológicos de suas aulas baseados no trabalho


lúdico, nas dinâmicas de choque de ideias, criação de associações, interdisciplinaridade
e abertura às variadas formas de expressão, os professores reconhecem o desafio
cotidiano de reinvenção das práticas. Percebem sua atuação como um lócus de
construção de outras posturas didáticas e de relações pedagógicas que correspondam às
necessidades interpessoais e educativas.
A escola tem uma estrutura que se desenvolveu ao longo dos séculos e se
consolidou há cerca de 150 anos, demarcada por um professor de pé dando a matéria a
uma turma de alunos sentados (NÓVOA, 2017a). Essa estrutura já não faz mais sentido
e necessita, segundo o autor, ser profundamente repensada tendo em vista a construções
de caminhos alternativos.
Nesse sentido, visualiza-se que os professores, sujeitos desse estudo, já
alimentam caminhos outros, exercitando autoria para explorar dinamizações que fazem
a sala de aula vibrar, ligando conteúdo e método às ambiências convidativas para
interação, comunicação horizontal e múltiplas formas de expressão. Segundo Gatti
(2013), as interações constantes em sala de aula são indispensáveis para a promoção de
sentidos aos conteúdos e aos processos de formar.
Entendemos que reinvenção das práticas pelos professores não emerge do vazio,
advém de seu conhecimento apropriado nas trajetórias de formação inicial e continuada
sendo potencializada na/pela relação com os estudantes. Logo, esse processo, possibilita
a fundamentação das escolhas e dos devires pedagógicos, pois os docentes com suas
concepções “mobilizam certos conhecimentos para compreender situações e inferir/criar
novos modos de atuação educacional (GATTI, 2013).
Nóvoa (2017a) corrobora com Gatti (2013) ampliando nossa visão quanto à
autoria docente nos processos de decisão em sala de aula, pois para ele, os melhores
professores são capazes de criar condições para que os alunos trabalhem o
conhecimento. A sua principal responsabilidade não é dar “boas aulas”, mas organizar
as atividades diárias de tal forma que os alunos aprendam, façam a sua viagem pela
cultura e pela ciência.
Reconhecendo a importância dessa viagem escolar e das condições
fundamentais para propiciar aos seus estudantes aprendizagens que contribuam para
viverem com dignidade, nossos professores imprimem movimento às suas experiências
a partir do tensionamento e problematização do sentido e do vivido. Apresentamos essa
percepção no quadro 3.

sumário 243
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Quadro 3 – Núcleo de sentido experiência em movimento

Respostas Unidades de significado Núcleo de sentido


P1 – Buscando mais
conhecimento nas diversas
Interfaces entre o processo
interfaces do processo
pedagógico e as áreas sócio-
pedagógico desde nossa área
políticas e econômicas
até as áreas sócio-políticas e
econômicas.

P4 – O simples fato de fazer


algo diferente despertar o
interesse dos alunos é difícil,
A educação muda à forma de
mas tudo é possível,
enxergar o mundo
principalmente para quem
acredita que a educação muda
nossa forma de enxergar o
Experiência em
mundo, que possamos
movimento
despertar isso nos alunos.

P5 – A experiência conta
A experiência inspira
muito, pois é através dela que
estratégias
você obtém estratégias a serem
utilizadas.

P6 – Com certeza a
experiência de sala de aula
A experiência dilui tensões e
conta muito para diluir as
leva a superação de desafios
tensões e a criatividade para
superar os desafios.

P9 – Minha experiência ao
Experiência provocadora de
longo desses anos vem se
indagações reflexivas
dando nessa perspectiva, como
construir a relação com meus
alunos.

Elaboração do autor (2018)

A experiência foi assumida pelos professores como um movimento que nutre


reflexões para construção e reconstrução das tramas que surgem no dia a dias das
escolas e do exercício de viver a docência. A partir de suas teses docentes, evidenciam a
importância de promover interfaces entre o processo pedagógico e as áreas sócio-
políticas e econômicas, de que a educação alimenta outros olhares sobre o mundo, que a

sumário 244
VII Seminário Vozes da Educação

experiência pedagógica diária provoca indagações reflexivas, inspira estratégias, dilui


tensões e leva a superação dos desafios.
Nessa perspectiva inferimos que os professores veem na sua atuação um espaço
de produção de conhecimentos que fornecem trilhas a serem seguidas conforme sua
leitura da realidade. Segundo Ludke, Cruz e Boing (2009), a experiência escolar se
constitui numa outra maneira de produzir conhecimento “por vezes bem mais
aproximado das necessidades reais de nossa educação do que o produzido pela
pesquisa” (p.466).
Diante do exposto, a questão que se coloca centra-se nos desafios que o
conhecimento elaborado no cotidiano escolar oferece. Para Nóvoa (2017b) um dos
pilares centrais da escola é o conhecimento, sendo este, “indissociável de lógicas
pessoais e colegiais, de um conhecimento que reside também na experiência e nas
“comunidades profissionais” que o produzem e difundem” (p.1121).
Com os autores acima, podemos assumir que praticar a docência se constitui
num ato criador, transformador e reflexivo da experiência e com a experiência num
processo permanente de aprendizagem, de entrecruzamentos teóricos e de tessitura de
novas outras possibilidades de ensino e formação.
Conforme visto no quadro 4, os professores se assumiram enquanto construtores
de devires para além das amarras conservadoras da atual conjuntura árida que buscam, a
partir das pressões por produção de índices eficazes nas avaliações de larga escala,
estreitar e fragmentar suas visões de mundo assim como destituir de suas funções
profissionais de apropriação crítica e ativa do conhecimento.
Entendemos ser fundamental o aproveitamento dos espaços de estudos coletivos
docentes para tensionar as concepções e perspectivas que ficam dissolvidas no interior
das escolas e das salas de aula, pois segundo Gatti (2013) as concepções geram formas
diferentes nas proposições dos processos de ensino e formação dos alunos e dos
próprios professores. Assim sendo torna-se importante perspectivas situadas no eixo de
aproximação epistemológica que levem ao questionamento de conceitos e das formas de
pensar os problemas.
Tomando esse ângulo, a professora P1 sugere a busca de mais conhecimento nas
diversas interfaces do processo pedagógico desde nossa área até as áreas sócio-
políticas e econômica. Dessa estrato podemos depreender a consciência da professora
sobre o fato das determinações político-econômica que podem gerar práticas
engessadas e de manutenção de status quo.

sumário 245
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A ampliação consciencial pelos professores dos estados das coisas, dentre elas, a
padronização das práticas docentes promovidas pela noção de competências e
habilidades, pode ser potencializada pela oportunidade de pensar com o outro nos
espaços de diálogos horizontais no interior das escolas. Essa percepção foi destacada
pelos sujeitos do presente estudo, a qual apresentamos no quadro 4.

Quadro 4 – Núcleo de sentido pensar com o outro

Respostas Unidades de significado Núcleo de sentido


P3 – O diálogo com os meus
colegas revelando minhas
Diálogo com colegas
fraquezas para fortalecê-las.

P4 – Aprendi com minha


professora e orientadora que
não posso procurar
culpados... Mas o que posso
Aprendizagem
fazer diante dos problemas e
dificuldades? Fazer o
possível para mudar a
realidade da minha sala de
aula.
Pensar com o outro
P8 – Um trabalho em equipe
Trabalho polifônico em
que envolva professores e
equipe
gestão escolar, abordando o
cotidiano do aluno, dando
voz aos mesmos.

P9 – Eu acho que o trabalho


em escola se dá com partilha,
Partilha e diálogo com o
com o diálogo, com o outro e
outro
quando isso acontece, isso
flui.

Elaboração do autor (2018)

As unidades de significado depreendidas no quadro 4 evidenciam a valorização


do outro enquanto fios que enlaçam solidariamente o diálogo, a aprendizagem, a
partilha e o trabalho polifônico. Esse outro assumido na pluralidade e na diversidade das
funções, seja o colega, o gestor, o orientador e os alunos. Esse fato, a nosso ver, põe a
escola e os sujeitos que nela dão vida, numa posição de horizontalidade e igualdade de

sumário 246
VII Seminário Vozes da Educação

partilhar o pensar e o dizer, pois conforme destaca o professor P9 quando isso acontece,
isso flui.
Esse outro que provoca a fluidez dos processos de ensinar e aprender, seja
indagando nossos conhecimentos como destaca a professora P4, mas o que posso fazer
diante dos problemas e dificuldades? Fazer o possível para mudar a realidade da
minha sala de aula; seja desconstruindo certezas em direção ao pensar junto que,
conforme sinaliza P8, envolva professores e gestão escolar, abordando o cotidiano do
aluno, dando voz aos mesmos; ou segundo P3, alimentando um estranhamento pessoal,
revelando minhas fraquezas para fortalecê-las.
Para Nóvoa e Vieira (2017a), educar é conduzir os estudantes à maior
comunidade possível, isto é, a humanidade, logo, precisamos passar das visões
fragmentárias à criação de uma realidade partilhada “de todas as coisas e de todos os
outros”. Dessa forma, “ser professor não é apenas trabalhar o conhecimento, é lidar com
o conhecimento em situações de relação de humana (p.36)”. Contudo indagamos: como
potencializar o entrelaçamento do conhecimento nas relações humanas interiorizadas
nas escolas? Podemos inspirar possíveis respostas a partir das unidades de significados
depreendidas do quadro 4, isto é, com partilha, diálogo e trabalho polifônico que una a
multiplicidade da comunidade escolar.
Apesar do reconhecimento pelos professores, sujeitos do estudo em tela,
da importância do outro para pensar sobre e com a prática, e do diálogo que envolva a
pluralidade do todo escolar, vemos estudos (GATTI, 2013; NÓVOA, VIEIRA, 2017a;
ZEICHNER, 1993) apontando para dificuldade do estabelecimento de espaços para
interlocução nas escolas, ocasionado principalmente pela mercantilização dessa
instituição, que repercute na pressão sobre os professores para o alcance de metas nas
avaliações externas de larga escala.
Diante disso, Gatti (2013) sinaliza para a construção de um núcleo conjugante o
qual articula professores, alunos e o instituído escolar com o intuito de prover e incluir
múltiplas respostas às questões socioculturais. Segundo a autora, a forma dessa inclusão
é relevante na medida em pode evidenciar posturas reflexivas, contextualizadoras e
críticas, no qual o próprio conhecimento e as posturas a ele associados levam à criação
de ambiências de aprendizagem.
Tomando emprestadas as palavras dos professores desse estudo, vemos que elas
nos provocam a reelaborar pensares, a movimentar-se e a olhá-los enquanto produtores
de um pensar-fazer fundamentado no espaço-tempo pedagógico e para além do

sumário 247
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

instituído. Mostram-nos que o cotidiano escolar é vivo e pulsa por meio das estratégias
que são construídas no enfrentamento das questões profissionais e pessoais, no
conhecimento e reconhecimento das teses enlaçadas cotidianamente. Contudo,
pontuamos que precisamos legitimar as vozes que ecoam na/com a docência, pois como
assevera Nóvoa (2017b) o lugar que se produz a profissão professor não é somente no
plano da formação, mas também no plano da sua afirmação e reconhecimento.

Conclusão: ir-se às teses docentes e partilhar a palavra

Neste estudo qualitativo nos propomos a ir às teses docentes por meio do


diálogo entre os resultados de uma pesquisa de doutorado e o movimento de
experienciar a docência fruto do narrar-se de nove professores. Com esses nutrientes e o
entrecruzamento com a teoria procuramos partilhar as palavras de nossos sujeitos com o
intuito de fazer ecoar posições que buscam romper com perspectivas que subalternizam
os professores e seus conhecimentos vivenciais.
A trajetória analítica apontou teses docentes com uma riqueza ética, política e
pedagógica versando sobre objetivos solidarizados, reinvenção metodológica,
experiência em movimento e pensar com o outro. Tais teses nos fornecem caminhos
potentes de aprendizagem e transformação com o outro e com a própria docência,
sinalizando, dessa forma, cenários didáticos favoráveis à formação de professores
iniciantes bem como à formação continuada.
Da mobilização de seus pensares emergiram teses docentes valorizando ações de
aproximação entre família e ambiente escolar, de compartilhar sentires, de estímulo e
desafio ao pensamento bem como o respeito às dimensões culturais. No aspecto
metodológico destacaram o trabalho lúdico, as dinâmicas de choque de ideias, a criação
de associações, interdisciplinaridade e abertura às variadas formas de expressão.
Focalizando as dimensões pessoal-profissional assentada nas experiências
formativas do chão da escola, os professores ressaltaram a importância de promover
interfaces entre o processo pedagógico e as áreas sócio-políticas e econômicas, de que a
educação alimenta outros olhares sobre o mundo, que a experiência pedagógica diária
provoca indagações reflexivas. Evidenciaram também o reconhecimento do outro
enquanto fios que enlaçam solidariamente o diálogo, a aprendizagem, a partilha em
direção ao trabalho polifônico.

sumário 248
VII Seminário Vozes da Educação

Essas palavras nos alimentam à construção de um olhar que seja conjugante


(GATTI, 2013) das trajetórias e do pensar-fazer docente elaborada no processo
permanente de formação, direcionando-se ao seu reconhecimento e a legitimação. Nesse
sentido, comunga com as indicações de Nóvoa (2017b, p.1116), ao pontuar que “é
preciso que toda formação seja influenciada pela dimensão profissional, não num
sentido técnico ou aplicado, mas na projecção da docência como profissão baseada no
conhecimento”.
Desse conhecimento que Nóvoa (2017b) nos provoca a pensar, destacamos as
teses docentes como horizonte que se abre para legitimar as teorizações vivenciais que
movem o exercício pedagógico e alicerçam posturas, decisões, alimentando múltiplas
histórias de presença e afirmação.
Assim, concluímos que a integração entre a escola e formação pode enriquecer-
se com as teses docentes e a clarificação do pensar-se inscrito nas completudes e
incompletudes que pulsam possibilidades de exercícios formativos, práticas e reflexões.

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sumário 249
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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ZEICHNER, K. A formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Lisboa: Educa,


1993.

sumário 250
VII Seminário Vozes da Educação

SALA AMBIENTE: UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA

Dayse Gonçalves Fontenelle


FFP-UERJ
daysefontenelle@gmail.com

Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou


um ser condicionado, mas consciente do
inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta
é a diferença profunda entre o ser condicionado e o
ser determinado. A diferença entre o inacabado que
não se sabe como tal e o inacabado que histórica e
socialmente alcançou a possibilidade de saber-se
inacabado (Paulo Freire).

O trabalho aqui apresentado é resultado de uma experiência desenvolvida


por mim na Escola Municipal Antineia Silveira Miranda (E.M.A.S.M.), a partir do ano
de 2017: a criação da sala ambiente de História.
Antes de começar gostaria de apresentar a escola a Escola Municipal Antineia
Silveira Miranda. Localizada no Bairro Caramujo, no Município de Niterói, foi
municipalizada em janeiro de 2014, tendo, inicialmente, uma gestão compartilhada com
a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Três meses após a
municipalização, a escola passou a ser gerida inteiramente pela equipe nomeada para
esse fim, pela Secretaria Municipal de Educação (SME) e pela Fundação Municipal de
Educação (FME).

Imagem do acervo pessoal

sumário 251
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O prédio, um antigo Centro Integrado de Educação Pública (CIEP),


estava bastante deteriorado. A relação entre a escola e a comunidade havia se esgarçado
bastante e isso podia ser observado através do quantitativo de alunos que a escola
possuía no momento da municipalização.
Enquanto estava sob a gestão da Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC),
o CIEP possuía turmas de 1º ao 5º ano e funcionava das 8 horas às 14 horas. A escola
foi deixando de abrir novas turmas e, paulatinamente, mesmo as turmas existentes
foram perdendo alunos; por conta do número reduzido de turmas, a escola foi perdendo
professores e, consequentemente, verbas. Segundo Maurício (2009), o projeto original
do CIEP foi pouco a pouco descaracterizado, desagradando aos pais/responsáveis, o que
resultou em um alto índice de evasão.
A pessoa designada para a direção pela SME/FME foi a pedagoga da Rede
Municipal, Tatiana Esteves, que, imediatamente após a nomeação, deu início à
montagem de uma equipe e de um projeto para o funcionamento da escola. Muitos
componentes do grupo eram colegas de trabalho da FME, que foram atraídos pela
possibilidade de fazer um trabalho mais dinâmico e diferenciado. E, para compor toda
equipe, ainda foram necessários os contratos temporários, já que não existiam
profissionais disponíveis na rede para todas as áreas de atuação.
Durante o processo de municipalização, ocorreram reuniões entre a SME/FME e
SEEDUC, entre a FME/SME com representantes da comunidade do Caramujo para que
fossem estabelecidas as bases para o funcionamento da escola. Entre outros pedidos, a
comunidade solicitou às autoridades municipais presentes, a permanência da jornada
ampliada.
A escola, como parte da sociedade, ao mesmo tempo se constitui e é constituída
por essa. É, por isso mesmo, em sua natureza uma instituição complexa, local de
tensões, enfrentamentos e esperanças. Esse é um momento oportuno para levarmos a
frente à discussão a respeito da redefinição da relação existente entre a instituição: que
deve contribuir para a construção dos papéis sociais no projeto de democracia,
considerando para isso a equidade escolar; e o público ao qual se destina: as classes
populares, historicamente excluídas das oportunidades capazes de promover o bem-
estar social. É preciso ressaltar que o direito à escola além de ter sido afirmado
lentamente se revelou, em alguns momentos da história do país, oscilante. A escola
como uma instituição de caráter público é frágil e dependente das pressões dos setores

sumário 252
VII Seminário Vozes da Educação

da sociedade interessados em seu funcionamento, para que mudanças ocorram


(RAMOS, 2018).
A ampliação dos direitos sociais no país impulsionou o processo de redefinição
da relação entre escola e sociedade. Entretanto, o direito à educação para as classes
populares sempre foi marcado pelo mínimo, adotando um caráter seletivo e
profundamente desigual (RAMOS, 2018).
Existem, por um lado, políticas públicas que impulsionam a expectativa de que a
escola pública seja o lugar responsável por solucionar todos os problemas relativos à
disciplinarização das camadas menos favorecidas da sociedade, formando cidadãos
aptos para o trabalho e capazes de obedecer às regras do jogo social vigente ao final do
processo educativo (CONTRERAS, 2002). Mas, por outro lado, muitas escolas,
produzem fazeres capazes de incorporar as diferentes demandas e experiências culturais
da população, valorizando o espaço escolar como um local onde todos têm direito a uma
educação para a vida social e democrática (CAVALIERE, 2009).
Mas será a escola apenas um instrumento normatizador, governado por
interesses de Estado? Faz-se necessário aprofundar o que entendemos por escola e, para
tanto, é imprescindível olhá-la do ponto de vista educacional, ou seja, observá-la em
termos de operações efetivas e reais realizadas por um arranjo particular de pessoas,
tempo, espaço e matéria, considerando assim, que essas operações são emancipadoras.
Nesse sentido, a escola não está orientada e nem domesticada por uma utopia política,
nem ainda por uma ideia normativa, mas é em si mesma a materialização de uma crença
utópica: cada um pode aprender tudo. Essa crença é um ponto de partida, pois traz o
indivíduo para a posição de ser capaz e o expõe a algo que está fora de seu convívio
familiar e social. É uma forma de levar a aprendizagem e a educação de volta à escola, e
considera a aprendizagem escolar um estar-no-meio não direcionado por nenhuma
finalidade nem por uma falta ou necessidade (MASSCHELEN; SIMONS, 2017).
O texto aqui apresentado busca ressignificar a escola como um espaço de
produção de saberes. E, principalmente, o/a professor/a como um produtor de
conhecimento sobre a sua prática. Para tanto, reiterar a centralidade do/a professor/a
como sujeito de sua formação é essencial. Como nos afirma Nóvoa (1992), “o professor
é a pessoa; e uma parte importante da pessoa é o professor”, por isso é fundamental
encontrar um espaço dialógico entre as dimensões do pessoal e do profissional para que
os professores possam se apropriar de seus processos de formação, dando a eles real
sentido.

sumário 253
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Por que montar uma sala ambiente?

Tenho o costume de finalizar cada um dos três períodos, nos quais se dividem o
ano letivo na rede municipal de Niterói, solicitando aos estudantes uma avaliação
anônima do que foi bom e o que foi ruim durante aquele intervalo de tempo no qual
desenvolvemos vários temas relativos à disciplina de história. Também faz parte desse
momento, a formulação por parte dos estudantes de sugestões de como melhorar a nossa
relação, seja no aspecto pessoal, seja no âmbito do trabalho com os conteúdos. Essa
escrita por várias vezes me surpreendeu e me fez repensar as minhas práticas e a minha
forma de lidar com as turmas.
Alguns estudantes, talvez pela falta de costume em expressar opiniões sobre o
trabalho do professor e a escola, respondem de forma apressada qualquer coisa, com o
intuito de dar conta da tarefa solicitada, mas outros levam essa empreitada muito a
sério. Esses alunos reduzem a escrito os seus desejos, as suas críticas que estavam
ocultas, ou faziam parte apenas de conversas entre eles mesmos quando não estão sendo
ouvidos e observados pelos professores. Através dessa prática busco estabelecer com as
turmas com as quais trabalho, um canal de comunicação direto e mais próximo.
A montagem da sala ambiente teve inspiração na crítica afiada de um(a)
estudante:

A escola é legal, mas as aulas são sempre meio iguais, até a sua, prof ª. É
sempre a mesma coisa com um assunto diferente. A escola tinha que ter
coisas diferentes. Sai um professor e entra outro e a gente aqui, no mesmo
lugar. Um saco. E´um monte de blá, blá, blá. Queria que algo diferente
acontecesse (8º Ano/2016).

Ao ler o texto me senti um pouco frustrada, mas ao mesmo tempo desafiada


pelo(a) estudante a fazer diferente. Na última reunião pedagógica do ano de 2016, que
acontece todas as quartas-feiras, propus a direção e aos professores a ideia de nos
organizarmos em salas específicas para as disciplinas. Receberíamos os alunos, ao invés
de irmos até eles. Teríamos ali reunidos, materiais específicos disponíveis, o que
facilitaria a dinamização das aulas. Para começar, criaríamos um movimento que tiraria
os alunos da sala, deslocando-os até outro ambiente preparado para as aulas. Alguns
colegas aprovaram a ideia, já outros apenas ouviram sem muita disposição de
concretizar a sugestão apresentada. O resultado positivo da reunião foi

sumário 254
VII Seminário Vozes da Educação

comprometimento da direção com a proposta, entendido por mim como sinal verde para
por em prática o projeto.
Na última semana de janeiro de 2017, com toda a rede municipal ainda em
férias, fui para a escola para montar a sala. Separei, com ajuda de alguns funcionários, o
mobiliário necessário (mesas, cadeiras, armário e estante) e o material didático (livros,
revistas, mapas, globos, material de papelaria). Também levei muitos materiais que
possuía para incrementar o ambiente, além de contar com variadas e significativas
doações.
Tentei desconstruir a ideia de sala de aula comum. Arrumei as mesas da sala de
forma a acomodar as turmas em grupos de trabalho de quatro. Não selecionei um espaço
específico para mim, por considerar importante estar com os estudantes na mesma
condição, em todos os momentos. Todas as mesas contavam com revistas e gibis, além
de material básico de papelaria.
No início do ano letivo de 2017, a sala estava pronta!

Imagem do acervo pessoal

Os estudantes adoraram a novidade. Sair da sala de aula comum para outro


ambiente especialmente preparado para a disciplina, ter visualmente disponível vários
materiais pedagógicos, sentar em grupo, foram fatores determinantes para revitalizar a
dinâmica das aulas.

sumário 255
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Mas como nem tudo agrada a todos... Os coordenadores, a princípio, sentiram-se


desconfortáveis diante de tanto movimento. A saída dos grupos da sala de aula e a
circulação deles pelos corredores até a sala ambiente exigiu muitos acordos e parcerias,
que foram reformulados muitas vezes até que a dinâmica tornou-se familiar a todos os
envolvidos.
Outro tema enfrentado durante a implementação da sala ambiente de história foi
o questionamento, feito por parte dos professores, sobre o “privilégio” concedido a
disciplina ter uma sala exclusiva. Durante algumas reuniões de planejamento foi
necessário abrir espaço de conversa sobre a proposta feita no final de 2016 a todos os
professores. Diante do exposto, alguns decidiram montar suas próprias salas ambientes.
Esse foi o caso da disciplina de ciências, que até 2016 dividia uma sala com a disciplina
de arte. Todo o material de laboratório foi organizado em uma sala específica,
propiciando um ambiente investigativo e muito prazeroso.
Assim, a escola passou a contar com três espaços diferenciados: sala ambiente
de arte, a sala ambiente de história e a sala ambiente de ciências, além da sala de leitura
e o espaço destinado às práticas esportivas, que compreendem a quadra poliesportiva e
sala de espelhos.
Trabalhar com jovens exige de nós, professores, colocar em questão as
dinâmicas habituais, que muitas vezes são repetitivas e padronizadas. Muitas vezes
nossas práticas estão desvinculadas dos contextos socioculturais dos sujeitos e
consequentemente, de seus interesses.
As mudanças não se restringiram ao aspecto da troca de ambiente. Ocorreram
modificações que afetaram bastante a dinâmica das aulas. Muitas alterações
identificam-se com os princípios educacionais interculturais, que buscam promover o
fortalecimento das identidades dos estudantes, potencializando processos de
empoderamento e autonomia; estimulando o diálogo entre diferentes saberes e
conhecimentos; favorecendo dinâmicas participativas e estimulando diferentes
linguagens que estimulem a construção coletiva (CANDAU, 2012). Mesmo que tal
aproximação não tenha se dado intencionalmente e a priori.

sumário 256
VII Seminário Vozes da Educação

Imagem do acervo pessoal

O contexto apresentado pelo cotidiano da escola serviu como espaçotempo de


produção de políticas educacionais, pois os professores e diretores, em suas práticas,
foram construindo, tecendo o currículo e se formando. Essas práticas formativas são
potentes na ampliação do conhecimento e tornam os envolvidos praticantes,
protagonistas dessa produção (FERRAÇO; GOMES, 2013).

Refletindo sobre a experiência vivida

Descobrir, dentro.
Encontrar com outros, fora.
Ressignificar;
Relatar;
Elaborar;
Partilhar;
Encontrar.
Cantos;
Caminhos;
Trilhas;
Rotas.
Cada um em seu ritmo.
Enredados.
Propósitos comuns.
Soma e forma.
(Trans)formação.
Caminho que segue: para si, para outros.
Sem fim!

(Dayse Fontenelle)

sumário 257
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Escrever sobre a experiência da montagem da sala ambiente trouxe junto muitas


reflexões, que me levaram a associar a experiência narrada a uma experiência
formadora.
A narrativa proposta utiliza como referencial teórico a pesquisa-formação, na
qual trabalho com o entendimento que a narrativa das experiências vividas podem
produzir um efeito formativo naquele que enuncia o discurso (DELORY-
MOMBERGER, 2012).
Quando me refiro a experiência, estou aludindo a um acontecimento exterior e
estrangeiro a mim, que me causa estranheza, ou como nos afirma Larrosa (2011)
ex/tranheza; que é alheio a mim não podendo ser capturado, ou mesmo apropriado por
mim; e que é necessariamente diferente de mim. A experiência exige um movimento de
saída de mim em direção ao acontecimento e um movimento de retorno que me afeta,
de forma particular e singular, provocando transformação e formação. O sujeito da
experiência é, portanto, um território de passagem que guarda em si vestígios da
experiência vivida.
Ler a pesquisa realizada junto aos estudantes me deslocou e me tirou de um local
de segurança. A fala daquele discente tornou-se um acontecimento carregado de
significados, que provocou a construção de uma nova proposta de trabalho, deixando
para trás os formatos pré-estabelecidos.
Assim, a experiência vivida pode ser considerada formadora por ter implicado
em uma articulação conscientemente elaborada entre atividade, sensibilidade,
afetividade e ideação, que objetivou uma representação e uma competência. A
experiência formadora pode, dessa forma, ser mais ou menos significativa, estando em
acordo com as transformações que incidem sobre nossa identidade e subjetividade
(JOSSO, 2010).
Portanto, o estudo dos processos de formação, de conhecimento e de
aprendizagem, tendo em vista a elaboração de uma formação experiencial, efetua-se a
partir da construção da história de formação, mediante a narrativa das experiências com
as quais o autor/ator aprendeu, mediante seu modo de operar escolhas, de situar em seus
vínculos e de definir seus interesses (JOSSO, 2010).
Destaco aqui, a importância de narrar a experiência vivida. Muitos elementos da
narrativa emergiram no ato da narração, e a partir de então, ganharam uma nova
compreensão em decorrência da reflexão; e tal processo de reflexão possibilitou a
formação e a transformação de práticas e entendimentos.

sumário 258
VII Seminário Vozes da Educação

Vale ainda destacar, que Nóvoa (1992) sustenta como identidade profissional.
um espaço de luta e conflito, realçando o caráter dual de como nos sentimos e como nos
entendemos professor. A construção da identidade profissional leva tempo e se
caracteriza pela complexidade. O processo identitário do professor como profissional se
constrói, dessa maneira por meio de três A: A de Adesão, que implica em aderir a
princípios, valores, projetos e potencialidades; A de Ação, escolhendo a melhor maneira
de agir, misturando o pessoal e o profissional; A de Autoconsciência, quando o
professor reflete sobre a sua ação.
A identidade é assim, portanto, um processo inacabado e que se projeta para
trás no passado, no presente cotidiano e nos projetos que fazemos de futuro, que
ganham contornos subjetivos, pessoais e complexos (VIEIRA, 2000). O ser humano,
esse todo identitário, constrói-se a si mesmo quando interage com outros
(heteroformação), com o meio ambiente (ecoformação) e consigo (autoformação)
(PINEAU, 2010), sendo, portanto, essas interações referências para sua construção e
transformação.
Assim, percebo a minha incompletude e as mais variadas influências,
interferências e transferências produzidas em mim e por mim, fundamentais para a
compreensão do que sou como profissional. Sou hoje resultado de incontáveis encontros
e desencontros que reunidos, vão compondo a pessoa que estou sendo. É importante
ressaltar que, que não considero a hipótese de estar completamente formada, preparada,
concluída. A busca por conhecimento, por melhores caminhos, por aprimorar o meu
fazer fizeram com que planos e projetos fossem inúmeras vezes refeitos ou
recomeçados. Nem sempre o resultado final foi o idealizado inicialmente. É bem
verdade que algumas vezes superou expectativas e, em outras, trouxe muitas
frustrações. Com base nesse movimento de muitas idas e vindas, um vocabulário
composto por palavras como “construindo”, “reconstruindo”, “trocando”,
“aprendendo”, “persistindo” foi norteando minhas experiências e me trouxe até aqui.
Vale ainda lembrar que narrar as experiências vividas não é reconstituir o curso
factual e objetivo do que foi vivido e, sim, um ato de passagem, pelo qual aquele que
narra a sua história de vida retoma em acordo com as associações que faz com o espaço
e o tempo de sua existência. O sujeito que narra sua história de vida, buscando significar
e dar sentido à sua trajetória, seleciona partículas do que viveu e reconstrói a história de
si mesmo. É, portanto, uma enunciação instável e transitória, que se reconstrói e não

sumário 259
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

acaba em sim mesma. A sua importância está na noção de conveniência que a história
toma no momento da enunciação (DELORY-MOMBERGER, 2014).
Por acreditar que o saber da experiência ganha um sentido particular em cada
um de nós, seres dotados de personalidade, caráter e sensibilidade singulares
(LARROSA, 2016), falar a respeito de como nos formamos profissionalmente implica
uma reflexão sobre a maneira como nos constituímos seres humanos no seio de nossas
famílias. Somos profissionais, e assim sendo, não estamos apartados das nossas
experiências de e na vida fora de nosso ambiente de trabalho.
Entendo a escola como um lugar dinâmico e produtor de conhecimento e vista,
muitas vezes, como campo para a realização das estratégias que tornam possível
capitalizar vantagens, expandir e solidificar posições do grupo dominante. Identifico o
controle do espaço escolar como uma estratégia para controlar e assegurar a posição da
classe dominante e garantir que o entendimento dessa classe como tal se perpetue. Mas,
identifico, na mesma escola onde projetos de poder são colocados em prática, um local
onde emergem táticas autônomas, bem no campo de visão do “inimigo”, que opera no
contragolpe. Não há, nessa ação tática, a visão de permanência ou ganho. É apenas a
arte do fraco em sua ação possível.

Sem lugar próprio, sem visão globalizante, cega e perspicaz como se fica no
corpo a corpo sem distância, comandada pelos acasos do tempo, a tática é
determinada pela ausência de poder, assim como a estratégia é organizada
pelo postulado de um poder (CERTEAU, 2014).

Considerando ainda, que no ambiente escolar, convivem pluralidades complexas


de pessoas, investidas de suas particulares religiosidades, histórias de vida, suas redes
sociais e culturais, seus desejos. É através da ampliação das redes de sentido dos
sujeitos praticantes nos cotidianos das escolas, repletas de processos inventivos,
anônimos e sorrateiros, de táticas-estratégias de subversão das tentativas de
padronização, que se oportuniza um ambiente onde tudo o que é diferente e
aparentemente caótico se adapta de maneira harmônica e potencializa fazeres
(FERRAÇO; SUSSEKIND, 2016).
O professor que produz conhecimentos, aprende de forma mais profunda a
respeito da sua prática e sobre a sua vida, tornando-se, assim, responsável pelo seu
fazer. É a busca de produzir uma epistemologia da prática (LIMA, GERALDI,
GERALDI, 2015).

sumário 260
VII Seminário Vozes da Educação

Faz-se necessário que os indivíduos se apropriem de sua história de vida ao


elaborarem a sua narrativa. Ao fazerem isso, os narradores estão se autoformando, estão
se apropriando de seu poder de formação. É preciso reconhecer, ainda, que tanto os
saberes formais e exteriores quanto os saberes interiores e subjetivos, praticados em sua
vida pessoal e profissional, possuem papel fundamental na forma como esses indivíduos
investem no espaço de aprendizado e formação. Todavia é preciso esclarecer que a
narrativa não entrega os “fatos”, mas as construções que são elaboradas por meio da fala
ou da escrita. Longe de apresentar uma forma fixa, ela é instável, transitória e se
recompõe no momento em que é enunciada, portanto é sempre passiva de ser retomada
e revisitada (DELORY-MOMBERGER, 2012).
Na atualidade, percebe-se que o sujeito capaz de produzir uma narrativa baseada
em suas memórias organizadas e selecionadas, em acordo com suas flutuações, está se
compondo a partir de múltiplas identidades, em acordo com os diferentes momentos,
sem um “eu” coerente, mas repleto de contradições e deslocamentos que são
temporários (HALL, 2015).
A breve discussão apresentada busca indicar que é possível, através da narrativa
e do registro da memória dos atores envolvidos no processo que se desenvolve no
interior do ambiente escolar, produzir saberes científicos academicamente reconhecidos.
É fundamental que o professor sinta-se capaz e apto a registrar e socializar suas práticas
e, também é muito importante que sua prática seja reconhecida e valorizada no meio
acadêmico.

Referências
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Educação e Sociedade. Campinas, v. 33, n. 118, p. 235-250, jan.-mar. 2012.

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aberto. Brasília: INEP,v. 22, n. 80, p. 51- 63, abr. 2009.

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: arte de fazer. Petrópolis: Vozes, 2014.

CONTRERAS, J. A autonomia dos professores.São Paulo: Cortez, 2002.


DELORY-MOMBERGER, C. A condição biográfica: ensaios sobre a narrativa de si
na modernidade avançada. Natal, RN: EDUFRN, 2012.

______. Biografia e educação: Figuras do indivíduo-projeto. Natal, RN: EDUFRN,


2014.

FERRAÇO, C. E. (Org). currículos em redes. Curitiba: CRV, 2016.

sumário 261
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

FERRAÇO C.E., GOMES, M. R. L. Sobre as redes que tecem práticas políticas


cotidianas de currículo e de formação de professores/as. Currículo sem
Fronteiras,v.13, n.3, p. 464-477, set/dez. 2013.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina,


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JOSSO, M. C. Experiência de vida e formação. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus,


2010.

LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica,2016.

LIMA, Maria Emília Caixeta de Castro; GERALDI, Corinta Maria Grisolia, GERALDI,
João Wanderley. O trabalho com narrativas na investigação em educação. Educação
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MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Experiências escolares: uma tentativa de encontrar


uma voz pedagógica. In: LARROSA, J. (Org). Elogio da escola. BH: Autêntica
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MAURÍCIO, L. V. Escrito, representações e pressupostos da escola pública de horário


integral. Em Aberto. Brasília: INEP, v. 22, n.80, p. 15- 31, abr. 2009.

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PINEAU, G. Autoformação no decurso da vida: entre hetero e a ecoformação. In:


NÓVOA, A.; FINGER, M.. O método (auto)biográfico e a formação.Natal:
EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010.

RAMOS, F. C. Socialização e cultura escolar no Brasil. Revista Brasileira de


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VIEIRA, R. Ser igual, ser diferente: encruzilhadas da identidade.Portugal: Prof.


edições. 2000.

sumário 262
VII Seminário Vozes da Educação

ESCRITA DE SI COMO PROCESSO (AUTO)FORMATIVO DOCENTE: UMA


EXPERIÊNCIA DE OFICINA DE PRODUÇÃO COLETIVA

Helena Amaral da Fontoura


FFP UERJ
helenafontoura@gmail.com

Em diferentes eventos os participantes, em geral, são submetidos a incontáveis


sessões nas quais assistem a falas de especialistas, algumas vezes produtivas, outras
vezes cansativas, e sem grandes impactos formativos para aqueles que estão na
condição de espectador. É a repetição do modelo clássico de sala de aula onde o mestre
apresenta aos alunos o seu saber e os alunos se contentam em, por si só, compreender e
assimilar, ou não, as aprendizagens requeridas pelo momento. Acreditamos que uma
atividade participativa pode ser muito benéfica para quem está no trabalho em
Educação, em diferentes inserções, uma via de mão dupla, onde apresentador e plateia,
mestres e alunos, dialoguem entre conceitos e ações que estão em cena na temática da
palestra. Acreditamos ainda em ações que invistam na busca de expressões artísticas
significativas nos processos formativos, de maneira a agregar valor e sentido às
reflexões sobre a docência.
Assim, o presente artigo desenvolve uma análise de uma proposta efetivada em
oficina com participantes inscritos no V Congresso Internacional de Pesquisa
(Auto)Biográfica, o V CIPA, ocorrido em Porto Alegre, RS, de 16 a 19 de outubro de
2012, pensada para apresentar o trabalho de nosso grupo de pesquisa39, o que foi feito
seguindo uma proposta de atividade de escrita coletiva em um caderno de respostas.
O caderno proposto teve inspiração a partir do ‘questionário de Proust’40 que
recolhemos numa publicação41 e que primeiramente foi realizado como prática reflexiva
no GRUPESq quando refletimos sobre quem somos, o que fazemos e como nos vemos

39
Grupo de Pesquisa Formação de Professores, Processos e Práticas Pedagógicas
http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/27564
40
Tornaram-se famosas as respostas do escritor Marcel Proust, ainda garoto, a um questionário que era
moda, na sociedade francesa de então, usado para as pessoas se conhecerem. Tão famosas que a
metonímia se fez, as respostas engoliram as perguntas, e o questionário passou a chamar-se Questionnaire
de Proust. http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/minha_entrevista_a_marcel_proust.
Acesso em 22 de maio de 2012.
41
“Onde habita minha alma – o caderno essencial”, produção independente de Tatiana Telink.

sumário 263
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pessoas-professoras-formadoras de professores. Aquela prática deu origem a uma


publicação que consideramos bastante potente, que articulou formação docente,
(auto)formação, arte e reflexões sobre os atravessamentos de nossas memórias de
formação (FONTOURA et al, 2012).
Na oficina em questão, optamos por adaptar algumas perguntas do questionário
a fim de atender à estrutura e ao tempo destinado no evento; para a elaboração/produção
das respostas foram oferecidos aos participantes materiais familiares/escolares como:
cadernos, cola, lápis de cor, hidrocor, tesoura, enfim, nada diferente do dia a dia dos
docentes de educação básica no país. Outra perspectiva significativa para a escolha
desta proposta considerou a troca e construção de aprendizagens; neste trabalho esta é
nossa intenção já que a formação docente é um campo onde se constroem conhecimento
e aprendizagens. Apostamos que um trabalho quando parte de atividades práticas/
expressivas/ estéticas torna-se mais significativo e interessante, pois nos transformamos
em sujeitos da nossa própria aprendizagem, considerando a complexidade e singular
potencialidade do sujeito frente à elaboração de novas e intrincadas estruturas. A
imaginação, enquanto ato consciente e socialmente construído (VYGOTSKY, 2004)
potencializa a criatividade, expressividade, autonomia e senso crítico, onde as questões
sobre autoria e reflexividade podem ser tratadas como ecos educadores e formativos,
multiplicando-se em aprendizagens e rompendo com a dicotomia entre pensar e viver.
Ao destacar o lugar que a arte pode ocupar na vida e na produção de
conhecimentos dos indivíduos, queremos também trazê-la para a dimensão da ação
docente e situá-la como condição humana. Morin (2004) nos convida a conviver e a
conhecer a nossa condição humana e assim, segundo ele, qualificar o processo
educativo e formativo. Nesse contexto, reconhecemos os professores como produtores
de um conhecimento sobre si, sobre os outros e sobre o cotidiano.
Josso (2007) nos diz que na busca pela formação e tomada de consciência para
uma significativa apropriação do conhecimento são necessárias reflexões referenciadas
às aprendizagens e experiências construídas ao longo da vida. A autora destaca a
importância de compreendermos nosso processo de formação para autoconscientização
e assim possibilitar um movimento de intervenção no ato de agir. Em nosso caso,
estamos em constante busca por novos conhecimentos, refletindo e discutindo, o que
nos caracteriza como um grupo de pesquisa que trabalha – de fato – em grupo.
A escolha do caderno de perguntas possibilitou um exercício reflexivo no qual
cada participante se viu rememorando e escolhendo em sua bagagem respostas e talvez

sumário 264
VII Seminário Vozes da Educação

‘alternativas’ para as escolhas que vem fazendo, assumindo e reconhecendo seu lugar.
As perguntas desencadeiam a busca de cada um em fazer movimentos na direção de
respostas, multiplicando-se e ecoando em aprendizagens.
As 23 perguntas foram: Qual é sua maior qualidade?E seu maior defeito?; A
coisa mais importante em um homem? E em uma mulher?; O que você mais aprecia nos
seus amigos? ; Sua atividade favorita é… ; Qual é sua ideia de felicidade?; O que seria a
maior das tragédias?; Quem você gostaria de ser, se não fosse você mesmo?; Onde
gostaria de viver?; Qual sua cor favorita?Sua flor?Um pássaro?; Seus autores
preferidos?; E os poetas de que mais gosta?; Quem são seus heróis de ficção? E as
heroínas?; Seu compositor favorito é…; E os artistas que você mais curte?; Quem são
suas heroínas na vida real?E quem são seus heróis?; Qual é sua palavra favorita?; O que
você mais detesta?; Quais são os personagens históricos que você mais despreza?;
Quais os dons da Natureza que você gostaria de possuir?; Como você gostaria de
morrer?; Agora, já, como você está se sentindo?;Que defeito é mais fácil perdoar?; Qual
é o lema da sua vida?
Trabalhamos contando com as experiências trazidos pelos participantes da
oficina, com base na formulação de Larrosa (2002, p.21), para quem “a experiência é o
que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca”, ou seja, os sentidos que damos aos acontecidos em nós. E
complementa o autor, “a experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite
apropriar-nos de nossa própria vida”(p.27)
Os processos formativos, ao promoverem e acolherem as experiências,
desencadeiam a capacidade transformadora e impulsionam os professores a elaborarem
e reelaborarem os seus saberes e fazeres, possibilitando um momento para
experienciarem suas próprias vidas, um espaço de diálogo entre o pessoal e profissional,
permitindo reconhecer os fios que conduzem ao entrelaçamento das escolhas e decisões.
O diálogo de saberes da experiência, concebida como o vivenciar conjunto de
experiências, o reviver, subjaz a possibilidade do encontro, da interação e do deixar-se
permear pelo outro. Este encontro com o outro nos remete a nós mesmos, à construção
de nossa própria identidade.
Autores como Nóvoa (1995), Zeichner (1998, 1995) e Josso (2004, 2007, 2008)
apontam para a necessidade de promover a experiência reflexiva com professores, pela
análise das decisões pedagógicas ou pela narrativa das histórias de vida. A narrativa se
constitui numa possibilidade de contar o caminho e ao mesmo tempo um caminhar novo

sumário 265
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

por entre as experiências vividas. Contá-las, vivenciando este ato de narrar como uma
experiência – aquilo que nos acontece, que nos atravessa - caminhando, sempre
caminhando... escrevendo, abrindo cadernos, virando páginas.... Os professores, ao
relatarem suas histórias e refletirem sobre suas práticas, podem perceber a riqueza e a
singularidade desses processos.
Josso (2004) complementa a concepção de experiência e vivência de Larrosa
(2002), afirmando que a distinção entre estas permite ampliar as dimensões
inconscientes da experiência. Para ela, a vivência está relacionada aos acontecimentos
que tocam os sujeitos, mas que muitas vezes não são assimilados pela consciência. Para
que uma vivência possa atingir o nível de experiência, é necessário realizar um trabalho
reflexivo sobre o que aconteceu. Dessa forma, algumas experiências e vivências
cotidianas nas quais os professores são cativados, necessitam de uma ressignificação
através das narrativas das histórias vividas, promovendo uma abertura de espaço às
múltiplas possibilidades de ser, ou seja, constituir-se a partir de si mesmo.
Cabe ressaltar que consideramos esses momentos de seminários acadêmicos
como experiências formadoras, produtoras de relações reflexivas. Revogamos a
concepção dessa formação apenas como promoção de métodos, formas de conduta e
valores a serem seguidos. Direcionamos o foco para a provocação e mediação que o
sujeito faz consigo mesmo e com seus pares, ou seja, o pensar. Conforme Larrosa
(2002, p.21), “pensar não é somente ‘raciocinar’ ou ‘calcular’ ou ‘argumentar’, como
nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é, sobretudo, dar sentido ao que somos e ao
que nos acontece”.
Concebendo a experiência como a relação existente numa dada cultura entre os
diferentes campos do saber, de socializações e formas de subjetivação, torna-se possível
construir processos formativos enquanto experiência formadora. Para Josso (2004), esta
‘experiência formadora’ produz uma aprendizagem que pode articular e hierarquizar
tanto o saber-fazer como os conhecimentos, a funcionalidade e a significação, técnicas e
valores oferecendo a cada indivíduo a oportunidade de uma presença para si e para a
situação de tal forma que mobiliza uma ampla diversidade de registros.
Em Souza (2010), vemos que a formação se configura como uma questão
política, filosófica e histórica, envolvendo dimensões científicas e epistemológicas
sobre os saberes da profissão e sobre a profissão. O autor destaca que compreende a
formação “como um movimento constante e contínuo de construção e reconstrução da
aprendizagem pessoal e profissional, envolvendo saberes, experiências e práticas”

sumário 266
VII Seminário Vozes da Educação

(p.159), que integra a construção da identidade social, pessoal e profissional


demarcando a autoconsciência. Nesse sentido, o espaço de formação necessita tornar-se
um locus da reeducação dos nossos sentidos ligados à nossa existência.
Nossas motivações para o exercício do fazer docente não visam apenas construir
episódios de nossas vivências, mas sim nos instigam como pesquisadoras e docentes a
compreender aspectos de nossa vida pessoal e profissional e tecer relações talvez ainda
não percebidas por nós. Neste cenário é que o ‘questionário de Proust’ foi um exercício
de trabalho e de formação e por isso o elegemos para a apresentação no V CIPA.
Fazemos pesquisa qualitativa, que tem entre seus instrumentos de construção de dados a
narrativa, organizando ideias para que relatos orais ou escritos possam ser feitos.
Trazemos nossas produções associando arte e fazer educação, escritas que nos fazem
entender escolhas e contar percursos.
Responder ao caderno de perguntas foi uma atividade extremamente
significativa para os participantes do evento. Participar daquele jogo trouxe ao grupo
surpresa e engajamento. Os participantes, num total de cinquenta pessoas,
demonstraram desejo de realização e se colocaram como coautores na
palestra/apresentação. Organizados em grupos, responderam às perguntas produzindo
seis cadernos elaborados com desenhos, cores e colagens, objetos/ferramentas do dia a
dia da sala de aula. Neste processo interagiram e compartilharam experiências
reflexivas através de suas narrativas/produções. Josso (2010) acredita que são
necessárias reflexões referenciadas às aprendizagens e experiências construídas ao
longo da vida, para a tomada de consciência e destaca a importância de compreender o
processo de formação para autoconscientização. A reflexão e a busca de sentido, como
indica Josso (2008), colocam a experiência no foco da cena que através do rememorar e
narrar pretende-se compreender.
Passeggi (2011), reafirmando o pensamento de Larossa (2002, 2004), argumenta
que a relação dialética entre a reinvenção de si e a ressignificação da experiência,
daquilo que nos acontece e que nos constitui, certamente é um dos terrenos mais férteis
da pesquisa (auto)biográfica em Educação. A autora afirma que “ao narrar sua própria
história, a pessoa procura dar sentido às suas experiências e, nesse percurso, constrói
outra representação de si: reinventa-se” (2011, p. 147).
Para a pesquisa educacional a possibilidade ressignificar a experiência é a razão
estimulante (PASSEGGI, 2011) por onde a (auto)biografia conduz a pessoa a buscar as
relações entre viver e narrar, ação e reflexão, narrativa, linguagem, reflexividade

sumário 267
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

autobiográfica e consciência histórica. Para a autora, o processo de formação implica


encontrar na reflexão biográfica marcas da historicidade do eu para “ir além da
imediatez do nosso tempo e compreender o mundo, ao nos compreender.” (2011, p.
149).
A compreensão da condição de sujeito, em diferentes momentos de nossas vidas,
em seu tempo e lugar, é também uma das grandes contribuições da pesquisa narrativa.
Ricoeur (1991, 1997) denominou de ‘identidade narrativa’ a possibilidade que as
narrativas propõem quando refletimos sobre quem nós somos. Ao narrar-se, o sujeito
recria momentos de sua vida. Ele constrói uma unidade, onde mistura fabulação e
experiência, intrigando-se na intenção de reconfigurar a experiência temporal. Lisboa
(2013) referindo-se ao pensamento de Ricoeur, diz que, para este autor, a identidade
narrativa indica contextos de ações e situações vividas que possibilitam identificações,
já que a pessoa é o que ela faz e o que ela passou.
Pensar a identidade somente no plano lógico e epistemológico da análise do
discurso e da ação para Ricouer (1991) é ainda insuficiente. É de fundamental
importância incluir a discussão da dimensão temporal, tanto do sujeito quanto de sua
ação na busca da identidade pessoal, onde a narrativa constitui objeto de reflexão.
As pesquisas autobiográficas quando contextualizam o importante lugar na
caracterização do homem e seu o mundo, quer seja “os seculares passados”, quer seja “o
suspeito tempo que há de vir” (QUEIRÓS, 2007, p. 57/58), quer seja o momento
presente, desenhando percurso antropológico, se deparam com a dimensão humana,
onde se encontra: a razão, a emoção, o desejo, a fantasia, a imaginação, a interpretação.
Todas essas características, entre outras, estiveram presentes nos cadernos elaborados
pelos grupos nas oficinas, expressos em várias linguagens. Maturana (2002) atribui à
linguagem a responsabilidade do desenvolvimento da capacidade intelectual humana,
inclusive os processos e transformações que o cérebro humano vem sofrendo nas suas
alterações de conformação, e argumenta que “o peculiar do humano não está na
manipulação, mas na linguagem e no seu entrelaçamento com o emocionar”(p.19). No
processo de interação na produção dos cadernos de respostas, destacamos a dimensão
comunicativa da linguagem, da narrativa. Maturana (1998) afirma que a linguagem e
suas relações biomotoras não acontecem no corpo como um conjunto de regras, “mas
sim no fluir em coordenações consensuais de conduta” (p.27). O autor privilegia neste
caso o processo de relacionamento, valorizando a dinamicidade e a capacidade de gerar
conhecimento pelas relações do ser humano com os outros, através da linguagem.

sumário 268
VII Seminário Vozes da Educação

Ao pensarmos a proposta para o V CIPA, produzimos um texto (FONTOURA et


al, 2012) e uma apresentação visual onde o cinema (“Bagdá café” e“O carteiro e o
poeta”); a literatura e a dança; o poema (“O sim contra o sim”, de João Cabral de Melo
Neto); o musical (“Um violinista no telhado”); a biografia (Frida Khalo); a música (“O
caderno”, de Chico Buarque de Holanda e “O que é, o que é”, de Gonzaguinha) e a
pintura (“A leitora”, de Renoir) estavam presentes. Respondemos às muitas perguntas
de vida e de formação encontrando nas artes, na linguagem a dinamicidade e a
capacidade de gerar conhecimento pelas relações do ser humano com os outros.
Defendemos que através da arte desenvolvemos nossa sensibilidade, percepção e
imaginação, atributos considerados pelo documento recursos indispensáveis para
compreender outras áreas do conhecimento. Em nossas reflexões após o trabalho
relatado, afirmamos que temos um papel formador dentro e fora de sala de aula, na
escola, na rua, no pátio e em cada espaço que frequentamos, incluindo eventos
acadêmicos. Um papel que é de formação para aquilo que se aprende no âmbito dos
diversos saberes, sejam eles disciplinares ou não, e da educação para a política como
espaço de disputa de projetos de mundo.
Não é nosso propósito analisar as razões pelas quais participantes optam por
formas de expressar ideias e pensamentos, não estávamos em todos os grupos o tempo
todo. O questionário foi um exercício disparador, utilizando um dispositivo familiar à
maior parte dos que estavam nos grupos: cadernos de perguntas e respostas livres. Pelos
depoimentos colhidos durante o exercício, temos a clareza de que é possível inaugurar
novas formas de compartilhar os achados de pesquisa e os processos que levam a esses
achados, de modo que os processos sejam vividos e revividos, ampliando suas
possibilidades formadoras e informadoras.
Esta oficina contou com cinquenta participantes em busca de viver, conhecer e
aprender sobre suas práticas educativas. Num ambiente acolhedor, sala ampla e clara
com possibilidade de mexer o mobiliário favorecendo a organização dos grupos, elas e
eles foram chegando. Apresentamos a proposta do ‘questionário de Proust’ e o grupo
encampou imediatamente. Ficaram um pouco surpresos porque esperavam atividades
mais formais. Organizados em seis grupos, de composição variada, tanto no que se
refere à quantidade de pessoas quanto à questão de gênero, os participantes se
agruparam e iniciaram a proposta. Os cadernos, distribuídos para os grupos
responderem às perguntas que quisessem, foram elaborados a partir das conversas e
dinâmicas que cada grupo construiu.

sumário 269
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Não propusemos um modelo para a realização da tarefa nem quanto ao formato


estético, na manipulação dos materiais oferecidos (cadernos e materiais escolares), nem
no que diz respeito à dinâmica de responder às perguntas (ex: Todos os participantes do
grupo respondem a todas as perguntas? Cada membro de grupo responde a uma
pergunta? As perguntas serão respondidas em duplas e etc...). Tampouco propusemos a
sequência ou atribuímos valor/ordenação/qualidade às perguntas.
Os participantes trouxeram a experiência escolar, a memória dos exercícios na
escola de responder a perguntas, de passar bilhetes aos colegas, de escrever em
cadernos. O ponto de partida comum aos presentes na oficina aflorava o processo de
escolarização, mesmo daqueles não teriam vivido especificamente a prática de trocar
cadernos e a responder questionários entre amigas.
As vinte e três perguntas impressas foram distribuídas para todos os grupos, que
responderam nos cadernos aquelas que quiseram da forma que melhor satisfizesse ao
grupo; assim, as produções foram bastante diversificadas. Alguns grupos decidiram que
cada pergunta seria respondida por cada participante enquanto outros escolherem que
cada pergunta seria respondida por um participante. Entendemos essa diversidade de
formas de tratar a mesma questão como possibilidades de promover a experiência
reflexiva, (NÓVOA, 1995; ZEICHNER, 1998 e 1995; e JOSSO, 2004) com potência
criadora e identidade própria, neste caso de cada grupo.
A partir da provocação das perguntas do questionário desenvolveram-se
tramas nas quais os acontecimentos promoveram continuidade, descontinuidade,
aproximações e rupturas em sequencias, para cada grupo, significativas. Como Larrossa
(2003) entendemos que quando narramos aos outros aquilo que nos acontece,
construímos o caráter (personagem) de quem somos e então nos construímos como
indivíduos particulares, como um ‘quem’. Para o autor a pergunta: “Quem somos?”, só
poderá ser respondida contando-se alguma história.
Com este olhar fomos tratar as respostas dos cadernos onde os grupos utilizaram
suas experiências estéticas e plásticas. Os cadernos ficaram coloridos tanto pelos
desenhos como na identificação das pessoas que respondiam ao usar cores específicas
na resposta e na assinatura do caderno. Também optaram por usar página inteira, meia
página, posição vertical ou horizontal do caderno. Todas essas possibilidades reforçam
as escolhas e, portanto, a autoria presente no fazer, uma grande capacidade de produção.
Dois grupos apresentaram uma contribuição à proposta elaborando uma
pergunta inicial: “O que te trouxe aqui?” e “Quem sou eu?” Esses grupos ampliaram a

sumário 270
VII Seminário Vozes da Educação

oficina, intervindo de maneira direta no modelo proposto: pergunta e respostas, trazendo


para o foco da oficina o locus, isto é o V Congresso Internacional de Pesquisa
(Auto)biográfica, e suas expectativas: amizade, empatia, arte, movimento, ação,
formação, subjetividade, afinidade, pesquisamigas, dinâmica e a identidade presente
nas respostas pessoais de cada participante - a dimensão humana.
Para analisar o material produzido, utilizamos a tematização conforme Fontoura
(2011), que salienta que na etapa de análise de dados ficamos com uma grande
quantidade de informações e que para que seja construída uma fundamentação teórica
bem estruturada é essencial uma técnica que nos oriente a fazer uma análise
aprofundada dos dados coletados. Esta autora traz uma proposta com um passo-a-passo
para organização dos dados coletados que é dividida em etapas para a melhor
compreensão e análise dos dados: 1) Transcrição de todo material; 2) Leitura atenta do
material; 3) Demarcação do que for considerado relevante; 4) Levantamento dos temas
de acordo com o agrupamento de dados; 5) Definir unidades de texto e unidades de
significado; 6) Separação das unidades de contexto do corpus; 6) Interpretação
propriamente dita.
Quando abrimos os cadernos identificamos que, na dinâmica construída pelos
grupos, não houve uniformidade na forma de desempenhar a tarefa de responder ao
questionário. Ao contrário, como as vinte e três perguntas não eram numeradas e foram
entregues soltas aos seis grupos, foram respondidas de acordo com o ritmo, escolha e
interesse dos participantes. Ainda assim, algumas perguntas estavam respondidas em
quase todos os cadernos apresentando maior incidência de respostas. Por outro lado,
encontramos também perguntas que só foram respondidas por um ou dois dos seis
grupos.
A tematização nos levou a respostas relativas às escolhas pessoais,
sentimentos/emoções, personagens e relacionamento.
Com relação ao agrupado escolhas pessoais, temos, por exemplo, na pergunta
relacionada à atividade favorita, respostas que destacam desde situações de lazer, como
“tirar fotos, dançar, fazer artesanato, escutar música, nadar, passear e tomar chimarrão”,
entre outras, e poucas referências à atividade pedagógica, como “dar aula, estudar, ler,
escrever, escola”. Com relação a preferências de cor, flor e pássaro, apenas um grupo
não respondeu; os cinco que o fizeram variaram muito, mas responderam às três
preferências. Parece-nos que esta questão não apresentava ameaças por ser terreno mais

sumário 271
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

neutro, o que talvez tenha possibilitado livre expressão de gostos por parte dos
participantes.
Perguntados sobre onde gostariam de viver, as opções foram muitas, tanto no
Brasil (Florianópolis, Natal, Bahia, Copacabana, São Paulo) quanto no exterior (Itália,
Berlin, Istambul), alguns elaborando suas escolhas, “na praia porque amo o mar”, “um
pouco em cada lugar com a possibilidade de sempre voltar”, e as sempre presentes letras
de músicas, “Além do arco íris deve ter um lugar bonito para viver em paz”, “Eu quero
uma casa no campo com um belíssimo jardim e muitas árvores, com meus livros
amores, amigos e nada mais”, entrando no espírito da arte como caminho para nossos
dizeres e fazeres. Relativo à escolha pela forma de morrer, nos cinco grupos que
responderam, muitos participantes optaram por “dormindo”, enquanto as outras opções
variaram entre “ao lado da família; cercado por quem me ama”, “em paz”, “sem sofrer e
sem dor” e “morrer de rir” ou ainda trecho de música “quando eu morrer não quero
choro nem vela quero uma fita amarela”, as duas últimas tentativas de fazer humor com
uma situação em princípio pouco confortável de ser falada.
Interessante ressaltar sobre a questão que pedia a palavra favorita, respondida
por quatro dos seis grupos, que em dois grupos surgiram palavras ligadas direta ou
indiretamente ao ofício docente, como “educação, ensinar, paciência, coragem,
responsabilidade”, e também sentimentos considerados positivos como “felicidade,
amor, amizade, justiça”. Já no que mais você detesta, “injustiça” revelou-se campeã,
com alguns correlatos como “mentira, inveja, traição, falsidade, preconceito”. É de se
registrar uma alusão a um dos times de futebol local, reconhecidos por sua intensa
rivalidade, momento lúdico na tarefa. E sobre os dons da Natureza que gostariam de
possuir, dois grupos responderam que seriam “a força de se renovar” e “dom da vida,
dom do amor, dom da arte”.
Relacionado ao agrupado sentimentos e emoções, os participantes falaram do
que os faria felizes, respondida por cinco dos seis grupos, “É viver cada momento
intensamente”, “Estar com minha família; ter muitos amigos; vida; ser livre; estar em
paz consigo mesmo; poder conhecer a si mesmo e compreender a si cada vez mais;
simplicidade; encontros; sabores; viagens; viver com saúde; amor”, “Sol, mar rede,
família; minha família; ser eu como sou; não existe felicidade sim momentos felizes.
Viajar (2) conhecer o mundo; tranquilidade; paz mundial; se olhar no espelho e não ter
motivo para se envergonhar; minha filha com saúde; justiça social”, “Estar com pessoas
que amo e que me amam” e “nenhum repetente”.

sumário 272
VII Seminário Vozes da Educação

Sobre como estavam se sentindo, quatro grupos responderam a questão, na


maior parte das vezes com respostas retratando sentimentos positivos, como felicidade,
realização, alegria, animação, empolgação, e uma fala emblemática de uma participante,
que escreveu: “Feliz, realizada com o que encontrei no V CIPA. Estou iniciando a
carreira de professora e saio daqui esperançosa e confiante da minha vontade de
colaborara com a educação na área da pesquisa e também na sala de aula”. Dois
depoimentos indicaram cansaço e uma “relativamente incomodada”, mas não houve
trabalho sobre isso nos grupos.
Com relação ao agrupado que consideramos personagens, compreendendo
todas as questões que se referiam a escolhas de pessoas a ser ou a admirar no mundo, os
grupos transitaram pelo mundo todo, pelas diferentes linguagens artísticas, trazendo
nomes de filmes, frases de músicas (“Meus heróis morreram de overdose, meus
inimigos estão no poder”), pessoas reais, compositores, artistas, escritores (Madre
Tereza de Calcutá, Chico Buarque, Julia Roberts, Mário Quintana, Matisse, para citar
alguns de áreas diversas), e ainda personagens de ficção, como sugeria uma das
perguntas, como Penélope Charmosa e Super Homem. Um grupo destacou como única
resposta para a pergunta “quem são seus autores favoritos”, o próprio grupo (“Nós”),
um plural que inclui o grupo, todos os participantes da atividade proposta.Ao trazermos
heróis e heroínas da vida real para a cena, os grupos citaram familiares, nomearam
professores de escola e a disciplina que lecionavam, e ainda encontramos referências
políticas como “pais e mães brasileiros que criam filhos com dignidade”, e um destaque
para a categoria docente, “os professores”.Apenas dois grupos responderam à questão
sobre personagens históricos desprezados, com dois votos para Hitler e um para o
governador do estado.
Sobre o agrupado relacionamentos, algumas falas interessante, como por
exemplo, relacionadas ao defeito mais fácil de perdoar, temos: “egoísmo, esquecimento,
ignorância, grosseria, omissão, hipocrisia, displicência, gula, estupidez, mau humor,
aquele que nem notei”, muitos para respostas de três dos seis grupos, mostrando que
esse pode ter sido um tema bem discutido.Com relação à coisa mais importante em um
homem e em uma mulher, apenas um grupo, dos três que responderam, fez distinção de
gênero, atribuindo à mulher bom humor e atenção e ao homem lealdade; as outras
respostas foram: respeito, verdade, autenticidade, integridade, capacidade de dialogar e
ser cúmplice, caráter e sentimento. Os mesmos três grupos responderam ao que mais

sumário 273
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

aprecia nos amigos, com respostas semelhantes à questão anterior: afeto, cumplicidade,
lealdade, sinceridade, atenção, amizade, honestidade, acolhida e escuta.
Sobre tragédias, temos variações nos cinco grupos que responderam, desde “Não
existir mais sol”, “Guerra; marginalização; o sol deixar de existir; morte de um filho;
deixar de sonhar; perder a memória; perda de um familiar”, “O fim do mundo; perder
minha família; doença sem cura para meus familiares; acabar águia potável; a volta da
ditadura; o fim da bondade e da dignidade humanas; morrer sem ir pra França e visitar o
museu Dali; morrer sem concluir pelo menos um dos meus projetos; morrer asfixiado;
temporais com desmoronamento; perder os sonhos e a esperança”, “Dissolver a minha
memória afetiva” e “Perder minha filha, não aprender com a vida”.
O lema da sua vida como atividade nessa proposta foi viabilizado pelas
narrativas coletivas nas quais as aprendizagens se deram; quatro dos seis grupos
desenvolveram o tema, trazendo “viver o hoje”, “aprender”, “sintonizar com o Divino e
avançar...” e “amor; vida; democracia e justiça social; família; mudanças; acreditar
sempre; a arte tem mais valor que a verdade; no círculo com todos de mãos dadas
seguimos”, ideias de positividade, crença, valores e trabalhos coletivos, perspectivas
presentes no imaginário docente. Enfatizamos a perspectiva da livre escolha como uma
visão ainda pouco comum na estrutura escolar, que se bem vivenciada pode ampliar em
muito o potencial de espaços formativos docentes.
Nossa leitura dessa proposta aponta para as contribuições da pesquisa
(auto)biográfica na formação docente como libertadora de alguns scripts que fazemos
para nós e que a sociedade faz para o espaço educativo, entre outros. A ideia
disparadora do questionário não trabalhava com conteúdos vistos como escolares, mas
sim com a bagagem de experiências e conhecimentos trazidos pelos participantes, o que
possibilitou construções próprias, já que a liberdade favorece às pessoas se colocarem,
se apresentarem. O autoconhecimento propiciado por uma atividade assim traz em seu
bojo o que Josso (2004) nos pontua como experiência formadora, oportunizando a
presença para si e para a situação, deixando vir à tona fatos, personagens, músicas,
filmes presentes nos cadernos, e um conhecimento de si presente no cotidiano do ser
professor/a.
Os elementos estéticos também não foram buscados como resultados plásticos,
mas sim como instrumentos para os grupos dinamizarem a proposta, na medida em que
planejaram entre eles como dispor dos recursos que tinham para visibilizar a produção.
Assim, as soluções estéticas foram diversas, combinadas entre os participantes, tanto o

sumário 274
VII Seminário Vozes da Educação

uso de cores, as opções pelos desenhos, colagens, escritos, páginas coloridas, disposição
das perguntas recebidas e as respostas dadas, mostrando autonomia de trabalho e
possibilidades de combinações sem nenhuma determinação prévia.
Esta atividade não foi apresentada como ‘uma avaliação ao final da palestra’,
muito pelo contrário. A apresentação foi concebida, na perspectiva (auto)biográfica,
como um encontro entre narradores, contadores de suas histórias, trajetórias e visões de
mundo onde a docência foi o ponto balizador, mas não unificador. As diversas formas
de organização dos grupos ao responderem as perguntas, os caminhos escolhidos na
seleção e formato para a montagem dos cadernos expressaram as negociações de
processos e de escolhas individuais e coletivas que legitimaram a dimensão autoral,
produzindo aprendizagens.
Apostamos em processos formativos compartilhados, lúdicos e conversados, por
acreditarmos na potência de espaços narrativos de si, coletivos e criativos. Ao propor
uma atividade como a oficina relatada, espaços como a Universidade ou como eventos
científicos podem se tornar verdadeiros espaços educativos para professores
interessados em aprimorar suas práticas a partir de reflexões sobre seus fazeres, saberes
e trocas de experiências com pares igualmente preocupados com seus processos
formativos.

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sumário 276
VII Seminário Vozes da Educação

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sumário 277
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A “ESCRITA DE SI” EM UM MEMORIAL DE FORMAÇÃO: DIALOGANDO


COM A PROFESSORA JACQUELINE DE FÁTIMA DOS SANTOS MORAIS

Profª. Ma. Claudia Jorge de Freitas


SME-RJ
claudyageorge@gmail.com

Profª Drª Jonê Carla Baião


Cap. UERJ
jonebaiao@gmail.com

Este texto é parte da minha dissertação do curso de mestrado profissional, já


concluída em agosto de 2019. Trabalho orientado pela Profª. Drª. Jonê Carla Baião
(CAP - UERJ) e coorientado pela Profª. Drª. Jacqueline de Fátima dos Santos Morais
(FFP - UERJ), (InMemoriam).
Pretendemos aqui dialogar com os escritos da professora Jacqueline Morais,
dando continuidade aos diálogos que tivemos em (co)orientação. A escrita deste texto é
mais uma necessidade de não findar diálogos/conversas com a ‘Jacque’. Atravessada
que ainda estamos pela sua partida precoce.
‘Não é fácil escrever, é duro como quebrar rochas’; Jacque, nos
empresta essa epígrafe da sua tese (2006) para falar das nossas parcerias?
Podemos afirmar que não é fácil escrever, mesmo quebrando as rochas da dor
ainda recente de sua partida.
Começamos dialogando com os seus escritos sobre o estilo do autor Walter
Benjamim, seu mais dileto autor. Ressignificaríamos o que escreveu sobre o Benjamin
sem conseguir separar o que era ela falando dele ou seria era ela mesma falando de si,
de seu estilo, assim: Benjamim (ou seria Jacqueline de Fatima dos Santos Morais?) nos
convidou, por seu estilo estético, a um encontro onde conhecer o presente, vislumbrar o
futuro e entender o passado é nossa única forma de salvação42.

42
Citaçao retirada de um texto acerca de outro texto disponibilizado no site:
https://walterbenjamincinema. wordpress.com/tag/jacqueline-de-fatima-dos-santos-morais. Acessado em
18/10/2019.

sumário 278
VII Seminário Vozes da Educação

A dissertação intitulada: “Tia, não aguento mais sofrer tanta humilhação”:


Narrativas Tensionadoras de Gênero nos Anos Iniciais, faz referência a um episódio
vivenciado por mim, na escola em que leciono.
Jacqueline me contara um dia, que Regina Leite Garcia dizia em suas palestras
sobre pesquisa, que haviam pesquisadores que procuram um tema de pesquisa e que
outros pesquisadores, no entanto, são encontrados por um tema. Me incluo na segunda
categoria. Meu tema de pesquisa da dissertação surgiu de uma experiência vivida na
escola em que leciono. Certo dia, circulando em uma das rampas de acesso da escola,
fui abordada por uma colega, acompanhada de uma criança em prantos. A professora
me relatou que a criança não era aluna dela, mas que havia ido até a sua sala para
queixar-se do comportamento de seus colegas de turma e de sua atual professora. Ela
pediu para que a criança repetisse o que que havia dito. Entre lágrimas, a criança
repetiu:
- Tia, eu não aguento mais sofrer tanta humilhação.
Algumas crianças de turma a tinham chamado de “bichinha” e “viadinho” e
como reação, aquela criança havia batido nelas. Sua professora a repreendeu, dizendo
que ela não deveria ter batido nos colegas sem, contudo, ter conversado com as outras
crianças sobre o ocorrido, levando apenas ela para a direção.
Este episódio me instigou bastante: afinal tal temática reflete o momento atual.
As questões de gênero envolvem lutas legítimas pela garantia de direitos das pessoas
lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, intersexuais e queer
(LGBTIQ).
Percebia cada vez mais o quanto as pesquisas nesse campo precisavam ser
realizadas de forma séria, atenta e minuciosa e foi com muita seriedade e atenção, que,
durante a minha pesquisa busquei ser alguém que se dispunha a compreender
acontecimentos que me instigavam a um processo de percepção de que eu era, como
parte da minha identidade docente, professora pesquisadora do cotidiano vivido, como
sempre defendeu Freire (1996). Jacque me instigava o tempo todo para que não me
colocasse no lugar de “redentora”, ou mesmo, “salvadora da pátria” e naquele momento,
diante da certeza da pesquisadora que me tornei, mais entendia isso.
A criança ao qual me referi no episódio ocorrido à época tinha 08 anos de idade,
e frequentava uma turma de 2º ano do ensino fundamental. Era descrita pela sua
professora como uma criança “agitada” e algumas vezes “agressiva”. Segundo a
professora preferia brincar com as meninas e gostava “se vestir e se maquiar como

sumário 279
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

menina”. Não raras vezes, dizia que gostaria de “ter nascido uma menina” para as/os
colegas. Em conversa posteriora criança confirmou o que a professora havia dito sobre
ela.
Dentro da lógica binária, ao demonstrar comportamentos e atitudes
identificados como sendo do comportamento feminino, o que nessa lógica contradizia
seu gênero, acabava sendo chamado pelas outras crianças de sua classe escolar de
“viadinho”, “bicha”, “bichinha”, “mulherzinha”.
As ocorrências de conflitos com ela na escola se tornavam cada vez mais
constantes.
Assim, meu percurso de vida foi atravessado pela diferença deum corpo de
criança, marcado por normas, gênero, vigilância e controle. Um corpo apontado em
muitas escolas como uma “monstruosidade” (FOUCAULT, 2001) mas que resistia e
insistia em existir. Um corpo que insistia em “dizer” para nós, na escola, que tudo
aquilo que se construiu acerca dos corpos, gênero, sexualidade, lógicas, padrões e
normas era muito frágil. E que para ser mantido no espaço escolar, necessitava ser
constantemente afirmado.
Desde o início, no qual se deu meu encontro com aquela criança, até o momento
da escrita da minha dissertação, foram vários outros encontros, várias conversas,
narrativas, cenas de conflitos e de alegrias que compartilhamos: eu e a criança. Nós. A
grandeza de nossas experiências repartidas trouxe constantes reflexões à minha
formação pessoal e profissional. Os diálogos que foram tecidos e enredados na trama e
no drama de nossas vidas foram suleando minha pesquisa, dando corpo a ela. Este
nosso encontro resultou na descoberta de como é necessário olhar para o cotidiano com
olhar de estranhamento, buscando, indagando. Como é importante assumir o que diz
Freire:

Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que‐fazeres se


encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino, continuo buscando,
procurando. Ensino porque busco, porque indago e me indago. Pesquiso para
constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso
para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade
(FREIRE, 1996, p. 29)

Logo, podemos compreender a pesquisa usada na e como forma de conhecer,


sendo uma das mais competentes e importantes formas de intervir nos processos de
aquisição e produção do conhecimento, pois ela incorpora de maneira precisa, a prática

sumário 280
VII Seminário Vozes da Educação

com a teoria, possibilitando também que se tome consciência de que como seres
inacabados e incompletos, estamos vivendo sempre provisoriamente no que diz respeito
a ele e sua transitoriedade.
Ao assumir uma postura de professora pesquisadora, parece vivermos com uma
constante insatisfação, que é permanentemente impulsionada, alimentada, pelo
movimento continuo e incessante da busca por respostas frente aos novos
questionamentos que surgem nas/das nossas práticas diárias, já que partindo do
cotidiano, o conhecimento é proativo, vivo e por conta disso, está frequentemente sendo
concebido (a partir dos novos conceitos) e desconstruído (enquanto velho e
ultrapassado) sem contudo desconsiderar, tudo que foi construído e apreendido
positivamente através de nossas práticas que experienciadas, devem ser sempre
refletidas, pensadas e compartilhadas.
A ideia de iniciar a dissertação com a escrita de um memorial de formação
partira da coorientadora, que chegava nos meados de 2018, quando a pesquisa já havia
andado um bocado sem que se pensasse nesta possibilidade.
Sua chegada se deu através do convite da orientadora, após a sinalização do meu
desejo em atravessar os caminhos das narrativas na minha pesquisa, logo depois de ter
voltado do VIII Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)biográfica, lugar onde
experimentei o meu encantamento pelas pesquisas com narrativas, histórias de vida,
entre outras. Naquela oportunidade apresentei parte do texto da minha pesquisa junto a
uma amiga de trabalho e de mestrado, a Profª. Naara, que há muito já caminhava por
esses caminhos.
A Jacqueline estivera presente nesse congresso, mas, nosso contato, não foi além
de conversas informais durante os momentos em que nos encontramos, ali naquele
espaço, ou mesmo fora dele.
Retornando ao Rio de Janeiro, em encontro com minha orientadora, manifestei o
desejo de trazer para a pesquisa as narrativas do meu “sujeito da/na pesquisa”. Talvez
por eu não saber por onde começar e por ser uma experiência na qual ela não estivesse
muito a vontade pelo fato de não ser algo que ela estivesse familiarizada, surgiu a
possibilidade do convite de uma coorientação.
O nome de Jacqueline surgiu como opção, porque ambas eram amigas de longa
data (orientadora e coorientadora são amigas há quase 30 anos) e porque ela é uma
referência muito forte no que diz respeito às pesquisas dessa natureza.

sumário 281
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Ela aceitou de imediato e logo no primeiro encontro pude experimentar


sensações de alegria, firmeza, gentileza e sabedoria. Jacqueline era alegre, firme, gentil
e de um conhecimento ímpar. Sua chegada representou para mim um porto onde eu
poderia, enfim, embarcar por mares que nunca havia navegado, porém, muito desejado.
Fui logo convidada por ela a escrever o meu memorial de formação. Já havia
escrito alguns durante a minha vida. Mas nada se comparava ao que ela me propôs
escrever ali, com toda aquela maestria, digna somente àqueles que detém a sabedoria
por todo o caminhar que já fez ao longo de sua jornada.
E foi ali, no primeiro encontro com a Professora Jacqueline, que comecei a
entender o conceito de um memorial de formação e suas possibilidades no campo
acadêmico e mais ainda, compreender sua importância principalmente para a minha
pesquisa que ali ainda estava em andamento:

Definir memorial de formação pode revelar concepções, usos e objetivos de


uma prática escritural que vem crescendo no campo acadêmico, seja como
proposta de trabalho em disciplinas, como parte introdutória de dissertações,
teses e trabalhos de conclusão de curso, seja como objeto de investigação em
pesquisas de diferentes áreas do conhecimento. São inúmeros os trabalhos
que partem das biografias, autobiografias, história de vida, diários, entre
outras abordagens de investigação. Em todas elas, a idéia que predomina é de
que todas as histórias, sendo singulares, merecem ser narradas (MORAIS,
2008, p.2).

No meu caso, o memorial seria utilizado como parte introdutória da minha


dissertação. Durante sua escrita me ajudara na construção do meu “eu professora” e da
descoberta de quando se dera meu encontro com as diferenças, algo que descobri ser
marcante em meu caminhar, e que voltava então, através da minha pesquisa. No
entanto, ele não foi só o primeiro capítulo da minha dissertação de mestrado, como era
na proposta inicial, mas permeou durante todo o texto, sendo o condutor de minhas
reflexões, análises e conclusões. Para quem já tem formação pode parecer fácil, mas no
meu caso e da minha orientadora, foi significativo... graças à condução da Profª
Jacqueline.
Foi a partir das palavras de Cecília Meireles que iniciei meu memorial. Nelas,
encontrei um sentido para sua escrita, que era buscar um dizer que me apresentasse na
complexidade de um dizer que não traduzisse quem sou a partir de palavras
simplificadoras ou muito complexas:

sumário 282
VII Seminário Vozes da Educação

Escreverás meu nome com todas as letras, com todas as datas - e não serei eu.
Repetirás o que me ouviste, o que leste de mim, e mostrarás meu retrato - e
nada disso serei eu. Dirás coisas imaginárias, invenções sutis, engenhosas
teorias - E continuarei ausente. Somos uma difícil unidade, de muitos
instantes mínimos - E isso seria eu (MEIRELES, 2001).

Foi assumindo que sou uma “difícil unidade, de muitos instantes mínimos”,
composta de múltiplos e pequenos gestos, de narrativas de acontecimentos e de
diferenças e que, por muitas vezes, fizeram com que eu saísse em busca de outros
instantes, que encontrei um dizer que revelasse minha trajetória marcada por lutas e
glórias.
Não se tratou de tarefa fácil escrever sobre mim. Foi uma atividade complexa
por ser necessário sair de mim, estando ainda em mim. Necessitei analisar o que/quem
sou, rememorar percursos, revisitar caminhos de vida, buscar compreender os processos
de transformação que eu vivi e ainda vivo, ressignificar aprendizagens, narrando e
registrando para os olhares alheios:

Os memoriais de formação possibilitam a recuperação dos acontecimentos de


uma vida e seu registro não somente pela memória, falha não poucas vezes,
mas pelo escrito. Assim, é possível a leitura diacrônica do vivido e sua
ressignificação, feito não somente por aquela que viveu e registrou o
acontecido, mas também por quem a lerá, como no caso dos memoriais
produzidos como parte integrante dos textos monográficos (MORAIS, 2008,
p. 3).

E foram muitos os registros, os “instantes mínimos” (MEIRELES, 2001)


percorridos e vividos em minha trajetória e nessa “difícil unidade” (Ibidem) que sou e
composta também por tantas/os outras/os que de múltiplas formas produziram saberes,
sabores, ou apenas silêncios em mim.
Seguindo as orientações da Jacqueline, o meu memorial deveria trazer
logo no início, o exemplo do meu próprio corpo. Um corpo com 52 anos de existência
que, embora visto como feminino, não cabe (e nem pretende) se enquadrar no padrão e
na norma tradicional. Ela dizia que minhas singularidades deveriam estar ali, presentes
no meu texto, logo “de cara”, para que o leitor compreendesse de primeira o que minha
pesquisa traria durante sua escrita: a necessidade de romper com os padrões impostos
pela norma (FOUCAULT, 2001) que em nossa sociedade está ligada aos meios que são
capazes de uma certa forma, vigiar, corrigir e disciplinar tanto a vida como o corpo dos
indivíduos.

sumário 283
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O conceito de norma é algo muito presente em minha pesquisa. A sua escrita


traz em diversos momentos os questionamentos sobre ela, afinal, é em favor dela que
nossos corpos, gêneros e sexualidades são vigiadas, cobradas e controladas. Corpos,
gêneros e sexualidades que, quando não se encaixam conforme deseja a norma, tornam-
se excluídos.
O conceito de exclusão que atravessa o conceito da norma, também foi
abordado no memorial, por compreender que ambas caminham juntas em uma estrada
ontológica, longínqua, sinuosa, caótica, na qual a experiência de ser diferente pode
representar o atravessamento de dores, sentimentos ambíguos e experiências dolorosas.
Foi por Larossa (2002) que fui convidada a pensar a experiência a partir da díade
experiência e sentido, como algo que sofri e não como algo que fiz, ou que me fizeram.
Sendo assim, a minha pesquisa também trouxe algumas experiências (LAROSSA,
2002), que vivi com uma criança, que me atravessou (sujeito da/na pesquisa), que
cruzou meu caminho, produzindo acontecimentos e gerando o desejo de narrá-las
(BENJAMIM, 1985) por escrito através da minha dissertação.
Sobre narrar, certo dia li em algum lugar (não me lembro onde), que, “todos
somos narradores/contadores de história” e que desde que “o mundo é mundo”,
narramos nossas histórias, nossas memórias e, consequentemente, nossas experiências.
Escrevê-las tornava-se, então, um ato de rebeldia. Uma ação que envolvia
debruçar-me sobre algo que pensava, lembrava, problematizando-o. Implicava levar em
conta o tempo da experiência e o tempo da escrita. Também o espaço no qual a
experiência ocorreu e o espaço onde se daria a escrita. A articulação entre passado e
presente atravessava tanto o ato de rememorar o vivido, quanto o de escrever o
lembrado.
Benjamim (1985, p. 223) chama atenção que:

o cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os


pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu
pode ser considerado perdido para a história.

Entendo que Benjamin nos faz um convite ético com a história: aquilo que tenha
acontecido um dia necessita ser narrado, independentemente do valor que possa parecer
ter esse acontecimento. Se ele representa um marco muito grande para um determinado
contexto ou tempo, ou mesmo um pequeno detalhe, deve ser narrado para que não se
perca no esquecimento. Foi a partir desse compromisso que minha investigação foi

sumário 284
VII Seminário Vozes da Educação

sendo traçada. Uma investigação que trouxe pequenos gestos e vozes de uma criança
“diferente” às voltas com suas “diferenças” na escola.
Ferreira (2011, p. 129) aponta que: “O trabalho do cronista da história não se
realiza sem uma discussão sobre a reminiscência, ou seja, sem uma dedicação ao
trabalho de compor um fio narrativo que reconheça a relação entre as temporalidades
históricas”, de forma que não só se escreva por escrever, mas que se pense sobre aquilo
que escreve de modo a compreender a experiência.
As narrativas muitas vezes se dão por caminhos construídos através das
memórias, das experiências vividas ou ouvidas, de nossas histórias de vida e
aprendizagens ao longo dela. Comigo não foi diferente, para narrar minhas experiências
precisei recorrer às minhas memórias, a fim de compartilhar minhas experiências sob
forma de texto escrito.
Sendo assim, a escrita do meu memorial possibilitou-me revisitar e compartilhar
memórias e experiências com outros e outras, permitindo algumas ressignificações e
transformações importantes no que diz respeito à construção de minha identidade
pessoal e/ou profissional. Logo, foi a partir do meu memorial que iniciei a tentativa de
um diálogo com a minha trajetória como pessoa e como professora, através das
experiências que me atravessaram e que me trouxeram até aqui.
Assim, para Morais (2008, p. 3):

A narrativa sobre si, contida nos memoriais de formação, pode funcionar


como uma das possibilidades que o professor concede a si próprio para
melhorar a sua capacidade de ver e de pensar sobre o que faz. Ao escrever
sobre sua própria vida, cada um pode construir uma forma de registro
reflexivo e não meramente descritivo. Assim, podemos destacar dois
elementos presentes nos memoriais de formação e que revelam sua
importância: a riqueza de informações que apresenta a sistematicidade do
registro e a reflexão sobre a prática, num processo de re-leitura e reescrita do
cotidiano.

A autora revela que o memorial é parte importante no processo reflexivo da


prática que se vivencia em seus processos profissionais relacionados ao saber/fazer.
Quando se distancia de si, para escrever sobre si, ela toma conhecimento de suas ações
acerca das práticas que exerce no cotidiano, compreendendo de forma mais dinâmica
sua natureza docente e sua relação pessoal com as formas que elegeu para o seu
caminhar. Foi esse o desafio que me coloquei no primeiro capítulo da minha dissertação
e nos demais capítulos.

sumário 285
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Falar da minha trajetória, foi rever as minhas histórias, as histórias dos meus
pais e de suas infâncias e adolescências e em contrapartida compreender as condições
de desigualdade social e a fragilidade de políticas públicas que favorecessem as
camadas mais empobrecidas da população, que no caso deles, os obrigou a começarem
suas vidas laborais muito cedo.
Partindo para as memórias do local no qual eu cresci e vivi por quase 40 anos -
São Gonçalo, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, no estado do Rio
de Janeiro – pude conhecer suas características locais, que no início eram bem rurais,
bem como os processos que levaram a sua transformação.
Foi rememorando a cidade e consequentemente o bairro e a residência em que
vivi (uma casa simples e modesta construída por meu pai, localizada em um pedaço do
quintal cedido por meu avô paterno, que morava em uma casa construída nos fundos
desse mesmo quintal, com minha avó, minhas quatro tias e meus três tios), que cheguei
até as memórias de minhas tias. Quase todas eram professoras, com exceção de uma,
que era secretária de uma escola particular e que tão logo terminei o Jardim de Infância,
aos 4 anos, me alfabetizaria juntamente com outros quatro vizinhos, em sua casa.Ela
não tinha formação pedagógica, sendo, portanto, uma professora “leiga”.
Aqui compreendia, como nos dizem Alves e Garcia (2000), que nos tornamos
professores nas relações que se dão no ensinar e aprender. Minha tia não havia cursado
o Normal. No entanto, nas suas relações durante o tempo em que frequentou a escola,
no curso regular, ou mesmo em suas experiências pessoais, havia aprendido atitudes e
práticas relacionadas ao saber ensinar. Logo, a professora que ela se tornara, “participa
de uma multiplicidade de redes e é nestas redes que vai se formando e influindo para
que tantas pessoas de cujo processo ela nem se dá conta também se formem” (ALVES;
GARCIA, 2000, p. 9).
Foi ali, naquele momento, que compreendi, também, que comigo não se deu
diferente. Lembraria de detalhes ínfimos, porém fortes, como o quadro de giz preso à
parede e do quanto gostava de escrever nele. Talvez não soubesse ainda, mas essa
experiência me influenciaria mais tarde e acrescentaria marcas ao meu percurso no que
diz respeito a tornar-me professora.
Percebi também, refazendo meu percurso na infância, a influência de minhas
outras três tias. Essas, diferentes da outra, eram professoras formadas e foram as
responsáveis pela minha “iniciação pedagógica”, já que era muito comum envolver-me
nas tarefas de preparação de lembrancinhas para suas turmas, auxiliá-las na separação

sumário 286
VII Seminário Vozes da Educação

de provas, ou mesmo, “rodar” atividades no mimeógrafo (objeto hoje, praticamente


extinto no cotidiano escolar), entre outros afazeres pedagógicos, que, como “instantes
mínimos”, lembrando mais uma vez Cecília Meireles (2001), me aproximavam da
trajetória que mais tarde abraçaria: seguir a carreira do magistério.

Quando compartilhamos memórias e experiências pessoais em um texto


como o memorial de formação, além de mobilizarmos conteúdos que são
individuais acordamos sentidos construídos na vida coletiva, sentidos que são
nossos, mas são, ao mesmo tempo, de nosso tempo e lugar. Sentidos
rebeldes, sentidos moventes, sentidos de vida (MORAIS, 2008, p. 5-6).

Foi assim, através de minhas memórias, na escrita do meu memorial, que eu era
remetida a especificidades próprias como, meu processo de escolarização, as
experiências que tive nesse período com as professoras e os professores que tive e com
as amigas e os amigos que fiz e que dividiram suas histórias comigo e que, portanto,
estão presentes de maneira subjetiva, na minha formação docente:

Assim essa narrativa caminha junto à memória, ao que se marca. O narrar


permite que essa memória individual se relacione com uma memória
coletiva, à medida que essa memória individual e singular se constitui a partir
da apropriação e mediatização do coletivo. Assim, é ressaltado a dimensão
política dessa narrativa que permite se fazer ouvir não só a história oficial e
sim a narrativa destes sujeitos da história, na História (MORAIS, 2008, p.7).

Durante a escrita do meu memorial, seguindo orientações da Profª. Jacqueline,


tive a oportunidade de conhecer e ler o livro “Como Me Fiz Professora” (2000) sob a
organização de Geni Vasconcelos. Lá, encontrei várias narrativas de docentes que,
assim como eu, se constituíram professoras. Mulheres que, por diferentes razões
acabaram por ingressar no magistério.
As histórias dessas mulheres, que estão associadas ao contexto social, histórico,
econômico e político vividos por cada uma delas de maneira singular, levaram-me a
pesquisar e como consequência, compreender que o processo de formação docente se
dá, não apenas no campo institucional, mas também, relacionada aos significados
produzidos nesses contextos.
Foi assim que compreendi que o processo formativo docente acontece durante as
experiências que se dão na trajetória da escolarização do indivíduo, bem como durante
aquelas experiências que se constroem em outros espaços aparentemente não
relacionados à formação de professoras, como por exemplo: amigas, professoras, entre
outras, já que, “ao trabalhar com/na narrativa a rememoração não permite o

sumário 287
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

esgotamento da experiência numa única vivência. Ao mesmo tempo esta experiência se


relaciona com outras num entrecruzamento de vidas, tempos e experiências, fragmentos
que remetem a totalidade” (Morais, 2008 p. 8).
Compreendi, também, que essas experiências encontram-se e estão relacionadas
tanto com a prática quanto com a maneira com que se vê à docência de forma individual
ou coletiva, e, portanto, trarão as variantes do seu processo de formação ao longo da
história da trajetória docente, vivida e experimentada em outros espaços formativos que
não são, necessariamente, aqueles em que estão em jogo à docência, levando-me a
compreender que a minha “escolha” profissional pela carreira do magistério não se deu
apenas por e a partir de um único fator, mas, pela combinação de elementos pessoais e
sociais que me aconteceram, como por exemplo, os saberes que construí através das
minhas experiências com minhas tias e do cotidiano que vivenciei com elas e outras
situações que ficaram marcadas no meu imaginário e nas minhas memórias sobre a ideia
que eu tinha do que era ser professora.
Todos os acontecimentos durante o percurso até aqui caminhado, foram
indicadores importantes levando-me hoje a compreender principalmente a influência
familiar no meu percurso formativo, mas, não só isso. Compreendera principalmente,
que os marcadores de gênero e classe também são questões bem pontuais no caminho
que leva as mulheres ao magistério, me influenciando para que terminando o então 1º
grau (hoje EnsinoFundamental), decidisse sobre fazer ou não um curso
profissionalizante no 2º grau (hoje Ensino Médio), seguindo a carreira do magistério, já
que:

Deste modo as pesquisas educacionais que se desenvolvem a partir de uma


abordagem biográfica não só centram-se nos aspectos históricos em si, mas
apontam para um repensar as políticas de formação de professores à medida
em que levantam aspectos fundamentais na constituição do profissional de
educação mas que são desconsiderados nos cursos de formação que, em
geral, priorizam aspectos técnicos e metodológicos (MORAIS, 2008, p. 12).

E foi sob a égide desses dois marcadores que ingressei no Curso


Pedagógico (antigo Curso Normal), e no qual pude me encantar cada vez mais com
aquele universo: crianças, carteiras, cadernos e livros. Ali, uma vez mais, encontrava
“instantes mínimos” (MEIRELES, 2001) que faziam com que eu avistasse cada vez
mais a possibilidade de tornar-me uma professora e compreender os significados
constituídos e imbuídos, escondidos e aparentes, ditos ou silenciados durante a minha
trajetória de vida em formação:

sumário 288
VII Seminário Vozes da Educação

Quando se fala ou se lê, considera-se não apenas o que está dito, mas também
o que está implícito, os não-ditos, mas que também estão significando. E os
implícitos podem, de alguma forma, sustentar o dito, mostrar o que se opõe
ao dito, maneiras diferentes de falar o que se disse etc. Assim os sentidos de
um texto, falado ou escrito, não estão necessariamente no texto, mas na
relação do texto com outros textos (existentes, possíveis, imaginários)
(MORAIS, 2008, p.13).

Logo, as pesquisas em educação, precisam, além da teoria, demonstrar, mostrar,


narrar os acontecimentos experienciados, pois somente a teoria não daria conta do que
acontece na escola. Para falarmos desse espaço, precisamos vivê-lo como parte dele, e
foi nesse caminho que percorri minha pesquisa.
Durante a realização desta pesquisa pude experimentar caminhos antes nunca
percorridos, e nesses caminhos, enquanto professora-pesquisadora, fui também uma
aprendente das experiencias pelas quais passei e que me atravessaram, proporcionando-
me um intenso processo de formação e transformação, de forma que jamais retornarei
ao local de onde parti. Isto me foi possibilitado através do meu memorial e das
pesquisas que me propus fazer durante minha caminhada para a escrita da minha
dissertação.
As inquietações vividas durante o processo de sua escrita, permitiram-me que
saísse em busca de reflexões que trouxessem respostas as minhas dúvidas e que me
fizessem compreender as potencialidades de minha formação, quer pela recriação dos
sentidos e significados “trabalhados”, que agiram para a contribuição de provocações,
quer pelas instigações que possibilitaram mudanças tanto no aprender, quanto no
ensinar.
Finalizamos afirmando que “a rapidez, o imediatismo e a alienação parecem
imperar, querer partilhar memórias e experiências parece em um texto como memorial
de formação significar agir a contrapelo: buscar um outro tempo e um outro lugar”
(MORAIS, p. 14). Digo isso, porque escrever este texto, é como se prosseguisse com
meu memorial.
‘A narrativa é sempre parte do vivido, nunca o vivido em sua totalidade. Apesar
disso, nos diz Benjamin (1996), um bom narrador busca manter fidelidade aos
acontecimentos’ (Morais, 2006, p. 157).
Trazer as memórias do meu encontro e caminhar junto a professora e amiga
Jacqueline de Fátima dos Santos Morais, é trazê-la viva, como parte de mim...em mim.
Sua voz e sua determinação em defesa por uma educação de qualidade, estarão para

sumário 289
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

sempre presentes em nós através das nossas memórias e escritas. Sua presença forte e
acolhedora se fará presente em cada um que teve o privilégio de conhecê-la e de com
ela conviver e aprender.
Damo-nos conta, uma vez mais, de que é preciso mais que palavras para
que o encontro do presente com o passado se dê. É preciso, especialmente, coragem
(Morais, 2006, p. 125).
Então, Jacqueline de Fátima dos Santos Morais, nossos cafés, bolos e conversas
de orientação e coorientação parecem ter ficado lá no passado dos cafés da UERJ e de
outros lugares em que nos encontrávamos à três, mas os diálogos que levamos para
outras ‘paragens’, esses carregamos sempre conosco, com ‘coragem’, especialmente
porque: as pessoas não morrem ficam encantadas ... a gente morre é para provar que
viveu. (Guimarães Rosa).
Encontro de orientação e coorientação em 23/06/2019

Fonte de arquivo pessoal.


JACQUELINE, PRESENTE. ONTEM, HOJE E SEMPRE!

Referências

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Leite. (Org.) A invenção da escola a cada dia. Rio de Janeiro: DP&A. 2000.

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mnemosine/article/viewFile/233/pdf_218>. Acesso em: 28 fev. 2019.

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VII Seminário Vozes da Educação

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volta de 1900” de Walter Benjamin. 2010. Disponível em:
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VASCONCELOS, Geni Amélia Nader. (org.). Como me fiz professora. Rio de


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sumário 291
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

NARRATIVAS PROFUNDAS: REFLEXÕES AUTOBIOGRÁFICAS NA


DISCIPLINA DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO43

Vânia Medeiros Gasparello


FFP/UERJ
vania.mg@uol.com.br

Introdução

O campo disciplinar da área de Psicologia e Educação tem se caracterizado pelo


estudo do desenvolvimento da criança e do adolescente, assim como pelas relações
entre o ensino e a aprendizagem. A temática do desenvolvimento e da formação do
adulto tem sido pouco explorada. Entendendo que o ser humano adulto é um ser em
formação constante, como docente da disciplina de Psicologia e Educação para futuros
educadores, investiguei possibilidades de trabalhar esse tema a partir da Psicologia
Profunda e da concepção teórica e metodológica das Narrativas (auto) biográficas.
Neste sentido, o artigo tem o objetivo de descrever uma experiência de formação
docente que relaciona o principal conceito da Psicologia Profunda – o processo de
individuação – e as Narrativas (auto) biográficas, que denominei de Narrativas
Profundas.
Inicialmente, situo que a preocupação com as Histórias de Vida dos adultos e de
suas Narrativas (auto) biográficas expressam um movimento no campo educativo de
busca de uma nova epistemologia teórica e prática de formação do adulto, na qual a
subjetividade e a participação ativa do sujeito no seu processo de formação são
valorizadas. Além disso, chamo a atenção para a visão de que nesta concepção, o sujeito
se encontra em processo de formação permanente e que a consciência de seus processos
formativos é considerada fundamental. .
Em seguida, reflito sobre alguns conceitos importantes da Psicologia Profunda,
uma teoria criada pelo médico, psiquiatra e psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-
1961), que, embora pouco difundida no campo da educação, pode contribuir para uma

43
Uma primeira versão deste artigo se encontra na seguinte referência: GASPARELLO, Vânia Medeiros.
Narrativas (auto) biográficas na Psicologia da Educação: uma experiência de formação de professores/as.
In: FONTOURA, Helena A. da. (Org.) Pedagogia em movimento: experiências compartilhadas na
Faculdade de Formação de Professores da UERJ. Niterói: Intertexto, 2018.

sumário 292
VII Seminário Vozes da Educação

teoria da formação. Isto porque a Psicologia Profunda também compreende o ser


humano em processo de crescimento psíquico constante, sendo que a conscientização
desses processos possibilita ampliar os movimentos de mudança.
Dessa forma, apresento o que chamei de Narrativas Profundas, pois a sua escrita
pelos alunos procura relacionar os temas arquetípicos do processo de individuação do
ser humano – tais como o arquétipo materno, do pai, da criança, do mestre, das
máscaras sociais, das sombras – com a história de vida dos alunos, por meio de
narrativas (auto) biográficas. Concluo refletindo que os alunos de Pedagogia e de
Licenciatura têm produzido narrativas densas, assim como expressado a importância
desta experiência para a sua formação.

Narrativas (auto) biográficas na educação e formação do adulto

O campo das histórias de vida e das narrativas (auto) biográficas na educação


pode ser entendido como uma nova epistemologia na formação do adulto, na medida em
que “A história de vida é concebida como abordagem de pesquisa, mas também como
prática de formação. Ela não visa apenas à teorização de práticas empíricas, mas
igualmente à articulação dialética de dois polos: prático e teórico” (PINEAU & LE
GRAND, 2012, p. 37). A questão da formação surge como uma preocupação teórica e
prática, como tentativa de compreensão dos processos de formação e ao mesmo tempo
da importância de se valorizar a autoformação por meio da prática da escrita de si
(CHENÉ, 2010; FERRAROTI, 2010; FINGER, NÓVOA, 2010; JOSSO, 2004; 2010b;
PINEAU, 2010).
Além disso, essa perspectiva expressa um movimento que atribui à subjetividade
um valor de conhecimento (FERRAROTI, 2010; 2014), rompendo com epistemologias
científicas clássicas. Ou seja, o campo das narrativas (auto) biográficas produz
conhecimento a partir de escritas construídas subjetivamente e valoriza o conhecimento
que esse movimento produz nos sujeitos. Neste sentido, questionamos: o que temos
aprendido sobre formação a partir de narrativas (auto) biográficas realizadas por sujeitos
adultos em formação? Ou ainda, o que estes adultos em formação têm aprendido com
essa experiência? É o que vamos procurar responder ao longo deste trabalho.
Nesta concepção teórica e prática da formação e que valoriza a subjetividade,
surge também alguns temas caros para a área da Psicologia e Educação: a visão
interacionista da participação ativa dos sujeitos em seus processos de desenvolvimento e

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

aprendizagem. Como reflete Josso (2010b, p. 66): “abordamos a primazia do sujeito que
aprende na elaboração de um saber sobre a sua formação e as suas aprendizagens”.
Contudo, esse saber da experiência autobiográfica, está ligado à ideia de consciência de
si e de suas relações com o outro e a vida.
A noção de eu, de indivíduo e de consciência surgiram e se desenvolveram com
a modernidade e o capitalismo. Neste sentido, essas ideias possibilitaram a psicologia
construir como objeto de estudo a questão do “indivíduo” e a sua “experiência
consciente” (MOURA, 2004), assim como contribuiu para que o modelo biográfico da
narrativa de formação se situasse na forma de consciência de si (MOMBERGER, 2014).
Uma consciência que olha para si-mesma, que aprende com as suas
experiências, com as suas memórias subjetivas.

A pesquisa (auto)biográfica é uma forma de história autorreferente, portanto


plena de significado, em que o sujeito se desvela, para si, e se revela para os
demais. Produzir pesquisa (auto)biográfica significa utilizar-se do exercício
da memória como condição sine qua non (ABRAHÃO, 2004, p. 202).

A memória é utilizada como fonte de autoconhecimento, de caminhos


percorridos, de relações com o presente e com os projetos a serem construídos. Pineau e
Le Grand (2012) chamaram a atenção para a existência do uso de histórias de vida e da
busca e construção de sentido das experiências a partir de fatos temporais em distintas
áreas do conhecimento: o cotidiano, a filosofia, literatura, sociologia, história,
antropologia, entre outros. Além disso, a autobiografia foi cada vez mais valorizada na
vertente psicanalítica e na Psicologia das longas durações, que se dedicaram a
periodizações de diferentes etapas da vida, assim como na terapia familiar, com o uso
de técnicas como o genograma.
Contudo, o importante a situar aqui é que o trabalho com Narrativas (auto)
biográficas conta uma estória, tem como fonte a memória e entende o ser humano em
formação, com passado, presente e futuro. Portanto, de acordo com essa epistemologia,
o sujeito está em processo de formação permanente e a reflexão consciente sobre as
experiências do passado pode contribuir para a compreensão do presente e de
possibilidades futuras. Uma ideia semelhante ao conceito de processo de individuação
da Psicologia Profunda, como iremos refletir no próximo tópico deste trabalho.
Outra concepção relacionada à formação que surgiu da análise de autores da área
das histórias de vida, é que a busca de autonomização do sujeito face às demandas da

sumário 294
VII Seminário Vozes da Educação

família e da sociedade, é uma constante nas narrativas (auto) biográficas. Dominicé


(2010) assim se expressa:

(...) a autonomização face à família de origem constitui a trama de um


processo que consideramos passível de generalização. Evidentemente que as
modalidades dessa autonomia, o grau de dependência que ainda permanece e
as transformações relacionais no interior da rede familiar variam de um
sujeito para outro. (...) o essencial da formação reside no processo (pp. 88-
89).

E de acordo com Josso (2010a), seja no plano material em relação à autonomia


financeira, no plano sociocultural quando ocorre o distanciamento do estilo de vida
familiar ou da sociedade (religião, escolha profissional ou outro fator), ou ainda no
plano psicológico (controle das emoções, busca de uma nova visão de mundo): “o jogo
da autonomização desejada face a uma conformização esperada pelo meio ambiente é o
‘motivo’ mais representativo dos processos de formação” (p. 74). Essa compreensão da
autora de que a busca de autonomização do sujeito é uma característica constante nas
narrativas (auto) biográficas, irá referendar uma de suas principais obras: Caminhar para
si (JOSSO, 2010a).
O conceito de processo de individuação da Psicologia Profunda também chama
a atenção de que o crescimento psíquico envolve a busca de autonomia e diferenciação
em relação à família e as máscaras sociais. A própria Josso (2010a) reconhece que para
Jung, “a formação torna-se, (...), um processo de individuação ao longo do qual o ser
humano emerge do coletivo cultural e biológico pela tomada de consciência de sua
individualidade” (p. 46). No próximo tópico, iremos desenvolver mais essas ideias.

A Psicologia Profunda e o processo de individuação – uma teoria da formação?

A Psicologia Analítica, também chamada de Psicologia Profunda ou Complexa,


não é uma teoria muito estudada pelos educadores. Contudo, essa teoria desenvolveu
uma concepção de ser humano em processo de crescimento psíquico e de diferenciação
- o processo de individuação – que, no nosso entendimento, pode contribuir para uma
teoria da formação.
A ideia do processo de individuação é o eixo da psicologia junguiana
(SILVEIRA, 2001) e foi construído por meio de sua pesquisa sobre o inconsciente,
através da análise de cerca de 80.000 sonhos de seus pacientes (VON FRANZ, 1977).
No entanto, o processo de individuação pode ser percebido na psique como um todo, na

sumário 295
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

vida consciente e nas manifestações do inconsciente. A individuação representa o


movimento da energia psíquica em busca de autonomização, de expressão do si-mesmo.
E esse movimento ocorre na dialética consciente-inconsciente, tornando a psique mais
consciente de si-mesma.
Fazendo um paralelo com as narrativas (auto) biográficas, podemos dizer que a
consciência traz a tona memórias esquecidas ou até reprimidas, que estavam no
inconsciente, sendo que a conscientização desses processos contribui para a nossa
individuação. Isto porque, neste movimento ocorre uma maior conscientização da
educação familiar, das máscaras sociais, do inconsciente coletivo, dos arquétipos
(modelos internalizados) de mestre e outros. Maroni (1998) chama a atenção que a
linha básica do processo de individuação é:

(...) a diferenciação da personalidade consciente do coletivo exterior – a


sociedade, a cultura – por meio da persona, e a diferenciação da
personalidade consciente do coletivo interior, ou seja, do inconsciente
coletivo, das fantasias coletivas (p. 84).

Cabe aqui explorar um pouco mais alguns significados dos conceitos citados
acima. De acordo com a Psicologia Profunda, o inconsciente, a parte desconhecida de
nós mesmos, tem aspectos da nossa estória individual esquecida ou reprimida, que Jung
(2002) chama de inconsciente pessoal; como também um vasto conjunto de imagens,
comportamentos e ideias que fazem parte da nossa herança cultural, denominado de
inconsciente coletivo. Sendo que “o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído
essencialmente de arquétipos” (JUNG, 2002b, p. 53). Os arquétipos podem ser
entendidos como formas de agir, pensar ou sentir, que estão internalizados na psique e
que se encontram nas mais diferentes culturas humanas. Dessa forma, são consideradas
arquetípicas as ideias de mãe, pai, mestre, herói, criança, educação, máscaras sociais e
outras. Contudo, é a história pessoal, as experiências de cada indivíduo e cultura
específica, que irão ativar e reinventar esses arquétipos em nós.
O arquétipo da persona, também chamado de máscaras sociais, está relacionado
aos comportamentos típicos em diferentes contextos sociais, que incorporamos como
nosso, geralmente sem questioná-los. Neste sentido, Cuche (2002) expressou que: “A
cultura depende em grande parte de processos inconscientes”. Utilizamos distintas
máscaras para os diferentes ambientes sociais: familiar, profissional, de estudo, com os
amigos, religioso e outros. Embora o uso de máscaras seja considerado um

sumário 296
VII Seminário Vozes da Educação

comportamento adequado para diferentes situações sociais, é importante fazermos o uso


consciente dessas máscaras, até para escolhermos máscaras mais condizentes com o
nosso processo de individuação.
Josso (2010b) expressa bem essa temática na sua reflexão sobre as narrativas
autobiográficas:

A dialética entre aquilo a que Jung chama o eu e a persona encontra-se por


vezes presente muito cedo na existência, como no caso da estudante que,
desde a escolaridade obrigatória, estabelece uma distinção entre o seu mundo
interior e o que deve fazer para satisfazer o seu papel de criança na família e
na escola.
Aparece também na adolescência, no momento em que se toma consciência
da necessidade de um jogo social para se alcançarem os objetivos próprios.
Mas emerge mais frequentemente quando o sujeito toma consciência de que a
sua realização na atividade profissional é incompleta ou insatisfatória
(JOSSO, 2010b, p. 75).

E completa: “Em todos esses casos, os sujeitos exprimem a sua consciência de


que a sua personalidade ‘exteriormente’ expressa não é senão a parte visível de um
iceberg e de que o seu ser ultrapassa essas formas particulares”. (JOSSO, 2010b, p. 76)
Nas narrativas produzidas pelos alunos dos cursos de Pedagogia e Licenciaturas,
percebo esse embate entre as máscaras sociais e a sua expressão mais profunda, tema
que será mais explorado a seguir.

A Narrativa Profunda e algumas conclusões

Como docente da área de Psicologia e Educação, começo este diálogo a partir da


reflexão de Jung (2002a):

O método educacional apropriado ao adulto não pode ser o direto, mas


apenas o indireto, que consiste em fornecer-lhe os conhecimentos
psicológicos que lhe possibilite educar-se a si próprio. Não podemos esperar
tal tarefa da criança, mas devemos espera-la de um adulto, sobretudo ao
tratar-se de um educador. O educador não pode contentar-se em ser o
portador da cultura apenas de modo passivo, mas deve também desenvolver
ativamente a cultura, e isto por meio da educação de si próprio (p. 62).

Mesmo que Jung não tenha se dedicado a investigar em profundidade o campo


educativo, tal como os demais autores clássicos da área de Psicologia da Educação
também não o fizeram, ao longo de sua obra Jung se preocupou com o que podemos
chamar de formação do educador. E, na minha compreensão, quando expressou suas
ideias em relação a esse tema, as mesmas eram condizentes com seu pensamento sobre

sumário 297
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

a formação do psicólogo e o seu principal conceito – o processo de individuação. Esse


autor foi um dos primeiros a entender que os psicólogos tinham que fazer tratamento
psicológico também e continuar permanentemente a sua formação. A ideia de processo
de individuação implica um movimento de conscientização da psique, um movimento
que é permanente. Nesse sentido, Jung defende a ideia de que o educador adulto deve
estar em constante movimento de crescimento psíquico.
O campo das narrativas (auto) biográficas teve como foco inicial a educação dos
adultos, embora atualmente também se trabalhe com crianças e adolescentes
(PASSEGGI, FURLANETTO, PALMA, 2016). Sua proposta valoriza o
autoconhecimento, a escrita de si, a subjetividade e a consciência da sua estória,
possibilitando recriar a trajetória de vida.
Dessa forma, por meio da relação entre a Psicologia Profunda e a epistemologia
das Narrativas (auto) biográficas, nasceu a ideia das Narrativas Profundas.
A utilização do termo “Profunda” está ligada tanto a um dos nomes que a
psicologia junguiana é conhecida, como também com a ideia de autoconhecimento, de
um movimento da psique para o seu mundo interior. De acordo com essa psicologia,
existem dois movimentos possíveis para a nossa energia psíquica, a libido – um é o
movimento da extroversão, quando a energia, seja como pensamento e/ou sentimento,
se volta para o mundo exterior, para os outros e os objetos; o segundo movimento é o da
introversão, quando a libido se volta para o mundo interior, para a consciência
subjetiva.
A cultura moderna e a educação têm privilegiado a atitude extrovertida diante da
vida, tem estimulado a consciência e percepção do mundo exterior, dos livros, da fala
dos professores, dos colegas, das experiências com os objetos. No entanto, para a
psicologia profunda, a atitude de introversão também é fundamental e necessária apara
o equilíbrio psíquico. Neste sentido, entendo que o trabalho com Narrativas (auto)
biográficas favorece a introversão, o olhar da consciência sobre si-mesma.
Contudo, é importante destacar que a reflexão autobiográfica que propomos nas
Narrativas Profundas, é um movimento subjetivo que olha para dentro e para fora, que
dialoga com a memória das experiências individuais e ao mesmo tempo escuta e
aprende com os relatos dos colegas. Ou seja, essa narrativa não é produzida apenas
individualmente, a partir de análises solitárias, mas também no espaço de reflexão
coletiva das turmas, na qual se aprende com as experiências dos outros.

sumário 298
VII Seminário Vozes da Educação

Dessa forma, desde o ano de 2016, tenho colocado como proposta de trabalho
nas turmas de Pedagogia e de diferentes licenciaturas, a escrita das Narrativas
Profundas. Ressalto que, como venho sublinhando, este é um movimento que defende a
importância da área de Psicologia e Educação contribuir para a autoformação do adulto.
Neste sentido, não é minha intenção fazer um estudo detalhado dos conteúdos das
narrativas, mas apenas compartilhar essa experiência de formação e refletir sobre alguns
elementos mais constantes nas narrativas dos alunos.
No primeiro momento, convido os alunos para participarem da escrita de
Narrativas Profundas, explicando a proposta de uma escrita em processo, que irá se
desenvolvendo ao longo das aulas e inicialmente será discutida em grupos menores e
depois na turma. Textos científicos sobre Narrativas (auto) biográficas e da Psicologia
Profunda são analisados também. Assim, durante os encontros vão se desenhando os
temas das Narrativas, que versam principalmente sobre algumas questões norteadoras,
mas que podem se desenvolver em outros subtemas.
Questões norteadoras das Narrativas Profundas: refletir sobre a sua estória
familiar, destacando os arquétipos maternos, paternos e as suas experiências de infância;
analisar a sua personalidade a partir dos conceitos de extroversão e introversão, quatro
funções da consciência, máscaras sociais e sombras; relatar as suas experiências com a
escola, com os professores marcantes, os estudos e os colegas.
Chamo a atenção, ainda, que os alunos tem liberdade para expressar oralmente
apenas o que se sentirem a vontade sobre as suas experiências, porém são incentivados a
escreverem de uma forma mais aberta e profunda nas narrativas a serem entregues.
Inicialmente, é importante situar o contexto dos estudantes que produzem essas
narrativas: alunos da Faculdade de Formação de Professores da UERJ, no município de
São Gonçalo, estado do Rio de Janeiro. Estes alunos são, na grande maioria, oriundos
de extratos sociais com poucos recursos econômicos e muitos deles são os primeiros da
família a frequentar um curso superior. A faixa etária nos cursos varia muito, desde
jovens que concluíram recentemente o ensino médio, como também adultos
trabalhadores, de diferentes idades. Em alguns cursos, como Pedagogia e Letras, a
presença do sexo feminino é majoritária. Destaco ainda que o número de alunos por
turma também não é homogêneo, oscilando entre 30 a 40 alunos.
Neste contexto de narrativas, irei refletir sobre alguns pontos que me chamaram
mais a atenção durante os quase quatro anos que venho propondo essa formação.

sumário 299
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Inicialmente, percebo que o arquétipo materno é muito presente nas narrativas: a


influência da mãe e/ou da avó na formação tem sido bastante valorizada, em geral
acompanhada de muitos elogios e de um caráter inatacável. Contudo, durante o curso, o
nosso propósito é o de estimular a consciência crítica dessa formação. Principalmente,
porque, “Para as mulheres, a autonomia face ao meio familiar interage fortemente com a
maneira como são resolvidos os conflitos de papéis”. (DOMINICÉ, 2010, p. 89)
O arquétipo paterno, ao contrário, é quase ausente nos relatos, ou, quando
aparece, geralmente tem um caráter distante, autoritário e machista, salvo algumas
exceções. No entanto, nesta proposta, importa mais que cada aluno e a turma reflita
sobre o que essa ausência ou presença inibidora contribuiu, ou não, para o seu processo
de autonomização. A questão da cultura machista, das relações de poder autoritárias na
família e as visões de mundo dos alunos são fontes de reflexão fundamentais neste
movimento. Pois, como sintetiza Josso (2010b):

Ao longo das interações sobre as narrativas, a propósito dos processos de


formação, chegamos à ideia de que a importância (positiva ou negativa) dada
às noções de autonomização, conformização, dependência,
responsabilização, projeto de vida e desenvolvimento das potencialidades
próprias estava ligada as valorizações que adquiriam sentido e encontravam a
sua legitimidade em concepções de vida ou visões de mundo. (p. 76)

A escrita sobre a experiência com a infância, ligada ao arquétipo da criança


interior, procura fazer com que o aluno entre em contato com a sua vivência infantil, na
medida em que esse futuro professor irá trabalhar com crianças, que arquetipicamente
simbolizam o novo, a criatividade, a alegria de aprender. Mesmo que a experiência
particular do sujeito tenha sido difícil e marcada pelo abandono, como a maioria dos
mitos relacionados ao arquétipo da criança, o nascimento de uma criança é visto como
algo miraculoso, como a emergência do novo, como uma experiência psíquica criativa
(SAIANI, 2002). Portanto, a consciência da criança interior pode estimular novos
olhares sobre essa experiência, trazendo a tona também a criança alegre e curiosa que
existe internamente. Dessa forma, mesmo que, inicialmente, ocorram relatos tristes
dessas vivências, as quais são importantes para o processo de autoconhecimento,
memórias felizes e criativas são instigadas pela mediação da professora. E, no geral,
todos os alunos tem uma estória alegre para contar e reviver da infância.
O tema sobre a personalidade busca uma reflexão do aluno sobre o seu tipo
psicológico a partir análise das atitudes de introversão e extroversão; das quatro funções

sumário 300
VII Seminário Vozes da Educação

da consciência: pensamento, sentimento, sensação e intuição (JUNG, 1991), assim


como sobre as máscaras sociais e as sombras.
O conceito de tipos psicológicos é percebido como importante nas narrativas
porque entende que o ser humano pode ter momentos de introversão, na qual se volta
para o mundo interior, assim como de extroversão, que representa o movimento de se
dirigir para o mundo exterior. Além disso, algumas personalidades se comportam de
forma mais introvertida e outras, extrovertida, caracterizando uma maneira própria de
perceber e se conduzir na vida. Contudo, esses movimentos são complementares, não
excludentes. E, como foi apontado anteriormente, entendo que o processo de escrita e
reflexão sobre a história de vida representa um momento de introversão, ainda raro no
ambiente educacional.
A concepção de que o ser humano interage com o meio ambiente e consigo
mesmo a partir de quatro funções da consciência, autônomas e ao mesmo tempo
complementares, que são: o pensamento, o sentimento, a sensação (relação com o
mundo por meio dos cinco sentidos físicos) e a intuição; pode ser entendida como uma
concepção que questiona a primazia da racionalidade no sujeito e na escola. Por esse
motivo, é interessante perceber que a maioria das alunas do curso de Pedagogia se
identifica com o tipo sentimento. De acordo com Byington (2003), na educação infantil
prevalece o que ele chamou de Padrão Matriarcal de Ensino, na qual ocorre uma grande
intimidade na relação Eu-Outro, intimidade que os tipos psicológicos
predominantemente sentimento, se encaixariam melhor. E a maioria das alunas do curso
de Pedagogia irá atuar na Educação Infantil. Um caminho promissor para esse tipo
psicológico? Apenas mais uma questão para ser pesquisada com mais profundidade
depois. Porém, foi interessante notar essas diferenças, na medida em que, pelo contrário,
os alunos dos cursos de Licenciatura se identificam mais com o tipo pensamento. E esse
público irá atuar profissionalmente com alunos dos últimos anos do Ensino
Fundamental e do Ensino Médio. Nessa etapa escolar, na visão de Byington (2003), o
Padrão Patriarcal de Ensino é mais presente, um modelo educacional que privilegia o
pensamento abstrato e racional.
A função sensação e intuição têm sido pouco abordadas pelos alunos, o que pode
ser compreendido pela pouca importância que a educação e cultura ocidental atribuem a
essas características humanas. Contudo, durante o curso e as narrativas, a mediação
docente busca valorizar outras formas de se relacionar com a vida e descobrir novas

sumário 301
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

relações de ensino e aprendizagem, questões que recebem bastante apoio dos


participantes deste processo.
O arquétipo das máscaras sociais, da persona, está presente em todos os tópicos,
na medida em que na família, na escola, na igreja e/ou com os amigos, representamos
papeis sociais. Nesta parte, percebo que alguns alunos questionam, principalmente,
visões tradicionais da igreja frequentada pelos mesmos ou pela família, procurando
buscar uma reflexão própria sobre temas importantes. Outros alunos limitam-se a
analisar que agem de forma “educada”, “comportada” e “quieta” no ambiente da igreja,
muito diferente da forma de agir em outros espaços de socialização.
Outro tema que tem se destacado quando refletem sobre a educação familiar, a
religião e/ou as máscaras sociais, são as questões de gênero e diversidade, os diferentes
preconceitos sociais, pois muitos alunos têm embates com a família e o ambiente
religioso que frequentam, buscando a sua expressão singular.
Verifiquei que escrever ou falar sobre as sombras também é uma dificuldade,
pois as mesmas representam aqueles aspectos da nossa personalidade que negamos em
nós mesmos e não gostamos de mostrar aos outros, “tais como o egoísmo, a preguiça
mental, a negligência, (...), a indiferença e a covardia, o amor excessivo ao dinheiro e
aos bens” (VON FRANZ, 1977, p. 168). No entanto, a sombra também pode representar
qualidades e características pouco conhecidas do ego. Nas narrativas, tantos os aspectos
positivos da sombra como a sua vertente considerada negativa, são complexas de serem
conscientizadas pela maioria dos alunos. Entretanto, alguns conseguem ultrapassar essa
barreira e escrevem relatos muito interessantes.
No tópico ligado a formação escolar, temática muito valorizada nas narrativas
(auto) biográficas do campo educativo, tenho percebido que a maioria dos alunos se
descreve como tendo sido um bom aluno, com boas notas e comportado. Neste sentido,
questiono: como transformar a escola, se seus professores parecem ter sido alunos tão
adaptados a esse modelo de ensino? Como desenvolver metodologias criativas nesse
contexto aparentemente feliz? Questões para outro artigo?
Enfim, destaco que neste movimento de escrita de Narrativas Profundas durante
as aulas, a maior parte dos alunos tem participado com muito interesse. E, mesmo entre
aqueles que “falam pouco”, fiquem introspectivos ou escrevam de forma sintética,
percebo que o processo de conscientização e diferenciação dos arquétipos internalizados
na psique está ocorrendo. Uma análise e percepção oriundas do diálogo intersubjetivo

sumário 302
VII Seminário Vozes da Educação

que ocorre na turma, dos diálogos mais reservados comigo e principalmente, do


conteúdo das narrativas.

Referências

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narrativas. In: ABRAHÃO, Maria Helena M. B. (Org.). A aventura (auto) biográfica:
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narrativa de si na modernidade avançada. Tradução de Carlos Galvão Braga, Maria da
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Antonio; FINGER, Mathias (Org.). O Método (auto)biográfico e a Formação. Natal,
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Tradução de Carlos Eduardo Galvão Braga e Maria da Conceição Passeggi. Natal, RN:
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EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010b.

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sumário 303
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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Dora Mariana R. Ferreira da Silva. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002b. (Obras
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_____. Tipos psicológicos. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis, RJ:
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MARONI, Amnéris. Jung: individuação e coletividade. São Paulo: Moderna, 1998.


(Coleção logos)

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PASSEGGI, Maria da C. FURLANETTO, Ecleide C. PALMA, Rute Cristina D. da.


(Orgs.) Pesquisa (auto)biográfica, infâncias, escola e diálogos intergeracionais.
Curitiba, CRV: 2016. (Pesquisa (auto)biográfica: conhecimentos, experiências e
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Eduardo Galvão Braga e Maria da Conceição Passeggi. Natal, RN: EDUFRN, 2012.
(Coleção Pesquisa (Auto) Biográfica & Educação)

PINEAU, Gaston. A autoformação no decurso da vida: entre a hetero e a ecoformação.


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São Paulo: Escrituras, 2002. (Série ensaios transversais)

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(Coleção Vida e Obra).

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Homem e seus Símbolos. 21ª. Impressão. Tradução de Maria Lúcia Pinho. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1977.

sumário 304
VII Seminário Vozes da Educação

SOBRE VIVER NA UNIVERSIDADE: POR ONDE VOAM OS VAGA-LUMES?


CONVERSAS SOBREVIVENTES COM UM ESTUDANTE DO CURSO DE
PEDAGOGIA/UFF

Luis Alberto Silva Gonçalves


UFF
buendia.lui@gmail.com

Lampejos. Luzes intermitentes em meio à escuridão. A imagem do breu


salpicada. A imagem dos vaga-lumes sempre me cativou. Nos grandes centros urbanos
é difícil encontrá-los. No entanto, lembro-me de minha infância quando morava no
interior do Rio de Janeiro, sempre saía à caça de vaga-lumes na escuridão da noite.
Hoje, andando pela mesma cidade onde os encontrava aos montes, voando e iluminando
o céu intermitentemente, já não os vejo. Procuro, mas não encontro. O que aconteceu
aos vaga-lumes? Morreram? Fugiram? Ainda permanecem, porém não brilham mais?
Uma questão que me remete ao livro do filósofo George Didi-Huberman (2011)
– “A sobrevivência dos vaga-lumes” - é a imagem que se constrói, de sobrevivência dos
vaga-lumes que lutam contra a ofuscante luz dos projetos e poderes opressores. Cada
vagalume que produz sua luz própria é um sobrevivente? Onde estão os vaga-lumes?
Não os vemos na cidade, na universidade por qual motivo? Morreram? Desapareceram?
Ou apenas nos distanciamos demais deles? Sabemos que suas luzes são mais fracas e
intermitentes se comparadas ao poder dos grandes holofotes. Será uma questão de
“educar” olhar, para vermos os vaga-lumes que voam sobrevivendo na cidade, na
universidade? ter os ouvidos sensíveis para ouvi-los quando não brilham, mas ainda
voam? Essas são questões que me inquietam e me lançam na tessitura deste trabalho.
Onde estão os vaga-lumes na universidade?
Pretendo fazer isso conversando e percebendo como estudantes do curso de
pedagogia sobrevivem na/à universidade. Como, estudantes, que precisam fazer um
esforço demasiado para permanecerem na universidade, concluem ou não o curso
escolhido por eles? Que esforços precisam fazer para entrar na universidade? Que
esforços precisam fazer para se manterem? E para concluírem? Será que concluem ou
ficam pelo caminho? Será que a sobrevivência é apenas dor e sangue na universidade?

sumário 305
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Ou há momentos de cooperação, de alegria, de bons encontros? Onde foram parar suas


histórias? Suas geografias? Quem são estes estudantes? Suas experiências, onde estão
narradas? Quem as ouviu? Alguém as leu?
Para falar sobre viver, dito de outro modo, para falar de sobrevivências me apoio
em Jacques Derrida e no diálogo que tecem com ele, Adriana Lopes e Adriana Facina.
Apontam que:

Para nós, sobreviver, além de implicar movimento, é uma forma de criticar


binarismos como viver e morrer. Derrida (1979, p. 89) argumenta que a
sobrevivência está para além da dicotomia moderna viver/morrer: “o
sobreviver transborda, ao mesmo tempo, o viver e o morrer, suplementando-
os, um e outro, como um sobressalto e um alívio temporário, parando a vida e
a morte e ao mesmo tempo” (LOPES, FACINA,CALAZANS,
SILVA, TAVARES, 2018, p. 697).

Além do conceito de sobrevivência, aparece no trabalho das autoras o conceito


de narrativa. Há uma tradição sobretudo na modernidade e seu modo de fazer ciência
que estabelece a narrativa como reflexo. Cópia fiel de uma realidade ou coisa narrada.
Aqui me afasto da ideia de narrativa como espelho da realidade. Antes, entendo a
narrativa assim como LOPES, FACINA, CALAZANS, SILVA, TAVARES, (2018). A
narrativa como performance. Mas o que seria isso? Assim dizem:

Compartilhamos a visão de alguns autores da antropologia (Bauman &


Briggs, 1990) e da linguística (Moita Lopes, 2009; Silva, 2014) na qual
narrativa é entendida como uma performance, ou seja, como o momento em
que as pessoas que narram suas histórias estão relacionando “não só eventos
de uma narrativa (os eventos narrados), mas também estão envolvidos na
performance de quem são na experiência de contar a narrativa (o evento de
narrar)” (Moita Lopes, 2009, p. 134-135) (LOPES,
FACINA,CALAZANS, SILVA, TAVARES, 2018, p. 682).

A proposta de performance narrativa traz a ideia de que as pessoas ao narrarem


suas histórias de vida, não apenas descrevem eventos, datas e acontecimentos de suas
vidas, mas inventam, produzem, criam, ampliam, transbordam os limites de suas
existências, de suas vidas. Assim, em cada narrativa, em cada performance narrativa nos
embolamos naquilo que somos, junto com aquilo que pegamos do outro, do mundo.
Todo texto carrega a história de seu uso consigo. LOPES, FACINA, CALAZANS,
SILVA, TAVARES, (2018, p.684).
Se tenho tentado entender a narrativa, a partir de outras autoras e autores que me
antecedem nesse intento como algo que foge à descrição da realidade, fuga da narrativa

sumário 306
VII Seminário Vozes da Educação

como a figura de um espelho que reflete o que mira, então preciso pensar o que esses
mesmos autores e autoras apontam enquanto demandas narrativas. Em Living
on/Border lines, o filósofo Jacques Derrida trata da questão da sobrevivência e da
narrativa:

Para o filósofo, já que as narrativas não têm a propriedade de dizer tudo


como aconteceu “à risca”, deveríamos nos perguntar: “qual é a demanda
para a produção de uma determinada narrativa?” Por exemplo, a partir de
qual demanda se produz uma narrativa? Uma demanda policial, escolar,
amorosa etc.? Pensar qual é a demanda é compreender os efeitos de
sentido que certa narrativa encena e provoca. (LOPES,
FACINA,CALAZANS, SILVA, TAVARES, 2018, p. 684)

Se em Derrida (1979) precisamos pensar os efeitos de sentido da narrativa, o que


ela provoca, o que ela encena, trago Deleuze&Guattari (1995, p.19) quando dizem que
“escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que
sejam regiões ainda por vir. Se entendermos a narrativa também como um tipo de
“escrita” - não strictu sensu - sobretudo política, e pensarmos juntos, com Derrida,
Deleuze&Guattari, podemos perceber que a narrativa é uma espécie de agenciamento,
ou seja, um operador que serve para produzir desejos, sobrevivências.
Mas isso ainda diz pouco sobre viver. O que é sobrevivência? Se alguém buscar
uma definição exata do que é sobrevivência, já não será. Sobreviver é romper com o
binarismo morte/vida (DERRIDA, 1979, p. 89). Sobreviver é o triunfo da vida sobre a
morte que se manifesta em vida. É aquilo que se manifesta quando Belchior canta: Ano
passado morri, mas esse ano não morro.
As conversas são ponto de partida. Conversas cotidianas mesmo. No corredor da
faculdade, em um debate numa aula comum, no restaurante universitário, ou no bar.
Todos, pontos de encontro, espaços de vida, onde fui percebendo elementos nas
conversas - até então despretensiosas - que poderiam revelar experiências ricas nas
narrativas desses estudantes.
Ah! Mas escolher os sujeitos da sua pesquisa assim é muito tendencioso! disse
um colega geógrafo numa roda de conversa onde apresentamos nossas pesquisas. De
fato, os critérios de escolha dos estudantes são subjetivos, estão no âmbito dos afetos, e
isso não faz uma pesquisa menos comprometida com o rigor científico. Triste a tradição
que arrancou do fazer científico a possibilidade do afeto. Afeto aqui entendido como
capacidade de afetar-se com o outro, de afastar-se de uma falsa neutralidade.

sumário 307
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A Universidade Federal Fluminense (UFF) importante espaço de estudos,


referência em muitas áreas no que diz respeito à produção de conhecimento científico,
cresceu de forma expressiva, tanto em números de alunos matriculados quanto em
estrutura física a partir da segunda metade dos anos 2000 até a primeira metade dos
anos de 2010. Com o Reuni (BRASIL, 2007) que segundo dados do Ministério da
Educação,
foi um Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais, instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, a Universidade
cresceu com a justificativa de ampliar o acesso e a permanência na educação superior. O
Reuni e é uma das ações que integram o Plano de Desenvolvimento da Educação
(PDE). A UFF, assim como outras instituições de ensino superior, adotou uma política
de expansão. Além disso, a UFF foi pioneira na interiorização para outros municípios
do estado do Rio de Janeiro, como Angra dos Reis, cidades do Noroeste fluminense e
região dos lagos.
Desse modo a Universidade, que possuía um quantitativo de aproximadamente 4
mil matrículas em 2005, saltou para mais de 9 mil em 2013. Dos 69 cursos em 2005,
para 125 na graduação em 2013, além de um aumento 180 mil metros quadrados de área
construída entre 2007 e 2014 (RELATÓRIO DE GESTÃO/UFF, 2014).
Sem dúvida, ampliou-se a estrutura da universidade, seus espaços físicos,
números de matrículas, quantidade de estudantes com renda baixa, não sem o aumento
da precarização de condições de trabalho e estudo, como tem sido denunciado
frequentemente pela Associação de professores da UFF (ADUFF). Não há como negar
que a ampliação da universidade é considerável, sobretudo num país como o nosso onde
estudar é um privilégio, não um direito. Mas o que me inquieta é: como vivem esses
estudantes que acessaram a universidade após essa política de expansão? Sobretudo os
estudantes do curso de pedagogia. Que o acesso, de alguma forma foi ampliado não há
dúvida, porém como se deu e como se tem dado a permanência desses estudantes?
Grupos historicamente subalternizados precisam produzir táticas para
sobreviverem na/à universidade. Portanto, falo aqui de alguns séculos de epistemicídio e
opressão que formaram os pilares da universidade. Porém, a vida em sua potência
criadora encontra maneiras de burlaresses mecanismos opressores e desiguais. Sendo
assim, neste trabalho aparecerão mais os movimentos que os estudantes produzem para
sobreviverem na/á universidade, os lampejos dos vaga-lumes. Trago a noção de tática
proposta por Michel de Certeau (2011) em “A invenção do cotidiano” e a ideia de

sumário 308
VII Seminário Vozes da Educação

sobrevivência trabalhada por Jacques Derrida em “Diário de bordo” e a imagem dos


vagalumes de Georges Didi-Huberman (2011) em “A sobrevivência dos Vagalumes”
para trabalhar a questão das táticas e sobrevivência.
Desse modo, minha intenção é perceber as táticas que esses estudantes tecem
para sobreviver na/à universidade. De que maneira esses estudantes produzem
movimentos em suas trajetórias para burlarem essa lógica opressora que muitas vezes se
manifesta na universidade? Que caminhos tomam para chegarem e saírem da
universidade?
Esses movimentos que visam a sobrevivência eu quero, apoiado em CERTEAU,
chamar de táticas. Mas o que são táticas? Michel de Certeau (2011) define tática como:

[...]um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com uma
fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por
lugar o outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por
inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base para capitalizar
os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência
em face das circunstâncias (CERTEAU, 2011, p.46).

Para isso, vou ao encontro desses estudantes, desses personagens. Personagens


conceituais (DELEUZE&GUATTARI, 1993).
Mas como vou buscar essas narrativas? A partir de que lugar? Não sei se existe,
de fato, uma forma melhor, mas a escolha que faço é pela conversa. Para CERTEAU
(2011, p. 47) “a conversa é uma prática cotidiana que produz sem capitalizar”, assim
uso a conversa aqui como tática.
Desse modo, por que as conversas e não as entrevistas? Porque penso que as
conversas possibilitam que as experiências, por meio das narrativas, se intercambiem de
forma menos estruturada, rígida. As entrevistas, por seu caráter mais estruturado, podem
direcionar para uma espécie de busca pela “minha verdade” ou “aquilo que quero
comprovar”. Além disso, nas pesquisas com os cotidianos negamos a suposta separação
entre sujeito/objeto, antes, nas pesquisas com os cotidianos não há objetos. Pessoas,
sujeitos, estudantes, colaboradores. Jamais devemos cair na objetificação sobretudo nas
pesquisas acadêmicas. Assim, a conversa segundo Larrosa (1999) não é algo que você
faz, mas algo em que você entra, se insere, mergulha.

Além disso, nunca se sabe aonde uma conversa pode levar...uma conversa
não é algo que se faça, mas algo no que se entra...e, ao entrar nela, pode-se ir
aonde não havia sido previsto...e essa é a maravilha da conversa...que, nela,

sumário 309
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pode-se chegar a dizer o que não se queria dizer, o que não sabia dizer, o que
não podia dizer [...]
E, mais ainda, o valor de uma conversa não está no fato de que ao final se
chegue ou não a um acordo....pelo contrário, uma conversa está cheia de
diferenças e a arte da conversa consiste em sustentar a tensão entre as
diferenças...mantendo-as e não as dissolvendo...e mantendo também as
dúvidas, as perplexidades, as interrogações...e isso é o que a faz
interessante...por isso, em uma conversa, não existe nunca a última
palavra...por isso uma conversa pode manter as dúvidas até o final, porém
cada vez mais precisas, mais elaboradas, mais inteligentes...por isso uma
conversa pode manter as diferenças até o final, porém cada vez mais
afinadas, mais sensíveis, mais conscientes de si mesmas....por isso uma
conversa não termina, simplesmente se interrompe...e muda para outra
coisa...(LARROSA, 2003, p.212/13).

De fato, há entrevistas menos ou mais estruturadas. Mas as perguntas que


faríamos caso entrasse pela vereda da entrevista, poderiam servir para sustentar uma
premissa já definida na pesquisa. Isso seria muito prejudicial para aquilo que quero
tecer. A conversa abre uma possibilidade de disputa acerca da realidade como aponta
Jorge Larrosa (2003). Há uma espécie de imprevisibilidade que a lógica da conversa
traz consigo. Isso não quer dizer que não haverá sistematização alguma, mas que o
espaço estará aberto para aquilo que queremos e aquilo que não queremos ouvir.
Melhor dizendo, o caminho estará aberto para ouvirmos aquilo que nem
desconfiamos que possa vir à tona. Numa conversa sem perguntas fechadas, há
possibilidades de linhas de fuga. - para DELEUZE&GUATTARI (1995) são aquelas
linhas que escapam da tentativa totalizadora e produzem outras possibilidades. Busco as
conversas como caminho porque não quero a “verdade” – o real, mas a verdade desses
estudantes embolada com a minha.

León: um vaga-lume desviante que tece táticas de/e sobrevivência.

Conheci León em 2018 quando entramos juntos para o mestrado em Educação


na UFF. Todos muitos nervosos naquela sala no 5º andar da Faculdade de Educação.
Era uma aula de Temas de Pesquisa, aula essa onde apresentamos aquilo que queríamos
estudar. Além dessa disciplina, também cursamos juntos: “Epistemologia e Educação” e
foi durante esse percurso que percebi o quanto o León tinha para colaborar a partir de
suas experiências.
Decidi que León seria um dos estudantes que eu gostaria de conversar, mas
ainda faltava apresentar a pesquisa e perguntar se ele toparia fazer parte. Levou algum
tempo até que tomasse coragem para apresentar a pesquisa ao León. Apresentei e ele
topou. Foi demasiado difícil no começo - não que agora esteja sendo fácil - conversar e

sumário 310
VII Seminário Vozes da Educação

transformar as conversas em “pesquisa”. Não tem sido uma tarefa fácil. Vendo os
grandes nomes que utilizam as conversas, sobretudo no campo do cotidiano, até parece
um movimento “fácil”. Ledo engano. Assistindo Eduardo Coutinho em seus filmes
quase pensei ser fácil. Quanta pretensão. Pensava em fazer um documentário junto à
dissertação. Coisa que hoje é impensável devido à dinâmica veloz do mestrado. Mas
vou voltar ao León.
Aceitei os desvios e segui por eles. Abandonei a linha - reta - que havia
tomado. Comecei a buscar aporte teórico para dialogar com as experiências que León ia
me narrando. Encontrei em Gilles Deleuze o referencial teórico para pensar sua
cartografia, identificar suas linhas de fuga e movimentos rizomáticos - elementos que
me sustentaram e ajudaram (e continuam ajudando) a seguir. Lembrando que meu
interesse era/é perceber nas narrativas desses estudantes como eles sobrevivem à/na
universidade. O que fazem para isso?! Em León, comecei a ver que o desvio era antes
um movimento de sobrevivência, um jeito de permanecer na universidade. Numa linha
reta, única e rígida, não há desvio. Mas numa rede, onde milhares e milhares de linhas
se cruzam, onde cruzam-se nós, a possibilidade de desvio é real, promissora e
libertadora. Em León poderemos ver isso.
Neste momento, pretendo apresentar o que foi sendo tecido nas conversas com
um egresso do curso de pedagogia da UFF a partir de uma perspectiva que em
DELEUZE & GUATTARI (1995) chamarei de rizomática. Junto com as conversas vou
apontar alguns caminhos, “métodos”, que trilharei aqui. Assim, fecharei o capítulo
apontando como a universidade foi um espaço potencializador para esse vaga-lume
chamado León.
Era uma quinta-feira, saímos da aula de “mulheres, gêneros e sexualidades” uma
disciplina eletiva que fazíamos juntos quando, como de costume, convidei León para
minha casa. O Bandejão - Restaurante Universitário - estava paralisado por uma greve
dos funcionários da UFF e nesse tempo, oportuno, após o almoço, sentamos e
conversamos com o gravador ligado.
Nesse dia, em minha casa no bairro de São Domingos - Niterói, próximo à UFF
- Campus Gragoatá, depois de um almoço simples como nós estudantes podemos
preparar, sobretudo num dia em que o restaurante universitário - O restaurante
universitário, chamado de ”bandejão” é de suma importância para permanência de
estudantes das classe trabalhadora uma vez que muitos precisam passar horas na
universidade, as refeições servidas - por 0,70 centavos - são de extrema importância.

sumário 311
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Quando por algum motivo o restaurante universitário não funciona, como ficam esses
estudantes? Discutir permanência universitária é também garantir que os estudantes se
alimentem com dignidade nas jornadas diárias na universidade - não estava
funcionando, León me contara algumas coisas de sua vida.
Morou no município de São Gonçalo, no bairro de Bandeirantes, perto de Santa
Izabel. Se quisesse comprar algo ou ir ao shopping, precisava pegar um transporte e
viajar mais de 1 hora até o município de Niterói. Se precisasse ir ao centro de São
Gonçalo, gastaria pelo menos 40 minutos. O bairro de Santa Izabel é um bairro
considerado “afastado”. Hoje, mora no bairro do Arsenal, outra região de SG.
Diz que veio de uma família simples e conservadora e que isso foi sempre uma
questão complicada para ele. Por que esse conservadorismo sempre foi uma questão?
Vou lhes contar, mas não agora. Peço um pouco de paciência. É que carece dizer outras
coisas antes. Diz ele vir de uma família humilde. Não duvido. Mas há uma espécie de
associação feita entre humildade e pobreza como se fossem sinônimos e não são.
Acredito que ele usa aqui humilde como sinônimo de poucos recursos econômicos.
León estudara num convento nos primeiros anos de sua formação. Ali teve o
primeiro contato com escolarização. Conta que era uma escola muito conservadora e
que apesar disso lembra com bastante carinho. Logo se dá um desvio. Apesar da escola
ser conservadora, há nessa rememoração um bom afeto, me parece. Diz que lembra que
sempre teve gosto pela leitura e que gostava de ouvir as histórias que a professora lia.
Diz também que era aluno dedicado e que a professora “tomava” leitura na carteira de
cada aluno.
Depois do “convento” León foi para a escola pública no município de São
Gonçalo. No sexto ano do ensino fundamental, ele encontrou o teatro. Hoje conhecendo
um pouco de sua trajetória é quase impossível pensar a arte fora de sua vida. Escreve
letras de música e poemas. Expõe que por vir de família tradicional foi preciso
desconstruir algumas “ideias” que construíra sobre o mundo. A alma exige esses
movimentos. É preciso dar vazão, senão a gente sufoca. A arte muitas vezes nos dá
fôlego.
Nas conversas, León se desculpa, dizendo que não fala muito bem. De fato,
León possui uma dinâmica própria ao se expressar, mas não acho que ele fale mal.
Aliás, o que seria de fato falar mal ou bem, senão seguir um modelo hegemônico de
domínio de códigos da leitura e da escrita?! Mesmo assim ele solta: “eu sou todo não

sumário 312
VII Seminário Vozes da Educação

linear! Estou dando voltas e voltas. Eu não estou sendo, não estou tendo um pensamento
linear.”
É curioso. Ao contarmos nossas histórias de vida aos outros, quase sempre
adotamos uma linearidade temporal como se nossa vida fosse um filme com começo,
meio e fim como os filmes hollywoodianos e suas narrativas clássicas. Essa prisão do
tempo que a moderno-colonialidade inventou, a da linearidade temporal, ou como
Boaventura de Sousa Santos (2004) propõe, essa “monocultura do tempo linear” reduz e
aprisiona nossa percepção, nossa experiência com o tempo. Quando falamos em
monocultura, pensamos em cultivos de apenas um gênero. Mas nenhuma população,
nenhum povo, vive apenas de um cultivo. É preciso sempre mais que um único item na
alimentação. Do mesmo modo, funciona a ciência, a cultura, a arte. Nenhum povo vive
só de pão, nem só da própria cultura. É preciso inundar-se de outras formas de
conhecer, de experienciar o mundo. Em vez de uma monocultura, precisamos sempre de
uma cultura plural.
León possui um tempo de fala particular. Lembra muito uma personagem do
Edifício Master (2002) - filme de Eduardo Coutinho, sobre os moradores de um edifício
da zona sul do Rio de Janeiro - que diz que não olha nos olhos das pessoas e as pessoas
pensam que ela faz isso porque não diz a verdade. Cada sujeito possui uma dinâmica
própria na interação com o outro. Nesta dinâmica da conversa, vamos aprendendo com
o outro.
Comecei a nossa conversa querendo mostrar o quanto a universidade é opressora
com os seus estudantes e que não poderia ser um espaço para potencialização desses
estudantes. Que triste a minha hipótese felizmente já desmontada por León. Se a
universidade é o lugar privilegiado da opressão, e sendo assim não houver brecha, como
poderiam esses alunos, como León, sobreviverem?
Queria falar das dificuldades, das limitações, dos discursos vazios de prática na
Universidade. Quando sentei para conversar com León, ele disse uma frase simples,
mas que marcou toda a minha pesquisa, me desviando, confrontando as minhas ideias,
mostrando o valor da conversa nas pesquisas com os cotidianos. León simplesmente me
disse:
- “A universidade me colocou num lugar!”
Mas como, se eu pensava que a universidade só produzia opressão? Que lugar
foi esse? E o que é lugar, se os estudos com os cotidianos trabalham com a noção de
espaçotempo? E o que é espaçotempo se minha formação passa pela geografia? Uma

sumário 313
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

única frase me deslocou a tal ponto que precisei me debruçar sobre a contribuição de
alguns autores com pressupostos diferentes para, com perdão do trocadilho, encontrar o
meu lugar. León me deslocou e me mostrou que a universidade o potencializou. León
me desviou!

Um vagalume na universidade: o vôo para um espaço de sobrevivência

A entrada de León na universidade foi um evento. Ao atravessar aquele portão


da entrada do campus em que a Faculdade de Educação está, o horizonte de
possibilidade existencial dele foi ampliado. Foi um fator de potência das experiências.
León diz que na universidade pôde ter experiências que lhe eram negadas. Naquele
espaço, encontrou pessoas que lutavam por causas sociais, militavam em partidos
políticos, buscavam uma sociedade menos desigual. Se instrumentalizou com teorias e
mergulhou numa prática contra opressões. No movimento estudantil, participou de
eleições do departamento acadêmico dos estudantes do curso de pedagogia, numa
dessas eleições sofreu golpes dos quais não conseguiu desviar.
Ao entrar na universidade, conheceu pessoas que lhe inspiraram e, nesse espaço,
se sentiu potente para afirmar sua homossexualidade. Ele poderia nas conversas, colocar
essa questão como algo que se deu em disputa, e provavelmente conflitos se deram para
que ele se afirmasse - ou não se afirmasse gay - num ambiente machista como a
academia. Mas por que ele coloca essa questão como algo que o fez ser mais (FREIRE,
1983) sendo o grupo de pesquisa que fazia parte um elemento potencializador?
A minha hipótese era que na universidade não haveria espaço para esse tipo de
estudante, que a opressão era constante e uma via de mão única. No entanto, como
ainda continuar pensando que a opressão na universidade é constante se o grupo foi um
espaço potente para León? Se a tática espera o momento oportuno para burlar e golpear,
como pode a universidade atuar todo tempo oprimindo? Não teria um momento de
distração dessa opressão? Um momento em que a luz intermitente do vaga-lume brilha?
Essas são questões que me desviaram.
Anteriormente eu disse que as conversas são importantes pois elas possibilitam
que venha à tona coisas que não esperamos encontrar. Aqui está a prova definitiva desse
movimento. Talvez sem as conversas a fala de León fosse apropriada por mim para
provar aquilo que eu queria provar.

sumário 314
VII Seminário Vozes da Educação

Assim o desvio se deu. Ele me deslocou quando disse que a universidade o


colocou num lugar e que foi nela que ele se sentiu mais, se sentiu potente para afirmar-
se. Desse modo:

Esses personagens conceituais “operam os movimentos que descrevem o


plano de imanência do autor, e intervêm na própria criação de seus
conceitos”.[28] É o personagem conceitual, o heterônimo, portanto, que
acaba sendo o sujeito da filosofia, é ele quem manifesta “os territórios,
desterritorializaçães e reterritorializaçães absolutas do pensamento”
(DELEUZE&GUATTARI, 1993, p. 29).

Como um personagem que dribla e desvia, assim me provocou também esse


desvio. A palavra desvio será uma marca na minha narrativa dos encontros com León
porque o desvio é um movimento comum em sua trajetória, tanto espacial quanto
trajetória de vida. O pensar dele atua numa lógica do desvio, em linhas de fuga,
DELEUZE & GAUTTARI (1995) e sua fala também. Muitas vezes se desculpa por
achar que não se expressa bem, na verdade, se desculpa por não seguir uma lógica linear
no raciocínio, em suas narrativas. Os desvios corpóreos que a sociedade exigiu que
aprendesse como tática, se manifestam também na forma de pensar.

1º Drible para sobreviver


Certa vez, precisou correr e desviar de pedradas que desferiram contra ele no
bairro de Bandeirantes, que era, segundo ele um lugar muito conservador. O desvio, das
pedras, dos golpes, dos assaltos, aparece como uma maneira de fazer marcante na
trajetória tecida por León. Que vou desdobrar mais a partir de agora.

2º Drible para sobreviver


Além das pedras, houve um dia que ao sair da aula, à noite, como sempre fazia,
foi andando da Faculdade de Educação onde estudava para o terminal de ônibus de
Niterói como muitos alunos fazem. O caminho, entre a UFF e o terminal, pode ser
desafiador. Há dias que pode ser tranquilo, outros uma desventura em série.
Há primeiro a praça Leoni Ramos, mais conhecida como praça da Cantareira,
onde muitos alunos se reúnem para beber e aliviar as tensões do dia. A praça é também
um espaço de formação muito importante, pois congrega pessoas de todos os tipos.
Pessoas da classe trabalhadora e pessoas da classe média e elite. Ali há intervenções
culturais, pessoas que vivem trajetórias de vida extremamente distintas. A praça da

sumário 315
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Cantareira é um espaço urbano onde se estabelecem muitas tensões e afetos. Ao passar


pela praça, vencendo todos os convites para uma saideira, forma como falamos o ato de
tomar a última cerveja - que a propósito nunca é a última, mas isso é outra questão - os
estudantes passam pela praça e seguem. Há duas possibilidades. Ir pelo caminho
Niemeyer ou pela rua de dentro. Muitos estudantes, temem o caminho Niemeyer por
causa do ambiente escuro e deserto. A outra possibilidade é a rua de dentro onde há
mais iluminação e maior movimentação de pessoas. Mas esse caminho parece mais
longo.
Certo dia, alguns estudantes disseram, que havia tido assaltos numa das ruas. Há
uma espécie de cooperação entre os estudantes. Desconfio que há uma espécie de rede
de cooperação em que uns ensinam aos outros algumas táticas para sobreviverem na
universidade. Seria uma pedagogia da sobrevivência? Nesse dia, saiu León e com o
aviso do assalto, tomou uma outra rua, desviou. Não foi suficiente. Apesar do desvio, da
tática, ele sofreu uma tentativa de assalto. Houve truculência, xingamentos. León
correu, driblou aquele acontecimento como aprendera a fazer desde pequeno. Isso me
faz lembrar como o drible surgiu no futebol como nos conta o professor Renato
Nogueira.
León, assim como os grandes craques do futebol, usou o drible como uma forma
de desviar dos golpes que recebia. Para NOGUEIRA (2013), o drible surge no futebol -
para mim como uma espécie de tática de sobrevivência - como um movimento para
desviar dos golpes que os atletas brancos desferiam contra dos atletas negros. Esses
atletas negros sofriam com o racismo que (re) cortava seus corpos. Os jogadores negros
precisavam ser mais ágeis e mais habilidosos pois, não podiam contar com o
cumprimento das regras do jogo. Podiam e eram prejudicados em favor dos jogadores
brancos. Desse modo, o drible surge como tática, com desvio no sentido físico mesmo,
dos ataques dos atletas brancos. Assim León aprendeu. Aprendeu a desviar das pedras e
dos golpes que desferiram contra ele. Aprendeu a driblar.

3º Drible para sobreviver


Outro desvio ou drible foi quando fazia parte da comissão eleitoral do
departamento estudantil da Faculdade de Educação. O curso de graduação em
pedagogia possui um departamento estudantil. O Departamento Acadêmico é uma
espécie de organização que representa os estudantes, além de ser um espaço de
convivência. Esse D.A. é composto por estudantes que formam chapas e essas chapas

sumário 316
VII Seminário Vozes da Educação

disputam uma eleição com suas propostas e ideias. Há uma comissão eleitoral para que
o processo eleitoral aconteça. León fazia parte dessa comissão como já lhes disse. Havia
uma tensão entre as chapas que disputavam essa eleição. As chapas muitas das vezes
são atreladas a partidos políticos que disputam o movimento político estudantil. Uma
das chapas era atrelada a um partido e havia interesses que tensionavam aquela eleição.
Em um dia dessa eleição, houve uma urna que não foi aberta porque não havia
quórum suficiente da comissão responsável e um grupo se sentiu prejudicado. Um dos
integrantes começou a culpar a comissão por essa urna que não foi aberta e lembremos
que León fazia parte da comissão. Dentro dessa confusão, León entrou no elevador do
prédio da Faculdade de Educação, elevador esse que dá medo a muitas pessoas, pois
não funciona muito bem. Mas o elevador que mal funciona era o menor dos medos que
León teve naquele dia. O integrante da chapa que se achou prejudicado também estava
nesse elevador e foi aí que se deu o abominável. O integrante agride León, verbalmente
e fisicamente. Mais um golpe. Dessa vez não havia como desviar. Do ringue que o
elevador se transformara, numa luta sem juiz e regras, não havia como sair.
Encurralado, a única possibilidade foi gritar. Há momentos que não podemos fazer
muito, nesses momentos "a gente tem que gritar -- com o que sobrar da gente, com os
ossos, com tudo" (TERRA EM TRANSE, 1967). Assim o fez.

Para não concluir, sobre viver

Léon foi caminhando e cantando quando era possível, e desviando quando era
preciso. Num caminhar desviante foi tecendo sua trajetória na universidade.
Conhecendo autores nos livros e textos e outros autores de carne e osso, estudantes que
lhe inspiravam a ser mais (FREIRE,1983). Até que o final do curso chegou. A saga de
estudante acaba com a conclusão do curso? O que será dessa nova trajetória fora do
mundo universitário?
Em León e seu movimento andante pela cidade, percebo também uma maneira
de fazer. Ao andar pela cidade ele aprende táticas no tecido urbano. A apropriação do
tecido urbano, da cidade é diferencial, cada pessoa apreende a cidade de uma forma. Há
espaços urbanos que as classes menos favorecidas são interditadas e outros que a classe
trabalhadora não cogita se aproximar. A classe trabalhadora não possui acesso garantido
em alguns espaços da zona sul carioca, por exemplo. Shopping Centers ou até mesmo às
vezes praias com a diminuição do número das linhas de ônibus. Mas há algo na classe

sumário 317
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

trabalhadora que as astúcias tecem no distrair das estratégias que fazem com que esse
grupo se aproprie da cidade de uma forma diferente. Assim a cidade também se
estabelece como espaçotempo de narrativas de experiências, de enunciações pedestres
(CERTEAU, 2011).
Dessa forma, numa enunciação pedestre, León vai narrando suas experiências ao
andar pela cidade. Aquilo que, a priori, seria um mecanismo de controle sobre ele, é
apropriado e ressignificado e se torna uma tática. Andar pela cidade é enunciar-se, é sair
do anonimato. Andando pela cidade, vendendo bolinhos ou para ir até a universidade,
León vai narrando sua história. A cidade que é também lugar do conflito, agora é
apropriada como espaço de representação. León ao andar pela cidade, se apropria dos
símbolos urbanos uma vez que vivencia a cidade passo a passo; assim acaba por dar
sentido espacial a espaços que antes lhe passavam desapercebidos. Na medida que em
se apropria de cada ponto em que passa, entra numa trama de disputas na/pela cidade.
Sabendo que não é qualquer ponto da cidade que pode andar, em qualquer hora. Há
interdições e possibilidades que precisam ser negociadas.
Desse modo, aquilo que se manifestava como uma ação de poder exercida sobre
León, que p fazia andar pela cidade, foi apropriado como uma maneira própria de fazer,
uma tática que remete ao que CERTEAU vai chamar de “fala dos passos perdidos”.
Para o autor, “Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares”
(CERTEAU, 2011, p.163). É andando por ela que a cidade se constrói. Andando pela
cidade, com suas imprevisibilidades, aventuras e desventuras, León se apropria dela.
Então, aquilo que a priori se manifestava como uma estratégia, como uma opressão
sobre a existência de León, reduzindo sua mobilidade, é reconfigurada e apropriada por
ele como tática. A falta de dinheiro negada por seus pais para se locomover pela cidade,
pode ser entendida como um elemento potencializador para que León transformasse o
ato de andar pela cidade em tática. Então a carência e o sofrimento são indispensáveis
para as táticas? Não posso afirmar, mas em León vejo que essa carência foi apropriada e
ressignificada.
Andar na/pela cidade é de alguma forma enunciar. Enunciar suas formas,
contornos e retas. Enunciar a transformação de um local específico, frio e inerte, em um
espaço com vida, conflitos e cooperação. Ainda mais, andar pela cidade é enunciar que
ao andar se estabelecem relações de poder diferenciais no tecido urbano. Já disse que
enunciar é narrar, de alguma forma. Ao andar pela cidade, León narra seu mundo. Se
insere numa disputa por representação, amplia seu horizonte de existência. Se na igreja,

sumário 318
VII Seminário Vozes da Educação

de um modo geral, ele não tinha muito espaço para narrar sua própria história por conta
dos dogmas, se na família, muitas vezes, também não lhe era permitido pelo
conservadorismo, na cidade ele enunciava, narrava suas experiências. Para León: “O ato
de caminhar parece, portanto, encontrar uma primeira definição como espaço de
enunciação” (CERTEAU, 2011, p. 164).
Assim como uma tecedeira que ponto a ponto junta retalhos na busca de uma
colcha que aos poucos vai se materializando, tomando forma, é também o ato de
caminhar. Cada passo dado é como um ponto da costura. Cada passo molda espaços,
tece lugares na cidade, traço e trajetória, assim como cada ponto qualitativamente vai
formando a colcha ao juntar retalhos. Assim, para CERTEAU (2011) “as motricidades
dos pedestres formam um desses “sistemas reais cuja a existência faz efetivamente a
cidade”. Ou seja, León ao andar, prefiro a palavra vagar, pela cidade em busca de
sobrevivências ia ao mesmo tempo moldando a cidade e tecendo táticas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007. Institui o Programa de Apoio a

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis:Vozes,


2011.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

DELEUZE, G; GUATARRI, F. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol.1 edição


Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. —Rio de janeiro : Ed 34, 1995

DERRIDA, Jacques. Living on/Border Lines. Trad. James Hulbert. In: BLOOM et al.
Deconstruction and criticism. London: Continuum, 1979.

DIDI-HUBERMAN, G. Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. Vera Casa Nova & amp;
EDIFÍCIO MASTER. Direção: Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: VideoFilmes.
2001(110min).

FREIE, P. Pedagogia do Oprimido. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.1983.

LARROSA, Jorge. Epílogo. A Arte da conversa. In SKLIAR, Carlos. Pedagogia


(improvável) da diferença – e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro: DP&A,
2003: 211 - 216.

LOPES, A; FACINA, A; CALAZANS, R; SILVA, D; TAVARES, J.Letramentos de


sobrevivência: costurando vozes e histórias. Revista da ABPN. v. 10, Ed. Especial -
Caderno Temático: Letramentos de Reexistência • janeiro de 2018, p.678-703

sumário 319
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Márcia Arbex. Belo Horizonte: Ufmg, 2011.

NOGUEIRA JR., R. O conceito de drible e o drible do conceito: analogias entre a


história do negro no futebol e do epistemicídio na filosofia. Revista Z Cultural
(UFRJ), v. VIII, p. 34, 2013. Oficial da União, Brasília, DF, 25/04/2007. Planos de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI. Diário restaurada –
Versátil Home Video sob licença da Riofilme Distribuidora].

TERRA EM TRANSE. Direção: Gláuber Rocha. Rio de Janeiro: Mapa Produções


Cinematográficas, 1967/2006 [produção]. DVD duplo filme (115 min), p&amp;b.
[Cópia].

sumário 320
VII Seminário Vozes da Educação

PESQUISA-FORMAÇÃO NARRATIVA (AUTO) BIOGRÁFICA: PROCESSO


DE FORMAÇÃO DAS PROFESSORAS DE APOIO EDUCACIONAL
ESPECIALIZADO RECÉM-CONCURSADAS E PROFESSORAS REGENTES
DO MUNICÍPIO DE NITERÓI - RJ

Joyce da Silva Costa Gonçalves44


FFPUERJ
joysidcosta@hotmail.com

Introdução

A formação docente se estende antes e para além da graduação e se efetiva nas


microatitudes do cotidiano, passando por experiências que o modificam, delineando
contornos de um perfil pessoal e profissional sempre em construção. Sendo assim,
apresento, neste artigo, parte do percurso de uma pesquisa-formação narrativa (auto)
biográfica por meio de rodas de conversas como processo de formação das professoras
de apoio educacional especializado¹ recém-concursadas e professoras regentes do
município de Niterói – RJ. Nesta perspectiva, os encontros estão sendo realizados nos
dois turnos de uma escola municipal onde o foco principal é a “inclusão”²de alunos
“chamados pessoas com deficiência”³ (RIBETTO, 2018) e o trabalho pedagógico
desenvolvido no espaço escolar. A reflexão sobre a prática destas professoras4 consiste
em uma possibilidade de ressignificação de suas ações e construção partilhada de
conhecimentos profissionais.
Como caminho para investigação, destaco questões que me mobilizam no
presente estudo: como os encontros vividos no cotidiano da escola podem potencializar
os processos formativos das professoras de apoio educacional especializado e regentes?
Quais as concepções das professoras de apoio educacional especializado e regentes em
relação às suas práticas? O quê e como elas ensinam? Como a trajetória de formação
interfere na construção identitáriadas professoras e quais os desdobramentos dessa
interferência em sua prática pedagógica? Como se dá o atravessamento entre teorias e
práticas na atuação profissional das professoras?

44
Mestranda da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FFP/UERJ)

sumário 321
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

São questões que me inquietam e, a partir delas, optei por desenvolver a


pesquisa em curso, problematizando a atuação das professoras. Dentre várias vertentes
de pesquisa, proponho como metodologia a pesquisa-formação por meio de rodas de
conversas acreditando que através das narrativas (auto)biográficas é possível partilhar
experiências, refletir sobre nossas práticas educativas enquanto professoras na medida
em que ouvimos e somos ouvidas. De certo modo a “formação não se limita à
dimensão acadêmica, mas que atravessa a vida.” (BRAGANÇA, 2009, p. 263).
Para entender um pouco mais essa esfera educacional, abordo o contexto
histórico da educação entre as décadas de 1930 e 1990, onde iniciaram as buscas de
novos enfoques e paradigmas para compreender a prática e os saberes pedagógicos e
epistemológicos relativos ao conteúdo escolar a ser ensinado/aprendido no Brasil e os
caminhos em construçãoda pesquisa-formação narrativa (auto)biográfica com as
professoras de apoio educacional especializado recém-concursadas e professoras
regentes do primeiro e segundo ciclos do Ensino Fundamental de uma das Unidades
Escolares da Rede Municipal de Niterói – RJ.

1. Abordagem teórico-metodológica

Para a pesquisa em andamento, busco amparo teórico-metodológico nos estudos


do Grupo de Pesquisa-formação Polifonia - https://grupopolifonia.wordpress.com - da
Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FFP/UERJ), da qual faço parte, sob a orientação da professora Inês Bragança. Nos
nossos encontros discutimos autores que ampliam nossas reflexões sobre a pesquisa
formação narrativa (auto)biográfica como Larrosa (2002), Josso (2002), Nóvoa (2007) e
Delory (2006), dentre outros autores.
As discussões em torno do processo de formação dos professores e suas funções
sociais fazem parte de quase totalidade das propostas de reformas dos sistemas
educacionais. Grande parte dos temas referentes à educação conduz a uma implicação
dos/as professores/as, projetando sobre sua pessoa e sua função uma série de
proposições que se assumem como condição para a melhoria da qualidade da educação.
No Brasil, muito pouco havia mudado na educação desde o período do Império.
Não havia um sistema nacional de Educação até então Golpe de Estado, 1930, que
rompeu com a República Velha, iniciou-se um novo período que caminhava para
transformações significativas em todos os setores, inclusive educacional, que pretendia

sumário 322
VII Seminário Vozes da Educação

obter um sistema articulado de ensino, seguindo normas do Governo Federal. Com isso,
o Governo lança importantes objetivos para a Educação: ampliar sua participação no
desenvolvimento da educação nacional; desenvolver instrumentos para unificar,
articular e integrar os sistemas estaduais e desenvolver reformas de intervenções às
Secretarias Estaduais de Educação.
A educação nova, alargando sua finalidade para além dos limites das classes
assume sua verdadeira função social, defendendo as mesmas oportunidades de
educação. Ela tem por objetivo dirigir o desenvolvimento natural e integral do ser
humano em cada uma das etapas do seu crescimento. A escola não é um elemento
estranho à sociedade humana, um elemento separado, mas “uma instituição social”, as
influências numerosas e variadas que formam o ser humano através da existência. Desta
forma, Fernando Azevedo elucida (2010, p. 65),

Toda a profunda renovação dos princípios que orientam a marcha dos povos
precisa acompanhar-se de profundas transformações no regime educacional:
as únicas revoluções fecundas são as que se fazem ou se consolidam pela
educação, e é só pela educação que a doutrina democrática, utilizada como
um princípio de desagregação moral e de indisciplina, poderá transformar-se
numa fonte de esforço moral, de energia criadora, solidariedade social e de
espírito de cooperação.

Com o Manifesto dos Pioneiros, 1932, os vinte e quatro signatários, educadores


e pesquisadores, que compunham este movimento, dentre eles o próprio Fernando de
Azevedo, acreditavam numa verdadeira transformação social através da educação.
Direcionando ao Estado a função de garantir a escola pública, direito de cada indivíduo
à sua educação integral e a escola única, todos os indivíduos em igual condição escolar
em termos da laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação. À Escola, por sua
vez, cabia como função a consciência desses princípios fundamentais da laicidade,
gratuidade e obrigatoriedade como condições essenciais à organização escolar; a
autonomia técnica, administrativa e econômica e a descentralização, organização da
educação brasileira unitária sobre a base e os princípios do Estado. (AZEVEDO, 2010).
Sendo assim, o Brasil direcionava suas atenções para necessidade da
profissionalização do professor da educação básica, especialmente por meio do
movimento da Escola Nova, onde o ambiente de entusiasmo pela educação indicava a
reformulação das Escolas Normais, buscando o encaminhamento para o magistério.
Após longa discussão e disputas de projetos distintos de sociedade que
revelavam diferentes concepções de mundo, de ser humano e de professor, na década de

sumário 323
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

1990, foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nº 9.394/96, de 20 de


dezembro, que, quanto à formação de professores, propõe a elevação ao nível superior
(BRAGANÇA, 2013).
Esse percurso de construção de identidade pessoal e profissional da classe
docente, no entanto, não é linear e homogêneo e sim repleto de lutas e conflitos, recuos
e perdas. Segundo Nóvoa (1999, p. 21) “a compreensão contemporânea dos professores
implica uma visão multifacetada que revela toda a complexidade do problema”,
portanto, a compreensão do processo de profissionalização exige um olhar mais atento
às tensões que o atravessam. Essas tensões dizem respeito aos diversos atores
envolvidos no campo educacional: professores, gestores, famílias, alunos, Estado,
igreja, etc.
Diferente dos movimentos anteriores, o atual apelo por mudança educacional
apresenta aos professores tanto ameaça quanto um desafio que parecem sem
precedentes na história do Brasil. A ameaça vem na forma de uma série de reformas
educacionais que não incluem os professores das escolas públicas em suas decisões,
lhes reduzindo a status de técnicos de alto nível cumprindo ditames e objetivos
decididos por especialistas afastados da realidade cotidiana da vida em sala de aula.
Furtando lhes a possibilidade de aprenderem a refletir sobre os princípios que
estruturam a vida e prática em sala de aula e, assim, negando a própria necessidade de
pensamento crítico. Já o desafio que precisam enfrentar é de unirem-se para melhorar as
condições em que trabalham e demonstrar ao público o papel fundamental que eles
devem desempenhar em qualquer tentativa de reformas às escolas públicas. Os
professores devem assumir responsabilidades ativa pelo levantamento de questões
sérias, de forma que, como intelectuais transformadores, possam combinar reflexões e
práticas acadêmicas a serviço da educação dos estudantes. (GIROUX, 1997).
Defendendo o professor como intelectual transformador, a sua prática docente
passa a ser uma ação que envolve planejamento, emprego da criatividade, técnicas e
inteligência, ampliando sua capacidade de pensamento e reflexão.

2-Sobre a abordagem narrativa (auto)biográfica e caminhos da pesquisa em


construção

No Brasil, Paulo Freire foi um marco na direção de práticas educativas que


consideram a trajetória de vida dos educandos, suas histórias, saberes e narrativas como

sumário 324
VII Seminário Vozes da Educação

referências para construção de conhecimentos, considerados como sujeitos individuais e


coletivos a partir de suas práticas emancipatória. (BRAGANÇA, 2016)
Nóvoa aborda a virada nas investigações que passou a ter o/a professor/a como
foco central em estudos e debates, considerando o quanto o “modo de vida” pessoal
acaba por interferir no profissional. Acrescenta ainda o autor que esse movimento
surgiu “num universo pedagógico, num amálgama de vontades de produzir outro tipo de
conhecimento, mais próximo das realidades educativas e do quotidiano dos professores”
(NÓVOA, 1995, p. 19). Passou-se a estudar a constituição do trabalho docente levando-
se em conta os diferentes aspectos de sua história: individual, profissional, social, entre
outros.
Percebe-se, então, uma mudança nos estudos e pesquisas, que passam a
reconhecer e considerar os saberes construídos pelos/as professores/as, o que
anteriormente não eram reconhecidos.
Nessa perspectiva de analisar a formação de professores, a partir da valorização
de seus conhecimentos e de suas trajetórias, é que os estudos sobre os saberes docentes
ganham impulso e começam a aparecer na literatura, numa busca de se identificarem os
diferentes saberes implícitos na prática docente. Assim, tinha-se em vista que “é preciso
investir positivamente os saberes de que o professor é portador, trabalhando-os de um
ponto de vista teórico e conceptual” (NOVOA, 1992, p. 27).
Dessa forma, resgata a importância de se considerar o/a professor/a em sua
própria formação, num processo de autoformação, de reelaboração dos saberes iniciais
em confronto com sua prática vivenciada. Assim, seus saberes vão se constituindo a
partir de uma reflexão na e sobre a prática. Essa tendência reflexiva vem se
apresentando como um novo paradigma na formação de professores, sedimentando uma
política de desenvolvimento pessoal e profissional dos/as professores/as e das
instituições escolares. Sobre a importância da prática pedagógica, Tardif (2002, p. 16-
17) esclarece que

o saber dos professores deve ser compreendido em íntima relação com o


trabalho deles na escola e na sala de aula. Noutras palavras, embora os
professores utilizem diferentes saberes, essa utilização se dá em função do
seu trabalho e das situações, condicionamentos e recursos ligados a esse
trabalho. Em suma, o saber está a serviço do trabalho. Isso significa que as
relações dos professores com os saberes nunca são relações estritamente
cognitivas: são relações mediadas pelo trabalho que lhe fornece princípios
para enfrentar e solucionar situações cotidianas.

sumário 325
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Além dos teóricos citados acima, a pesquisa baseia-se no conceito de educação e


formação ao longo da vida, a partir do movimento das “histórias de vida” tendo aporte
teórico-metodológico de base (auto)biográfica. Nesse sentido, destaco as contribuições
de Josso “seu contributo principal passa pela definição das histórias de vida como
metodologia de pesquisa-formação, isto é, como metodologia onde a pessoa é,
simultaneamente, objeto e sujeito da formação” (NÓVOA, 2001 apud JOSSO, 2004, p.
15).
Destaco também as contribuições de Abrahão (2008, p.84) quando “trata-se, à
luz das histórias de vida, clarificar, para melhor compreender a própria história da
educação em determinado período histórico-social”, onde a identidade profissional de
professores é uma elaboração que perpassa a vida profissional em diferentes fases,
construindo-se com base nas experiências vividas, nas opções feitas e nas práticas
pedagógicas realizadas, deixando em evidência como cada pessoa envolve seus
conhecimentos e valores, dando forma sua identidade pessoal e profissional.
Destacando ainda que “as histórias de vida constituem-se de relatos produzidos, por
solicitação de um pesquisador, com a intencionalidade de construir uma memória
pessoal ou coletiva”.
Supondo que em uma conversa se desenvolve encontros atravessados de
cumplicidades, de palavras dadas, emprestadas, roubadas, exploradas, ensaiadas e
trocadas. As pessoas que entram nela se sentem à vontade, pois numa conversa se
estabelece uma relação de amizade, nunca se sabe onde ela vai nos levar, não há
previsão, está cheia de diferenças, sendo possível assim, mantê-las e não dissolvê-la.
Numa conversa não existe nunca a última palavra. (LARROSA, 2003)
De acordo com os pensamentos de Skliar (2011) “a conversa é uma tensão
permanente entre modos de pensar e de pensar-se, de sentir e de sentir-se: há
dissonâncias, desentendimentos, incompreensões..., perguntas de um lado apenas,
respostas que não chegam.” Oportunizando conversar e deixar de lado a sensação
solitária do fazer pedagógico no cotidiano escolar. Abandonando, contudo, a ideia de
que conversar é apenas um “duplo monólogo de dois ‘eus’ que sempre estão em
paralelo e nunca se tocam, ou seja, nunca se afetam nunca se movem nunca se
quebram.”.
Dessa maneira esta pesquisa-formação, por meio de conversas não é para
confirmar ou questionar o que já sabemos, mas sim “para ver até que ponto se pode
pensar, com os outros, de outra maneira.” (LARROSA, 2003, p. 213).

sumário 326
VII Seminário Vozes da Educação

Conversar sobre o que fazemos, sobre o que nos passa naquilo que fazemos e
sobre tantas outras coisas que acontecem sobre o ato de educar.
A escola lida com uma pluralidade de sujeitos, sendo necessário reconhecermos
e valorizarmos as diferenças contidas neste contexto escolar. Hoje, este é um dos
grandes desafios a ser enfrentado, a produção de saberes, dando um sentido outro às
práticas educativas inclusivas. Pressupondo que a partilha de experiências significativas
entre nós professoras num olhar para o passado, potencializando o presente e o futuro
venha ao encontro de nossas reflexões e expectativas. Nos momentos de
atravessamentos das trajetórias de vida cada uma de nós irá apreender teorias e práticas
de formação, de ensino, de relações interpessoais e institucionais e de construção
identitária do ser professor/professora.
A proposta está sendo realizar os encontros com as professoras de apoio
educacional especializado recém-concursadas e com as professoras regentes do primeiro
e segundo ciclos do Ensino Fundamental de uma das Unidades Escolares da Rede
Municipal de Niterói – RJ.Para tais encontros, as rodas de conversas têm ocorrido no
horário de planejamento da quarta-feira uma vez por mês nos dois turnos. Destaco aqui
dois encontros já realizados e que tiveram a participação da Equipe Técnica Pedagógica
e das duas professoras da Sala de Recursos Multifuncionais.
No primeiro encontro os temas abordados na roda de conversa foram “O que é
inclusão?” e “Como você se insere neste contexto?”. Iniciei organizando o grupo em
círculo onde todas puderam se olhar e ouvir. Distribui, logo em seguida, a pauta,
solicitei a autorização para a gravação de voz e esclareci sobre a ética da pesquisa de
que nada seria divulgado sem a autorização das mesmas - todas permitiram a gravação.
Esclareci também a intenção da formação que é uma pesquisa-formação narrativa
(auto)biográfica por meio de rodas de conversa, a minha participação no grupo de
pesquisa Polifonia e a importância de continuar a pesquisa com todas as professoras da
Unidade Escolar.
O vídeo “Cuerdas”5foi reproduzido e as professoras puderam comentá-lo em
seguida, o que foi bastante rico, pois as professoras participaram intensamente. Em
seguida, nos organizamos em pequenos grupos, onde cada uma expôs uma narrativa de
experiência com inclusão escolar que lhe foi significativa durante sua trajetória
enquanto professora e, após a narrativa de cada uma, conceituamos a inclusão e como
nos inserimos neste contexto. Compartilhamos e comentamos o conceito de
Inclusãoelaborado pelas professoras e como se sentem inseridas neste contexto:

sumário 327
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

• É perceber o outro como ele é, não limitando este ser (principalmente


por suas faltas). É respeitar sua integridade, as diversidades, tendo
consciência que a maior falta é a social que muitas das vezes não lhe oferece
estrutura e estratégias apropriadas para que este sujeito se torne autônomo e
desenvolva suas potencialidades. Como educadores somos uma ponte que ao
mesmo tempo forma e prepara o aluno para vida e sociedade, também tem a
missão de desenvolver em todos um olhar sensível e aberto as diferenças.
• A inclusão é enxergar o outro além das barreiras que as limitações
podem impor. Assim, é ter sensibilidade e empatia para agir de modo que o
outro se sinta parte do todo.
• Inclusão é permitir o acesso do indivíduo no meio social, respeitando
suas diversidades funcionais, favorecendo seu acesso e participação de forma
plena rompendo as barreiras atitudinais (acessibilidade física, comunicação
alternativa, de aprendizagem entre outros). Favorecendo o acesso do aluno no
aprendizado e em todos ambientes e atitudes da escola. (2019)

Logo em seguida, disponibilizei uma folha com espaço para escreverem a


narrativa que compartilharam no grupo e com autorização para o uso de imagem, da
narrativa e do nome completo como parte da pesquisa. Acordamos a entrega para o
próximo encontro.
No segundo encontro o tema da roda de conversa foi “Trabalho pedagógico”. A
pauta e o tema abordado foram apresentados por mim e aceito anteriormente pela
diretora adjunta que não achou necessário acrescentar outro item. Trouxe como pauta os
seguintes itens: a leitura das narrativas realizadas no encontro anterior e uma dinâmica
com reflexão do grupo. A leitura das narrativas foi acompanhada de comentários e
identificação com as experiências apresentadas.
Seguimos para o próximo item da pauta que foi realização da dinâmica, onde os
professores se dividiram em quatro grupos. A dinâmica teve como objetivo a montagem
de um quebra-cabeça e o grupo que concluísse primeiro ganharia uma caixa de
bombom. Disponibilizei quatro quebra-cabeças, sendo três com vinte e quatro peças e
tamanhos iguais e um com trinta e seis peças e menor, comparado ao tamanho dos
demais. Troquei algumas peças entre os quebra-cabeças para problematizar a dinâmica.
Neste momento, foi bastante interessante, pois as professoras ficaram bem empolgadas
com a possibilidade de ganharem um prêmio! Assim que a brincadeira iniciou, algumas
professoras perceberam que não era possível montarem o jogo com as peças que tinham
e que havia algo de errado, sendo assim, impossível completá-lo. Enfatizei que o único
objetivo era montar o quebra cabeça. O grupo que estava com o maior número de peças
percebeu de imediato, pois as peças que tinham não eram do mesmo tamanho, sendo o
primeiro grupo a buscar onde estavam suas peças para serem trocadas. O interessante

sumário 328
VII Seminário Vozes da Educação

foi que o outro grupo que estava com as peças menores, não teve essa percepção de
imediato.
Algumas falas e comportamentos deixaram claro que, de início, pensaram
somente em ganhar o prêmio, se agilizando na troca das peças. Portanto, quando o
primeiro grupo conseguiu completar o jogo, os demais continuaram na tentativa de
montarem os seus e o último grupo a terminar foi o que estava com o maior número de
peças. Importante enfatizar que uma boa parte das professoras se mobilizou para ajudar
o último grupo a completar o quebra-cabeça.
Terminado a dinâmica, propus que todas pensassem o jogo realizado como uma
metáfora do trabalho pedagógico realizado na escola. Discutimos sobre este tema
chegando a conclusão que não estamos em uma relação de competição, mas sim, numa
atuação coletiva onde o trabalho pedagógico desenvolvido atinge muitas dimensões e
complexidades. Tendo assim, o envolvimento de todas no processo de aprendizagem de
todos os alunos que ali estudam.
Para tal, o proposto nestes encontros está em conformidade com Abrahão (2003,
p.85), quando diz “trabalhar com narrativas não é simplesmente recolher objetos ou
condutas diferentes, em contextos narrativos diversos, mas, sim, participar na
elaboração de uma memória que quer transmitir-se a partir da demanda de um
investigador” colocando em sequência os relatos da sua trajetória profissional,
ressignificando os fatos narrados, “tentamos capturar o fato sabendo-o reconstruído por
uma memória seletiva, intencional ou não”. Através dessa memória, do esforço da
construção dos fatos vivenciados, falados ou calados, reorganizamos e refletimos o
nosso fazer pedagógico e nos transformamos como professoras.
Nesta proposta da pesquisa-formação por meio das rodas de conversas as
professoras deixaram explícitos, em todo o momento, as características das narrativas
em relação a realidade propriamente dita e a representatividade dessa realidade,
conforme apresentado por Abrahão (2003, p.93):

• A narrativa privilegia a realidade do que é experienciado pelos


contadores de história: a realidade de uma narrativa refere-se ao que é reat
para o contador de história.
• As narrativas não copiam a realidade do mundo fora delas: elas
propõem representações/interpretações particulares do mundo.
• As narrativas estão sempre inseridas no contexto sóciohistórico. Uma
voz específica em uma narrativa somente pode ser compreendida em relação
a um contexto mais amplo: nenhuma narrativa pode ser formada sem tal
sistema de referentes.

sumário 329
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Reconhecermos e aceitarmos os relatos a partir das memórias com percepções


pessoais da realidade ressignificada ao longo da trajetória de vida, não elimina a
interpretação das informações que possamos vir a imprimir. Essa interpretação não
desqualifica a interpretação/reinterpretação do narrador, que será respeitada em seu
“estabelecimento de verdade” (ABRAHÃO, 2003).

Conclusão

Portanto, a metodologia está sendo encaminhada, assim, pela pesquisa-formação


por meio de rodas de conversas, acreditando que através das narrativas (auto)
biográficas partilhamos experiências, fortalecemos e refletimos sobre nossas práticas
educacionais no cotidiano escolar. Destacando a narrativa como seu dispositivo, bem
como a memória como conceito básico de pesquisa.
A experiência que modifica todo um contexto da história de vida do sujeito e os
seus questionamentos reflexivos são considerados aspectos primordiais para uma
transformação centrada na formação pessoal. Aspectos esses que nos levam ao
conhecimento de si compreendendo como nos formamos e nos transformamos ao longo
de nossas vidas, tomando consciência de que esse reconhecimento de nós mesmos
permite “visualizar nosso itinerário de vida, nossos investimentos e nossos objetivos,
com base numa auto-orientação possível, numa invenção de si, a qual articula mais
conscientemente nossas heranças, nossas experiências formadoras, nossas pertenças,
nossas valorizações, nossos desejos e nosso imaginário” (JOSSO, 2010, p. 65).
A pesquisa-formação vem se construindo a medida que ocorrem os encontros,
trazendo elementos de compreensão que nos auxiliarão na compreensão das questões
levantadas neste artigo.
Os encontros têm sido riquíssimos na medida em que nos despertam para
momentos de reflexão do nosso fazer pedagógico e nos levam a buscar a compreensão
da inclusão escolar dos alunos ditos com deficiência. Tal posição contribui para uma
mediação escolar adequada onde todos os professores que estão envolvidos no processo
deaprendizagem dos alunos com ou sem deficiência propõem estratégias pedagógicas
que favoreçam a interação aluno-aluno e aluno-professor no contexto escolar.
A oportunidade que estamos tendo nos encontros de expor nossas facilidades e
dificuldades diante das situações que se apresentam no cotidiano escolar, tem nos

sumário 330
VII Seminário Vozes da Educação

possibilitado compreender que estamos numa atuação coletiva onde o trabalho


pedagógico desenvolvido atinge muitas dimensões e complexidades.

Referências

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AZEVEDO, Fernando ET alii. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e


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Rev. Eltrônica Pesquiseduca, Santos, v. 05, n. 09, p. 43-62, jan-jul, 2013.

BRAGANÇA, Inês Ferreira Souza. Concepções e práticas de pesquisa narrativa:


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BRAGANÇA, Inês Ferreira Souza. Vozes da Educação 20 Anos: Memórias, Políticas e
Formação Docente. São Gonçalo: Intertexto, 2016.

GIROUX, Henry. Os professores como Intelectuais. Rumo a uma pedagogia crítica


da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

JOSSO, Marie Christine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.

JOSSO, Marie Christine. Experiências de vida e formação. Natal: EDUFRN; São


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LARROSA, Jorge. A arte da conversa. In: SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável)


da diferença: E se o outro não estivesse aí?. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 211-217

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______. Profissão professor. Porto: Porto Editora, 1999.

______. Profissão Professor. Porto: Porto Editora, 1992.

RIBETTO, Anelice. Uma escola para todos ou escolas para qualquer um?. 2018.
(31m59s). Disponível em: <https://youtu.be/AfevV2BsH8E>. Acesso em: 25jan.2019.

sumário 331
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

SKLIAR, Carlos; FONTOURA, Helena Amaral (ORG.). Políticas Públicas,


Movimentos Sociais Desafios à Pós-graduação em Educação em suas múltiplas
dimensões. Rio de Janeiro: ANPEd SUDESTE, 2011, livro 3

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis/R.J.: Vozes,


2002.

NOTAS
1
As professoras de apoio educacional especializado as quais me refiro são as que atuam em classes
inclusivas da educação infantil, do ensino fundamental e da educação de jovens e adultos, dando apoio
aos professores regentes, quanto ao atendimento das necessidades emergenciais que envolvam os alunos
chamados pessoas com deficiência e propõem estratégias pedagógicas que favoreçam a interação aluno-
aluno e aluno-professor no contexto escolar.
2
Considerando o conceito de inclusão nas instituições escolares a “organização e prática pedagógica
devem respeitar a diversidade dos alunos, a exigir diferenciações nos atos pedagógicos que contemplem
as necessidades educacionais de todos”. <htpp:// www.mec.gov.br>.
3
O Grupo de Pesquisa: Coletivo Diferenças e Alteridade na Educação – da Faculdade de Formação de
Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ) sob a orientação da professora
Anelice Ribetto, utiliza este termo por entender que os sujeitos e suas condições de vida são marcadas
pela diferença e que existem variadas condições de ser e estar no mundo. Não são os sujeitos que se
denominam “deficientes”, mas fundamentalmente os discursos médicos e jurídicos, nesse sentido eles são
“chamados pessoas com deficiência” ou “ditos com deficiência”. <https://youtu.be/AfevV2BsH8E>.
4
Justifico o uso de professoras e não professores, conforme a norma gramatical da língua portuguesa, por
considerar a presença feminina em maior quantidade no magistério.
5
“Cuerdas” é o segundo curta-metragem de Pedro Solís Garcia. Foi considerado o vencedor do Goya®
2014 na categoria de “Melhor curta-metragem de animação espanhola”.
<https://youtu.be/4INwx_tmTKw>.

sumário 332
VII Seminário Vozes da Educação

HISTÓRIA DE VIDA E NARRATIVA (AUTO) BIOGRÁFICA: A


EXPERIÊNCIA DE PESQUISAR “VOZES” NA EDUCAÇÃO COM A
PROFESSORA JACQUELINE MORAIS E O GRUPO DE PESQUISA
ALFABETIZAÇÃO LEITURA E ESCRITA (GPALE)

Rejane Dias Correa Machado


UERJ FFP
prof.rejane.machado@gmail.com

Antonio Silva de Araujo


UERJ FFP
antoniouerj18@gmail.com

Tatiane Nogueira da Silva


tatianenogueira@hotmail.com

Um novo seminário “Vozes da Educação” acontece em dezembro do ano


corrente, 2019. É a sua sétima edição. Momento de entrelaçar caminhos formativos,
processos de tessituras de vivências, narrativas pedagógicas e atravessamentos de
pesquisas. A participação dos mais diversos sujeitos transborda a pluralidade de
espaços, formativos por natureza. Pesquisar como um processo de exteriorização de
olhares, sensações e sentimentos atribuídos acerca do que se é pesquisado. Em uma
perspectiva apresentada pelo círculo de Bakhtin, a polifonia da palavra escrita e narrada
na produção de sentidos, faz-se também pelo diálogo. Na perspectiva da construção
polifônica da palavra, o trânsito de relatos de experiências no dia a dia nas salas de aula
incide desde a Educação Infantil ao Ensino Superior perpassando espaços educativos
não escolares.
No ano de 2016, após aprovação para cursar o Mestrado Acadêmico em
Educação, na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, tivemos a oportunidade de participar do Grupo de Pesquisa Alfabetização,
Leitura e Escrita (GPALE). O GPALE, componente do Grupo Vozes da Educação, tem
por objetivo epistêmico a experiência da pesquisa com narrativas, registros de memórias
e relatos de vivências que apontam os mais variados atravessamentos entre
pesquisadores e seus objetos de estudo.

sumário 333
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Orientados pela professora Jacqueline Morais, tivemos a oportunidade de tecer


conhecimentos com autores que conceituam e valoram as ações promovidas pelo
diálogo, pela troca, pelas relações múltiplas estabelecidas por quem pesquisa e por
quem ou pelo que é pesquisado. A experiência de encantar-se e reencontra-se com a
prática de registro (auto)biográficos possibilitou-nos rememorar práticas e vivências que
nos conduziram ao longo da carreira de professores. O encontro com Jacqueline, intenso
e vivo, fez com não somente a pesquisa, mas tudo aquilo que nos motivou à entrada no
mestrado pudesse reverberar a cada novo dia de participação no GPALE, a cada novo
registro ao longo de duro e grato processo de produção da dissertação.
Registrar essa experiência, neste momento em que agradecemos a oportunidade
por termos convivido e aprendido com Jacqueline, é tecer uma colcha de retalhos com
nuances capazes de fazerem nossos olhos brilharem. Nossas histórias de vida se
atravessam no exato momento em que somos convocados a aventura de concretizar
anseios individuais, a chegada ao Mestrado. Ao longo desse percurso, fomos mais do
que estudantes/pesquisadores, fomos amigos, parceiros de caminhada acadêmica,
acolhida do outro para enfrentar dificuldades na vida pessoal. De fato nos tornamos um
tripé de sustentação mútua: Antônio, Rejane e Tatiane.
A experiência em trabalhar com narrativas perpassou momentos de inquietude,
de falta de compreensão sobre as tarefas a serem desenvolvidas com os relatos e
registros orais. Ainda que os infortúnios de um período curto nos desequilibrassem ao
ponto de desejarmos desistir do curso, estarmos unidos em palavras e ações foi
fundamental para nosso fortalecimento e crescimento nas mais diversas áreas da vida.
Quando falamos de escrita acadêmica, nossa referência no processo da escrita da
dissertação é o GPALE. Os encontros às quintas-feiras durante as manhãs, repletos de
Manoel de Barros, Clarice Lispector, Frida Kahlo, entre muitos outros poetas nos
permite dizer que o processo de escrita transversa arte, beleza, literatura, cultura,
palavras e registros de experiências.
Constituir-nos como pesquisadores fez-se possível pelo diálogo, na troca, na
absorção da palavra e na produção de sentidos, na produção de “Vozes”. Vozes essas
absorvidas dos companheiros do grupo, das poesias sentidas, dos registros de cada um
que se reconstruía coletivamente. Não é um processo fácil partilhar nossas escritas,
tornar a escuta acerca de nossas produções uma escuta sensível. Fazer essa concessão
do eu para escrever com é uma evolução gradativa. Como afirmou Clarice Lispector em
sua obra “A hora da Estrela”: Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas.

sumário 334
VII Seminário Vozes da Educação

Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados. (p.27). Não significa que foi um
procedimento tranquilo, harmonioso, fraterno, porém recompensatório, gratificante.
Lispector (1995) consegue transgredir a importância do registro como transposição de
palavras, de vozes: Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e
assim às vezes a forma é que faz conteúdo. (p.26)
Buscar autores que pudessem nos sensibilizar sobre a importância do registro de
narrativas foi de suma importância para tornar mais nítido o sentido de pesquisas
histórias de vida (auto) biográfica. Como professores da Educação Básica, entender que
fazer-se professor/pesquisador, é possibilitar eternizar memórias, registrar prática e
fazer pedagógico. Práticas estas que por si estão carregadas de ideologias e
compreensão política do papel da Educação.
Consideramos de suma relevância apresentar apontamentos de alguns sujeitos
envolvidos na construção do grupo “Vozes”, de modo a tornar mais nítido o valor da
prática da pesquisa no/do cotidiano mediante relatos de experiências de vida. Esse
movimento de entrega, de fazer com, torna-se possível quando realizamos uma escuta
sensível, de transmutação dos seres que possibilita a fruição dos sentidos múltiplos
expostos e acolhidos do objeto pesquisado. Escuta essa, por vezes, de palavras
produzidas pelo próprio sujeito da pesquisa, como ocorreu com Antonio e Tatiane.
Assim como, o uso de entrevistas por Rejane enfatizam a construção de sentidos das
palavras que, carregadas de valoração, podem se expandir em palavras próprias.
A constituição de sentidos outros, às vozes controversas presentes nos relatos
(auto) biográficos, não dispensando a voz dos sujeitos objetos de
pesquisa/pesquisadores, simboliza a efemeridade da narrativa como viés
epistemológico.

Experiências que nos permitem ouvir “Vozes” – as histórias Gonçalenses como


ponto de partida

Em tudo ouço vozes (Mikhail Bakhtin).

O registro de histórias de vida e narrações (auto) biográficas é consolidado como


metodologia de pesquisa, bem como produção de núcleos de memórias de espaços e
práticas educativas. Aprendemos, junto às professoras que compõe o grupo “Vozes da

sumário 335
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Educação”, a relevância epistemológica da análise e conceituação dos relatos do


cotidiano dos sujeitos que constituem a investigação. Trazer as vozes dos sujeitos que
atuam no fazer pedagógico, relatar as experiências e vivências do “chão da escola”, pelo
olhar de sujeitos múltiplos desse cotidiano, é o objetivo desse grupo enquanto
pesquisadores no campo da Educação. Vozes que, para Bakhtin, concebem a
consciência falante encarnada com a emoção, o juízo de valor, a expressão são
estranhos à palavra da língua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo
em um enunciado concreto. (2003, p.292).
O livro “Vozes da Educação 20 anos: memórias, políticas e formação docente”
apresenta narrativas carregada de sentido que nos remetem ao pertencimento dos
sujeitos que compõem e constroem a pesquisa narrativa no espaço acadêmico da
Faculdade de Formação de Professores (FFP) da UERJ. Localizada no município de São
Gonçalo, região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, a FFP cumpre um
importante papel na formulação de pesquisas relacionadas às realidades daquela região.
Nesse sentido, o grupo de pesquisa tem por objetivo documentar as histórias e
memórias dos mais diversos espaços da cidade, impulsionando os sujeitos
pesquisadores a tecer investigações que registrem essas narrativas.
De acordo com Márcia Alvarenga, desde a criação deste Núcleo, vimos
produzindo pesquisas de forma dialógica, pois acreditamos que os sujeitos das escolas,
dos movimentos sociais, da gestão pública são sujeitos e, como sujeitos, não são
mudos. (2016, p.106). Grafar as narrativas junto à Educação de Jovens e Adultos na
cidade de São Gonçalo transborda a polifonia do caráter educacional, sendo inevitáveis
os sentidos eminentes de estudos sociopolíticos e econômicos. Aponta os
desdobramentos das histórias contadas pelos sujeitos que constituem o fazer pedagógica
desta etapa da educação formal, corroborados pelos atravessamentos de suas histórias
de vidas. Memórias que dialogam com vivências contemporâneas, vozes que dialogam
anacronicamente elucidando a necessária movimentação investigadora do registro de
narrativas.
Marcia Alvarenga (2016), qualifica o processo de pesquisa a partir da oralidade:

Ao escrever “no durante” sobre a experiência vivida, seja quando se produz


dados, seja nos momentos de registro da pesquisa, o pesquisador coloca-se
inevitavelmente em um lugar exotópico (Bakhtin, 2010). Isto é, para
escrever, distancia-se do vivido e, de um outro lugar – e, portanto, com outro
olhar – consegue enxergar coisas inalcançáveis antes, de onde estava. Possui,
assim, um novo olhar, possível a partir dos novos sentidos que se constituem

sumário 336
VII Seminário Vozes da Educação

pela experiência de distanciamento, “estranhamento” e ressignificação do


vivido. Esse lugar que experimentamos implica uma reflexão sobre a ação
que, por sua vez, nos permite tomar consciência, construir horizontes de
possibilidades – e, para atingi-los, modificamos necessariamente o presente,
produzindo, assim, conhecimento na/pela experiência não só de narrar e
investigar, mas também de inventar e reinventar as ações a partir de tomadas
de consciência (p.10).

Da importância de olhar pelo ponto de vista que o outro não consegue ver de si
mesmo, na troca constante, nas possibilidades, no encontro e desencontro, o trabalho
com narrativas permite a construção de novos sentidos, reconstrução de pensamentos,
novas formulações mediante o distanciamento e “estranhamento” com o que objeto
pesquisado. Fazer-se pesquisador e fazer pesquisa pelo prisma de muitas arestas que são
conduzem ao registros das narrativas.
Encontramos no registro de Regina de Jesus um relato afetivo com a pesquisa
que a conduz a um caminho classificado como “natural” a este grupo de pesquisa.

No Grupalfa, encontro-me com as pesquisadoras Maria Teresa Goudard


Tavares, Mairce da Silva Araujo (ambas também pesquisadoras do Vozes da
Educação) e Jacqueline de Fátima dos Santos Morais (com quem ingressaria
tanto na FFP, no mesmo concurso, como no Vozes da Educação) (2016,
p.123).

As vozes, que se constituíram em momento e espaço históricos distintos,


reencontram-se na FFP, no grupo “Vozes”. O convívio em outro grupo de pesquisa na
universidade Federal Fluminense aproximou Regina e outras professoras que
ingressaram na unidade. Estariam, a partir dali, (re) construindo trajetórias de vida,
fazeres políticos e pedagógicos por meio das narrativas que teve início no Grupo de
Pesquisa Alfabetização das Classes Populares na Universidade Federal Fluminense com
orientação de Regina Leite Garcia.
Em seu relato, deixa marcas da importância em registrar a história de modo a
mantê-la viva. Ao escrever, ao invés de apenas narrar, o sujeito histórico oferece um
objeto a ser observado. No entanto, quando o pesquisador cumpre a tarefa de registrar o
que lhe é contado, cabe a ele o papel de eternizar a oralidade. Tratando-se de pesquisa, a
fala torna-se um instrumento de análise, observação, avaliação e estudo.
As narrativas possuem, de acordo com os apontamentos das participantes do
“Vozes”, papel fundamental para visibilidades de realidades sociais distintas, dos
diversos campos da educação, da correlação de fatores internos e externos ao processo
educacional, do compromisso em garantir os sentidos atribuídos aos mais variados

sumário 337
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

sujeitos com análise das complexidades relativas às condições de vida e do papel da


Educação na (trans) formação das experimentações em seus cotidianos.
Anelice Ribeto registrou que a aproximação do grupo Vozes da Educação
ocorreu com a participação em seminários promovidos com o intuito de apresentar
registros do cotidiano e das práticas pedagógicas no que chama os de “chão da escola”.
O que me fez participar foi exatamente a abertura para que as vozes dos professores de
escola básica apareceram em espaço acadêmico. (2016, p.43) Ao longo do texto,
apresenta sua proximidade epistemológica no campo da Educação Inclusiva,
relativamente recente em investigação em Educação. Ressalta a importância de
materializar os saberes referidos as políticas e práticas educacionais para a inclusão das
pessoas consideradas diferentes.
Como afirma nossa professora orientadora, Jacqueline Morais, a criação e a
trajetória do “Vozes da Educação” está consonante a um projeto de sociedade mais
solidária, comprometida e crítica. (2016, pg.61) A pesquisa em Educação tendo as
narrativas (auto) biográficas e histórias de vida como metodologia, como viés
epistêmico ante a produção acadêmica precisa está comprometida com a mudança
desejada na sociedade mediante uma educação que fomente questionamento, o
pensamento crítico, a autonomia, bem como a solidária, humanização das ações e
saberes.
Registrar a importância do “Vozes da Educação” para as pesquisadoras e
professoras da FFP reflete as marcas desse grupo em nossa história formativa. Os
distintos percursos se cruzam em um projeto que pretende possibilitar a escuta sensível
dos sujeitos. O encontro com o estudo das narrativas e histórias de vida nos permitiu
transcorrer uma caminhada investigava mais próxima às nossas realidades pedagógicas.
Professores da Educação Básica, carregados de experimentações, encontramos no
estudo dos registros de relatos de vivências a possibilidade de dar corpo, alma e sentido
o árduo trabalho de tecer uma pesquisa dissertativa de Mestrado Acadêmico.
Somos gratos, também, pelo nosso encontro, por fazermos parte da história de
vida uns dos outros. Por sermos parte de um processo formativo que não se limita, de
forma alguma, ao conhecimento acadêmico, mas ao crescimento enquanto seres
humanos que dialogam que se libertam e se transformam com e pela palavra alheia até
que se transborde em palavras próprias, como afirma Bakhtin. As vozes que nos
constituem hoje.
A nossa construção como professores pesquisadores dos nossos cotidianos

sumário 338
VII Seminário Vozes da Educação

Todo esse movimento que vivemos de encontros e de desencontros, de


trabalho com as narrativas e com a escrita autoral, possibilitou que pudéssemos repensar
nossas ações como professores, compreendendo-nos como pesquisadores dos nossos
cotidianos profissionais.
Freire (1996) afirma que “não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino”
(1996, p. 29). O autor defende que o professor é um pesquisador, porque ao ensinar,
pesquisa, indaga, realiza constatações. Esse movimento torna-se constante pelo
professor reflexivo e pesquisador na abordagem de Freire (1996).
A discussão sobre o professor pesquisador em Freire (1996) carrega uma
dimensão política e epistemológica. Posso considerá-la política porque toda ação
humana ocorre em processos de interação e de interlocução com outros seres. Isso é o
que ocorre durante o ensino-pesquisa. Trata-se de uma dimensão epistemológica porque
envolve compreensões do que seja conhecimento, docência e pesquisa. As leituras de
diversas obras de Freire apontam para a não neutralidade da educação e por isso a
considera como um ato político.
Outra autora que pode dialogar com as reflexões de Freire (1996) e que levanta a
bandeira da professora/professor como pesquisadora/pesquisador é Garcia (2001). Ela,
assim como Freire (1996), não concebe a pesquisa na escola como um outro sujeito que
do espaço educativo se apropria, com suas próprias verdades, buscando falar sobre a
escola e não com a escola. Os autores defendem que os professores devem construir
outras maneiras de olhar para os seus cotidianos, objetivando outras formas de
estranhamento e de compreensão deles.
As reflexões de Garcia (2001) e de Freire (1996) provocam a reflexão: será que
a maioria dos “pesquisadores” faz pesquisa sobre a escola ou com a escola? De que
natureza é a pesquisa docente? Sobre a pesquisa no cotidiano, Garcia (2001) indaga:

[...] será que o que pesquisamos e escrevemos contribui para melhorar a


prática pedagógica, a aprendizagem dos alunos e alunas, produz alguma
mudança na escola, influi sobre o sucesso ou fracasso escolar, contribui para
o silenciamento ou para a tomada da palavra de quem tem sido
historicamente impedido de falar, vítima da discriminação, rotulação,
segregação e exclusão na sociedade e na escola? (GARCIA, 2001, p. 22).

Ao abraçar a causa das pesquisas no cotidiano escolar, a autora sai na defesa de


que os próprios professores podem se tornar protagonistas de suas ações,

sumário 339
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

compreendendo-se como professores-pesquisadores, que pensam e recriam seus


cotidianos constantemente.
Conceber o professor como um pesquisador de sua própria prática é romper com
a ideia de que a legitimidade para a pesquisa está somente em instituições como as
universidades, as secretarias de educação, entre outras. Freire (1996), ao salientar que o
professor é um pesquisador constante de sua prática, acaba por refutar a separação entre
educador e pesquisador. O professor não deveria se separar da pesquisa. O ser professor
já remete à pesquisa.
Professores pesquisadores do GPALE

Temos procurado entender nossas práticas como potencializadoras de sentidos,


compreendendo, a partir de um posicionamento político, que concebe o cotidiano da
escola como um espaço de construção e de construção de sujeitos. Neste sentido,
podemos afirmar que esse cotidiano é vivo, pois está em constante movimento. Por isso
defendemos uma posição de escuta dos sujeitos inseridos na escola, defendendo-os
como construtores de conhecimento.

sumário 340
VII Seminário Vozes da Educação

Garcia (2003) apresenta o conceito de “prática-teoria-prática” afirmando que “de


pouco nos valeria produzir belas explicações teóricas se elas não contribuíssem para a
transformação do mundo.” (GARCIA, 2003, p. 11). A autora defende uma teoria que
ajude a transformar o mundo e não simplesmente a interpretá-lo. Esse compromisso
com a transformação está imbricado nas postulações da autora, que em cada linha de
seus escritos apresenta uma crença em uma prática transformadora, comprometida com
os alunos das classes populares.
Para Freire (2009), “a prática docente crítica, implicante do pensar certo,
envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer” (2009,
p. 38). Os autores, portanto, defendem uma postura reflexiva por parte do professor, no
sentido de que este se reconheça como pesquisador de sua prática. O professor reflexivo
pensa sua prática e busca reinventá-la constantemente.
Quando Garcia (2003) traz o conceito de “prática-teoria-prática”, defende que se
crie um movimento em que “partimos da prática, vamos à teoria a fim de a
compreendermos e à prática retornamos com a teoria ressignificada, atualizada,
recriada, dela nos valendo para melhor interferirmos na prática” (GARCIA, 2003, p.
12).
Nesse caminhar temos vindo tecendo nossos fazeres nos entendendo como
profissionais reflexivos, que pensam suas práticas criticamente. Não se trata de um
exercício simples, principalmente quando estamos inseridos em uma conjuntura política
que mais pretende alienar o professor, reduzindo duas funções à meras repetições,
esvaziando-o de criticidade e de autoria sobre a sua própria função.
Defendemos um professor que, inserido em seu cotidiano, o repense e seja capaz
de o recriar. Partimos da premissa de que o professor pesquisador vive a auto formação
como um movimento de encontro consigo mesmo. Assim, vai traçando caminhos na
busca por reconhecimento profissional, como sujeito pensante que constrói e está em
constante processo de transformação.
Garcia e Alves (2002) afirmam que “não se trata de formar o pesquisador,
somente, mas de reconhecer no sujeito da prática essa capacidade de interrogar a
realidade em que vive.” (2002, p. 102). As autoras se referem a uma contextualização
da prática, de forma que os educadores a enxerguem e a problematizem de maneira
ampla. Tudo isso passa não só pela formação, mas pelo reconhecimento do professor
como sujeito capaz de pensar a sua própria prática, potencializando o cotidiano da
escola.

sumário 341
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Dos encontros e desencontros com a pesquisa, com o processo de (re)fazer


pesquisadores dos cotidianos com uso das narrativas, nosso encontro com Jacqueline
Morais e com o GPALE nos permitiram crescer ao reinventar a arte de registrar práticas
educacionais no cotidiano de escolas públicas, dos fazeres docentes aos discentes, com
a preocupação de constituir a pesquisa com sentimentos, com saberes e sabores que se
tornam ainda mais potentes e significativos com o uso de narrativas.
Que nossas pesquisas possam se eternizar, assim como se eterniza o encontro
orquestrado com Jacqueline nessa caminhada acadêmica. Que possamos eternizar suas
palavras e seu amor pela possibilidade da produção acadêmica de modo a referenciar
uma educação pública, gratuita, inclusiva e socialmente referenciada. Jacqueline,
presente, hoje e sempre.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.


São Paulo: Paz e Terra, 1996.

_____. Pedagogia do oprimido. 17. edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

_____. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 50. ed. São
Paulo, Cortez, 2009.

_____. Educação como prática da liberdade. 42. edição. Rio de Janeiro/ São Paulo:
Paz e Terra, 2018.

GARCIA, Regina Leite. Para que investigamos − Para quem escrevemos: reflexões
sobre a responsabilidade social do pesquisador. In: ______. (Org.). Para quem
pesquisamos: Para quem escrevemos: o impasse dos intelectuais. São Paulo: Cortez,
2001.

______. (Org.). Método: pesquisa com o cotidiano. DP&A, 2003.

GARCIA, Regina Leite; ALVES, Nilda. Conversa sobre pesquisa. In: ESTEBAN,
Maria Tereza; ZACCUR, Edwiges (Orgs.). Professora pesquisadora – uma práxis em
construção. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 23. edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1995.

TAVARES, Maria Tereza Goudard, BRAGANÇA, Inês Ferreira de Souza (org). Vozes
da educação 20 anos: memórias, políticas e formação docente.Niterói: Intertexto,
2016.

sumário 342
VII Seminário Vozes da Educação

QUAIS MARCOS E DATAS COMPÕEM NOSSAS MEMÓRIAS DE


INFÂNCIA?

Marta Maia – UFF


marta965@globo.com

Introdução
Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade e noite a girar
(Villa Lobos).

Quais marcos e datas compõem nossas memórias de infância? Essa pergunta foi
feita a um grupo de professores, gestores e estudantes de Pedagogia em um encontro de
formação. A análise sobre suas respostas compõe esse trabalho, no intento de refletir
sobre a relação entre os marcos e datas anunciados e aqueles que tradicionalmente são
valorizados na escola.
A pergunta foi feita no encontro formativo “FIAR com...memorações – marcos e
datas da infância” que se realizou em setembro de 2019 na Faculdade de Educação da
Universidade Federal Fluminense.
FIAR com... é um encontro de formação realizado periodicamente pelo FIAR –
Círculo de Estudos e Pesquisa Formação de Professores, Infância e Arte, vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense – UFF.
O grupo FIAR, articulando ensino, pesquisa e extensão, tem como centralidade a
temática da formação docente em diálogo com a arte, a cultura, a infância, a memória, e
esses encontros se propõem a ser momentos/espaços de experiências coletivas,
perpassadas pela sensibilização, a rememoração, o fazer à mão, cultivando um tempo
alargado para pensar, fazer, contar; nesse tempo-espaço, busca-se contribuir com a
ampliação do repertório cultural e pedagógico que, acreditamos, deva constituir o
conhecimento de professores em geral e, em particular, de educação infantil.
O tema do encontro que aqui será focalizado, parte das pesquisas realizadas pela
autora (MAIA, 2011; 2016,) nas quais se evidencia que o currículo da educação com

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

frequência se organiza através de datas comemorativas do calendário oficial. Datas que


primam por serem de natureza religiosa, cívica e moral, apartadas dos sujeitos que
transitam nas escolas. Esse currículo tem raízes políticas e ideológicas que pretendem
formar cidadãos que defendam uma certa forma de ser e estar no mundo.

Fiando lembranças e afetos


O encontro, seguindo a proposta do grupo FIAR de trazer a experiência estética
com centralidade e a memória como fator preponderante na formação, transitou de uma
análise convencionalmente teórica para uma abordagem sensível sobre o tema do
currículo organizado por datas. Pensado para envolver professores e gestores de
educação de redes públicas e alunos do curso de Pedagogia no tema, ele foi organizado
de forma a oportunizar a sensibilização para a acessar as memórias.
Ao chegar à sala marcada para o encontro, os participantes puderam degustar um
lanche, enquanto se conheciam e/ou se reencontravam. Entre conversas, cumprimentos
e degustações, eram exibidos vídeos que remetiam à infância. Feita a recepção, foram
convidados a assistir esses vídeos, que eram animações das músicas “O trenzinho do
caipira” (Villa Lobos) e “Bola de meia, bola de gude” (Milton Nascimento e Fernando
Brant).
O espaço em que se sentariam estava organizado com as cadeiras reunidas em
pequenos grupos, que formavam pequenas ilhas com brinquedos ao centro – como
bonecas, bolas, carrinhos, objetos como chapéus, óculos, echarpes e jogos –, que
convidada à interação e, como esperado, promoveram instantes de exploração dos
materiais, brincadeiras e conversas animadas.
Da interação promovida ao redor da experimentação dos brinquedos, puxou-se
um fio para a reflexão: sobre a própria infância, sobre os marcos e datas que marcaram
seu tempo de criança: que datas faziam parte de sua história, que comemorações
permanecem em suas lembranças? As memórias que foram puxadas do passado e
vivificadas no presente do encontro, puderam ser desenhadas ou escritas, em material
disponibilizado. Esses marcos e datas reavivados da infância foram, depois, socializados
oralmente com todo o grupo, a partir da apresentação do desenho ou escrita produzidos.
Os registros imagéticos ou textuais foram afixados em um calendário exposto,
sendo que cada participante elegeu um mês para fixar seu registro, entre janeiro e
dezembro. Dessa forma, construímos um calendário a partir dos fatos das infâncias dos
sujeitos envolvidos.

sumário 344
VII Seminário Vozes da Educação

Esse calendário foi então comparado ao calendário que serve de base aos
currículos das escolas, em particular de educação infantil, buscando promover a
reflexão sobre como os currículos não têm centralidade nas crianças e suas infâncias.

Marcos e datas... o calendário


O calendário que permeia e até orienta os currículos das escolas é um calendário
oficial repleto de datas e comemorações de caráter civil e religioso. Em outros trabalho
(MAIA,2017), apontamos como o calendário civil impregna o currículo das escolas, em
particular na educação infantil, e como esse calendário é formado por uma construção
política-ideológica-religiosa. Observamos que, no currículo, as datas comemorativas
“[...] aparecem como catalizadoras de uma moral religiosa e cívica e, mesmo aquelas
que se relacionam à conhecimentos sobre a sociedade acabam por serem restritivas
sobre esses conhecimentos ou podem apresentá-los de forma estereotipada (MAIA,
2017, p.13).
Constatamos, em nossas pesquisas, que, muitas vezes, o currículo que se
organiza pelo calendário, logo por datas demarcadas no calendário, é defendido como
uma forma de aproximação da realidade da criança. Essa defesa se dá em relação a
datas que contém forte apelo religioso e comercial, como Páscoa ou Natal e ainda o dia
das crianças. Nesse caso, o currículo se rende a uma demanda da mídia, que impregna a
vida das pessoas e acaba por ter maior protagonismo na escola do que a vida local e
coletiva na qual a escola se insere. Esse currículo traz a marca adultocêntrica que ainda
domina as práticas escolares, uma vez que a decisão sobre o que importa parte de uma
decisão apenas do adulto (MAIA, 2017).
Em outra pesquisa desenvolvida (MAIA, 2016b), analisamos o que dizem as
crianças de quatro e cinco anos sobre o currículo que se desenvolve em suas escolas. A
análise indicou que, quando as atividades estão relacionadas a assuntos que lhes
importa, mesmo que sejam datas comemorativas, as crianças têm o que dizer sobre elas.
Quando as atividades não fazem sentido, elas justificam que estão fazendo o que foi
pedido ou orientado. Por que fez essa atividade?, perguntamos a uma criança; e
resposta foi: “Isso é o que eu não sei responder” (MAIA, 2016b).
Segundo Julia (2001, p.22) a cultura escolar se relaciona ao “remodelamento dos
comportamentos, na profunda formação do caráter e das almas que passa por uma
disciplina do corpo e por uma direção das consciências”. Logo, especialmente na
educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, a escola tem uma

sumário 345
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

possibilidade importantíssima na conformação dos sujeitos, na formação das


singularidades. A escola apresenta a criança um recorte do que o mundo lhe apresenta.
Isso outorga a escola uma gravidade e responsabilidade em relação as crianças com
quem ela trabalha.
O calendário que afeta e conforma o currículo precisa ser tratado com extrema
responsabilidade pois “Os que controlam o calendário controlam indiretamente o
trabalho, o tempo livre e as festas. (LE GOFF, 1990, p. 293). Ainda, segundo Le Goff
(1990, p. 485), o calendário “é um objeto cultural... enquanto organizador do quadro
temporal, diretor da vida pública e cotidiana, o calendário é, sobretudo, um objeto
social”.
Como objeto social que organiza o quadro temporal no qual estamos inseridos,
defendemos que o calendário que transita na escola precisa ser um outro calendário. Um
calendário ampliado, que, mais que apresentar os marcos valorizados social, política e
religiosamente, dê visibilidade e prioridade aos sujeitos submetidos a ele, suas vidas,
histórias, projetos. Um calendário comprometido com um currículo atento aos sujeitos
reais e encarnados que se encontram na escola, atento as demandas das crianças, que as
escute, enxergue e reconheça como protagonistas desse currículo.

Rememoração
O “FIAR com... memorações – marcos e datas da infância”, se constituiu como
um encontro de formação que se funda na busca pelas memórias de infância e sua
narrativa, partindo do princípio de que rememorar e narrar são parte de uma mesma
cadeia de possibilidades de presentificação do vivido. De acordo Benjamin (2012, p.
198), narrar nos permite trocar experiências. Trocar experiências é estar em contato e
interação com o universo vivido pelo outro. A narrativa nos coloca no encontro com o
outro e conosco, uma vez que a experiência narrada se dá em um tempo/espaço que
também nos constitui no agora e no que nos trouxe até ele: nossa história vivida.
Rememorar e narrar é trazer à cena, ao diálogo, as sensibilidades, o que nos constitui
como sujeitos. Somos sujeitos constituídos e carreados de memórias, experiências
vividas que nos tornam quem somos e como somos.
Ainda segundo Benjamin (2012, p. 197), “a arte de narrar está em vias de
extinção”, porque já não temos tempo de nos ouvir, de dar ao vivido o status de
experiência, daquilo que nos marca e nos modifica. Na modernidade vivemos na

sumário 346
VII Seminário Vozes da Educação

superficialidade, na qual a informação efêmera tem mais visibilidade e importância do


que a coisas vividas em sua intensidade e profundidade.
Rememorar é mais do que lembrar, é acessar na memória aquilo que importa e
que merece ser narrado. O que merece ser narrado? A experiência, aquilo que vivemos
pessoalmente ou o que foi vivido pelo outro e a nós narrado, que nos dá uma
perspectiva, uma forma de ser e entender, que nos possibilita conhecer e compreender a
nós mesmos e o outro.
Benjamin (2012, p. 203) também categoriza os narradores entre os que trazem as
novidades e os trazem a tradição, mas quem melhor narra une as duas possibilidades.
Narrar as próprias memórias, de certa forma, permite essa interseção entre o fixo
e volátil. Quem narra as memórias de infância é o adulto que olha para si como quem
olha uma paisagem, olha um outro que é a si mesmo. Um adulto que fala de si criança,
uma criança que fala a si, adulto. Sobre a criança Benjamin nos diz:

O hábito ainda não fez a sua obra. Uma vez que começamos a nos orientar, a
paisagem desapareceu, como a fachada de uma casa quando entramos. Ainda
não adquiriu uma preponderância através da investigação constante,
transformada em hábito. Uma vez que começamos a nos orientar no local,
aquela imagem primeira não pode nunca restabelecer-se (BENJAMIN, 1995,
p.43).

Assim, quem viveu aquela experiência narrada, a criança a qual o hábito não fez
sua obra, é ouvida e narrada por quem ele, o hábito, já o fez. E esse encontro entre
memória e narrativa produz um novo significado para o vivido, faz dele uma
experiência a ser narrada ao outro, produz um conhecimento de si no encontro com o
outro.

Os marcos e datas
Os marcos e datas trazidos pelos participantes do encontro trazem a percepção
de como “as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo
inserido no grande”. (BENJAMIN, 2002, p. 57-58). Não sabemos se o que narraram
ocorreu exatamente como narrado e isso não é o que nos importa. A intenção não era
fazer um inventário do vivido. A intenção era trazer recortes da memória da infância
vivida pelos diferentes sujeitos que ali se encontravam. Como cada um viveu sua
infância construindo um mundo próprio, como observa Benjamin acima, cada um
narrou seu mundo próprio. Esse mundo próprio passou pelo filtro da relevância, foi

sumário 347
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

lembrado o que teve relevância. O lembrado passou pelo filtro do narrador, o adulto que
se olha, que olha à distância a si mesmo, criança.
Os recortes da memória expressados em registros gráficos ou narrativas orais
serão aqui tratados como objetos de uma coleção, numa relação dialética de ordem e
desordem proposta por Benjamin (1995), compreendendo que:

Tratar o conhecimento como coleção é retirar do contexto o que nos mobiliza


e analisá-lo por si só, por ele mesmo, agrupado na relação com o que tem em
comum, sem as implicações imediatas do contexto. O colecionador não
desconhece que existe um contexto do qual o objeto de sua coleção foi
retirado, mas lhe permite assumir inúmeros sentidos dados pelo colecionador
em interação com o próprio objeto, na relação com tantos outros de
sua coleção. Múltiplas verdades incompletas e inacabadas, logo descontínuas,
são possibilitadas ao tratar o conhecimento como coleção, vários significados
emergem na relação com o conhecimento que se constrói
(SCRAMINGNON; MAIA, 2010, p.13).

Desse modo, os recortes da memória serão aqui organizados e agrupados


buscando uma relação entre eles, independente de quem o narrou ou agregado a qual
outro fato, procurando significados diversos que possam contribuir com nossas análises.
E o que dizem suas narrativas? O que aparece do mundo próprio da criança? O
que aparece de relevante desse mundo próprio? O que o narrador presentificou em sua
narrativa? Como descrito anteriormente, houve uma ambiência para provocar o acesso a
memória de infância: vídeos, músicas, brinquedos, momento para brincar, diálogo em
grupos. Tudo para provocar um momento de introspecção, de conexão com sua história,
de acesso as memórias.
Foram trinta e quatro participantes que deixaram suas narrativas registradas,
fosse através de desenhos, fosse através de palavras. Alguns trouxeram situações
específicas, os marcos, aquelas situações que os marcaram pontualmente, fosse pela
alegria, fosse pela tristeza. Outros trouxeram as lembranças de fases, tempos de suas
vidas.
Quatorze falam de outras crianças em suas memórias, fossem irmãos, primos ou
amigos, dez falam de brincar na rua, oito de brincar no quintal, oito citam festas de
aniversário, de datas comemorativas, como dia das mães, ou religiosas, três falam da
escola.
Os que falam de festas, o fazem no âmbito da família e da igreja. Os que falam
de datas, o fazem no âmbito da família ou da rua, como o dia de Cosme e Damião.

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VII Seminário Vozes da Educação

Outros temas apareceram como: os brinquedos – boneca, bicicleta, cavalinho; a copa do


mundo, pescaria, separação, casa de avô, aprender, acidente.
Uma pessoa se desenhou negra, com cabelo cheio, alto, enrolado, pensando em
uma criança branca, loura de cabelos longos, o que nos faz inferir que tenha registrado o
impacto do racismo desde a sua infância. Essa pessoa não narrou oralmente suas
memórias.
As narrativas orais não fizeram menção à escola, mas três registros escritos a
trazem. Uma pessoa desenhou uma sala de aula tradicional, com carteiras arrumadas em
fila e uma pessoa olhando, talvez ela mesma. Esse desenho aparece entre outros da
mesma pessoa que remete a atividades fora da escola. Um segundo registro traz a
memória da festa de formatura e Natal na escola, com a chegada de Papai Noel, e da
semana da criança na escola. No terceiro registro, a autora diz que aprendeu na infância
o valor das miudezas e narra: barulho das cigarras, vagalumes, céu estrelado, lua a
segui-la, canto de pássaros, gatinho na quenturinha do fogão à lenha, galinhas, histórias
de assombração e abandono. Lembranças de um brincar que só era permitido em casa,
nunca na rua. Traz em paralelo o gosto pela escola pois “amava a escola!”. Não ir à
escola era o castigo às travessuras. Da escola lembra de estudar com os amigos, de
folear livros na biblioteca e do sorriso das professoras.
Dentre os fatos caracterizados como marcos, ou eventos que marcaram a
infância, temos duas categorias: datas de eventos que se repetiram durante a infância e
uma data ou fato específico ocorrido na infância.
Sobre as datas que se repetiram durante a infância temos o registro dos próprios
aniversários feito por três participantes; o Natal também é citado por três participantes;
o dia de Cosme e Damião por dois; a Páscoa por um; o dia de São Judas Tadeu por um;
o dia das mães por um e o dia das crianças também por um. O comum entre esses
registros é que eles falam do encontro entre os familiares, entre esses e a vizinhança, o
ambiente alegre e festivo, a possibilidade de aventurar-se pelas ruas como no dia de
Cosme e Damião; ou de visitar outros espaços, como a Quinta da Boa Vista no dia das
crianças. Em um dos registros o Natal vem permeado das memórias de preparativos da
família com a casa para viver a data, uma memória recheada de cor e odor das tintas que
pintavam anualmente a casa.
Dentre os fatos específicos ocorridos na infância, temos copa do mundo de 1970
como um fato marcante, porque a menina se recorda da casa da avó. Conta ela que em
uma sala cheia de móveis, a TV se destacava, em frente a qual a vizinhança se reunia,

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

por ser a única da redondeza. Ainda tendo na varanda a mesa do lanche fornecido por
todos. A menina recorda a expectativa de todos em ver a seleção entrar em campo,
cantar o hino e gritar: gol! Uma memória que classifica como cheia de esperanças e
alegrias e a fazia adorar o futebol.
Temos o momento de ganhar o presente tão esperado, quando aos oito anos a
menina não consegue dormir de felicidade com a novidade dada pela mãe, a boneca tão
desejada.
Sobre brinquedos também há a narrativa de ganhar o brinquedo que não gostou,
quando o artefato industrializado dado para substituir o reutilizado retira do brincar a
fantasia que o movia. O menino narra a felicidade em brincar de cavalo pela rua com as
vassouras da mãe, o que nos lembra a colocação de Benjamin sobre as crianças:

Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da


construção, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate
ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que
o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles,
estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em
estabelecer uma relação nova e incoerente entre esses restos e materiais
residuais. (BENJAMIN, 2002, p. 57-58).

A mãe, de tanto assistir aquela felicidade decide presentear o menino com um


cavalinho de pau. A estrutura era a mesma: um cabo de vassoura, só que agora com a
cara do cavalo. Isso, recorda, lhe tira a alegria de imaginar seu próprio cavalo nas
piaçavas das vassouras. Brincar de cavalo já não tinha a mesma magia.
A aprendizagem que traz a entrada em novas aventuras aparece em duas
narrativas sobre a bicicleta: uma conta a ajuda e encorajamento do pai, outra remete a
andar com os irmãos no carona e no guidão aproveitando para correrem juntos atrás dos
doces de Cosme e Damião.
Duas narrativas são sobre as mudanças de moradia. Para uma das pessoas a
mudança veio acompanhada da presença dos seus antigos vizinhos em uma
comemoração na casa, como a dizer que ela não ficaria sem eles. A outra situação de
mudança de uma família que se mudava muito registra a perda do quintal, a chegada em
um bairro no qual não se podia brincar na rua e a chegada a uma nova cidade para ser
mais feliz.
Os fatos específicos nem sempre foram os mais felizes. Foi trazida a lembrança
do acidente na infância, a perda da bisavó e a separação dos pais. Uma separação aos

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VII Seminário Vozes da Educação

cinco anos de idade, seguida de uma ausência das lembranças até os oito anos, com as
brincadeiras de rua.
Narrativas que nos lembram que a infância não é uma época doce, distanciada da
vida concreta e objetiva, que as crianças estão inseridas no mundo organizado pelos
adultos.

Em diálogo com as narrativas


A maior parte das narrativas fala de momentos felizes, assim como dos
momentos em família e entre amigos. Os registros gráficos trazem a escola em pequeno
número, as narrativas orais não trazem a escola.
As narrativas orais ainda trazem uma outra característica bastante enfatizada: as
crianças narradas estavam felizes, principalmente, na ausência dos adultos. Esse dado
aparece em falas como: “quando ficávamos só entre nós”, “quando a mãe não estava
perto”, “quando a gente podia aproveitar”. Isso não significa que essas crianças fossem
infelizes ao lado dos adultos nas suas infâncias, mas que a liberdade de ser criança
vinha com a ausência deles.
Analisando o material gerado no encontro em questão, é possível dizer: o que
povoa as memórias de infância são os encontros entre pares e a brincadeira,
preferencialmente em espaços que permitam sua expressão.Talvez esse seja um dado
que ajude a pensar na ausência da escola nas narrativas. Elas se concentraram nos
espaços e tempos da relação com os pares, da brincadeira e a liberdade de expressar-se.
A escola se caracteriza como espaço/tempo sob a orientação e supervisão do adulto.

O calendário construído
Após as narrativas orais, os participantes foram convidados a inserir seus
registros em um calendário esboçado em um quadro. O quadro se encontrava dividido
pelos meses do ano, com espaço para receber os registros. Assim, cada um buscou
associar seu registro a um dos meses, construindo um calendário que apresentava como
fatos os das suas infâncias.
Dessa forma, os registros de férias entre irmãos, primos, amigos, em quintais e
ruas, abriram o ano que se encerrou com o Natal e os encontros familiares e a retomada
das férias. Nele se inseriram os eventos pessoais como os aniversários, vividos de
diferentes formas, as festas religiosas e familiares, as mudanças, as alegrias, as
experiências, as tristezas, as aventuras, as pessoas.

sumário 351
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Olhar esse calendário montado ofereceu a possibilidade de pensarmos


coletivamente sobre a distância entre ele o calendário que convencionalmente organiza
o trabalho na escola. Seguindo em sentido contrário ao calendário oficial, se desenhou
no encontro do FIAR com... um calendário que tem centralidade nas crianças que são
sujeitos do trabalho realizado na escola. Isso nos leva a pensar que o currículo não
precisa estar atrelado ou subordinado ao calendário, mas a organização do tempo, dos
sujeitos e suas ações no tempo fazem parte do currículo.
Desenvolver formas de observar, perceber e se organizar no tempo é um
trabalho a ser desenvolvido na escola através de múltiplas maneiras de forma contínua.
Organizar um calendário a partir das pessoas com ele envolvidos lhe dá sentido
concreto e efetivo, não impõe um modelo a seguir, algo a acreditar e valorizar que se
impõe socialmente.
É preciso marcar o tempo que passa, o tempo que vem, o tempo que foi. É
preciso demarcar quanto falta para acontecer algo ou há quanto tempo ocorreu, também
é preciso apreender a circularidade do tempo marcado. Tudo isso se faz a partir de um
calendário e se faz com mais efetividade quando ele marca algo nos importe. O
calendário construído a partir das memórias de infância das pessoas presentes no
encontro nos dá indícios do que pode importar em um calendário que perpasse o
currículo.
Os marcos ou eventos trazidos da memória nos dizem que há fatos que marcam
e que podem e devem fazer parte do inventário do grupo envolvido. O dia, mês, ano do
nascimento, de aprender a andar de bicicleta, de quando cortou o pé, de quando ganhou
um certo presente, da mudança, são fatos a serem presentificados nos calendários que
façam sentido, que se reportem as pessoas mais que as datas. Contar o tempo que falta
para fazer algo que planejamos juntos, lembrar do dia que algo nos ocorreu leva a
aprender a lidar com o tempo apreendido no calendário de forma não submissa a uma
lógica externa e estranha. Em diálogo com o calendário civil, o calendário do grupo
associa o tempo macro, das coisas maiores, e o tempo micro, das coisas nossas,
cotidianas.
Vivenciar um calendário que dialoga com as vidas dos sujeitos e os marcos
sociais nos coloca no encontro entre sujeitos e suas histórias e as histórias vividas por
outros, o que nos remete ao que afirma Bakhtin: “Minha vida é a existência que abarca
no tempo as existências dos outros” (BAKHTIN, 2010, p. 96).

sumário 352
VII Seminário Vozes da Educação

Para continuar fiando...


O tempo passa, a vida passa através do tempo, no tempo nossa vida acontece,
acontecendo tem momentos, alguns únicos, outros cíclicos. Isso nos constitui como
sujeitos, nossos tempos vividos e suas memórias.
Cada um tem em si um calendário, como um inventário das situações ocorridas,
das situações queridas, das situações desejadas. A ideia defendida nesse texto é que esse
calendário próprio tenha vez, lugar e voz na escola, que seja ele, ou o encontro deles,
dos múltiplos calendários, que oriente o tempo a ser marcado, comemorado, elaborado
quando estamos com as crianças.
Que o calendário construído no encontro dos sujeitos, das crianças, das suas
histórias de vida constitua o calendário que permeia o currículo, dialogando com o
calendário oficial. Essa ideia se alinha ao proposto pelas Diretrizes Curriculares
Nacionais, em seu artigo 4º, quando afirma que:

As propostas pedagógicas da Educação Infantil deverão considerar que a


criança, centro do planejamento curricular, é sujeito histórico e de direitos
que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói
sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende,
observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e
a sociedade, produzindo cultura (BRASIL, 2010).

Numa perspectiva curricular na qual as crianças tenham centralidade, na qual o


currículo seja uma construção que se dá no encontro entre e com elas, um calendário
pode e deve fazer parte da mesma linha de condução.
Pensar um currículo que importe as crianças, que as tenha em centralidade, é
imprescindível a uma prática educativa com crianças, na conformação de suas
subjetividades, na aposta em sua criatividade, no sentido de suas descobertas, na certeza
de sua potência.

Referências
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______. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Editora 34, 2002.

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sumário 353
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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educação infantil. Trabalho apresentado na 38ª Reunião Nacional da ANPEd – GT07,
UFMA – São Luís/MA, 2017.

sumário 354
VII Seminário Vozes da Educação

INVESTIGANDO AS TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS DE EGRESSOS DA


PEDAGOGIA-UERJ

Liliane Sant’Anna de Souza Maria


ProPEd UERJ/ Bolsista CAPES
professoralilianesouza@gmail.com

Introdução

O ato de cozinhar, por exemplo, supõe alguns saberes concernentes ao uso do


fogão, como acendê-lo, como equilibrar para mais, para menos, a chama,
como lidar com certos riscos mesmo remotos de incêndio, como harmonizar
os diferentes temperos numa síntese gostosa e atraente. A prática de cozinhar
vai preparando o novato, ratificando alguns daqueles saberes, retificando
outros, e vai possibilitando que ele vire cozinheiro. A prática de velejar
coloca a necessidade de saberes fundantes como o do domínio do barco, das
partes que o compõem e da função de cada uma delas, como o conhecimento
dos ventos, de sua força, de sua direção, os ventos e as velas, a posição das
velas, o papel do motor e da combinação entre motor e velas. Na prática de
velejar se confirmam, se modificam ou se ampliam esses saberes (FREIRE,
1996, p. 23).

Por que iniciar este texto com um excerto do livro Pedagogia da Autonomia de
Paulo Freire, cuja temática trata de saberes, práticas e experiências? Porque este excerto
reflete sobre como se constituem os saberes da prática, para além dos saberes formais de
processos escolarizados, e me ajudam a pensar os processos pelos quais passam ou
passaram educadores, desde sua formação inicial à formação continuada em sua
trajetória profissional. E, desse modo, pode também expressar parte das discussões
sobre trajetória de aprendizagens profissionais de egressos do curso de Pedagogia da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, campus Maracanã, quando habilitava,
de 1991 a 2002, ao Magistério em Educação de Jovens e Adultos (EJA), meu objeto de
estudo. Além disso, o excerto aguça minha curiosidade em conhecer os caminhos
trilhados, as práticas desenvolvidas, as errâncias e acertos, as concepções, e as
experiências tecidas pelos profissionais junto aos sujeitos da diversidade que compõe a
EJA.
A formação de professores e seus processos de aprendizagem constituem
temática atual e relevante, uma vez que professores são profissionais que lidam

sumário 355
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

diretamente45 com pessoas na escola e com múltiplas formas de aprender, ou seja, lidam
com conhecimentos e saberes – de experiência prática, social e histórica — integrantes
da formação e do desenvolvimento da cidadania de jovens, adultos e idosos. Esses
conhecimentos e saberes, em estreita ligação com objetivos do ensino voltados à
melhoria da qualidade, constituem modos de aprendizagem que favorecem o exercício
da cidadania, a produção da vida no que tange à cultura, e formação de valores dos
sujeitos envolvidos, pela crença no potencial de estudantes e professores em constante
transformação nas práticas sociais (MARCELO GARCIA, 1999). Sendo assim, iniciar
este texto citando Freire, me faz refletir sobre a centralidade da discussão de educação e
desenvolvimento profissional de professores ao longo de trajetórias de vida e de
formação. Em tempos contraditórios e difíceis como os que vivemos, de constante
desvalorização e ataque a docentes e a intelectuais, a pesquisa visa desvelar concepções
de formação que acompanham e direcionam práticas de professores egressos de um
curso específico de Pedagogia na UERJ.
A temática da formação docente envolve o desenvolvimento profissional de
professores como ponto a considerar quando se deseja compreender e fomentar políticas
educativas de diferentes ordens, voltadas à formação de professores da educação de
jovens e adultos. Parte-se da premissa de que esta compreensão e que políticas mais
adequadas à formação de professores contribuem para superar desigualdades sociais que
persistem no país no campo da educação.
O momento atual impõe refletir sobre a questão da trajetória de formação
docente no Brasil, sem relegar a história e o percurso das diversas concepções de
formação, datadas desde a época da colonização. Do sistema jesuítico, passando para
aulas régias e de humanidades, até a institucionalização da carreira de professor, a
formação docente sempre esteve marcada pelo controle social dos detentores do poder,
porque era vista como forma de organizar a sociedade, e porque a instrução seria a
“salvação social” que propiciaria o progresso (VILLELA, 2000). Como pano de fundo
das políticas públicas voltadas a esta formação, situava-se o desejo de criação de uma

45
É importante salientar que o professor ou educador tem um papel muito importante no processo
formativo dos sujeitos interferindo qualitativamente ou não nos resultados esperados. Entretanto, não é
apenas este ator no cenário educativo o único a representar os resultados da qualidade. Há gestores,
formas de organização de trabalho, clima institucional, recursos físicos e materiais, participação da
família e comunidade, e as políticas educativas que interferem nos resultados da qualidade da educação.
Faço esse destaque com a finalidade de não cair no discurso do senso comum de que o professor é o único
responsável pela qualidade da educação.

sumário 356
VII Seminário Vozes da Educação

nação nova, impulsionada pela industrialização e desenvolvimento de classes sociais


como condição necessária.
As questões implícitas na formação de professores, em contexto mais atual,
demonstram que o tema passou por várias fases, o que complexifica o processo. Muitas
foram as ações realizadas: da fase da racionalização e do controle do trabalho docente
ao período das reformas educacionais, com foco nos sistemas de ensino e no currículo e
da ilusão das tecnologias com a intenção de substituir professores, marginalizando seus
saberes e fazeres produzidos na experiência cotidiana em diferentes frentes educativas
(NÓVOA, 2013). Essas ações, reiteradamente, têm favorecido o mercado da educação
tão caro ao capitalismo e seus lucros, em detrimento do trabalhador professor e dos
demais sujeitos de atuação na educação. A constatação a que se chega é a de que temos
problemas complexos em uma cultura docente em crise, que requer valorização da
cultura escolar e dos significados pessoais e coletivos, a serem reconhecidos pelo que
professores produzem em seus cotidianos.
Entrelaçada a este processo histórico e político da formação geral de professores,
situa-se a formação docente específica para a EJA. Formação de professores é tema
clássico em pesquisas na área da educação, entretanto, com relação à EJA, não se
observa o mesmo acúmulo reconhecido no campo educacional em geral. Segundo
Diniz-Pereira (2001, p. 110), a formação docente para a EJA ganhou mais visibilidade a
partir da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) n.
9.394/96, reacendendo os debates em favor de políticas de formação para atuar na EJA,
pois “[...] mesmo antes da aprovação dessa lei, o seu longo trânsito no Congresso
Nacional suscitou discussões a respeito do novo modelo educacional para o Brasil e,
mais especificamente sobre os novos parâmetros para a formação dos professores”. As
mudanças requeridas nas políticas de formação forjaram o diálogo que levou ao
rompimento com o então modelo dicotômico teoria-prática, que visava formar um
número grande de docentes para atender a demanda crescente de alunos, em busca de
certificação profissional na EJA.
Ao longo da história da educação de jovens e adultos e das políticas de formação
para esta modalidade, as práticas decorrentes das salas de aula brasileiras advêm de um
ensino pautado, em geral, na educação bancária (FREIRE, 1996), o que dificulta o
processo de ação-reflexão, típico da prática docente emancipatória e transformadora.
Para que haja prática emancipadora, é necessária a concepção de educação de jovens e
adultos ampliada, em diferentes contextos e possibilidades criativas de ação, levando

sumário 357
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

em consideração o direito de aprender dos sujeitos da EJA; o reconhecimento da


legitimidade dos conhecimentos adquiridos no percurso de vida desses sujeitos e não
apenas das aprendizagens escolares; ampliação do olhar sobre os sentidos da
diversidade de sujeitos e das realidades em que vivem. Essa diversidade — marcada por
etnia; gênero; classe social; condições de vida; origem urbana ou rural; estar em
liberdade ou privado dela; necessidades especiais — carrega as marcas da sociedade
brasileira que, em diálogo, a partir das diferenças, pode garantir a inclusão das
especificidades.
No movimento pela redemocratização do país, em finais dos anos 1970, formou-
se um Comitê Nacional Pró-Formação do Educador (1980), cuja finalidade era discutir
mudanças necessárias na educação. Unidos, sob a articulação da Comissão Nacional de
Reformulação dos Cursos de Formação do Educador (CONARCFE)46, no ano de 1983,
realizou-se o Encontro Nacional que envolveu diversas universidades e secretarias de
educação, com a finalidade de produzir um documento inicial de ações, com propostas
para todos os níveis e sistemas de ensino, de maneira articulada, culminando com a
ideia de Base Comum Nacional47 — sem a concepção de currículo mínimo ou listagem
de disciplinas —, porém, abrangendo a ideia de um corpo de conhecimentos
fundamental para o exercício da docência, base da formação de professores, respeitando
a diversidade de cada região e de cada unidade da federação (BRZENZINSKI, 2016).
A participação dos movimentos, representados por muitos educadores na ainda
intitulada CONACERF, conseguiu inscrever na Constituição Federal de 1988, após
muitas discussões entre o Congresso Nacional e os movimentos, o direito à educação,
inclusive para “[...] os que a ele não tiveram acesso na idade própria” (Art. 208, inciso
I), abrindo espaço para a implementação de habilitação para a EJA, pois, segundo Paiva
(2006, p. 49), “[...] havia na prática social um largo campo de atuação para professores
de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental de Educação de Jovens e Adultos e, que por isso
mesmo, sua formação precisava ser garantida, fortalecendo o surgimento do curso de
Pedagogia com habilitação em EJA.”

46
Em 26 de julho de 1990, durante o 5º Encontro Nacional em Belo Horizonte, por meio de convocação
de Assembleia Extraordinária, ocorreu a discussão, junto aos membros presentes, de transformação da
CONARCFE em Associação Nacional, materializando, no ano de 1992, a Associação Nacional pela
Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE) cuja presidência esteve, então, sob a
responsabilidade de Luiz Carlos de Freitas. (ANFOPE, 1990, p. 5).
47
Atentar para o fato de que esta proposta não se confunde com a que está em disputa, na atualidade — a
Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

sumário 358
VII Seminário Vozes da Educação

A Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação


(ANFOPE), nascida em 1990 como entidade representativa das políticas de formação e
valorização profissional dos educadores, teve um papel importante no reconhecimento
da docência como base de formação do profissional do magistério e dos educadores,
frente às conquistas e lutas históricas. O surgimento legal da ANFOPE deu-se num rico
momento histórico e político da educação brasileira, que culminou na proposta de
projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, inicialmente formulada por
representantes da sociedade civil e educadores, em aliança com os Congressos
Nacionais de Educação (CONED) e com o Fórum Nacional em Defesa da Escola
Pública (FNDEP). Entretanto, outro projeto disputava a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional defendido pelos movimentos: o substitutivo Jorge Hage (articulado
pelos movimentos sociais) e o projeto de Lei do Senador Darcy Ribeiro 48 (que acabou
sendo aprovado pelo Congresso Nacional, culminando na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996), que não representava os
anseios dos movimentos progressistas do campo da educação49.
A organização da sociedade em defesa de direitos políticos, civis e sociais
intervindo nas propostas da Constituinte, que culminou com a promulgação da
Constituição Federal em 5 de outubro de 1988, entre outras conquistas, assegurava
novamente o direito à educação para todos os cidadãos brasileiros. Essa organização, no
que respeita às lutas em defesa da escola pública e da necessária formação de
professores para dar conta da tarefa hercúlea de escolarizar crianças, jovens, adultos e
idosos da população, repercutiu entre os docentes da Faculdade de Educação da UERJ,
que perceberam a necessidade de mudar o rumo do curso de Pedagogia que, à época,
formava especialistas em educação – em supervisão pedagógica, administração escolar
e orientação educacional. O curso foi, então, alterado, antes mesmo da aprovação da
LDBEN, de 20 de dezembro de 1996, depois de oito anos de tramitação. Atendia a
discussões e princípios defendidos nas lutas pela formação de professores. O cenário de

48
A história da manobra para aprovação da Lei, substituída no Senado em desrespeito ao regimento que
definia o trâmite legal, e que ficou conhecida como Darcy Ribeiro, não será aqui recontada, pois se
encontra fartamente tratada nos escritos da época.
49
É importante destacar neste contexto histórico, o movimento dos Fóruns de EJA, surgidos a partir de
1996, no Rio de Janeiro, quando a sociedade foi chamada pela Unesco a participar dos eventos
preparatórios à V Conferência Internacional sobre Educação de Adultos. Os Fóruns de EJA tiveram papel
relevante, principalmente, porque se espalharam por todos os estados da federação, fortalecendo o diálogo
como espaços de representação de experiências de EJA envolvendo pessoas de instituições formais, de
classes populares e educadores de todos os níveis, mantendo um papel formativo como espaço de
discussões e reflexões, visando fortalecer a luta dos profissionais por políticas públicas para sujeitos
jovens e adultos não escolarizados.

sumário 359
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

lutas e disputas democráticas, segundo Fonseca et al. (2000), ao dar espaço para que a
formação de professores entrasse na agenda política, favoreceu a inserção do campo da
EJA, com o reconhecimento das práticas docentes e a consequente dimensão teórico-
prática orientada por essas práticas, para a formação de profissionais na área.
A mesma entidade, a ANFOPE, participou de forma ativa na discussão e
elaboração de outro momento histórico da educação brasileira: o Plano Nacional de
Educação da Sociedade Brasileira (PNE 2001-2010), instituído pela Lei n. 10.172/2001,
bem como da discussão e elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso
de Pedagogia e das bases das Diretrizes das Licenciaturas, após sete anos de
enfrentamento com o MEC e com o Conselho Nacional e Educação (CNE), finalmente
aprovadas em 2006.
Minha pesquisa, apresentada brevemente nesta introdução, propôs-se a
investigar os sentidos da formação na trajetória profissional de pedagogos que cursaram
Pedagogia na UERJ, campus Maracanã, egressos da habilitação magistério em educação
de jovens e adultos, que atuam/atuaram em espaços escolares e educativos com jovens,
adultos e idosos, no recorte temporal de 1994 a 2005. Esse recorte se justifica pelo fato
de ser o período em que, no fluxo previsto para a conclusão do curso, os estudantes o
fariam, a partir da implantação do desenho curricular de 1991, substituído em 2003 por
outro modelo.
Para compreender os sentidos da formação nas trajetórias desses egressos,
escolhi trabalhar, por meio da entrevista compreensiva (KAUFMANN, 2013), com
narrativas autobiográficas (MOMBERGER 2014, PASSEGGI, 2008, BRAGANÇA
2008), cuja finalidade é entrecruzar possíveis temas que poderiam surgir diante da
perspectiva metodológica, tais como formação, experiência, trajetória pessoal e
profissional, compondo paisagens biográficas dos sujeitos egressos pesquisados.
A metodologia utilizada pode, ainda, cobrir lacunas apontadas em estudos sobre
pesquisas realizadas, como: carência de análise e aprofundamento das discussões sobre
os cotidianos das trajetórias dos egressos de Pedagogia habilitados para atuar na EJA;
pouco aprofundamento de conceitos e diretrizes necessárias para o campo da formação
docente em EJA; fragilidade no detalhamento teórico-metodológico de pesquisas, sem o
rigor exigido por uma investigação de doutorado.
A formação docente, nesta investigação, vem sendo compreendida, sob o âmbito
do paradigma da complexidade (MORIN, 2001), como rede de conhecimentos
(ALVES, 2002), nas relações multirreferenciais e multidimensionais (ARDOINO,

sumário 360
VII Seminário Vozes da Educação

2010) possíveis, em consideração às ações dos sujeitos egressos, por meio de suas
experiências, ações culturais, políticas, históricas. Essas duas perspectivas relacionais
podem ser assim explicitadas quanto ao que podem contribuir para a investigação de
meu objeto de estudo pela visão da heterogeneidade, sem compartimentar processos,
mas entendendo como os egressos alcançados se foram biografando (MOMBERGER,
2014) quanto ao seu estar no mundo: a) a perspectiva multirreferencial constituindo
uma epistemologia social da formação contra processos de desconstextualização de
modos e tempos de compreensão das experiências, sem abrir mão de especificidades e
conhecimentos produzidos nos diferentes processos formativos pelos quais os egressos
da habilitação em EJA passam/aram; b) a perspectiva muldimensional referindo-se à
dinâmica das relações, direta ou indiretamente, tecidas nos lugares que
ocupam/ocuparam em momentos de suas experiências nas instituições e nos interstícios
dos tempos.
Realizar pesquisa sobre egressos, portanto, é também levar em consideração
aspectos críticos referentes à carreira docente, para o caso daqueles que a seguiram,
considerando como carreira docente as etapas de formação inicial, inserção na docência,
possíveis desvios e estabilidade nessa carreira: “Al preocuparse por la carrera
profesional docente, se debe pensar en las etapas por las que el profesor transita ao
largo de su vida de ensenãnte” (VAILANT, 2014, p. 62). Nessas fases da carreira
docente, são decisivas as relações com os sujeitos com os quais esses docentes atuam e
o compromisso com a profissão, o que envolve formação e motivação de ensinar, além
de valorização social (VAILANT, 2014).
Assim, investigar a trajetória profissional e acadêmica de egressos da habilitação
em EJA poderá representar uma nova possibilidade para pensar teorias e práticas
formadoras e reduzir, quem sabe, perspectivas amadoras que constantemente vemos na
atuação docente em EJA, por carecimento de formação voltada ao público específico.
Poderá, em consequência, trazer também novas discussões e proposições junto aos
currículos das diferentes escolas de EJA e universidades de formação de professores no
país, bem como possibilitar novos olhares sobre políticas públicas de formação e
atendimento à EJA. Por último, pode-se admitir que os saberes docentes baseados em
experiências, ao serem respeitados, também podem conformar modos diferentes de
conceber currículo de formação, que melhor atenda a especificidades de docentes da
EJA.

sumário 361
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Na organização desse texto de qualificação, visei demonstrar minhas incursões


no tema, fosse pelas leituras e estudos realizados, fosse pelo levantamento de pesquisas
feitas e suas conclusões.
O primeiro capítulo trata de um panorama da pesquisa em educação de jovens e
adultos, especialmente centrada no tema da formação de professores, com a intenção de
mapear a produção acadêmica no campo da formação em EJA, existente em
dissertações de mestrado e teses de doutorado, destacando metodologias utilizadas e
sujeitos pesquisados. A intenção foi a de sistematizar o que vem sendo pesquisado e
identificar o que considero lacunas, e que se oferecem como novos possíveis para
pesquisas.
No segundo capítulo, início a discussão sobre o percurso metodológico da
pesquisa autobiográfica, em entrelace com as categorias de análise da
mutirreferencialidade e multidimensionalidade baseadas em Ardoino (2010) e na teoria
da complexidade de Morin (2001). Neste capítulo, apresento, junto à pesquisa
autobiográfica, outras formas de coleta de dados que podem favorecer a compreensão
da empiria de maneira mais aprofundada – o que estou denominando de metodologia
híbrida —, quando me debruçarei para realizar análise e compreensões sobre os
sentidos da formação de egressos do curso de Pedagogia com habilitação em EJA, uma
vez que pesquisadores na área apontam fragilidades sobre perspectivas teórico-
metodológicas envolvendo formação docente. A entrevista compreensiva
(KAUFMANN, 2013) foi a escolhida, e será brevemente descrita, porque me auxiliará
na compreensão das narrativas autobiográficas coletadas ampliando, assim, o
entendimento das trajetórias profissionais. O survey on line Google Doc’s, a rede social
Facebook e o WhatsApp foram ferramentas tecnológicas escolhidas para captura das
fontes de pesquisa, além de blogs e sites da Faculdade de Educação onde recolhi
documentos oficiais da UERJ. Para a classificação e futura compreensão dos sentidos
expressos nas narrativas me apoiarei em Fontoura (2011) e sua proposta de tematização.
No terceiro capítulo discuto o processo de desenvolvimento profissional docente
(MARCELO GARCIA, 2009) e o de profissionais em desenvolvimento na EJA, noção
esta com que faço um exercício intelectual, desenvolvendo-a neste trabalho de pesquisa
frente à especificidade do profissional da EJA.
O que indicava como quarto capítulo, quando dialogaria com a proposta
curricular do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da UERJ, campus
Maracanã, vigente no período de 1991 a 2002, enquanto vigorava o currículo com a

sumário 362
VII Seminário Vozes da Educação

habilitação Magistério em Educação de Jovens e Adultos, instituído pela Deliberação n.


22/91, aprovada pelo Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (CSEPE),
precisei sustar neste momento, pela existência de algumas dúvidas sobre a organização
de disciplinas por departamentos, encontradas nos materiais recolhidos. Sem tempo para
novas checagens, decidi, junto com a orientadora, excluir desta qualificação o capítulo,
que será recuperado no texto final da tese, apresentando a proposta do curso, disciplinas
por departamentos e fluxograma, bem como o contexto em que foi instituído o novo
currículo, àquela época.
Por fim, nesse texto, apresento um cronograma que demonstra o percurso a ser
ainda realizado para a continuidade da investigação, após esta etapa de diálogo com a
banca de qualificação.
Compreender a trajetória profissional de egressos do curso de Pedagogia com
habilitação em EJA pode, assim, contribuir para o fomento de políticas de formação de
profissionais da educação que considerem, também, a atuação na educação de jovens e
adultos na escola básica, tanto para formadores e professores como para gestores e
legisladores, visando melhor atendimento aos sujeitos da diversidade que integram a
EJA, nos cursos de escolarização de jovens, adultos e idosos oferecidos em sistemas
estaduais e municipais do país.

Referências

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sumário 365
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

“CINECONVERSAS”: CINEMA E REDES EDUCATIVAS

Rosa Helena Mendonça50


Universidade do Estado do Rio de Janeiro
rhmen50@gmail.com

Rossana Maria Papini51


Universidade Federal Fluminense
rmpapini2009@hotmail.com

Cinema é cachoeira
(Humberto Mauro).

Introdução: um passeio pela história

A metáfora usada por Mauro52, na definição em epígrafe, poderia sintetizar a


ideia das “cineconversas” que realizamos, como uma das ações de um projeto de
pesquisa em andamento, em que fazemos uso (CERTEAU, 1994) do cinema em
processos de formação de professores. As sessões consistem em, resumidamente, após a
exibição de filmes, conversarmos sobre/com eles e entre nós, os participantes, a partir
dos filmes e das redes educativas que constituímos e que nos constituem. Assim como
as águas de uma cachoeira jorram permanentemente, ora com força avassaladora, ora
como pequenos filetes, os filmes, considerados por nós como personagens conceituais
(DELEUZE, 1992), ou seja, como os ‘outros’, os intercessores que suscitam

50
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(ProPEd/UERJ). Integrante do Grupo de Pesquisa ‘Currículos, redes educativas, imagens e sons’, no
Laboratório Educação e Imagem/UERJ, coordenado pela Profª Nilda Alves, associado à linha de
pesquisa Cotidianos, Redes Educativas e Processos Culturais. Bolsista de Pós-Doutorado em Educação
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ) – Laboratório de Educação e Imagem
(Capes/Faperj).
51
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(ProPEd/UERJ). Integrante do Grupo de Pesquisa‘Currículos, redes educativas, imagens e sons’,
coordenado pela Profª Nilda Alves, associado à linha de pesquisa Cotidianos, Redes Educativas e
Processos Culturais. Profª Adjunta da Licenciatura Interdisciplinar em Educação do Campo no Instituto
do Noroeste Fluminense de Educação Superior (INFES) pertencente à Universidade Federal Fluminense.
52
Ver http://biblioteca.cl.df.gov.br/dspace/handle/123456789/1831 (acessado em 03/04/2019)

sumário 366
VII Seminário Vozes da Educação

elucubrações e descobertas sem fim, para quem a eles assistem, considerando que não
há espectador passivo.
Para o filósofo,

O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não


há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um
cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais,
como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso
fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma
série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso
de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem
mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê. E mais
ainda quando é visível: Félix Guattari e eu somos intercessores um do outro
(DELEUZE, 1992, p. 156).

E ainda com Deleuze e Guattari,

O personagem conceitual não é o representante do filósofo, é mesmo o


contrário: o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem
conceitual e de todos os outros, que são os intercessores, os verdadeiros
sujeitos de sua filosofia. Os personagens conceituais são os "heterônimos" do
filósofo, e o nome do filósofo, o simples pseudônimo de seus personagens.
Eu não sou mais eu, mas uma aptidão do pensamento para se ver e se
desenvolver através de um plano que me atravessa em vários lugares
(DELEUZE e GUATTARI, 1992b, p. 85/86).

Embora sabendo que podemos entrar num assunto a partir de qualquer ponto,
não tendo que necessariamente ir a sua gênese, a ideia de buscar experiências pioneiras,
sempre nos pareceu – a alguns integrantes do grupo de pesquisa – interessante, mesmo
sabendo que entre a história e seu registro, há muito que o que escavar e rever
permanentemente...
Não é diferente com a história do cinema no Brasil e seus usos na educação. A
filmografia de Humberto Mauro se destaca no chamado ‘Ciclo de Cataguases’, cidade
em que alguns cineastas fizeram suas primeiras experiências com o cinematógrafo, por
volta dos anos 1920. Elas pretendiam ser uma resposta nacional às produções
estrangeiras, especialmente às norte-americanas que invadiam as salas de cinema. Parte
do que foi produzido pelos pioneiros em Minas Gerais, se perdeu. No entanto, a
filmografia de Mauro se encontra em grande parte preservada, incluindo, aí, os curtas

sumário 367
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

que produziu durante o tempo em que integrou o Instituto Nacional de Cinema


Educativo (INCE)53, a convite de Edgard Roquette-Pinto.
Outros pioneiros existiram – a própria ideia de redes contradiz a crença de que
certos feitos posam ser atribuídos a uma só pessoa – e têm ainda sua produção
esquecida ou pouco divulgada, como é o caso de Canuto Mendes que, no mesmo
período, em São Paulo, produziu filmes e escreveu um livro, chamado Cinema contra
cinema (1931)54, cuja tese era a urgência de se produzir filmes educativos no Brasil que
pudessem fazer frente às imagens do cinema estrangeiro que ‘contaminava’ o olhar, em
especial, das crianças e jovens. Segundo o pioneiro, só o cinema poderia combater o
cinema.
Assim, podemos perceber que a importância do cinema na educação atravessa
gerações, com diferentes perspectivas de uso, seja do que chamamos de cinema
educativo ou de cinema de arte ou mesmo de cinema comercial (blockbuster),
denominações amplamente utilizadas pela crítica e por parte do público. A diferença
entre esses tipos de filmes encontra-se, principalmente, nas condições e
intencionalidade das produções. Sendo assim, qualquer filme pode ter um uso
educativo. A intencionalidade do uso se sobrepõe àquela da produção. E são as
conversas com os filmes, em situações que valorizam a criação de redes educativas, que
nos interessam nas “Cineconversas” e também nos instigam na apresentação deste
trabalho que reflete resultados parciais de uma pesquisa em andamento.

“Cineconversas”: “espaçostempos” de formação

Na perspectiva dos estudos com os cotidianos (ALVES, 2003; CERTEAU,


1994), nosso interesse com relação aos currículos recai sobre a compreensão de como as
questões sociais se transformam em questões curriculares nas escolas. Um dos temas
que nos parece crucial diz respeito à migração, fenômeno que desde os primórdios
acompanha a humanidade, mas que vem crescendo, tomando grandes proporções e
exigindo atenção de governos e de organismos internacionais, bem como da população
em geral, esforços no sentido de minorar as dificuldades de quem se vê obrigado a

53
Ver http://www.bcc.org.br/colecoes/ince (acessado em 03/04/2019) e
http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-
bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p (acessado na mesma data).
54
O livro, uma obra rara, se encontra esgotado. No entanto, a Dissertação de Mestrado de mesmo nome,
de autoria de Maria Eneida Fachini Saliba, apresenta a pesquisa sobre o autor e sua obra. Ver referências.

sumário 368
VII Seminário Vozes da Educação

migrar por razões que passam por guerras, fenômenos climáticos, questões religiosas,
econômicas, políticas entre outras.
O cinema tem se mostrado um artefato cultural potente no encaminhamento
dessas conversas, que chamamos de ‘cineconversas’,55 uma vez que as produções nos
levam a “espaçostempos”56 diversos e abordam, por meio de roteiros originais, seja no
chamado cinema-documentário ou nos filmes de ficção as mais diferentes situações, no
que diz respeito à temática da migração. Os filmes, suas imagens e sons, nos permitem
ampliar nossas redes educativas, tecendo “conhecimentossignificações” que nos ajudam
a lidar com os desafios dos cotidianos.
É importante considerar que crianças e jovens, por força da legislação, são
matriculados nas escolas públicas. No espaço escolar, se juntam a outros alunos, muitos
deles, migrantes em seu próprio país. São muitas as barreiras a serem vencidas e o
domínio de uma nova língua surge como um dos primeiros desafios. Além deste aspecto
de imensa importância, há as questões de ordem psicológica e cultural que se
desdobram em aspectos que vão desde os hábitos alimentares aos modos como as
relações sociais se desenvolvem.
Existem, na cinematografia mundial, filmes que com diferentes enfoques nos
permitem perceber como essas questões se dão no “dentrofora” das escolas.

Uma história da China: quando a realidade imita a ficção

55
Recentemente, por proposta de uma das componentes do grupo – Rosa Helena Mendonça, uma das
autoras deste texto – passamos a chamar este movimento de ‘cineconversas’, pois de fato, sem seguir a
tradição de cineclubes, o movimento que realizamos tem as ‘conversas’ em torno de temáticas
introduzidas pelo processo de ‘verouvirsentirpensar’ os filmes como lócus central dessas pesquisas.
Assim, não se trata de conhecer os filmes em si e discuti-los em sua historicidade, construção técnica,
como obra artística de um criador etc – o que caracterizaria os processos realizados em um cineclube -
mas de, sem desconsiderar estes aspectos, usá-los como disparadores de pensamentos que permitam as
‘conversas’.
56
Optamos por grafar algumas palavras juntas, em itálico e entre aspas, para reafirmas a
indissociabilidade de algumas noções que a chamada Ciência Moderna buscou mostrar como dicotômicas
e em oposição.

sumário 369
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Figura 6 cartaz do filme 57

O filme Um conto chinês (2011)58, filme situado no ‘entre-lugar’ (Bhabha, 1998)


do drama e da comédia, trata do tema da migração como pano de fundo de uma história
‘surreal’. Um fato real, inusitado, é o ponto de partida da trama. Uma vaca despenca de
um avião, em uma província da China e atinge uma jovem que passeava de barco com o
noivo. A jovem morre e, para recomeçar sua vida, o jovem vai para Buenos Aires, à
procura de um tio, também migrante. Na cidade, passa por muitas das dificuldades
reservadas aos estrangeiros, em especial aos migrantes, mas recebe a ajuda acanhada do
portenho solitário dono de uma loja de ferragens. Assim, realidade e ficção vão se
mesclando na trama, uma vez que o cinema não é uma mera representação da realidade.
Sua potência é criar realidades que ‘capturam’ o espectador, levando-o do riso ao
pranto, de uma experiência a outra, criando redes a partir de outras redes...

57
Disponível em https://www.google.com.br - cartaz do filme Um conto chinês (acessado em
01/04/2019
58
Um conto chinês (Un cuento chino), direção de Sebastián Borensztein. Elenco: Ignacio Huang (Jun) e
Ricardo Darin (Roberto), entre outros. Produção: Pablo Bossi e outros; Roteiro: Sebastián Borensztein ;
Fotografia: Rolo Pulpeiro; Trilha Sonora: Lucio Godoy; Ano: 2011; País: Argentina/ Espanha;
Distribuidora: Paris Filmes.

sumário 370
VII Seminário Vozes da Educação

Ao apresentar os textos da coletânea A experiência do cinema, Ismail Xavier


(1983) destaca que o jogo entre realidade e ficção, citando Münsterberg 59 , revela a
condição do espectador que aceita a aparência de profundidade [na tela] e, ao mesmo
tempo, sabe que essa profundidade não é real (p. 19).

O espectador não é elemento passivo, totalmente iludido. É alguém que usa


de suas faculdades mentais para participar ativamente do jogo, preenchendo
as lacunas do objeto com investimentos intelectuais e emocionais que
cumprem as condições para que a experiência cinematográfica se inscreva na
esfera do estético; para Münsterberg, esfera em que o mundo exterior deve
vestir as formas da nossa consciência (1983, p.20).

É assim, então, que, por meio de narrativas cinematográficas, imagens e sons,


entendidos como personagens conceituais, que entramos pela tela do cinema, buscando
correlacionar “espaçostempos” na arte e na vida.

Problematizando este pequeno encontro entre o Ocidente e o Oriente

Procuramos referências que nos ajudassem a pensar este encontro evocado pelo
filme, o grande encontro entre o Ocidente e o Oriente, que vem se dando em vagas nos
últimos 500/600 anos, desde o período das grandes navegações, quando estas culturas
em tese tão díspares, passaram a se entretecer, a por momentos se estranharem,
travarem guerra e paz, encantamentos e problematizações.
Desta forma, nesta busca, encontramos uma obra, O segredo da flor de ouro –
um livro de vida chinês, de Carl Gustav Jung e um famoso sinólogo 60 do início do
século XX, Richard Wilhelm (2017), que trata de estudos profundos de um livro de
sabedoria chinesa. Estes autores também estavam pesquisando a questão, produzindo
esta pequena jóia, este livro, que numa parte intitulada Porque é difícil para o ocidental
compreender o oriente, afirmam:

o Oriente nos ensina outra forma de compreensão, mais ampla e profunda – a


compreensão mediante a vida. Conhecemos esta última a modo de um
sentimento fantasmagórico, que se exprime através de uma vaga
religiosidade, motivo pelo qual preferimos colocar entre aspas a “sabedoria”

59
Hugo Münsterberg (1863-1916), foi também um filósofo do cinema, antecipando muito de suas
posteriores teorias. Consultado em: pt.wikipedia.org/wiki/Hugo_Münsterberg, em 29/09/2019.
60
Sinólogo é o especialista em sinologia, sendo esta o “estudo que é referente à China ou aos seus
habitantes (língua, escrita, civilização, história, etc.)”, pesquisado em
https://dicionario.priberam.org/sinologia. Consultado em 15 de setembro de 2019.

sumário 371
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

oriental, remetendo-a para o domínio obscuro da crença e da superstição


(p.21)

Estes autores continuam a problematizar o encontro e a maneira do povo chinês


se conduzir no mundo, geralmente com uma proverbial calma, mesmo em meio às
intempéries da vida, o que beiraria ao conformismo. Estes e os muitos preconceitos
nascidos do convívio subalternizante com os orientais (dado que os europeus
dominaram por muito tempo a China e enormes porções da Ásia, como bem narrado no
livro):

Não se trataporém de intuições sentimentais, de um misticismo excessivo que


tocasse as raias patológicas de um ascetismo primitivo e intratável, mas de
intuições práticas nascidas da flor da inteligência chinesa e que não temos
motivo algum para subestimar(p.10).

É pouco o que sabemos sobre a sabedoria chinesa. É grande no mundo ocidental,


o desconhecimento sobre esta cultura, assim como o preconceito. Estes autores afirmam
que esta sabedoria, um jeito próprio de pensar a vida, de ser e estar no mundo, estaria
expresso no Tao, traduzido por alguns sinólogos como o método e o caminho. “Como
sabemos, WILHELM traduziu o termo Tao por sentido. Transpor para a vida este
sentido, ou seja, realizar o Tao constitui a tarefa dos discípulos. Entretanto, o Tao não se
realiza por palavras ou bons ensinamentos” (p.13, grifos dos autores).
Nem se dá a conhecer pelo puro intelectualismo.
Para nos ajudar nesta narrativa, na nossa também busca por caminhos nesta
narrativa, trazemos o sentido dado à “experiência”, por Larrosa (2002), em que
“experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa,
não o que acontece, ou o que toca” (p.21), esta,

a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de


interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer
parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar (...),; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender
o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza (...), falar sobre o que nos acontece (...), escutar aos
outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e
espaço (p.24).

Teria sido isto que aconteceu com os dois personagens? Através das peripécias e
contratempos, do convívio não planejado e apesar da barreira da língua, surge um saber
da experiência, da solidariedade. Para Larrosa (2002) este saber é

sumário 372
VII Seminário Vozes da Educação

o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe
acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao
acontecer que nos acontece. No saber da experiência não se trata da verdade
do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece
(...), trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de
uma comunidade humana particular (...). Por isso, o saber da experiência é
um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a experiência
não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que
enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência (p.27).

A procura por outros sentidos para a sua vida levou nosso personagem chinês
para a Argentina, e por estes mistérios que desafiam a racionalidade, ao entrelaçamento
de sua existência com a do pacato cidadão daquele país. O que acabou por mudar o
destino de ambos.

O exílio, este propiciador de dores e novas travessias

No filme fica claro o tema do exílio, com o personagem oriental vivenciando


várias situações daquelas vividas pelos ‘despatriados’, aqueles que estão longe do lar e
se vêem imersos de súbito em uma nova e estranha cultura. Buscando um
aprofundamento possível nesta questão, tão atual, que é a imigração em massa para
várias partes do globo, o nomadismo de muitos, encontramos as autoras Helenice
Rodrigues e Heliane Kohler (2008):

A condição essencial de ruptura e tensão do exilado abriu perspectivas de


transfúgios e de transições em direção a dissidência e a ultrapassagens.
Explicitamente, procuraremos nuançar o exílio, mostrando tanto os estigmas
depreciativos – o desterro, a expatriação – quanto as chances de renovação
cultural – o universalismo, o cosmopolitismo. Se, por um lado, o aspecto
negativo do exílio – a solidão, a nostalgia – tende a se sobrepor ao positivo –
a interação, a criatividade -, na verdade, essa dualidade faz parte de um único
e mesmo processo. Dolorosa experiência de perda, o exílio é também uma
fonte de enriquecimento cultural (...). Por um lado, representa a ruptura do
indivíduo com seu meio social e com sua identidade de cidadão, por outro,
permite a reconstrução de uma existência (p.24).

Estas autoras, citando Enzo Traverso61 (2004) procuram dar conta desse drama
que cerceia os imigrantes longe de suas origens “enquanto estrangeiros, desenraizados e

TRAVERSO, Enzo. La penseé dispersée – figures de l’exil judéo-allemand.(2004, p.10), citado por
61

RODRIGUES, Helenice e KOHLER, Heliane (orgs). Travessias e cruzamentos culturais: a


mobilidade em questão, Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2008.

sumário 373
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

marginais [os exilados] podem escapar de numerosas pressões – institucionais, políticas,


culturais, psicológicas -, que resultam de um contexto nacional no qual estão inseridos
sem [verdadeiramente] pertencer a ele”. (p. 25)
Este é o caso do personagem argentino, implicado na realidade de seu país, seus
descaminhos, a malfadada Guerra das Malvinas e outras desventuras.
Nesta condição, ser estrangeiro, permite escapar de algumas pressões, mas não a
se furtar a outras. Para nos ajudar a pensar esta condição trazemos Campos (2005), que
nos conta da rotulagem de estrangeiro e os perigos que a rondam:

o estudo que Elias (2000) realizou sobre Winston Parva aborda exatamente
os significados dos embates entre estabelecidos e outsiders. Buscando
compreender o que confere o caráter específico ao ‘comunitário’, o autor
analisou vários problemas relacionados ao enfrentamento entre nativos e
estrangeiros. Nas redes comunais, verificou que diferentes valores eram
atribuídos às famílias, constituindo-se uma hierarquia classificatória, na qual
aquelas gozavam de diferentes status. Essa hierarquia entre as famílias
influenciava as associações religiosas e políticas, o agrupamento em bares,
em clubes e em escolas; enfim, atravessavam todo o tecido social. Elias
apontou que, “para se manter, o status superior exige recursos superiores de
poder, conduta e crenças distintas e transmissíveis a terceiros, e que amiúde é
preciso lutar por ele; elas nos fazem esquecer que o status inferior (...) pode
caminhar de mãos dadas com a degradação e o sofrimento (p.22)”. Em
Winston Parva, o desenvolvimento de uma área industrial urbana trouxe
atritos e perturbações em função do confronto entre os moradores mais
antigos, com tradições provincianas próprias e os moradores mais novos,
portadores de idéias, maneiras e crenças diferentes. (...) Fica claro que os
migrantes, enquanto outsiders, são alvo de toda espécie de discriminação, já
que isso faz parte do movimento dos grupos estabelecidos em manter o seu
poder (p.74-75, grifos da autora).

Como a narrativa fílmica, que trouxe o improvável, nossa narrativa também


adentrou labirintos, a sua maneira, procurando, com a ajuda dos autores, descortinar
horizontes de formação, a partir das conversas entre as autoras e da leitura das obras,
problematizando encontros, exílios, sofrimentos e transformações, ficção e realidade,
arte e vida, cinema e educação.

Narrativas: criação e fabulações

Em nossas conversas, a partir de “O conto chinês”, surgiu a discussão em torno


da ficção, do imaginário, o que suscitou trazer para esta tessitura, para este nosso
trabalho, a Janaína Amado (1995):

toda narrativa, no entanto, possui uma dose, maior ou menor, de criação,


invenção, fabulação, isto é: uma dose de ficção. (...) A memória, em especial

sumário 374
VII Seminário Vozes da Educação

quando organizada em narrativa possui uma dimensão simbólica, que a leva


rapidamente a desprender-se, a descolar-se do concreto, para alçar vôos
próprios (p.134).

Novamente buscamos Certeau (1994) na sua valorização de certos gêneros


literários, colocados fora da ciência moderna, como antítese a esta:

Isto implicaria sem dúvida reconhecer o valor teórico do romance, tornado o


zôo das práticas cotidianas desde que existe a ciência moderna. Isto seria
sobretudo restituir importância ‘científica’ ao gesto tradicional (é também
uma gesta) que sempre narra as práticas. Neste caso, o conto popular fornece
ao discurso científico um modelo, e não somente objetos textuais a tratar.
Não tem mais o estatuto de um documento que não sabe o que diz, citado a
frente de e pela análise que o sabe. Pelo contrário, é um ‘saber-dizer’
exatamente ajustado a seu objeto e, a este título, não mais o outro do saber
mas uma variante do discurso que sabe e uma autoridade em matéria de
teoria. Então se poderiam compreender as alternâncias e cumplicidades, as
homologias de procedimentos e as imbricações sociais que ligam as ‘artes de
dizer’ às ‘artes de fazer’: as mesmas práticas se produziriam ora num campo
verbal ora num campo gestual; elas jogariam de um ao outro, igualmente
táticas e sutis cá e lá; fariam uma troca entre si – do trabalho no serão, da
culinária às lendas e às conversas de comadres, das astúcias da história vivida
às da história narrada(p. 153, grifos do autor).

Falando sobre estas criações, o autor afirma que o que há “é narração, não
descrição” (p. 154) e no dizer de Alves (2013), que analisa essas ideias na obra de
Certeau:

duas são as observações, a este respeito, necessárias. A primeira, para deixar


claro que essa narratividade, a história narrada, não significa um retorno à
descrição que marcou a historicidade na época clássica, pois, ao contrário
dessa, não há na primeira a ‘obrigação’ de se aproximar da ‘realidade’, mas
sim de criar um espaço de ficção, aparentemente se subtraindo à conjuntura
ao dizer: “era uma vez...” (...) É preciso, pois, que eu incorpore a idéia que ao
dizer uma história, eu a faça e sou um narrador praticantepensante ao
traçar/trançar as redes dos múltiplos relatos que chegaram/chegam até mim,
neles inserindo sempre, o fio de meu modo de contar, pensar e criar
conhecimentos e significações. Exerço, assim, a arte de contar histórias, tão
importante para quem vive os cotidianos do aprenderensinar. Busco
acrescentar ao grande prazer de contar histórias, o também prazeroso ato da
pertinência do que é científico (p.20-21).

Uma das autoras deste artigo, em sua tese de doutorado, falou desta ‘arte’
ancestral que é a narrativa:

a narrativa é o gênero primordial dos seres humanos. Desde a infância, são as


histórias que ouvimos e contamos que vão marcando nosso ser e estar no
mundo. De lendas e contos a relatos de vida são as narrativas que nos
constituem por meio da linguagem que, por sua vez, é por nós constituída.
São elas, narrativas orais e também escritas, que vão tecendo a memória do

sumário 375
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

que somos, na esfera privada e profissional, nos tempos e espaços de


convivência, nas diversas redes em que estamos inseridos. E além disso, as
imagens também são formas narrativas (MENDONÇA, 2009, p.3).

Finalizando, dado os limites deste texto, trazemos Alves (2013), onde ela frisa a
relevância da arte de contar histórias:

narrar histórias é, então, uma vasta experiência humana. Vasta tanto no


tempo, pois era assim que os gregos contaram a Ilíada, como no espaço, já
que pode ser encontrada em todos os espaços deste planeta, até hoje. (...)
Além das culturas orais onde já foram bem estudadas por antropólogos de
diversas correntes, essas histórias são, também nas redes educativas
cotidianas, desde sempre, o repositório amplo das ações humanas nesses
contextos (p. 21).

Algumas possíveis conclusões

Ao reafirmar a potência do cinema nos processos formativos, pretendemos


também evidenciar que são múltiplos os artefatos culturais presentes nos “dentrofora”
das escolas e que, sem desconsiderar a importância dos textos escritos (teóricos,
literários etc.), fazer uso de diferentes tecnologias de informação e comunicação nesses
processos é hoje um imperativo. Nossas “Cineconversas” podem, assim, acontecer em
diferentes espaços que vão de salas de cinema a salas de aula com possibilidade de
projeção. As conversas podem acontecer presencialmente ou por meio de chats, já que
há inúmeras possibilidades de se conversar online. Além disso, é importante registrar
que novas tecnologias, incluindo-se aí os celulares, permitem hoje a criação de
pequenos vídeos para os quais o cinema pode ser inspirador e significar uma ampliação
dos modelos difundidos na TV e na internet. A circulação de filmes entre professores e
futuros professores nos cursos de licenciatura significa uma contribuição no campo das
“práticasteoriaspráticas” que é como compreendemos nos estudos com os cotidianos
as formas de se fazer ciência e educação. Desta forma, reafirmamos o entendimento dos
filmes como personagens conceituais (DELEUZE, 1992) que produzem devires-
criações que nos ajudam a pensar em como questões de urgência social se transformam
em questões curriculares. São redes, assim como as histórias, que não têm fim, ao
contrário do que costumávamos ver nos filmes antigos que terminavam pelos
indefectíveis The End,Fin, Fim...

Referências

sumário 376
VII Seminário Vozes da Educação

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Ação Educativa, com a gestão desta última e financiamento da Fundação Ford. Segundo
a autora, este texto foi atualizado para sua leitura no Seminário do grupo que ela
coordena, no 1º semestre de 2013.

AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradições, veracidade e imaginação em história


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culturais: a mobilidade em questão, Rio de janeiro, Ed. FGV, 2008.

XAVIER, Ismael (org.). A Experiência do cinema: antologia, Rio de Janeiro, Edições


Graal: Embrafilmes, 1983.

sumário 378
VII Seminário Vozes da Educação

A NARRATIVA COMO EXPERIÊNCIA RESSIGNIFICADA NO TEMPO

Joelson de Sousa Morais


UNICAMP
joelsonmorais@hotmail.com

Inês Ferreira de Souza Bragança


UNICAMP e FFP UERJ
inesbraganca@uol.com.br

Introdução
A pertinência de uma pesquisa narrativa em se tratando de sua materialidade
enquanto dispositivo potente na construção do conhecimento científico e como
dimensão formativa, reside em seu poder de transformação de si, em relação mais
essencialmente ao que pode acontecer na vida, pesquisa, formação e desenvolvimento
profissional do sujeito que se apropria da mesma, com as respectivas características,
finalidades e fins com os quais elenca e em diferentes espaços/tempos que se
corporifica.
A ideia de que fazemos alusão no tema deste artigo de “A narrativa como
experiência ressignificada no tempo”, está subjacente ao entendimento de que cada
narrativa expressa o seu conteúdo-forma numa temporalidade específica e singular, que
vai caracterizar o momento, época, lugar e tempo em que é tecida e quando lida ou
apropriada pelo sujeito que pode ser quem o narrou ou outro leitor, e que sempre vai
trazer uma leitura, reflexão e entendimento que vai diferenciando-se de um tempo para
o outro, apresentando possibilidades de interpretação, transformação e significados
outros.
Assim, cada narrativa tem uma expressão de seu tempo, apresentando
características e peculiaridades que desvelam os contextos políticos, econômicos,
religiosos, culturais, comportamentais e sociais de sua temporalidade, e de quando foi
narrada e quem participou, podendo ainda ser compreendida em função de quais
circunstâncias a narração permitiu ser elaborada.
Um aspecto crucial e que faz a diferença em relação à tessitura e compreensão
da narrativa, em consonância com o tratamento das inúmeras fontes que dela se utiliza e
se correlaciona, seja como dispositivo metodológico, de pesquisa, ensino ou formação,

sumário 379
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

trata-se da questão da “temporalidade”, na qual traz uma dimensão potencial de


implicação para o entendimento do sujeito numa perspectiva individual e ao mesmo
tempo coletiva, e que envolve inúmeros outros aspectos para a consolidação de uma
compreensibilidade que mediatiza a materialidade do acontecimento com diferentes
intensidades, proporções e encadeamentos.
Nesse sentido, trazemos nesse texto como objetivo geral: analisar a
temporalidade da narrativa enquanto dimensão implicada em um processo de pesquisa-
formação, bem como, refletir acerca da experiência narrativa ressignificada no tempo, e
compreender como se dá as implicações da temporalidade na tessitura narrativa como
dispositivo metodológico numa pesquisa científica.
Trata-se de um artigo que se inscreve como percursos de reflexões, discussões e
produções escritas outras, tecidas num amálgama de experiências formadoras que estão
se consolidando: 1) durante os encontros de estudo e de orientações coletivas do Grupo
Interinstitucional de Pesquisa-Formação Polifonia (coordenado pela segunda autora
deste texto) que reúne professores/as-pesquisadores/as da universidade e da escola
básica e estudantes da graduação e pós-graduação da Unicamp e a Faculdade de
Formação de Professores (FFP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ); 2)
por meio do Grupo de Terça, coletivo do Grupo de Estudos e pesquisas em Educação
Continuada (GEPEC/Unicamp); 3) com contribuições do Grupo de Estudos
Bakhtinianos (GRUBAKH), subgrupo do GEPEC, e, sobretudo, 4) fruto das reflexões e
discussões tecidas nas aulas da pós-graduação em educação na UNICAMP nestes dois
semestres do ano de 2019.
Esses percursos de nossos itinerários formativos, vem se configurando como de
grande potencial, se articulando com a construção do texto da tese de doutorado em
educação do primeiro autor deste texto, e que tomam como princípio a abordagem de
pesquisa-formação narrativa (auto)biográfica (BRAGANÇA, 2018). Trata-se de uma
pesquisa que está sendo financiada pela “Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior” (CAPES) e que se iniciou no primeiro semestre de 2019, tendo
como tema: “Os contextos de formação e suas implicações na tessitura de saberes de
professoras iniciantes”.
Em relação à pesquisa-formação, um conceito chave neste artigo, entendemos
que consiste num processo em que “[...] cada etapa da pesquisa é uma experiência a ser
elaborada para quem nela estiver empenhado possa participar de uma reflexão teórica

sumário 380
VII Seminário Vozes da Educação

sobre a formação e os processos por meio dos quais ela se dá a conhecer (JOSSO, 2010,
p. 141).
Assim, temos trabalhado no grupo de estudos Polifonia, nesse modo de
pesquisa-formação, em que ao mesmo tempo em que estamos produzindo nossos
estudos e pesquisas somos implicados simultaneamente por processos formativos, e,
portanto, não há como separar pesquisa e formação, mas, pelo contrário, estamos nos
transformando e aprendendo novas teorias, conhecendo outros/as autores/as, escolhendo
os dispositivos metodológicos exequíveis e que atendam às demandas e necessidades da
pesquisa, além de irmos definindo ao longo do tempo durante a nossa caminhada, outros
inúmeros fatores que nos são pertinentes escolher e decidir. Eis, então, a ideia de
pesquisa-formação que vamos tecendo, ancorada na perspectiva da pesquisa-formação
narrativa (auto)biográfica em educação, como tem apontado Bragança (2018).
Dessa forma, neste escrito, nos amparamos em autores da pesquisa narrativa
(auto)biográfica em educação, com base em Ricoeur (1994), Josso (2010), Delory-
Momberger (2012), Bolívar et al (2001), Bragança (2012; 2018), entre outros.

A narrativa (auto)biográfica na relação entre pesquisador e sujeito(s)


pesquisado(s)
Ricoeur (1994) é o autor que nos ajuda a tematizar as relações entre tempo e
narrativa, segundo ele, o tempo se torna humana quando articulado de modo narrativo e
a narrativa a ver sua inteligibilidade no tríplice presente. A narrativa é tecida, segundo
autor, em três mimeses, sendo a primeira a pré-compreensão do campo da ação, a
segunda a tessitura da intriga e a terceira pela abertura à leitura e suas múltiplas
interpretações.
Assim, o tempo na narrativa tem uma configuração própria e singular do
narrador (mimese II), na qual apresenta um processo de significação carregada de
sentidos quando tece a sua experiência narradora, fruto das implicações que lhe
pareceram mais marcantes em seus percursos existenciais, experienciais e formativos e
que aparecem na narrativa.
Por outro lado, o interlocutor, nos movimentos da mimese III, que se apropria da
narrativa do outro, no caso do leitor, ao ler o narrado, busca compreender os múltiplos
acontecimentos que a narrativa possa lhe fazer refletir, trazendo sua bagagem de
conhecimentos que possui, e das aprendizagens que conseguiu construir em seus

sumário 381
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

múltiplos contextos formativos, para então, entender o que se passa na estrutura


narrativa da qual está lendo ou leu.
Ambos os sujeitos nesse processo, tem elementos de referência diversos, e
colocam a prova o que sabem em suas diferentes possibilidades compreensivas de que
dispõe no momento tecido entre quem produz a narrativa ou quem a lê, além de contar
que há diferenças do lugar onde se está acontecendo esse processo, bem como, fruto das
razões, finalidades e propósitos envolvidos nessa trama a ser desvelada.
Com base no exposto, assinalamos a ideia de que “[...] o falar de si recobre, por
sua vez, formas diversas que têm relação com a pluralidade dos objetivos enunciativos e
dos tipos discursivos que elas põem em funcionamento” (DELORY-MOMBERGER,
2012, p. 525), por isso, cada narrativa vai revelar a concepção, entendimento e a
reflexão que o sujeito possui, à medida em que as relações estabelecidas vão se dando
no processo de pesquisa.
No caso da pesquisa científica, tomando por base as narrativas (auto)biográficas
no campo da educação, as dimensões envolvidas entre o pesquisador e o(s)
pesquisado(s) envolve um jogo de relações estabelecidos antes, durante e depois do
processo de pesquisa, levando em consideração, tanto os dispositivos pelos quais deseja
primar para que a tessitura do conhecimento aconteça, bem como, o desfecho das
fontes, no sentido de serem captadas no cotidiano dos sujeitos para que possam ser
materializados, além do retorno necessário, como uma alternativa determinante,
relevante e necessária em relação aos aspectos éticos e a questão da autorização dos
textos narrativos para que possam ser publicizados ou não, e quais serão passíveis de
serem.
A ideia do compartilhamento e a troca mútua entre escolher uma narrativa ou
outra, entre publicizar ou não as fontes construídas em uma pesquisa científica, tem
muito a ver na acepção de Bakhtin (2003), com a dimensão axiológica do sujeito,
presente da relação que ele tem consigo próprio, numa visão política de seus atos
responsivos que demanda levar em consideração aspectos subjetivos e objetivos do que
entende, escolhe e orienta as suas ações, bem como fruto de sua relação com o outro
com quem está pesquisando. Implica, portanto, valores, atitudes e comportamentos
éticos, que não pode prescindir da troca e conivência conjuntamente com quem
pesquisamos, para que a pesquisa e os processos trilhados em sua tessitura possam
ocorrer com um grau ao mesmo tempo de plasticidade, satisfatoriedade e
permissividade entre ambos.

sumário 382
VII Seminário Vozes da Educação

De todo o modo, na narrativa de uma pesquisa-formação a ideia é dar a ver as


experiências formadoras pelas quais o sujeito tece em seus itinerários, e que é
selecionada, organizada e refletida discursivamente na produção do conhecimento
científico pelo pesquisador, trazendo, assim, a(s) narrativas(s) para o trabalho em
função dos objetivos propostos a priori ou no transcurso da pesquisa.
A narrativa, portanto, é transformada diante de quem a vê, ler e reflete com ela e
sobre ela, trazendo consigo no leitor, uma infinidade de elementos que o fazem refletir e
levar em consideração determinados aspectos ou não, e que vão diferenciando-se por
quem se apropria da mesma, em diferentes espaços/tempos em que ela é apresentada,
construída ou lida, etc. Situando a questão propriamente do tempo na pesquisa narrativa,
é possível inferir a compreensão de que “[...] A narrativa autobiográfica oferece um
território onde se exploram os modos como se concebe o presente, se separa o futuro, e,
sobretudo, se conceitualizam as dimensões intuitivas, pessoais, sociais e políticas da
experiência educativa” (BOLÍVAR et al, 2001, p. 19. Tradução nossa).
Nesse caso, a pluralidade de registros tecidos na narrativa dá um
(re)direcionamento das fontes utilizadas para que o pesquisador possa delinear os
percursos trilhados do ponto de vista teórico-metodológico-político e epistemológico, e
assim, ressignifica elementos que por ventura já tenham escolhidos, bem como, passa a
criar outros dispositivos necessários e imprescindíveis à sua tessitura científica, que
possa ser palatável e ser inteligível para si e para o outro, que seria o leitor com quem
poderá dialogar através de sua produção científica-narrativa.
Pesquisador e pesquisados, na trama estabelecida na pesquisa científica de
abordagem narrativa, estabelecem uma relação de formação, de reflexão e
transformação, mediada pelas narrativas que os tornam humanos, à medida que refletem
com e acerca do vivido e experienciado no tempo. Ou como melhor pontua Ricoeur
(1994, p. 15) “O tempo torna-se tempo humano, na medida em que está articulado de
modo narrativo”.

A temporalidade da experiência narrativa como dispositivo de pesquisa-formação


A narrativa como dispositivo privilegiado de compreensão da experiência vivida
pelo sujeito em processos de imersão nos contextos de vida, formação e
desenvolvimento profissional docente, representa uma potente materialidade para
acessar universos que muitas vezes não tem tido a mesma introspecção e inteligibilidade

sumário 383
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

para impulsionar a transformação e tomada de consciência do sujeito, por meio de


outros dispositivos.
Três aspectos nos parecem ser, fundamentalmente, esclarecedores neste texto e
que tem total relevância na compreensão das ideias tecidas, buscando atravessar as
reflexões em todo o escrito, quais sejam: 1) a ideia de experiência; 2) de experiência
formadora; e, 3) de pesquisa-formação.
Nesse sentido, cabe-nos elucidar o conceito com o qual estamos compreendendo
como experiência, pois nem tudo o que o sujeito faz, vive e reflete no campo da
educação, e, sobretudo, do trabalho docente, pode ser experiência, pois tem uma
especificidade e característica própria para se configurar como tal.
Portanto, colocando às claras, compreendemos que precisar o conceito de
experiência, antes de tudo, nos faz pensar outras possibilidades para situar “a
temporalidade da experiência narrativa como dispositivo de pesquisa-formação”, com o
qual aludimos no tema dessa seção, e com o qual corroboramos nesse escrito.
Evidenciamos, então o que entendemos por experiência: “Vivemos uma infinidade de
transações, de vivências; essas vivências atingem o status de experiências a partir do
momento que fazemos certo trabalho reflexivo sobre o que se passou e sobre o que foi
observado, percebido e sentido” (JOSSO, 2010, p. 48).
A experiência, portanto, seria uma tomada de consciência mediada pelas
reflexões que o sujeito constrói em função do praticado, vivido e sentido em múltiplos
contextos, com diferentes intensidades e fruto da relação com diferentes sujeitos onde
estabelece relações.
No que concerne ao conceito de experiência formadora, esta “[...] implica uma
articulação conscientemente elaborada entre atividade, sensibilidade, afetividade e
ideação” (JOSSO, 2010, p. 48). Tem a ver com as experiências significativas que são
constituídas de emoções, valores, subjetividades, singularidades, saberes-fazeres,
conhecimentos e atitudes dos sujeitos trazendo potencialidades de aprendizagens
reflexivas, conscientes e transformadoras de si e da realidade à sua volta.
Quanto à pesquisa-formação, o Grupo Polifonia toma emprestado esse termo de
Josso (2010) que nos faz entender que esta significa um processo de construção de
saberes, conhecimentos e experiências dos itinerários de pesquisa aos quais permite ao
pesquisador também possibilidades de formação, simultaneamente, configurando-se
como uma dimensão de indissociabilidade entre o pesquisar e o formar, já que estão
intimamente imbricados, e, portanto, um depende do outro para permitir profícuas

sumário 384
VII Seminário Vozes da Educação

potencialidades de aprendizagens, reflexões, transformações e construção do


conhecimento científico.
Reforçamos a concepção de pesquisa-formação à luz de Bragança (2012, p.
115), que discorre:

A pesquisa-formação tem sua origem na pesquisa-ação, já que busca um


efetivo envolvimento dos pesquisadores na transformação individual e
coletiva. Essa pesquisa encontra fundamentação na dialética histórica, no
conceito de práxis, tal como proposto por Marx, que perspectiva uma
filosofia que não apenas interprete o mundo, mas possa transformá-lo, por
meio de uma relação de imbricação entre prática-teoria-prática.

Assim, ao pesquisar, estamos passando também, simultaneamente, por um


processo formativo, que nos possibilita transformações e tomada de consciência,
mediada pelas reflexões que tecemos e que potencializam o conjunto de fatores que
canalizam para uma pesquisa-formação.
A temporalidade como uma dimensão formativa da pesquisa narrativa
(auto)biográfica e como elemento essencial para compreendermos o que é narrado ou o
que do narrado podemos refletir, fazer ou articular, seja como dispositivo de ensino,
pesquisa, reflexão ou formação, traz uma questão central na compreensão da narrativa:
o acontecimento em que foi elaborada a narrativa quando a lemos, quais os fatores e
características que a mesma apresenta em termos de vida, experiência, formação e
transformação que o sujeito teve, e em que momento, contexto e situação foi possível
materializar essa narrativa, além de quais circunstâncias permitiram esse narrar-se a
partir do vivido-experienciado.
Paul Ricoeur (1994, p. 12) em “Tempo e Narrativa (tomo 1)”, reflete que “[...] A
narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal”
(RICOEUR, 1994, p. 15). Assim, muito do que narramos, tem intrínseca relação com as
experiências marcantes que tivemos por onde estabelecemos relações, e que tenha
trazido um potencial de reflexão e implicação que sentimos a necessidade de
compartilhar de alguma forma, e que na narração, seja ela oral ou escrita, nos sentimos
mais a vontade para revelar a nossa interioridade, ou algo que esteja “martelando” em
nossa mente e nos incomodando para poder “colocar pra fora”, o que estamos pensando
do que fizemos, pensamos ou ouvimos.
A temporalidade da experiência narrativa, fornece elementos potentes de
formação e transformação de si, quando refletida pelo sujeito e gerada pela tomada de

sumário 385
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

consciência acerca do vivido ou experienciado, e isso é consubstanciado em relação ao


que está sendo lembrado e associado a “quando”, “como”, “o que”, e de que forma
aconteceu os fatos com os quais o sujeito participou, trazendo uma marca temporal que
determina o conjunto de sentidos, entendimentos e significações expressos na narração.
Diante dessa perspectiva, nos pomos a questionar: Quais seriam os aspectos que
poderiam se caracterizar como a temporalidade da experiência narrativa? Ou como
pensar a narrativa a partir da temporalidade que a mesma se apresenta? Além do mais,
se torna fundamental clarificar: o que esse tempo da experiência narrativa pode
representar para quem narra e por outro lado, para o sujeito que se apropria ou lê essa
narrativa de si ou narrado por outro?
É no plano da linguagem, pois, que conseguimos acessar a dimensão da
temporalidade numa narrativa, para entendê-la e compreender os múltiplos fatores,
situações e circunstâncias que foi elaborada, e o potencial de implicação formativo que
pode ser tecido a partir do interpretado da leitura feita da narração.
A atenção dada por Bakhtin (2003) acerca dos aspectos temporais circunscritos
pela linguagem por meio da narração, conferem um papel essencial na compreensão dos
tempos em que se materializa a narrativa, e sobretudo, quando levada em consideração a
perspectiva da alteridade, na qual, nos constituímos na relação com os outros, e o que
narramos tem muito desse entrelaçamento, já que não se fala sozinho no mundo, mas,
na confluência com linguagens polifônicas que nos fazem narrar o que narramos, em
diferentes espaços/tempos onde estabelecemos relações e com os diferentes sujeitos
com os quais compartilhamos nossos saberes, conhecimentos e experiências.
O ato de narrar, portanto, já é uma delimitação e escolha que envolve inúmeros
aspectos, sujeitos e contextos, porque retrata o modo como vemos o mundo desse
imbricamento que fazemos com os outros que nos constituem e nos fazem ser e narrar o
que narramos, considerando axiologicamente os elementos que consideramos
pertinentes elucidar em nossa narrativa, em função dessas relações estabelecidas. Desse
modo, “[...] a consciência do possível narrador e o contexto axiológico do narrador
organizam o ato, o pensamento e o sentimento em que estes estão incorporados em seus
valores ao mundo dos outros” (BAKHTIN, 2003, p. 141).
Em Ricoeur (1994) é possível ver a relação da linguagem como marca da
temporalidade da experiência narrativa, que produz uma significação pela materialidade
que se apresenta, enquanto recurso privilegiado que situa a ideia de narrativa ao tempo
em que a mesma permite se inscrever. Suas ideias, são de um potencial inestimável no

sumário 386
VII Seminário Vozes da Educação

campo dos estudos e da pesquisa narrativa (auto)biográfica, porque traz uma reflexão
acerca da relação do tempo com a narrativa, elucidando ainda, que foi nos escritos de
cunho religioso, com Santo Agostino, por exemplo, quem primeiro se preocupou com
essa relação na obra “Confissões”, de forma mais detidamente, e que nenhum outro
filósofo, escritor ou sujeito, tinha vislumbrado a potência da temporalidade para
compreendermos as implicações do tempo na experiência formadora que cada sujeito
possibilita se enredar e produzir significados substanciais à sua vida e experiência por
meio da narração.
É possível perceber e identificar a questão do tempo em uma narrativa, por meio
de palavras, expressões, fatos e acontecimentos que delimitam territorialidades e
demarcam situações e momentos ao longo do tempo e que podem ser apontados na
narração. Um exemplo, em relação às palavras utilizadas em uma perspectiva ampla, no
caso de: “foi”, “é”, “está sendo”, “poderá ser”. Estas palavras correspondem exemplos
que podem se fazer presentes em uma narrativa, e que, para o narrador, torna-se
inteligível em que temporalidade se encontra a narrativa, a propósito de situá-la no
passado, no presente ou no futuro.
Daí, a ideia de que “[...] A narração comporta um encadeamento de enunciados,
que supõe que o mundo humano se constrói como um todo no curso mesmo das ações e
acontecimentos” (BOLÍVAR et al, 2001, p. 20. Tradução nossa).
É preciso salientar que uma narrativa não pode tomar como princípio um nível
de comparabilidade no tempo presente em relação ao passado ou ao futuro, uma vez que
apresenta peculiaridades, características e modos próprios, além de outros de
situacionalidade, considerando as especificidades próprias de um tempo, época, lugar e
sujeito(s) envolvidos na trama tecida. Uma vez que “[...] nas intrigas que inventamos o
meio privilegiado pelo qual reconfiguramos nossa experiência temporal confusa,
informe, e, no limite, muda” (RICOEUR, 1994, p. 12, Grifos nossos). E mudam
também os modos como narramos nossas experiências, à medida em que nos engajamos
em outros contextos formativos, e aprendemos novos estilos de tecer narrativas. Ou
seja, ganha outras possibilidades compreensivas, reflexivas e a capacidade de tocar o
sujeito de modos diferentes, tendo em vista os acontecimentos processados no tempo
em que a narrativa é apropriada, refletida e em algumas vezes ressignificada.
E em relação a ideia de temporalidade da experiência narrativa como
ressignificada no tempo, tem a ver exatamente com o olhar que temos dela, mas não
somente nisso, envolve as habilidades e capacidades que temos de, junto com ela,

sumário 387
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

compreender, analisar e refletir a conjuntura que o narrado se deu, ampliando-se pelas


questões que cada sujeito pode mobilizar para entendê-la na relação com o tempo, as
coisas, as pessoas e os acontecimentos que foram vividos e experienciados por quem os
narrou, situando, nessa trama, os três tempos da experiência humana: passado, presente
e futuro. Nesse sentido, não olhamos para uma narrativa sempre com o mesmo
entendimento, compreensão e reflexão, mas conseguimos ultrapassar a materialidade
que se apresenta, ressignificando-a conforme o que temos de conhecimentos, saberes e
experiências, fazendo outras articulações e reflexões compreensivas do narrado, e que
envolve diferentes fatores, com variadas dimensões e graus de envolvimento e/ou
distanciamento, dependendo de quais caminhos poderão ser trilhados e escolhidos pelo
sujeito que está se defrontando com a narrativa.
Não há como dissociar o tempo da narrativa, até porque o próprio ato de narrar
acontece numa lógica encadeada por um tempo em que a história é contada e que vai
criando o enredo de situações, tessituras de intrigas, acontecimentos e fatos colocando o
sujeito em contato direto com o que os seus pensamentos, reflexões e memórias lhe
permitem resgatar, lembrar e recordar, passando, assim, a registrar as experiências que
lhe trouxe um potencial de implicação em seu percurso formativo, existencial e
experiencial.
Entre as reflexões que pontuam a temporalidade narrativa em Delory-
Momberger (2012, p. 525), nos pareceu, essencial trazer a ideia de que “[...] o indivíduo
vive cada instante de sua vida como o momento de uma história: história de um
instante, história de uma hora, de um dia, de uma vida”. Assim, compreendemos que
cada narrativa representa uma versão ou fragmento da realidade experienciada pelo
sujeito, e que vai caracterizando possibilidades de encontro consigo próprio, com os
outros, com as coisas e com o mundo, no tempo histórico em que se inscreve e que
determina o curso de sua história, trazendo ainda uma sucessão de acontecimentos que
lhe pareceu mais significativos na sua vida e que resgata na experiência narrativa do
tempo em que é narrado.

Considerações Finais
O tempo é um elemento chave na configuração da tessitura narrativa, e traz uma
potencialidade que se reverbera nas condições em que o narrado se materializa, e nas
implicações formativas e transformadoras entre o narrador e o sujeito que se apropria do
narrado.

sumário 388
VII Seminário Vozes da Educação

Mas não se trata de qualquer tempo, mas de uma temporalidade produtiva que
deve ser propiciada pelas condições existenciais, valorativas, atitudinais e profissionais
com que se defronta o sujeito na trama tecida que se propõe a fazer, em função do que
lhe dispõe e do que compreende, entende e sabe no plano de suas habilidades,
conhecimentos e experiências existentes.
Foi possível perceber ainda, que a relação entre pesquisador e sujeito(s)
pesquisado(s), há especificidades, contextos e desafios na produção do conhecimento
científico em se tratando de uma pesquisa-formação de abordagem narrativa
(auto)biográfica, pois existem fatores mediadores para que a pesquisa possa fluir, do
ponto de vista da produção de fontes, e por outro lado, o desfecho, continuidade e
conclusão do processo de pesquisar e se relacionar com quem pesquisamos, resultando,
em uma dimensão que pode envolver barreiras ou possibilidades, dependendo de como
estamos encarando a pesquisa e das relações estabelecidas durante a escolha das fontes,
como operacionalizamos e as próprias relações interpessoais entre os sujeitos na trama
da pesquisa.
Consideramos de um valor substancial numa pesquisa científica, primar pelas
dimensões conceituais e conceptuais de “experiência”, “experiência formadora” e da
“pesquisa-formação”, uma vez que são campos do saber que se entranham e se fazem
presentes na pesquisa narrativa (auto)biográfica, e produz um processo de significação
potencial para a construção do conhecimento científico, no que diz respeito, mais
especificamente: 1) a própria maturação das ideias que o pesquisador está produzindo;
2) o enriquecimento das reflexões construídas durante o processo de pesquisa-formação;
e, 3) a possibilidade de transformação suscitada pela tomada de consciência do narrado
em diferentes espaços/tempos do vivido e experienciando, permitindo, inclusive,
emancipar-se diante dos contextos em que está imerso.
Em suma, a temporalidade da experiência narrativa, se consolida no plano da
linguagem, a qual mediatiza os acontecimentos, fatos, aspectos e características de um
tempo, lugar, momento e ideias que são apresentadas na narrativa pelo sujeito que a
narrou. Do mesmo modo, acreditamos que a ideia de temporalidade não é fixa, pois o
interlocutor que se apropria do narrado, ressignifica essa narrativa, em função do que
dispõe de saberes, conhecimentos e experiências, e se torna uma via de reflexividade
potente, porque permite ser circunscrita no plano da transformação de si e do mundo à
sua volta, permitindo processos emancipatórios essenciais no contexto de sua vida,
pesquisa-formação e experiência profissional.

sumário 389
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo


Bezerra; prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003.

BRAGANÇA, Inês Ferreira de Souza. Histórias de vida e formação de professores:


diálogos entre Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. Disponível
em: <https://doi.org/10.7476/9788575114698>. Acesso em: 15/09/2019.

BRAGANÇA, Inês Ferreira de Souza. Pesquisaformação narrativa (auto)biográfica:


trajetórias e tessituras teórico-metodológicas. In.: ABRAHÃO, M. H; M. B.; CUNHA,
J. L. da; BÔAS, L. V. (Orgs). Pesquisa narrativa (auto)biográfica: diálogos
epistêmico-metodológicos. Curitiba: CRV, 2018.

BOLÍVAR, António et al. Lá investigación biográfico-narrativa em educación:


enfoque y metodologia. Madri: Editorial La Muralla, 2001.

DELORY-MOMBERGER, Christine. Abordagens metodológicas na pesquisa


biográfica. Revista brasileira de educação. V. 17, n. 51, set./dez., 2012.

JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. Tradução de José Cláudio,


Júlia Ferreira; revisão Maria da Conceição Passeggi, Marie-Christine Josso. 2. ed. rev. E
ampl. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (tomo 1). Tradução Constança Marcondes Cesar.
Campinas, SP: Papirus, 1994.

sumário 390
VII Seminário Vozes da Educação

AS HISTÓRIAS DE VIDA DE PROFESSORAS INICIANTES NO PROCESSO


DE CONSTITUIÇÃO DA DOCÊNCIA

Joelson de Sousa Morais


UNICAMP
joelsonmorais@hotmail.com

Inês Ferreira de Souza Bragança


UNICAMP e FFP UERJ
inesbraganca@uol.com.br

1 Notas introdutórias

A sociedade vem, ao longo do tempo, passando por profundas e vertiginosas


mudanças em várias esferas, escalas e dimensões, alterando, consequentemente as
relações humanas, os modos de pensar, fazer e produzir as profissões, as metamorfoses
no conhecimento, na existência e na vida dos sujeitos, trazendo, inclusive, implicações
na cultura, na educação, e assim, na formação e na profissionalização docente.
Em relação à profissão docente, esta se defronta, com uma infinidade de saberes,
fazeres e conhecimentos que são elaborados e (re)elaborados, em função da conjuntura
histórico-social, política, econômica e cultural, pelos quais passam as professoras,
possibilitando, nesse contexto processos de constituição identitária singulares,
subjetivos e maleáveis que se consolidam à medida em que a pessoa/professor envereda
os múltiplos espaços/tempos de vivências e experiências formadoras onde transita em
seu percurso existencial.
Nesse sentido:

[...] as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade
tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca,
singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e
posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão
sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de
mudança e transformação (HALL, 2014, p. 108).

Portanto, em função da multiplicidade dos sujeitos com os quais estabelecemos


relações, dos saberes aprendidos e compartilhados, dos contextos trilhados, das
experiências e conhecimentos construídos, vamos nos moldando, influenciando o
mundo e sendo por ele influenciado e afetado, permitindo outras possibilidades de

sumário 391
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

constituições subjetivas que vão nos tornando o que somos ou estamos sendo, que não é
mais o mesmo do passado, não estamos sendo no presente e nem o seremos no futuro,
pois todo acontecimento vai nos atravessando por uma infinidade de mutações ao longo
do tempo e do mundo que nos cerca.
Daí a ideia da temporalidade narrativa expressa em Ricoeur (2010), que situa o
plano da ação na configuração da tessitura narrativa como uma experiência que somente
o sujeito tem acesso quando as histórias são narradas, ou nas palavras do que o autor vai
dizer é que “[...] uma vida humana é uma história em estado nascente” e que somente ao
narrá-la é que “[...] temos acesso aos dramas temporais da existência” (RICOEUR,
2010, p. 127).
O uso do gênero feminino ao nos reportarmos ao termo de “professoras” é por
uma escolha política, por respeito às mulheres e por valorização às próprias professoras
pesquisadas que fizeram parte deste estudo, além de que a docência, em sua maioria é
constituída por mulheres.
Este texto dialoga com autores do campo da Pesquisa Narrativa
(Auto)Biográfica e as Histórias de Vida, na perspectiva de Ricoeur (2010), Josso
(2010), Candau (2012), Delory-Momberger (2008; 2014), Nóvoa (2010), Catani (et al,
2003), Bragança (2012), entre outros.
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, primando como dispositivos
metodológicos: as histórias de vida, as observações e o diário de pesquisa, que foram
realizadas com três professoras iniciantes que atuam nos anos iniciais do Ensino
Fundamental, numa escola da rede pública de ensino de Caxias-MA.
A problemática de partida a que nos debruçamos é saber: Quais as implicações
das histórias de vida de professoras iniciantes no processo de constituição da docência?
E o que isso pode significar na escolha da profissão e no cotidiano da sua formação e do
desenvolvimento profissional?
Os objetivos do artigo buscam: compreender as implicações das histórias de vida
na constituição da docência de professoras em início de carreira, bem como refletir
acerca das potencialidades das histórias de vida no desenvolvimento profissional de
professoras iniciantes.
O recorte cronológico do estudo compreende um contexto contemporâneo, por
buscar dá visibilidade às histórias formativas do ser e fazer-se professora no século
XXI, na constituição de suas identidades profissionais, mais especificamente, situadas

sumário 392
VII Seminário Vozes da Educação

no ano de 2014, período este em que foi realizada a pesquisa com as professoras
iniciantes.
O presente artigo também se inscreve como uma pesquisa-formação que vem
nos acompanhando atualmente, tanto em relação à construção do texto de tese de
doutorado em educação do primeiro autor, que está em curso no Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
orientado pela segunda autora deste escrito, como mediado pelas reflexões, discussões e
estudos que estamos realizando nos grupos de pesquisa dos quais fazemos parte, que é o
GEPEC – Grupo de Estudos em Educação Continuada e o Grupo Polifonia, que
congrega professores/as da educação básica, mestrandos, doutorandos e professores da
Unicamp e da Faculdade de Formação de Professores (FFP) da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ).

2 A potência das histórias de vida como dispositivo metodológico de pesquisa-


formação em Educação
As histórias de vida têm se configurado como um pertinente dispositivo de
acesso à interioridade do sujeito, a partir de suas reflexões tecidas narrativamente acerca
do que viveu ou experienciou no passado, e que podem representar modos outros de
acesso a história da constituição do ser pessoa e profissional em várias campos da
profissão e do saber ao longo do tempo, mediado pelos entrelaçamentos e contextos por
onde trilhou em seus itinerários formativos.
Em relação à ideia de uma “pesquisa-formação” que aludimos neste texto, vale
ressaltar que é um termo cunhado por Josso (2010), e que para nós tem o significado da
articulação e indissociabilidade entre os processos de pesquisa e de formação para o
sujeito, uma vez que ambos se entrelaçam simultaneamente, em que o pesquisador vai
aprendendo, escolhendo e construindo dispositivos metodológicos, modos de escrita,
fontes e estilos de produzir o conhecimento, caracterizando-se, muitas vezes, como
possibilidades de (auto)formação no decurso da vida.
Portanto, consideramos que a pesquisa-formação trata de um processo de
imersão do sujeito no contexto da pesquisa, impulsionando reflexões acerca dos
percursos trilhados que vão se articulando com o plano da ação-reflexão-ação, do que
sabe, conhece e mobiliza em função do aprendido em múltiplos contextos que se
apropria ao longo da vida, sobretudo, da pesquisa e da formação que tece do vivido e
experienciado.

sumário 393
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Bragança (2018) também vem defendendo a pesquisa-formação como uma


dimensão disparadora da constituição da experiência e transformação do sujeito no
decurso dos contextos onde tece relações e aprendizagens, como recurso privilegiado
que potencializa as narrativas e memórias destes, na perspectiva de uma tessitura de
uma epistemologia outra que possa permitir a construção de outros tantos modos de
viver, pesquisar e de se formar, o que a autora vai chamar de pesquisaformação
narrativa (auto)biográfica.
Por muito tempo a ciência trilhou o seu caminho baseando-se na perspectiva de
uma concepção positivista e newtoniana-cartesiana de produzir conhecimento. Mas, em
decorrência das inúmeras mudanças que foram se operando na sociedade, chegou-se um
momento, em que não era possível mais dar conta das problemáticas vivenciadas em
muitos contextos, sobretudo, no âmbito da educação. Pois o sujeito, ficou por muito
tempo, invisibilizado, em detrimento de uma visão vertical e hierárquica,
inviabilizando, portanto, um olhar holístico que pudesse concebê-lo em sua inteireza e a
partir de sua subjetividade, como possibilidades mediadoras de gerar transformações
plausíveis de si, e, consequentemente, na educação e na sociedade.
Numa perspectiva histórica, Delory-Momberger (2014), no livro “As histórias
de vida: da invenção de si ao projeto de formação” elucida que o gênero
(auto)biográfico ganha seu teórico e historiador com Philippe Lejeune, que define suas
características e situa sua emergência no século XVIII, por meio de “Confissões” de
Rousseau, o qual evidencia o nascimento e texto fundador deste gênero. Enquanto que
nas Ciências Sociais, as histórias de vida vão surgir, originalmente por volta dos anos de
1920, na Escola de Chicago nos Estados Unidos, e na Europa, o seu renascimento se dá
pela contraposição aos modelos quantitativos da sociologia e a rejeição do sujeito pelo
estruturalismo e marxismo, e, portanto, se iniciam então em 1970 com Daniel Bertaux,
que foi seu iniciador na França, orientado para os campos profissionais com a
abordagem biográfica, que desenvolveu trabalhos na sociologia crítica, a partir das
fontes de histórias de vidas dos sujeitos em trajetórias e percursos profissionais.
No que concerne ao desenvolvimento das histórias de vida como dispositivo
heurístico de formação e como disparadora para (re)colocar o sujeito como protagonista
de sua própria vida, de sua história, e com o qual entendemos e corroboramos neste
texto, vale ressaltar que:

sumário 394
VII Seminário Vozes da Educação

[...] O recurso da história de vida como prática de formação inscreve-se num


contexto marcado pelos distúrbios socioprofissionais e familiares que afetam
uma sociedade em plena transformação e pela perda das referências
tradicionais que permitiram ao indivíduo construir-se um fio de etapas
claramente reconhecidas, sucedendo-se segundo uma ordem imutável. A
fratura das estruturas e a precariedade da vida profissional obrigam o
indivíduo a operar um reajuste permanente de sua vivência e a proceder, para
esse fim, a uma reapropriação constante do sentido de sua vida. A prática da
história de vida, aparece, assim, como a forma de o sujeito, acedendo à sua
própria historicidade, ser o ator da sua vida (DELORY-MOMBERGER,
2014, p. 36-37).

Do mesmo modo, entendemos que na história de vida, o sujeito revela uma


dimensão histórica-temporal de uma época, de um modo de ser, de se comportar e que
envolver outras múltiplas dimensões sociais, profissionais e pessoais em função do
modelo de sociedade em que viveu ou experienciou, e que isso repercute em seu perfil e
identidade que se apresenta na atualidade.
Ou como melhor clarifica Bolívar (et al, 2001, p. 38. Tradução nossa), “[...] cada
modelo de relato de vida mostra uma perspectiva do “eu”, pegando – em diferentes
porções – partes de uma realidade (pessoal, social, ideal, oculto, real) que, ao serem
confrontadas dialeticamente, surge um novo ‘eu reconstruído’”.
Assim, o surgimento das histórias de vida, como campo de pesquisa, formação e
desenvolvimento profissional na educação, foi impulsionado pela ideia de “recolocar os
professores no centro dos debates educativos e das problemáticas da investigação”
(NÓVOA, 1992, p. 15). Nessa direção, na década de 1980 houve o que Nóvoa chama de
“viragem paradigmática”, dando lugar ao sujeito, como pessoa e profissional, e assim, a
centralidade foi sendo dada mais ainda em suas narrativas, relatos e histórias de vida,
contrapondo-se a um modelo de racionalidade técnica que fugia dos princípios de
construção das identidades pessoais e profissionais, e, portanto, da democracia e da
emancipação destes sujeitos, mediadas por processos mais amplos que poderiam ser
gerados por reflexões e modos de se perceber no mundo e nos contextos onde poderiam
ir se engajando, se transformando e transformando o meio à sua volta.
Nesse sentido “No contexto da formação de professores, a abordagem das
histórias de vida se coloca também no movimento de mudança paradigmática; um novo
olhar sobre o/a professor/a e sua prática vai sendo tecido, indicando mudanças no
campo da formação, da investigação e das práticas” (BRAGANÇA, 2012, p. 74).
As histórias de vida, portanto, buscam recuperar o sujeito em seu cotidiano, a
partir da inteireza que o mesmo apresenta, sem fragmentar a vida, a profissão e a
existência. Trata-se, pois, de dá visibilidade ao seu desenvolvimento numa perspectiva

sumário 395
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

micro, pelo que faz, e pelo que pensa, mobiliza, sente e que tudo isso, e suas narrativas
historiadas sobre esse processo traz implicações na constituição de sua história, da sua
pessoa e da sua profissão, para então compreendermos como se dá a estrutura das
relações sociais, intersubjetivas e no plano da subjetividade, bem como das
transformações da profissão, entre outras questões numa dimensão macro.
A potência das histórias de vida se reverbera, a partir do momento, em que o
sujeito se vê implicado em um contexto, narra todos esses processos vivenciados,
experienciados e que lhe toca numa dimensão de implicação, de atravessamento, o que
o faz ir refletindo com e acerca de suas ações, de como se vê, e do que poderá melhorar
em seu percurso existencial e profissional, gerando, portanto, possibilidades de
transformações e emancipação, pela tomada de consciência que faz ao ler o que narrou
de sua história que viveu ou experienciou em algum momento de sua existência.
Cabe, portanto, dá legitimidade, no âmbito da pesquisa-formação com as
histórias de vida na educação, tendo em vista que “[...] Ao serem trabalhados, esses
relatos favorecem o redimensionamento das experiências de formação e das trajetórias
profissionais e tendem a fazer com que se infiltrem na prática atual novas opções, novas
buscas e novos modos de conduzir o ensino” (CATANI, et al, 2003, p. 19).
Em relação ao modo como é organizado as histórias de vidas das professoras
iniciantes pesquisadas, e como forma de respeitar os aspectos éticos e legais da pesquisa
científica, não iremos revelar os nomes das mesmas, e sim serão resguardadas suas
identidades. Primamos, portanto, pelo uso apenas das letras iniciais dos seus dois
primeiros nomes.
As histórias de vida das professoras participantes da pesquisa, foram produzidas
no cotidiano da escola, na relação entre pesquisadores e pesquisadas, por meio da
gravação em aparelho de áudio e depois transcritas para o computador, somando-se às
observações e aos registros do diário de pesquisa, que depois foi feito um
entrelaçamento entre esses dispositivos metodológicos, em que fomos questionando e
conversando com elas, sobre como se tornaram professoras e como chegaram até onde
chegaram e estão atualmente, permitindo a construção do conhecimento e a produção
deste artigo.
Nesse sentido, durante nossas conversas as professoras acessaram suas
memórias e histórias, conforme iam se lembrando no passado do que tanto fez e dos
contatos que tiveram enquanto estavam exercendo determinadas práticas e atividades
que tinham a ver com a educação, e em alguns casos na própria escola e na sala de aula,

sumário 396
VII Seminário Vozes da Educação

e que mobilizaram determinados saberes e fazeres, mesmo sem saberem o suficiente


como o fazê-lo, do que tinham a ver com a educação, para então “dar conta” do recado,
por aprendizado ou curiosidade, conforme será elucidado suas histórias de vida na
próxima seção.

3 Histórias de vida de professoras iniciantes: memórias do passado fazendo-se no


presente

Nesta seção são apresentadas as histórias de vidas das três professoras iniciantes
participantes da pesquisa. Assim, é feito um entrelaçamento entre três dimensões da
pesquisa científica, entre: metodologia, empiria e teoria. Tais dimensões, vão para além
dos próprios relatos narrativos evidenciados das docentes, de modo a acessar níveis de
reflexão e compreensão acerca da escolha profissional da docência como profissão, a
partir do passado que vivenciaram e tiveram experiências de alguma forma com a área
da educação, constituindo, portanto, suas identidades profissionais no tempo da história
presente, ou seja, no momento contemporâneo em que estão vivendo e experienciando a
profissão.
Três eixos ou dimensões formadoras perpassam todas as narrativas das
professoras iniciantes pesquisadas e com as quais conseguimos depreender de suas
histórias de vida, quais sejam: memória, identidade e desenvolvimento sócio-
profissional.
A professora A.C. tem 33 anos. Possui formação em Magistério (1999),
graduação em Pedagogia (2012), especialização em Supervisão e Gestão Escolar
(2013), além de possuir curso em Libras (2013). Estudou toda a escolarização na rede
pública de ensino. Segundo evidencia em sua fala, acerca da constituição da docência
como profissão, nos informou que:

[...] sempre gostei da profissão, minha mãe é professora e minhas tias


também, e sempre que podia as ajudava nas atividades, trabalhos e nas
questões relacionadas às suas práticas pedagógicas. Quando fiz o ensino
médio já me identificava com a educação, ampliando esse gostar com a
realização do curso de magistério, passando a criar cada vez mais gosto e
prazer, buscando me aprofundar, aprimorar e melhorar os saberes
relacionadas às práticas educativas. Não me vejo em outra área a não ser
como professora mesmo, pois gosto do que faço. Passei a ser professora da
escola que atuo até hoje, por convite de pessoas que conheciam o meu
trabalho e permaneço atualmente como docente da instituição (História de
Vida da Profa. A.C., 2014).

sumário 397
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Diante do exposto, podemos refletir que os momentos em que teve contato na


situação de processos de aprender e ensinar, foram vivenciados e experienciados pela
professora A.C. com fazeres e saberes que ia construindo de forma didática e
metodologicamente, conforme narra, mesmo que acontecia de modo inconsciente sem
focar especificamente o ensinar. Do mesmo modo, é possível refletir que o fato de dizer
que escolheu a docência como vida e profissão, tem a ver com os acontecimentos que se
lançou no passado, e que marcou sua história de vida, e isso, vai rememorando cada vez
que se lembra como iniciou a profissão docente.
Diante da história de vida da professora A.C. enunciada acima, entendemos que
se faz presente a ideia de três tempos da narração, que seria uma “tríplice equivalência”
conforme esclarece Paul Ricoeur (2010), em “Tempo e Narrativa” ao pensar nos
estudos que fez sobre as “Confissões” de Santo Agostinho, de que existe: um presente
do passado, um presente do presente e um presente do futuro. Assim, o presente do
passado é a memória, o presente do presente é a visão, e o presente do futuro é a
expectativa.
Clarificando pormenorizadamente como se dá essa tríplice equivalência no
âmbito da temporalidade narrativa a quem alude Ricoeur (2010), poderíamos pensar que
o presente do passado estaria onde a professora narra que: “[...] sempre gostei da
profissão, minha mãe é professora e minhas tias também, e sempre que podia as ajudava
nas atividades, trabalhos e nas questões relacionadas às suas práticas pedagógicas”.
Quanto ao presente do presente, poderíamos pensar quando evidencia que: “Passei a ser
professora da escola que atuo até hoje, por convite de pessoas que conheciam o meu
trabalho e permaneço atualmente como docente da instituição”. E em relação ao
presente do futuro está onde a professora diz “Não me vejo em outra área a não ser
como professora mesmo, pois gosto do que faço”.
É com base nas ideias do antropólogo Jöel Candau, acerca de uma reflexão entre
memória e identidade como dimensão constitutiva do ser em relação com o que narra de
acontecimentos do que vivencia e experiencia em seu cotidiano que é possível articular
com os múltiplos contextos os quais se engajam social e culturalmente as professoras
iniciantes. E no caso da profa. A.C., acima, podemos relacionar que ‘[...] Através da
memória o indivíduo capta e compreende continuamente o mundo, manifesta suas
intenções a esse respeito, estrutura-o e coloca-o em ordem (tanto no tempo como no
espaço) conferindo-lhe sentido” (CANDAU, 2012, p. 61).

sumário 398
VII Seminário Vozes da Educação

É, pois, uma forma de dá sentido a existência e a profissão, que vai, inclusive,


desbravando outras memórias do passado, narrando-o no presente, o que Josso (2010, p.
37), vai chamar de “recordações-referência” que “[...] significa, ao mesmo tempo, uma
dimensão concreta ou visível, que apela para nossas percepções ou para as imagens
sociais, e uma dimensão invisível, que apela para emoções, sentimentos, sentido ou
valores”
Em relação à professora I.R., a mesma tem 24 anos, possui graduação em
Pedagogia (2012), especialização em Supervisão, gestão e planejamento educacional
(2014). Cursou toda a escolarização também na rede pública de ensino e disse que não
sofreu nenhuma dificuldade quando estudava no ensino básico. Assim se posicionou a
professora I.R. em relação à escolha da profissão de professora:

Quanto à escolha da profissão de professora não se deu por influências


familiares, mas por escolha pessoal mesmo. Iniciei minhas atividades como
professora na escola que me encontro até hoje, por intermédio de convites, já
que tinha concluído o curso de Pedagogia e não estava atuando na área da
educação, portanto, resolvi exercer a docência pelo fato de estar precisando
trabalhar, e também por ter formação na área (História de Vida da Profa.
I.R., 2014).

Nesse sentido, ao narrar sobre si, a partir do que entende, compreende, reflete e
toma as experiências e vivências como acontecimentos trilhados no percurso
existencial, o sujeito vai dando forma às suas histórias de vida, que vai diferenciando-se
de um espaço/tempo para outro, bem como, dos aspectos que vão trazendo implicações
durante a sua história do ser e fazer-se professora e de todos os atravessamentos que
permitiram dizer o que diz no momento em que evoca a sua narrativa, fruto de sua
história de vida. Essa dimensão reflexiva, pode ser corroborada com a ideia de que “[...]
a narração é o lugar no qual o indivíduo toma forma, no qual ele elabora e experimenta
a história de sua vida” (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 56).
Por outro lado, cabe refletir que as exigências que a sociedade neoliberal no
contexto contemporâneo, vai colocando de modo hegemônico e partindo de uma
supremacia, preconizada pela onda avassaladora do consumismo, forjado pelo
capitalismo, cada sujeito, vai respondendo a modos diferentes de se perceber e de tecer
os seus caminhos pessoais e profissionais, em decorrência do que acontece e como toma
o acontecimento para si. Trata-se, pois, de uma ideia suscitada pela “sociedade do
hiperconsumo”, expressão batizada pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky (2015), e
que tem a ver com as necessidades criadas pela era da globalização que condicionam os

sumário 399
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

sujeitos a “[...] viver melhor, a usufruir do conforto e das novidades comercializadas”


(LIPOVETSKY, 2015, p. 86-87).
O fato de trabalhar, portanto, é uma forma de subsistência que nos lança ao
usufruto dos dispositivos materiais e pessoais que possamos conquistar, e que criam
“fluxos de desejos” que acabam nos tornando reféns e nos enquadrando na lógica do
capital para obtermos o que queremos e desejamos, como uma questão de satisfação.
No caso da professora I.R., nota-se que sua narrativa de escolha da profissão,
tem um viés bem forte, amparado nessa perspectiva ao reforçar que escolheu ser
professora “pelo fato de estar precisando trabalhar”.
Já a professora O.L. possui 26 anos; tem formação em Magistério em nível
Normal (2010), e encontrava-se cursando Pedagogia, no período em que foi realizada a
pesquisa (no 7º período do curso) numa faculdade privada. Morou em zona rural, onde
iniciou seus estudos no Ensino Fundamental, não cursando Educação Infantil, por não
existir na época e no local onde morava. Seu processo de alfabetização se deu através de
sua mãe que era professora, e que também lhe ensinava na escola. Cursou toda a
escolarização na rede pública de ensino, chegando a ir para a cidade para continuar seus
estudos por necessitar de uma melhor aprendizagem já no ensino médio. A professora
O.L. pontuou em sua fala que:

[...] cheguei a assumir o trabalho na sala de aula quando minha mãe se


ausentava para resolver algumas situações para o sustento da família, e então
ficava desenvolvendo atividades e práticas pedagógicas no processo de
alfabetização, de acordo com o que tinha observado das experiências da
minha mãe como educadora. Eu fazia isso sem ter formação ainda, somente
enquanto minha mãe concluía determinadas obrigações familiares. Quanto à
escolha da profissão de professora, não tinha menor interesse, e sim gostava
da área de Agronomia e Fisioterapia, cheguei até a passar no vestibular para
Agronomia numa instituição em outra cidade distante da que eu morava, mas
por não ter condições econômicas para cursar, desisti. Ingressei no curso de
magistério por opção, e mesmo sem saber e conhecer muito bem, fui criando
gosto e prazer pela educação, passei a tomar a decisão, de fato, para ser
educadora sem pensar em outra profissão. No 5º período do curso de
Pedagogia, surgiu a oportunidade de eu trabalhar na EJA [Educação de
Jovens e Adultos], e cheguei a levar toda a documentação para assumir a
vaga, mas desisti, e então encontrei no mesmo período uma escola que estava
precisando de professores, então entreguei o meu currículo, e fui,
posteriormente contratada. É a escola que permaneço até hoje como docente
(História de vida da Profa. O.L., 2014).

O potencial de implicação da história de vida da profa. O.L. relatado acima,


reside no fato de que ela própria foi aos poucos construindo a sua própria formação com
base num balanço de vida (perspectiva retrospectiva) e não apenas numa ótima de

sumário 400
VII Seminário Vozes da Educação

desenvolvimento futuro, conforme faz alusão Nóvoa (2010). Nesse sentido, ainda para o
autor, é nesse momento, que é possível situar o conceito de “reflexividade crítica”, fruto
do entrelaçamento entre as dimensões anteriores, que resultaria nesse processo de
refletir sobre si e sua formação, gerando, então, transformações relevantes na vida e
profissão.
Do mesmo moto, as experiências formadoras que tivera no passado, e acessados
no plano da memória, permitiu à professora iniciante, (re)elaborar os saberes da prática
pedagógica, com base no contexto e realidade que se apresentava, no momento em que
estava se defrontando profissionalmente. Fato este, que foi consubstanciado pelas
nossas observações no cotidiano de sua prática, e que, foi, inclusive, caracterizado por
processos de criação e (re)criação de saberes, materiais pedagógicos e atividades outras
extrapolando o currículo oficial, utilizando suas “astúcias” de “táticas” e “estratégias”
ao mesmo tempo, diante das práticas instituídas hegemonicamente (CERTEAU, 2012).
Cabe, portanto, pensar reflexivamente, diante do exposto que “[...] Ao lançar um
olhar mais detido e mais arguto sobre seu passado, os professores têm a oportunidade de
refazer seus próprios percursos, e a análise dos mesmos tem uma série de
desdobramentos que se revelam férteis para a instauração de práticas de formação”
(CATANI, et al, 2003, p. 32).
Do mesmo modo, com base na história de vida narrada da profa. O. L.,
entendemos com Ricoeur (2010, p. 116), que “[...] entender a história é entender como e
por que os sucessivos episódios conduziram a essa conclusão, que, longe de ser
previsível, deve ser finalmente aceitável, como sendo congruente com os episódios
reunidos”.
As três professoras iniciantes pesquisadas iniciaram sua profissão como
docentes nesta escola, duas delas, a A.C. e a O.L., junto com o início das atividades da
escola. A professora I.R. entrou na escola em seu segundo ano de existência, no lugar de
outra professora, que teve que se afastar para licença-maternidade, não retornando mais
para a escola, e que, portanto, I.R, acabou assumindo e permanecendo no lugar da outra professora, ficando até o momento
em que ocorreu a pesquisa como docente da instituição.

Todas as três professoras iniciantes trabalhavam, antes de serem professoras, em


outras áreas completamente diferentes da educação. Exerciam atividades no comércio
ou em cargos públicos do município. E no período em que foi realizada a pesquisa,
identificamos que as professoras iniciantes pesquisadas estavam atuando na escola no
regime de contratos temporários, sujeito à renovação a cada ano letivo, na rede

sumário 401
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

municipal de ensino, e não possuíam outros empregos, nem trabalhavam em turnos


dobrados na escola. O que isso, as mobilizam, sempre com muita preocupação, a
aprenderem “novos” saberes e fazeres que pudessem ser desenvolvidos em sua prática
pedagógica, já que precisavam mostrar trabalho para permanecerem com o cargo de
professoras na escola.
Podemos ainda depreender que a narração das histórias de vidas das professoras
iniciantes pesquisadas, se faz presente diferentes acontecimentos que situam as marcas
de vivências e experiências com o contato em processos de aprender e ensinar a serem
professoras, e que se configurou com diferentes implicações, intensidades e
características em suas vidas, e que é retrato com as reminiscências das memórias com
as quais conseguem se lembrar. Desse modo, entendemos como Ricoeur (2010) que nas
histórias narradas se faz presente ao mesmo tempo memória e expectativa com o ser
professora, com o que poderá encontrar na sua profissão e com a própria permanência e
sobrevivência na profissão de professora. Ou seja, “[...] narração, diremos, implica
memória, e previsão implica expectativa. Porém, o que é lembrar-se? É ter uma imagem
do passado. Como isso é possível? Porque essa imagem é um vestígio deixado pelos
acontecimentos que permanece fixado na mente” (RICOEUR, 2010, p. 22).

4 uma breve síntese...

A pesquisa nos permitiu inferir que as histórias de vida têm um potencial


transformador na vida do sujeito que narra sua história, pois acessa acontecimentos do
passado, que foram marcantes em sua vida, fazendo repensar o contexto atual, suas
práticas e processos formativos.
Em se tratando das professoras iniciantes, as que foram pesquisadas, percebem
que suas experiências e vivências tidas no passado, fizeram perceber no momento atual
em que narraram suas histórias de vida, que foram relevantes e disparadoras para a
escolha da docência como vida e profissão, e o contato que tiveram e fizeram com
alguns fazeres e saberes relacionados à educação, fizeram-nas aprender e (re)elaborar
suas formas de desenvolver o trabalho pedagógico, porque foi aperfeiçoando, ao longo
do tempo, o olhar e as práticas metodológicas com as quais iam desenvolvendo, já em
outro momento de suas vidas: como aprendentes de professoras, assumindo a

sumário 402
VII Seminário Vozes da Educação

responsabilidade sozinha de uma turma com vários alunos de diferentes perfis,


identidades, subjetividades e heterogeneidades.
As histórias de vida, portanto, revelam inúmeras possibilidade de pensar a
profissão docente, e os modos como vai se configurando o ser professor no contexto da
sociedade contemporânea, evidenciando, ainda, perfis identitários de ser professora
iniciante, que se diferenciam de outros tempos/espaços e momentos históricos da
profissão docente. Suas potencialidades são vistas, em suma, como transformadoras e
emancipadoras, a partir do momento em que a professora iniciante olha o seu passado, e
consegue se vê diante de uma nova realidade que não é mais a mesma, e que, por isso
mesmo, acaba ressignificando o que é ou está sendo, bem como o que está mobilizando
de saberes e fazeres, que gera transformações plausíveis em sua vida e profissão, e que
só é possível captar essa dimensão, quando narra suas histórias de vida, apresentando
um teor de reflexividade constituída de novas ideias, concepções e modos de ser e estar
na profissão como professora iniciante na sociedade atualmente.
As histórias de vidas, portanto, como dispositivo de pesquisa-formação dá
legitimidade a tessitura de saberes, conhecimentos e experiências potentes que
contribuem para modos outros de ser professora, mediatizados por processos reflexivos
que resgatam nas memórias e experiências do passado, elementos de referência que
permitiram contribuir no ser pessoa e profissional que está sendo, bem como na escolha
da profissão e nos modos como pensa e faz a sua prática pedagógica no contexto de sua
imersão profissional.

Referências
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sumário 403
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 404
VII Seminário Vozes da Educação

EDUCAÇÃO E CIDADE: POSSIBILIDADES PARA EXPLORAR A


TEMÁTICA AFRO-BRASILEIRA

Érica Renata Vilela de Morais (01)62


FFP UERJ
eridressa@hotmail.com

Luiz Fernando Conde Sangenis (02)63


FFP UERJ
lfsangenis@bol.com.br

Introdução

O presente artigo faz parte de pesquisa em andamento, do Programa de Pós-


graduação em Educação - Processos Formativos e Desigualdades Sociais, do curso de
doutorado em educação, vinculado a Faculdade de Formação de Professores
(FFP/UERJ), em São Gonçalo. Esse estudo integra a linha de Formação de Professores
e a investigação se alinha, em termos metodológicos, aos estudos qualitativos de
pesquisa em educação, tendo como foco a sistematização de um estudo que toma como
referência espaços da cidade com potencial para explorar a temática História e Cultura
Afro-brasileira, que sustentam práticas pedagógicas voltadas a uma perspectiva de
formação humana integral.
A institucionalização da lei 10.639/03 que trata das relações étnico-raciais no
ensino, marca avanços em termos legais relacionadas às diretrizes para o currículo da
educação nacional. E, ao inserir a temática História e Cultura Afro-brasileira na pauta
das demandas pedagógicas obrigatórias das escolas da educação básica, os legisladores
oficializaram e materializaram anseios e necessidades sociais, especialmente, de grupos
envolvidos com o movimento negro. Essa legislação além de representar uma conquista,
convoca os profissionais e as instituições de educação a desenvolverem ações de
valorização da diversidade e reconhecimento de contribuições de diferentes povos e
culturas na formação da sociedade brasileira.
Contudo, é importante realçar que entre determinações legais e a efetivação de
práticas sociais na área de educação, ocorre um processo de tradução e ao mesmo tempo
de criação. Com base nos estudos de Mainardes e Marcondes (2009), Stephen Ball

62
Doutoranda do Curso em Educação FFP UERJ.
63
Professor Doutor FFP UERJ.

sumário 405
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

explica que os textos legais são de natureza escrita e devem ser transformados em
práticas. Assim, é importante reconhecer que ocorre uma alternação entre modalidades.
Desse modo, os sujeitos e ou grupos que colocam em prática as políticas públicas, no
caso em questão, sobre a História e a Cultura Afro-brasileira no currículo educacional,
precisam

[...] converter/transformar essas duas modalidades, entre a modalidade da


palavra escrita e a da ação, e isto é algo difícil e desafiador de se fazer. E o
que isto envolve é um processo de atuação, a efetivação da política na prática
e através da prática. É quase como uma peça teatral. Temos as palavras do
texto da peça, mas a realidade da peça apenas toma vida quando alguém as
representa. E este é um processo de interpretação e criatividade e as políticas
são assim. A prática é composta de muito mais do que a soma de uma gama
de políticas e é tipicamente investida de valores locais e pessoais e, como tal,
envolve a resolução de, ou luta com, expectativas e requisitos contraditórios
– acordos e ajustes secundários fazem-se necessários (BALL, 2011 apud
MAINARDES; MARCONDES, 2009, p. 305).

A partir desse entendimento de tradução e criação que envolve as diretrizes


legais nesse projeto, apresento como possibilidade de estudo refletir sobre o trabalho
pedagógico da escola e suas relações com o potencial educativo da cidade sobre a
temática História e Cultura Afro-brasileira. Assim, nesse texto temos a intenção de
desenvolver estudos sistematizados para promoção de conhecimentos a respeito da
história, da memória e de artes, produzidas pelo negro na história do Brasil e, ainda,
explorar a temática afro-brasileira e suas relações com os estudos vinculados à educação
na cidade. Nesse sentido, elencamos um lugar de identidade presente na cidade de
Vitória, no estado do Espírito Santo, com potencial educativo, para explorar
conhecimentos da temática privilegiada.
Vale mencionar que este artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa
em andamento. O objetivo é o de conhecer um espaço determinado da cidade sob a
perspectiva educativa e formativa, no intuito de tornar mais complexas as relações
imediatas e superficiais que comumente são estabelecidas com o espaço. Assim, é
importante contemplar momentos e ações de estudos e de debates que considerem o
movimento histórico de constituição do espaço escolhido para análise, bem como, as
relações sociais e culturais, estabelecidas a partir do espaço/obras.
Dentre as ações, está a educação que sendo especificidade humana é um ato de
intervenção na realidade. A cidade e seus espaços podem se constituir em espaços
educativos de grande importância, uma vez que são produtos, frutos da ação e da
relação do homem com a natureza/espaço. Não podemos deixar de destacar, entretanto,

sumário 406
VII Seminário Vozes da Educação

que a escola é reconhecida como espaço privilegiado para conduzir o processo


educativo e a promoção do conhecimento valorizado socialmente. Essa relação indica
para nós que a escola e a cidade podem estabelecer vínculos próximos para o processo
educativo e a promoção de conhecimentos.
Desenvolvemos análises e discussões que envolvem espaços da cidade aos quais
se atribui importância histórica e étnica referenciada à identidade e à cultura do negro,
na cidade de Vitória. O estudo proposto pretende contribuir para a diminuição de
situações discriminatórias, com foco na formação de uma sociedade mais justa, que
considere o outro em sua diferença e o respeite em sua cultura.
Elegemos o monumento denominado Guerreiro Zulu, erigido em homenagem à
comunidade negra do Espírito Santo e localizado em frente à Assembleia Legislativa do
Estado do Espírito Santo. O foco principal da investigação é o de analisaro monumento
Guerreiro Zulo, incluindo a decisão pública de construí-lo, os parâmetros indutores de
sua concepção artística, a intencionalidade da obra de arte, as imagens retratadas pelo
artista alusivas às narrativas e às memórias referentes à história do negro no estado, a
recepção do monumento pelo público, o seu significado simbólico e político e os usos
pedagógicos possíveis para explorar a temática História e Cultura Afro-brasileira no
âmbito da lei 10.639/03.
Por ser um monumento “Guerreiro Zulu”projetado como referencial do povo
negro no cenário cultural, econômico e histórico do estado do Espírito Santo,
discorremos que o conjunto dessa obra abre perspectiva para o desenvolvimento de
ações e de estudos que podem evidenciar, não apenas o potencial formativo e educativo
da cidade, mas, sobretudo, o acesso a conhecimentos que possam provocar novas
experiências com a realidade, extrapolando o espaço pesquisado e intensificando a
relação com a sociedade, o espaço público, a produção intelectual e os bens culturais
produzidos pela humanidade.
Para sistematizar o artigo, estruturamos o texto da seguinte forma:
primeiramente, apontaremos algumas apropriações que anunciam o referencial teórico e
metodológico que ancora em autores como Lefebvre (2001; 2016), Canevacci (1993),
Paulo Freire (1993); Zeny Rosendahl e Roberto Lobato Corrêa (2001). Em seguida,
apresentaremos alguns aspectos relacionados à criação do monumento, especialmente,
no sentido de indicar alguns elementos de representatividade para o povo negro
capixaba e da potencialidade da obra para problematização de conhecimentos.

sumário 407
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

2 Educação, cidade e a temática afro brasileira: tecendo diálogos

A realidade brasileira por décadas tenta negar ou desvincular-se dos aspectos da


tradição e da cultura dos povos africanos. Essas ações humanas e culturais são
colocadas, em muitos momentos e situações, de forma não representativa da formação
do povo brasileiro. Trata-se de um processo histórico expresso em função da
representação da elite branca, ainda presente no imaginário da população brasileira.
Assim como ocorreu em outras cidades, os espaços da cidade de Vitória foram
sendo ocupados pelo trabalho produtivo, pelas obras, festas, povos e pelos transeuntes.
No decorrer desse processo, a história do negro, seu sofrimento, enfrentamentos e lutas,
sua cultura e tradição constituem esse espaço, assumem conotação cultural,
essencialmente, no decorrer da história do desenvolvimento do Brasil. Sem dúvida,
mesmo que no imaginário, a presença dos negros na cidade de Vitória se faz presente.
Ocorre que, nem sempre, esse imaginário é fruto de um pensamento concreto. Ele se
encontra nas formulações de síntese, nas perspectivas de uma história única, na ausência
e no silêncio do povo. Pessoas, culturas e lugares tornam-se anônimos ou pertencentes a
um passado e a uma forma de viver que não cabe mais no presente vivido, na
experiência da vida humana.
É preciso, portanto, reportar-se a uma ancoragem embasada na perspectiva
histórica, no discurso reflexivo da relação dialética que permeia os empenhos estéticos e
históricos de cada monumento, despindo-se de qualquer paradigma de interpretação
mecânica de relação causa-efeito. Essa posição direciona a atenção aos valores, à
essência moldada junto com a matéria, uma mistura de sentimentos, desejos, lutas,
derrotas, conquistas daquilo que se passou e constitui cada monumento histórico.
Em Vitória, os monumentos que remetem à trajetória do negro denotam valor
histórico e cultural, requerendo admiração e conhecimento. Situados no contexto da
cidade e do urbano, para serem analisados, é preciso o emprego de todos os
instrumentos metodológicos e que nenhum deles escapem à polissemia (LEFEBVRE,
2001). Consideramos ainda, uma análise cuidadosa dos monumentos para que se possa
elaborar os traços da história a serem captados em configuração na época que retrata,
entrando em contato com período passado, criando um presente permeado de
expressões conceituais históricas.
Os monumentos se vinculam ao sentido etimológico, como instrumentos da
memória coletiva, valor histórico que acumula conhecimento, possuindo uma

sumário 408
VII Seminário Vozes da Educação

configuração, uma conformação, acenando para o debate acerca das transformações,


pelo que passaram as noções e tendências de sua criação, evidenciando a preservação de
culturas, raízes longínquas, ideais e lutas.
Conforme anunciado por Lefebvre (2001) e Canevacci (1993), para captar o
pleno conhecimento de sua gênese e a vibração mais íntima, requer-se um mergulhar
em camadas mais profundas, especiais da memória involuntária que arraiga em si
mesma os momentos de reminiscência, agora não mais de modo isolado, indefinido e
denso, mas expostos ao coletivo, transmitindo um todo de sentido de todo esforço
abstrato, permeado de fragmentos, que impossibilitam que a luta se perca no
esquecimento da história.
Cabe então, considerar que o sujeito em questão é um sujeito coletivo, numa
sociedade dotada de uma história e de um meio. Nesse contexto, com base nos estudos
da Geografia Cultural, numa abordagem da dimensão cultural do espaço, implica
analisar a relação entre a sociedade, a natureza e o espaço, marcadamente, representada
na paisagem. Sob essa visão, cabe levar em consideração o “papel do corpo e dos
sentidos na experiência humana, os recortes da realidade física e social pelas pessoas, a
riqueza da imaginação que dá sentido às geografias mais diversas – a experiência do
espaço, e que se explore a maneira pela qual se constituem as identidades e os
territórios” (ROSENDAHL; CORRÊA, 2001, p. 43).
Segundo Lefebvre (2016), o espaço é social, ou seja, é socialmente produzido.
Trabalhando com a dialética das relações sociais no espaço, o autor defende que tomar
as ruas como obra de arte, implica perceber que existe uma narrativa construída a partir
de conceitos, significados, valores, ordens e do emprego do tempo - a rua estipula uma
hierarquia dos lugares, dos instantes e das ocupações das pessoas. Na concepção de
Lefebvre (2016), a cidade com suas ruas, seus monumentos, sua linguagem, são como
obras expostas que necessitam ser compreendidas como histórica e socialmente
produzidas e vividas.
De modo geral, os monumentos históricos retratam uma relação com a arte,
sendo que, no mais específico, esculpem as transformações sofridas no decorrer dos
vários tempos e ritmos. A arte restitui o sentido da obra, já que nela, se encontram
múltiplas figuras de tempos e de espaços apropriados, mas que nem sempre o que
anunciam são eficazes ou revelam as realidades e contradições; estão disfarçados em
obra. A arte monumental produz e testemunha princípios e intervenções; “mostra como
nasce uma totalidade a partir de determinismos parciais” (LEFEBVRE, 2001, p. 116-

sumário 409
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

124). De acordo com o autor, a pintura e a escultura mostram a apropriação do espaço.


No quadro do conhecimento o autor propõe olharmos a obra de arte como uma síntese
de uma realidade não acabada, uma unidade que é definida por uma convergência,
orientada por estratégias ocultas de dominação.
No contexto da produção da cidade, da sociedade urbana e nos diversos aspectos
de uma produção social “não se trata mais de isolar os pontos do espaço e do tempo, de
considerar separadamente atividades e funções, de estudar isoladamente uns dos outros,
comportamentos ou imagens, divisões e relações” (LEFEBVRE, 2001, p. 125). No
mesmo sentido, a Geografia cultural remete a uma abordagem que multiplica os pontos
de vista sobre a realidade socialmente produzida.
Em cada análise, fragmentos transformam-se em indícios a ponto de perceber o
imperceptível captando as dimensões que transcendem o objeto em si, que resguarda,
preserva e transmite a origem.
A arte contribui na articulação de reproduzir fragmentos do passado, o que não
representa conhecê-lo como de fato foi. Constitui-se na apropriação de um
conhecimento, fixado pelo materialismo histórico, por uma imagem do passado como
essa se apresenta ao ator histórico, sem que se tenha consciência. Em cada período da
história é preciso arrancar a tradição ao conformismo que quer apoderar-se dela e
transformá-la em coisa sua. A arte revela o misterioso que o passado traz consigo, ecos
de vozes que emudeceram promovendo um encontro entre gerações, denotando um
apelo do passado, o qual não pode ser abandonado impunemente (BENJAMIN, 1987).
É neste contexto, de resgate da identidade, da cultura e da necessidade de
reconhecer a presença da comunidade negra na vida e no desenvolvimento da cidade de
Vitória, que o monumentoGuerreiro Zulu,imbuído do espírito de luta e resistência, se
apresenta como potencialidade para explorar a temática afro-brasileira e acessar
diferentes conhecimentos históricos, artísticos, culturais, políticos e sociais.

2.1 O monumento guereiro zulu: um lugar de conhecimento, história e memória


afro-brasileira

sumário 410
VII Seminário Vozes da Educação

Figura 01 - Estátua Guerreiro Zulu

Fonte: Érica Morais (2017)

A estátua do Guerreiro Zulu 64 , monumento fixado em frente à Assembleia


Legislativa, na Enseada do Suá, na cidade de Vitória, tem sete metros de altura e foi
criada como forma de evidenciar o trabalho e os saberes do povo negro, no
desenvolvimento sociocultural e econômico do estado do Espírito Santo. A obra é
resultado de conhecimentos e experiências do artista negro Irineu Pinto Ribeiro, que
através de seu trabalho como artista plástico e escultor, procurou desenvolver na obra o
conceito de resistência socioeconômica e cultural do negro capixaba.
A implementação do monumento decorreu de um processo sistemático,
avigorado de reivindicações, mobilizações e debates junto a diversos segmentos do
movimento negro, além da participação de membros da comunidade artística local. O
escopo desse cenário convergiu na sistematização de uma proposta em forma de uma
“minuta de edital de concurso público para seleção de trabalho artístico de criação e
construção do monumento em homenagem a comunidade negra capixaba”, embasada
em princípios fundamentais, apresentando o conceito e a finalidade do concurso de
seleção de artista e obra, que contemplasse em sua composição a representatividade do
negro na formação da sociedade capixaba. Como desdobramento desse conceito
fundamental, designa-se que a obra/monumento tem “o objetivo de reconhecer a luta do

64
Os zulus são conhecidos como um povo guerreiro que resistiu às invasões imperialistas bôeres (desde o
século XVIII) e britânica (no XIX) ao sul da África. Eles compõem a maior etnia em meio aos vários
grupos étnicos existentes na África do Sul (xhosas, suazis, sothos dentre outros), além de representarem
aproximadamente um quarto da população desse país. Atualmente, os zulus habitam a região do
continente africano que abrange territórios correspondentes à África do Sul, Lesoto, Suazilândia,
Zimbábue e Moçambique” (MELO, Aldina da Silva, 2017, p.22).

sumário 411
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

negro pela igualdade de direitos e oportunidades - contribuir para quebrar o silêncio


histórico que oculta a presença marcante do negro na formação da sociedade capixaba,
o que levou a comunidade negra à invisibilidade social” (ALES, 2005, p. 01).
No tocante ao movimento de luta, militância e resistência, foi instituída uma
comissão composta por sete membros que, nesse primeiro momento, cumpria o papel de
representação da proposição precedida pelos grupos, junto ao poder público. E, em
outubro do ano de 2005, a comissão solicita ao então excelentíssimo Presidente da
Assembleia Legislativa do estado do Espírito Santo, o senhor César Conalgo, a
publicação de um edital em atendimento a uma proposta com orientações para
realização do concurso, com a finalidade de selecionar artista para criação de obra de
arte que “se revista de todo um conceito subjetivo e artístico com intuito de traduzir o
conceito de resistência socioeconômica e cultural do negro capixaba”. Além disso,
solicita a integração de um dos membros à comissão julgadora do concurso (ALES,
2005, p.14). Em vista do propósito de valorização ao legado histórico do negro na
formação da sociedade capixaba, os trabalhos deveriam considerar:

A) A presença constante e a contribuição do negro na formação cultural,


econômica e política do Espírito Santo, que remontam ao século XVI;
B) A participação do negro na construção do Estado que está centrada na
força de trabalho, que foi a principal fonte de produção econômica do Estado,
até a chegada expressiva dos imigrantes europeus na segunda metade do
XIX;
C) As marcas de sua cultura negra, legadas às manifestações que
reconhecemos hoje como capixabas (ALES, 2005, p. 03)

No dia 07 de dezembro de 2005, a Assembleia Legislativa do Estado do Espírito


Santo publicou o edital para realização do concurso público conforme supracitado,
considerando as proposições da minuta do edital, assegurando a participação de
membros da comissão inicial, entre outras demandas técnicas, normativas e especificas
do edital. O processo de inscrição e seleção dos artistas durou aproximadamente dois
meses. Ao todo foram dez trabalhos inscritos no certame. O artista selecionado foi
Irineu Pinto Ribeiro, com protótipo de uma estátua denominada “Guerreiro Zulu”. A
obra foi entregue no final do mês de março de 2006, com recursos do estado do Espírito
Santo.
Apesar de brevemente explanadas, as informações referentes ao processo de
constituição do monumento, sinaliza a sua importância como fonte de conhecimentos
que podem ser explorados, especialmente, em diálogo com o artista e membros que

sumário 412
VII Seminário Vozes da Educação

participaram do processo de constituição da obra. Outro foco importante de análise,


pode ser estabelecido a partir da sua representação enquanto memória e identidade do
negro. Também, destacamos a importância de conhecer o contexto e as ações coletivas
que tornaram possível a concretização do monumento.
O monumento representa um homem negro, com pescoço alongado, e sua forma
simboliza um instrumento musical, a casaca. Trata-se de um instrumento de percussão
que reflete a influência africana na música e no ritmo das bandas de Congo. Na parte
frontal da estátua, entre os sulcos e as sete cenas esculpidas em alto relevo, pode-se
observar vários elementos que remetem à presença marcante do negro na formação e no
desenvolvimento cultural, socioeconômico e político do estado do Espírito Santo.
O conjunto da obra compõe o desenho físico-funcional e se configura como
cenário. Por outro lado, por meio de seu desenho contextual, pode ser visto como
instaurador de cenas, pelo aspecto de qualificação social, cultural, econômica e política
que inscreve nos espaços. Desse modo, consideramos que o conjunto da obra
materializa a presença do negro no estado, abrindo margem para dialogar com situações
que cercam o contexto das cidades, tais como, a diversidade sociocultural, a valorização
do coletivo, o compromisso com a identificação e a ressignificação do patrimônio
cultural, material e imaterial do negro, que vivem ou viveram no Espírito Santo.
Sendo as primeiras e breves análises do monumento, vinculados à perspectiva
crítica sobre a cidade e a produção do espaço, fomentamos a existência de elementos
históricos, sociais, culturais, políticos e econônicos, os quais poderão indicar outras
possibilidades de interpretar o monumento, enquanto promoção e problematização de
conhecimentos. Sob a ótica da produção do espaço defendida por Lefebvre (2016),
compreendemos o monumento como produto socialmente produzido. Na mesma
direção dos estudos críticos, a Geografia Cultural nos remete a uma abordagem que
multiplica os pontos de vista sobre a realidade socialmente produzida (ROSENDAHL;
CORRÊA, 2001). Do ponto de vista antropológico, Canevacci (1993) sustenta que para
captar o pleno conhecimento de sua gênese e a vibração mais íntima, requer um
mergulhar em camadas mais profundas, especiais da memória involuntária que arraiga
em si mesma os momentos de reminiscência, agora não mais de modo isolado,
indefinido e denso, mas expostos ao coletivo, transmitindo um todo de sentido de todo
esforço abstrato, permeado de fragmentos, que impossibilitam que a luta se perca no
esquecimento da história. Como forma de interpretar esse processo de produção da vida,

sumário 413
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

partimos de uma compreensão crítica da educação, reconhecendo que esses processos


não são somente históricos, são também, condicionados (FREIRE, 1993).
Nessa perspectiva de análise, leitura e interpretação do monumento, a proposta
desse estudo tem como característica a possibilidade de estabelecer diálogo com o
conteúdo do próprio monumento, por sua dimensão histórica, social e/ou política; com o
conteúdo da própria obra de arte e por meio das conexões estabelecidas com outros
espaços e conhecimentos.

3 Considerações finais

Enquanto obra de arte pública de referência afro-brasileira, o monumento


Guerreiro Zulu, ao tratar sobre a contribuição do povo negro no processo de formação
do estado do Espírito Santo, assume um papel de extrema relevância, pois
historicamente, por razões baseadas em premissas racistas, do eugenismo e de interesses
da hegemonia de grupos da elite brasileira, tentam desqualificar e omitir as marcas, a
memória e a herança cultural, social, intelectual e religiosa do povo negro.
Essas observações nos inserem no contexto de pensar a cidade como um
construto humano, portanto, um espaço que testemunha os saberes, a ignorância,
medida, às vezes, por certa neutralidade e relatividade. Nesse exercício de interpretar a
cidade, acrescentamos que a capacidade de resistência e as articulações possíveis dos
sentidos e significados do monumento implicam no grau de envolvimento e de vínculos
a ser mantido com os envolvidos, com os diversos setores da sociedade e com a
realidade.
Ainda que sejam nossas primeiras análises sobre o monumento, observamos que
a obra e as cenas que o artista selecionou para desenvolver o conceito de resistência
socioeconômica e cultural do negro no estado do ES, revelam uma diversidade de
elementos que transpõem fronteiras historiográficas, culturais e políticas. A obra se
configura como um registro e memória do negro, ao mesmo tempo, nos provoca a
pensar em alternativas que permitirá a superação da invisibilidade e do reconhecimento
da participação do negro, para além da escravidão.
Nesse sentido, cabe a nós desvelar a história e analisar os elementos que a
compõem, com vistas a estabelecer conexão com uma diversidade de assuntos e campos
de conhecimentos, como também, do legado da cultura, da culinária, da Arte, da
religião, das festas, das pessoas negras e outros, que são parte dessa história. Além

sumário 414
VII Seminário Vozes da Educação

disso, coloca em evidência a articulação da educação na cidade e a temática História e


Cultura Afro-brasileira, a qual consideramos importante e necessária de ser
contemplada nos processos de ensino, em conformidade com a Lei 10.639/03.
Esperamos que essa iniciativa de estudo e pesquisa produza outros olhares e
percepções sobre os espaços urbanos, suscitando a reflexão e o conhecimento da luta do
povo negro, de modo a combater os processos de invisibilidade étnica, ainda presente na
cidade e, sobretudo, contribua com a valorização e a preservação de práticas culturais de
afirmação de ancestralidade e de cultura, resultando numa vida articulada de
fundamentos positivos sobre a cultura negra.

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sumário 415
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

UMA EXPERIÊNCIA IMAGINATIVA EM PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO:


PRESENÇA, ATENCIONALIDADE E RESPONSIVIDADE NO TRABALHO
DOCENTE

Clarissa de Arruda Nicolaiewsky


FEBF/ UERJ
clarissanicolaiewsky@gmail.com

Como professora de Psicologia da Educação, inicialmente substituta na


Universidade Federal do Rio de Janeiro, e atualmente professora assistente na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, me coloco a pensar nos efeitos do que se
passa na sala de aula para a formação de professores. Percebo a prática docente em
diálogo com a noção de responsabilidade de Ingold (2018) como “response ability”,
como a capacidade de responder e de ser respondido, o que requer presença, atenção e
disponibilidade. Para o autor, a ausência dessa capacidade inviabilizaria o processo
educativo. Tais ideias têm me provocado a pensar o trabalho docente, tanto no ensino
superior como na educação básica.
Apostando na avaliação formativa como um potente dispositivo para uma
aprendizagem significativa, licenciandas e licenciandos têm sido desafiados por
atividades avaliativas diversas ao longo de cada semestre, muitas delas realizadas em
sala (NICOLAIEWSKY, 2016). O presente trabalho pretende analisar uma das
atividades oferecidas que tem se mostrado uma rica situação formativa, a criação de um
diálogo entre um/a professor/a e seus alunos. Tal atividade procura instiga-las/los a
compreenderem a educação como a “criação de situações às quais os aprendentes sejam
capazes e tenham a permissão de responder”, demonstrando “interesse pelos
pensamentos e sentimentos dos estudantes, permitindo que respondam com suas
próprias e únicas maneiras” (BIESTA, 2013, p.48). Em outras palavras, a prática
educativa teria sua intenção fundada na atencionalidade, ao buscar formas de habitar o
mundo e a escola de maneira responsiva e atenta (INGOLD, 2018).
Levando em consideração o papel de cada uma das disciplinas na grade
curricular dos cursos de licenciatura, faz-se necessário, primeiramente, pontuar a
concepção de Psicologia da Educação que fundamenta a prática pedagógica relatada.

sumário 416
VII Seminário Vozes da Educação

Segundo Coll (2004), há duas grandes concepções, ambas presentes atualmente, do que
caracterizaria a Psicologia da Educação. Uma das visões entende a disciplina como
encarregada de transferir os diversos conhecimentos psicológicos à educação, buscando
descobrir quais dos conhecimentos da psicanálise, do gestaltismo, do behaviorismo,
dentre outras teorias psicológicas, poderiam contribuir para o âmbito educacional.
Diferentemente, a segunda concepção entende a Psicologia da Educação como uma
disciplina de natureza aplicada, que objetiva investigar questões que surjam na prática
educacional (COLL, 2004). Este tem sido o enfoque escolhido, tendo se buscado
apresentar concepções teóricas e pesquisas da psicologia relacionadas a questões do
cotidiano escolar. Assim, busco construir um espaço que possibilite a reflexão acerca
das situações vividas no chão da escola à luz das diferentes teorias e pesquisas na área,
pautada na indissociabilidade entre teoria e prática.
Aposto, em comum acordo com Larocca (2007, p.302), que “a Psicologia da
Educação deve assumir-se como disciplina teórico-prática, modificando-se o seu status
na formação dos professores, para que adquira o sentido de trabalho vivo e não
artificial”, superando a ideia de ser um ‘Fundamento’ a proporcionar embasamento
teórico descontextualizado e distante das questões que perpassam a educação. Almeida
(2005, p.150) também dialoga com tal posicionamento ao apontar que:

Essa compreensão é bastante limitada e desconsidera que a contribuição da


Psicologia da Educação não se encerra nela mesma. Isso pressupõe assumir
que os conhecimentos psicológicos existem em função da intervenção
pedagógica, exigindo do professor uma ação deliberativa que se constrói num
processo dialético entre as convicções pedagógicas e as possibilidades de
realizá-las, o que significa que a Psicologia pode ajudar o professor a refletir
criticamente sobre sua prática e imprimir-lhe novos direcionamentos.

Promover um ambiente de reflexão sobre os processos de ensino-aprendizagem


e de vivência de práticas pedagógicas diferenciadas parece ser um caminho para a
formação de educadores reflexivos e críticos. Ao discutirem a pedagogia universitária,
Almeida e Pimenta (2014, p.9-10) apostam na criação de uma nova cultura acadêmica
nos cursos de graduação:

que considere o direito do estudante de desenvolver uma postura frente ao


saber que supere a especialização estreita; que problematize as informações e
garanta sua formação como cidadão e profissional cientista compromissado
com a aplicação do conhecimento em prol da melhoria da qualidade de vida
de toda a sociedade; que possibilite o desenvolvimento do pensamento
autônomo, substituindo a simples transmissão do conhecimento pelo
engajamento dos estudantes num processo que lhes permita interrogar o

sumário 417
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

conhecimento elaborado, pensar e pensar criticamente; que enseje a


resolução de problemas, estimule a discussão, desenvolva metodologias de
busca e de construção de conhecimentos (ensinar com pesquisa); que
confronte os conhecimentos elaborados e as pesquisas com a realidade; que
mobilize visões inter e transdisciplinares sobre os fenômenos; que aponte
soluções aos problemas sociais (ensinar com extensão); e que crie uma nova
cultura acadêmica que valorize o trabalho dos docentes na graduação.

Tais metas educativas vão ao encontro da demanda das licenciaturas, já que


promoveriam a formação de professores críticos, dispostos a refletirem cotidianamente
sobre a própria prática e abertos à busca de respostas criativas para os desafios
permanentes dos processos de ensino e de aprendizagem e de uma formação cidadã que
engendre a transformação social. Em pesquisa realizada com vinte professores de cursos
de pós-graduação de diversas áreas do conhecimento que visava discutir o incentivo à
criatividade nas universidades, Alencar e Oliveira (2016) apontam, dentre as razões
destacadas pelos docentes para a presença da criatividade nos espaços universitários,
justamente, a possibilidade dos pós-graduandos encontrarem possíveis soluções para as
situações que surgirem em sua prática profissional, assim como se tornarem sujeitos
mais flexíveis, mais autônomos e dispostos a arriscar. Outro elemento destacado pelos
participantes foi o quanto o uso de estratégias criativas pelos docentes poderia despertar
maior interesse pelas disciplinas, tendo sido apontado o conservadorismo e a existência
de barreiras institucionais que deveriam ser quebradas para que se valorizasse o ensino e
se promovesse o uso da criatividade (ALENCAR; OLIVEIRA, 2016).
O mesmo pode ser afirmado quanto aos cursos de graduação, tendo em minha
prática apostado em instrumentos avaliativos que propiciem uma maior participação
discente e potencializem uma aprendizagem significativa (NICOLAIEWSKY,
2016). Ao problematizarem o ensino oferecido nas universidades, Junges e Behrens
(2016) apresentam um programa de formação pedagógica oferecido a 32 professores
universitários ao longo de um ano letivo, totalizando dez encontros. Tal programa tinha
como eixo norteador a reflexão acerca da prática pedagógica, sendo os participantes
desafiados a apresentarem a cada encontro uma experiência realizada em sala referente
ao tema discutido no encontro anterior, aproximando-os de uma práxis docente. As
entrevistas realizadas após o processo formativo apontaram que os saberes construídos a
partir dos encontros incitaram mudanças no planejamento, tornando-o mais flexível e
aberto a sugestões e adaptações, incluindo a criatividade, a dinamicidade e uma maior
organização do mesmo. Também apareceram transformações nas metodologias de
ensino, sendo oferecidas aulas mais interativas e contextualizadas (JUNGES;

sumário 418
VII Seminário Vozes da Educação

BEHRENS, 2016). Tal pesquisa aponta para a urgente construção de espaços nos quais
se ventilem práticas reflexivas apoiadas em uma perspectiva dialógica.
É justamente pela aposta em experiências que evidenciem o encontro constante
entre teoria e prática que nos debruçaremos sobre uma das atividades que tem sido
ocasionalmente solicitada, a criação de um diálogo entre um/a professor/a e seus alunos.
A escolha pela análise dessa atividade se faz devido a seu potencial como disparadora
de reflexões acerca da presença docente e de sua disponibilidade para lidar com as
respostas discentes e a elas responder. O que ocorre na sala de aula é sempre da ordem
do inesperado, não se pode efetivamente prevê-lo, e será pela via da criatividade que
docentes conseguirão dar respostas ao que acontece, encontrar caminhos para dar conta
das necessidades que surgirem. A tarefa solicitada utiliza, então, como dispositivo a
imaginação, “fundamento de toda a atividade criadora”, sendo ela quem possibilita a
criação artística, científica e tecnológica (VYGOTSKY, 2014, p.4).
A atividade em questão é proposta a partir da discussão de umapesquisa
realizada por Tacca (2006), na qual foram analisadas as intervenções em sala de aula de
duas professoras do terceiro ano do ensino fundamental da rede pública cujas atitudes se
diferem drasticamente, sendo apenas uma delas capaz, nos momentos observados, de
trazer questões claras, estimular os alunos a participarem e promover a construção do
conhecimento. Licenciandas e licenciandos são, então, solicitadas/os a construírem, em
pequenos grupos, um diálogo entre um/a professor/a e seus alunos, que verse sobre um
conteúdo curricular escolhido pelo grupo e a partir do qual os alunos fictícios tragam
erros conceituais a serem desconstruídos pelos próprios com apoio docente, sem que a/o
professor/a dê as respostas corretas. Ao discutir as estratégias pedagógicas utilizadas em
sala de aula, Tacca (2006, p.48) amplia tal conceito, afirmando serem “recursos
relacionais que orientam o professor na criação de canais dialógicos”. Assim, a autora
afirma a dimensão relacional dos processos de ensino e de aprendizagem e, com isso, a
disponibilidade para estar e pensar com o outro.
Biesta (2013) aponta a existência de três dimensões nos propósitos educacionais,
a qualificação, a socialização e a subjetificação. As duas primeiras são levadas em
consideração com mais frequência nas escolas: a qualificação se refere à aquisição de
conhecimentos e habilidades enquanto a socialização garantiria a iniciação de crianças e
jovens nas tradições, nas formas de ser e estar em nossa sociedade. A terceira dimensão,
que trata especificamente da produção de subjetividades, de como e quem cada pessoa
vai se tornando a partir das experiências, é frequentemente ignorada nas ações

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

educativas. A ênfase excessiva nas outras duas dimensões provoca efeitos nesta terceira
(BIESTA, 2015), afetando a maneira como o estudante se percebe e se relaciona com os
saberes e com os demais. Assim, interessa garantir um espaço de liberdade e confiança
para que os estudantes se expressem e compartilhem suas dúvidas e saberes. Com hooks
(2019, p.16) é possível pensar, tanto na educação básica como no ensino superior, que
“a sala de aula deve ser um lugar de entusiasmo, nunca de tédio. E, caso o tédio
prevalecesse, seriam necessárias estratégias pedagógicas que interviessem e alterassem
a atmosfera, até mesmo a perturbassem”.
Na tarefa proposta, os grupos buscam criar diálogos nos quais a professora
encontre estratégias para que os estudantes consigam construir conhecimento a partir de
suas dúvidas. Com frequência a professora imaginária lançará mão de elementos
concretos e cotidianos para ajudá-los nesse processo, como visto no exemplo abaixo:

Quadro 1. Produção realizada na disciplina Psicologia da Educação em uma turma de Licenciatura em


Biologia

Atividade: contar até dez usando bolinhas de gude


Professora: Então, crianças, quantas bolinhas vocês tem?
C: Dez!
G: mas tia, eu tenho nove.
A professora se dirige à carteira do aluno.
Professora: Me mostre como você contou.
G: Zero, um, dois, três, ...
Professora: Tem certeza que se conta assim? Com o zero?
G: Claro! Se ele existe tem que contar!
Professora: Quantos anos você tem?
G: Cinco.
Professora: Me mostre com sua mão.
Gabriel faz cinco com sua mão.
Professora: Conte seus dedos agora.
G: Zero, um, dois, três, quatro. Ué!
A professora pega cartões com os números de um a cinco e os coloca em ordem decrescente na frente de
cada dedo do aluno.
Professora: Foi preciso usarmos o zero?
G: Não.
Professora: Então, usamos o zero para representar nada. Só usamos o zero quando queremos dizer?
G: Nada!
Fonte: Arquivo pessoal.

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VII Seminário Vozes da Educação

A professora em questão procura compreender o raciocínio da criança e, ao


pedir que mostre sua idade com a mão – ação rotineira na infância – oferece recursos
que possibilitem a ela uma melhor compreensão dos princípios presentes na contagem.
Vale destacar que havia no grupo estudantes que haviam cursado normal e uma delas
passou por experiência semelhante durante o estágio. Um elemento importante da ação
imaginativa parece ser a criação a partir das experiências anteriores, dos saberes
presentes. Como apontado por Vygotsky (2014, p.10), “qualquer ato imaginativo se
compõe sempre de elementos tomados da realidade e extraídos da experiência humana
pregressa”. Assim, em um grupo de quatro graduandas, duas delas professoras atuantes
de geografia, constrói-se um diálogo que gira em torno do conceito de paisagem:

Quadro 2. Produção realizada na disciplina Educação, Linguagem e Conhecimento IV em uma turma de


Licenciatura em Pedagogia

Professora: Bom dia, turma! Hoje nós iremos falar sobre as paisagens. Alguém sabe me dizer
o que é paisagem?
Aluno 1: É a imagem que tem no quadro!
Aluno 2: A praia, a montanha e o jardim.
Professora: Sim, estão corretos, mas existem outros tipos de paisagens. Quando a gente sai de
casa, o que a gente vê?
Aluno 1: Quando eu saio de casa eu vejo o carro, a casa dos meus vizinhos, o bar...
Aluno 2: Eu vejo o valão que tem na minha rua!
Professora: É isso mesmo! Vocês percebem que falaram várias coisas que podemos observar?
Tudo isso é paisagem também.
Aluno 1: Então tudo que eu vejo é paisagem?
Professora: Sim! A paisagem é tudo aquilo que nós vemos. Nossa sala é uma paisagem?
Aluno 2: Não!
Professora: Por quê?
Aluno 1: Porque não tem nenhuma árvore aqui dentro.
Professora: Mas a árvore é um tipo de paisagem, a paisagem natural. A sala de aula é uma
paisagem que foi transformada por alguém.
Aluno 2: Então ela era árvore?
Professora: Talvez, mas hoje nós só vemos o que alguém transformou. Então, quando o que
vemos tem mais natureza, essa paisagem é natural. Agora, quando nós não conseguimos
identifica-los, essa paisagem é transformada. Agora vamos fazer uma atividade: cada um vai
desenhar a nossa sala de aula.
Após a tarefa os alunos apresentam os desenhos para a turma.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

João: Eu desenhei o quadro, a professora e as mesas. Ah, e eu!


Catarina: Eu coloquei o computador, a mesa, meus colegas e a professora.
Felipe: Eu desenhei o ventilador, o quadro, o apagador e eu.
Todos apresentam e a professora interfere:
Professora: O que vocês perceberam?
Miguel: O desenho do Felipe está errado, ele não desenhou a professora!
Professora: Mas o do João não tem o apagador e do Felipe, sim. O do João também está
errado?
Maria: Não, cada um desenhou o que viu.
Professora: Isso, Maria! Cada um vê a paisagem do seu jeito!
Fonte: Arquivo pessoal.

Neste diálogo observa-se a intenção da professora em se certificar de que toda a


turma compreendeu o conceito que estava sendo trabalhado. Mesmo após a explicação
ela lança uma pergunta que permite emergirem dúvidas que haviam permanecido e uma
atividade é proposta de maneira a melhor esclarecer o conceito. Também é interessante
observar a mudança no diálogo de um tom mais impessoal inicial, ao não darem nomes
aos estudantes, para um tom mais próximo à realidade, ao nomearem as crianças.
Em outro grupo, de licenciandos em matemática do segundo período, a
experiência anterior de uma das estudantes como professora particular é tomada de base
para a construção do seguinte diálogo:

Quadro 3. Produção realizada na disciplina Educação, Linguagem e Conhecimento II em uma turma de


Licenciatura em Matemática

(...)
- Bom, Julia, então hoje vamos estudar medidas de tempo. Irei passar uma atividade para
saber qual o seu nível de conhecimento e ver se você possui alguma dificuldade. Vamos lá?
1) Complete:
a) 1 hora = 60 minutos
b) 2 horas = 120 minutos
c) 3 horas = 180 minutos
d) 5 horas = 300 minutos
e) 10 horas = 600 minutos
f) 24 horas = 1440 minutos
g) 1h e 20 minutos = 7200 minutos
h) 2 h e 30 minutos = 13800 minutos

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VII Seminário Vozes da Educação

i) 5h e 10 minutos = 30000 minutos


(Após feita a atividade, a professora corrigiu o exercício junto com a aluna e percebeu que
havia algo de errado a partir da letra g e ficou curiosa para saber qual foi o raciocínio
utilizado por Julia)
- Julia, parabéns! Está certíssimo! Mas mostre-me como você fez a letra b?
- Sim, professora, se 1 hora é igual a 60 minutos, então para descobrir quantos minutos há em
2 horas é só fazer 2x60 que dá 120.
- Corretíssimo, Julia! E a letra c?
- Do mesmo jeito, professora! 3 x 60 = 180
- Muito bem, Julia! Agora me diga como você fez a letra g?
(Julia mostrou seu cálculo no canto do caderno)
120 x 60 = 7200
- Julia, 1h e 20 minutos é maior ou menor do que 2 horas?
- É menor, professora.
- Então o resultado de 1h e 20 minutos pode ser maior do que 2 horas?
- Ué?! Não, professora. (Julia fica olhando com cara de assustada, sem entender o que fez de
errado)
- Nesse caso estamos trabalhando com unidades diferentes, então os 20 minutos precisam ser
transformados em minutos?
- Não...
- Só a hora, certo?
(Julia multiplica 1 x 60 e descobre que 1 hora tem 60 minutos então percebe que é só somar 60
com os 20 minutos que ela tem)
- 1h e 20 minutos tem então 80 minutos.
- Muito bem, Julia! Certíssimo!
Fonte: Arquivo pessoal.

Ainda que haja certo exagero nos incentivos, especialmente logo após a
realização da atividade quando a professora diz estar “certíssimo” embora nem todos os
itens tenham sido corretamente respondidos, o grupo se atenta a buscar entender o que
levou a aluna a respondê-los incorretamente. Além disso, a professora imaginária
também leva Julia a refletir sobre seus resultados, uma importante aprendizagem em
direção a sua autonomia. É justamente essa postura atenta a partir da qual cada sala de
aula se constitui em um “espaço de investigação, revelação, descrição e análise das
produções dos alunos” que Muniz (2006, p.164) propõe para a educação matemática,

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

impedindo que essa disciplina se perpetue como mais uma ferramenta de exclusão
social na educação pública.
Para quem não tem experiência em sala de aula, por vezes a tarefa se mostra
mais desafiante, pois, como apontado por Vygotsky (2014, p.12), “a atividade criadora
da imaginação está relacionada diretamente com a riqueza e a variedade da experiência
acumulada pelo homem”. Em um grupo de quatro estudantes, as graduandas explicitam
sua dificuldade em iniciar a construção do diálogo apontando para a ausência de alguém
no grupo que tivesse experiência docente. Trago para mesa a ideia de que se houvesse
alguma professora no grupo, provavelmente tal pessoa construiria o diálogo e elas
pouco contribuiriam, e que da maneira como o grupo se organizou elas têm mais
possibilidade de criar. Tal perspectiva as faz pensar e as incentiva a se engajar na
atividade de outra maneira. A princípio o grupo propõe um diálogo sobre o tema
diversidade. No semestre anterior algumas das discentes deste grupo haviam realizado
um trabalho com esse relevante foco. Tal escolha, no entanto, torna mais difícil a
construção por não conseguirem pensar em dúvidas ou erros conceituais relacionados ao
tema transversal. Sugiro, então, repensarem a temática e dou algumas sugestões de
conteúdos curriculares. Elas optam por trabalhar com o conceito de mamíferos e
conseguem elaborar o diálogo, não sem dificuldades, precisando ocasionalmente de
apoio.
Quando se faz necessário que discentes realizem a tarefa individualmente em
casa por terem se ausentado no dia, geralmente encontram dificuldades em construir um
diálogo efetivo e se sobrepõe a tendência docente de dar explicações a todo o momento,
postura que se opõe à noção de educação trazida por Ingold (2018) de participação de
todos, professoras/es e estudantes, para que correspondam. De maneira semelhante, a
realização dessa atividade em sala de aula, e não como tarefa de casa, tem sido
importante para que trabalhemos juntas/os e encaminhamentos possam ser feitos.
Durante sua realização, caminho por entre os grupos e dialogo, problematizando alguns
elementos que surgem. Certa vez, um grupo escolheu trabalhar o conceito de adjetivo a
partir do conhecido livro Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado.

Quadro 4. Trecho de produção realizada na disciplina Educação, Linguagem e Conhecimento IV em uma


turma de Licenciatura em Pedagogia

Professora: Agora que já conhecemos a história “Menina bonita do laço de fita”, vamos
juntos tentar encontrar os adjetivos, as qualidades da menina que aparecem na história. Quais

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VII Seminário Vozes da Educação

vocês lembram?
Pedro: Pretinha, professora!
Professora: Pretinha? É uma qualidade? Vamos pensar... pretinha, é pela cor negra que ela
tem, então é uma característica dela. Ela é pretinha, é uma menina...?
Raquel: Que usa laço de fita, tia!
Professora: E ela usa o laço de fita para ficar como?
Pedro e Raquel: BONITA!
Professora: Muito bem! Bonita é o adjetivo da menina, expressando sua qualidade. Agora
vamos encontrar os adjetivos dos amigos aqui da sala. Laura, fala um adjetivo do Pedro?
Laura: Alto!
Professora: Agora João fala um de Raquel.
(...)
Fonte: Arquivo pessoal

A leitura atenta do diálogo me fez perceber que ao perguntar “e ela usa o laço
de fita para ficar como?” a professora, de maneira não intencional, dá a entender que é
o laço de fita que deixa a menina bonita e não sua raça, ideia pretendida pela autora do
livro. O grupo foi alertado do deslize e o diálogo também possibilitou uma discussão
conceitual já que o grupo mostrou entender que pretinha não seria um adjetivo.
Adjetivos não são apenas qualidades, características também o são. Tal como alto,
resposta que não foi questionada pela professora, pretinha também é um adjetivo, usado
continuamente na história para caracterizar a personagem principal.
Socializar tais reflexões tem se mostrado uma potente atividade formativa,
gerando discussões na turma a partir das leituras dos diálogos por cada grupo. Muitas
vezes em sala de aula professoras e professores podem deixar passar despercebido o
ensino de um conteúdo inadequado. Morais (2013), se afirmando no papel de professora
pesquisadora, aproveita situações vividas por ela própria para pensar a escola como
lugar de produção de saberes. O deslocamento causado por esses acontecimentos a
provocou a repensar suas práticas e perspectivas:

Acontecimentos são, portanto, o que nos atravessa diariamente na escola ...


se nos deixamos afetar pelas crianças, por suas falas, ações, gestos, silêncios.
Mirar os acontecimentos na escola é um convite e uma necessidade. É a
possibilidade de uma nova escola poder ser vislumbrada, porque (re)vista,
(re)visitada, (re)conhecida. Olhar para os acontecimentos vividos no
cotidiano da sala de aula, reencontrar-nos com as imagens que, de alguma
forma, se tornaram desestabilizadoras, aquelas imagens e acontecimentos que
nos fizeram sair do lugar de onde comodamente estávamos, nos

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

possibilitando um encontro com a diferença e nos desafiando a pensar e


praticar modos outros de viver e compreender a alteridade que não seja de
nomeação, discriminação, seleção, domesticação e controle do outro/do
diferente? (SKLIAR, 2003) (MORAIS, 2013, p.54-55).

Em uma das inúmeras vezes que leu a seus alunos de seis e sete anos o conto do
Patinho Feio, conto que narra a história de um ser excluído do grupo social por ser
diferente, um importante deslocamento ocorreu:

Foi em um desses dias de leitura do conto que certo aluno, ao final da


derradeira frase, disse para a turma com ar severo:
“- Eu não gosto dessa história. Eu não gosto desse pato. Agora eu entendi por
que ele é um patinho feio. Ele é preto!”
Ao deter meu olhar para as ilustrações do livro, vi que todas retratavam o
pato como um ser negro. Posteriormente, quando sua nova identidade de
cisne é revelada, este ser passa a ser desenhado como branco. Não restava
dúvida. Meu aluno havia aprendido a lição: ser negro é ser feio, rejeitado e
infeliz (MORAIS, 2013, p. 56-57).

A autora, surpresa com a interpretação explicitada pelo aluno, se percebe


despreparada para agir diante de tal situação:

É no cotidiano, contudo, no exercício de reflexão da prática docente que nos


deparamos com situações desafiadoras, a exigir de nós modos outros de estar
na escola e no mundo, caracterizando o que Freire (1999) denominou de
natureza pesquisadora da prática docente. Digo isso para afirmar que não foi
fácil viver as situações que narro anteriormente, pois não tinha fórmulas nem
havia me preparado nem para ver nem para lidar com situações que
envolvem racismo. Em geral, fingimos não ver, tornando as situações
invisibilizadas. Ou pronunciamos uma palavra moralizante que não coloca na
roda a temática, aqui também silenciando e invisibilizando aquele que fala e
aquele que se cala (MORAIS, 2013, p.58).

As dificuldades em lidar com esta e tantas outras situações minimiza a


possibilidade de construção de um espaço de partilha e diálogo no qual as crianças
possam conversar sobre suas percepções. É, contudo, justamente nesses momentos de
desconforto, de exposição e de desarmamento que a educação pode acontecer
(INGOLD, 2018). Na cena narrada ficamos sem saber se outras crianças – brancas e
negras – também compreenderam desta maneira a narrativa. Em outra cena, a
internalização da identidade negra de maneira negativa também se faz presente,
justamente a partir da leitura do livro Menina bonita do laço de fita:

Inicio do dia. Uma das meninas leva uma novidade para mostrar à turma: um
livro que ganhou de presente no dia anterior, data de seu aniversário. As
crianças pedem que eu leia a história. “Menina bonita do laço de fita”, fala de

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VII Seminário Vozes da Educação

um coelho branco que quer ser negro como certa menina que ele sempre via e
que achava linda. Ao fim da leitura, ainda sob o impacto da história, uma das
alunas dispara:
- Ih, essa menina da história é preta igualzinha a Viviane.
- Não sou nada. - diz a menina magoada, sem conseguir conter o choro. -
Minha mãe não deixa eu ser preta, não. Ela diz que eu sou moreninha
(MORAIS, 2013, p. 57).

A atencionalidade e o cuidado são chaves para o processo educativo. A


preocupação com o outro possibilita uma escuta atenta, sensível e ética e propicia um
terreno fértil para que se responda ao que acontece. Problemas reais, tais como os
surgidos nas cenas descritas acima, não possuem uma solução pré-definida. Pelo
contrário, tais problemas propiciam aberturas, pedem improvisos, ‘experimentações
pacientes’ que demandam tempo e disponibilidade para abrir caminhos e segui-los
(INGOLD, 2018). Produz-se, assim, no chão da escola, no encontro das professoras
com as crianças, uma prática inventiva.
Em alguns dos diálogos a inventividade se presentifica pelo humor. Na infância
o brincar se entrelaça ao aprender, mesmo quando a escola não propicia tal diálogo. E
assim como a brincadeira aparece nas salas de aula, ela também é refletida em alguns
momentos nas criações dos grupos:

Quadro 5. Trecho de produção realizada na disciplina Educação, Linguagem e Conhecimento IV em uma


turma de Licenciatura em Pedagogia

- Vamos recordar o que já vimos na aula anterior sobre aumentativo e diminutivo?


A professora coloca no quadro algumas ilustrações e pergunta para Angélica:
- Angélica, qual o nome desse objeto?
- Casa.
- Sim, vamos então dar o aumentativo da palavra casa.
Angélica responde: - Casão.
Adriano, muito esperto e falante, intervém:
- A casa casou?
A professora diz:
- Parece de casamento não é? Adriano, nos ajude aqui, ok? Qual o aumentativo da palavra
casa?
Angélica propõe:
- Professora, posso ver no dicionário.
- Claro, Angélica! O dicionário é importante nessa hora.
Vanda bem ligeira diz: - Não existe!

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Janaína colabora:
- Professora, eu vi na novela que minha mãe assiste que a moça falou assim: “dei muito
dinheiro neste casarão”. Será que é casarão?
Adriano aponta:
- Se a casa não casou o aumentativo dela é casarão ué?!
(...)
Fonte: Arquivo pessoal

O grupo aproveita a atividade para brincar: traz uma resposta engraçada,


introduz um personagem gaiato na sala de aula e utiliza os nomes dos próprios
integrantes do grupo como os nomes das crianças participantes do diálogo. Rir e brincar
propiciam uma abertura para o inesperado, para lidar com os erros de maneiras outras:

as crianças nos convidam ao riso. E esse convite nos provoca à


transformação numa direção desconhecida, incontrolável, pois o devir é
isto:tornar-se sempre outro de si mesmo, sem saber bem aonde esse
movimento de(trans)formação e deslocamento vai nos levar. O riso tem
caráter transgressor,mobilizador da crítica ao poder estabelecido. Surge
muitas vezes como umabrecha, um intervalo em que o controle “abre um
respiro” nas nossas tão humanasfalhas e equívocos. A presença do riso traz
uma leveza e ludicidade ao discurso,cria uma abertura para o que não se tem
certeza, território instável para osurgimento de um outro modo de ver o
contexto e a si próprio (RIBEIRO; SOUZA; GUEDES, 2018).

A solicitação da tarefa tem propiciado um espaço para a imaginação. A


disponibilidade para brincar e criar se articula com o prazer de ensinar, sendo este “um
ato de resistência que se contrapõe ao tédio, ao desinteresse e à apatia onipresentes que
tanto caracterizam o modo como professores e alunos se sentem diante do aprender e do
ensinar, diante da experiência da sala de aula” (hooks, 2017, p.21). Ao militar pelo
entusiasmo como necessário ato de transgressão, hooks (2017, p.17-18) nos dá pistas de
como alcançá-lo:

Na comunidade da sala de aula, nossa capacidade de gerar entusiasmo é


profundamente afetada pelo nosso interesse uns pelos outros, por ouvir a voz
uns dos outros, por reconhecer a presença uns dos outros. Visto que a grande
maioria dos alunos aprende por meio de práticas educacionais tradicionais e
conservadoras e só se interessa pela presença do professor, qualquer
pedagogia radical precisa insistir em que a presença de todos seja
reconhecida. E não basta simplesmente afirmar essa insistência. É preciso
demonstrá-la por meio de práticas pedagógicas. Para começar, o professor
precisa valorizar de verdade a presença de cada um. Precisa reconhecer
permanentemente que todos influenciam a dinâmica da sala de aula, que
todos contribuem. Essas contribuições são recursos.

sumário 428
VII Seminário Vozes da Educação

São as contribuições de cada um/a que possibilitam a construção de um trabalho


comum, que possibilitam que professoras e estudantes caminhem juntos e que o
processo educativo ocorra (INGOLD, 2018). Assim, um potente elemento a surgir nos
diálogos a partir das interações docentes é o conhecimento prévio das crianças e jovens,
como no exemplo que se segue.

Quadro 6. Produção realizada na disciplina Psicologia da Educação em uma turma de Licenciatura em


Química

Prof.: Alguém sabe me dizer o que é uma mistura?


João: É quando se colocam duas coisas diferentes no mesmo lugar.
Prof.: Muito bem, João. Mas em vez de “coisas” vamos usar a palavra “substâncias”, tá bom?
Agora vamos pensar o que seria uma mistura homogênea? O que vocês acham que significa?
Mariana: Eu vi na novela que o Felix é homogêneo.
Prof.: É Mariana, as palavras são parecidas. Porém o Félix é homossexual que significa que
ele gosta de uma pessoa do sexo igual ao dele.
Mariana: Ah, entendi. Então uma mistura homogênea seria uma mistura toda igual?
Prof.: Isso. Quem sabe um exemplo de mistura homogênea?
Luciano: Café com leite.
Clara: Água e açúcar.
Prof.: Muito bem!
Cláudio: Água e areia.
Prof.: Esse é o segundo tipo de mistura que eu queria falar, Cláudio. Quando você mistura
água e areia, você continua vendo os dois?
Cláudio: Sim.
Prof.: Então ela não é toda igual, concorda?
Cláudio: Sim.
Prof.: Neste caso, quando podemos ver duas fases diferentes ou mais, chamamos a mistura de
heterogênea. Alguém sabe um exemplo?
Rachel: Água e óleo, professor?
Prof.: Isso mesmo. Agora vocês já sabem que mistura homogênea só tem 1 fase, ou seja, é toda
igual. E mistura heterogênea tem 2 ou mais fases diferentes. Foi um prazer estar aqui e até a
próxima aula.
Arquivo: Fonte pessoal

No diálogo acima, construído por licenciandos em química, o professor


imaginário incita a participação dos estudantes, acolhe suas respostas e parte de seus

sumário 429
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

conhecimentos, como recursos, para ir construindo os conceitos a serem trabalhados, de


maneira coletiva. O interesse nos estudantes se presentifica e estes correspondem. Neste
processo, a confiança emerge. Sabendo que “a confiança gira em torno daquelas
situações em que não se sabe e não se pode saber o que vai acontecer” (BIESTA, 2013,
p.45), crianças e jovens, e também professoras e professores, aceitam correr o risco que
envolve aprender, confiam uns nos outros.
A educação requer, portanto, presença. Presença de todos os envolvidos. Ao
colocarem na mesa o que sabem, ao se colocarem na mesa, respondem uns aos outros,
aprendem e se transformam e juntos participam de um processo educativo.

Referências

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VII Seminário Vozes da Educação

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sumário 431
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

INVESTIGAÇÃO-FORMAÇÃO – PRÁTICAS PEDAGÓGICAS PARA


AIMPLEMENTAÇÃO DA LEI FEDERAL 10.639/03

Lidiane Dias de Oliveira


FFP UERJ
Oliveira.ldia451@gmail.com

O contexto social em que estamos inseridos nos dias de hoje é mais um reflexo
de uma sociedade estruturada no racismo e no preconceito. Tratar as relações raciais no
cotidiano escolar não é uma tarefa fácil, tendo em vista os entraves que perpassam o
meio, portanto, se torna um desafio o trabalho para a re-educação das relações raciais.
Em janeiro de 2003 foi sancionada a lei federal 10.639 que inclui a temática
história e cultura afro-brasileira e africana na Educação Básica. A lei dispõe que o
conteúdo programático incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta
dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando o protagonismo do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertencentes a história do Brasil (BRASIL, 2004).
A Lei 10.639/03 é uma conquista da luta do movimento negro e de movimentos
sociais que tem comprometimento para transformar a realidade do racismo no Brasil e
que ainda se faz presente nas práticas escolares. Sendo assim, muito mais que questão
de conteúdo, a lei contribui também para que haja uma mudança de mentalidade nos
alunos e, com isso, a desconstrução, a desnaturalização de qualquer tipo de preconceito.
Na visão da Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, a lei:

[...] visa educar a todos os brasileiros e brasileiras para que conheçam,


respeitem e valorizem uma das raízes fundadoras de sua cultura e
nacionalidade, a africana. O que precisa ser mudada não é a imagem dos
negros, mas a imagem negativa que a sociedade criou e fomenta como se
fosse própria deles” (Entrevista concedida à Assessoria de Comunicação da
Fundação Cultural Palmares, em 11 janeiro de 2012).

E sob essa perspectiva, a pesquisa Compartilhando Experiências Pedagógicas –


A Investigação-formação como possibilidade para implementação da lei federal
10.639/03 em escolas públicas gonçalenses,orientada pela Profª Drª Regina de Fatima
de Jesus, vem buscando, desde 2011, consolidar espaços narrativos e dialógicos para

sumário 432
VII Seminário Vozes da Educação

compartilhar experiências em encontros pedagógicos com a participação de


professores/as da rede pública de ensino e alunos/as da escola normal e dos cursos de
licenciatura, possibilidades para a implementação da lei 10.639/03. Busca contribuir
para a qualificação dos trabalhos pedagógicos desenvolvidos nas escolas da rede pública
de ensino de São Gonçalo, por meio da construção solidária de práticas pedagógicas
antirracistas.Para atingir nossos objetivos foi formada uma rede de
solidariedade/pesquisa, realizando encontros quinzenalmente na UERJ-FFP. Juntos/as,
buscamos construir possibilidades para implementação da lei 10.639/03. Durante os
encontros abordamos casos de preconceito racial que acontecem na região, que tem
repercussão local ou nacional, dentre outros casos do cotidiano, além das experiências
individuais das pessoas que nos cercam. Em seguida, fazemos uma reflexão coletiva,
embasados/as no pensamento de teóricos que nos ajudam a desmistificar as questões
abordadas, para compreendermos os motivos e a origem que levam à perpetuação do
racismo na sociedade e, consequentemente, nos cotidianos escolares
Neste sentido, em nossos diálogos no grupo de pesquisa, buscamos refletir sobre
esses comportamentos que demonstram “inflexibilidade”, que fazem parte dos
cotidianos, pessoais e profissionais, que perpassam nossa sociedade, mas buscamos,
também a reflexão sobre os mecanismos ideológicos que ainda sustentam essa postura
que, de forma alguma pode ser entendida como meramente individual.
A pesquisa, cuja metodologia é a investigação-formação (JOSSO, 2005;
NÓVOA, 1998), convida professores e alunos a pensar essas práticas e estimula a
leitura e a escrita pois, a medida em que se vai adquirindo conhecimento sobre o tema,
como consequência acontece a desnaturalização de atitudes racistas nos cotidianos
escolares.

A Investigação-formação – Metodologia da pesquisa

A Investigação-formação (JOSSO, 2004: NÓVOA, 1988), mais que opção


metodológica, é opção político-epistemológica de pesquisa. Assim partimos da
compreensão da importância da “palavra” na trama cotidiana e na construção identitária
em que “eu” e “outro” são percebidos da forma dialógica: “Nós”. Neste processo em
que valorizamos a oralidade como elemento de perpetuação da memória,
potencializamos as experiências compartilhadas e compreendemos seu caráter formador
e transformador de realidades. A noção de experiência, portanto, tem sido

sumário 433
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

compreendida tal qual nos ensina a tradição oral africana: “como um dos seus
fundamentos, como um dos seus princípios, como forma de conviver, de ensinar-
aprender em comunidade” (BÂ, 1982, 2003).
Os Encontros Pedagógicos da pesquisa têm como objetivo colocar
professores/as da escola básica e alunos/as em formação a par da importância da
aplicabilidade da lei 10.639/03 nas instituições de ensino a fim de co-construirmos
possibilidades para sua implementação levando em conta a realidade do município de
São Gonçalo onde se localiza a FFP-UERJ
Neste trabalho, destaco alguns Encontros Pedagógicos durante minha
participação como Bolsista de Iniciação Científica da pesquisa (Pibic/UERJ), pois neste
período participei de forma mais atuante. Neste período houve, também, a contribuição
de grupos de pesquisa coordenados pela Profª Drª Mairce da Silva Araújo e pela Profª
Drª Jacqueline de Fatima dos Santos Morais, diálogo que muito enriqueceu o trabalho.

Encontros Pedagógicos – reencontrando nossas raízes

No segundo semestre de 2018 foram realizados dois Encontros Pedagógicos:


“Oralidade, Corporeidade e Ancestralidade” e “Bonecas Abayomi”.
O Encontro Pedagógico “Oralidade, Corporeidade e Ancestralidade” foi
ministrado por mim, Lidiane Dias, bolsista da pesquisa. Foi realizado no CIEP 439 Luiz
Gonzaga Júnior, localizado no bairro Luiz Caçador, em São Gonçalo, no dia 25 de
outubro de 2018.
Pensar sobre as questões que trazem valores civilizatórios afro-brasileiros
(TRINDADE, 2005): a oralidade, a memória, a corporeidade e ancestralidade, dentre
outros valores, é uma forma de propor que nos questionemos sobre onde nos
encontramos na sociedade, qual é o nosso lugar.
Sob essa perspectiva o grupo de pesquisa atendeu ao convite da professora
adjunta do departamento de Geografia UERJ/FFP, Drª Ana Claudia Ramos Sacramento,
para levar a pesquisa a um projeto que realizava no CIEP 439 Luiz Gonzaga Júnior, o
“Dia da Geografia, Literatura e Artes”. Reconhecendo a importância dos laços e das
redes dialógicas que aproximam e fortalecem o trabalho para a implementação da lei
10.639/03, bem como que aproxima escola básica-universidade, o grupo de pesquisa
elaborou uma dinâmica em que a proposta foi estimular os alunos do CIEP 439 a
refletirem sobre a origem de seu nome e sobrenome, isso após a explicação de que

sumário 434
VII Seminário Vozes da Educação

nossos nomes e sobrenomes são, na verdade, os nomes que foram dados aos nossos
ancestrais quando aqui chegaram para serem escravizados.
“O nome que era dado, era o nome da família que os compravam” (professor
Israel de Oliveira – participante do grupo de pesquisa). Assim, a partir do diálogo
estabelecido no grupo, buscamos refletir, também, sobre os valores que foram retirados
e substituídos pelos valores do colonizador, apagando memórias e histórias ancestrais.
O objetivo foi estimular os alunos a pensarem de forma crítica, para que eles
pudessem responder às questões propostas e que pudessem pensar sobre as questões que
traziam alguns valores civilizatórios afro-brasileiros (TRINDADE, 2005): oralidade,
corporeidade e ancestralidade, por exemplo.
A oralidade é uma herança de culturas tradicionais. Assim, é uma herança da
cultura africana, uma força que precisa ser potencializada, não ignorando o valor da
escrita em sociedades letradas, mas sim como afirmação de potência, de independência.
Associa-se ao corpo através da voz, da música. A oralidade é o mecanismo de
perpetuação da memória africana, que carrega consigo a responsabilidade de manter
viva a história africana e afro-brasileira.
A corporeidade se expressa através do corpo, ao respeito pelo corpo. O corpo
fala. A corporeidade traz o corpo como ator principal, atuando através das danças,
brincadeiras e músicas. É a interação com outros corpos.
Quando trabalhamos com a ancestralidade, trabalhamos diretamente com a
memória. Resgatar a memória da vivência afro-brasileira é dar voz às pessoas que tem
sabedoria, as que trazem em suas narrativas e em seus corpos a bagagem de uma
história invisibilizada.
Esses valores não são lineares, se interpenetram, estabelecendo conexões no
cotidiano, se relacionando continuamente. Esses valores civilizatórios afro-brasileiros
nos dão força e resistência para termos “consciência das várias ascendências que
coexistem dentro de nós” (TRINDADE, 2005). Potencializam, coletivamente, a luta
para rompermos com o racismo que nos marca e valorizarmos ainda mais nossa afro-
descendência. Referenciados pela tradição oral africana (BÂ, 1982, 2003) e pelos
valores civilizatórios afro-brasileiros (TRINDADE, 2005), a marca principal dos
encontros é a participação, de forma não hierarquizada, de todos os presentes:
pesquisadores/as, professores/as e alunos/as em formação, já que a pesquisa propõe o
compartilhar de experiências pedagógicas, buscando a autonomia na formação docente.
Consideramos que, a partir desta metodologia de investigação-formação (JOSSO,2005),

sumário 435
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

consolidamos espaços narrativos em que a experiência é potencial e potencializadora na


formação docente, propiciando uma maior autonomia de cada participante na busca por
caminhos e possibilidades para a implementação da lei 10.639/03 em escolas públicas
gonçalenses.

O contato com uma nova versão sobre a África e com a cultura afro-brasileira
nos faz compreender tamanha importância da implementação da lei e
estamos reencontrando em nossas Oficinas Pedagógicas, tais valores
civilizatórios: a “oralidade”, tão cara em nossas práticas, se faz presente todo
o tempo no compartilhar de experiências em que a “memória” vai revelando
nosso passado que se entrelaça com o presente e anuncia futuros; a
“circularidade, tanto na fala, no discurso, como na própria forma de nos
sentarmos em roda nos olhando e compartilhando saberes – pesquisadoras e
professores/ as participantes; a sabedoria que nos ajuda a pensar quantos são
os elos de “solidariedade” (ou princípio da cooperatividade) presentes na
comunidade gonçalense, que traz marcas da “ancestralidade” africana,
importante valor que nos re-encanta e nos alimenta em busca de caminhos
emancipatórios. Assim como estes, a “religiosidade”, que se revela nas
experiências narradas; a “musicalidade”, “corporeidade”, “ludicidade”,
“energia vital”, ou seja, muito axé e troca a partir das poesias, das músicas,
dos jogos e dos encontros estabelecidos (JESUS, 2013, p. 69.).

As dificuldades para superar o pensamento colonizado ainda é marcante, mas o


trabalho e comprometimento com as relações raciais no sentido de superação é ainda
maior. Seguimos na luta para desestabilizar os lugares sociais demarcados, libertando
negros e negras da sociedade brasileira do cativeiro social a qual são submetidos todos
os dias, pois a escravidão se perpetua em uma nova roupagem. E nossa pesquisa,
voltada à realidade gonçalense, preocupada com a formação de professores que atuam
no município e com alunos em formação, tem sua contribuição:

Assim, o que nos importa neste texto é trazer a percepção de alunos e alunas
de escolas públicas de São Gonçalo acerca deste racismo. A percepção e a
leitura da realidade por alunos e alunas negros/as que entendem que o
“cativeiro social”, marca suas trajetórias escolares e marcará suas trajetórias
profissionais. Que entendem que “a liberdade ainda não raiou” para o povo
negro no Brasil. Jovens que compreendem, porque “sentem na pele” que “O
corpo negro é elemento central na reprodução de desigualdades. Está nos
cárceres repletos, nas favelas e periferias designadas como moradias”, como
ousou dizer, denunciar e lutar a vereadora e militante dos Direitos Humanos,
Marielle Franco, até que foi calada barbaramente, em sua voz e em suas
ações, no dia 14 de março de 2018. denunciava, atualmente, Abdias do
Nascimento, em 1968, denunciava também e nos alertou que: ... Enquanto
um negro fôr tolhido em sua liberdade por ser negro, enquanto um negro
tiver obstaculizada sua realização pelo fato de sua côr epidérmica, todos nós
–os negros –estaremos implicitamente sendo atingidos em nossa dignidade de
homens e brasileiros (NASCIMENTO, 1968, p. 52).O que ambos dizem está
evidenciado na segregação socioespacial, presente nos estudos de Andrelino
Campos (2005, 2013) que revela a desigualdade racial. Em seu livro “Do
Quilombo à Favela”, podemos compreender como o espaço geográfico busca

sumário 436
VII Seminário Vozes da Educação

a manutenção de lugares sociais subalternos, subalternizados e cujos


estereótipos fortalecem e favorecem as distâncias sociais entre negros e
brancos (JESUS, ALMEIDA, ALVES E SILVA, 2018, p. 89, 90.).

Campos (2013) vai nos dizer que a segregação socioespacial sempre esteve
presente na literatura acadêmica. Ele coloca a segregação em dois modos: a
autossegregação e a segregação induzida, sendo voluntária e involuntária
respectivamente. Mas ele foca na segregação induzida como forma de análise dos elos
para entender a expansão do tecido urbano carioca.
Após a abolição da escravatura, sem nenhuma política pública que garantisse
moradia, trabalho, condição mínima de sobrevivência, os ex-escravizados por conta de
não terem onde morar, começaram a construir suas próprias casas, foi aí que se deu o
processo de favelização, marginalizando o segmento negro da população, pois os negros
construíram suas casas nos morros em volta dos centros urbanos. O negro sempre foi
visto como um marginal pela sociedade, e sabemos que a criminalização no Brasil tem
cor, e o que sustenta essa afirmativa é a população carcerária majoritariamente negra.

Em larga medida, discutir favela é falar também de preconceito


discriminação que parte dos moradores de grandes centros urbanos têm com
relação ao lugar e aos seus habitantes. Em tratando de Rio de Janeiro, ficam
evidentes tais procedimentos, pois desde sua origem, você pensar em um
processo, os lugares ocupados pelos mais pobres recebem pouca atenção do
poder público no que se refere ao tamanho dos problemas sociais. Entretanto,
como no passado em sua versão anterior a República: o quilombo, a favela
recebe uma atenção especial do aparelho policial, tendo em vista que favela
de favelados são considerados como caso de polícia, mas não como um
problema da sociedade (CAMPOS, 2013, p. 243).

Reafirmamos o pensamento do autor com uma narrativa compartilhada durante o


Encontro Pedagógico da pesquisa citado anteriormente, cujo objetivo foi estimular o
pensamento crítico em uma dinâmica de trabalho que propiciou aos alunos o reencontro
com valores civilizatórios afro-brasileiros: oralidade, corporeidade e ancestralidade.
Sendo assim, os questionamentos sobre a sociedade, sobre o lugar social que ocupam,
individual e coletivamente, foram dando o tom do diálogo:

Eu não posso reclamar de nada, por que eu tenho segurança nos mercados, no
Shopping. Então eu ando “tranquilão”, enquanto os brancos andam sem
segurança. Mas muitas das vezes a culpa nem é do segurança, mas sim do seu
patrão, que acaba mandando vigiar alguém que não tem nada a ver com isso e
ele acha realmente que não tem nada a ver, mas ele tem que obedecer às
ordens pra não ser demitido (Zaki aluno do terceiro ano do Ensino Médio, do
CIEP 439 Luiz Gonzaga Júnior, localizado no bairro Luiz Caçador – São
Gonçalo).

sumário 437
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Refletindo sobre a narrativa do aluno, observamos que o racismo se perpetua e o


quanto o negro, mesmo após séculos, ainda tem sido criminalizado em diversos espaços
sociais.
O alunoZaki também traz nova narrativa que nos ajuda a refletir sobre os lugares
sociais demarcados ao negro na sociedade:

Me senti como eu me sinto no dia-a-dia, pisoteado, desgostoso da vida como


se alguém tivesse pisando ou uma faca em mim (...). Muita gente olha para
nós com olhar de desprezo por causa da nossa idade por causa do nosso jeito
de agir de pensar (Zaki, aluno do terceiro ano do Ensino Médio do CIEP
439).

Prosseguimos, não somente como professores/as, mas como cidadãos/ãs


atuantes, para desconstrução de pensamentos colonizados em busca de uma sociedade
justa e igualitária, em que homens e mulheres não sejam classificados/as por raça e sim
como seres humanos. No entanto, como a realidade racial é basilar para a compreensão
da desigualdade social, nosso trabalho busca visibilizar os conflitos a fim de superar o
racismo nos cotidianos escolares.
O Encontro Pedagógico “Bonecas Abayomi”, foi ministrado pela professora
Janaína Nery Viana, Mestre em Educação pelo PPGEdu- Processos Formativos e
Desigualdades Sociais.O encontro realizou-se na Escola Municipal Zulmira Mathias
Netto Ribeiro, localizada no bairro Paraíso, em São Gonçalo, no dia 14 de novembro de
2018.
Seguimos buscando consolidar espaços narrativos para a perpetuação e
valorização de nossa ancestralidade africana. Esse Encontro Pedagógico foi destinado
aos/às professores/as da escola e teve como objetivo a confecção da boneca Abayomi,
que é símbolo de resistência, tradição e poder, assim, posteriormente podendo ensinar a
qualquer um que quiser aprender. A palavra Abayomi é de origem iorubá, significa
encontro precioso. As abayomis são bonecas negras, feitas dos panos das saias das
mulheres escravizadas que eram trazidas para o Brasil nos navios negreiros.
Para distrair seus filhos nos porões dos navios negreiros, as mulheres rasgavam
retalhos de suas saias a fim de fazer bonecas, amarrando os nós dos retalhos ou fazendo
tranças, que serviam como proteção para seus filhos. As bonecas eram feitas sem

sumário 438
VII Seminário Vozes da Educação

costura e sem marcação nos olhos, boca e nariz pois assim estaria representando todas
as etnias africanas.
Ao confeccionar a boneca, a dinamizadora Janaina Nery foi trazendo à tona a
origem da Abayomi a partir de uma tradição oral, do contexto da diáspora a sua
popularização, o significado do nome e o sentido de “Memórias, afetos e resistências
nesse contexto. A resistência feminina na diáspora, sobretudo durante a travessia; a
questão do afeto ligado ao termo ‘Abayomi’ (Encontro precioso)”. Foi entrelaçando sua
fala no memento da confecção das bonecas: “Eu dou para você o que tenho de melhor
ou o que há de melhor em mim e da memória com essa herança africana”.
Lena Martins foi quem popularizou a boneca nos 80. Janaína Nery comentou
sobre o potencial que têm a circularidade e a oralidade como um formato, ou uma
estratégia nas práticas pedagógicas com os alunos das séries iniciais, uma forma de já
inserir esses valores africanos de forma natural.

Quando falamos de tradição em relação a história da África, referimo-nos à


tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos
povos africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de
conhecimentos de toda espécie pacientemente transmitidos de boca a ouvido,
de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. Essa herança ainda não se perdeu
e reside na memória da última geração dos grandes depositários, de quem se
pode dizer são a memória viva da África (BÂ, 1982, p. 167).

A riqueza do encontro nos fez esquecer do registro em vídeo, prática que temos
em nossos encontros, pois cada encontro pedagógico é gravado em áudio e vídeo para
posterior transcrição das narrativas. Neste, uma aura nos enlaçou na roda de confecção
das bonecas Abayomi e nossa memória gravou o momento de forma muito singular nos
aproximando de nossa ancestralidade.

Encontros Pedagógicos – do cotidiano escolar à Pequena África: afirmando


identidades

No primeiro semestre de 2019, foram realizados mais dois Encontros


Pedagógicos. A professora Drª Regina de Jesus, orientadora da pesquisa estando de
licença nesse período, contou com a ajuda das professoras Drª Mairce Araújo e Drª
Jacqueline Moraes e seus respectivos grupos de pesquisa: GPALE (Grupo de Pesquisa
Alfabetização, Leitura e Escrita) e ALMEF (Grupo de Pesquisa Alfabetização, Memória
e Formação de Professores) para elaboração e realização dos Encontros Pedagógicos

sumário 439
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

que trazemos a seguir: “Práticas antirracistas nos cotidianos escolares nas séries
iniciais” e “Aula passeio: Circuito Pequena África”.
O Encontro Pedagógico “Práticas antirracistas nos cotidianos escolares nas
séries iniciais”, ministrado pro Phellipe Petrazi Moreira e Maria Martinha Barbosa
Mendonça, Mestrandos em Educação - PPGEdu Processos Formativos e Desigualdades
Sociais e foi realizado na UERJ/FFP, localizada no bairro Patronato, São Gonçalo, no
dia 15 de abril de 2019.
As práticas pedagógicas antirracistas nos ajudam a pensar como mudar a
realidade de exclusão dos afrodescendentes, são ações solidárias e transformadoras, que
desenvolvida no espaço micro contagiam outros sujeitos, que segundo Boaventura de
Souza Santos (2010) é uma “ecologia de saberes”, pois os saberes da experiência junto
com a valorização das matrizes africanas que estão presentes na cultura brasileira são
colocados em diálogo crítico com o conhecimento científico.
Sendo fundamentais para a re-educação dos alunos frente ao racismo. Durante os
Encontros Pedagógicos foram compartilhadas as experiências dos/as professores/as,
dialogamos sobre qual/quais metodologia/s utilizam para trabalhar a questão racial em
sala.
O final de cada encontro pedagógico, o momento pressupõe que se sentem em
grupo e pensem práticas pedagógicas a partir de suas realidades, de seus cotidianos, e
que registrem suas propostas. Esse Encontro Pedagógico foi direcionado a professores
em formação da Faculdade de Formação de Professores FFP/UERJ, na turma de
Alfabetização III, e do mesmo modo deixaram práticas pedagógicas antirracistas que
contribuem para a superação do racismo no espaço micro – o cotidiano escolar. Foi
sugerido que formassem três grupos de cinco alunos/as e deixassem suas propostas.
Destaco aqui algumas propostas pedagógicas:

Em nossa proposta pedagógica pensamos em refletir com as crianças sobre as


diferenças étnico-raciais pelo fato de pertencemos a nossa sociedade com
grande desigualdade racial, onde a mídia tem grande influência, por exemplo,
retratando nas novelas os personagens negros como de classes subalternas. O
ponto fundamental de nossa proposta é tirar o rótulo da escola como lugar de
respeito e inferioridade dos negros e superioridade dos brancos, como se a
cor definisse o destino da pessoa na vida. Através de exemplos que
demonstrem a representatividade e a realidade de oportunidades mostrando
que um negro pode seguir o caminho do tráfico ou pode ser bem-sucedido.
Parte da escola também promover atividades que trabalhem para acabar com
a essa desigualdade, com livros sobre personagens negras e ainda atividades
que deem voz às crianças pedindo para que elas desenhem seu autorretrato ou
o outro de forma real e sem a influência do que veem” (Niara, Sharifa,
Mandisa, Nis e Imani, alunas em formação da turma Alfabetização III).

sumário 440
VII Seminário Vozes da Educação

Mostrar, a partir de um debate que se inicia com a turma, uma frase racista
(sugerida pela professora) e a partir dessa frase pedir para as crianças
escreverem o que sentiram com aquela fala e ir colocando esses sentimentos
descritos no painel de TNT. Levantar uma conversa sobre o racismo e as
diferenças a partir da dinâmica realizada (Latasha, Latifa, Gimbia, Anaya e
Malik, alunas em formação da turma Alfabetização III).

Propor uma reflexão sobre a construção da sociedade e sobre o nosso papel e


nossa identidade trabalhando sobre a representatividade. Assim, traremos
perguntas sobre as novelas e mídia em geral. Iremos trabalhar identidade:
quem sou eu e como me vejo; tratar sobre como vejo o outro e o que o outro
representa para mim. Fazer questões para discussão, tais como: “dentro da
sua realidade, qual é o seu medo? Perguntar a eles como a sociedade deveria
ser e a proposta deles para mudança do que eles acham errado... (Akin,
Jamila, Jana, Jata e Kalifa, alunas em formação da turma Alfabetização III).

As alunas da Faculdade de Formação de Professores/ UERJ, foram desafiadas a


exercitar o pensamento crítico ao pensar em uma prática pedagógica para trabalhar as
relações étnico-raciais em sala de aula, despertando também o pensamento crítico nos
alunos, pois o ato de ensinar não é uma transferência de conhecimento, mas criar meios
para que o mesmo seja construído.

O que me interessa agora, repito, é alinhar e discutir alguns saberes


fundamentais à prática educativo-crítica ou progressista e que, por isso
mesmo, devem ser conteúdos obrigatórios à organização programática da
formação docente. Conteúdos cuja compreensão, tão clara e tão lúcida quanto
possível, deve ser elaborada na prática formadora. É preciso, sobretudo, e aí
já vai um destes saberes indispensáveis, que o formando, desde o princípio
mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se como sujeito também da
produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é
transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a
sua construção (FREIRE, 1996, p. 12).

As propostas que surgiram a partir da dinâmica do Encontro Pedagógico nos


possibilita compreender a importância da lei 10.639/03, a importância de um trabalho
voltado à reeducação das relações raciais desde os cursos de formação, pois:

As práticas pedagógicas compartilhadas evidenciam a busca de superação das


desigualdades, no entanto, não há linearidade nesse caminho que se faz: há
avanços e retrocessos nos processos de transformação, mas é assim que
podemos vislumbrar possibilidades emancipatórias para a implementação da
Lei Nº10.639/03. (JESUS, 2013, p. 79).

O Encontro Pedagógico “Aula passeio: Circuito Pequena África”, aconteceu na


Região do Rio de Janeiro compreendida pela zona portuária do Rio de Janeiro, bairro da
Gamboa e bairro da Saúde. Foi ministrado por André dos Santos Souza Cavalcante e

sumário 441
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

por Phellipe Petrazi Moreira, Mestrandos em Educação - PPGEdu Processos


Formativos e Desigualdades Sociais e foi realizado no dia 04 de maio de 2019.
Pequena África: Um lugar de recuperação da memória. Por aquelas ruas, sentiu-
se a cada passo dado naquele chão um sentimento de herança. Herança essa que vem a
partir da luta, da resistência, da não rendição e também de muitas manifestações
culturais. Mais uma vez, nesse Encontro Pedagógico nos remetemos às nossas raízes e
fomos recuperando alguns valores civilizatórios afro-brasileiros, dentre eles, a
ancestralidade, a memória.
A Pequena África recebeu esse nome no início do século XX. O nome foi dado
pelo compositor Heitor dos Prazeres. É uma região da capital fluminense que inclui a
região portuária e os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo.Lugar de luta e
resistência que marcou a história da cidade e, principalmente, dos negros, sendo hoje
lugar de encontros de turistas e moradores. Ainda são poucas as ações para resgatar a
memória do povo que fundou a região, que tem como principal referência o Cais do
Valongo, declarado recentemente Patrimônio Histórico da Humanidade pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Durante o circuito pela Pequena África visitamos alguns pontos específicos que
vou elencar, porque nosso caminhar pelas ruas, sobre as pedras, fomos reavivando e
fortalecendo memórias, histórias e laços, tanto entre nós que participamos, quanto laços
ancestrais que formam nossa história coletiva, mesmo que, alguns locais tenha servido
ao apagamento e invisibilização dessa memória:
Largo São Francisco da Prainha, situado no bairro da Saúde, na Zona Central da
cidade do Rio de Janeiro, localizado na Rua Sacadura no Sopé do Morro da Conceição.
Recebendo esse nome por estar próximo à Igreja da São Francisco da Prainha.
A Pedra do Sal é um lugar marcado pelas rodas de samba, que são realizadas
com frequência para não perder a memória de seus ancestrais. Recebendo esse nome
por que era onde os escravizados colocavam o sal para secar. Hoje considerado
Patrimônio Cultural do Estado do Rio de Janeiro.
O morro da Conceição se localiza no bairro da Saúde, no Rio de Janeiro, a
origem de seu nome se deve a uma pequena capela em homenagem à Nossa Senhora da
Conceição, construída no topo do morro em 1565. Traz consigo uma importância
histórica e arquitetônica significativa. No morro podemos contemplar construções da
arquitetura portuguesa, e também prédios históricos como o Palácio Episcopal, a

sumário 442
VII Seminário Vozes da Educação

Fortaleza da Nossa Senhora da Conceição, a Igreja de São Francisco da Prainha e o


Observatório do Valongo.
A Rua do jogo da bola está situada no alto do morro da Conceição. Há quem
diga que a rua tem esse nome por que os escravizados jogavam bola com as esferas de
metal que lhes serviam de peso as pernas, e outros dizem que os escravizados subiam o
morro fugindo dos capitães do mato pra jogar bola. Com um nome um pouco previsível
e curioso a rua do jogo da bola nos remete a um passado que mesmo com dor e
sofrimento os escravizados bradavam vida.
O Jardim suspenso do Cais do Valongo foi inaugurado em 1906 pelo prefeito
Pereira Passos e, após anos fechado, foi reaberto em 2012. O Jardim Suspenso do
Valongo foi projetado pelo paisagista Luis Rey, a fim de apagar as marcas da
escravidão na região. A inspiração para a criação do jardim veio da França, sendo uma
réplica dos Parques franceses do século XIX.
A Casa da Tia Ciata (Hilária Batista da Silva), que, junto com outras tias
baianas, foi responsável pelo desenvolvimento e consolidação do samba no Brasil.
Sendo uma das figuras mais influentes da cultura negra carioca do início do século XX,
tia Ciata, Mãe de Santo e cozinheira, realizava encontros entre os músicos e religiosos
filhos de santo. Músicos influentes como Dongo e Pixinguinha eram frequentadores
assíduos das rodas de samba. Hoje a casa da Tia Ciata é um escritório da Organização
dos Remanescentes da casa da Tia Ciata (ORTC) e é um espaço que permite manter
viva a memória da dama do samba.
O Cais do Valongo foi o maior porto atracador de navios negreiros da América
Latina. Construído no fim do século XIX, ele recebeu mais de um milhão de pessoas
entre os anos de 1774 e 1831. No ano de 1843, ele foi reformado para a chegada da
Imperatriz Tereza Cristina, futura mulher do Imperador Dom Pedro II, e passou a se
chamar Cais da Imperatriz, nome considerado mais adequado para receber a monarquia
portuguesa, a fim de apagar as marcas do antigo porto da história do Brasil. Em 1831, as
leis contra a escravidão começaram a surgir e o tráfico passa a ser clandestino e feito a
noite, como a região do Valongo na época era desabitada e de difícil acesso, o tráfico de
escravizados ficava mais escondido do resto da cidade.
O Instituto de Pesquisa dos Pretos Novos (Cemitério dos pretos novos) era
destinado a sepultar os pretos novos que chegavam mortos, ou que morriam quando
chegavam na Baía de Guanabara. O cemitério funcionava no Largo de Santa Tereza, em
plena cidade, mais diante dos enormes inconvenientes devido sua localização, o vice-rei

sumário 443
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Marquês do Lavradio ordenou que o mercado e o cemitério fossem transferidos para a


região do Valongo, área fora dos limites da cidade. Hoje o IPN (Instituto de Pesquisa
dos Pretos Novos) tem como objetivo estimular e promover a construção da memória a
fim de valorizar o patrimônio cultural referente a cultura africana e afro-brasileira e
promover a reflexão sobre a escravidão e a igualdade racial no Brasil, sendo hoje
responsável pelo Cemitério dos Pretos Novos e do Memorial dos Pretos Novos
Encerramos nosso circuito pela Pequena África com “palavras” que são grandes
renovadoras de energia e transmissoras de positividades, de afirmação de identidades.
“Resistência, positividade, representatividade, sangue, memória, militância, empatia,
conhecimento, empoderamento, memoricídio, ressignificação, luta, vida, dor,
sobrevivência e a importância do coletivo”.
O circuito pela Pequena África nos mostra a importância da perpetuação da
memória, do não apagamento da história e da resistência. Resistência essa que nos faz
permanecer convictos de que é de suma importância o trabalho para a re-educação das
relações raciais no Brasil. O coletivo, a percepção do outro, o comprometimento com a
transformação de realidades excludentes e o amor nos faz prosseguir nessa rede
solidária em favor da igualdade racial no espaço micro – o cotidiano escolar, no qual
desenvolvemos nossas microações afirmativas cotidianas (JESUS, 2013), para que estas
contagiem outros sujeitos.

Conclusões provisórias

São muitos os resultados da pesquisa que evidenciamos no processo de trabalho,


nos Encontros Pedagógicos realizados, nas experiências compartilhadas por
professores/as e alunos/as em formação; há uma mudança de mentalidade acerca da
percepção do racismo, da temática relações étnico-raciais e um comprometimento em
pensar práticas pedagógicas antirracistas. São inúmeras as narrativas de professores/as e
alunos/as em formação que nos permitem refletir sobre a realidade de racismo e sobre
os caminhos e possibilidades para a implementação da lei 10.639/03.
Consideramos os Encontros Pedagógicos da pesquisa fundamentais para que a
“rede solidária”, comprometida com a superação da realidade racista, seja visibilizada
em função da implementação da Lei Federal 10.639/03. Neste trabalho trago ao diálogo
alguns encontros pedagógicos realizados durante minha participação na pesquisa, como
bolsista de Iniciação Científica (Pibic/UERJ), e ressalto, também, fato de reeducar-me

sumário 444
VII Seminário Vozes da Educação

frente ao racismo, conhecendo muitos teóricos que me abriram caminhos reflexivos


para a compreensão da realidade brasileira e as relações raciais nesta sociedade ainda
pautada por um pensamento colonizado.
Graduanda em Geografia, destaco aqui um desses teóricos com quem comecei a
estabelecer muitos diálogos, tendo em vista as temáticas trabalhadas nos encontros
pedagógicos aqui apresentados. Andrelino Campos (2013) nos chama a atenção para
áreas de segregação e sua complexidade, pois lugares de pertencimento negro trazem
estigmas e desqualificação e a fala de um estudante gonçalense foi evidenciando o
quanto os jovens negros já vão entendendo o lugar social que ocupam, também, pelo
lugar em que moram. Sendo assim, vimos reforçar nossa luta para a não perpetuação do
racismo na sociedade e nos cotidianos escolares. Ainda há muito o que fazer. Neste
sentido, pudemos vislumbrar avanços como "Pequena África", um lugar de recuperação
da memória, que vem a partir da luta, da resistência, da não rendição, remetendo às
nossas raízes e que torna possível a recuperação de alguns valores civilizatórios afro-
brasileiros (TRINDADE, 2005), dentre eles, a ancestralidade e a memória.
Meu objetivo, após concluir a graduação, será continuar nessa caminhada
acadêmica, aprofundando as apreensões, os estudos, a aproximação com teóricos que
tive durante o tempo de pesquisa. Como estudante do curso de Geografia e mulher
negra, pretendo continuar nessa rede solidária para a reeducação das relações raciais e
superação da realidade do racismo.

Referências

BÂ, A. A tradição viva. História geral da África, v. 1, p. 167, 1982.

Barber, M. Mackay, R. A História Pouco Conhecida da Pequena África na Zona


Portuária do Rio de Janeiro- rioonwatch.org.br, publicado em 11/07/2016. Tradução
por Halina Machado em OlhoNaGentrificação, Destaque, Entendendo o Rio por
Observadores Internacionais.

BRASIL. MEC. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares


Nacionais para Educação das Relações etnicorraciais e para o ensino de história e
cultura afro-brasileira e africana. 2009. Parecer CNE/CP nº 3. 2004.

CAMPOS, A. Quilombos, favelas e os modelos de ocupação dos subúrbios: algumas


reflexões sobre a expansão urbana sob a ótica dos grupos segregados. In: JESUS, R. de
F.; ARAÚJO, FREIRE, P. Pedagogia da autonomia:saberes necessários à prática
educativa/ Paulo Freire. – São Paulo: Paz e Terra, 1996. – (Coleção Leitura)

sumário 445
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

GONÇALVES. P. B. Entrevista concedida à Assessoria de Comunicação da Fundação


Cultural Palmares, em 11 janeiro de 2012.

JESUS, R. de F. de. Experiências Compartilhadas por professores/as gonçalenses:


Caminhos para a lei nº10.639/03. (p. 62-80). In: JESUS, R. de F. de, ARAÚJO, M. da
S., CUNHA Jr. H. (orgs.). Dez Anos da Lei Nº 10.639/03 – Memórias e
Perspectivas.Fortaleza: Edições UFC, 2013, p. 69.

JESUS, R. de F. ALMEIDA, M. N. ALVES, L.M. SILVA, M. G. S. Jovens negros/as


de escolas públicas gonçalenses e suas compreensões sobre a realidade racista. Revista
Communitas. Rio de Janeiro, 2018, p. 89, 90.

JESUS, R. de F.; ARAÚJO, M. da S.; CUNHA JR., H. (orgs.). Dez anos da lei
10.639/03: memórias e perspectivas.Fortaleza, UFC, 2013, p. 79.

______. as microações afirmativas cotidianas e suas possibilidades emancipatórias In:


JOSSO, M. C. Experiência de vida e formação.São Paulo: Cortez, 2004.

M. da S.; CUNHA JR., H. (orgs.). Dez anos da lei 10.639/03: memórias e perspectivas.
Fortaleza, UFC, 2013, p. 243 – 267.

NÓVOA, A. A formação tem que passar por aqui: as histórias de vida no projeto
Prosalus (p. 107-129). In: NÓVOA, A. et al. (org).O método (auto) biografia e a
formação. Lisboa, Ministério da Saúde, 1988.

TRINDADE, A. L. Valores Civilizatórios Afro-brasileiros na educação. In: MEC -


Valores Afro-brasileiros na Educação. Boletim 22, NOV/2005. Salto para o
Futuro/TV Escola.

sumário 446
VII Seminário Vozes da Educação

PENSAR A FORMAÇÃO DOCENTE NA ALFABETIZAÇÃO NA EJA A


PARTIR DA NARRATIVA DA PRÓPRIA PRÁTICA

Daniel de Oliveira65
CREJA, SME-RJ/ FFP-UERJ
profoliveira.d@gmail.com

Mairce Araújo66
FFP-UERJ
mairce@hotmail.com

Introdução

A missanga, todas as vêem.


Ninguém nota o fio que,
Em colar vistoso, vai compondo as missangas.
Também assim é a voz do poeta:
Um fio de silêncio costurando o tempo
(Mia Couto, 2009).

O tema da formação docente no cotidiano da escola tem se constituído, para nós,


um constante desafio teórico-prático, que nos leva a tensionar e complexificar os modos
hegemônicos de pensar e propor ações e projetos de formação inicial e continuada.
Concentrando nossas investigações na escola básica e elegendo-a como centralidade nos
processos formativos (CANÁRIO, 2005) temos nos esforçado para contribuir com a
construção de paradigmas emergentes de formação, que possam romper com
racionalidades tecnicistas e aplicativas, que persistem em reservar para os/as docentes o
lugar de consumidores de métodos e práticas de ensino formulados ao largo da escola.

65
Daniel Pereira de Oliveira <profoliveira.d@gmail.com>, Doutorando em Educação e Mestre em
educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação: Processos Formativos e Desigualdades Sociais,
da Faculdade de Formação de Professores, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ).
Professor na Rede Pública Municipal de Ensino do Rio de Janeiro, atualmente é Coordenador Pedagógico
do Centro Municipal de Referência de Educação de Jovens e Adultos (CREJA). Participa, como
pesquisador, dos grupos Vozes da Educação: memória(s), história(s), formação de professores(as);
Alfabetização, Memória, Formação docente e Relações Étnico raciais (ALMEFRE); e Rede e coletivos de
Docentes que Estudam e narram sobre Alfabetização, Leitura e Escrita (REDEALE)/ FFP-UERJ.
66
Mairce da Silva Araújo <mairce@hotmail.com>, Doutora em Educação pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), com Pós-Doutorado pela FE/UNICAMP e pelo IPL/ Leiria/ Portugal. Professora
Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atua na Faculdade de Formação de
Professores (FFP). Docente do Programa de Pós-graduação em Educação (Mestrado): Processos
Formativos e Desigualdades Sociais. Líder do Diretório de Pesquisa Vozes da Educação: memória(s),
história(s), formação de professores(as).

sumário 447
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Assim temos caminhado na pesquisa Alfabetização, Memória, Formação de


Professores e relações etnico-raciais, desenvolvida na Faculdade de Formação de
Professores, no município de São Gonçalo, estado do Rio de Janeiro, desde 2006,
contando com financiamento da FAPERJ, em articulação com o Grupo de Pesquisa:
Vozes da Educação: memória(s), história(s) e formação de professores/as.
Em nossa trajetória, vimos desenvolvendo diferentes ações investigativas-
formativas, buscando constituir espaços de memória, de narração e de (auto)formação,
tanto na universidade, quanto no interior das escolas, pensando a reflexão sobre a
prática pedagógica como um elemento estruturante de formação docente (CANÁRIO,
2005). Temos na abordagem (auto)biográfica, uma das referências inspiradoras de
caminhos teórico-metodológicos que entrelaçam os processos de investigação e de
formação. Na interlocução com narrativas docentes temos encontrado lugares
exotópicos (BAKHTIN, 2000) produzidos no cotidiano escolar que tem nos
possibilitado encontrar na palavra do outro possibilidades de compreensão e
ressignificação dos fazeres ordinários (CERTEAU, 1994).
Abrimos a introdução com uma epígrafe, texto de Mia Couto (2009), escritor
moçambicano, que compara a voz do poeta ao “invisível” fio indispensável à
composição de um colar, porém quase nunca notado em relação às missangas vistosas
que saltam aos olhos. “A missanga, todas as vêem. Ninguém nota o fio que, em colar
vistoso, vai compondo as missangas” (COUTO, 2009). Ambos, fio e missangas, são
importantes para o colar, porém é o fio que vai unindo cada uma delas.
Pedimos licença para fazermos uma analogia que nos parece razoavelmente
adequada: as experiências de vida-formação narradas pelos/as docentes nas salas de
professores, nos cursos de formação continuada, nas trajetórias de ida e vinda de casa
para o trabalho, nos momentos de lazer em que se encontram... não poderiam ser
reconhecidas como o fio do colar, de que nos fala Mia Couto?
As narrativas têm ocupado lugar muito importante no processo formativo
docente porque vão revelando as nossas experiências, os nossos referenciais teóricos-
epistemológicos, nossos percursos formativos e os nossos lugares de fala. A partir delas,
somos provocados/as a pensar nossas práticas e nossa formação; somos convidados a
problematizá-las em inúmeros aspectos. Assim como as missangas, a prática em si, a
parte mais visível do nosso fazer pedagógico, não seria atravessada por um fio de
experiências invisíveis, que transbordam nas narrativas e são criadores da pré-
disposição para nos ouvirmos e investigarmos a própria prática?

sumário 448
VII Seminário Vozes da Educação

Como o fio que compõe o colar das missangas, as narrativas docentes orais ou
escritas que temos encontrado em nossas investigações, ressignificam práticas e
experiências pedagógicas, contribuindo para desvelar formas outras de pensarpraticar
os saberesfazeres docentes, produzir e socializar esses conhecimentos.
Pesquisando com a escola e não sobre a escola e, consequentemente, produzindo
um conhecimento junto com as/os professoras/es e não sobre suas práticas, entendemos
poder contribuir para fortalecer um paradigma de formação docentequequestiona uma
visão monocultural do saber, que elegeu a ciência moderna como critério único de
verdade, e a Universidade e os seus intelectuais como os legítimos representantes desse
saber, tal como denuncia Santos (2006). Reconhecer professores/as e a escola como
interlocutores/as e coautores/as legítimos/as no processo de produção de conhecimento,
tem favorecido a emergência e o reconhecimento de saberes instituintes, integrantes de
uma “ecologia de saberes” (SANTOS, 2006) que emergem em práticas interculturais.
Temos, portanto, em nossas ações e pesquisas, defendido a escola como espaço
de formação. Isto implica compreender o/a professor/a como pesquisador/a de sua
prática, entendendo que essa atitude pode favorecer a construção de práticas educativas
mais favoráveis aos alunos e alunas. Temos visto o/a professor/a que reconhece a
investigação de sua própria prática como um importante instrumento de ação,
contribuindo, nos espaços coletivos de formação, com outros/as professores/as,
narrando suas experiências, compartilhando suas inquietações e socializando seus
avanços (MORAIS e ARAUJO, 2014).
Discutindo a potencialidade da narrativa para a compreensão e ressignificação
dos fazeres ordinários que emergem no cotidiano escolar, compreendemos que o fio
que costura as narrativas dos/as professores/as compõem-se de múltiplas experiências
vividas no chão da escola e das comunidades que cercam a escola, experiências que se
encontram nas inquietudes suscitadas no e pelo cotidiano, que mobilizam a reflexão
sobre a prática. A participação em coletivos docentes que assumem uma postura
investigativa a partir do cotidiano da escola e da comunidade e o enfrentamento ao
desafio de transformar narrativas orais, prática mais tradicional entre docentes, em
narrativas escritas são outros fios a costurar as narrativas aqui contempladas.
A escrita das narrativas por professores/as se inscreve, assim, como um esforço e
como luta para dizer a própria palavra, seus saberes e dizer sobre si, como um exercício
de autoria. Parte da discussão teórica desse texto, recorte de uma dissertação de

sumário 449
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

mestrado de um dos autores, se inscreve nesse exercício de autoria, problematizando o


fio que compõe as missangas.
Perceber as contribuições das narrativas docentes, orais ou escritas, como um
efeito em rede, que provoca outros/as professores/as a também pensarem sobre seus
referenciais, preferências, metodologias, sucessos e fracassos pode ser apontado como
uma primeira apreensão da interlocução entre as experiências trazidas pelo presente
artigo.

Refletindo sobre percursos e experiências da própria prática docente

As memórias das professoras povoam suas práticas, às vezes de forma


errante, sem grandes reflexões, assumidas após análises solitárias ou de
grupo. Trabalhadas como memórias coletivas, irão produzir um texto que
possibilitará a compreensão de práticas assumidas no cotidiano (PARK,
2003, p 36).

Refletir sobre a própria prática docente não é um ato que precise ser solitário.
Pode fazer parte desse ato as trocas entre pares compartilhando as práticas, as histórias,
as experiências, olhando juntos, refletindo, pensando e estudando juntos, procurando
caminhos para uma prática mais bem qualificada para atender a reais demandas
percebidas no cotidiano escolar cujas práticas hegemônicas não têm conseguido
resolver.
É importante afirmar os papeis de coletivos docentes como o Grupo de Estudos
e Formação de Escritores e Leitores (GEFEL) e da Rede e coletivos de Docentes que
Estudam e narram sobre Alfabetização, Leitura e Escrita (REDEALE). Esses coletivos
são espaços de interlocução entre pares, em que docentes dividem ou melhor dizendo,
compartilham suas perguntas, desafios, angústias, experiências e saberes docentes;
narram, estudam, aprendem a pesquisar e escrevem sobre a própria prática docente.
Nesse mesmo sentido, também foi fundamental para mim o grupo de pesquisa
Alfabetização, Memória, Formação docente e Relações Étnico raciais (ALMEFRE), na
FFP-UERJ, coordenado pela prof.ª Mairce Araújo, que orientou meu percurso no
Mestrado e que atualmente orienta o percurso no Doutorado, ambos na FFP-UERJ.
A necessidade de se reunir em um coletivo é algo que, podemos arriscar dizer, é
inerente ao ser humano. Entre alguns professores a necessidade de se reunir a um
coletivo foi sentida para muitas vezes, segundo seus próprios relatos, para conseguir

sumário 450
VII Seminário Vozes da Educação

pensar juntos em como resolver questões pedagógicas que diariamente emergem do


cotidiano nas salas de aula de nossa escolas.
Nessa perspectiva do fazer juntos, escrevemos esse artigo e refletimos juntos, a
partir da experiência vivida por um de nós na escola e das experiências da própria
prática docente.
Nos quase onze anos na Rede Pública Municipal de ensino do Rio de Janeiro,
sete anos são no Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA), e quatro desses no
Centro Municipal de Referência de Educação de Jovens e Adultos (CREJA).
Em um desses anos, uma aluna, Antônia67, com muita seriedade na voz, olhando
em meus olhos, disse que eu precisava lhe ensinar a escrever uma carta. Ela me disse
que não queria aprender mais nada da escola, naquele momento. O mais importante era
aprender a escrever uma carta para um irmão que morava distante, em outro estado do
Brasil.
Ao longo das primeiras aulas insistiu que escrever uma carta para o irmão era
tudo que lhe interessava na escola. Apesar de perceber que estava aprendendo os
conteúdos propostos em aula e reconhecer que as atividades propostas eram
interessantes, insistia que o mais importante para ela era aprender a escrever a sua carta,
pois as outras aprendizagens poderiam vir depois. Escrever a carta era o seu objetivo e
motivo para estar na escola. Ela passava dos setenta anos de idade e problemas com sua
saúde estavam dificultando inclusive sua participação nas aulas.
Meu planejamento, a partir das Orientações Curriculares do PEJA, era traçado
em duas perspectivas: uma de longo prazo, que apontava os objetivos e linhas gerais de
ação do trimestre (o ano letivo no PEJA divide-se em trimestres); outra de curto prazo,
semanal, ao qual as questões emergidas do cotidiano se articulavam aos objetivos
trimestrais. No dia a dia, preocupava-me em ouvir as vozes dos estudantes em busca de
dar sentido ao currículo.
Dar prosseguimento ao planejamento e fazê-la esperar por um aprendizado que
era seu por direito, não era uma opção. Portanto, começamos a escrever uma carta.
Combinamos que a cada semana trabalharíamos na carta. Porém, Antônia não era a
única aluna da turma, os/as demais estudantes também possuíam suas demandas, tinham
outros desejos e objetivos diferentes para estar na sala de aula. Para alguns/as desses/as
estudantes a escrita de cartas não era uma atividade relevante naquele momento. Talvez

67
Antonia é um nome fictício substituindo o verdadeiro em preservação à identidade da estudante.

sumário 451
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

por não terem um destinatário concreto, como fora o caso de Antônia. Lidar com a
heterogeneidade em sala de aula é sempre um desafio. Mas já havia aprendido em
minha trajetória a não envolver a turma inteira com uma mesma atividade. As aulas
aconteciam a partir de temas de discussão que propúnhamos, ora eu, ora a turma, liamos
textos variados, assim como desenvolvíamos propostas de escritas diversas etc. Durante
o período letivo fomos experimentando a escrita de diferentes gêneros textuais, contudo,
para Antônia a principal proposta de produção escrita era a carta que queria escrever
para o seu irmão.
Na tenacidade de Antônia subjazia um caminho metodológico para a prática
alfabetizadora afinado com uma perspectiva discursiva e dialógica (SMOLKA, 2012 68):
ter um destinatário concreto, um motivo real a ser comunicado, uma relação afetiva
entre os interlocutores, em outras palavras, escrever o que? para quem? e para que?
questões chave que mobilizam uma produção escrita que conserva o sentido e o
significado social da língua escrita.
Pouco a pouco, ela escrevia a sua palavra, tratávamos juntos forma e conteúdo
da carta; às vezes, ela permitia que seu texto fosse apreciado coletivamente como
proposta de revisão. A minha proposta de trabalho com textos propunha a revisão
textual como processo inerente à escrita e essa proposta era desenvolvida na forma
individual pelo próprio autor, trocando os textos entre duplas, ou coletivamente com a
turma inteira.
Houve um momento muito interessante, eu considerava a carta em um estágio
praticamente terminado, mas ainda com algumas correções a fazer. Naquele dia, ela me
apresentou a carta mais uma vez ao final da aula, com muita alegria. Ela falava que
estava aprendendo a escrever, a ler, principalmente a escrever sua carta, e que estava
feliz. Após ler, com sua permissão, a carta que me mostrou, eu a parabenizei. A carta
estava muito bem escrita, havia poucas coisas a revisar e propus a revisão para a aula
seguinte. Muito segura de si, respondeu-me que não queria mais corrigir nada naquela
carta, que se o fizesse já não seria ela naquela escrita.

68
Smolka, no livro “A criança na fase inicial da escrita. Alfabetização como processo discursivo”,
defende que ensinar ou aprender a ler e a escrever são ações complexas que se processam no jogo das
representações sociais e das trocas simbólicas. Tendo como interlocutores centrais as teorias de Vygotsky
e Mikhail Bakthin, a autora tomando como base o aspecto fundamentalmente social e interlocutivo das
condições e do funcionamento da escrita aponta que: “não se ensina ou se aprende” simplesmente a “ler”
e a “escrever”. Aprende-se (a usar) uma forma de linguagem, uma forma de interação verbal, uma
atividade, um trabalho simbólico (2012, p.60).

sumário 452
VII Seminário Vozes da Educação

O primeiro impulso que tive foi de questioná-la e tentar convencê-la da


importância de fazer a revisão, mas não o fiz; também eu já havia me visto naquela
situação... Apenas consegui dizer um “tudo bem”. Aquelas palavras de Antônia foram
do tipo que, não sabemos bem como, arrebatam para um outro “lugar”: como eu me
senti nas intervenções feitas em textos escritos entre pares, na escrita acadêmica e,
antes, na escola básica? Eu fui para casa pensando. Estava aprendendo que a avaliação
não é feita somente da perspectiva do professor e passei a propor as avaliações de forma
participativa com os estudantes, ouvindo o que percebiam sobre seus processos de
aprendizagem e como avaliavam as produções desenvolvidas.
Na noite seguinte, trabalhamos no envelope da carta e na outra informou que
havia postado nos correios. Dias depois contou na aula que seu irmão havia telefonado
para ela feliz de ter recebido a carta, comentando tudo o que lera e respondendo o que
ela perguntava. Ela se alfabetizou com a carta.
Em uma perspectiva de educação dialógica (FREIRE, 2014), a palavra não é
privilégio de alguns, mas direito de todos; a Educação se faz no diálogo entre os
sujeitos. Isso abre espaço, por exemplo, para discutir em aula o que será estudado,
quando e como será estudado e como será avaliado, remetendo ao currículo,
planejamento e avaliação. Nessa experiência que trago para o texto, a palavra da
estudante é direito e transformam a prática no que diz respeito ao seu planejamento e
avaliação; primeiro, como palavra falada que argumenta negociando um sentido para
sua produção e, depois, como palavra escrita sobre a qual negociamos os sentidos da
revisão textual.
Ao tratar o diálogo como fenômeno humano, Freire (2014, p.107), afirma “não
há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a palavra verdadeira seja
transformar o mundo”. A práxis resulta de um processo de ação-reflexão, uma relação
dialógica, tendo em Freire o entendimento da indissociabilidade desses dois elementos,
posto que a dicotomia entre eles poderia se reduzir à ação pela ação ou à palavra vazia.
O destaque sobre a dimensão da reflexão na prática docente, principalmente na
educação básica, tem no Brasil dois representantes cujo pensamentos influenciaram e
ainda influênciam muitos professores/as: Paulo Freire e Regina Leite Garcia. A
produção desses pensadores contribuiu de forma significativa para a transformação das
concepções educacionais e dos fazeres de muitos educadores.

sumário 453
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A concepção professora-pesquisadora, no Brasil, foi amplamente discutida por


Regina Leite Garcia, que também fortaleceu a discussão sobre a relação
práticateoriaprática.
Garcia (GARCIA; ALVES, 2002, p.110) afirma que “a prática pedagógica é um
espaço de teoria em movimento”. Com isso, ela está explicando a professora-
pesquisadora, sua existência, a sua necessidade. A prática com espaço de teoria em
movimento propõe reconhecer, compreender, afirmar esses três elementos – prática,
espaço (do cotidiano) e teoria – como não definitivos, maleáveis e heterogêneos. Ou
seja, considerando que o cotidiano se transforma pela presença de sujeitos diferentes e
suas formas de ser e estar no mundo, das práticas no cotidiano escolar são demandadas
que atendam à uma diversidade de pensar e de formas de aprender e que, nesse sentido,
pressupõe sempre um novo olhar, um novo problematizar, um novo criar, lidar com
nossas dúvidas, a partir da reflexão que produz novos conhecimentos e teorias.
É nesse sentido que Garcia e Alves (2012) discutem a relação
práticateoriaprática que para as autoras significa-se como a interdependência dialógica
entre prática e teoria; mais que isso a indissociabilidade entre elas. O entrelaçar de duas
dimensões em que a prática se articula à teoria por meio de processos reflexivos.

[...] fomos compreendendo ser a prática, a teoria em movimento e a teoria, o


resultado da reflexão sobre a prática. Ou seja, fomos descobrindo não haver
prática despida de teoria tampouco teoria que não resulte da prática. [...] na
prática que é confirmada a teoria, e quando não, é na prática que a teoria é
atualizada ou mesmo modificada, quando não dá conta de explicar o que
acontece na prática (GARCIA e ALVES, 2012, p. 491).

Uma prática que está repleta de teoria porque ela produz conhecimento ao
mesmo tempo relacionando-se dialogicamente com nossos referenciais com os quais
nos identificamos ao longo da vida, mesmo que não esteja explicito.
Esse processo reflexivo do professor-pesquisador, da Práxis, tanto para Freire
(2014), quanto para Garcia (2011) possuem um elemento em comum a consciência da
incompletude de cada um de nós sujeitos. Para Freire (2014)

Mais uma vez os homens desafiados pela dramaticidade da hora atual, se


propõe a si mesmos como problema. Descobrem o pouco que sabem sobre si,
de seu “posto no cosmos”, e se inquietam por saber mais. Estará, aliás, no
reconhecimento do seu pouco saber de si uma das razões desta procura. Ao
se instalarem na quase, senão trágica, descoberta do seu pouco saber de si, se
fazem problema a eles mesmos. Indagam. Respondem, e suas respostas os
levam a novas perguntas (FREIRE, 2014, p. 39).

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VII Seminário Vozes da Educação

Nas palavras de Garcia (2011, p. 20), “Hoje sabemos que a dúvida, a incerteza, a
insegurança, a consciência de nosso ainda não saber é que nos convida a investigar e,
investigando, podermos aprender algo que antes não sabíamos”. O reconhecimento de
nossa incompletude e da necessidade de encontrarmos respostas para os desafios que
nos são propostos cotidianamente nos move a pesquisar na docência.
Para ela, a professora inconformada com os discursos sobre o fracasso escolar,
que culpabilizam os próprios estudantes, e comprometida com o sucesso dos mesmos e
em busca de respostas assume uma postura investigativa (GARCIA; ALVES, 2002). E
eu, diante da mesma situação, de não me conformar com as explicações que não
explicam, muito comuns de serem ouvidas, do tipo “falta apoio da família”, “os irmãos
também foram assim”, “falta interesse dele”, “deve ser um problema de fono
(fonoaudióloga) ou algum bloqueio psicológico”..., também adotei uma postura de
investigação. Esse tipo de respostas de forma simplista culpabilizam o sujeito, rotulam e
não ajudam a lidar com as questões dos processos de ensinoaprendizagem que nos
desafiam cotidianamente. Assumi uma atitude investigativa para compreender alguns
dos desafios que minha prática docente enfrentava com relação esses processos, para
compreender a minha prática, como reagem ao seu estímulo os estudantes, o impacto
dela nas relações dos estudantes com o conhecimento.
Ao me permitir fundamentar minha prática nos princípios da ação-reflexão ou da
relação práticateoriaprática, ou seja, uma práxis docente, acredito que o ponto mais
importante dessa minha experiência não foi trazer a carta para a sala de aula, pensar a
forma de organizar um trabalho com a carta e atender às expectativas de uma estudante
e dos outros estudantes. O momento com o qual mais aprendi foi avaliar juntos –
professor e estudante. Ao propor mais uma revisão à estudante, ela assume que seu
texto não pode ser mais mexido, que ele já a satisfez, que há uma relação de identidade
na sua forma de escrever que o marca e não quer que se apague.

Considerações Finais
Com a turma em que ocorreu esse fato e especialmente com essa estudante,
aprendi muito sobre o currículo, a avaliação e o planejamento; que podem ser mais
dialógicos e flexíveis, articulando dimensões individuais e coletivas, considerando
objetivos diferentes, pontos de partida diferentes e “pontos de chegada” diferentes.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A relação dialógica é um processo de aprendizagem nessa postura investigativa


que assumo como professor-pesquisador. Nessa relação dialógica professor-estudante
na Educação de Jovens e Adultos, quantas coisas se revelam sobre o que sabem esses
sujeitos em suas vastas experiências de vida? O que propõem negociando os sentidos
para os saberesfazeres que circulam na escola? Que pistas nos oferecem sobre seus
processos de aprendizagem? Como, nessa relação, se constroem as possibilidades de
participação desses sujeitos na decisão sobre o que querem aprender, sobre os sentidos
negociados para a aprendizagem e sobre a significação da (auto)avaliação dos seus
processos de aprendizagens?
É nesse sentido de ouvir a voz do outro, que me revela coisas que eu não saberia
de outro modo a seu respeito ou que eu demoraria muito mais para descobrir, que
considero as vozes dos estudantes formativas para a minha docência. Quando me
permito ouvir o outro e a pensar junto, me coloco também na posição de quem pode
aprender com a experiência compartilhada.
O que os estudantes sentem necessidade e querem escrever? Nesse recorte que
eu apresentei foi a carta, poderia ser navegar na rede (internet), produzir um curriculum
vitae, uma placa de venda para alguma atividade comercial, uma música, uma receita
etc. Ouvir atentamente as respostas a essa pergunta e garantir espaço para desenvolver
as ideias propostas pode contribuir para fortalecer uma relação de interesse, identidade e
sentido para a escrita.

Referências
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins
Fontes, 2000.

CANÁRIO, Rui. O que é a escola? Um olhar sociológico. Porto: Porto Editora, LDA,
2005.

CERTEAU, Michel de.A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 4. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes,1994.

COUTO, Mia.Contos. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

GARCIA, Regina Leite. Para quem investigamos – para quem escrevemos: reflexões
sobre a responsabilidade social do pesquisador. In: ______. et al (orgs.). Para quem
pesquisamos – para quem escrevemos: o impasse dos intelectuais. 3.ed. São Paulo:
Cortez, 2011.

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VII Seminário Vozes da Educação

______; ALVES, Nilda. Conversa sobre pesquisa. In: ESTEBAN, Teresa; ZACCUR,
Edwiges (orgs.). Professora-pesquisadora: uma práxis em construção. 2. ed. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002.

______; ALVES, Nilda. Sobre a formação de professores e professoras: questões


curriculares. In: LIBÂNEO, José Carlos; ALVES, Nilda. Temas de pedagogia:
diálogos entre didática e currículo. São Paulo: Cortez, 2012.

MORAIS, Jacqueline de F. dos S.; ARAÚJO, M. da S. Formação Continuada


Centrada na Escola: Intercambiando Experiências. Revista Teias (UERJ. Online).,
v.14, p.29 - 40, 2014.

SANTOS, Boaventura Souza.A gramática do tempo: Para uma nova cultura política.
Porto: Edições Afrontamento, 2006.

SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A criança na fase inicial da escrita: a


alfabetização como processo discursivo. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2012.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

FIAR COM... A FORMAÇÃO TECIDA NO ENCONTRO

Luciana Ostetto – UFF


lucianaostetto@id.uff.br

Marta Maia – UFF


marta965@globo.com

Cristiana Callai – UFF


criscallai@gmail.com

1. Um grupo de pesquisa que está a (con)fiar

Articulando ensino, pesquisa e extensão, o Círculo de Estudo e Pesquisa


Formação de Professores, Infância e Arte – FIAR69, tematiza a formação docente e, no
entrelaçamento da arte e das infâncias, volta seu interesse e sua atuação para processos
formativos e práticas pedagógicas no âmbito da Educação Básica, especialmente da
Educação Infantil.
As formas de pensar a produção acadêmica, os temas das reuniões e dos estudos,
os tempos de orientação e as relações que vamos tecendo com a escola pública,
configuram uma dinâmica de trabalho circular e colaborativa, por meio da qual vamos
fiando a identidade de um grupo que é constituído, além das professoras orientadoras,
por estudantes de Graduação (orientandos de monografia, bolsistas de Iniciação
Científica e de Extensão), orientandos de Mestrado e Doutorado e professoras da
Educação Básica. Educação estética, arte e infância, narrativas autobiográficas,
formação de professores, Educação Infantil, educação em museus, formação cultural de
professores, formação estética docente, memória e escrita, memorial de formação
estética, são palavras-chaves que revelam temas que estão sendo enfrentados pelo grupo
(OSTETTO, 2019).
O círculo teórico-metodológico pelo qual temos nos movimentado contempla as
abordagens narrativas e (auto)biográficas (JOSSO, 2004; DELORY-MOMBERGER,
2006, PASSEGGI, 2008; NÓVOA; FINGER, 2010, entre outros). A fundamentação dos
trabalhos dialoga, também, com referenciais do campo da arte, da filosofia, da
psicologia analítica, da literatura, da poesia, ampliando possibilidades de pensar-fazer-

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Grupo de pesquisa cadastrado no Diretório de pesquisa do CNPq. Para acompanhar nossas atividades,
consultar: www.fiar.sites.uff.br

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VII Seminário Vozes da Educação

escrever pesquisa. Guia-nos, também, o desafio de produzir uma escrita outra, marcada
pela estesia, pela invenção de uma escrita ave, como nos inspira Manoel de Barros
(2016; 2017).
No espaço do presente artigo, trazemos para compartilhar o que temos fiado
coletivamente no campo da extensão, tramando forma e conteúdo com pensamento e
realizações; propostas de encontros e partilhas que se colocam como convite ao público
interno e externo à universidade, de modo aberto. Trata-se de um projeto-ação que
denominamos FIAR com..., impulsionado pela compreensão de que outros modos de
fazer a formação continuada docente – que passe pela experimentação, pela pesquisa,
pela possibilidade e liberdade da palavra, do movimento, da expressão, da criação – é
exigência do tempo presente. Nesse caminho, buscamos articular princípios éticos,
políticos e estéticos na formação docente.

2. Encontros de partilha e sensibilidades: FIAR com...

“Na trama de pesquisas e práticas, encontrar-se


para tecer fios de conhecimento com
sensibilidade, (com)fiar redes de trocas entre a
universidade e a escola pública”.

A epígrafe anuncia a proposta e o compromisso formativo do projeto FIAR


com..., modalidade formativa que vem sendo desenvolvida pelo grupo de pesquisa
FIAR desde 2017. Criado com o intuito de provocar encontros com professores e
gestores das redes públicas, alunos de graduação do curso de Pedagogia e outros
interessados, pressupõe que as artes, em suas diferentes expressões, nos atravessam,
reverberam e produzem linguagens; que outras formas de nos relacionarmos com o
mundo, anunciando e afirmando a potência dos nossos saberes e fazeres coletivos,
podem ser tecidas.
O trabalho desenvolvido pelo FIAR se ancora na percepção de que o contato
com as artes, como campo de conhecimento, prática social e experiência, encoraja e
propicia outros modos de pensar a realidade do mundo no qual vivemos, pode abrir
espaço para diversos modos de expressão, provocar emoções, curiosidade e, também,
criatividade e imaginação. Pois, como escreveu o arte/educador Eliot Eisner (2008, p.
16): “[...] a imaginação não é um mero ornamento, tal como a arte. Juntas podem
libertar-nos de nossos hábitos enrijecidos”. Nessa direção caminha o grupo de pesquisa:

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

apostando na formação estética docente, tecendo saberes e fazeres sensíveis, no diálogo


da educação com a arte, a cultura, os museus, (com)fiando espaços de beleza e inteireza
de ser, entre universidade, escola e educação infantil públicas (OSTETTO; BONFIM;
SILVA; MOTA; SOARES, 2018).
Considerando que nosso horizonte de atuação e diálogo se situa no contexto da
Educação Básica, olhamos com mais vagar para a sua primeira etapa, para a professora
e o professor de Educação Infantil, que trabalha cotidianamente com crianças dos zero
aos seis anos, em creches e pré-escolas. Compreendemos que, para atuarem
profissionalmente como mediadores e interlocutores de infâncias múltiplas, uma
formação específica, articulada à cultura, é necessária. Uma formação, inicial e
continuada, que requer, também, aprendizados de transver o mundo, como diz o poeta.
Ou seja, apurar a sensibilidade, refinar o olhar, a audição, todos os sentidos, para poder
ver, ouvir, sentir e acolher a criança em sua inteireza. Desse compromisso formativo
com docentes e crianças da educação infantil pública se constitui o FIAR com...
Considerando que a pesquisa e a extensão precisam encontrar formas de
inserção que dialoguem efetivamente, mas não de maneira prescritiva, com as práticas,
a ação-formação FIAR com... se insere como uma possibilidade provocativa para que o
fazer pedagógico, em especial com as crianças, seja mais sensível às múltiplas formas
de expressão e compreensão do humano.
Desenvolvido por meio de encontros espaçados ao longo do ano, sem
periodicidade fixa, com duração de horas, a referida ação-formação pode ocorrer dentro
ou fora da universidade, preferencialmente em outros ambientes, pois consideramos o
espaço físico é um elemento de aprendizagem, é um aspecto da formação estética.
Assim, os encontros assumem uma estrutura básica, sobre a qual cria-se um
evento singular a partir da temática proposta e que articulará os fios da experiência:
pensando conteúdo e forma como faces que se complementam, cada encontro ocorre em
um local cuidadosamente escolhido e organizado detalhada e esteticamente, ao modo de
compor um ambiente acolhedor, em íntima relação com o seu tema; sabores e aromas
são também contemplados, no singelo cafezinho/lanchinho carinhosamente oferecido
aos participantes; um convidado, externo ou do próprio grupo, dinamiza o diálogo; a
divulgação é feita através das redes sociais e a inscrição é feita previamente, por meio
eletrônico. Em pouco mais de dois anos foram realizados oito encontros que trataram da
arte, das experiências estéticas e das memórias, articuladas à infância, de diferentes
formas e enfoques.

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VII Seminário Vozes da Educação

Em 2017 foram realizados os quatro primeiros encontros: FIAR com... arte na


infância, realizado em 31/05/2017 na Faculdade de Educação da UFF, teve como
convidada a Professora Doutora Ana Angélica Albano (UNICAMP); FIAR com...
danças circulares, realizado em 27/06/2017 no Espaço Avançado, Faculdade de Serviço
Social da UFF, teve como convidada a Professora Doutora Yara Couto (UFSCar); FIAR
com... arte no museu, realizado em 12/07/2017 no Museu Nacional de Belas Artes, teve
como convidadas a Mestranda em Educação Simone Bibian (Setor de Educação do
MNBA), a Professora Doutora Luciana Ostetto (PPPGE – UFF, Coordenadora do
FIAR) e a Mestranda em Educação Cristiana Seixas ( Psicóloga e Blibioterapeuta);
FIAR com... arte e formação de professores: perspectivas autobiográficas, realizado em
01/11/2017 na Faculdade de Educação da UFF, teve como convidada a Professora
Doutora Rosvita Kolb Bernardes (UFMG).
Em 2018 foram realizados dois encontros: FIAR com... biblioterapia, em
17/04/2018 no auditório da Fundação Municipal de Educação – FME, que teve como
convidadas a Mestranda em Educação Cristiana Seixas (Psicóloga e Blibioterapeuta) e
as escritoras de literatura infanto-juvenil Andrea Viviana Taubman, Margarete Amaral e
Sandra Ronca; FIAR com... bebês e educação, em 29/08/201 no auditório da Creche do
Colégio Universitário – COLUNI – UFF, que teve como convidadas a Professora
Doutora Ângela Maria Scalabrin Coutinho (UFPR) e a Professora Doutora Nazareth
Salutto (UFF).
Em 2019, até o momento em que escrevemos, foram realizados dois encontros:
FIAR com... estesias: por uma escrita ave, em 26/06/2019 na Biblioteca Central do
Gragoatá – BCG – UFF, tendo como convidadas a Poeta e Professora Mestra Fernanda
Bortone e a Professora Doutora Cristiana Callai (UFF); e o FIAR com... memorações:
marcos e datas da infância, em 16/09/2019 na Faculdade de Educação da UFF com a
Professora Doutora Marta Maia (UFF).
A seguir falaremos de cada Fiar com..., tomando por base as anotações do
Caderno de Registros que vem sendo produzido pelo grupo de pesquisa.

FIAR com... arte na infância.

Esse encontro inaugura a série de eventos nessa proposta e foi concebido para
convidar ao diálogo sobre concepções e práticas de arte na infância e, sobremaneira, na
Educação Infantil. Naquela manhã de quarta-feira, a Sala Paulo Freire, da Faculdade de

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Educação da UFF, transformou-se em um ambiente de múltiplas linguagens, com


intervenções de fios e formas no espaço que o tornaram mais aconchegante. Falar de
arte provocando sentidos. A exposição com palavras, fotografias e vídeos, conduzida
pela convidada, suscitou provocações e conversas que deslocaram concepções por vezes
simplistas da relação entre arte e educação. A participação dos que responderam ao
chamado, entre estudantes de Pedagogia, professores de educação infantil e membros do
grupo de pesquisa, contribuíram para a ampliação de olhares e significados relacionados
à arte na vida de cada um e à arte na educação, seja escola ou educação infantil.

FIAR com... danças circulares.

Na organização do espaço para receber quem vem para um encontro do FIAR,


beleza é fundamental. Nesse dia, a sala do Espaço Avançado, da Escola de Serviço
Social da UFF se transformou em um aconchegante lugar – para se conversar e se
dançar. Um centro cuidadosamente preparado com uma toalha rendada e sobre ela um
vaso de orquídeas brancas, capturava a atenção de todas as pessoas que chegavam para
o encontro FIAR com... danças circulares. Mas, o que são as danças circulares?Tal
como hoje as conhecemos, as danças circulares trazem em suas raízes o passado
longínquo da dança dos povos.

Como o próprio nome indica, as danças circulares sagradas são práticas de


dança desenvolvidas em círculo, envolvendo simbologias, tradição e cultura
de diferentes povos. Na roda, de mãos dadas, voltada para um centro comum,
ao ritmo de suas músicas, nos passos e nos gestos desenhados no movimento
coletivo, as marcas de tradições diversas são dançadas e acolhidas, são
vivificadas no círculo. (OSTETTO, 2010, p.46).

Para o encontro do FIAR, foram dispostos ao redor do centro, mantas, cangas,


panos coloridos e almofadas, convidando à aproximação, a sentar juntos. E nessa
atitude, participamos do diálogo com a convidada, que falou sobre a experiência de
trabalhar com as danças circulares na Universidade Federal de São Carlos, onde é
professora, sobrealguns sentidos dessa prática e sobre sua pesquisa. As imagens que ela
projetou completavam o conteúdo da exposição e, embalados pelas palavras que
contavam histórias de percursos sensíveis, na pesquisa e na prática educativa com as
danças criculares, o grupo que se fez presente foi construindo sentidos. A sala estava
lotada! Para muitos, aquele era o seu primeiro contato com as danças. Na continuidade,
o grupo alegremente aceitou o chamado para dançar, sob a focalização sensível e

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VII Seminário Vozes da Educação

envolvente da convidada, danças da Grécia, da Romênia, do Brasil e de outras


procedências. Então, uma imensa e bela roda se fez. Foi uma experiência profunda e
sublime, que reafirmou a essencialidade de se abrir caminhos para a recuperação do ser
brincante, cantante, dançante que nos habita.

FIAR com... arte no museu.

Esse encontro oportunizou que professores estivessem de forma diferenciada em


um museu de arte, refletindo sobre a relação de crianças e adultos com a arte e a
formação estética. O local escolhido foi o Museu Nacional de Belas Artes, situado na
cidade do Rio de Janeiro, local onde uma das dinamizadoras do encontro é responsável
pela Seção de Educação. Uma rica tarde se iniciou com a Roda de Conversa: crianças e
professores no museu, quando se refletiu sobre uma possível definição de conceito de
museu, a história do Museu Nacional de Belas Artes, a origem de seu acervo e as ações
da Seção de Educação. Depois, para refletirmos sobre a visita a um museu de arte,
foram exibidos dois curtas: um foi Bandamargem, de Elisa de Magalhães (professora da
Escola de Belas Artes/UFRJ) e outro foi parte do trabalho de campo da pesquisa de
mestrado sobre visita de crianças ao museu (BIBIAN, 2017). Após a socialização das
reflexões suscitadas pelos filmes, os participantes foram convidados ao lanche. A esse
seguiu-se a Oficina Poetizar no museu, que teve início com uma roda de dança circular,
que sensibilizou o grupo para seguir em visita à Galeria de Arte Brasileira do século
XIX, durante a qual deveriam escolher uma obra que lhes chamasse a atenção. As
sensações, lembranças e curiosidades provocadas pela visita foram socializadas na roda
de conversa que se seguiu, permeada por provocações poéticas trazidas por Cristiana
Seixas, encerrando o encontro.

FIAR com... arte e formação de professores: perspectivas autobiográficas.

Mais uma vez nos encontramos na Sala Paulo Freire, da Faculdade de Educação
da UFF. Como sempre, o ambiente foi preparado com cuidado e intencionalidade.
Acima da porta de entrada havia um pano pendurado, inspirado na cultura oriental, de
convidar à consciência de sua presença e de reverência, pois, ao passar pelo pano, era
necessário inclinar-se, sinal de respeito para entrar no espaço. No pano estava escrito:
“Esta é minha memória. Dela sou a que nasce, mas também sou a parteira,”, de Eliane
Brum, no livro “Meus desacontecimentos”; assim que se passava esse portal,

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

caminhava-se por um pequeno corredor de espelhos, chamando à atitude de olhar para


si: quem eu vejo? Quem me vê? Borboletas de papel coloridas foram espalhadas pela
sala: nelas os participantes poderiam escrever mensagens, palavras poéticas,
sentimentos, impressões, para alçarem voo. Na mesa da convidada que conduziria o
encontro, havia flores de pano que remetiam ao artesanato mineiro, lembrando, e
homenageando, a professora convidada, que vinha de Belo Horizonte. A compor o
espaço também havia panos bordados, almofadas, aroma de capim-limão, lanche farto e
versos enfeitando a lousa que estava na sala, como por exemplo: “Escrever é feito de
casca e pérola”, de Manoel de Barros. Nossa convidada, após ressaltar o cuidado e os
detalhes do ambiente, começou por apresentar imagens que contavam de seus percursos
no ensino de Arte e da sensibilidade que foi cultivando na relação com os professores.
As diferentes linguagens e formas de expressão que foram compartilhadas, foram
despertadas e produzidas a partir de elementos biográficos. Pelas manifestações do
público presente, o tema abordado, o espaço e o conteúdo apresentado foram muito
mobilizadores. Várias participantes compartilharas fragmentos de seus percursos
biográficos, tecendo reflexões cheias de significados. As ressonâncias do que
reverberou em cada um puderam ser anotadas nas borboletas de papel colorido que
estavam à disposição dos participantes. Algumas reverberações-palavras: “Aprender a
ouvir; Escutar é preciso!; Conhecer a si para dialogar com o outro; Descolonizar a arte!;
Identidade; Celebrar o encontro com o outro e comigo; A arte trabalha no limite da
linguagem. Ela recria, interliga, expressa o que existe de mais profundo no ser humano;
As coisas que fazemos, que escrevemos, têm que fazer sentido. Não posso esquecer
disso. Obrigada FIAR. Preciso resgatar o meu sentido; O que vivi também é formação,
me deixem falar de mim!; “Como me desponto corporalmente; Cuide-se!; Cuide-se!;
Cuide-se!; Só bato continência pra cisco, pedra e árvore; Olhar sustentável
potencializando processos de criação; Nossa escrita precisa revelar nossos desejos;
Narrar-se; Cuidados; Entrelaçar sentidos e pensamentos; Que sejamos livres para
contar, ouvir, cantar, amar... Que nossas histórias definam nossas histórias; Qual é a
minha forma de dizer?; Saio reabastecida e com muitas novas ideias”. Enfim,
fecundados desejos e possibilidades, o encontro terminou com energias em ebulição.

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VII Seminário Vozes da Educação

FIAR com... biblioterapia.

Realizado em uma manhã no auditório da Fundação Municipal de Educação de


Niterói. Nesse encontro a Bibioterapeuta Cristiana Seixas realizou uma Oficina de
Leitura e Escrita seguida de Roda de Conversa com as escritoras Andrea Viviana
Taubman, Margarete Amaral e Sandra Ronca. O local escolhido, situado em um prédio
tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (INEPAC),
oferecia aos participantes o convite à apreciação estética por sua arquitetura com curvas,
vitrais, arabescos e detalhes do tempo. Sua beleza se complementou com o varal de
poesias e os estandartes de pano. A experiência de ser envolvido em arte e poesia seguiu
no canto da Professora/Poeta Liliane Balonecker e na feitura artesanal dos cadernos de
escrita de si. Foram abordadas as narrativas autobiográficas como veículo de
apropriação dos processos formativos na história de vida, intercaladas pelas palavras
ditas sobre a escrita por poetas como Manoel de Barros, Bartolomeu Campos de
Queirós, Viviane Mosé, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, dentre outros. A
história "Olhos de violino", de Márcia Cristina Silva, foi contada seguida do convite
para cada participante escrever sobre encontros impactantes com a arte e suas
ressonâncias e compartilhar com o grupo. As autoras presentes acresceram o encontro
de grande emoção ao narrarem os temas e condições de escrita de seus livros. Andrea
Taubman falou sobre seu livro "O menino que tinha medo de errar" e de como a escrita
do livro a ajudou a superar as cobranças externas e internas de padrões inalcançáveis de
perfeição. Margarete Amaral mostrou seu caderno de infância, onde registrou a história
da "A garrafa e a rolha", escrito quando tinha seis anos de idade e que foi a semente de
seu livro, publicado em 2016. Sandra Ronca mostrou o processo de feitura do livro
"Tenho um amigo", que foi fruto da travessia do luto pela perda de seu filho Hugo,
morto por bala perdida no pátio da escola.

FIAR com... bebês e educação.

Esse encontro foi realizado no auditório da Unidade de Educação Infantil do


COLUNI-UFF, que foi organizado e ambientado com almofadas, panos e colchonetes
dispostos no espaço, no centro do qual estava uma roda de livros de literatura infanto-
juvenil, provocando olhares e leituras. Concepções teóricas, pesquisas e práticas com
bebês estavam em pauta. Em forma de exposição dialogada, as professoras convidadas
apresentaram suas pesquisas e suscitaram reflexões sobre questões que perpassam a

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

vida dos bebês e suas relações com os adultos, dentro e fora de instituições de Educação
Infantil.

FIAR com... estesias: por uma escrita ave.

Partindo do desejo de realizar um encontro no qual a escrita poética envolvesse


os participantes e todos os sentidos, a proposta se projetou como um convite a olhar
para o ínfimo, os desperdícios e os despropósitos. Nesse encontro, a proposta-desafio
era criar a ambiência poética na qual todos se sentissem propensos a degustar e criar
textos poéticos. Duas profissionais comprometidas com a linguagem e a sensibilidade
apresentam suas referências constituintes: a primeira se encontra com a poesia através e
a partir da maternidade, ali a poesia a abarca com a vida; a segunda se constitui poeta
desde menina, definida como tal precocemente pela mãe ao perceber a poesia que habita
sua vida. Desta vez, foi o Espaço Cultural da Biblioteca Central do Gragoatá – BCG –
UFF que nos acolheu. E tinha tudo a ver com a proposta desejada! Esse espaço,
localizado no térreo da biblioteca, é composto de duas salas interligadas, tendo um
piano em uma delas. O piano suscitou ideias: vamos inserir na programação do encontro
uma sessão musical! Sim, levamos adiante a proposta e no dia marcado os participantes
foram recepcionados com a delicada música entoada no piano, que recebeu as mãos
generosas de um estudante de música que aceitou colaborar com o encontro do FIAR. E
fez toda a diferença! A música preencheu o espaço e, a medida que os participantes iam
chegando, aproximavam-se da roda que se formou ao redor do piano e pianista.
Algumas composições puderam ser acompanhadas pelas vozes de todos que ali
estavam, entoando Vinicius de Moraes, em um belo coro formado despretensiosamente
mas com alma. O espaço foi organizado com panos coloridos, poesias, livros, uma bacia
com água aromatizada, objetos que remetiam ao tema: voar com/na/pela poesia. Foram
disponibilizados papéis de diferentes tamanhos, cores, texturas, lápis, hidrocores. Uma
bonita mesa oferecia um lanche saboroso. No decorrer do encontro, debruçamo-nos
sobre os sentidos provocados pelas palavras nas poesias de Manoel de Barros,
encontramos no percurso das palavras que compõem seus escritos a reverência à
simplicidade. E ao entoar as palavras do brejo, dos pássaros ou caramujos, os sentidos
foram sacudindo poeiras às palavras fatigadas de explicar, porque em suas composições,
Manoel nos convida a transver o olhar. Na poesia, as palavras vão além da informação,
pois nelas habita o canto, “para cantar é preciso perder o interesse de informar”

sumário 466
VII Seminário Vozes da Educação

(BARROS, 2017, p.43). Nessa dinâmica produzida pela voz do poeta, que é a poesia, a
criança escuta a cor do passarinho, potencializa a palavra com sua visão criadora, não
sequencial, liberta a palavra da escravidão obediente, inaugura mundos, cria reinos e
personagens para habitá-lo (CALLAI, 2019). No prefácio do livro Meu quintal é maior
que o mundo, José Castello diz que o objetivo da poesia de Manoel de Barros não é
explicar, mas “desexplicar”. Diz ainda que sua poesia “se desenrola além da razão e de
seus bons argumentos. Talvez, seja por isso que é uma poesia que se apega à infância,
momento da vida em que todos os sentidos estão por se fazer” (BARROS, 2016, p.9). O
horário do evento permitiu que o público fosse em sua maioria professoras de educação
infantil da rede municipal de Niterói, mas também alunos do curso de Pedagogia da
UFF e usuários da biblioteca que, ao chegaram ao local, se sentiram convidados pela
surpresa estética que encontravam. Após a recepção visual, olfativa, gustativa e auditiva
proporcionada, os participantes foram convidados pelas dinamizadoras a fluir com a
poesia com as suas narrativas e leituras. Em seguida todos puderam apresentar em
palavras ditas ou escritas e registros gráficos outros a sua própria expressividade
poética.

FIAR com... memorações: marcos e datas da infância.

O desafio aqui foi trazer uma discussão comumente teórica para a memória
afetiva e dela retomar à análise. Trazer das memórias a crítica a um calendário escolar
que prima em se organizar prévia e tradicionalmente por datas de um calendário oficial,
que não dialoga com as infâncias que transitam na escola (MAIA, 2016, 2017), foi o
objetivo a ser alcançado pela dinamizadora Marta Maia, que desenvolve a discussão
acerca desse tema em suas pesquisas. Para a avivar a memória, o ambiente foi
organizado em pequenas ilhas de brinquedos. Os participantes, alunos do curso de
Pedagogia da UFF, professores e gestores de redes municipais de educação, foram
recebidos com um saboroso lanche enquanto vídeos de animação das músicas O
trenzinho do caipira (Villa Lobos) e Bola de meia, bola de gude (Milton Nascimento e
Fernando Brant). Em seguida foram convidados a brincar. Após um período de
brincadeiras e narrativas nas pequenas ilhas/grupos, a dinamizadora solicitou que
pensassem nas suas infâncias, nos momentos que marcaram, nas datas que trazem na
memória. Posteriormente foram provocados a socializar essas memórias oralmente e a
registrá-las em desenhos ou palavras em papéis disponibilizados para esse fim. Esses

sumário 467
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

registros foram organizados pelos participantes em quadro dividido pelos meses do ano,
formando, então, um calendário centrado nos sujeitos. A partir desse calendário foram
feitas as análises sobre o conteúdo de suas memórias – nenhuma delas se referia a
eventos ou situações escolares, relacionando e contrapondo o calendário produzido com
essas memórias e o calendário escolar centrado em datas convencionais.

3. Fiando com o outro, fazendo formação continuada: algumas reflexões

Caminhar por veredas que articulam pesquisa autobiográfica, arte, formação


estética, infância e formação docente, fazendo pesquisa, ensino e extensão, requer o
cultivo de um estado que se configura “[...] como um alcançar uma nova capacidade
afirmativa e uma disponibilidade renovada para o jogo e para a invenção” (LARROSA,
2003, p. 46). É estar aberto para exercícios de reinvenção da vida, da educação e da
profissionalidade docente, tecendo um trabalho coletivo, dialógico, inscrito no campo
da sensibilidade: formação estética.
Como sabemos, o termo estéticatemorigem na raiz grega aisthesis, “[...] que
significa sensação, sensibilidade, percepção pelos sentidos ou conhecimento sensível-
sensorial” (HERMANN, 2005, p. 25). E então, quando falamos de formação estética,
estamos falando de processos e experiências que envolvem e desencadeiam percepção,
imaginação, interpretação, contribuindo para alargar a sensibilidade (PERISSÉ, 2009),
cultivada na interação do homem com a arte, a cultura e a natureza; processos que, por
consequência, podem provocar deslocamentos, engendrando outros modos de atuar no
mundo, de viver e dar sentido à vida.
Os encontros FIAR com..., inscritos nesse processo de pesquisa e formação que
se guia pelos fios da ética, da política e da estética, idealizados por um círculo de estudo
e pesquisa na universidade, abrem espaço para nos aproximarmos e tecermos relações
de empatia e compromisso com a escola pública; contribuem para pensarmos em outros
modos de fazer formação docente, nas modalidades inicial e continuada, que articulem
sentimento e pensamento, sensação e intuição (JUNG, 1991), focalizando a inteireza de
ser. Modos que criem oportunidades de transformação de si, pela experiência do
encontro, da narrativa, do fazer, artesanal e esteticamente projetados.
E assim vamos seguindo, na resistência e na insistência, (con)fiando caminhos,
dando importância às margens, ao ínfimo, à poesia, à beleza, ao coletivo, ao diálogo, à
escola pública, aos professores e às professoras, à educação infantil.

sumário 468
VII Seminário Vozes da Educação

Referências
BARROS, M. Meu quintal é maior que o mundo. Antologia. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2016.

BARROS, M. Menino do mato. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.

BIBIAN, Simone. Crianças e professoras no museu: narrativas no encontro com a


arte brasileira do século XIX. 2017, 167 p. Dissertação (Mestrado em Educação).
Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói -
RJ. 2017

CALLAI, C. Habitar o mundo na poesia. In: II Congresso de Estudos da Infância:


politizações e estesias. UERJ. Rio de Janeiro. 2019.

DELORY-MOMBERGER, C. Formação e socialização: os ateliês biográficos de


projetos. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 359-371, ago. 2006.

EISNER, E. E. O que pode a educação aprender das artes sobre a prática da


educação?Currículo sem Fronteiras, v.8, n.2, pp.5-17, Jul/Dez 2008.

HERMANN, N. Ética e estética: a relação quase esquecida. Porto Alegre: EDIPUCRS,


2005.

JOSSO, M-C. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.

JUNG, C.G. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.

LARROSA, J. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte:


Autêntica, 2003. 4ªed.

MAIA, M. Isso é o que eu não sei responder -O currículo na palavra das crianças.
Trabalho apresentado no Seminário Vozes da Educação, UERJ, São Gonçalo/RJ, 2016.

MAIA, M. Datas comemorativas – uma construção ideológica que persiste na educação


infantil. Trabalho apresentado na 38ª Reunião Nacional da ANPEd – GT07, UFMA –
São Luís/MA, 2017.

NÓVOA, A.; FINGER, M. (Orgs.). O método (auto) biográfico e a formação. Natal,


RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010.

OSTETTO, L. E. Para encantar, é preciso encantar-se: danças circulares na formação de


professores. Cad. Cedes, Campinas, vol. 30, n. 80, p. 40-55, jan.-abr. 2010.

OSTETTO, L.; BOMFIN, P.; SILVA, V. MOTA, X.; SOARES, A. Arte, infância e
formação docente tecidas em narrativas: percursos do grupo de pesquisa fiar. Trabalho
apresentado no VIII Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)biográfica. São Paulo,
UNICID, 2018.

sumário 469
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

PASSEGGI, M. C. Memoriais auto-bio-gráficos: a arte profissional de tecer uma figura


pública de si. In: PASSEGGI, M. C.; BARBOSA, T. M. N. (Orgs.). Memórias,
memoriais: pesquisa e formação docente. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus,
2008. p. 27-42.

PERISSÉ, G. Estética e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

sumário 470
VII Seminário Vozes da Educação

AVALIAÇÃO EXTERNA E (IN)DEFINIÇÕES DO FAZER DOCENTE: O QUE


CABE À PROFESSORA?

Bruna de Souza Fabricante Pina


CPII/ UFF
brunadesouzafabri@gmail.com

Fabiana Eckhardt
UCP/ UFF
fa.eckhardt@gmail.com

Introdução
Este texto apresenta reflexões realizadas a partir de uma pesquisa que busca
averiguar a interferência de uma avaliação externa no cotidiano escolar. Objetivando
compreender o impacto da Provinha Brasil nos processos escolares de alfabetização a
pesquisa indaga a quatro municípios da região metropolitana do estado do Rio de
Janeiro como suas redes municipais de educação produzem, interpretam e usam os
dados e informações adquiridos pela Provinha Brasil nos anos de 2014, 2015 e 2016,
operando na tensão entre a avaliação externa e as práticas pedagógicas cotidianas.
Dentre os muitos movimentos realizados nesta pesquisa, destacamos neste texto,
a aproximação com o material recolhido em um dos municípios participantes. Em meio
aos materiais compartilhados pelas escolas da rede municipal, estavam as fichas de
correções com os resultados dos testes; os relatórios encaminhados a Secretaria de
Educação após aplicação e relatos sobre os desdobramentos pedagógicos realizados
pelas unidades escolares com base nos resultados obtidos na provinha. Diante dos
apontamentos a leitura deste material direcionou nosso olhar para a organização do
trabalho docente no cotidiano escolar e nos levou a questão que orienta esta discussão:
Como um instrumento externo vai consolidando as práticas pedagógicas na escola e,
consequentemente, constituindo o trabalho docente.
A Provinha Brasil, foi instituída pela Portaria Normativa nº 10, de 26 de abril de
2007. Tratava-se de um exame em larga escala realizado anualmente pelas turmas de 2º
ano do Ensino Fundamental das redes públicas dos municípios que aderiram a
avaliação. A aplicação acontecia no início e no final do ano letivo, inicialmente era

sumário 471
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

composto apenas pelo teste de leitura, mas em 2011 passou a monitorar as habilidades
de matemática. A primeira edição aconteceu em 2008 e a última em 2016.
Considerando que “a Provinha Brasil é um instrumento pedagógico, sem
finalidades classificatórias, que fornece informações sobre o processo de alfabetização e
de matemática aos professores e gestores das redes de ensino”, conforme apresenta o
site do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira),
refletimos nesse trabalho sobre as implicações dessa avaliação na ação docente, visto
que um dos objetivos propostos é o de fornecer informações aos professores para que
possam desdobrar-se em ações pedagógicas.
Nesse sentido, propomos algumas reflexões esse instrumento e suas implicações
no trabalho pedagógico. Para tanto, lançamos mão dos dados e informações
compartilhados pelo munícipio, pois encontramos algumas pistas que nos ajudam a
refletir sobre as tensões presentes entre as propostas do exame, os desdobramentos
posteriores a aplicação e a atuação docente.

Reflexões sobre a Provinha Brasil e o trabalho docente


No contexto educacional brasileiro as avaliações em larga escala têm induzido e
definido políticas públicas que, por sua vez, interferem no cotidiano escolar e
reverberam sobre o trabalho docente. São instrumentos avaliativos produzidos e
administrados pelo governo, com vistas a atestar a qualidade da educação e para que a
partir dos resultados possam ser elaboradas melhorias nas propostas educativas.
Contudo, faz-se necessária a problematização dos impactos de tais instrumentos no
cotidiano escolar, nas propostas pedagógicas das redes de ensino e, consequentemente,
na ação docente.
De acordo com Fernandes (2009) os esforços em torno das avaliações externas
têm sido maiores do que nas avaliações internas. O autor aponta que na expectativa de
obter dados sobre o que os estudantes sabem e a fim de melhorar a qualidade da
educação, muitos governos tem investido em testes nacionais em larga escala que tem
sido usados para estes fins. Diante deste contexto, coloca em questão as
impossibilidades de as avaliações externas terem esse papel por desconsiderar aspectos
importantes que marcam a aprendizagem. Destaca também as limitações desses
instrumentos para avaliação da aprendizagem. Aborda o quanto tais testes tendem a
empobrecer o currículo e como desempenham uma ação de controle sobre o trabalho
docente.

sumário 472
VII Seminário Vozes da Educação

Geralmente, são testes produzidos externamente sem a ação dos professores, que
no caso da Provinha Brasil apenas aplicavam e corrigiam os testes. Nesse sentido,
desconsiderava-se as características de cada turma, grupo, contexto e as questões sócio
históricas que marcam o processo de desenvolvimento e aprendizagem. Além disso, os
desempenhos obtidos têm sido considerados como resultado do que foi aprendido pelos
estudantes, medida da “eficiência” do trabalho pedagógico e como possibilidade de
atestar a qualidade da educação.
Em nosso país, ao longo dos anos um conjunto de avaliações externas 70 ,
compõem o SAEB71. São testes que tem como fim aferir os níveis de desempenho dos
estudantes, para que partindo dos resultados seja possível ampliar a qualidade na
educação e alcançar a redução das desigualdades. Desse conjunto de testes, temos nos
dedicado ao estudo dos impactos da Provinha Brasil no cotidiano escolar.
A Provinha Brasil, tratava-se de um exame externo com fins de avaliar o nível
de alfabetização das crianças matriculadas no 2º ano do ensino fundamental. Instituído
em 2007 por meio da Portaria Normativa nº 10, de 26 de abril cujos objetivos eram:
• avaliar o nível de alfabetização dos educandos nos anos iniciais do ensino
fundamental;
• oferecer às redes e aos professores e gestores de ensino um resultado da
qualidade da alfabetização, prevenindo o diagnóstico tardio das dificuldades de
aprendizagem;
• concorrer para a melhoria da qualidade de ensino e redução das desigualdades,
em consonância com as metas e políticas estabelecidas pelas diretrizes da educação
nacional (BRASIL, 2007).

Considerando que o exame além e aferir os níveis de alfabetização das crianças


incide também sobre a ação docente, nos dedicamos nesse trabalho à reflexão acerca
dos atravessamentos desse teste que mesmo não sendo de caráter classificatório,
mantinha tal dimensão, ao classificar as aprendizagens infantis em níveis, organizados
hierarquicamente e que de alguma forma traziam/trazem implicações sobre o trabalho
realizado pelas professoras.

70
Exames estandardizados produzidos em larga escala aplicados em todo o país.
71
Sistema de Avaliação da Educação Básica foi criado em 1999 e vem desde então sofrendo
reestruturações. É composto por um conjunto de avaliações externas em larga escala, aplicadas pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas. Testes que pretendem fornecer dados para realização de um
diagnóstico da educação básica e fornecer indicativos da qualidade do ensino.

sumário 473
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Apesar de seus resultados não comporem o Índice de Desenvolvimento da


Educação Básica (IDEB), indicador criado em 2007 para avaliar a qualidade da
educação partindo da articulação dos indicadores do fluxo escolar e o resultado nas
avaliações externas, ainda sim as escolas conviviam com as implicações da aplicação de
um exame externo. O que demandava algumas ações como preparação das crianças para
a realização dos testes, um enfoque curricular orientado pelo que é abordado na
avaliação e uma ação docente voltada para o desenvolvimento das habilidades avaliadas
nesse teste.
Cabe ressaltar que a Provinha Brasil foi criada em articulação a uma das metas
do Plano Nacional de Educação (PNE) que propunha que todas as crianças se
alfabetizassem até os oito anos. Segundo Esteban (2012) ao colocar a alfabetização de
todas as crianças como uma obrigação, reafirma o processo de democratização da
escolarização, mas reascende a tensões quando demarca “parâmetros uniformes de
aprendizagem e desenvolvimento e determina um mesmo tempo para que todos
cumpram o percurso definido como ideal (p 581)”. Considerando-se que o processo de
aprendizagem-ensino é marcado pelas particularidades, especificidades e modos
próprios de aprender ao padronizar os percursos e negar as diferenças que compõem
esse processo mantem-se a lógica da exclusão que impossibilita que a educação seja
democratizada.
As avaliações em larga escala são regidas pelo estabelecimento de metas que
direcionam a ação docente, a fim de superar os desafios propostos. De acordo com
Amaro (2017, p.428) as avaliações em larga escala ganham destaque e tornam-se
mecanismos de controle para que metas sejam atingidas, com objetivos definidos
externamente que pretendem garantir “a efetividade e a qualidade, criando uma lógica
performativa do trabalho docente”. Induzindo a ação docente para uma busca por
resultados melhores numa atmosfera de competitividade, na qual ações de preparação e
treinamento para os testes assumem a centralidade nas práticas pedagógicas.
Em diálogo com essas propostas a Provinha Brasil que tinha a intenção de
avaliar o nível de alfabetização dos educandos e oferecer à rede, aos professores e
gestores um resultado da qualidade desse processo buscando reduzir as desigualdades,
determinava as seguintes ações:

estabelecimento de metas pedagógicas para a rede de ensino; planejamento


de cursos de formação continuada para os professores; investimento em
medidas que garantam melhor aprendizado; desenvolvimento de ações

sumário 474
VII Seminário Vozes da Educação

imediatas para a correção de possíveis distorções verificadas;


melhoria da qualidade e redução da desigualdade de ensino (INEP, 2015,
grifos das autoras).

Colocamos em destaque algumas das ações e desdobramentos propostos pelo


documento que orienta a aplicação da provinha que recaem sobre a ação docente, mas
não indicam de que modo as professoras podem participar de tais ações. Perguntamo-
nos: Afinal, quem define as metas pedagógicas? De que metas estamos falando? Que
propostas e princípios orientarão os cursos de formação? Quais seriam as ações
imediatas para correção das distorções?
Considerando que a proposta do exame é oferecer dados e informações
necessárias para a melhoraria da qualidade do ensino, a ação docente fica em segundo
plano, por mais que com o instrumento pretenda-se auxiliar o trabalho pedagógico, a
nosso ver parecem fincados em uma perspectiva mais prescritiva do que reflexiva. Na
qual a atuação das professoras é um tanto quanto passiva, ocupando muitas vezes
apenas o lugar de executora de ações, sem a devida reflexão sobre as implicações de tal
instrumento na aprendizagem das crianças e sobre o seu fazer.
No material que compõe o kit de aplicação encontramos algumas orientações
sobre a atuação das/dos professoras/professores que nos ajudam na reflexão acerca das
implicações desse instrumento no trabalho docente. No recorte abaixo destacamos
alguns elementos importantes para nos ajudar nesse exercício reflexivo:

Tanto a aplicação quanto a correção da avaliação podem ser realizadas pelo


professor, possibilitando um conhecimento imediato dos resultados da
turma. Compreende-se que as reflexões sobre os resultados oferecidos pela
Provinha Brasil podem colaborar para apoiar as práticas pedagógicas em
sala de aula. (INEP/MEC, 2016, p.4).

A ação docente apresentada neste recorte parece destacar um papel técnico para
esse fazer, cabendo a professora apenas aplicar e posteriormente lançar mão dos
resultados do diagnóstico em um processo no qual não tem interferência, visto que são
testes padronizados que desconsideram os contextos e a complexidade do cotidiano
escolar. Além de desconsiderar que em seu trabalho, a professora está constantemente
avaliando os estudantes e tem informações sobre o processo de aprendizagem de cada
um, quando aponta para eficácia e rapidez dos dados fornecidos pela provinha como
possibilidade de (re) pensar-se as práticas.

sumário 475
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Em outro momento o documento coloca que a avalição traria para ação docente
os seguintes benefícios: Os(as) professores(as) alfabetizadores(as) contarão com um
instrumental valioso para identificar, de forma sistemática, as dificuldades dos
estudantes, o que possibilitará a reorientação sobre o que ensinar e como ensinar
(INEP/MEC, 2016, p.7).
Considerando que os testes da Provinha Brasil estavam focados em algumas
habilidades referentes ao processo inicial da alfabetização, os benefícios acima
dispostos parecem não dar conta da complexidade do processo de aquisição da leitura e
da escrita. Especialmente, quando se propõe a auxiliar a reorientação do trabalho
pedagógico com os dados referentes a avaliação de poucas habilidades, já que “nem
todas as habilidades a serem desenvolvidas durante o processo de alfabetização são
passíveis de verificação por meio dessa avaliação” (INEP/MEC, 2016, p.8).
A Provinha Brasil está fincada em uma perspectiva de avaliação como uma
dimensão técnica, na qual os resultados são dados confiáveis que expressam as
aprendizagens. No entanto, desconsidera as condições sociais, históricas e culturais que
interferem na aprendizagem. Fazendo-nos pensar como diante das limitações de tal
instrumento é possível que a aprendizagem dos estudantes seja beneficiada a partir de
tal diagnóstico, como os dados fornecidos pelos testes ofereciam aos professores
condições suficientes para reorientar o ensino e o ensinar.
Preocupadas com os desdobramentos dessa avaliação em larga escala no
cotidiano escolar e na prática docente, vimos desde 2016 realizando uma pesquisa em
parceria com quatro municípios da região metropolitana do estado do Rio de Janeiro,
constituída de forma dialógica (FREIRE, 1981), na qual buscamos compreender as
relações entre a Provinha Brasil e as práticas alfabetizadoras. Para isso, empreendemos
um estudo das implicações desse instrumento avaliativo no cotidiano escolar,
inicialmente a proposta era acompanhar a aplicação e seus desdobramos nesses
municípios, mas com a extinção do teste, foi preciso rever alguns dos
encaminhamentos.
Inicialmente, solicitamos as SMEs o acesso aos resultados obtidos nos testes
realizados entre 2014 e 2016, bem como aos documentos produzidos pelas Secretarias e
Escolas. Lançando mão dos materiais enviados por um dos municípios, encontramos
possibilidades de refletirmos sobre as implicações e interferências da Provinha Brasil no
trabalho docente. Partimos de alguns recortes dos relatórios encaminhados que nos

sumário 476
VII Seminário Vozes da Educação

oferecem pistas para pensarmos sobre estas questões, no próximo item apresentamos
alguns dos achados da pesquisa e das reflexões por nós tecidas.

Desdobramentos dos resultados da Provinha Brasil e encaminhamentos do


trabalho docente
Foi possível recolher por intermédio da SME, o material referente a Provinha
Brasil de 57, das 101 unidades escolares que ofertavam em 2017 o ciclo de
alfabetização neste município. Após a leitura do material, que buscava reunir os
resultados dos testes 1 e 2 de Leitura e Matemática além de relatórios enviados pelas
escolas, organizamos quatro grupos para estudo72. Neste trabalho nos ocuparemos do
material referente a dois grupos somente, o grupo que nos apresentou análise e
planejamento de ações e o grupo que expôs as ações realizadas por apontarem
informações sobre o desenvolvimento do trabalho docente.
Desse material discutiremos a partir de dois elementos que emergiram das
informações levantadas e que nos permitem pensar sobre a interferência de um
instrumento externo na consolidação do fazer pedagógico no cotidiano escolar: o
reforço de práticas de treinamento tanto do conteúdo exposto na prova como na
realização do próprio instrumento e a não participação da professora no planejamento
das ações decorrentes dos resultados, elementos que denunciam a “perversão da relação
pedagógica” (BARRIGA, 2003).
“Quando a tarefa do exame passa a ser qualificar o desempenho estudantil, deixa
de ser um aspecto do método ligado à aprendizagem e adultera a relação pedagógica ao
centrar os esforços de estudantes e docentes apenas na certificação” (BARRIGA, 2003,
p. 60), destituindo-se assim, o sentido do aprender e do ensinar.
Nas respostas das escolas acerca dos encaminhamentos dados após a correção
da Provinha Brasil, encontramos sugestões e relatos de atividades realizadas como:
“foram replicadas as provas visando a consolidação das aprendizagens” (escola 19);
há “planejamento de atividades com as questões em que ocorreram mais erros na
Provinha Brasil” (escola 14); “[...] foco em leitura e em matemática para realização de
atividades de rotina e reforço paralelo [...]” (escola 26); “no planejamento, buscamos
desenvolver atividades relacionadas aos erros cometidos e dificuldades encontradas

72
Esses quatro grupos foram constituídos em torno de elementos sinalizados pelo material, o que nos
possibilitou defini-los da seguinte forma: a) apuração dos resultados; b) análise e planejamento de ações;
c) ações realizadas e d) plano de estratégias para toda a escola.

sumário 477
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pelas alunas” ( escola 23) e “[...]atividades de revisão e consertos de toda a provinha


refazendo a prova com o objetivo de gabaritá-la – Português e Matemática [...]”
(escola 33). Dados que nos permitem inferir que o instrumento vem materializando na
escola uma compreensão de que se aprende por repetição e, nesse caso, o trabalho
docente se restringe ao treino.
O treinamento não se dá somente no que toca aos conteúdos da prova, mas
também na realização do próprio instrumento, como encontramos na resposta, a seguir
quando a escola afirma reproduzir “[...] exercícios de Provinhas Brasil de anos
anteriores a fim de apropriarem-se do formato das questões; “simuladinho da
Provinha Brasil” (escola 18) e também na resposta dada pela escola 48 que chega a
dizer que “[...] Como os alunos adoram esta provinha, a equipe sempre prepara
atividades similares durante o ano letivo” (escola 48). Enfim, é o instrumento
alterando as práticas pedagógicas na escola, como já assinalado em estudos como os de
Esteban e Fetzner (2015).
Práticas pedagógicas uniformes, crianças e professores compreendidos como
sujeitos apenas reprodutores de tais práticas são sinalizados nas respostas encontradas
em nossa pesquisa, o que corrobora com Amaro (2017) quando nos aponta que os
instrumentos de avaliação externas utilizados como tecnologias políticas não
intencionam apenas promover as mudanças técnicas e estruturais nas escolas, mas
reformar as ações docentes, regulando esse fazer, agindo no que Afonso (2000), definiu
como “desprofissionalização” do professor.
No material recolhido com a SME encontramos ainda descrições dos
encaminhamentos dos resultados na escola que denunciam a redução do trabalho
docente para além da reprodução de práticas repetitivas para o treinamento das crianças,
mas também na falta de participação nas decisões sobre o planejamento de ações a
serem encadeadas. Como é possível perceber nas informações recebidas das escolas 29,
51 e 53: “[...] foi feito uma ‘devolutiva’ aos professores para que os mesmos trabalhem
as questões que não foram muito bem assimiladas[...] (29); “[...]A Orientação
Escolar sempre solicitou que as professoras do ciclo de alfabetização trabalhassem,
periodicamente, com questões como as solicitadas na Provinha Brasil” (51) e “ após
a análise do resultado obtido era feita uma reunião junto com os professores e nesta
eram entregues pela Orientadora da Unidade Escolar as orientações sugeridas para
que cada aluno pudesse superar as dificuldades apresentadas” (Escola 53).

sumário 478
VII Seminário Vozes da Educação

Tais respostas confirmam parte da síntese apresentada por Mortatti (2013)


acerca dos aspectos inalterados no processo de alfabetização escolar no Brasil. De
acordo com a autora, na última década comemoramos a conquista de alguns avanços,
porém junto com eles vimos o agravamento de muitos problemas históricos. No texto,
“Um balanço crítico da ‘década da alfabetização’ no Brasil”, Mortatti destaca a ausência
de discussão sobre a concepção de alfabetização e das políticas educacionais que
fundamentam os sistemas de avaliação que vem sendo implementados em consonância
com o modelo político neoliberal, delineando aprendizagens aos educandos e definindo
a professora como “provedora de estratégias”. Segundo a autora vamos consolidando:

[...] as aprendizagem sem ensino; treinamento no lugar de ensino; atuação


docente como atividade técnica, com o objetivo de prover os alunos de
estratégias para alcançar o sucesso em testes padronizados; formação docente
(inicial e continuada) como processo de aprender (por convencimento, não
por entendimento) a aplicar e a treinar; professor como executor (convencido,
mas não convincente) de políticas públicas e metas globais para a
alfabetização escolar (p. 29).

Em consonância com o que nos diz a autora, encontramos respostas que


sinalizam a função docente como “provedora de estratégias” quando somos informados
de que “os resultados são divulgados para as professoras e as ações sugeridas no próprio
material da Provinha Brasil também. Geralmente utilizamos nossas reuniões
pedagógicas para tais discussões” (escola 32). Diante dessa resposta, parece-nos que à
professora cabe ser informada do que é preciso fazer. Além de receber o resultado da
avaliação sem participar da correção e análise do resultado, recebe também as ações que
por sua vez, são sugestões do próprio material da Provinha Brasil. Contribuindo para
este entendimento, outras respostas caminham na mesma direção:

“o resultado da Provinha Brasil era partilhado com a professora do 2º ano, de


forma, que pudesse visualizar o desempenho da turma e dos alunos
individualmente, após análise das provas também era passado para a
professora as orientações que vem nos manuais da Provinha Brasil, com as
intervenções necessárias à mudança de nível” (escola 51).
“foi feito uma ‘devolutiva’ aos professores para que os mesmos trabalhem as
questões que não foram muito bem assimiladas, apesar que a nossa unidade
escolar sempre obtém bons resultados e, aos responsáveis a devolutiva foi
feita no sentido de ressaltar os resultados, incentivando, elogiando a parceria
da escola e família” (escola 29).

As escolas 23 e 40 também seguem informando a prática de notificar às


professoras sobre o rendimento dos seus alunos, uma prática que revela uma

sumário 479
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

compreensão de trabalho docente alienado, sem reflexão do seu fazer. A escola 23


informa que “As professoras ficam cientes dos conteúdos que as alunas precisam
melhorar e também o que está bem assimilado” (23) e a escola 40 ao descrever suas
ações, comunica a secretaria que socializam os resultados às professoras informando-as
sobre “o entendimento dos mapeamentos e gráficos como instrumentos para estratégias
pedagógicas nas práticas da sala de aula” (40).
Outra questão que apoia a crítica feita por Mortatti (2013) acerca da formatação
da prática docente mediada pelo instrumento e que vai definindo o “processo de
aprender (por convencimento, não por entendimento)” na formação continuada de
professores aparece no registro da escola 44 quando destacam que “as professoras
reconhecem a formação do PNAIC como essencial para o desenvolvimento do
trabalho em sala de aula”. Também acreditam que “o resultado é devido ao trabalho
diferenciado e atendimento individualizado aos que apresentam mais dificuldades na
compreensão ou ao assimilar alguns conteúdos”. Mas, “verificam que apesar de
desenvolverem habilidades que definem o aluno como alfabetizado,
encontramdificuldades em interpretação, por exemplo”. O que nos leva a questionar
se esse reconhecimento dado ao PNAIC está efetivamente sobre o trabalho
desenvolvido e as concepções que o sustentam ou se o que reconhecem é a necessidade
de abrir espaço para de alguma forma, refletir sobre a sua prática?
Pelo exame, vamos vendo consolidar práticas pedagógicas no cotidiano escolar
que deformam a relação pedagógica. À professora cabe a devolutiva do resultado,
esperando que ela coloque em ação estratégias apresentadas pelo próprio material
modificando o trabalho docente e expropriando da professora a reflexão do seu fazer,
como nos sinalizou Barriga (2003) ao apresentar o professor como “operário de
programas preestabelecidos que desconhece seu saber” (BARRIGA, 2003, p. 75).
Desconhecendo seu saber e seu fazer acreditam estarem desempenhando seu trabalho
quando estão organizando suas aulas em função do exame, preparando simulados,
refazendo os testes.

Considerações Finais

Enfim, com a pesquisa e reflexões produzidas a partir dos materiais


encaminhados pela SME vimos apreendendo que muitos são os atravessamentos dos
exames de larga escala no cotidiano escolar. Compreendemos que a Provinha Brasil nos

sumário 480
VII Seminário Vozes da Educação

anos em que foi aplicada além de desdobrar-se nas políticas públicas, incidia
diretamente no trabalho pedagógico e nas práticas alfabetizadoras.
Como debatemos ao longo do texto a ação docente e as escolhas pedagógicas,
mesmo que de forma indireta mostraram-se atreladas as propostas e concepções que
constituíam este teste. Destacamos em nossas ponderações o quanto o trabalho das/dos
professoras/professores veio sendo marcado pelos exames, como neste caso a Provinha
Brasil. Em uma relação na qual ocupam o lugar de quem executa as tarefas, tem sua
autonomia desconsiderada, bem como o contexto social, cultural e histórico que
marcam o processo de aprendizagem e ensino não são levados em conta, quando se
pretende enquadrar todos os estudantes brasileiros nos moldes esperados pelos testes
nacionais.
Diante desse contexto entendemos ser necessário manter-nos em pesquisa, pois,
com as pistas encontradas nos materiais e as reflexões que produzimos a partir delas,
compreendemos que há ainda muito o que se problematizar sobre as implicações dos
exames nacionais e seus desdobramentos no fazer pedagógico, modos de aprender e na
configuração do cotidiano escolar. Seguimos no diálogo com os munícipios parceiros,
buscando compreender as implicações desse instrumento avaliativo no trabalho
pedagógico.
Compreendendo, na interlocução com Freire (1986) de que a prática não é
neutra, ela se constitui e filia a determinadas concepções teórico-epistemológicas ora de
forma mais explicita ora menos. Nesse sentido, temos percebido o quanto os princípios
que norteiam os exames do sistema nacional de avaliação têm também influenciado o
trabalho pedagógico, especialmente quando se articula a proposta de um currículo
único, determinadas metodologias são eleitas como as melhores e orientam-se numa
perspectiva classificatória, fundada na meritocracia.
Seguimos acreditando que o fazer docente poderia ganhar sentidos outros se
constituído de forma dialógica, coletiva, solidária, não competitiva e buscasse
potencializar os processos de ensino e aprendizagem. Um fazer que se constitua com
autonomia, no qual a/o professora/ professor possam ser autores de sua prática,
desenvolvendo-a de forma reflexiva e partilhada com os sujeitos com os quais
compartilha o cotidiano escolar.
Com esse texto, intencionamos compartilhar as reflexões que vimos tecendo ao
longo da pesquisa e, sobretudo apontar a necessidade de ampliarmos a discussão
problematizando a relação entre a prática pedagógica e as avaliações em larga escala.

sumário 481
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Entendendo que é preciso refletir sobre essas questões e muitas outras que versam sobre
essa temática continuamos em parceria com os municípios e demais interlocutores
discutindo os impactos da Provinha Brasil no cotidiano escolar.

Referências
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2000.

AMARO, I.Avaliação em larga escala e trabalho docente: da lógica eficientista à lógica


contrarregulatória. In: Quaestio, v. 19, n. 2, p. 417-436, Sorocaba, 2017.

BARRIGA, Angel Diaz. Uma polêmica em relação ao exame: In: ESTEBAN, Maria
Teresa (Org.). Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. 5. Ed. Rio de
Janeiro: DP&A, 2003.

BRASIL. Portaria Normativa nº 10, de 26 de abril de 2007.

ESTEBAN. M. T. Considerações sobre a política de avaliação da alfabetização:


pensando a partir do cotidiano escolar. In: Revista Brasileira de Educação v. 17 n. 51,
2012.

ESTEBAN, T. M. & FETZNER, R. A, A redução da escola: A avaliação externa e o


aprisionamento curricular. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, Ed. Especial nº
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FERNANDES, D. Avaliar para aprender: fundamentos, práticas e políticas. São


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FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 9° edição, 1981.

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Disponível em: http://portal.inep.gov.br/provinha-brasil. Acessado em: 20 de set.2019.

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MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Um balanço crítico da "Década da


Alfabetização" no Brasil. Cad. CEDES, Campinas, v.33, n.89, p.15-34, 2013.

sumário 482
VII Seminário Vozes da Educação

NARRATIVAS DE MEMÓRIAS NA EJA A PARTIR DO LITERÁRIO

Laís Lemos Silva Novo Pinheiro


UERJ-FFP
laislemosnovo@hotmail.com

1. Palavras Iniciais
A narrativa de memórias na Educação de Jovens e Adultos (EJA) mobiliza
processos de reflexão e construção de saberes em partilha. O trabalho com as memórias
discentes através de suas narrativas de vida em diálogo com a leitura de textos literários
colabora para um movimento de (trans)formação de todos os envolvidos nesse processo
de letramento literário, que é uma prática social envolvendo construção de sentido.
Considera-se que, através das memórias dos leitores, o entendimento e a
aproximação com a história do livro se torna mais próxima deles. Assim sendo, o
presente artigo tem por objetivo uma conversa mutualística entre a leitura literária, a
narrativa de memórias e o público da EJA. Desta forma, contribui-se para a formação
estética do aluno, além de favorecer a formação e o reconhecimento da identidade dos
sujeitos da Educação de Jovens e Adultos e facilitar a aproximação com o texto
literário, com atribuições de sentidos a partir de suas histórias de vida. Tem-se, portanto,
um diálogo entre saberes formais e informais constituídos dentro e fora do ambiente
escolar.
Espera-se, com isso, facilitar o (auto)entendimento e aproximar duas histórias: a
história da vida real e a história contada na literatura. Importa refletir e reconhecer a
relevância de uma aprendizagem envolvendo o contato real com textos literários, a
partir da temática do resgate de memórias e não apenas fragmentos utilizados para fins
gramaticais. Para tanto, impera conhecer o público da Educação de Jovens e Adultos,
com o intento de pensar ações pedagógicas adequadas e que valorizem seus
conhecimentos prévios, suas experiências.

2. Educação de Jovens e Adultos (EJA)


Ao longo da história da Educação no Brasil, tem-se o conhecimento de
várias ações governamentais e iniciativas de caráter comunitário destinadas à

sumário 483
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

modalidade de Jovens e Adultos. Contudo, ainda é imensa a lacuna que permanece


nesse setor educacional, que carece de pesquisa, reflexão e ação.
O perfil do aluno da Educação de Jovens e Adultos (EJA) vai muito além do que
preconiza a LDB 9.394/96 em seu artigo de número 37, que caracteriza a Educação de
Jovens e Adultos como sendo composta por alunos que não tiveram acesso ou
continuidade aos estudos na idade própria. São histórias de vida plurais e heterogêneas,
muitas vezes marcadas por constantes dissabores e que não cabem nos documentos
oficiais. Histórias estas que podem ter sido reflexo das circunstâncias de vida que
fizeram com que tais pessoas não tivessem acesso aos estudos ou que os
descontinuassem.
Conhecer e entender o alunado da EJA é de extrema importância para não
colaborar com a consolidação de um ensino homogêneo. Tradicionalmente, a escola
vem carregando a marca organizacional imposta por critérios seletivos embasados na
concepção da homogeneidade do ensino, o que, por conseguinte, faz com que alguns
estudantes, em especial os alunos da EJA, sejam rotulados, não considerando as
subjetividades no processo de ensino-aprendizagem. O aluno que não se enquadra nesta
abordagem, fica à margem da escolarização, avolumando, assim, as desigualdades
sociais.
A falta de acesso ou mesmo a interrupção da educação formal costuma fazer
parte de uma trama social mais complexa do que tão somente a educativa, podendo
implicar pobreza, violência, marginalização ou discriminação (UNESCO: 2014, p. 119).
Piconez (2003, p. 11) esclarece que a educação escolar dos jovens e adultos se torna
mais complexa, ao passo que demanda a necessidade de se considerar “outras
dimensões (social, econômica, política e cultural)” que encontram-se atreladas às
vivências desses sujeitos. A esse respeito, Silva (2009) expõe que:

Lançando um olhar mais atento em torno da EJA, pode-se perceber, hoje, a


heterogeneidade do alunado presente na sala de aula. São homens e mulheres,
jovens e adultos, negros e brancos, empregados e desempregados ou pessoas
em busca do primeiro emprego e pessoas deficientes, em sua maioria
moradores de comunidades periféricas dos grandes centros urbanos e em
busca da escolaridade como possibilidade para a melhoria da sua condição
socioeconômica e cultural (SILVA: 2009, p. 62).

Os alunos da EJA da rede pública de ensino são, em sua maioria, trabalhadores


proletariados, desempregados, jovens, idosos, donas de casa, mulheres que
engravidaram muito cedo, portadores de deficiências. Enfim, são alunos com diferentes

sumário 484
VII Seminário Vozes da Educação

culturas, faixas etárias, etnia, crenças e objetivos pessoais e/ou profissionais. Há casos
também de alunos que migram do Ensino Regular diurno para a EJA noturna, por
diversos motivos, como indisciplina, repetência e finalidade de concluir os estudos mais
rápido devido ao sistema de conclusão por semestre na EJA. Assim, a modalidade da
EJA, muitas vezes, é vista também como um depósito de alunos, o que colabora mais
ainda para sua desvalorização e discriminação.
A EJA tem como forte característica o convívio com as diferenças. São sujeitos
que já carregam consolidadas experiências de vida, diferente das crianças e dos
adolescentes que iniciam sua formação em concomitância à vivência escolar. Desta
forma, o segmento da EJA está muito mais susceptível às diversidades do que a
modalidade de Ensino Regular que se utiliza do critério por faixa etária para nortear a
seriação dos alunos (HADDAD, DI PIERRO: 2000). Na Educação de Jovens e Adultos,
inexiste idade estável por série, fator que amplia o desafio em lidar com o perfil da EJA,
já que fazem parte da mesma classe alunos de 15 anos e alunos de 80 anos, por
exemplo.
De acordo com Arroyo (2005, p.24-25), os jovens e adultos não “paralisaram os
processos de sua formação mental, ética, identitária, cultural, social e política” mesmo
que tenham estacionado o processo de escolarização e precisam ser reconhecidos como
sujeitos que são protagonistas de suas histórias de vida. Para o autor, “os jovens-adultos
populares não são acidentados ocasionais que, gratuitamente abandonaram a escola.
Esses jovens e adultos repetem histórias longas de negação de direitos. Histórias que
são coletivas.” (Ibidem)
Paulo Freire (1989), por sua vez, considera que as múltiplas vivências dos
discentes da EJA permitem ao professor vislumbrar possíveis caminhos para se alcançar
uma aprendizagem significativa, desde que se valorizem suas trajetórias e que sejam
reconhecidos como autoresde suas próprias histórias. A leitura da vida, precede a leitura
escolarizada, pois “a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo,
mas por uma certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de ‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transformá-
lo através de nossa prática consciente.” (FREIRE: 1989, p.13).
Pensar os educandos da EJA é trabalhar com e na diversidade, é incluir a todos
nas suas especificidades, sem, contudo, comprometer o respeito à diversidade garantido
pela Constituição:

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Pensar sujeitos da EJA é trabalhar com e na diversidade. A diversidade se


constitui das diferenças que distinguem os sujeitos uns dos outros –
mulheres, homens, crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos, pessoas
com necessidades especiais, indígenas, afrodescendentes, descendentes de
portugueses e de outros europeus, de asiáticos, entre outros. A diversidade
que constitui a sociedade brasileira abrange jeitos de ser, viver, pensar — que
se enfrentam. Entre tensões, entre modos distintos de construir identidades
sociais e étnico-raciais e cidadania, os sujeitos da diversidade tentam dialogar
entre si, ou pelo menos buscam negociar, a partir de suas diferenças,
propostas políticas. Propostas que incluam a todos nas suas especificidades
sem, contudo, comprometer a coesão nacional, tampouco o direito garantido
pela Constituição de ser diferente (BRASIL: 2008, p. 1).

Assim sendo, levando em conta as primeiras considerações acerca da Educação


de Jovens e Adultos, destaca-se a necessidade de optar por uma perspectiva que
contemple a EJA para além da teoria e dos estereótipos.

3. A importância da Literatura
O ensino de literatura deve, portanto, propiciar um diálogo profícuo entre a
leitura do texto e a leitura da própria vida, propiciando momentos de identificação com
o lido, de reminiscências e de interpretação a partir de uma temática próxima à realidade
dos alunos, como suas histórias de vida, suas memórias. Desta maneira, é possível
vislumbrar a tentativa de uma ação pedagógica efetiva direcionada ao público da EJA,
de modo a valorizar não só a história dos livros, mas também as histórias e as
experiências dos discentes jovens e adultos.
A literatura precisa ser concebida enquanto um conhecimento específico do
humano, constituindo-se como um direito inalienável a ser ofertado ao aluno,
independentemente de sua condição social, econômica etc. (CANDIDO: 1995).
Para Candido (1995), a questão dos Direitos Humanos é uma necessidade que
ultrapassa tão somente a aquisição de bens materiais, como alimentação e moradia,
buscando alcançar a coletividade. Concernente a este assunto, o teórico discorre que:

A este respeito é fundamental o ponto de vista de um grande sociólogo, o


padre dominicano Louis Joseph Lebret, fundador do movimento Economia e
Humanismo. [...] Penso na sua distinção entre ‘bens compressíveis’ e ‘bens
incompressíveis’, que está ligada a meu ver com o problema dos direitos
humanos, pois a maneira de conceber a estes depende daquilo que
classificamos como bens incompressíveis, isto é, os que não podem ser
negados a ninguém. (CANDIDO: 1995, p. 173).

Os bens incompressíveis seriam o alimento, a casa e a roupa, e os bens


compressíveis os cosméticos, os enfeites e as roupas supérfluas. Ao considerar os bens

sumário 486
VII Seminário Vozes da Educação

incompressíveis fundamentais à vida, Candido considera a leitura como tal e, logo, parte
integrante do rol dos outros direitos humanos, como “a alimentação, a moradia, o
vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a
resistência à opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que
não, à arte e à literatura.” (Ibidem, p. 174) Nesse sentido,

A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita


sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos
sentimentos e à visão de mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e
portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa
humanidade” (Ibidem, p. 256).

Essa função humanizadora da literatura é ressaltada em A Literatura e a


formação do homem, de Antonio Candido (2002). De acordo com essa perspectiva, o
estudo da função da obra literária ultrapassa seus limites estruturais e considera o valor
que a obra representa para o público leitor. Portanto, expande-se a literatura como força
humanizadora, não fechada como sistema de obras, mas como algo que exprime o
homem e dialeticamente atua na própria formação do homem.
Posto isto, a literatura insurge como fundamental na vida e na escola de maneira
interligada e dialética, como necessária e como direito do ser humano. Nesse sentido,
Lajolo (1994) enfatiza que é à literatura, enquanto linguagem e instituição, que se
confiam os diversos imaginários, sensibilidades, valores e comportamentos por meio
dos quais a sociedade reflete sobre seus impasses, desejos e utopias. Segundo Todorov
(2009):

A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos
profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres
humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos
ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para
com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso,
nos transformar a cada um de nós a partir de dentro (TODOROV: 2009, p.
76).

Essa (trans)formação a partir de dentro se dá também através das narrativas de


suas próprias memórias, suscitando reflexão ante o lido e o aprendido e ante eles
mesmos. Daí a relevância do diálogo entre os alunos da EJA, a literatura e as narrativas
de suas memórias.

sumário 487
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

4. Narrativas de Memórias
Levando-se em consideração o até aqui exposto, é possível reconhecer que, se as
memórias são acumuladas com o tempo, quanto mais tempo de vida se tem, mais
memórias são aglomeradas. Portanto, em termos educacionais, o público discente da
Educação Básica que, possivelmente, acumula mais experiência de vida é o da
modalidade EJA, com jovens, adultos e idosos. Esses alunos transbordam as mais
diversas histórias de vida. Na maioria das vezes, são exatamente essas histórias tão
peculiares a causa do abandono dos estudos em certos momentos de suas vidas.
Ao retornarem aos bancos escolares, voltam carregados de sonhos, expectativas
e esperança, mas também voltam cheios de histórias pelas quais passaram e os fizeram
chegar onde chegaram e procurar nos estudos novos horizontes. Nesse momento, esses
alunos percebem pontos de convergência entre suas histórias e as histórias dos demais
colegas.

Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva.


Nossos deslocamentos alteram esse ponto de vista: pertencer a novos grupos
nos faz evocar lembranças significativas para este presente e sob a luz
explicativa que convém à ação atual. O que nos parece unidade é múltiplo.
Para localizar uma lembrança não basta um fio de Ariadne; é preciso
desenrolar fios de meadas diversas, pois ela é um ponto de encontro de vários
caminhos, é um ponto complexo de convergência dos muitos planos do nosso
passado (BOSI: 1994, p. 413).

A memória é resgatada para atender uma função social e o que parece ser
individual passa a fazer parte do coletivo. Estimular a percepção estética e pessoal do
aluno da EJA que carrega várias histórias de vida, as quais, quando compartilhadas,
podem propiciar reflexão e tornarem-se ensinamentos. É preciso entender que o resgate
das memórias envolve fundamentalmente situações sociais de contato com o outro e
nada melhor para incitar esse fluir de narrativas de vivências do que a leitura de um
texto literário que verse sobre essa temática ou que simplesmente a possibilite.
De acordo com Ecléa Bosi (1994), em Memória e Sociedade – lembranças de
velhos, a recriação do passado feita por pessoas simples, testemunhas vivas da história,
é diferente da versão oficial que se lê nos livros, é um coro comovente e afetivo.
Através da memória dos leitores, o entendimento e a aproximação com a história do
livro se torna mais próxima. A autora afirma que a memória não é apenas sonho, mas
trabalho. Relembrar em conjunto é um ato de reconstrução da memória de maneira

sumário 488
VII Seminário Vozes da Educação

compartilhada, construindo laços derelacionamento entre os indivíduos, envolvidos em


uma bagagem cultural comum.
Ecléa Bosi (1994) se debruça no entrelaçamento dos fios do lembrar e do narrar.
A autora escuta atentamente a narração de lembranças dos mais experientes e aponta
para o fato de que como tais lembranças estão inseridas em uma memória histórica e
que ecoam as vozes de grupos sociais. Bosi reflete acerca de aspectos da memória
baseados em narrativas de histórias de vida, como por exemplo, a divisão social do
tempo, o significado dos espaços e das lembranças familiares, a força do afeto e as
marcas econômico-político-sociais. Narrar as lembranças é uma função social, pois, no
ato de narrar, os atos do passado se matizam e o sujeito se volta para a própria vida,
inscrevendo-se na história. Lembrar e narrar se retroalimentam.
De acordo com Walter Benjamin (1994: p. 197-198): “são cada vez mais raras as
pessoas que sabem narrar devidamente[...] É como se estivéssemos privados de uma
faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar
experiências.” Daí a importância da proposta deste estudo de valorizar as narrativas de
memórias discentes.
Segundo Olga Von Simson (2003, p. 14), a memória é a capacidade humana de
reter as experiências e os fatos do passado e retransmiti-los às novas gerações através de
diferentes suportes empíricos, como a voz, a música, as imagens e os textos. De acordo
com a autora, existe memória individual e coletiva. A memória individual “é aquela
guardada por um indivíduo e se refere às suas próprias vivências e experiências, mas
que contém também aspectos da memória do grupo social onde ele se formou, isto é, no
qual esse indivíduo foi socializado.” Já a memória coletiva “é aquela formada pelos
fatos e aspectos julgados relevantes pelos grupos dominantes e que são guardados como
memória oficial da sociedade mais ampla” e expressa em memoriais, monumentos,
murais, bibliotecas, arquivos e obras literárias e artísticas “que exprimem a versão
consolidada de um passado coletivo de uma dada sociedade.” (Ibidem, p. 15)
Von Simson (2003, p. 15) acrescenta que existem ainda as memórias
subterrâneas ou marginais “que correspondem a versões sobre o passado dos grupos
dominados de uma dada sociedade.” Geralmente, estas memórias não se encontram
monumentalizadas e muito menos gravadas em suportes concretos como textos,
fotografias, vídeos, obras de arte e “só se expressam quando conflitos sociais as evocam
ou quando os pesquisadores que se utilizam do método biográfico ou da história oral
criam as condições para que elas emerjam e possam então ser registradas e analisadas.”

sumário 489
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

(Ibidem) Após esse processo, elas passam a fazer parte da memória coletiva de uma
dada sociedade.

Essas memórias subterrâneas geralmente se encontram muito bem guardadas


no âmago de famílias ou grupos sociais dominados nos quais são
cuidadosamente passadas, de geração a geração, através de relatos, músicas,
quadras poéticas, ocasiões em que os membros do grupo se auxiliam
mutuamente na tarefa de relembrar, cada um contribuindo com detalhes que
detonam processos rememorativos dos outros participantes. É o que
denominamos uma construção compartilhada da memória (Ibidem).

A memória não se reduz ao simples ato de recordar. A memória individual é


importante na construção da memória coletiva e vice-versa, visto que História, tempo e
memória são processos interligados. A construção compartilhada da memória permite
valorizar as histórias de pessoas simples que se veem representadas através de fatos
narrados do tempo passado, de um tempo que passou, mas que permanece vivo na
memória e que a cada vez narrado assume novos contornos, formas e sentidos. A
memória presentifica um tempo passado, agora ressignificado e povoado de novas
lembranças. Nesse sentido, Ecléa Bosi alerta que:

A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à


nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa
consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato
antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque
nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e,
com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato
de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de
um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista (BOSI:
1994, p.55).

Conforme adverte Lowenthal (1998, p. 74), a memória “não é menos residual do


que a história. Por mais volumosas que sejam nossas recordações, sabemos que são
meros lampejos do que já foi um todo vivo.” Ele ainda adverte que “não importa quão
vividamente relembrado ou reproduzido, o passado se torna progressivamente envolto
em sombras, privado de sensações, apagado pelo esquecimento.” Entretanto, às vezes, é
necessário regressar para prosseguir, lembrar para não esquecer. Olga Von Simson
colabora ao dizer que:

É verdade que nós não nos lembramos de tudo o que aconteceu ou que nos
foi ensinado ao longo de nossa vida. Descartamos a maioria das experiências
vivenciadas e só retemos aquelas que possuem significado, isto é, são
funcionais para nossa existência futura. Iuri Lotman um semiólogo falecido
na segunda metade dos anos 90, que viveu atrás da Cortina de Ferro (sendo

sumário 490
VII Seminário Vozes da Educação

por isso suas obras pouco conhecidas entre nós), já dizia que cultura é
memória, pois é a cultura de uma sociedade que fornece os filtros através dos
quais os indivíduos que nela vivem podem exercer o seu poder de seleção,
realizando as escolhas que determinam aquilo que será descartado e aquilo
que precisa ser guardado ou retido pela memória, porque, sendo operacional,
poderá servir como experiência válida ou informação importante para
decisões futuras (VON SIMSON: 2003, p. 15-16).

A partir do momento em que esses apontamentos são associados à Educação de


Jovens e Adultos, é perceptível a importância em se considerar as memórias e as
experiências desses alunos a fim de se vislumbrar um processo de ensino-aprendizagem
mais de acordo com as reais necessidades e expectativas do alunado dessa modalidade
de ensino que carece de ações mais originais do que tão somente a reprodução adaptada
do currículo do Ensino Regular.
Ecléa Bosi (1994: p. 81) fala sobre a memória como função social, é o momento
de desempenhar a função da lembrança, em que cresce a nitidez e o número das
imagens de outrora. Ela alerta para o fato de não confundir a vida atual com a que já
passou e de reconhecer as lembranças e opô-las às imagens de agora. É, pois, um
equilíbrio entre presente e passado, interferindo diretamente na construção daidentidade
do sujeito. Quando as memórias resgatadas no tempo presente são valorizadas, os
sujeitos podem experimentar um fortalecimento de sua autoestima e a reafirmação de
sua identidade.
Conforme assinala Sarlo (2007, p. 25), “a narração da experiência está unida ao
corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do passado (...) A narração
também funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se
atualizar.” Além disso, a cada leitura de textos que versam sobre temáticas de suas
vidas, os sujeitos resgatam suas memórias que tornam a se atualizar. Neste sentido,
surge uma relação orgânica entre memórias e identidade. Velho (1994, p. 103-104)
aponta que “o sentido de identidade depende em grande parte da organização desses
pedaços, fragmentos de fatos e episódios separados.” O autor acrescenta que é um
processo “dinâmico e é permanentemente reelaborado, reorganizando a memória do
ator, dando novos sentidos e significados, provocando com isso repercussões na sua
identidade.”
Valorizar e estimular a narrativa das histórias de vida dos alunos da EJA permite
o emergir de ressonâncias dentro desses sujeitos, permite o retorno à antiga casa do
passado reinventada para a morada da saudade e da reflexão do adulto. Associar as
histórias de vida às histórias lidas nos livros garante o exercício da oralidade e da

sumário 491
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

leitura, tanto da expressão oral das próprias histórias dos alunos quanto da leitura que
eles fazem de si mesmos e de suas histórias, além da leitura silenciosa e em voz alta dos
textos literários selecionados. Há, portanto, um diálogo entre saberes formais e
informais.
Em total consonância com os pressupostos desse estudo, Porto (2011) trata
poeticamente da leitura que suscita várias leituras e reverbera memórias de quem a lê,
provocando um olhar de si ante a escrita do outro e, logo, um entrelaçar de linhas entre
a história escrita e a história de quem lê.

(...) algumas palavras surgidas como manifestações da memória são como


fotografias, ainda que reveladas ou aparentemente desbotadas, apagadas,
continuam guardando dentro de si um mistério, e esse mistério de quem as vê
desvela o oculto do olhar, desvelando de uma janela para a alma a fresta ou
um vasto para o re-encantamento do mundo. Assim é para o leitor a leitura,
um agente de mudanças com suas muitas possibilidades de olhar e de ser
outrem para além do dizível e do crível às primeiras linhas. O leitor invade as
entrelinhas quando não guiado por um discurso monológico que, ao
dogmatizar a narrativa, fecha a potencialidade que há na interação do leitor
com as vozes do texto. Por isso, a cada leitor é dada uma chave do mistério
ou um molho de chaves do mistério (PORTO: 2011, p. 198).

As linhas dos livros e as linhas do tempo se entrecruzam, originando


experiências, sentimentos, saberes e temporalidade reunidos em um espaço de
reflexividade cognitiva, propedêutica e afetiva, por meio de novas práticas pedagógicas
que contemplem e valorizem a realidade das situações vivenciadas pelos discentes em
diálogo com os demais conteúdos escolares. Promover as narrativas de memórias dos
sujeitos da EJA a partir das histórias dos livros constitui uma forma de favorecer o
letramento literário, contribuindo para a formação ética e estética do aluno.
Ao narrarem suas histórias de vida, os alunos da EJA se percebem como sujeitos
ativos e refletem a respeito dos fatos narrados, contribuindo, assim, para construção e
reafirmação de suas identidades. O constante dialogar com o texto literário promove um
entrelaçar de histórias, fortalecendo a autoestima e desenvolvendo as competências
literárias. São histórias de livros que refletem histórias de vida e histórias de vida
revisitadas a partir de histórias de livros. Tudo isso proporcionado através das
estratégias de letramento literário.

sumário 492
VII Seminário Vozes da Educação

5. Letramento Literário
Rildo Cosson (2014) define letramento literário como sendo uma prática social
e, como tal, responsabilidade da escola. Para ele, a questão a ser enfrentada não é se a
escola deve ou não escolarizar a literatura, mas sim como fazê-lo sem descaracterizá-la
e torná-la um simulacro de si mesma que mais nega do que confirma seu poder
humanizador.
Maria Cecília Mollica e Marisa Leal (2009), em Letramento em EJA, destacam a
necessidade de práticas educacionais pelo viés do letramento para turmas da Educação
de Jovens e Adultos, devido ao fato de esta modalidade de ensino ser recebedora de
sujeitos que ora estão na condição de discente nas salas de aula ora estão ativamente
inseridos em várias atividades na sociedade. (2009, p. 12-13) O perfil do aluno da EJA é
aquele que já se encontra inserido no mercado de trabalho, ou é responsável por sua
família ou ainda ocupante das mais variadas funções em instituições sociais. De acordo
com Mollica e Leal (2009), “os indivíduos jovens e adultos desenvolvem estratégias, ao
longo da vida, pela experiência, advinda de necessidades básicas do mundo do trabalho,
pela necessidade de interagir com os diferentes contextos sociais.” (Ibidem, p. 57)
Miriam Zappone (2007) colabora, ainda, ao dizer que a literatura pode interferir
na vida do indivíduo e em sua forma de agir em sociedade. Ancorada nas ideias de
Street (1984), a autora define letramento literário como sendoum conjunto de práticas
sociais que utilizam os diferentes domínios: textos literários, filmes, novelas, anedotas,
contação de histórias, mídias, enfim, os vários domínios da vida.
Embora o letramento literário não se restrinja às experiências com o texto
literário na esfera escolar, é nela que se encontra o foco de pesquisas como esta que
buscam um ensino de literatura voltado para as práticas sociais dos alunos. O objetivo
maior do letramento literário escolar ou do ensino de literatura na escola é formar
leitores capazes de construir novos sentidos para si e para o mundo que os cerca a partir
de uma experiência de leitura crítica e reflexiva do texto literário.

6. Considerações Finais
Por fim, é reconhecida a importância da associação entre o lido e o vivido,
permitindo maior aproximação com o texto literário e estímulo a pesquisas, por parte
dos alunos, de outros textos de escritores com os quais mais se identificarem. Isso
contribui para a formação ética e estética dos alunos.

sumário 493
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Como visto, especificamente o público jovem e adulto possui características


muito peculiares e se torna necessário considerar as diferenças existentes sem estigmas
de exclusão. As turmas da EJA carecem de práticas pedagógicas em concordância com
suas realidades, com suas reais necessidades, a fim de que os alunos encontrem sentido
nas tarefas e atividades realizadas e sintam-se valorizados.
Assim sendo, pensar estratégias de letramento literário a partir do trabalho com
narrativas de memórias discentes garante uma progressiva aprendizagem não só em
melhorias da fluência leitora, mas também em termos de interpretação e entendimento,
compreendendo os significados da escrita e da leitura literária, apropriando-se em
contextos sociais. Desta maneira, emerge um diálogo entre a leitura de textos da
literários e o fortalecimento da autoestima dos sujeitos da EJA através do resgate de
suas memórias por meio de suas narrativas.
Espera-se, com isso, aliar saberes informais, como conhecimento de mundo e
experiências/vivências; e saberes formais, como conhecimento mais sistemático e
proficiência leitora, através de práticas sociais adequadas à modalidade de ensino a que
se destina. Um desafio que tem por benefícios a construção e a reafirmação de
identidades; o estabelecimento de relações de afeto e de fortalecimento da autoestima
através da valorização das histórias de vida dos alunos da EJA; a formação estética; o
potencial das narrativas no âmbito educacional; a ampliação da compreensão do
processo de leitura de textos literários em turmas de jovens e adultos e a possibilidade
de (trans)formação social.

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VII Seminário Vozes da Educação

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sumário 496
VII Seminário Vozes da Educação

EDUCAÇÃO INTEGRAL: UMA LEITURA TRANSDISCIPLINAR

Clarissa Moura Quintanilha73


UERJ
clarissa_quintanilha@hotmail.com

Juliana Godói de Miranda Perez Alvarenga74


UFF
julianagodoym_perez@hotmail.com

Introdução
O movimento de “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1994) faz
surgir as narrativas docentes que fogem o discurso oficial desvelando a densidade da
tensão existente entre as marcas individuais e as marcas dos coletivos da profissão,
apontando que para uma nova epistemologia. Para nós, essa relação aponta para uma
nova compreensão de construção de conhecimento uma teoria em que o sujeito tenha no
ato de narrar a potência de ressignificar o passado a luz das experiências. Ao
focalizarmos as experiências-formadoras na implantação desse novo modelo de atuação
docente, evidenciamos asspectos até então negligenciados.
Nesse sentido, a construção de espaços de formação de professores que perpasse
o campo da narrativa, possibilitam uma ampla discussão da formação hoslítica do
docente. A abordagem de estudo vinculada às entrevistas/conversas (auto)biográficas
vem possibilitando o teor de conversa, tomando como referência o conceito de
memória-vida (BRAGANÇA, 2012) para direcionar os caminhos do trabalho,
proporcionado pela abordagem de trabalho a abertura para novos questionamentos que
potencializam as narrativas dos sujeitos como um espaço de formação.
Para falar do espaçotempo da pesquisa é necessário entender alguns pontos. A
importância de se falar da formação dos professores que lecionavam no ambiente de
trabalho da escola integral, que com o passar do tempo, percebem-se como parte da
história da educação, e consolidar a formação para uma proposta transdiciplinas sobre a
docência, por se tratar da finalidade da narrativas nas trajetórias de vida e formação
com maior implicação dentro do tempoda comunidade escolar. Contudo buscamos

73
Doutoranda em Educação/ UERJ; Bolsista FAPERJ.
74
Doutorando em Educação/ UFF; Professora Adjunta da FAFIMA

sumário 497
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

apontar o entendimento relativo à atuação e reflexão dos profissionais sobre suas


práticas, mostrando no trabalho a diversidade de formaçõesexperiências e perspectivas,
de maneira a realizar um sobrevoo no cotidiano escolar.
Outro ponto discorre de como vem sendo dinamizado esse processo no dia a dia
escolar. Nesse sentido, começaram a efervescer essas discussões no cotidiano, fazendo
com que se desdobrasse como o principal problema da pesquisa de compreender o
processo formador vivido pelos docentes do tempo formador (PINEAU, 2004).
A trajetória dos docentes nessa conjuntura veio mostrar que, consequentemente,
esse movimento configurou-se em um posicionamento político; trata-se de uma luta
para conseguir tempo legítimo para fazeres docentes antes negligenciados.

Levantamento histórico: diálogos possíveis entre a teoria transdicplinar e a


educação integral
O contexto de nossa Educação de Tempo Integral está baseado nas experiências
de Anísio Teixeira na década de 1950 e, posteriormente, com Darcy Ribeiro na década
de 80. Entretanto, devemos considerar que ambos os momentos contavam com um
processo de escolarização muito tardio, visto que, a Educação para todos, como um
direito previsto na Constituição, só foi legitimado a partir do movimento dos Pioneiros
da Educação, em 1932.
A experiência dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), viabilizada
por Darcy Ribeiro, contemplando um projeto de Educação Integral no século XX,
retoma a discussão realizada por Anísio Teixeira. A proposta de Educação nos remete a
um processo já bem conhecido em outros países como França e Estados Unidos que
propõem uma jornada escolar ampliada para os educandos.
Anísio como o grande investidor nos estudos sobre Educação das classes
populares, incentivou o professor Darcy Ribeiro para os estudos da escola em horário
integral. Sua experiência na Bahia pôde apresentar uma perspectiva da educação
integral para os educandos, o que auxiliou no trabalho desenvolvido posteriormente por
Darcy Ribeiro na Secretaria de Educação do Governo do Estado do Rio de Janeiro na
década de 1980.
A experiência de escola integral no Brasil, por estarem ligados a uma política
governamental, geravam possibilidades para atender a população e combater o processo
de exclusão social. Dessa forma, contemplar o Projeto de Educação Integral, no século
XXI, retoma toda a discussão realizada por Darcy Ribeiro, com a finalidade de

sumário 498
VII Seminário Vozes da Educação

viabilizar que crianças e adolescentes tivessem atendimento educacional de qualidade


garantindo uma vida digna, baseada na construção do saber escolar.
A construção dos Centros Integrados de Educação Públicas (CIEPs) podem ser
tomados como a primeira escola popular, para atender os filhos da classe trabalhadora.
Além das bases educacionais do currículo do ciclo básico, Darcy Ribeiro objetivava um
atendimento integral do estudante com 8 horas diárias na instituição.Essa ampliação
fazia com que o Estado tomasse para si não só a responsabilidade pela Educação dos
estudantes, mas também da sua alimentação, sua vida pessoal e os aspectos da cidadania
de uma Educação libertária.
Esse paradigma de uma escola específica para a educação da classe popular que
pudesse atender todas as suas necessidades era uma característica da sequela do atraso
educacional da época. Devemos avaliar também que a criação do projeto Programa
Especial de Educação (PEE), com a implantação do tempo integral, foi lançado no
primeiro governo, após a ditadura militar, fortalecido pelos ideários democráticos e
emancipatórios. O educando, nessa perspectiva, constrói seu caminho escolar na sua
proposta curricular e político-pedagógica.
A educação de tempo integral nos modelos apresentados recebeu várias críticas.
A política de atuação foi tomada, em muitos aspectos,como uma política governamental
e, dessa maneira, com a saída de Brizola do mandato, a proposta não foi adiante. Na
proposta de Darcy Ribeiro podemos observar dois pontos importante na discussão de
uma formação integral do sujeito: o foco na aprendizagem do ser de forma holítica e a
construção de um conhecimento que dialogue entre todas as áreas. Nesse sentido,
conseguimos consolidar um dialogo com a proposta de educação Transdiciplinar.
No ano de 1986 foi elaborado o primeiro documento internacional diretamente
ligado à transdisciplinaridade: a Declaração de Veneza. Esse documento foi um
relatório final do Colóquio A Ciência Diante das Fronteiras do Conhecimento,
organizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
– UNESCO. Esse comunicado oficial foi feito em Veneza e teve a colaboração de
diversos signatários, dentre eles Gilbert Durand (França), filósofo e fundador do centro
de pesquisa sobre o imaginário; Ubiratan D’Ambrosio (Brasil), matemático e professor
da Universidade Estadual de Campinas; Bassarab Nicolescu (França), físico; David
Ottoson (Suécia), presidente do Comitê Nobel pela Fisiologia ou Medicina, professor e
diretor do Departamento de Fisiologia do Instituto Karolinska; Michel Random
(França), filósofo e escritor, dentre outros. Notamos que os envolvidos na elaboração do

sumário 499
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

documento são de diversas áreas do conhecimento e lugares do mundo, comungando


assim com a proposta transdisciplinar de respeito à diversidade, diferença e
favorecimento por uma integração dos saberes.
No ano de 1994 foi elaborada a Carta da Transdisciplinaridade, no Convento de
Arrábida, em Portugal, no 1º Congresso Mundial da Transdisciplinaridade. O Comitê de
Redação é composto por Lima de Freitas, Edgar Morin e Bassarab Nicolescu. Essa carta
é composta por 14 artigos, iniciados por um preâmbulo. “Artigo I - Toda e qualquer
tentativa de reduzir o ser humano a uma definição e de dissolvê-lo em estruturas
formais, sejam quais forem, é incompatível com a visão transdisciplinar” (FREITAS;
MORIN; NICOLESCU, 1994, p. 1).
Percebemos que nestes documentos estão as bases para a construção do
paradigma transdisciplinar, devido à sua construção histórica, a seu processo de
reflexão, discussão e diálogo pautado na abertura da escuta do outro, implicado em uma
ética transcultural e trans-histórica.
No campo educacional, notamos que há uma abertura para as várias dimensões
humanas; o corpo transdisciplinar é dotado de sensibilidade, afeto, intuição e
imaginação. Os mitos, os contos, as lendas dos povos são saberes descartados pelo
pensamento científico contemporâneo; a transdisciplinaridade resgata-os de maneira
harmônica e integradora. O saber disciplinar não é descartado e sim integrado,
problematizando uma nova visão da natureza e da realidade. O saber deve ser
compartilhado, e é preciso valorizar diálogos e discussões que favoreçam essa práxis. A
pesquisa tem valor social e o pesquisador deve assumir com responsabilidade a
aplicação da pesquisa e a aplicação das suas próprias descobertas. Portanto, a
transdisciplinaridade não busca uma definição ou a criação de núcleos excludentes, mas
um movimento constante de abertura, diálogo, integração, respeito e união entre
indivíduo, sociedade e cosmo.
A multi, inter e a transdisciplinaridade propõem-se a trazer alternativas que
problematizam a ciência clássica, a visão cartesiana, o pensamento fragmentado e
reducionista. De acordo com Morin (2000), o conhecimento disciplinar impede a união
entre as partes e a totalidade, devendo assim ser substituído por outro modo de pensar
que seja capaz de compreender os objetos no seu contexto atual e a complexidade desse
conjunto. O ser humano é ao mesmo tempo biológico, físico, psíquico, histórico,
cultural e social. Essa complexidade é desintegrada no campo educacional por meio das
disciplinas, que separam, fragmentam e não reconhecem a sua ligação. Todavia, é

sumário 500
VII Seminário Vozes da Educação

preciso estabelecer novas conexões entre os saberes, visando um reconhecimento da sua


identidade complexa e comum a todos os seres humanos.
A multidisciplinaridade, de acordo com Nicolescu (2000), segue os mesmos
princípios da pluridisciplinaridade, ou seja, busca estudar um mesmo objeto, que até
então era analisado por uma disciplina, por várias disciplinas ao mesmo tempo. Por
exemplo, uma pintura de Kandinsky pode ser estudada pela teoria das cores, pela
História da Arte, pela Física ótica, pela Química, pela Geometria etc. Com essa visão
multidisciplinar, o foco de estudo será ampliado e enriquecido com os saberes
pertinentes a outras disciplinas. Todavia, essa ampliação está inscrita na estrutura da
pesquisa disciplinar; ultrapassa a barreira disciplinar, mas não vai além, pois utiliza os
mesmos recursos lógicos.
A interdisciplinaridade, para Nicolescu (2000), atua de forma diferente da
multidisciplinaridade; transfere os métodos de uma disciplina para a outra utilizando
três graus. O primeiro diz respeito ao grau de aplicação; por exemplo, a Física nuclear,
combinada com a Medicina favorece o surgimento de novos métodos para o tratamento
do câncer. O segundo é o grau epistemológico: a combinação entre a lógica formal e o
direito pode produzir análises na epistemologia do Direito. Por último, um grau de
geração de novas disciplinas, por exemplo, o diálogo entre a arte e a informática gerou a
arte informática.
Como a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade ultrapassa as disciplinas,
mas sua finalidade também permanece inscrita na pesquisa disciplinar. Pelo seu terceiro
grau, a interdisciplinaridade chega a contribuir para o big-bang disciplinar. A
transdisciplinaridade, como o prefixo “trans” indica, diz respeito àquilo que está ao
mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer
disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos
imperativos é a unidade do conhecimento (NICOLESCU, 2000, p. 11).
A transdisciplinaridade pode ser considerada uma resposta à hegemonia do
conhecimento científico na modernidade. Estudos sobre outros paradigmas, tendências e
dilemas no processo formativo transdisciplinar são fundamentais para a construção de
uma escola diferente dos padrões enrijecidos. Essa resposta não nega o pensamento
disciplinar, mas abraça todos os saberes e formas de abstração do conhecimento. Em
outras palavras, não é um paradigma pautado em um confronto de ideias, mas uma
busca por novos olhares permeados pelo respeito e pela diversidade. O pensamento
dicotômico separa os saberes em caixas, desconsidera o movimento do conhecimento,

sumário 501
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

não reconhece a integração e o entrelaçamento presentes no ato de produção de saberes.


O mundo está em transformação constante, o pensamento disciplinar desconsidera a
vida e o movimento da vida.
A emergência de uma outra formação, a formação tripolar (PINEAU, 2010),
votando-se para a autoformação, a heteroformação e a ecoformação. A composição do
sujeito por esse tripé nos possibilita entender os processos formativos e a formação
permanente em novas temporalidades. Os primeiros aportes históricos sobre essa
conotação remontam os escritos de Rousseau, tomando a educação pela vida. A
retomada desse discurso caracteriza-se pela recolocação do sujeito como o centro da
problemática sobre a construção do conhecimento e da ciência.
A autoformação compreende a autonomização de seus protagonistas, momento
de individualização e subjetivação de sua formação, movimento pessoal de reflexão-
ação. O autor ressalta que não se trata de um desenvolvimento evolucionista, mas de um
princípio de autoformar-se: “tornar-se objeto de formação para si mesmo” (PINEAU,
2010, p.103), uma reflexão dinâmica dos ciclos vitais que compõem as forças de si
mesmo. Complementa ainda que a autoformação permanente acontece sempre mediada
por negociações temporais.
A heteroformação advém do prefixo hetero que significa o outro. Não se trata de
organização exterior, nem tão pouco da lógica positivista do paradigma de ser
direcionado por outros. A heteroformação deve ser entendida pelo prisma da influência
dos outros sujeitos sociais com os quais nos relacionamos. Sobre esse viés, o paradigma
educativo entendido na partilha como o ponto central nesse sentido, educação em pares,
das redes que compõem o cotidiano e nos promovem caminhos diferentes, reflexão que
leva a novos percursos autoformativos.

Leituras e desafios da formação: notas sobre a formação transdiciplinar


No sentido de formação de professores devemos analisar o que a narrativa
possibilita para o sujeito. Essa conjuntura aponta para a construção de biografemas,
conforme aponta por Christine Delory-Momeberger (2014) evidenciando a interlocução
com a proposta de uma perspectiva transdiciplinar de formação docente. No campo
empirico essa abordagem apresenta a reflexão acerca de suas escolhas profissionais e,
posteriormente, a interlocução com o tema da transdiciplinaridade no entendimento de
sua trajetória de vida.

sumário 502
VII Seminário Vozes da Educação

Cada um representa sua existência segundo trajetórias e construções


diferentes que integram as restrições, os valores, as dinâmicas ou o peso de
seu meio socioprofissional. Se as determinações sociais, econômicas e
profissionais não esgotam as construções biográficas individuais, elas se
inscrevem, entretanto, nos sistemas de representações e linguagens
simbólicas dos mundos de pertencimento (DELORY-MOMBERGER,
2014, p. 17).

A autora Christine Delory-Momberger nos provoca a pensar nossas “construções


biográficas individuais”, sua teoria não foca apenas o ambiente escolar, nas todas as
instâncias em que a aprendizagem de adultos está inserida, ou seja, todas as dimensões
de vida. Nesse sentido, ao questionar quais os impactos dessa investigação para os
atores sociais a entender a visão dos grupos, como que eles sentem em seu cotidiano, a
ressonância em suas vivências, na busca por orientar a produção desenvolvida nesse
campo. Os efeitos podem ser sentidos no dia-a-dia dos sujeitos envolvidos, eles vão
delimitar como os acordos políticos estabelecem uma rede de atitudes e atividades das
quais as leis não podem a priori prever, entendendo o trabalho no sentido de construção
de biografemas,

A recepção da narrativa biográfica mobiliza também o que poderíamos


chamar, referindo-nos a essa teoria de recepção literária, de uma bioteca, isto
é, o conjunto de experiências e dos saberes biográfico, ou biografemas, do
receptor. [...] Em outras palavras, na narrativa do outro, eu me aposso
prioritariamente dos biografemas (pessoais, sociais, históricos, culturais,
imaginários) que podem ser integrados à minha própria construção
biográfica, na medida em que respondem, aqui e agora, ao meu próprio
mundo da vida (p. 58-59, grifo da autora).

A autora aponta dois conceitos importantes a serem sinalizados, o de bioteca e o


biografema. Bioteca são as aprendizagens que vamos adquirindo ao longo da vida. O
prefixo bio significa vida e teca depósitos, aponta então para “depósitos da vida”,
experiências de vida que são guardadas, e encontra por meio da narração, o ambiente
coletivo. Nesse ambiente coletivo as narrativas encontram-se com outras narrativas, e
nesse sentido, a leitura que o outrapessoas (dos heteros) possibilitam os biografemas. À
medida que nos aproximamos da construção biográfica dos sujeitos por meio de suas
narrativas, nos apropriamos cada vez mais do sentido formador do trabalho em conjunto
partindo desta realidade. Iniciaremos com biografemas que compõem uma leitura da
autora das narrativas de formação dos sujeitos coparticipantes da pesquisa, em seguida,
desenvolveremos.

sumário 503
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

No momento da produção das narrativas de histórias de vida, a reflexão acerca


das realidades que o compõem encontra o canal para o receptor. Essa troca produto da
experiência do sujeito é a experimentação entre o passado e o presente de forma não
linear e que exerce a processualidade do discurso. Sua proposta inclui o entendimento
das dimensões em que o sujeito produz a sua história, entendendo toda a carga cultural e
pessoal. Ao longo da história a busca por teorias que fossem mais “equilibradas” para
compreender os aspectos ressaltados pelos narradores, contribuiu para um afastamento
dos posicionamentos ditos positivistas, de modo, que o sentido da linguagem produziu
novas conquistas e novos entendimentos sobre o discurso, principalmente no que diz
respeito a dialética.

Notas Finas: Caminhos possíveis


Observamos a difícil proposta de se tornar um professor transdisciplinar no
momento em que percebemos ser contra hegemônico falar de si, de suas experiências e
da busca por um conhecimento que ultrapasse o tempo linear do seujeito. A formação
docente separada em disciplinas impossibilidade a construção do conhecimento
complexo e produtor da vida. Esse aspecto nos faz analisar alguns aspectos para uma
proposta de escola de tempo integral preocupada com a construção do conhecimento,
através do prisma transdisciplinar: 1) Ela não deve ser adotada como uma proposta do
governo vigente; 2) por apresentar um foco no não só na criança, como também no
professor que lecionaria na instituição, com um processo excessivo de fiscalização de
sua prática. Esses dois pontos desenvolveram uma perspectiva de escola diferenciada,
que na verdade não se efetiva numa a dialogicidade pedagógica.
Em contrapartida, as questões apresentadas pelos docentes são: 1) uma escola
integral deve possuir momentos de encontro com todos os professores; 2) a falta de
material humano que acompanhe o processo pedagógico transdisciplinar, que não se
agrupe apenas nas disciplinas. Por essa razão nos apropriamos da compreensão do
conceito de singular-plural (JOSSO, 2007),
Josso (2007) sinaliza o seguinte posicionamento: “As narrações centradas na
formação ao longo da vida revelam formas e sentidos múltiplos de existencialidade
singular-plural, criativa e inventiva do pensar, do agir e do viver junto” (p. 414), ou
seja, a concepção de singular-plural configura-se no sentido da troca. A troca que é
materializada no encontro com o outro, na relação em que ambos, apesar de estarem
separados pelas vivências singulares de cada indivíduo, se encontram em

sumário 504
VII Seminário Vozes da Educação

acontecimentos que dialogam em espaço comum, no caso em questão, no material


dividido, na parceria construída com seus amigos, pois o sentido de plural configura a
ideia do coletivo, do que coletivamente vem sendo construído. Esses aspectos são
importantes para compreendermos que a pesquisa possível tem uma dimensão própria
que foge ao que é planejado, no que tange aos movimentos instituintes da vida. Esse
processo foi observado de maneira exaustiva no cotidiano escolar.
O estudo proposto destacam-se: a trajetória de vida e formação dos profissionais
pela escolha da profissão docente. Tomadas como dispositivo de formação, a narração
para produção das histórias de vida e formação dos docentes em tempo integral nessa
abordagem de pesquisa configura o entendimento de uma escola viva e disposta a
consolidar práticas de liberdade.

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sumário 505
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 506
VII Seminário Vozes da Educação

EXPEDIÇÃO PEDAGÓGICA: VIAGENS, ENCONTROS E CAMINHOS DE


FORMAÇÃO DOCENTE

Isabele Cristina Fonseca Ramos


isabelecfr@gmail.com
FFP UERJ

Jacqueline de Fátima dos Santos Morais


jacquelinemorais@hotmail.com
FFP UERJ

Introdução

Viajar! Perder países!


Ser outro constantemente,
por a alma não ter raízes.
De viver de ver somente!
Viajar assim é viagem
(Fernando Pessoa).

Embarcar e desembarcar. Viver a viagem trilhando por caminhos terrestres,


marítimos, aéreos. Inventar trajetórias. Criar percursos. Improvisar direções.
Conhecer novos lugares, cidades, estados, países. Revisitá-los com o olhar de
quem vê pela primeira vez.
Viajar é mudar a rotina e se permitir ser “outro constantemente” (PESSOA,
2017). Pode significar registrar momentos através de fotos, vídeos, áudios.
Compartilhar ou não através das redes sociais, construindo certa performance do vivido.
Esperar visualizações e comentários. Preservar as experiências de viagem pela escrita.
Registrar em diário de bordo, em caderno de campo, blogs, bitácora, diários virtuais.
Produzir anotações soltas. Perdê-las. Reencontrá-las. Jogar fora.
A poesia de Fernando Pessoa nos instiga a tentar compreender diferentes
sentidos de viajar diante das experiências que vivemos, bem como das vivências de
outras pessoas. A viagem teria apenas um sentido? O que significa “Viajar perder
países, ser outro constantemente”? Verso que compõe a poesia de Fernando Pessoa.

sumário 507
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Ao iniciar as pesquisas sobre Expedição Pedagógica, um dos primeiros


questionamentos que surgiram foi: por que precisamos considerar a viagem como um
dos principais conceitos para nossas investigações? A partir do contato com
bibliografias que abordam o tema descobrimos que na Expedição Pedagógica o trânsito
de um território para outro é um dos princípios metodológicos trabalhados. Segundo
Valbuena e Forero (2011), a “Expedición Pedagógica es una forma específica de
Formación Docente” (p. 5).

El objetivo principal de la Expedición Pedagógica es el viaje por las escuelas


y proyectos. Al hacer el recorrido por las prácticas pedagógicas, el maestro
va desarrollando también una viaje de pensamiento. Registra lo que
descubre, valora y se asombra de la riqueza pedagógica en el otro. Al visitar,
tiene, a la vez, la oportunidad de compartir su proyecto, aclarar sus dudas,
afirmar su práctica, ensanchar su saber y experiencia personal. A través del
viaje se abre paso a un diálogo afectivo y pedagógico permanente a partir de
las mutuas preguntas y respuestas entre viajero y anfitrión, también con
comunidades y expertos, en el ser y acontecer de lo pedagógico en la
experiencia presentada y por la socialización y visualización de la misma
(VALBUENA e FORERO, 2011, p. 6).

Para os autores acima citados, a viagem cumpre um papel fundamental na


compreensão da Expedição Pedagógica. O professor que dela participa se posiciona
como “um viajero que explora el território hacia adentro es decir continuamente está
reflexionando sobre su que hacer pedagógico y mediante la interacción con otros
maestros viajeros, reconoce otras prácticas y visibiliza otros modos de ser maestro”
(VALBUENA e FORERO, 2011, p. 6). Ou seja, a viagem também é entendida como
processo formativo neste movimento.
Com isso, originada na Colômbia, a Expedição Pedagógica tem sido
reconhecida, desde a década de 1980 como uma prática de formação de educadoras e
educadores que buscam interrogar seus “saberes e fazeres e exercitar o desciframiento”
(UNDA, 2002) de seus cotidianos a partir do encontro com outras realidades
educacionais.
Segundo Unda, (2002) o desciframiento na Expedição Pedagógica consiste na
elaboração de diferentes formas de pensar a profissão docente a partir das experiências
próprias e dos demais expedicionários75. Neste sentido, não há apenas um deslocamento
físico: ocorre também uma “movimentação do pensamento”, (BERNAL; BOOM;

75
Nome atribuído por alguns autores às pessoas que participam da Expedição Pedagógica.

sumário 508
VII Seminário Vozes da Educação

BEJARO, 2009) que busca romper com uma lógica tradicional de conceber o
conhecimento escolar. Nas palavras de Unda, (2002) a Expedição Pedagógica:

[...] es una de las más ricas experiencias de los últimos años que, combinando
la movilización social por la educación y la construcción colectiva de
diversidad y riqueza pedagógica, ha consistido em un amplio desplazamiento
por nuestras regiones. No se trata solo de movimiento físico, sino, sobre todo,
de desplazamientos em el orden del pensamiento, pues ha permitido un
encuentro com las variadas y singulares experiencias pedagógicas realizadas
por maestros que, como los que realizan la Expedición, intentan posibilidades
de vida distintas desde la escuela (UNDA, 2002, p. 2).

Viajar como um modo de movimentar-se buscando compreender de modo mais


amplo o conceito de deslocamento é um dos exercícios que temos feito, para pensar a
articulação entre viagem e formação de professoras e professores na perspectiva da
Expedição Pedagógica. Assim, na escrita da pesquisa, nos dispusemos ao desconhecido,
ao estranho, passando por experiências únicas, que por muitas vezes nos pareceram
perigosas, mas também nos trouxeram múltiplas oportunidades de aprendizado.
Dialogando com Larrosa, (2002) concordamos que:

O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe


atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e
buscando nele sua oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex
de exterior, de estrangeiro de exílio, de estranho e também o ex de existência
(LARROSA, 2002, pág. 25).

Dissertar, pesquisar e investigar são práticas que também requerem deslocar-se


para conceber ideias e construir novos conhecimentos. Práticas que afirmam nossa
existência e (re) existência.
Um dos primeiros conceitos que pensamos para desenvolvermos essa pesquisa
foi na palavra estrangeiro (GOLDENBERG,1998). Pensar em viagem, nos permitiu o
contato com distintas palavras que envolvem este tema. Nas diferentes maneiras em que
o estrangeiro pode ser compreendido, acrescentamos as reflexões de Caterina Koltai.
Para ela o exercício de olhar com estranhamento para as próprias convicções, ou para
determinado objeto, pessoa ou situação, bem como para si mesmo, é uma forma de se
comportar como um estrangeiro. A autora destaca que é importante buscar o
autoconhecimento para dialogar com o outro, pois, “o modo como se lida com a própria
estrangeiridade pesa na hora de definir o outro como estrangeiro” (KOLTAI, 1998; pág.
110).

sumário 509
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O movimento de aceitar que há sempre o que aprender, em qualquer situação de


vida, tem contribuído para nos aproximarmos do que desconhecemos e do que
buscamos conhecer na pesquisa. O familiar tem se tornado estrangeiro (ENRIQUEZ,
1998), ou seja, temos procurado questionar as afirmações que surgem como verdade em
nossas investigações. A cada pergunta, redigimos argumentos e tentamos elaborar novas
indagações. O contato com os distintos significados da palavra “estrangeiro” tem
contribuído com nossas reflexões sobre o que é “estar em pesquisa” e o que é
compreender que o nosso cotidiano é um espaço de “construção” e “desconstrução” de
saberes, um espaço de “estranhamentos”.
Desta forma, este texto tem como objetivo trazer as primeiras sínteses que
construímos sobre o conceito de Expedição Pedagógica, suas premissas e os registros
que encontramos sobre seu surgimento na América Latina.

Reflexões sobre o conceito de viagem

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os


viajantes. O que vemos, não é o que vemos,
senão o que somos (Fernando Pessoa).

Os fragmentos do “Livro do Desassossego” de Fernando Pessoa nos convidam a


pensar sobre a condição humana a partir da metáfora da viagem. De forma poética e
reflexiva, além de afirmar que a vida é uma viagem e que ao mesmo tempo em que
somos viajantes, somos também viagem, Pessoa (2006) questiona: “Que é viajar, e para
que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla, a
sensação de libertação, que nasce das viagens?” (pág. 288). Essas perguntas do autor
nos despertaram para outras questões: O ato de viajar necessita ter alguma serventia? A
sensação de liberdade existe em qualquer viagem? O que é viajar?
Ao longo da pesquisa encontramos distintas formas de abordagem da palavra
viagem e a literatura tem sido uma das fontes que muito temos utilizado.
De acordo com o artigo “Viajar também é escrever” de Claudete Daflon (2014),
diversas são as literaturas que recorrem ao termo viagem para convidar o leitor ao
embarque na história que está sendo contada. A autora também destaca a importância
do registro em viagem e faz uma interlocução entre ler, viajar e escrever, comparando
estas palavras como se fossem sinônimos.

sumário 510
VII Seminário Vozes da Educação

A sinonímia se deve ao fato de convergirem num movimento de


deslocamento: ler viajar; viajar-viajar e viajar-escrever. A diferença, por sua
vez, reside fundamentalmente no caráter distinto da viagem que a leitura
promove, daquela que efetivamente se realiza e da que se apresenta como a
aventura da escrita. Não se pode perder de vista, no entanto, como longe de
se situarem perfeitamente separadas umas das outras, essas possíveis viagens
estão o tempo todo ligadas entre si (DAFLON 2014, p. 53).

Além dos poemas e livros de Fernando Pessoa, ao longo de nossas investigações


também tivemos acesso a outros textos literários, como por exemplo, o título “Uma
excursão milagrosa”, um conto de Machado de Assis, que é uma das literaturas que traz
sentidos outros para a viagem. Nele encontramos a frase: “viajar é multiplicar-se”.
Nesta narrativa, há a experiência de um personagem chamado Tito que na companhia de
uma jovem faz um longo percurso até chegar ao país das quimeras. Nos caminhos
trilhados ele se transforma em várias pessoas. Diversos são os contos de Machado de
Assis sobre o conceito e em boa parte deles o autor traz a viagem como uma forma de
“multiplicar-se”, uma possibilidade de transformação pelo deslocamento.
O uso da palavra viagem como metáfora é comumente encontrado em muitas
expressões como, por exemplo: “ler é uma viagem”, “para de viajar e se concentra”,
“você está viajando com esta ideia”, dentre outras expressões que muitas vezes ironizam
o termo viajar, classificando-o até como sinônimo de loucura. Em nossa pesquisa temos
construído um espaço de discussão que permite conceber o termo viajar em suas
múltiplas dimensões.
Autores como Machado de Assis, Fernando Pessoa e Mario de Andrade,
produziram muitas escritas durante as viagens que fizeram ao longo de suas vidas.
Alguns desses textos tem nos inspirado na escrita da pesquisa. O contato com esses
autores possibilitou-nos buscar registros que relatam historicamente como a viagem
vem sendo compreendida no Brasil, no que tange aos aspectos políticos e sociais.
Entre o final do século XIX e o início do século XX, tornou-se mais recorrente a
produção escrita por brasileiros sobre viagens. Até então, os registros sobre este tema
eram majoritariamente realizados por autores estrangeiros: europeus e norte-
americanos. Tal fato deve-se a herança deixada pelo período colonial, em que somente
as pessoas privilegiadas socialmente conseguiam viajar, antes do século XIX.

sumário 511
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Diante da perspectiva de que a viagem inicialmente é uma prática da elite e


que apenas após o século XIX se populariza, pode-se afirmar que a
possibilidade de viajar, a princípio, não se oferecia democraticamente a
qualquer um. Por isso, não foi bem vista pela aristocracia e pela burguesia a
criação de condições que permitiram ao homem médio também viajar, na
medida em que isto representava perda de uma exclusividade que funcionava
também como distinção entre as classes (DAFLON, 2014, p. 59).

Descolacar-se fisicamente de um lugar para outro, dependendo da distância,


requer recursos financeiros. Pois muitas vezes precisamos comprar passagens, nos
hopedarmos em algum lugar, alimentar-nos. Neste sentido, destacamos a relevância de
trazer a discussão sobre o acesso das classes populares à viagem, articulando este
aspecto à realidade vivida por muitas professoras e professores brasileiros.
Pesquisas sobre o perfil das professoras e professores que trabalham na
Educação Básica no Brasil (MATIJASCIC, 2017) demonstram que os rendimentos
mensais, apesar de variarem entre as regiões do país, estavam em 2017 na faixa de dois
mil reais. Os últimos editais (2018/2019) de concursos públicos de algumas regiões
metropolitanas, tais como: Rio de Janeiro, São Gonçalo, Niterói e Maricá, os salários
não passam de mil e quinhentos por aproxidamente vinte horas semanais trabalhadas.
De acordo com dados do IBGE (2015), cerca de 30% dos professores dos anos iniciais,
mesmo atuando em sala de aula, declararam ter outra fonte de renda que não a atividade
docente. Matijascic (2017) afirma que “em suma a remuneração dos professores é
relativamente baixa em um contexto nacional” (p. 34).
Diante do exposto, é possível perceber que, embora boa parte das professoras e
dos professores empregados, que atuam na Educação Básica, não se encontrem em
situação de pobreza extrema, as condições de trabalho e salário, das professoras e
professores deste segmento, os colocam entre as classes C e D. Com isso, nos
perguntamos: como o professor da Educação Básica pode se organizar com recursos
próprios para viajar, pensando em sua própria formação docente? Como tornar a viagem
uma possibilidade de formação docente para as professoras e professores da Educação
Básica?
Estas reflexões e questionamentos vem permeando nossa pesquisa sobre a
formação de professores na perspectiva da Expedição Pedagógica. Pensar a viagem no
que se refere ao deslocamento físico de um lugar para outro é uma das proposições que
temos desenvolvido em nossos textos.

sumário 512
VII Seminário Vozes da Educação

1.2 Expedição Pedagógica: uma experiência formativa?

A educação, qualquer que seja o nível em que se dê,


se fará tão mais verdadeira quanto mais estimule o
desenvolvimento desta necessidade radical dos seres
humanos, a de sua expressividade (Paulo Freire).

Reconhecer a expressividade dos sujeitos nos processos educativos é um convite


que Freire (1981), nos faz em seu livro “Ação cultural para a liberdade”, produção que
discute o tema: alfabetização de jovens e adultos e as lutas e reivindicações dos mesmos
por seus direitos enquanto trabalhadoras e trabalhadores. Paulo Freire é fonte de
inspiração de muitas educadoras e educadores na execução de suas práticas
pedagógicas. Em nossas investigações, descobrimos que as teses do autor também
foram fontes de estudos e pesquisas de pedagogas e pedagogos, professoras e
professores que constituíam o Movimento Pedagógico na Colômbia na década de 1980,
onde encontramos algumas pistas sobre as origens da Expedição Pedagógica (Tarazona,
2013).
Neste sentido, a partir da dissertação de Morelia do Socorro Cardona Villa
intitulada “O Movimento Pedagógico: uma luta social, política e cultural do magistério
colombiano 1982 – 2002” tivemos acesso a registros que sistematizam como
educadoras e educadores com nacionalidade colombiana se organizaram para lutar pela
educação no país durante esses vinte anos demarcados pela autora.
Na Colômbia o Movimento Pedagógico foi oficialmente reconhecido no XII
Congresso Nacional da Federação Colombiana de Educadores (FECODE), celebrado
em 1982 na cidade Bucaramange, consistiu na organização de professoras e professores,
pesquisadoras e pesquisadores e outros cidadãos da sociedade civil que tinham como
interesse debater os desafios da educação frente aos efeitos das reformas educativas que
se instauraram no país (VILLA, 2005; TARAZONA, 2013). Villa (2005) afirma que
havia a perspectiva de se refletir sobre as relações entre saber, sujeito e poder,
repensando-se as culturas e as ideologias que envolvem o Estado, o Sistema Educativo e
a Escola. Neste sentido questionamentos de práticas pedagógicas e dos discursos sobre
o que é educação, suas origens, posturas éticas, o que e como são as Instituições
Educativas, se fizeram presentes no Movimento Pedagógico.

sumário 513
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Segundo Valencia (2006), o Movimento Pedagógico se constituiu frente às


políticas estatais que, com a reforma curricular instituída pelo Ministério da Educação
Nacional Colombiano, consistia na racionalização e controle político do trabalho
pedagógico e pretendia reduzir professoras e professores a “administradores do
currículo pensado, organizado e impuesto por los técnicos del ministério de educación”
(pág. 102).
Diante deste contexto em que vivia a educação na Colômbia nas décadas de 70 e
80, instituições como: a Universidad Nacional e a Universidad del Valle, bem como
movimentos de educação popular como o Centro de Promoción Ecuménica y
Comunicación Social (CEPECS) integraram Federação Colombiana de Educadores
(FECODE) para a luta política e sindical pela educação no país.
O Movimento Pedagógico pode ser caracterizado como uma proposta originada
na FECODE para mobilizar outras professoras e professores para o debate sobre a
identidade profissional, na luta pela conquista da autonomia docente, pelo
reconhecimento das educadoras e educadores como sujeitos de políticas educacionais e
protagonistas das reformas na educação. É um movimento que defendia a educação
pública como responsabilidade do Estado além de exigir melhores condições
trabalhistas e a participação de professoras e professores na atividade política
colombiana.
O Movimento Pedagógico é pensado como um lugar de luta, onde os sujeitos
envolvidos com a educação são reconhecidos como produtores de cultura e de práticas
educativas. Segundo Villa (2005), alguns acontecimentos históricos marcaram a
trajetória do Movimento Pedagógico na Colômbia. A autora destaca quatro “grandes
períodos” que nos ajudam a compreender a relevância do Movimento Pedagógico na
Colômbia: “La conquista del Estatuto Docente en 1977; El Congreso Pedagógico
Nacional de 1987; La Ley General de laEducación 115/94; Expedición Pedagógica
Nacional en 1999” (VILLA, 2005, p. 12).
Nos escritos de Villa (2005) a Expedição Pedagógica tem registros a partir da
década de 1990, mas “la idea comenzó a ventilarse desde los primeros años del
Movimiento Pedagógico” (BERNAL, BOOM e BEJARO, 2001; pág. 4). Pois, os
encontros iniciais de integrantes que compunham o Movimento Pedagógico se
caracterizavam como Expedições Pedagógicas na medida em que educadoras e
educadores ocupavam os espaços de trabalho uns dos outros para vivenciarem seus
cotidianos questionando e fundamentando suas práticas educativas como símbolo de

sumário 514
VII Seminário Vozes da Educação

resistência e luta pela educação na Colômbia. Para Valbuena e Forero (2011), na


Expedição Pedagógica a viagem tem uma maneira particular de ser concebida. Durante
os percursos, as perguntas: como, por que e para que se viaja surgem para os
expedicionários, que não são só professores já formados que já estão lecionando, mas
também estudantes dos cursos de formação de professores são convidados a participar
das Expedições Pedagógicas. Docentes e estudantes são considerados sujeitos de
aprendizagem. (VÁSQUEZ, 2014), podem Interrogar e ser interrogados, ensinar e
aprender, compartilhar experiências e construir conhecimentos durante a viagem. Essas
ações são alguns dos convites feitos pelas Expedições Pedagógicas.

El viaje em Expedición Pedagógica es dinámico es movilización,


movimiento, es interrogación a preguntas que mediante la reflexión da lugar
a nuevas preguntas, porque constantemente se está evaluando sobre el cómo
y para que se viaja. Es un viaje por las escuelas de nuestro país y por el
pensamiento para la producción de saber pedagógico (VALBUENA e
FORERO, 2011, p. 2).

Para Valbuena e Forero (2011), nas Expedições Pedagógicas os expedicionários


estão constantemente avaliando e pensando, como e para quê se viaja. No entanto,
questionamos esta afirmação, pois como constataríamos que essas reflexões existem
para quem participa de tal experiência? Será que a prática do registro escrito ou
imagético da experiência vivida na Expedição Pedagógica garantiria um
aprofundamento das reflexões e dos saberes pedagógicos? De todo modo é importante
levar em conta, como afirma Vasquez (2014), que participar de uma Expedição
Pedagógica é relevante pois:

La formación docente es, pues, un reto que demanda procesos que lleven al
estudiantado a lograr mirar, reflexionar y ser; encuanto a lo que se les
propone, se necesita más que memorizar teorías o repetir ideas aje nas, que
construyan, innoven, transformen y sean (p. 61).

Vásquez (2014) aponta que os professores em processo de formação inicial ao


participarem da Expedição Pedagógica ganham mais uma oportunidade de conhecer
como é uma sala de aula e quais são as variáveis que compõe o cotidiano escolar. Pela
experiência das professoras e dos professores já em atuação, os estudantes podem ter
algumas pistas sobre sua futura prática docente. Concordando com os autores Valbuena
e Forero (2011), Vásquez (2014), afirma que na Expedição Pedagógica a viagem é

sumário 515
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

concebida de maneira singular. Ao conhecer as escolas, o que antes parecia ser rotineiro
ganha outros significados.
Investigar a viagem como um movimento de formação docente, na perspectiva
da Expedição Pedagógica, nos possibilitou um mergulho em uma interessante e variada
bibliografia latino-americana, em especial colombiana, resultando numa importante
contribuição, tanto do ponto de vista conceitual, quanto metodológico.
Nessa investigação, algumas das perguntas emergiram e temos buscado refletir
ao longo da pesquisa: como a Expedição Pedagógica se configurou como política
pública de formação docente na Colômbia? As experiências narradas por professores
que já participaram de uma Expedição Pedagógica expressam seu caráter auto-
formativo? Por que a Expedição Pedagógica é considerada um movimento que conecta
professoras e professores latino-americanos?
Nessa perspectiva, procuramos investigar: o que muda na vida de uma
professora que vive a experiência do deslocamento, resultado de numa Expedição
Pedagógica? Como o deslocamento de um território (SANTOS, 1999) para outro,
interfere na formação pessoal e profissional de professoras e professores? Quais são os
impactos causados em seus processos formativos? Segundo Santos (1999), o território
não é apenas composto pela paisagem que o cerca, é compreendido como a delimitação
de um espaço de convivência, de interação entre as pessoas. Nas palavras do autor:

O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de


coisas superpostas. O território tem que ser entendido como o território
usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A
identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é
o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e
espirituais e do exercício da vida (SANTOS, 1999, p. 8).

Na Expedição Pedagógica, a viagem se configura como oportunidade de


expandir horizontes e conhecer outros lugares, pela vivência em outros territórios. Para
Valbuena e Forero (2011), a ideia da viagem como processo formativo ocorre durante
as Expedições e se amplia na medida em que os expedicionários levam para os seus
cotidianos o que aprenderam durante o percurso, nessa forma de viajar.

sumário 516
VII Seminário Vozes da Educação

Considerações Finais
Pesquisar sobre a formação de professoras e professores na perspectiva da
Expedição Pedagógica tem nos permitido uma ampla e intensa investigação sobre as
distintas realidades educacionais existentes na América Latina.
Temos percebido o quanto experiências docentes latino-americanas,
significativas para estudantes, professoras e professores e para as comunidades
escolares são pouco exploradas no sentido de serem investigadas como fonte de
pesquisa acadêmica ou como referência para conhecimento de quem possa ter interesse
pelo tema: formação docente.
Nossas investigações tem como intuito não só a produção de textos acadêmicos,
mas também a divulgação de um tema que aborda um importante movimento de diálogo
e troca de saberes que tem ocorrido entre docentes na América Latina.
No estudo que ora apresentamos, escolhemos algumas sínteses realizadas até o
momento sobre os conceitos que circundam nosso tema de pesquisa, no entanto,
sinalizamos que paralelo às leituras sobre o tema abordado neste texto, conseguimos
estar em algumas Expedições Pedagógicas. Para dar continuidade a este trabalho,
pretendemos aprofundar os conhecimentos até aqui dicutidos, bem como somar nossos
argumentos às experiências em campo que vivemos em algumas Expedições
Pedagógicas que tivemos a oportunidade de participar.

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Acesso em: 19 jan. 2019.

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante


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Acesso em: 17 set. 2018.

UNDA, María Pilar. La experiencia de expedición pedagógica y las redes de


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VALBUENA, Leonor Rodriguez. FORERO, Nubia. El viaje como alternativa de


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Colectivos que hacen investigacion em la escuela. Córdoba Argentina. 2011.
Disponível em: <https://www.yumpu.com/es/document/view/14214138/el-viaje-como-
alternativa-de-formacion-en-la-expedicion-pedagogica>. Acesso em: 18 ago. 2018.

sumário 518
VII Seminário Vozes da Educação

CAMINHOS PERCORRIDOS EM BUSCA DE UMA EDUCAÇÃO DE


QUALIDADE

Gracielli da Cruz Silveira Rocha


UERJ
graciellics@id.uff.br

“Contar é muito, muito dificultoso, não pelos anos que já passaram, mais
pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se
remexerem dos lugares. A lembrança de vida da gente se guarda em trechos
diversos; uns com os outros acho, que nem se misturam (...) têm horas
antigas que ficaram muito perto da gente do que outras de recentes datas”
(GUIMARÃES ROSA).

Escrever este memorial de formação é um desafio, pois me faz caminhar em


busca do meu passado adormecido, entretanto satisfatório em me sentar, recordar e
escrever sobre minha história. Pensar sobre nossa formação, o que nos moveu e move a
mergulhar no mundo da educação, nos faz resgatar um passado que hiberna. Recordar e
escrever sobre momentos que passaram despercebidos, mas que, ao analisá-los,
percebe-se como foi significativo em nossas escolhas, é gratificante.
Nasci na cidade de Niterói, no ano de 1986. Minha mãe cursou até a antiga
quarta série do Ensino Fundamental e meu pai concluiu o Ensino Médio. Nossa vida
não foi fácil, pois minha mãe praticamente criou a mim e a minha irmã sozinha, pois
meu pai saiu de casa quando eu tinha apenas seis anos de idade. Minha mãe trabalhou
muito para que nos fosse garantida uma educação considerada por ela de qualidade (que
era em alguma escola privada).
Iniciei minha trajetória estudantil em 1991, aos quatro anos de idade, em uma
escola privada, que ficava próximo à minha casa. Não tenho muitas recordações dessa
escola, mas me lembro de sempre me agarrar ao portão por não querer entrar e a
diretora me arrastando de “portão a dentro”.
No jardim II, fui estudar em outra escola privada, no qual fiquei até a antiga
terceira série. Nessa escola fui alfabetizada pela professora Ana, uma pessoa amável e
serena, que guardo em meu coração com muito carinho. Recordo-me que fui
alfabetizada ainda no processo da cartilha e que a professora gostava de nos colocar
para fazer as atividades em grupo. Esse era um momento muito importante pra mim,

sumário 519
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pois eu era muito tímida e nesse momento eu conseguia me entrosar com meus colegas
e participar da construção coletiva do conhecimento, um momento de troca em que nos
deparamos com diferentes percepções.
Trazer à memória a professora de alfabetização, que, mesmo tendo que trabalhar
com cartilhas, conseguia propor momentos de construção coletiva do conhecimento,
momentos de trocas. E são nessas relações interpessoais no processo de aquisição do
conhecimento, que pensadores como Piaget, Vygotsky e Freire, dentre outros, mostram
que aprendizagem depende de uma ação de mão dupla.

Aprendemos a pensar junto com o outro, num grupo coordenado por um


educador. Aprendemos a ler, construindo novas hipóteses na interação com o
outro. Aprendemos a escrever organizando nossas hipóteses na interação com
as hipóteses do outro. Aprendemos a refletir, estruturando nossas hipóteses
na interação e na troca com o grupo. A ação, a interação e a troca movem o
processo de aprendizagem. Função do educador é interagir com seus
educandos para coordenar a troca na busca do conhecimento (FREIRE, 1996,
p.07).

Embora fosse muito utilizada a prática de cobrir pontinhos para formar letras e
números, as atividades propostas com trabalhos em grupo proporcionam aprendizagens
mútuas com relação à parte social, afetiva e cognitiva.

Meus alunos do 2° ano do Ensino Fundamental realizando trabalho em grupo – Escola Municipal de SG.

Essa professora me deixou muitos ensinamentos e carreguei aprendizagens dos


relacionamentos interpessoais para minha formação e prática em sala de aula, pois é na
interação entre as pessoas que se constrói o conhecimento. E é me apoiando na

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VII Seminário Vozes da Educação

perspectiva sócio interacionista de Vygotsky (1998) que procuro fazer com que meus
alunos se interajam e troquem saberes. Martins reforça que:

Não aceitamos a ideia da sala de aula arrumada, onde todos devem ouvir uma
só pessoa transmitindo informações que são acumuladas nos cadernos dos
alunos de forma a reproduzir um determinado saber eleito como importante e
fundamental para a vida de todos (2010, p. 117, 118).

Já no Ensino Fundamental II e até me formar no Ensino Médio, em outra escola


privada, sofri algumas manifestações de preconceitos, por ser tímida, por me vestir de
maneira diferente, por estar acima do peso aceito pela sociedade. Acredito que, por
esses motivos, sempre que vejo algum aluno distante, sem se entrosar com os colegas,
procuro conversar, fazer o aluno sentir que tem alguém com ele e inseri-lo no grupo. E,
pelo mesmo motivo, fui impulsionada a me dedicar um tempo sobre o estudo do
bullying (um rótulo para o que sempre existiu) para a produção do trabalho final do
curso de Pedagogia e para a conclusão da pós-graduação, retomei o tema que tanto me
comove – a violência.
Nessa última escola tive experiências e professores que marcaram a minha vida
tanto positiva quanto negativamente. Um exemplo negativo é de uma professora de
Geografia. Tive aulas com ela da quinta série até a última série do Ensino Médio e em
todas as aulas o disco era o mesmo. Já sabíamos sobre globalização de “cor e salteado”.
Enquanto descrevo é como se um filme passasse em minha cabeça, com riqueza de
detalhes. Ela chegava, sentava e começava o seu discurso. Levantava apenas para passar
o questionário no quadro (que, por sinal, eram as mesmas perguntas feitas nos testes e
provas). Quando acabávamos de responder as perguntas ela passava dando visto nos
cadernos e fazia a autocorreção e tínhamos que responder exatamente como ela
dissesse. Desse jeito eram minhas aulas de Geografia. Está explicado o porquê de eu
não ter nenhuma atração pelo assunto.
E mesmo com minha antipatia pela geografia, devido a minha trágica
experiência, busco, ainda que com minhas muitas dificuldades, ultrapassar essa muralha
para que eu não seja um espelho dessa prática e que meus alunos não passem por
momentos traumáticos como os que eu tive. Reconheço minhas deficiências e minha
pequena experiência na docência (por ter apenas quatro anos em sala de aula) depois de
cinco anos de formada. Sei que ainda vão ter muitos tropeços e quedas. Mas prefiro não

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ficar inerte. Não quero me acomodar e ser o reflexo de experiências ruins quando estive
sentada na mesma posição de meus alunos.
O meu desejo é achar nos olhares das minhas crianças a curiosidade e a vontade
de aprender, como tive o prazer de encontrar quando cheguei à sala de aula com um
globo terrestre na mão. Minha tristeza foi descobrir que a maioria não sabia o que era e
muitos não sabiam o nome do seu planeta, nem mesmo do seu país.
Ao entrar na sala logo fui bombardeada com perguntas sobre o que seria aquele
objeto “alienígena”. Fiquei muito surpresa, pois não esperava essa reação. Acreditava
que eles logo identificariam e os comentários e as perguntas fossem outras como: Que
legal, a tia trouxe o globo! O que iremos fazer com o planeta Terra? Posso ver os
países? Onde está o Brasil? Ao invés destas, as indagações foram: “O que é isso”?
“Posso tocar”? “Por que tem essa cor azul aqui, diferente desses outros trocinhos?”.
A aula foi bem interessante. Eles descobriram o que era aquilo de cor azul (o
oceano), localizaram os continentes (os outros trocinhos), procuraram alguns lugares
que eles já tinham ouvido falar, perguntaram se existiam mesmo alguns lugares como
“Calaboca”, Itália, Índia, Ásia. Todos queriam aprender e eu não imaginava que a
chegada desse objeto iria ser tão importante para aquelas crianças. Como a curiosidade
era enorme e todos queriam ver ao mesmo tempo (ainda mais depois que o coloquei na
tomada e o iluminei), deixei por um tempo explorando o planeta e depois os dividi em
grupo para uma melhor visualização, como revela a imagem abaixo:

Os alunos explorando o globo terrestre.

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VII Seminário Vozes da Educação

Retomando o bullying, mas, continuando com a mesma professora, é com


tristeza que relato – apenas um episódio – o preconceito de uma profissional que é
formada para inclusão, para o respeito às diversidades. Infelizmente, a ouvi dizer para
uma aluna que eu era uma gorda (usando essa mesma palavra). Fiquei bastante chateada
com o fato e me culpava achando que a maioria dos meus colegas não se aproximava de
mim por eu estar acima do peso.
Os exemplos positivos que me recordo são três professores: um de Biologia, um
de Química e Física e uma de Português, que conquistavam a atenção da turma saindo
da “mesmice”, levando inovações através de brincadeiras, vídeos, música, histórias.
Lembro-me que o professor de Biologia pra chamar a atenção dos alunos que fugia do
considerado bom comportamento referia-se a eles com alguma nomenclatura referente à
aula, como por exemplo: dicotiledônea, protozoário, celenterado, desmossomo,
dinoflagelado, enfim. Todos levavam na brincadeira e já éramos familiarizados com seu
jeito de trabalhar. Desse modo, assim como eu outros de seus ex-alunos ainda se
recordam de alguns termos utilizados por ele até hoje.
Foi com uma professora de matemática, na oitava série (hoje 9° ano), que tive a
oportunidade de participar do curso “Matemática no dia-a-dia”, oferecido pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro na Faculdade de Formação de Professores
(UERJ/FFP). Foi aí que entrei na UERJ pela primeira vez.
Formei-me no Ensino Médio em 2003 e em 2007 ingressei na Universidade
Federal Fluminense (UFF). Quatro anos e meio de muita aprendizagem, amizades,
ansiedades, desesperos, sonhos. Lá eu sorri, chorei, casei, engravidei. Anos preciosos e
marcantes.
Formei-me como Pedagoga em 2011, ainda gestante do meu primeiro filho. Um
ano que guardo com muito carinho, pois aconteceram dois fatos marcantes na minha
vida: formatura e maternidade.
Dediquei-me à maternidade e adiei minha inserção na área de trabalho como
Pedagoga. Porém, nesse meio tempo, fiz alguns cursos on-line (Ludicidade, Filosofia,
Sociologia, Ética) e presencial na UFF (Leitura literária), assisti sequenciais “Conversas
com professoras”, organizado pelo Grupalfa.
As palestras realizadas no “Conversas com professoras” foram muito
importantes para meu crescimento, pois tive a oportunidade de ouvir vários relatos do
que acontece na prática em sala de aula. Os sucessos e fracassos, dificuldades,
angústias, inquietações de professores que fizeram parte da minha construção do

sumário 523
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

conhecimento. Tive uma aproximação com fatos que eram tão distantes de mim, pelo
fato de nunca ter assumido nenhuma turma como professora.
Em 2015 passei por um processo seletivo para pós-graduação em Educação
Básica, na modalidade de Gestão Escolar na UERJ/FFP. Ao receber o resultado da
seleção e ver minha aprovação, não pude me conter com tamanha felicidade. Chorei,
sorri, contei aos amigos e familiares, comemorei mais uma vitória conquistada.
Havia muita ansiedade na espera do início das aulas, porém, logo na primeira
semana de aula, descobrimos que iríamos passar por uma greve, que acabou sendo uma
longa greve.
Nesse período, a prefeitura de São Gonçalo e, logo depois, a de Niterói abriram
concurso para o Magistério. Aventurei-me mais uma vez e prestei o concurso. Fui
aprovada nos dois concursos prestados, porém, nomeada e empossada para exercer o
cargo de professora docente II pela prefeitura de São Gonçalo.
Iniciei minha prática em 2016, em uma escola localizada numa região onde há
um alto índice de violência. As condições de moradia e saneamento básico são
precárias. Os alunos são moradores desse bairro ou de bairros vizinhos que se
encontram nessas mesmas condições.
Minha estreia na sala de aula não foi como idealizada. Planejei minha primeira
aula, muito inexperiente, acreditando num mundo mágico, em que todas as crianças
estariam em harmonia, com vontade de aprender, com respeito ao outro e que tudo
sairia conforme o previsto.
Entrei na sala de aula, me apresentei aos alunos e iniciei uma dinâmica. Logo
depois propus uma brincadeira em que os alunos deveriam encontrar alguns bombons
escondidos previamente na sala de aula. Começou a caçada e o aluno que achou dois
bombons foi surpreendido com socos, pontapés e empurrões pelo colega que não havia
encontrado nenhum. Fiquei assustada com aquele comportamento e chamei a diretora
da escola para me auxiliar, pois não estava conseguindo lidar com o ocorrido e, por
mais que eu conversasse e tentasse impedir que esses alunos se digladiassem, não estava
tendo sucesso.
Orientada pela diretora para que a chamasse toda vez que acontecesse atitudes
semelhantes, observei que para cada aluno havia um tipo de correção, mesmo quando
por comportamentos idênticos.
Conforme os dias foram passando, fui percebendo que esse comportamento
transgressor era frequente. Primeiro, imaginei que seria uma espécie de teste, em que eu

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VII Seminário Vozes da Educação

precisava ser submetida para que os alunos soubessem até onde poderiam ir, qual seria o
limite. Depois, conversando com os outros professores, descobri que essa conduta não
era exclusiva à minha sala de aula.
Observando não só a direção, mas a equipe gestora e seu importante papel diante
de desvios comportamentais possibilitaram a reflexão sobre esse tema. Assim, surge o
desejo de discutir as percepções dos gestores dessa escola a respeito da relação gestão
escolar e violência. Aprofundei-me, então, nessa discussão no Trabalho de Conclusão
de Curso da pós-graduação.
O problema da violência na escola tem sido um dos grandes desafios para
equipes gestoras e demais profissionais da educação. Esse fenômeno tem crescido nos
últimos anos e se tornado uma realidade que vem desafiando os educadores.
Estamos vivendo em um novo século com um quadro bastante diversificado e
complexo. Como educar num contexto de violência, corrupção, falta de ética, falta de
valores ou novos significados dados aos valores?
Há uma necessidade, de todo o corpo educacional presente na escola, de ajudar
os educandos a pensar, refletir, analisar o contexto partindo do cotidiano local para o
cotidiano global. Essa necessidade se dá a partir da permissão de um avanço num
conteúdo que possibilite ir além dos conhecimentos programados no currículo da
escola, atingindo um currículo que esteja comprometido com a construção do
sujeito/aluno na formação de sua cidadania.
Nessa minha caminhada pude perceber o quanto de nossa história carregamos,
mesmo que inconsciente, para nossa auto formação e autorreflexão, pois o memorial
“trata-se de um texto reflexivo de crítica e autocrítica” (PRADO, CUNHA e SOLIGO,
2008, p. 137).
Prado e Soligo (2007) citam Walter Benjamim (1987) e dizem que estão
alinhados com ele, pois este afirma que quando produzimos histórias, relatamos os
fatos, registramos nossas memórias. Que o ato de contar uma história faz com que ela
seja preservada do esquecimento criando-se a possibilidade de ser contada novamente.
Ao narrar, visitamos o passado na tentativa de buscar o presente, onde as
histórias se manifestam trazendo à tona feixes que ficaram “esquecidos” no tempo. E é
nesse processo que nos transformamos, pois somos protagonistas na construção do
conhecimento.“Os memoriais não são somente um exercício memorialístico na busca de
produzir sentidos para o percurso construído, mas a possibilidade de transformação”
(PRADO, CUNHA e SOLIGO, 2008, p. 138).

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Vitor Paro (2008) nos alerta que, para além da transformação humana, o
professor deve se agarrar à visão da educação comprometida com a transformação
social em que o educando não apenas está presente, mas também participa das
atividades que se desenvolvem na escola, ou seja, o educando é, ao mesmo tempo,
objeto e sujeito da educação.
Pensar na nossa trajetória e na nossa prática traz algumas indagações. Estamos
formando cidadãos críticos, reflexivos e conscientes do processo formativo?
Segundo Saviani (2009), nós devemos eleger a educação como prioridade, pois

assim procedendo, estaríamos atacando de frente, e simultaneamente, outros


problemas do país, como saúde, segurança, desemprego, etc. Sendo eleita
eixo do projeto de desenvolvimento nacional, a educação será a via escolhida
para atacar de frente todos esses problemas (SAVIANI, 2009, p. 153, 154).

Há muito, a educação com caráter de exclusão vem se desenhando. A história


nos mostra que desde seu descobrimento, o Brasil vivencia a lógica de
dominação/exploração. Ao longo da história percebe-se que, em nome da razão, muitas
formas de opressão foram maquinadas e, assim, a modernidade mostrou-se como fonte
de subjugação e repressão.
Essa lógica ainda se mantem presente na sociedade e, na escola, não é diferente.
A história dos saberes revela a produção de uma hierarquização e centralização dos
saberes. A educação nunca foi algo fundamental no Brasil. O analfabetismo permanece
alto. As políticas de educação reproduzem a formação do cidadão que acredita que não
compete a ele ser um sujeito político.
Saviani (2009) nos mostra como a história da formação docente no Brasil foi
conturbada. Mas, é através desse processo de reflexão que me questiono sobre minha
prática escolar e enriqueço minha formação.
Tenho contribuído para uma educação de qualidade? Baseando em Paulo Freire,
tenho ajudado o ser humano que por mim passa a humanizar o mundo e construir sua
própria história de sujeito autônomo, de modo consciente? Tenho colocado o diálogo
como “uma exigência existencial”? (FREIRE, 2005, p. 91)
Segundo Freire (2011), o educador não deve colocar sua preocupação em
transferir o conteúdo de uma caixa pronta de saber. O aluno também é um ser pensante
na construção do conhecimento. Ensinar é propor aos alunos pensar sobre o saber com

sumário 526
VII Seminário Vozes da Educação

mais profundidade; é criar possibilidades aos alunos para a sua própria construção; é
saber escutar o aluno e aceitar o novo.
Posto isso, para que haja uma educação de qualidade, cada professor deve estar
compromissado em desenvolver nos alunos, a capacidade de análise e reflexão crítica,
incluindo atividades que possibilitem a harmonia. Paro (2008) argumenta que cabe ao
professor desenvolver a consciência crítica de seus alunos, promovendo no educando
comportamentos de reflexão, de pesquisa, de questionamentos constantes, mesmo que
isto não esteja explícito nos currículos e programas. Desse modo, professores e alunos
são protagonistas na construção do conhecimento.
Para isso, a escola deve ser compreendida como integrante do processo de
formação do cidadão e da sociedade e não apenas, como uma mera reprodutora de
conhecimentos, mas como uma produtora de conhecimentos comprometida
socialmente.

Acrescente-se ainda o fato de que como o processo educacional tem por


objetivo o desenvolvimento social dos alunos, sua formação para a cidadania,
sua realização depende sobremodo de que o ambiente escolar apresente
qualidade e características compatíveis com os resultados pretendidos, isto é,
que seu modo de ser e de fazer, suas relações interpessoais e sociais, seus
valores, entre outros aspectos, sejam de tal natureza que correspondam aos
valores e expressões da cidadania e que esses aspectos possam ser
observados, analisados e compreendidos em sua vivência e que se aprenda a
partir dessa experiência (LUCK, 2006, p.40).

Além disso, é essencial que o professor dê continuidade à sua formação para que
haja uma melhoria em sua prática docente. Com minha formação inicial adquiri muitos
conhecimentos, mas não foi suficiente para sustentar meu dia a dia na sala de aula.
Buscava nas palestras, cursos, pesquisas e, até mesmo, em algumas situações em que
passei enquanto no lugar de aluna um saber necessário aplicável em determinadas
circunstâncias.
Como “não há ensino sem pesquisa nem pesquisa sem ensino” (Freire, 2011,
p.32), Esteban e Zaccur (2002) refletem sobre a pesquisa como eixo da formação
docente, sabendo que a pesquisa junto ao cotidiano formal e informal dá o suporte para
o entendimento e a busca de novas formas de reflexão e questionamento.
Segundo Esteban e Zaccur, a formação de professores reflexivos para a
educação centrada no aprendiz requer uma mudança de ensino, tendo o aprendiz como
centro do processo, conteúdos relevantes e respeito de acordo com suas experiências e
conhecimentos prévios.

sumário 527
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Geraldi (2004) diz que a formação do professor acontece depois de alguns anos
de estudos, onde se incorpora certos conteúdos. Mas, talvez, isto irá apenas formá-lo e
não torná-lo professor. Ele propõe uma contínua atualização para que o professor saiba
o que se produz de novo, para se tornar objeto de ensino, passando pelo processo de
transformação em conteúdo de ensino. Propõe, ainda, que o professor ensine de forma
que esteja sempre voltado para as questões do vivido, dos acontecimentos da vida, para
sobre eles construir compreensões, caminho necessário da expressão da própria vida.
Segundo o autor, o mais importante é “aprender a aprender”, para construir
conhecimentos, mesmo que as aprendizagens construídas ao longo do processo de
escolaridade sejam diferentes.
A formação continuada é imprescindível e possibilita ao professor saberes
necessários para aprimorar sua prática. Percebo a cada dia que o processo de
aprendizagem é contínuo. Para o professor comprometido com a educação deve-se ter
um desafio permanente de atualização de nossa prática pedagógica, para que se
desenvolver habilidades necessárias ao nosso cotidiano.
Sempre tive o desejo de, ao terminar a graduação, iniciar uma especialização.
Mas a vida tinha me reservado outras surpresas, o que me fez adiar minha continuação
na academia. Finalizei a especialização, mas não meus estudos, pois assumo o desafio
perpétuo que possibilite a meus alunos uma educação de qualidade.

Referências
ESTEBAN, Maria Tereza e ZACCUR, Edwiges (orgs). Professora-pesquisadora:
Uma Práxis em Construção. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

FREIRE, Madalena. Observação, Registro e Reflexão: instrumento metodológico I. 2ª


ed. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 49ª reimpressão. Paz e Terra, 1972/2005.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

GERALDI, João. Wanderley. Concepções de Linguagem e Ensino de Português. In:


GERALDI, J. W. (Org.). O texto na Sala de Aula. 3. ed. São Paulo: Ática, 2004, p. 39-
46.

LUCK, Heloísa. Gestão da cultura e do clima organizacional da escola. Série Cadernos


de Gestão. vol. V; Petrópolis/RJ: Vozes, 2006.

sumário 528
VII Seminário Vozes da Educação

MARTINS, João Carlos. Vygotsky e o papel das interações sociais na sala de aula:
Reconhecer e desvendar o mundo, 2010. Disponível em:
http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_28_p111-122_c.pdf. Acesso em:
13/10/2016.

PARO, V. H. Administração Escolar: Introdução crítica. 15. ed. São Paulo: Cortez,
2008.

PRADO, Guilherme do Val Toledo; SOLIGO, Rosaura. Memorial de formação -


quando as memórias narram a história de formação. In: PRADO, Guilherme do Val
Toledo; SOLIGO, Rosaura. (Org.). Porque escrever é fazer história - revelações -
subversões - superações: 2007.

PRADO, Guilherme do Val Toledo; CUNHA, Renata Cristina Barrichelo; SOLIGO,


Rosaura. Memorial de formação: uma narrativa pedagógica de profissionais de
educação. In: PASSEGGI, Maria da Conceição; BARBOSA, Tatyana Mabel Nobre
(Org.). Memórias, memoriais: pesquisa e formação docente. Natal: Editora da UFRN;
São Paulo: Paulus, 2008. p. 135-152.

SAVIANI, Demerval. Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do


problema no contexto brasileiro. In.: Revista Brasileira de Educação. v. 14 n. 40
jan./abr. 2009. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v14n40/v14n40a12.pdf. Acesso em: 05/12/2016

VYGOTSKY, Lev. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

VYGOTSKY, Lev. A construção do pensamento e da linguagem.Rio de Janeiro:


Martins Fontes, 2010.

sumário 529
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O CINEMA ATRAVÉS DA FÉ – QUESTÕES CURRICULARES COTIDIANAS

Juliana Rodrigues
UERJ/ProPEd
juliana_rodrigs@hotmail.com

Izadora Agueda
UERJ/ProPEd
izadoraagueda@yahoo.com.br

Uns quinhentos anos antes da era cristã, aconteceu na Magna Grécia a melhor
coisa registrada na história universal: a descoberta do diálogo. A fé, a certeza,
os dogmas, os tabus, as tiranias, as guerras e as glórias assediavam o orbe;
alguns gregos contraíram, nunca saberemos como, o singular costume de
conversar. Duvidaram, persuadiram, discordaram, mudaram de opinião,
adiaram... Sem esses poucos gregos conservadores, a cultura ocidental é
inconcebível... (BORGES, 2009, p.27).

Após um longo período de estudos, de trabalhos, de perdas e alguns ganhos,


começamos um pequeno esboço do que gostaríamos de escrever, então juntamos duas
coisas que trabalhamos sempre, o cinema, com algo que temos muita proximidade, a fé.
Nessa tarefa queremos levantar algumas discussões, de algumas visões que são
atribuídas à religiosidade, os seus ‘usos’ e ‘táticas’ (CERTEAU, 2012) que são
abordados nas telas. Quais questionamentos poderiam embaralhar e alucinar nossos
pensamentos sobre eles.
Fazemos parte de um projeto chamado “Processos curriculares e movimentos
migratórios: os modos como questões sociais se transformam em questões curriculares
nas escolas”, coordenado pela professora Nilda Alves, com financiamento do CNPq,
CAPES, FAPERJ e UERJ, cujo principal lócus de desenvolvimento são as ‘conversas’
que aparecem em torno de filmes ‘vistosouvidossentidospensados’. Acontecem então
‘conversas’ em torno de temáticas introduzidas pelo processo de ‘verouvirsentirpensar’
os filmes, estes voltados, neste momento, a temáticas migratórias. Temos o filme como
um recurso para que nos permita ter ‘conversas’ sobre vários assuntos, não
necessariamente sobre educação, mas no modo geral, o que o filme te remete sobre suas
vivencias, seus estudos, sobre cotidianos em geral. O filme é o pontapé inicial para se

sumário 530
VII Seminário Vozes da Educação

pensar e questionar assuntos importantes. Assuntos abordados nos filmes podem virar
discussões importantes sobre como os cotidianos estão sempre em rede.
Com a ideia da epígrafe sobre as possibilidades das conversas, podemos, então,
‘fazerpensar’76 juntos através dessas palavras e o que elas traduzem. Em primeiro lugar,
o cinema pode tornar tudo mais atrativo e interessante, já que aguça os sentidos das
pessoas em seus diversos cotidianos nas redes educativas que todos formamos e
naquelas nas quais, concomitantemente, somos formados. Entendo as pessoas, os
indivíduos, como “praticantes” (CERTEAU, 1998), e com o acréscimo que lhe deu
Oliveira (2012), como ‘praticantespensantes’ 77 da vida cotidiana, considerando que,
mesmo estando em um mundo que tenta salvaguardar o poder das chamadas classes
dominantes, vivemos ‘espaçostempos’ onde as regras não são estabelecidas por forças
hegemônicas. No entanto, essas regras são usadas de modo próprio pelos
‘praticantespensantes’, “em acordo com as ocasiões” e a métis (DÉTIENNE;
VERNANT, 2008) dos indivíduos. Essas formas de intervenções nos ‘espaçostempos’
são denominadas nos cotidianos de “táticas”, por Certeau (2012). E elas intervêm
inclusive em novas definições normativas, sendo entendidas como produtos de
negociações de sentidos entre diferentes organizações e grupos sociais.
Nessa lógica também de “usos”, “consumo” e “táticas” 78 é que se dão as
inúmeras expressões de fé e compreensões da Virgem Maria. É um pouco do que o
longa-metragem ao qual nos referimos logra apresentar. Somente para melhor
compreender a complexidade dessas relações, trazemos o próprio termo “religião”,

76
Este modo de escrever estes termos juntos e grafados – tais como os termos ‘aprenderensinar’,
‘práticateoria’, ‘praticantespensantes’, ‘espaçostempos’, ‘conhecimentossignificações’,
‘docentesdiscentes’, entre outros – é utilizado em pesquisas nos/dos/com os cotidianos e serve para nos
indicar que, embora o modo dicotomizado de criar conhecimento na sociedade Moderna teve sua
significação e importância, esse modo tem significado limites ao desenvolvimento de pesquisas nessa
corrente de pensamento. É assim que usamos nos textos que emergem do grupo de pesquisa do qual
fazemos parte, sob a coordenação de Nilda Alves.
77
Certeau (1998), que é um dos autores base para muitos dos autores de currículo, escreve dos
“praticantes” das redes cotidianas. Mas os que trabalham com currículos sabem que não há prática sem
pensamento, o que, aliás, o próprio Certeau afirma. Isso permitiu criar a figura “praticantespensantes”,
entendendo a forte relação à teoria.
78
A ideia de “táticas” está associada à ideia de “estratégias”, em Certeau. Oliveira as destaca da seguinte
forma: “estratégias são, portanto, ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de
um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um
conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem. Elas combinam esses três tipos de lugares e
visam dominá-los uns pelos outros. Privilegiam, portanto, as relações espaciais (...). As táticas são
procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo – às circunstâncias que o instante preciso de
uma intervenção transforma em situação favorável, à rapidez de movimentos que mudam a organização
do espaço, às relações entre momentos sucessivos de um “golpe”, aos cruzamentos possíveis de durações
e ritmos heterogêneos etc.” (CERTEAU, 1994, p. 102 apud OLIVEIRA, 2008, p. 59).

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

umas das compreensões de “religião” perpassam no sentido de “religar”. Como Klaus


Hock nos apresenta:

Lactâncio, um escritor e orador cristão do século III/IV, porém, indica um


outro significado: ele deveria religio de religare —ligar (amarrar), ligar de
novo, ligar de volta, levar de volta. Mais tarde, o grande teólogo cristão
Agostinho (354-430) adota essa definição e descreve a religio vera, a
“religião verdadeira”, como aquela que é orientada pelo zelo de reconciliar e
“ligar de volta” a alma que se afastou de Deus ou se desgarrou dele.
Recentemente foi a proposta uma terceira variante: derivar religio de rem
ligare, “amarrar a coisa”, no sentido de “descansar das inquietudes” (HOCK,
2010, p. 18).

No filme, estarão alguns pontos que permitam discutir os modos como às


questões religiosas têm aparecido na sociedade, analisando a geração de crenças, mitos,
ritos, em ações diversas, marcando diferentemente as condutas.
Contudo, não é nosso desejo nos debruçar sobre os dogmas da fé Católica e
analisá-los, vírgula por vírgula, documento por documento, mas sim estabelecer uma
conversa, um diálogo que muitas vezes se faz intenso, mas com o qual tento expressar
minhas poucas certezas e algumas dúvidas. Desse modo:

em vez de propor um outro lugar com que a utopia nos faz sonhar,
Boaventura indica a necessidade de um deslocamento radical dentro do
mesmo lugar, que é o nosso, um deslocamento que passe a se preocupar com
o que se faz em espaços/tempos antes julgados comuns e mesmo ignorados,
mas que têm uma enorme importância já que é neles que vivemos
concretamente nossa vida (ALVES, 2011).

Ter uma visão diferenciada da qual já se possui torna-se bastante interessante e


intrigante. Principalmente quando se vive e professa um culto. Apesar de não acreditar
na total parcialidade, tentamos nesse pequeno ensaio fazer como Boaventura 79 nos diz
através das palavras da Professora Nilda Alves: “um deslocamento radical dentro do
mesmo lugar (...) mas que têm uma enorme importância já que é neles que vivemos
concretamente nossa vida”.
O cinema não é como fonte geradora, mas como uma grande rede o cinema
ajuda a emaranhar as discussões sobre as múltiplas relações de fé, de Deus, do sentir, da
veneração, do doar-se etc. Nele, utilizo-me de um filme para conversar o tema e para ser
o nosso ponto de partida, destacando com Alves (2012) o seguinte:

79
Como Alves (2011), trato este autor por Boaventura porque é como comumente é chamado e porque é
um lindo nome. Trata-se de Boaventura de Sousa Santos, importante sociólogo português.

sumário 532
VII Seminário Vozes da Educação

a escolha do cinema como polarizador de ‘conversas’ se deu tanto por


interesse pessoal do grupo de pesquisa, como porque esse meio – que
assumimos como arte - articula múltiplas possibilidades: é junção de imagens
e sons; faz aparecer espaçostempos do viver humano em uma gama
incomensurável, caracterizando inúmeras possibilidades, problematizações
ou tensões às relações humanas; é, entre as artes, a que se coloca a meio
caminho entre aquelas mais herméticas – e para as quais é preciso ‘chaves’
especiais de conhecimento, como a música chamada ‘erudita’ – e as mais
populares, como as músicas características de cada região ou país, por
exemplo; o acesso a filmes se dá através de inúmeros meios (salas de cinema;
televisão; vídeo; internet; templos religiosos; escolas; etc), cujas redes de
troca são ainda muito pouco conhecidas e que é preciso conhecer.

O filme escolhido foi o Auto da Compadecida, baseado na obra de Ariano


Suassuna, um escritor brasileiro nascido em João Pessoa, Paraíba. Conhecido como
defensor da cultura brasileira, especialmente pela cultura do sertão e de sua região.
Iniciador do Movimento Armorial, que se interessava pelo conhecimento e
desenvolvimento das formas de expressão populares tradicionais. Auto da compadecida
é uma peça teatral em forma de auto (gênero da literatura que trabalha com elementos
cômicos e tem intenção moralizadora). É uma comédia dramática nordestina
apresentada em três atos. Contém elementos da literatura de cordel e está inserido no
gênero da comédia, se aproximando, nos traços, do barroco católico brasileiro. Trabalha
com a linguagem oral e apresenta também regionalismo através da caracterização do
nordeste. A peça foi escrita em 1955 e encenada pela primeira vez em 1956. Anos mais
tarde, foi adaptada para a televisão e para o cinema, em 1999 e 2000 respectivamente.
Dirigido por Guel Arraes (Miguel Arraes de Alencar Filho), levou o livro para o
mundo do cinema, manifestou de forma fiel a imagem da história e conseguiu
conquistar o povo brasileiro, consagrando o Auto da Compadecida como o 63º melhor
filme brasileiro de todos os tempos, segundo a Abraccine (Associação Brasileira de
Críticos de Cinema).
Utilizando o cinema dentro da perspectiva de narrativas de Deleuze, pois o
mesmo acreditava que as narrativas e a imagens são uma única e mesma coisa: “O
fílmico não se opõe ao narrativo, ao contrário, eles são quase sempre consubstanciais”
(Gilles Deleuze, 1968 apud PARENTE, 200, pag.9). Com esta análise e as narrativas a
serem realizadas, podemos pensar as diferentes relações que são postas tanto no cinema
como em nossa sociedade. Percebendo as relações de fé e de razão que são
estabelecidas a se ver um filme, ou as ações dos chamados fundamentalismos, podemos
reconhecer que a questão da religiosidade é um tema que permeia a vida cotidiana de

sumário 533
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

muitos ‘praticantespensantes’, ou seja, que possibilita ao usuário múltiplos significados


formando, assim, diferentes redes de conhecimento.
E assim, vai além, explicitando que também produzimos e consumimos imagens
e sons, como filmagens, músicas etc. Com eles também permanecemos muito tempo e
direcionamos nossas pesquisas para caminhos diferentes pensados pelo autor,
produzindo outras coisas. Dessa forma estamos em contato permanente com
“personagens conceituais”, que são as imagens, os sons, os filmes, as narrativas, as
filmagens.
Os “personagens conceitos” (DELEUZE; GUATTARI, 1992) são criados para
com eles se criarem outras coisas, são intercessores. Em nossos estudos, nossos
intercessores são autores que lemos, a orientação, os colegas de grupo, alunos da
graduação, a família, enfim, toda a rede de relacionamentos pela qual nós formamos e
somos formados. Para Deleuze e Guattari “cada um de nós é envolvido num tal
agenciamento, reproduz o enunciado quando acredita falar em seu nome, ou antes fala
em seu nome quando produz o enunciado” (1995, p. 50).
Guerón (2011) afirma que para Deleuze, cinema e realidade não são duas
instâncias distintas. O cinema é, na verdade, descrito como “uma possibilidade, uma
potência do real” (p. 13). Trabalhando em cima da paisagem e das ações encandeadas
por trás, que buscam retratar uma espetacularização do real, podemos discutir alguns
temas necessários à Religião. Como desejo fazer nesse pequeno trabalho, neste sentido,
fica evidente que o filme e alguns temas relacionados no nosso cotidiano, como a
religião, juntos são capazes de encandear um sentido em nossa vida e endossar os
argumentos de Deleuze, de que “cinema é antes de tudo um dispositivo produtor de
imagens, que é também capaz de detectar, descontruir e superar os clichês como um
estágio de impotência da imagem” (p. 12).
A religião e o cinema, na contemporaneidade, podem se complementar e realizar
um trabalho potencializador no processo de ‘aprendizagemensino’. O uso desse artefato
cultural pode permitir uma eficiência nas provocações relativizadas, quando utilizados
de forma reflexiva. O cinema contribui para que as ações vivenciadas nas telas ganhem
uma maior notoriedade, pois muitas pessoas ainda visualizam o cinema apenas como
uma forma de lazer, e ao ser apresentado de forma crítica, elucida as reflexões, as
diversas possibilidades que um filme pode ter na sociedade, inclusive de ser um
produtor de discussões, conversas e teorias.

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VII Seminário Vozes da Educação

(...) passei a tomar o cinema como uma produção cultural que não apenas
inventa histórias, mas que, na complexidade da produção de sentidos, vai
criando, substituindo, limitando, incluindo e excluindo “realidades”.
Portanto, passei a tomar os filmes como produções datadas e localizadas,
produzidos na cultura, criando sentidos que a alimentam, ampliando,
suprimindo e/ou transformando significados (Fabris, 2008, p. 120).

Maria, a compadecida

Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa dá leite, A


braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, A braba levanta o pé. Já fui
barco, fui navio, Mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, Só me falta
ser mulher. Já fui barco, fui navio, Mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui
homem, Só me falta ser mulher. Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de
Nazaré (Fala do João Grilo, evocando Maria).

Nossa Senhora, Maria livre, Maria escrava, Maria mestra. Várias são as
titulações que envolvem a figura de Maria, para alguns um ser inigualável, para outros
uma escrava de sua missão. Diversos são os seus significados, coletivos ou individuais,
que a mãe do filho Deus possui. Muitas vezes não observamos a presença efetiva da
religião, principalmente da religiosidade popular presente na literatura ou no cinema.
Há, em muitos autores um ensinamento enriquecedor sobre a maneira como uma
pessoa, revestida do personagem, evoca sua fé e invoca seus santos e protetores.
Particularmente, na obra de Ariano Suassuna, Auto da Compadecida, podemos sentir a
proximidade do fiel com Jesus, Maria e os Santos. Simplicidade da fé nesta relação que
não diminui a profundidade do respeito pelo sagrado.

Maria aparece grande, antes, excelsa, definida “Cheia de Graça”, plena de


privilégios. Esses privilégios, enquanto a elevam acima de todos os homens,
não a tornam estranha a eles. Pelo contrário, Maria aparece ainda mais
humana porque é posta completamente em relação aos homens, feita para
ser- -lhes modelo e a eles doada como benfeitora. Maria, mesmo sendo filha
de homem, é irmã de todos, é mãe de uma vida nova para todos (DEL
GAUDIO, 2016, p. 5).

Sendo assim, relacionamos a visão do autor em relação à Maria com elementos


mariológicos o Auto da Compadecida que nos possibilitam uma análise sobre a
mediação de Maria e a intercessão por ela realizada em prol dos seus filhos e filhas
espirituais. “Maria é o ícone do mistério cristão na sua totalidade, é a síntese daquilo
que o Deus trinitário faz para o homem e, ao mesmo tempo, é a síntese daquilo que a
criatura torna-se capaz pelo seu Deus” (FORTE, 2005, p. 103).

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O filme perpassa no vilarejo de Taperoá, no sertão da Paraíba, cenário nacional.


Muitas pessoas se identificam com a obra devido à proximidade com a cultura popular e
o moderno que tinha como ferramenta a coloquialidade e o regionalismo nordestino. O
filme mistura a literatura popular nordestina e como retrata as diversas histórias do povo
brasileiro, assim retrata também a devoção e a veneração à figura da Virgem Maria. No
Brasil, assim como na América Latina, a presença da devoção e do culto a Maria,
sempre foi uma constante. Não podemos negar que a devoção a Maria é uma grande
característica persistente do cristianismo latino americano que se é apresentada de uma
maneira popular e única. “Em Maria, encontramo-nos com Cristo, com o Pai e com o
Espírito Santo, e da mesma forma com os irmãos.” Essa importância nos é dirigida
através dos Bispos no Documento de Aparecida.

Assim, podemos afirmar que no Brasil, a exemplo dos outros países da


América Latina, a devoção a Maria constitui uma experiência vital e
histórica. Desde o início da chegada dos portugueses ao Brasil, se, de um
lado, Maria, em um primeiro momento, conferiu ânimo aos conquistadores
que trouxeram sua imagem nas caravelas que os transportavam, por outro
lado, em um segundo momento, conferiu esperança aos colonizados,
dignidade aos escravizados e motivação para todo tipo de desafortunados.
Isto é atestado pelos inúmeros títulos com os quais é invocada no Brasil
(CIPOLINI, 2010).

Dentro da memória da veneração mariana no Brasil encontramos essa história


tecida por fé, admiração, esperança, exageros, interesses, sincretismo, chagas,
rivalidades, parcerias, sonhos e outros que poderíamos escrever. Ou seja, são muitos os
‘praticantespensantes’, os enredos e desejos. Contudo é uma história humanizada
através do ideal divino da Mãe do Cristo, que permeia o ambiente cultural brasileiro.
Muitos foram os locais de devoção construídos como forma de agradecimento à
Maria Santíssima, que tem o papel de ser sempre a intercessora dos seus filhos
espirituais junto a Jesus, ressaltando, que, esta veneração popular tende apresentar de
modo mais confiante o lugar especial que Maria ocupa na Igreja. Depois de Cristo, que
é o único Mediador entre nós e Deus, está Nossa Senhora, acima de todos os anjos,
santos e santas. Geralmente as pessoas acreditam que é ela que está mais próxima de
todos nós. Por isso venerada com muitos títulos carinhosos. Dentre eles os que mais se
aproximam do povo que sofre como: “Advogada dos aflitos” “Saúde dos Enfermos”,
“Ajuda dos Cristãos”, “Refugio dos Pecadores” entre muitos outros que são atribuídos a
Virgem, assim como, em diversas ocasiões de perigos, de necessidades e de
agradecimentos.

sumário 536
VII Seminário Vozes da Educação

Esta maternidade de Maria na economia da graça perdura sem interrupção,


desde o consentimento, que fielmente deu na anunciação e que manteve
inabalável junto à cruz, até à consumação eterna de todos os eleitos. De fato,
depois de elevada ao céu, não abandonou esta missão salvadora, mas, com a
sua multiforme intercessão, continua a alcançar-nos os dons da salvação
eterna (185). Cuida, com amor materno, dos irmãos de seu Filho que, entre
perigos e angústias, caminham ainda na terra, até chegarem à pátria bem-
aventurada. Por isso, a Virgem é invocada na Igreja com os títulos de
advogada, auxiliadora, socorro, medianeira (186). Mas isto entende-se de
maneira que nada tire nem acrescente à dignidade e eficácia do único
mediador, que é Cristo (187) (LUMEN GENTIUM, nº62).

Todo aquele que já teve uma mãe sabe que pode chama-la a qualquer momento,
que a mesma daria algum jeito de atender, não importa se era um bom ou mau filho,
pois, como varias mães dizem, todos os filhos são iguais e merecem seu amor total,
especialmente nos momentos mais difíceis. Podemos perceber essa atenção quando o
personagem João Grilo fala: – “Eu tenho um trunfo, e é maior do que qualquer santo é a
Mãe da Justiça, (...) vou fazer um chamado especial e ela virá me defender.” E na
simplicidade e esperança chama a “advogada dos aflitos” para auxilia-lo, assim como
muitos brasileiros com a devoção mariana.

Conhecer Maria de Nazaré significa entrar no mistério de uma mulher que


Deus colocou no centro da história da salvação, como Mãe do Verbo
encarnado, e, por esse dom, tornou-se Mãe da Igreja e da humanidade
redimida por seu Filho. Significa, portanto, conhecer as raízes da nossa fé,
entrando em sintonia com aquela que foi chamada para ser Mãe de Deus e
Mãe da humanidade, a criatura mais próxima às pessoas do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, tendo conservado no seu seio Cristo Jesus, guiando-nos a ele
todos os dias mediante a sua oração de intercessão (DEL GAUDIO, 2016, p.
11).

Com esse filme podemos salientar a importância em ampliar o diálogo inter-


religioso e o respeito entre todos. Vivemos em um país com forte histórico de migrações
e, portanto, de grande diversidade religiosa. Infelizmente registramos inúmeras histórias
de perseguições de cunho religioso, muitas vezes atreladas a questões raciais, étnicas e
de classe. A garantia legal de que intolerância religiosa é crime pode ser o ponto de
partida para a abertura ao diálogo.
Porque cremos que a convivência nas diferenças pode contribuir e muito para
erradicar os efeitos nocivos da intolerância religiosa e no sentido de compreender que as
múltiplas formas de crer e a de não crer ‘entramsaem’ das escolas mundo afora,
procuramos salientar a importância do respeito as escolhas dos estudantes, bem como de
toda a comunidade escolar, sempre com o desejo de garantir a laicidade na escola.

sumário 537
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Filme
O Auto da Compadecida. Direção: Guel Arraes. Brasil, 2000, 104 min., colorido.

Referências
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caso do cinema suas imagens e sons. Financiamentos CNPq, FAPERJ e UERJ, 2012-
2017. 2012. (Projeto de Pesquisa)

ALVES, Nilda; OLIVEIRA, Inês Barbosa de; MACEDO, Elizabeth; MANHÃES, Luiz
Carlos. Criar currículo no cotidiano. São Paulo: Cortez, 2011.

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano – artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

CIPOLLINI, Pedro Carlos. A devoção mariana no Brasil. Teocomunicação, v. 40, n. 1,


2010. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/teo/article/view/7774/5519>. Acesso
em: 16 mar. 2017.

DELEUZE, Gilles; GATTARI, Félix. Personagens conceituais. In DELEUZE, Gilles;


GATTARI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed 34, 1992: 81-109.

DETIENNE, M.; VERNANT, J. P. Métis: as astúcias da inteligência. São Paulo:


Odysseus Editora, 2008 [1974].

FABRIS, Eli. Em Cartaz – O cinema brasileiro produzindo sentidos sobre escola e


trabalho docente. Porto Alegre, UFRGS, 2005, 250 p., Tese (Doutorado) – Programa de
Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.

FORTE, B. Maria, a mulher ícone do mistério: ensaio de Mariologia simbólico


narrativa. [Tradução de Benôni Lemos]. São Paulo: Paulinas, 1991.

GUÉRON, Rodrigo. Da imagem ao clichê, do clichê à imagem: Deleuze, cinema e


pensamento. Rio de Janeiro: Nau editora, 2011.

GAUDIO, Del Daniela. Maria de Nazaré, Breve Tratado de Mariologia. São Paulo:
Paulus, 2016.

LUMEN GENTIUM. In: Documentos do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus,
1997.51.

OLIVEIRA, Inês Barbosa. Currículos e pesquisas com os cotidianos: o caráter


emancipatório dos currículos ‘pensadospraticados' pelos ‘praticantespensantes' dos
cotidianos das escolas. In: Carlos Eduardo Ferraço e Janete Magalhães Carvalho (orgs.).
Currículos, pesquisas, conhecimentos e produção de subjetividades. Petrópolis: DP
et Alli, 2012: 47-70.

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 26. ed. Rio de Janeiro: Agir,1993.

sumário 538
VII Seminário Vozes da Educação

NARRATIVAS DISCENTES: DIÁLOGOS ENTRE A EXPERIÊNCIA DE


FORMAÇÃO DOCENTE E A UNIVERSIDADE PÚBLICA80

Verônica Fabiola Neves Rodrigues


UFF
veronicafabiola@id.uff.br

Heriédna Cardoso Guimarães


UFF
heriedna@gmail.com

A universidade como espaço-tempo de formação: narrativas de nossas


experiências
O espaço universitário público, laico e direito de todos vive neste momento uma
onda de incerteza que, de modo geral, atinge tudo aquilo que estruturava e parecia
seguir o melhor caminho na sociedade brasileira. Parte da famosa frase de Marx e
Engels no Manifesto Comunista ou o título do ensaio do autor estadunidense Marshall
Berman “tudo que parece sólido se desmancha no ar”, nos remete a esta sensação de
insegurança que pode ser refletida nas pessoas quando percebem que instituições de
grande peso social como as Universidades podem ser atacadas de forma ultrajante como
vem acontecendo atualmente, deixando a sociedade atônita e perdida.
Falar sobre a universidade pública é falar dos sonhos de muitas pessoas, é falar
da história que estas pessoas trazem e também das mudanças históricas para o perfil do
estudante dessa instituição no Brasil. Como exemplo, apresentamos a seguir as
narrativas de nossas experiências de formação. Estas narrativas compõem o nosso olhar
singular, dimensões institucionais, sociais e políticas que nos perpassam como sujeitos
professores – uma formada em licenciatura em Pedagogia e outra licenciada em Física,
ambos os cursos experienciados em uma universidade federal situada no Rio de Janeiro
– e atualmente alunos de Pós-Graduação em Educação na mesma universidade, ambas
oriundas de famílias da baixa classe média81, ambas sujeitos resistentes e persistentes.

80
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES).
81
Este termo é o proposto pela Associação Brasileira de Empresas e Pesquisas (Abep) para famílias com renda
média de R$ 2.674. A Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) do governo federal adota um valor diferente
dividido entre renda per capita de até R$ 441 e renda familiar de até R$ 1.764; estes valores são utilizados

sumário 539
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A pedagogia e o redimensionamento de vida


As políticas públicas implementadas no Governo Lula possibilitaram o acesso de
pessoas como eu, oriunda das classes populares, onde chegar a uma universidade
pública era uma questão de sorte que acontecia para poucos ou apenas um sonho
inalcançável. A história da minha experiência com essa instituição, e toda a influência
que exerce em minha vida desde do momento da minha entrada pela portaria em direção
ao bloco D, o bloco da Educação, me faz reconhecer que esta escolha fez e faz toda a
diferença no que vivo a partir deste momento; relembrar minha trajetória institucional é
refletir como nos propõe Franco Ferrarotti (2014, p. 41), pois “toda a vida humana se
revela, até nos seus aspectos menos generalizáveis como a síntese vertical de uma
história social”.
No ano de 2013 ingressei no curso de Pedagogia na Universidade Federal
Fluminense; entrar em uma universidade pública aos 45 anos não é apenas um sonho
realizado por uma mulher que aos 17 anos ouviu a seguinte frase: nem adianta tentar o
vestibular, a possibilidade de você aluna de escola pública passar é muito remota, é
melhor procurar um emprego para ajudar sua mãe. Por mais que doesse ouvir isto, tinha
que reconhecer que não tinha alternativas para poder concorrer a uma vaga, filha de mãe
solteira e mais velha de 5 irmãos era empurrada para fora antes mesmo de tentar. Para
ter alguma possibilidade teria que fazer um cursinho, mas eu sabia que não havia como,
estes eram muito caros e minha mãe apostou na minha irmã e naquele momento pagava
a faculdade para ela e com certeza não conseguiria pagar para duas. Bem, me conformei
e fui trabalhar para ajudar em casa, passaram-se os anos, mas dentro de mim havia uma
lacuna na minha formação, eu sentia necessidade de estar neste lugar e lá no fundo de
minha alma esperava pacientemente a minha vez.
Casei, descasei, casei de novo, e trabalhei muito e de certa forma tinha o
reconhecimento pelo meu trabalho, financeiramente eu ganhava muito mais do que
amigas minhas que tinham formação acadêmica. No ano de 2005 me separei e voltei a
morar com minha mãe, neste momento ela estava se aposentando e juntamos forças para
construir uma casa em um terreno que ela comprou há alguns anos na região oceânica
de Niterói, sabia que aquele lugar estava em crescimento e seria um bom negócio fazer
esta casa. Quando voltei para morar com minha mãe estava em um processo de reflexão

desde o ano 2014. Dados extraídos de <http://g1.globo.com/economia/seu-dinheiro/noticia/2013/08/veja-


diferencas-entre-conceitos-que-definem-classes-sociais-no-brasil.html>. Acesso em 21 de outubro 2019.

sumário 540
VII Seminário Vozes da Educação

sobre a minha vida, sobre o que eu queria realmente fazer dela, estava destroçada com o
término de meu segundo casamento e precisava dar um sentido novo à minha
existência, então, voltei a estudar, finalizei o ensino médio e resolvi investir em uma
formação acadêmica privada; fiz até o quarto período de Direito, mas não contava com
os revezes da vida, em 2007 minha mãe morreu em 10 minutos por ocasião de um
acidente vascular cerebral (AVC), fiquei sem chão durante 2 anos, a renda dela e minha
juntas nos deixava ter uma vida confortável, mas com sua morte me vi em graves
problemas financeiros, pois, agora tinha que dar conta de todas as despesas de uma casa
com 4 pessoas e um cachorro, sem ajuda, meus irmãos estavam sem trabalho e só a
minha renda segurava toda casa.
Meu filho estudava em um preparatório para carreiras militares e que também
dava formação para os vestibulares e o ENEM, que era muito caro e consumia grande
parte da minha renda, mas eu não queria que suas possibilidades de realizar seu sonho
de ser engenheiro, acabasse como o meu, fui segurando até o final e ele conseguiu
passar em engenharia na UFF, neste momento, via na televisão propaganda do governo
falando sobre o programa “Universidade para todos” e pensei agora é o meu momento
de voltar novamente a estudar.
Os acasos da vida me levaram ao Centro de Educação a Distância do Estado do
Rio de Janeiro (Cederj); ao conversar com um amigo em um bate papo e cervejinhas na
Tijuca, bairro de nossa infância e juventude, ele me falou sobre o consórcio de
Universidades Públicas onde estava cursando Administração e sobre o Pré-Vestibular
Social o (PVS), me interessei e fui atrás, um ano depois, no final de 2012, tinha passado
em História no Cederj, em História no vestibular da UERJ e conseguido a vaga pelo
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em Pedagogia na UFF, conclui este curso
em 2017.
Apesar de ouvir críticas de algumas pessoas, pois, para estes eu estava tirando a
vez de um jovem entrar na universidade pública federal, e que este não era o meu lugar,
aquele era o meu momento, uma oportunidade que não poderia desperdiçar por causa
das bizarrices de uma sociedade que cria estereótipos de estudante; estava lá por direito,
concorri por ampla concorrência e mesmo que tivesse sido por políticas afirmativas
também seria meu direito, pois, em uma sociedade que exclui por causa da cor da pele,
pela condição social, uma sociedade que naturalizou a desigualdade, que empurra a
maioria de jovens e adultos para uma vida cheia de dificuldades por causa de uma

sumário 541
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

cegueira burguesa que sobre expropria a nossa força de trabalho e de uma heteronomia
cultural e social, tudo é mais difícil e em tempo diferente, em geral tardio.
Cursar a graduação em Pedagogia e trabalhar foi uma situação complicada,
todavia, no decorrer deste movimento inseri-me como monitora e passei a usufruir de
uma bolsa de monitoria, tanto a ajuda financeira quanto a experiência como monitora
foram tão importantes que, hoje, após a formatura da graduação em Pedagogia, estou no
meio da graduação de Geografia e no curso de Mestrado Acadêmico em Educação, e
dediquei-me a estudar a relação entre monitoria e formação de professores. É a
experiência que nos passa e nos marca de modo a não encerarmos os momentos de
formação institucional. Esta dimensão de infinito recomeço e nunca totalização do
conhecimento e consequentemente de nossa construção como sujeitos que somos é fruto
do espaço universitário. Se hoje permaneço frequentando os corredores universitários
não é só por ascensão profissional, mas também, e principalmente, pela possibilidade de
constante descoberta, que independe da idade, do gênero, das dificuldades, dos estios a
universidade plural, pública, laica e em construção democrática nos possibilita.
Quando fui monitora na disciplina Psicologia da Educação, que é ofertada a
vários cursos, observei, junto com minha professora orientadora, que muitos
licenciandos não sem veem como professores, ou não querem se ver neste lugar apesar
de seus cursos serem de licenciatura; é comum entre os alunos, ao perguntarmos que
cursos faziam, respostas como: matemáticos, físicos, historiadores, mas nunca
professores; isto nos levou a pensar sobre esta recusa, sabemos das dificuldades de ser
professor em nossa sociedade, mas o que mais nos preocupa é observar que um jovem
que se forma em uma licenciatura recusa este lugar de professor já no começo de sua
formação. Eu mesma tenho a minha história de recusa, pois, nos anos 80, quando entrei
para o ensino médio minha mãe insistia para que eu fizesse o curso normal, morava
praticamente ao lado do Instituto de Educação na Tijuca, mas só de pensar que não teria
reconhecimento profissional e financeiro, a profissão de professor não foi cogitada por
mim de forma alguma, e eu sempre dizia na minha ambição de futura trabalhadora - eu
quero ganhar dinheiro -, pois é, realmente ganhei e na profissão que escolhi era
reconhecida, mas me pergunto porque dentro de mim sentia falta de uma formação
acadêmica e porque quando pude escolher escolhi cursos de licenciatura como história,
pedagogia , geografia, é certo que fiz direito também, mas não me senti tão apaixonada
pelo curso como no de pedagogia. Sinto que esta escolha em uma idade madura não foi
por acaso, mas sim, o reconhecimento de que a profissão de professor já era uma

sumário 542
VII Seminário Vozes da Educação

escolha antiga que fingia não ver, pelos problemas que circundam a profissão e não pela
profissão em si.
Este momento de rememoração de minha trajetória faz-me sentir mais forte
acerca de minhas escolhas, mas sem nunca esquecer que estas realizações também
aconteceram pela a oferta do poder público de uma dita “Universidade para Todos”, que
influenciou a mudança de minha trajetória de vida, formação e profissão. Escrever sobre
a Universidade Pública e dividir a co-autoria deste trabalho com Heriédna, que conheci
nos corredores e salas da universidade, colocando em diálogo os nossos olhares de
como a universidade pública brasileira se apresenta para nós, que somos parte dela, e o
modo que parte da sociedade brasileira a enxerga neste momento atípico e complicado
de nossa história, e uma tentativa de mostrar e ratificar que a universidade pública
brasileira é para brasileiros é plural, é para brasileiros que sentem as mazelas e os
impactos diretos da desigualdade que aqui se instala, é mostrar que ser professor é estar
em diálogo com as diferentes áreas do saber, a ponto de na Pós-Graduação ser possível
o encontro de uma licenciada em pedagogia e uma licenciada em física.
Só a universidade consegue unir diferentes áreas de conhecimento; a
universidade é “um todo que agrega uma diversidade de campos do saber, ou seja, uma
unidade na diversidade” (PAULA, 2000, p. 12), que se materializa, por exemplo, nas
discussões que realizamos no âmbito dos estudos que realizamos em conjunto no Grupo
de Estudos e Pesquisa de Processos Institucionais de Formação (GEPPROFI), espaço-
tempo que nos aproxima.

A licenciatura em física: uma opção ou consequência?


Frequentar, participar nem sempre é sinônimo de sensação de pertencimento ao
espaço, ao contexto social, tanto que algumas participações se reduzem a momentos
burocráticos, que precisamos cumprir. Inicio a minha narrativa com essa colocação
porque a transição entre o Instituto de Física e a Faculdade de Educação que
experiencio desde a graduação em física com as disciplinas ministradas no bloco D,
adensada com a opção pelo curso de Mestrado em Educação e atualmente pelo
Doutorado em Educação, está sempre pautada na pergunta silenciada: a licenciatura é
uma opção ou consequência de minha classe/realidade social?
Minha mãe, tia, irmã, prima são professoras da Educação Básica, todas cursaram
a graduação em instituições privadas ou a distância, meu pai agricultor – não concluiu a
sétima série do antigo segundo grau –, e meu irmão mais novo cursa atualmente

sumário 543
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

agronomia na Universidade Federal do Espírito Santo, estado que nasci; cresci


escutando história de escola, sempre o espaço-tempo comum e, portanto, aquele que a
família conhecia bem, aquele que não gerava medo ou insegurança sobre a manutenção
da vida de uma jovem que foi fazer física, o que não significa que este espaço de
trabalho fosse signo de ascensão social ou melhora de vida financeira, afinal, para
aqueles que pertencem às classes populares do Brasil, não se pensa em subir na vida,
mas sim em manter a subsistência de forma estável.
Neste sentido, e partindo desta experiência de vida, cursei a graduação em física,
não nego dificuldades, é necessário um tempo para que a ideia de universidade decante
na vida do jovem que não encarou cursinhos preparatórios privados, cuja grande função,
em geral, é iniciar os jovens no mundo da competição e não da aprendizagem como
parte da vida, inerente a sua construção como sujeito, sempre observando que a
licenciatura é colocada em um local menor, no espaço-tempo daquele que sabe menos,
“ainda tinha muito aquele ranço de que quem fazia a licenciatura era porque era
incapaz” (GUIMARÃES; HENRIQUES, 2017, p. 10), o que não é verdade. Não
podemos estigmatizar os sujeitos por suas formações, mas podemos questionar os
itinerários que a sociedade brasileira reserva para a maioria brasileira que precisa
trabalhar para manter os estudos. Não precisei trabalhar no decorrer da graduação e no
segundo ano do curso iniciei como monitora da Casa da Descoberta, migrei para
iniciação à docência e no último ano fui bolsista de extensão; cursei o mestrado sem
trabalhar, fui bolsista Capes e no último ano Bolsista Faperj Nota 10; não trabalhar no
decorrer destes cursos, mas pertencer a realidade social que pertenço, faz me construir a
questão título para a minha narrativa.
A universidade pública brasileira que experienciei nos últimos anos tem sido
alvo de muitos ataques, em especial no que se refere ao seu financiamento, com os
cortes de verbas, corte de bolsa, Programa Future-se, Projeto Escola Sem Partido, entre
outros que induzem esta mesma universidade a não possibilitar perguntas como a que
fiz e faço, induzem a virar-se de costas para a população, para a sua realidade próxima e
olhar somente para o mercado. É a nossa condição histórica de capitalismo dependente
que nos propicia essa construção burguesa, de uma formação, que mesmo com
qualidade total, é desprestigiada pela heteronomia que vivenciamos. A licenciatura que
eu e Verônica experienciamos recai neste local de desprestígio porque não é uma
profissão liberal que população o imaginário brasileiro de êxito na vida. Para além de
lutar contra as políticas públicas que induzem o retrocesso o espaço universitário

sumário 544
VII Seminário Vozes da Educação

precisa lidar com a imagem que a sociedade brasileira, burguesa e conservadora, possui
dela; este é um monstro que ganha forma nos cortes, na acusação de balbúrdia, na ideia
de junção entre as agências de fomento à pesquisa, e se inicia desde cedo com os
itinerários formativos para o Ensino Médio e o notório saber como direito ao exercício
da docência.
A nossa aproximação e ação de escrita deste texto que se inicia com as nossas
narrativas e tensionamentos é um momento que destinamos a colocar em diálogo o
nosso olhar singular que é transpassado pelo social-institucional que nos forma
cotidianamente. Optamos por apresentar nas sessões seguintes as discussões teóricas
que fundamentam a escolha de nossas narrativas como material empírico e os autores
que nos auxiliam a pensar formas de resistências e de atuação consciente do espaço-
tempo universitário que experienciamos e que desejamos, um espaço universitário
público, laico, democrático que inclua os brasileiros historicamente excluídos.

Ressignificando os nossos olhares: diálogo com as leituras do outro


Boaventura de Sousa Santos (2006), em seu livro Um discurso sobre as
Ciências, defende que todo o conhecimento é socialmente construído e que vivemos em
um período de transição, a passagem de um paradigma científico dominante para um
paradigma emergente. O Paradigma dominante teve sua origem no século XVI e nos
séculos seguintes acentuou e se estendeu para as Ciências Sociais, ampliando o alcance
da ideia de teoria representacional, de verdade científica e a primazia das explicações
sobre as coisas. A partir do século XIX as Ciências Naturais passaram a ser o modelo de
desenvolvimento científico, induzindo a construção de um modelo global de
racionalidade que possui raízes fortes na atualidade silenciando as singularidades, as
vozes dos vencidos como diria Walter Benjamin.
Na contramão do movimento cientificista racionalista muitas teorias sociais
surgiram nos dois últimos séculos; da teoria marxista, passando pela fenomenologia
husseliana e chegando à arqueologia e genealogia de Foucault vemos que o local do
sujeito é reivindicado como principal e potente para a construção de pesquisas no
âmbito das Ciências Sociais. Neste conjunto temos as contribuições do Aporte
Autobiográfico de Narrativas e Histórias de Vida e Formação. Essa abordagem
principia o aparecimento da voz dos sujeitos, estes, como autores dos diálogos e
construtores de suas experiências de vida; Ferrarotti (2010) afirma que toda vida
humana se revela de uma leitura de social, pois, “[...] o nosso sistema social encontra-se

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

integralmente em cada um dos nossos atos, em cada um dos nossos sonhos, delírios,
obras, comportamentos. E a história desse sistema está contida por inteiro na história da
nossa vida individual” (FERRAROTTI, 2010, p. 44).
Pela afirmação do autor não há como desconsiderar o sujeito e muito menos a
sua subjetividade, já que é evidente a relação entre o pessoal e o social como partes que
nos constituem e traduzem o que somos enquanto pessoa e ser social. Neste sentido a
pesquisa (auto)biográfica apresenta-se como uma alternativa viável, que de forma
consistente, valoriza as características sociais e humanas dos sujeitos. O método tem
como elemento central de estudo o indivíduo na sua singularidade. A construção da
narrativa das histórias de vida se faz com base nas experiências do cotidiano das
pessoas, e retratam uma enorme riqueza e complexidade de informação; o
conhecimento sobre este homem social começa a ser pensado como fundamental na
compreensão dele mesmo admitindo e aceitando que o universal social está na narrativa
do sujeito.
No Brasil, a abordagem autobiográfica é recente, ganhou força nos anos 1990 e,
vem sendo muito utilizada em diversas áreas do conhecimento. Esse modo de fazer
pesquisa, por trabalhar a questão da subjetividade dos sujeitos é alvo de diversas críticas
quanto a sua legitimidade. Matthias Finger e António Nóvoa (2010, p. 23) sinalizam
que esta abordagem tem qualidades que a distingue de outros métodos, passando pela
formação e auto formação dos sujeitos envolvidos na pesquisa pois, “permite que seja
concedida uma atenção muito particular e um grande respeito pelos processos das
pessoas que se formam: nisso reside uma das suas principais qualidades”. Para António
Nóvoa, o sujeito, ao construir a sua narrativa, ele se forma à medida que reelabora para
si e para o outro a compreensão sobre o seu percurso de vida, de modo que

[...] a implicação do sujeito no seu próprio processo de formação torna-se


assim inevitável. Desse modo, a abordagem biográfica deve ser entendida
como uma tentativa de encontrar uma estratégia que permita ao indivíduo-
sujeito torna-se ator do seu processo de formação, por meio da apropriação
retrospectiva do seu percurso de vida” (NÓVOA, 2010, p. 168).

Neste movimento de rememoração, reflexão e organização de ideias, as


narrativas que expressam o olhar do sujeito viram conhecimento quando analisamos a
práxis humana, que está ligada às relações que o sujeito faz durante a sua existência.
Desse modo, Inês Bragança (2008), aponta a importância epistemológica desse aporte
na sua relação dialógica entre a Ciência e o Mundo “enquanto possibilidades de

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VII Seminário Vozes da Educação

mudança e ruptura em relação à ciência clássica - como um movimento que lança um


outro olhar sobre a vida e sua dinâmica e, consequentemente, institui uma outra forma
de entender e trabalhar com as ciências humanas”. (BRAGANÇA, 2008, p. 73-74).
Delory Momberger (2011, p, 341), fala da narrativa como gênero de discurso, e coloca
que a narrativa não é somente um meio para relatar uma história de vida e que narrar
não é apenas um sistema simbólico para poder expressar a vida, mas que a narração é
um espaço de formação em que o ser humano elabora e experimenta sua própria história
de vida.
Foram cientes desta leitura epistêmica e metodológica, pautadas pela opção de
trabalhar com a abordagem autobiográfica (também conhecida como investigação
autobiográfica) que construímos este texto a partir das narrativas de nossas experiências
de formação em cursos de licenciatura, tensionando o espaço-tempo da universidade
brasileira a formação de professores. Questionando o lugar social destinado ao professor
e a educação brasileira que vem sofrendo muitos ataques, haja vista que a negação da
formação docente, a opção pelo não exercício da docência, mesmo sabendo que este
trabalho propicia uma fonte de renda, não é um problema somente dos licenciandos, é
um problema conjuntural, é uma herança cultural que está sendo ratificada pela mídia
global e pelo atual governo quando trata a educação como campo do conhecimento que
não possui voz ou direitos de criar ou indicar os seus caminhos. Seguindo o caminho do
diálogo compreensivo apresentamos na sequência um pouco da história da universidade
brasileira.

A universidade que temos e os sujeitos excluídos: distopias brasileiras


O nascimento da universidade remota ao século XIII, às aulas como leitura
comentada, “no movimento de significativas transformações na economia e na vida
sociocultural, inseparáveis do crescimento e da transformação das cidades, da
dessacralização do mundo natural e humano, do florescimento escolar do século XII”
(COÊLHO, 2016, p. 86-87), e sob forte poder da igreja, que perdura até o século XV,
quando o Estado passa a controlar as universidades. É no final do século XVIII que a
universidade francesa vê-se sacudida com a Revolução de 1789 sendo substituída pelas
escolas profissionais, mas foi somente no início do século XIX, na França e Prússia, que
despontaram as primeiras universidades modernas e laicas, sendo “a napoleônica, para
formar os quadros do estado e a de Berlim, com ênfase na integração entre ensino e

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pesquisas e na busca da autonomia intelectual diante do Estado e da Igreja” (PAULA,


2009, p. 72).
Os modelos de universidade francês e alemão são a base da ideia de
universidade brasileira – o modelo francês tem como foco a formação profissional, a
dissolução da tríade ensino-pesquisa-extensão, e amplo diálogo com a leitura
pragmática da produção de conhecimento, o modelo alemão priorizava a pesquisa aliada
a filosofia, como meio de produção de uma ciência desinteressada, não subserviente as
elites ou ao Estado – e após meados do século XX, via a Reforma Universitária de
1968, e Educação Superior no Brasil foi invadida pela lógica norte americana de
universidade. Neste modelo “[...] a instituição universitária procura associar
estreitamente os aspectos ideias (ensino e pesquisa) aos funcionais (serviços),
estruturando-se de tal maneira que possa ajustar-se às necessidades da massificação da
educação superior e da sociedade de consumo” (PAULA, 2009, p. 78).
Retomando o olhar para o campo das ações políticas brasileiras, passando pelos
anos ditatoriais – anos que submeteram a universidade brasileira ao signo de
universidade do silêncio, à reforma consentida e imposta – Lei n. 5.540, de 28 de
novembro de 1968, Fixa normas de organização e funcionamento do ensino superior e
sua articulação com a escola média, e dá outras providências -,pois muitos docentes que
não apoiaram esta reforma foram afastados pelo Ato Institucional n. 5 (AI-5),
movimento de repressão ao discentes, extinção do regime de cátedras; a autonomia
administrativa e financeira, que já era reduzida, ficou mais restringida ainda e o controle
policial se estendeu até os currículos, programas de disciplinas e bibliografias. Luiz
Antônio Cunha (2000), sinaliza que, apesar de não ser possível desconsiderar que neste
período a repressão e o controle foram nefastos para a construção intelectual brasileira,
é necessário admitir que foi a partir da reforma de 1968 que a universidade brasileira
começou a existir, pois, até aquele momento o que existia eram Faculdades isoladas,
ligadas mais de forma simbólica do que propriamente acadêmica, que se dedicavam à
formação de profissionais liberais e não enxergavam a pesquisa como ponte de diálogo
entre a ciência e a realidade local.
É após os anos 1996, que voltamos a observar grandes impactos na ideia de
Educação Superior, em especial a adesão ao mercado educacional. O governo Fernando
Henrique Cardoso (FHC) baliza a reforma iniciada no decorrer do movimento de
redemocratização, mas que foi só foi aprovada em seu governo, no entrelaçamento de
temas como, avaliação, autonomia e melhoria do ensino superior. A Lei de Diretrizes e

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VII Seminário Vozes da Educação

Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996), apresenta o


termo autonomia nos art. 53 e 54, porém, é limitada pelo ‘processo regular de avaliação’
do art. 45. A avaliação, e o credenciamento de cursos permeados pelo exigido no art. 52
se configuram como lócus de responsabilização e sufocamento dos docentes
universitários, haja vista que a pós-graduação teve um aumento de procura considerável,
ao passo que a avaliação via Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior) enrijece seus critérios para manutenção dos cursos stricto senso,
ampliando as demandas que perpassam o docente universitário (docente – pesquisador –
gestor).
Em paralelo as mudanças propostas pela LDB/ 1996 há a Declaração de
Bolonha, mais reconhecida como Processo de Bolonha. Este processo tem em seu cerne
a busca por uma hegemonia eurocêntrica alcançado por meio da construção de “valores
partilhados e relativos a um espaço comum, social e cultural” (DECLARAÇÃO DE
BOLONHA), o chamado “espaço europeu do Ensino Superior”. A criação deste
“espaço comum” europeu-ocidental induziu a criação de metas a serem seguidas pelos
países que concordaram, total ou parcialmente, com os objetivos apresentados na
declaração e contemplam: a adopção de um sistema de leitura e comparação; adopção
do sistema de dois ciclos (graduado e pós-graduado); adequação ao sistema de créditos,
estes funcionam como meio de favorecer a mobilidade estudantil; ampliação da
mobilidade de estudantes e profissionais que atuam na Educação Superior; além de
promover a cooperação europeia na avaliação da qualidade e na formulação dos
currículos. Estes objetivos, somados à ideia de livre circulação dos cidadãos, à
oportunidade ampliada de emprego, e ao desenvolvimento do continente europeu como
um todo, ilustram, na percepção de Hamilton de G. Wielewick e Marlize R. Oliveira
(2010) , uma “comoditização da educação superior”, perdendo seu princípio de direito e
se transformando em um bem de consumo; cenário muito próximo, de nós brasileiros, a
partir de meados dos anos 2000.
No governo subsequente de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 - 2011),
aproximações e ratificações das políticas antecedentes ocorreram, porém, a influência
de mecanismos e acordos internacionais é mais clara e direta. Raquel Goulart Barreto e
Roberto Leher (2008) traçam o caminho percorrido pela Educação Superior em
publicações-chave do Banco Mundial (BM) após os governos FHC (1995 - 2003) e
Lula. Em ambas as publicações é visível uma perspectiva economicista, de mercado
laboral barato; o BM assume uma postura formativa, de que “sabe o que é melhor para

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

todos” e sua opinião sobre o mundo não é negociável, assim a educação superior
assume funções distintas e fundamentais, passando de “educação superior” para
“educação terciária”, com uma função diretiva, construir a nova sociedade do
conhecimento/informação.
Não há pobres onde há trabalho, logo ampliar o acesso às universidades,
massificando a conclusão de cursos superiores, traz grande parte da população a um
status antes distante, uma “nova realidade”, mas não a construção de uma consciência
social, concreta, pois ao permitir o acesso e aderir a lógica de mercado, reduz-se a
qualidade, pormenorizando o tripé que sustenta as universidades
(pesquisa/ensino/extensão), mantendo este acessível a poucos brasileiros, margeando o
espaço universitário, o que segundo Raquel Goulart Barreto e Roberto Leher (2008) é
criar um “apartheid educacional” naturalizado via resultado de políticas avaliativas,
composta por avaliações externas e internas impostas a cultura escolar que convive com
as avaliações sem a sua devida compreensão.
Nesse sentido, Maria Fátima Costa de Paula (2009), no que se refere as políticas
de acesso democratizantes, aponta também uma cisão, uma dicotomia silenciada pela
grande mídia, mas, ratificada pelo discurso democratizante do governo, que coloca a
universidade como reprodutora de caminhos definidos pelo modelo econômico, onde,

[...] dentro de uma mesma instituição universitária, os alunos com menor


capital social e cultural, em geral, dirigem-se para os cursos aligeirados, que
exigem menos investimento material e cultural, enquanto que as elites
dominantes continuam chegando em maior quantidade aos cursos que dão
mais status profissional, que exigem um acúmulo maior de capital social e
cultural. Isto demonstra que essas iniciativas, ao invés de contribuírem para
democratizar o ensino superior, na verdade, apenas reproduzem e reforçam as
desigualdades sociais do sistema capitalista (PAULA, 2009, p. 82).

Alterando muito pouco a relação hierárquica e de poder entre os ‘sujeitos


pensantes’ (elite) e os ‘sujeitos destinados’ para trabalho laboral (leia-se: todos aqueles
que não são parte da elite brasileira).
Ou seja, a atual universidade brasileira é fruto da mutação (por mais exagerado
que pareça) dos modelos de universidade (francês, alemão e norte americano), de
reformas que se configuraram como pseudo reformas, da última LDB, onde o Estado
procurou modernizar o ensino superior via a indução de mudanças nos aspectos
administrativo, de modo que “a melhoria da qualidade do ensino seria assegurada por
meio de alterações na gestão administrativa e na capacitação de recursos de

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VII Seminário Vozes da Educação

equipamentos” (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2011, p. 78), da expansão da


Educação Superior, da adesão aos ditames do Banco Mundial, e de não sabemos o quê,
haja vista a recente declaração do atual Ministro da Educação – Ricardo Vélez
Rodríguez – de que “as universidades devem ficar reservadas para uma elite
intelectual82”, a Nota Técnica n. 400/2018 assinada pelo Ministério da Educação no dia
13 de dezembro de 2018, considerando irregular a votação paritária para a nomeação de
reitores, e após o Programa Future-se que é, de forma clara, a transformação da
universidade em uma organização, uma empresa.

Tentativa de conclusão...
Encerrar uma narrativa que versa as experiências de formação em
Pedagogia, em Física e a história da universidade brasileira, sendo está contada a partir
de leituras e olhares de sujeitos que admitem total implicação com o contexto
universitário e com o tema é complicado, pois, narrativa é movimento, história de vida é
construção aberta ao tempo e aos sujeitos; a história da universidade brasileira também
é construção aberta, resta-nos defender e definir quais serão os sujeitos autores dessa tão
disputada história. A burguesia conservadora deseja contar esta história, mas que
escreve o roteiro não é a burguesia brasileira, mas sim, o mercado educacional, a
condição de capitalismo dependente que não sabe muito bem como vai ficar no
movimento neoliberal. Será a terceira via a responsável por comandar a comodity
educacional ou será que vamos conseguir frear este movimento? O nosso grande desejo
não é frear, mas se possível sair desta rota – parece utópico, a quem diga que só a
revolução socialista propicia tal feito –; uma vez que nos percebemos imersos nesta
onda, cabe-nos entender um pouco sobre a nossa posição, e acreditamos ter conseguido,
pois, ao trazer as nossas narrativas de formação e o reconhecimento de que a docência
assume uma posição menor na sociedade brasileira, não que concordemos com isso, é
possível perceber que a coesão da categoria docente é necessária, e ainda precisa ser
alcançada para que possamos falar de resistência por uma educação que seja pública,
laica e democrática. Temos que caminhar muito nesta seara da adesão e do estado de
pertencimento a categoria docente e os cursos de formação de professores possuem um
espaço-tempo propício e sui generis para colocar-se como promotores deste estado de
pertencimento e conseguir construir uma consciência docente e não de profissional

82
Extraído de <http://www.cartaeducacao.com.br/reportagens/as-universidades-devem-ficar-reservadas-
para-uma-elite-intelectual-diz-ministro-da-educacao/>. Acesso em 21 de outubro 2019.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

liberal que dá aulas, afinal, ser professor é a soma contínua de formação-ação, pesquisa-
estudo, práxis na vida.
Outro aspecto importante no que se refere ao alcance deste texto remete a
história da universidade brasileira; esta multifaceta e herda uma heteronomia cultural
difícil de modificar, afinal, foram muitos anos ditatoriais que nos inculcaram que
pesquisa de ponta só a Europa e os Estados Unidos, que já faziam, poderia continuar a
fazer. A ampliação da pós-graduação não traz consequência direta para a construção de
um imaginário social que enxerga a pesquisa como parte dos investimentos e destinação
de recursos do Estado. Como o Estado brasileiro atende aos ditames da burguesia
conservadora, da transcionalização do mercado, a educação e a pesquisa não são
considerados pontos de pauta dignos de investimentos como uma parcela de 10% do
PIB, mas é digna de itinerários formativos, de uma formação de professores pautada e
determinada pela Base Nacional Curricular que aligeira e normaliza todos os sujeitos
brasileiros via os descritores das avaliações externas. Fiquemos atentos, pois, como nos
falava Florestan Fernandes, “a Educação, quando não é esmagada pela ignorância, é
esmagada pela escassez de recursos” (FERNANDES, 1991, p. 37).

Referências
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do Banco Mundial, a educação superior “emerge” terciária. Revista Brasileira de
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394.htm#art92>. Acesso em setembro
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______. Ministério da Educação. Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968. Diário


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Olinda. Política Educacional. – Rio de Janeiro: Lamparina, 4 ed. 1 reimp., 2011.

sumário 553
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ECOAM AS VOZES: ENCONTROS E CONVERSAS NA/DA FORMAÇÃO DE


PROFESSORES

Simone de Alencastre Rodrigues


PPGeduFFPUERJ/ CApUFRJ
simonealencastre@yahoo.com.br

Viviane Lontra
PPGEUFRJ/ CApUFRJ
vivilontra@gmail.com

Soymara Vieira Emilião


PROPedUERJ/ SMENiterói
emiliaosoy@gmail.com

O presente artigo apresenta memórias e narrativas de uma experiência vivida e


compartilhada em um Curso de Extensão do Colégio de Aplicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro: “Conversas sobre Práticas na Formação de Professores” em
parceria com docentes da educação básica e da universidade e futuros professores:
estudantes das licenciaturas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e jovens
estudantes do 3º ano do Ensino Médio de um Curso de Formação de Professores da rede
estadual do Rio de Janeiro. O curso objetiva possibilitar a troca de experiências entre
diferentes sujeitos em formação abrindo espaço para o diálogo acerca das questões e
desafios que envolvem o Ensino Fundamental Inicial, potencializando a produção de
conhecimentos sobre a escola e pela escola.
No presente texto, pretendemos traçar reflexões sobre as experiências no/do
Curso de Extensão a partir das noções de encontros e conversas (GARCIA,
2015)entendidas como metodologia de pesquisa e formação, onde os encontros e as
conversas seriam espaçostempos 83 privilegiados e singulares para pensar sobre os
processos formativos e as formas de pesquisá-los pelo potencial de desestabilizar e
deslocar os sentidos de docência, escola e currículo.
Aliamos a outra noção: a dos processos de (des)formação (LONTRA;
EMILIÃO, 2018, p.397) entre docentes experientes e estudantes do curso de formação
de professores, porque entendemos que, longe da ideia de que há um momento em que a

83
Aprendemos com os estudiosos do cotidiano a juntar palavras na intenção de inventar novos
significados: “princípio da juntabilidade” que concede sentido e significado diferentes dos usuais, quando
de sua separação (Alves, 2001).

sumário 554
VII Seminário Vozes da Educação

formação se cristaliza, os encontros e conversas sobre o fazer docente são reconhecidos


como “espaçostempos onde aprendemos que a docência acontece no ineditismo, nas
redes que tecemos nos cotidianos das escolas e salas de aula, em movimentos de não-
linearidade, na surpresa, na incerteza, na circulação entre diferentes saberes e
nãosaberes.”
Assim, entendendo a docência como produção autônoma e autoral, propomos
pensar o conhecimento como aquilo que é construído para além das lógicas dominantes
cientificistas e colonialistas numa perspectiva de horizontalização de saberes, culturas e
usos do conhecimento (SANTOS, 1995, p. 33) onde todos ensinam e aprendem. Para
Boaventura de Souza Santos, essa horizontalidade é exigência de um pensamento que
não separa o político do epistemológico, exigindo reconhecer todo processo formativo
como atravessado pela sociedade que o criou, ou seja, também impregnado daquilo que
se pretende superar, quando se está imbuído em um projeto educativo emancipatório em
relação com o projeto sociocultural da modernidade.
Como professoras da escola básica e pesquisadoras filiadas aos estudos e
pesquisas nos/dos/com os cotidianos (OLIVEIRA; ALVES, 2008; FERRAÇO; PEREZ;
OLIVEIRA, 2008), partimos da premissa de que a horizontalidade vai além de uma
questão abstrata. É uma noção que está impregnada em nossas políticaspráticas
(OLIVEIRA, 2012) curriculares. Desta forma, no curso de extensão proposto, não
poderíamos pensar outra metodologia que não as rodas de conversas, compreendendo
que, a partir delas, é possível refletir e repensar o fazer docente.
Acreditamos que conversar provoca deslocamentos e reflexões em quem dela
está participando. Uma conversa, como nos diz Skliar (2018, p.12), “não busca acordos
ou desacordos, senão tensões entre duas biografias que se apresentam na hora do
encontro.” Certeau (2008, p.50) as considera práticas transformadoras “de situações de
palavras”. A arte de conversar proporciona o entrelaçamento de posições locutoras que
se instaura em um tecido oral sem proprietários individuais: “a conversa é um efeito
provisório e coletivo de competências na arte de manipular ‘lugares comuns’ e jogar
com o inevitável dos acontecimentos para torná-los ‘habitáveis’”.
Nesse ineditismo dos acontecimentos, em uma das conversas produzidas no
curso de extensão, uma estudante narra sua experiência vivida no curso e nos oferece
pistas sobre como aquele espaçotempo possibilitou a reflexão sobre a prática,
distanciando-se da ideia de formação por transmissão de conhecimento unilateral.

sumário 555
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Eu me inscrevi nesse curso porque vi uma oportunidade de encontrar a


segurança que queria: a de dar aula. O curso me proporcionou outras coisas,
menos a segurança em si. Entendi que essa segurança se dá na prática, que
somente dando aula vou adquirir... Na primeira conversa do curso, aprendi a
"escovar as coisas em sentido contrário", isso é ver o que está por trás. E isso
me fez olhar tudo ao meu redor de forma diferenciada. Houve várias
conversas que os professores trouxeram formas diferenciadas de realizar
algo, como a contação de história, ensinar matemática... isso me fez ver a
educação de forma mais atrativa para a criança. Outra coisa importante, foi a
ideia de que são vários os fatores que contribuem pra aprendizagem de uma
criança e que pra alfabetizar é preciso conhecer muitas coisas: a criança, o
assunto, o mundo (Narrativa de uma estudante do Ensino Médio, 2018).

A narrativa da estudante vai ao encontro do nosso exercício cotidiano tanto no


curso de extensão, quanto nas salas de aula onde exercemos a docência e em nossos
campos de pesquisa. Nesses espaçostempos buscamos “escovar as coisas em sentido
contrário” 84 , descobrindo maneiras de aprenderensinar na relação com o outro, na
conversa, na tentativa de desinvisibilizar aquilo que foi tornado invisível pela
racionalidade moderna, como defende o sociólogo Boaventura de Souza Santos (2010),
provocando outrosnovos sentidos ao ser partilhado e produzido com o(s) outro(s).
Para Santos (2010), há lógicas que subtraem o mundo, desperdiçando
experiências. Entende assim que a desinvisibilização dessas experiências permitiria
fazer emergir possibilidades ainda-não realizadas, inscritas no que já existe, levando-o a
defender também a ideia de que a realidade não pode ser reduzida ao que existe, precisa
ser pensada e percebida também como possibilidade. É necessária uma versão ampliada
de realismo, incluindo as realidades ausentes, assim criadas, por via do silenciamento,
da supressão e da marginalidade daquilo que escapa às monoculturas hegemônicas,
porque tudo que é inexistente, invisível na modernidade, foi construído para sê-lo.
Nesse caminho de desinvisibilizações, com Alves e Ferraço (2018, p.58)
partilhamos do entendimento de que as conversas teriam a potência de colocar sob
suspeita os clichês-opiniões-verdades, afastando-nos de nossas crenças, forçando-nos a
pensar a partir de referências e acontecimentos vividos nesses cotidianos, sempre
“novidadeiros”. Para os autores, as conversas são redes de sentidos, como negociações
de produções verbais sem proprietários individuais. (ALVES; FERRAÇO, 2018, p.56)

84
Na aula inaugural, uma professora fez referência à expressão de Walter Benjamin - "escovar a história à
contrapelo" -, lembrada pela estudante no e-mail.

sumário 556
VII Seminário Vozes da Educação

A Extensão em miúdos
Com os fios teóricos, políticos e epistemológicos apresentados é que foi tecido o
curso “Conversas sobre Práticas na Formação de Professores” como atividade de
extensão do grupo de pesquisa “ConPAS: Alteridades e Singularidades” do Colégio de
Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp/UFRJ) 85 que, desde 2010,
atua em diferentes espaços educativos, especialmente na forma de parcerias com as
secretarias de educação, através de projetos de pesquisa e extensão nas áreas da
formação inicial e continuada de professores, estudos dos cotidianos e currículos,
contando com a interlocução entre pesquisadores e instituições de ensino superior e
educação básica, constituindo-se em espaço de diálogo entre escola-universidade. Um
dos nossos objetivos é investigar a formação de professores tendo como fundamento a
premissa de que a troca de experiências é elemento potente nesse processo. Essa ação
reforça as lógicas de partilha e cooperação na profissão (NÓVOA, 1992) e
ressignificam o fazer docente – sabemos que não estamos sozinhas!
Duas de nós são professoras 40h de dedicação exclusiva nessa instituição que
trata-se de uma unidade de educação básica da Universidade Federal do Rio de Janeiro
que atende cerca de 700 estudantes matriculados do 1º ano do Ensino Fundamental ao
3º ano do Ensino Médio e se constitui como campo privilegiado de estágio das
licenciaturas da UFRJ, recebendo, semestralmente, cerca de 400 futuros professores da
escola básica. A terceira autora é pedagoga e professora da escola básica do Município
de Niterói e compartilha suas experiências docentes no curso em questão desde sua
primeira edição, em 2017.
Nossos objetivos caminham no sentido de refletir sobre o ensino na/da Educação
Básica, trocando experiências entre estudantes do Ensino Médio, alunos das
licenciaturas, professores da educação básica e professores universitários acerca das
questões e desafios que envolvem o ensino fundamental inicial, o rganizando projetos de
trabalho com base nas concepções de aprendizagem das crianças pertencentes aos anos
iniciais de escolaridade, potencializando a produção de conhecimentos sobre a escola e
pela escola compreendendo relatos como construção de identidade profissional docente,
estimulando a prática narrativa para este fim.
Em 2016 iniciamos contato com o Colégio Estadual Ignácio Azevedo do
Amaral, uma escola vizinha ao CAp que forma professores em nível médio, o antigo
Curso Normal. Nosso grupo de pesquisa não poderia deixar de considerar a incrível
85
Projeto de Pesquisa coordenado pela Prof. Dra. Graça Reis desde o ano de 2010.

sumário 557
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

oportunidade de partilhar experiências com jovens futuros professores e, no ano de


2017, iniciamos o Curso de Extensão “Conversas sobre práticas na formação de
professores” com estudantes das licenciaturas da UFRJ, professores da Educação Básica
e da universidade e estudantes do 3º ano do Ensino Médio do Curso de Formação de
Professores. Em 2018 fizemos a 2ª edição do Curso e já tivemos a oportunidade de
“conversar” com mais de 50 futuros professores, entre meninos e meninas do Ensino
Médio, jovens entre 17 e 21 anos.

Pela segunda vez, tive o prazer de enredar os fios dos meus saberes aos dos
professores em formação ao participar do curso conversas. Sempre é um
grande prazer encontrar uma sala cheia de jovens que desejam a docência,
esse ofício tão caro para mim e ao mesmo tempo, tão vilipendiado e
sucateado pelo sistema. Por vezes, no front da sala de aula, pensamos que
estamos sozinhos, na utopia de interferir no mundo. O curso oportuniza que,
ao contrário, percebamos a potência subversiva do ofício (Narrativa de
Soymara Emilião, 2018. Professora da educação básica presente nas duas
edições do Curso).

No diálogo entre futuros professores, bolsistas da licenciatura, professores da


universidade e professores da educação básica (todos em formação), os saberes e
fazeres da escola, da experiência, da observação, da interação, das narrativas são
compartilhados e entrelaçados pelo que ALVES (2008) denomina práticateoriaprática,
numa perspectiva de horizontalização de saberes.
Usamos uma metodologia que envolve a narrativa de práticas cotidianas
vivenciadas nos estágios, as rodas de conversas com professores da educação básica, a
escrita de memoriais e a leitura de textos teóricos.

Os relatos que os professores compartilharam conosco sobre suas vivências


em sala de aula foi algo muito construtivo, o que nos fez refletir bastante.
Como eu disse, o curso Conversas contribuiu muito, cada encontro que
tivemos me fez repensar sobre a vida docente e, de certa forma, reafirmou
ainda mais a minha paixão pela Pedagogia(Narrativa de uma estudante da
licenciatura, 2017).

Em tempos de ameaça à profissão docente, participar de um Curso de Extensão


para jovens do Ensino Médio em uma escola de formação de professores para a
Educação Básica apresenta-se, em nosso entendimento, como forma de resistência e
resiliência.
As narrativas orais que emergem das conversas, segundo Reis (2014, p. 124)
quando utilizadas como método de investigação e experiência formativa cooperam na

sumário 558
VII Seminário Vozes da Educação

aproximação entre sujeitos pesquisados/pesquisadores, possibilitando uma maior


compreensão sobre os significados que atribuímos ao que vivemos/sentimos/fazemos
cotidianamente nas salas de aula, refletindo sobre processos de aprenderensinar. Para a
autora, as conversas produzidas nos encontros com/entre/de estudantes e professores
possibilitaram rastrear desestabilizações às representações hegemônicas de docência e
escola e perceber o quanto esses encontros potencializaram a tessitura de novasoutras
percepções. Elas sugerem que redes de conversações provocam, motivam, possibilitam
o enredamento de redes de saberesfazeresepoderes solidários e fraternos.

No terceiro ano o diretor nos deu a oportunidade de fazer um curso oferecido


pelo CAp/UFRJ e, de cara, achei uma oportunidade maravilhosa para
acrescentar na minha formação, e, em uma aula do curso nasceu uma nova
paixão, que era dar aula, possivelmente para 4º e 5º ano de matemática. O
professor que nos deu aula apresentou vários métodos novos de dar aula e
isso mudou a minha perspectiva (Narrativa de um estudante do Ensino
Médio, 2017).

Acreditando no potencial metodológico e epistemológico da investigação


narrativa - construída pelas conversas e pelos relatos - buscamos subverter a ideia de
que o conhecimento se aprende “de fora para dentro” e buscamos a valorização dos
diferentes saberes que trazemos em nossa história de vida, abrindo possibilidades para
maneiras menos arrogante e autoritária na relação pesquisador-pesquisado.
A valorização de diferentes saberes está afinada à ecologia de saberes
(SANTOS, 2010, p. 117), opção epistemológica e política que reconhece a diversidade,
procurando combater o desperdício dos saberes silenciados, buscando
provocar“interrogações poderosas e tomadas de posições apaixonadas capazes de
sentidos inesgotáveis”. A partir desse entendimento, há o reconhecimento dos muitos
saberes em circulação no mundo e que neles existem não-saberes, também diversos, e
por isso não há conhecimento absoluto nem ignorância plena. Nas rodas de conversas
possibilitadas através dos encontros do curso, somos encorajadas a descobrir novas
possibilidades de atuação na educação básica. Ao mesmo tempo, dialogicamente, o
contato dos professores em formação no Magistério em nível Médio com uma rede de
professores da universidade e da escola básica oportuniza o acesso à produção
acadêmica, fomentando o interesse e mobilizando a atenção dos cursistas à
possibilidade de continuar a formação em um curso superior. Segundo Alves e Ferraço
(2018, p.52):

sumário 559
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

para nós, pesquisadores com os cotidianos, conversar com os praticantes das


escolas representa muito mais do que apenas usar um procedimento
diferenciado de pesquisa. Para nós, conversas expressam tentativas de
aproximação e de mobilização das relações vividas por esses sujeitos nas
escolas, na medida em que apostamos na atitude política de pensar com eles e
não para ou sobre eles.

Lembranças de uma experiência de conversa: um encontro precioso


No ano de 2018, em uma das conversas, levamos a proposta de discutir questões
sobre a representatividade da cultura afro-brasileira, trazendo as narrativas orais como
uma marca desta cultura. O encontro foi permeado pela leitura de diversos livros de
literatura infantil que, a partir das narrativas e das belas ilustrações, nos remetem ao
universo das histórias e da resistência das culturas de matriz africana. Alguns trabalhos
sobre o tema, desenvolvidos com crianças das turmas do primeiro ano do ensino
fundamental pelas professoras autoras, foram disponibilizados com o objetivo de refletir
sobre as produções infantis e as possibilidades de trabalho com as crianças pequenas e a
proposta era, ao final, confeccionarmos bonecas Abayomi, que trazem uma narrativa da
chegada dos africanos ao Brasil e que, hoje em dia, segue como símbolo de resistência e
força das mulheres negras.

Para acalentar seus filhos durante as terríveis viagens a bordo dos tumbeiros
– navio de pequeno porte que realizava o transporte de escravos entre África
e Brasil – as mães africanas rasgavam retalhos de suas saias e a partir deles
criavam pequenas bonecas, feitas de tranças ou nós, que serviam como
amuleto de proteção. As bonecas, símbolo de resistência, ficaram conhecidas
como Abayomi, termo que significa ‘Encontro precioso’, em Iorubá, uma das
maiores etnias do continente africano cuja população habita parte da Nigéria,
Benin, Togo e Costa do Marfim86.

Logo após a leitura do primeiro livro,“O meu crespo é de rainha” de Hooks


(2018), uma estudante do curso relatou: “Essa história de cabelo mexe muito comigo,
prefiro nem comentar...” No entanto, logo depois, ela continuou:

É muito importante levar essas histórias para as aulas porque, hoje em dia,
amo meu cabelo, brinco com ele. Cada dia está de um jeito, mas não foi
sempre assim... Já tive muita raiva dele, achava feio, queria ter cabelo liso e
loiro. Essas histórias nos fazem pensar da nossa origem e o cabelo faz parte
da nossa história, mas quando a gente é criança é difícil mesmo (Narrativa de
uma estudante do Ensino Médio, 2018).

86
Disponível em: <http://www.afreaka.com.br/notas/bonecas-abayomi-simbolo-de-resistencia-tradicao-e-
poder-feminino/>. Acesso em: 12.Dez.2018.

sumário 560
VII Seminário Vozes da Educação

Nosso encontro-aula se deu em roda e assim, nesse movimento que a roda


propicia de encontro de olhares, de escuta de falas, várias questões foram surgindo
sobre o trabalho na sala de aula e sobre as questões étnico-raciais que vivemos hoje no
Brasil. Os relatos seguiam de forma espontânea, conforme o desejo de cada um em se
expressar.
Após as atividades e antes da confecção da boneca Abayomi, sugerimos uma
breve narrativa escrita sobre o nosso encontro. Percebemos que o momento mais
individual que a narrativa propicia gerou desânimo em algumas estudantes e um grande
silêncio. Tendo em vista que o grupo era muito falante, aquele silêncio nos dizia muita
coisa, então solicitamos que dividissem com o grupo o que fora escrito, as percepções e
o que do encontro havia ficado mais marcado. O silêncio ainda durou alguns minutos
até que uma menina de, mais ou menos 17 anos, desabafou:

A gente está desanimada hoje. Houve um debate, e foi horrível, na aula de


psicologia pela manhã. As meninas começaram a falar sobre feminismo,
direitos iguais e elas colocaram um vídeo de uma criança pedindo socorro
porque a mãe está sendo espancada e ela vê a mãe sendo morta. Daí a
professora abriu para quem quisesse falar sobre alguma violência que tenha
sofrido. Então uma colega relatou situação de violência muito séria e todo
mundo começou a chorar muito porque a gente não imagina que uma pessoa
tão próxima da gente tenha sofrido tanta coisa assim... e foi inesperado
porque ela contou pela primeira vez para a turma inteira (Fala coletiva das
estudantes do Ensino Médio, 2018).

O assunto ainda continuou por um tempo, outras meninas se manifestaram


falando que começaram a pensar em assédios que já viveram, mas que viam como
normal, e disseram que passaram a sentir necessidade de falar sobre esse assunto e que,
cada vez que falavam, elaboravam melhor a questão. Os meninos também se
posicionavam, falando sobre como essas conversas são importantes para eles
repensarem as ações.
Quase no final das conversas, uma das cursistas relatou:

Não tem um dia que eu saia de uniforme da escola que eu não seja assediada.
Eu não tinha me dado conta que isso não é normal, ou pelo menos não
precisa ser.

Foi uma tarde de muitas emoções, tivemos conversas muito intensas e


desistimos do assunto que havia motivado o encontro, pois o grupo, naquele momento,
demandava outras necessidades. Contrariamente ao que supõe as perspectivas

sumário 561
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

hegemônicas de compreensão dos currículos escolares, acreditamos que os encontros


são inéditos, são acontecimentos irrepetíveis, são vividospensados e necessitam ser
permeados pelo desprendimento das certezas que trazemos, pela abertura para o novo,
para o encontro com o outro. Era isso! Estávamos ali abertas para aprender com aquele
grupo de meninas e meninos que tinham muito a nos dizer!
Aquela experiência nos aproximava daquilo que o cineasta e documentarista
Eduardo Coutinho (2006, p.56) defendeu: “a força das conversas à serviço de uma
aproximação mais espontânea entre as pessoas [...] as pessoas podem ser banais. Mas a
forma como elas se conformam ou falam, principalmente, isso não é banal. O
importante não é o que é narrado, mas a forma de falar.”

Figura 1: Estudante do Ensino Médio: confecção da Abayomi.

Fonte: Arquivo das autoras, 2018.

Figura 2: Bonecas Abayomi.

Fonte: Arquivo das autoras, 2018.

sumário 562
VII Seminário Vozes da Educação

Nossa pauta, então, voltou-se às questões da vulnerabilidade da mulher, do


silêncio, das agressões sutis e veladas, da luta pelos direitos... e, de forma muito
delicada, ainda permeada pelas conversas que mexiam com muitos sentimentos, fomos
surpreendidas pelo movimento do grupo que, diante dos tecidos espalhados para a
confecção das bonecas, retomou o movimento de confecção das Abayomi.
Anos de história nos separam daquelas mães dos navios, mas, naquele momento,
de alguma forma, nos unimos a elas em um “encontro precioso”, nas nossas conversas
sobre resistência.
Essa foi uma tarde intensa, cheia de emoções. Saímos do encontro com muitas
reflexões sobre a potência dos encontros (GARCIA, 2015), sobre o ineditismo das salas
de aula, sobre a relevância das narrativas e seu potencial de produzir reflexão e
ressignificação de práticas e saberes.

Aprendi que cada dia temos coisas dentro de nós que mudam tudo o que
planejamos. A aula de hoje caminhava de um jeito e a percepção da
professora para mudar o planejamento e ouvir o que tínhamos para falar foi
muito importante e, na minha opinião, valeu muito mais do que o que estava
planejado para hoje no curso. Não sei se eu teria essa sagacidade em sala de
aula. Aprendi que o planejamento é importante. Sei que ele é flexível, mas
não sei como fazer, mas hoje tive uma aula de verdade, na prática, de como
podemos aproveitar o momento. Acho que conversar sobre questões étnico
raciais no meio de nossas angústias sobre a situação que vivemos como
meninas, como mulheres, foi, de verdade, um momento precioso. Acho que
eu ainda não sei fazer isso na sala de aula, mas viver isso aqui, hoje, me
ensinou bastante (Narrativa de uma estudante do Ensino Médio, 2018).

Consideramos que este curso pode contribuir para pensar outros modos de
praticar políticas de Formação Inicial de Professores, pois, pretende de modo integrado
com a pesquisa, o ensino e a extensão, produzir uma argumentação que evidencie a
contribuição das rodas de conversa por meio das narrativas de experiência e da escrita
de memoriais para os processos formativos e a produção dos currículos na defesa pela
Educação Básica pública e de qualidade.
Continuamos na luta por encontros e conversas preciosas para/na (des)formação
docente!

sumário 563
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Figura 7: Atividade de avaliação final da 1ª edição do curso, 2017

Fonte: Arquivo das autoras, 2017.

Referências
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redes cotidianas. In: OLIVEIRA, Inês Barbosa de e ALVES, Nilda. Pesquisa
nos/dos/com os cotidianos das escolas, sobre redes de saberes. Rio de Janeiro:
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RIBEIRO, Tiago, SOUZA; Rafael e SAMPAIO, Carmen Sanches. Conversa como
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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: As artes de fazer. 20. ed. Rio de
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FERRAÇO, Carlos Eduardo; PEREZ, Carmen Lúcia Vidal; OLIVEIRA, Inês Barbosa
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GARCIA, Alexandra. O encontro nos processos formativos: questões para pensar a


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publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/34692>. Acesso em: 04 set 2018.

sumário 564
VII Seminário Vozes da Educação

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OLIVEIRA, Inês Barbosa de. O Currículo como criação cotidiana.Petrópolis: DP et


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Paulo: Cortez, 1995.

SKLIAR, Carlos. Elogio à conversa (em forma de convite à leitura). In: RIBEIRO,
Tiago, SOUZA; Rafael e SAMPAIO, Carmen Sanches. Conversa como metodologia
de pesquisa - por que não? Rio de Janeiro: Ayvu, 2018.

sumário 565
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ECOLOGIAS DOCENTES: NARRATIVAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Ilana Maria Bittencourt Martins


Universidade Federal do Rio de Janeiro
ilana.ufrj@gmail.com

Isabela do Patrocínio Rodrigues dos Santos


Universidade Federal do Rio de Janeiro
isabela_bella@hotmail.com

Rithianne Barbosa Pereira dos Santos


Universidade Federal do Rio de Janeiro
barbosaolori@gmail.com

Introdução

O presente artigo está sendo tecido por três bolsistas do grupo de pesquisa
extensão Conpas, que aqui irão narrar suas vivências e experiências dentro de salas de
aulas do primeiro segmento do ensino fundamental de uma escola do município do Rio
de Janeiro. Escolhemos utilizar como embasamento teórico os conceitos de narrativas e
de cotidianos de Inês Barbosa de Oliveira e Nilda Alves.
O projeto de pesquisa e extensão Conversas entre Professores: Alteridades e
Singularidades vêm desenvolvendo desde o ano de 2010 a prática de pesquisa por
professores e tem como objetivo compartilhar vivências dos cotidianos escolares dos
docentes, sendo aberto à participação de licenciandos no ano de 2014. Os encontros são
realizados no Colégio de Aplicação (CAp/UFRJ) a cada semana, com a metodologia de
rodas de conversas e estudos teóricos que nutrem nossas práticas e proporcionam trocas
de saberes. O grupo é composto por professores doutores, bolsistas extensionistas,
licenciandos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, abrangendo diferentes cursos,
tais como, Pedagogia, Ciências Sociais, História, Letras, Geografia, e estudantes do
CAp/UFRJ, contribuindo, de maneira expressiva para a nossa formação inicial.
As frentes que envolvem o projeto se diluem em Curso de Extensão com
bolsistas PROFAEX, Produção de Material Audiovisual com bolsistas PIBIAC,
Produção Acadêmico Científica e Orientação às Estudantes do Ensino Médio com
bolsistas PIBIC, e Cotidiano Escolar, sendo este o campo de nossa atuação como
bolsistas PROFAEX.

sumário 566
VII Seminário Vozes da Educação

A parceria entre o ConPAS e a Escola Municipal em que atuamos, se


estabeleceu no ano de 2017 através da participação de uma educadora da escola no
curso Conversas, que ao término demonstrou bastante interesse na proposta
experienciada, o que deu abertura para inserção de extensionistas na instituição de
Educação Básica.O Conversas é um curso de extensão com encontros semanais que
acontecem no CAp/UFRJ, voltado para a participação de professores da educação
básica, licenciandas e licenciandos, utilizando como metodologia as rodas de conversa,
as narrativas e troca de experiências dos participantes envolvendo questões sobre a
educação básica e as construções do cotidiano escolar.
O objetivo da inserção das bolsistas na escola é de acompanhar turmas das séries
iniciais, com foco na alfabetização, de modo que trabalhem em diálogo com as
professoras regentes nas produções cotidianas, entendendo este entrelaçar como
processo importante tanto para nós, licenciandas, quanto para as professoras, de modo a
praticarem suas formações continuadas, pois como admitem Reis e Campos:

Partindo do princípioque a formação se dá continuamente, ou seja, é um


processo que começa com o nascimento e se tece por toda a vida dos sujeitos,
discutimos a importância das memórias de vida como dispositivo de
autoformação, pensando como o processo de autoconhecimento torna-se
importante nos percursos de formação e o compartilhamento de narrativas de
experiências como elemento crucial para a formação contínua e para a
contribuição da valorização docente como autores de sua prática (2019, p. 1-
2).

A instituição onde se dá a pesquisa encontra-se localizada na Zona Norte do Rio


de Janeiro e é composta pelos segmentos de Educação Infantil e Ensino Fundamental I,
sendo uma turma apenas para cada segmento em cada turno (matutino e vespertino).
O prédio onde a escola funciona é tombado pelo IPHAN (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) o que acaba por dificultar tentativas de obras
e melhoramentos em sua estrutura física. Este fator exige que a escola se adapte em seus
estreitos espaços para a tentativa de garantia de uma gestão democrática e horizontal,
pois,como fundamenta Nilda Alves (2008, p. 16), “admito, ainda, que como a vida, os
cotidianos formam um ‘objeto’ complexo, o que exige também métodos complexo para
conhecê-los”. Por isso, defendemos a escrita narrativa como também sendo produção
científica, na medida em que a Ciência só é produzida mediantes demandas sociais que
abarcam as trajetórias dos diferentes sujeitos.

sumário 567
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O que nos interessa neste artigo é valorizar as práticas docentes que tecemos ao
longo deste processo em parceria com os sujeitos que compõem a instituição,
conscientes de que não nos fortalecemos, tampouco faz parte de nossos desejos,
tentando modificar as práticas destas professoras. Como destacam Reis e Campos,

Temos assistido a um processo de desvalorização das práticas cotidianas dos


professores que passa não só pela imposição de cartilhas e manuais que
buscam direcionar o seu trabalho numa clara tentativa de “ensinar” o que elas
“não sabem fazer”, como também por uma infinidade de relatórios, provas e
avaliações por meio dos quais se avaliam alunos e professores. Com esta
pesquisa, na contramão desse processo, buscamos valorizar os
conhecimentos docentes por meio da troca de experiências em rodas de
conversa, entendendo que este conhecimento narrado é potente para
compreendermos que saberes circulam nos espaçostempos escolares para
além do que as políticas hegemônicas de Formação Continuada percebem e
valorizam (2019, p. 2).

Nos fortalecemos no compartilhamento de saberes, nas trocas de experiências,


nas relações, nas escutas, nos olhares, e até nos choros que perpassam o ambiente
escolar.
No desenrolar deste processo, construímos narrativas que expressam nossos
sentimentos, do que é estar no chão da escola, munidas de expectativas e de certezas
que se ressignificam com o tempo. Deste modo, na segunda parte deste artigo,
apresentaremos as narrativas cotidianas de cada uma de nós entrelaçando-as às nossas
aprendizagens com o campo de pesquisa.

Tecendo fio a fio os cotidianos: Narrativa de Isabela do Patrocínio Rodrigues dos


Santos

Escrever ou falar sobre essa instituição me traz um mix de sentimentos e


sensações, principalmente duas delas. A sensação de ter me encontrado em um lugar e
em querer fazer parte dele e de todas as coisas que o envolvem e a sensação de estar
mergulhada em um mar de experiências vividas naquele espaço em uma trajetória de
dois anos e não saber em qual experiência me centrar. Talvez eu precisasse de muito
tempo e de muitas páginas para escrever detalhadamente cada momento que me marcou
(de forma positiva ou negativa) nesse espaço. Tentarei fazer um resumo da minha
experiência nesses anos e contar sobre como as práticas observadas e realizadas, assim
como as relações que obtive, me instigam e me inspiram diariamente a continuar na
profissão docente.

sumário 568
VII Seminário Vozes da Educação

Como bolsista do ConPAS, entrei na escola no 2º semestre de 2017, com o


objetivo de acompanhar o cotidiano escolar de uma turma de alfabetização (em uma
turma de 2º ano do turno da tarde) em parceria direta com a professora regente nas
atividades diárias e em novos projetos. Inicialmente, confesso que me senti
extremamente perdida sobre qual era exatamente o meu papel na escola e sobre como
seria minha participação junto à turma, diferentemente da facilidade com o que
expliquei o objetivo acima. Acredito ainda que faltou um pouco de acompanhamento
inicial da extensão para me guiar no que eu devia fazer na escola. Mas fui muito bem
recebida pelos sujeitos da escola, em destaque a coordenadora da instituição que me
inspira como profissional e pessoa todos os dias e a professora da turma que abriu as
portas de sua sala de aula para me receber e explicar o cotidiano daquela turma. Senti
que era uma professora mais calada, quieta e observadora e por esses motivos, achei que
ela talvez não gostasse muito de dividir suas ideias. Mas, ao contrário do que pensei e
com o meu jeito também observador, percebi que a professora estava disposta a
dialogar, considerar minhas opiniões para o planejamento e, em parceria, entender o que
eu como extensionista poderia ter para lhe oferecer e vice-versa. Foi esse primeiro passo
de acolhimento que de certa forma me inspirou a querer ser um pouco do que ela é e
fazer o que ela faz como docente. Acho que ela não tem noção do quanto esse primeiro
acolhimento foi importante para mim. Ao narrar sobre essa relação, me lembro do que
diz Manhães (2008, p. 82), “quando quem faz coletiviza esse fazer, por meio da
linguagem do saber-fazer, ensina e aprende com seus pares”.
Mesmo estando nesse curto espaço de tempo na turma pude estabelecer uma boa
relação com a professora, que partilhava comigo o seu planejamento e considerava as
minhas sugestões e a parceria com os alunos, os quais logo se acostumaram a me ver
uma vez por semana na sala com eles para receber minha ajuda durante as atividades do
dia a dia.
E foi exatamente essa relação com os alunos que me fez sentir mais saudades de
estar na instituição no primeiro semestre de 2018 quando me afastei da escola por
questões burocráticas relacionadas à bolsa de extensão.
Antes de iniciar em uma turma na instituição, no início do semestre, nós
bolsistas, a coordenadora da escola e a professora que nos acompanha por parte do
projeto (ConPAS), nos reunimos para compartilhar sobre os pontos positivos e
negativos da nossa estada na turma e das relações de troca efetivadas com as
professoras. Levando em consideração que a parceria estabelecida com a professora

sumário 569
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

regente da turma que estive em 2017 foi boa e nossas falas demonstraram isso,
combinamos de continuarmos nossa parceria, mas dessa vez em uma turma de 1º ano
com um foco maior na alfabetização.
De volta à escola, após a solução da questão burocrática da bolsa de extensão e
após seis meses de afastamento, iniciei na turma em agosto, logo após as férias, fui mais
uma vez muito bem recebida pela equipe dos funcionários da escola e ainda mais pela
turma, com abraços calorosos, mais especificamente dezenove abraços calorosos a cada
vez que eu chegava lá.
Nesta época do ano nos debruçamos a pensar sobre eventos que acontecem na
escola planejados anteriormente, entre eles a Feira de Ciências, em que, observando os
interesses da turma, considerando os seus conhecimentos prévios e valorizando a
autonomia, junto com a professora iniciei um projeto de paleontologia denominado
pelos alunos “Vale dos Dinossauros”, com ênfase na aprendizagem significativa que os
alunos tiveram mediante esses longos dias de pesquisa e produção. Não é que saiu até
uma brincadeira interativa de explorar para encontrar um fóssil verdadeiro trazido por
um dos alunos da turma?!
Acho que o que eu quero dizer com isso tudo, é que se não houvesse as trocas,
parceria, trabalho e planejamento em conjunto com a professora e com outra bolsista do
projeto que acompanhava a turma em dias diferenciados, nada disso teria acontecido.
Falar sobre o cotidiano é significativo para a minha formação como estudante de
Pedagogia, pensando que em pouco tempo eu estarei naquele lugar, atuando em uma
turma com diferentes demandas, planejando propostas e práticas para serem realizadas.
Segundo Manhães (2008, p. 82) “a troca de experiências e de saberes
tece/destece/retece espaços/tempos de formação mútua, nos quais cada professor é
chamado a desempenhar, simultaneamente, o papel de formador e de formando [...]”.
Destaco, que mais do que o 2º ano, a meu ver, as demandas do 1º ano são mais
complexas, tendo em vista as exigências das diretrizes curriculares acerca do “ciclo de
alfabetização” que se inicia neste ano. Não podemos esquecer da bagagem familiar que
cada aluno trás e a influência que essas bagagens têm no cotidiano e nas práticas que o
docente precisa realizar com o todo sem esquecer dessas individualidades. São muitos
aspectos e particularidades, eu precisaria de mais algumas horas para narrar sobre isso,
mas prefiro me debruçar mais nesse assunto em uma próxima pesquisa.
Com muitas aprendizagens e trocas, no início do ano de 2019 nos reunimos
novamente para definirmos as turmas que acompanharíamos e decidimos que eu

sumário 570
VII Seminário Vozes da Educação

permaneceria no 1º ano, por ter firmado uma parceria com a professora regente e
desenvolvido trabalhos que atenderam a demandas da turma. Assim, retornei a escola,
com saudades daquele espaço e ansiosa para conhecer a nova turma, principalmente por
acreditar que seria ainda melhor começar junto com a turma no primeiro semestre. Mas
dessa vez, coloquei muita expectativa e as coisas não foram como o esperado.
Ao chegar na turma, fiquei sabendo que uma outra professora da instituição
assumiria a turma do 1º ano que eu acompanharia. Como o esperado, fui novamente
bem recebida e feliz em firmar uma nova parceria. E sobre a parceria com a turma? Foi
incrível desde o primeiro dia, por muitos aspectos, dentre eles o acordado de que
desenvolveríamos atividades ao longo do processo.
Mas como nem tudo são flores e os pontos negativos ao meu ver também fazem
parte do cotidiano, nos levando a pensar e a refletir sobre nossas práticas docentes,
partilho nesta narrativa algumas experiências que à princípio não correspondem ao que
eu esperava, mas que me mostraram a complexidade da vida cotidiana atravessada
também pelo desafio e pelas dificuldades. Estão entre esses pontos o fato de que a sala
do primeiro ano é pequena e por vezes abafada, dificultando em locomoção e realização
de algumas atividades mais elaboradas dentro de sala (a turma é composta por 14
alunos, sendo dois incluídos, duas mediadoras, estagiária e eu como extensionista).
Além disso, muitos centros de estudos e alguns feriados acabaram por coincidir com o
dia em que eu acompanhava a turma, perdendo dias letivos. Narrando esse fato, me
recordo de Nilda Alves (2008, p. 21), quando pondera que “para apreender a "realidade"
da vida cotidiana, em qualquer dos espaços/tempos em que ela se dá, é preciso estar
atenta a tudo o que nela se passa, se acredita, se repete, se cria e se inova, ou não”.
Em relação à parceria com a professora, conseguimos realizar algumas
atividades, porém nossas ideias não se entrelaçaram efetivamente para que algum
projeto em conjunto pudesse sair do papel. Acredito que todos esses fatores citados
acima, influenciaram para que isso acontecesse e para que minhas expectativas com a
parceria se reduzisse. Foi um momento difícil, pois eu não conseguia me enxergar
produzindo no dia a dia, mesmo dando o máximo de mim. No final de tudo, compreendi
que nem sempre as coisas vão acontecer como esperamos e que é possível que o
cotidiano nos conduza a trilhar outros caminhos. Por isso, agradeço a essa professora
por me receber em sua sala, a cada aluno dessa turma pelo carinho, confiança nesse
processo complexo que é a alfabetização e por aumentarem ainda mais a minha vontade
de seguir na profissão docente, a equipe de direção que compreendeu esse processo,

sumário 571
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

assim como o apoio que recebi das colegas bolsistas e também autoras desse texto
quando as expectativas haviam abaixado. Levando em consideração que isso também
faz parte do meu processo de formação, Campos e Reis (2019, p. 4) afirmam que “a
formação se dá a todo o tempo e que por meio dela é possível (re)direcionar percursos e
mudar trajetos, ou seja, a formação é contínua e singular”.
As férias chegaram, as expectativas ainda não eram das melhores e foi nesse
momento, que durante o nosso encontro, me foi proposto retornar a turma que
acompanhei no segundo semestre de 2018 no 1º ano, agora atualmente no 2º ano (mas
dessa vez com uma demanda de novos alunos e alunos transferidos com suas
particularidades diversas) retornando a atuação com a primeira professora que
acompanhei na instituição. Sabia que seria um desafio, mas não tinha dúvidas que com
a parceria e com a nossa relação de forma horizontal, poderíamos pensar juntas em
práticas que se adequassem a essa turma, para além do que é proposto nas diretrizes.
Como bem destaca Campos e Reis: “Desse modo, pesquisar por meio das partilhas de
histórias e reflexões, tecendo diálogos narrativos pode nos ajudar a compreender que
não há como dissociar prática e teoria, pois não há fazer sem pensar, o que evidencia a
autoria dos professores no seu fazer pedagógico” (2019, p. 3).
No presente momento, me encontro na turma, desenvolvendo um projeto de
jogos e brincadeiras recicláveis, amparada pelo tema de Sustentabilidade proveniente da
Prefeitura do Rio de Janeiro. Percebo que os alunos estão empolgados com o projeto e
compreendo que estou vivenciando o cotidiano e trilhando o caminho certo na
construção dos planejamentos das atividades. Além disso, as leituras e discussões
realizadas no ConPAS tem me proporcionado muitas reflexões acerca das minhas
práticas.
Por todos esses aspectos narrados, tenho refletido cada vez mais que o cotidiano
se reinventa a cada ação e pensado na importância de tecer parcerias mútuas e afetivas.
Acredito que cada vivência é um fio e o entrelaçar dos fios me constituem enquanto
educadora.

Houve algumas pedras no meio do caminho. Mas isso não foi determinante:
Narrativa de Rithianne Barbosa Pereira dos Santos
Imaginei que para adentrar em uma sala de aula que é composta por sujeitos
sociais únicos, particulares,dotados de suas singularidades, alteridades, especificidades,

sumário 572
VII Seminário Vozes da Educação

histórias, dando andamento constante para a construção de seus “eu’s”, não seria nada
fácil. Era a oportunidade de mostrar todo o gás que eu, como licencianda do curso de
Pedagogia da Universidade Federal do Rio de Janeiro tinha, e como a sede por sala de
aula que me motivava poderia dar origem a trabalhos e produções incríveis com a turma
de primeiro ano de alfabetização do ensino fundamental.
O ledo engano é imaginar isso tudo e não imaginar que esses sujeitos já
possuíam demandas, exigências e rotinas muito antes da extensionista, no caso eu,
passar pela porta de entrada do espaço de construção, não apenas relacionais, mas
sobretudo, de ensino e aprendizagem das normas escolares que requer de toda e
qualquer instituição de ensino. E mais ainda, que as atividades afetivas e/ou robustas de
significados, não precisam ser mirabolantes, como as que frequentemente pensamos e
executamos quando elaboramos nossas regências para então sermos aprovadas em
nossas (infinitas) 100 horas de estágios obrigatórios.
Como bolsista do ConPAS, eu sabia que o ingresso em sala de aula em classe de
alfabetização, poderia enriquecer de maneira significativa minha atuação enquanto
profissional da educação em formação. E isso muito me alegrava por ter a oportunidade
de que uma professora da Educação básica lhe abra as portas de sua sala de aula e
mostre seu trabalho com a turma, de forma que, por inúmeras vezes, estas educadoras
são mais julgadas e apontadas, e por raras, admiradas e respeitadas. Eu sabia também
que de críticas elas já estavam cheias, e como venho apreendendo no grupo de pesquisa
e extensão, eu não estava “ali” para falar mal de professor.
Quando entrei na escola e fui direcionada para a coordenação pedagógica,
ondefui também, muito bem acolhida, só pensava que o trabalho seria incrível. Percebi
neste momento e durante o percurso que estava diante da construção, aparentemente, de
uma organização de gestão democrática e com pensamentos inclusivos. Apesar de
dificuldadescotidianas, como alagamentos de salas devido às fortes chuvas do mês de
março, por exemplo, e a escola ter que adaptar seus estreitos espaços para o quantitativo
de alunos com o princípio de garantir aprendizagem significativa, não percebi, no
período em que estive participante do espaço, qualquer tentativa de administração
autoritária.
Diante deste cenário, entendi que a escola não estava disponível para pegar na
minha mão e me direcionar ou deliberar na atuação que deveria ser de meu
protagonismo. Foi aí que as coisas começaram a se complexificar, mas “como a vida, os

sumário 573
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

cotidianos formam um ‘objeto’ complexo, o que exige também métodos complexos


para conhecê-los” (ALVES, 2008, p. 16), e no ambiente escolar isto não seria diferente.
Para outros campos científicos de atuação efetivas, ser professor significa ser
muitas coisas. Dependendo do segmento, você pode ser a pessoa que estudou para
"limpar bunda dos filhos dos outros", para cuidar de criança birrenta, a pessoa que
estudou pra ensinar velho a ler (e pra que agora, se não adianta mais?)", ou para
"alfabetizar adolescente marginal que não estudou porque não quis". Muitas vezes,
ouvimos até que seremos/somos professoras para apanhar em sala de aula. Mas uma
coisa eu tenho certeza que todos os professores, e professores em formação já ouviram;
a clássica “Vai ser professor? Professor no Brasil morre de fome”. Luiz Carlos Siqueira
Manhães (2008), assume que:

A formação de professores (e de outros educadores) tem sido um grande


desafio para as políticas educacionais, já que a expansão das redes de ensino
trouxe consigo a necessidade de mais e melhores docentes, mas esta demanda
não foi acompanhada, por opção dos grupos hegemônicos, de políticas
públicas que contemplassem a educação e a valorização profissional .

Desta forma, são poucas as atuações saudáveis visibilizadas, que inclusive até
aparecem nas mídias brasileiras, porém como exemplo não recorrente, de alguma
professora ou professor que iniciou determinado projeto em determinada escola e
"viralizou" como sugestões de práticas de ensino. Quando na verdade, as práticas
cotidianas e as tecituras curriculares que compõem o ambiente escolar estão presentes
até mesmo na entonação do “bom dia” que você compartilha com seu aluno.
Afetividade não pode ser reduzida a abraços e beijinhos. Afetividade docente contempla
o incentivo ao estabelecimento de respeito, a promoção do senso crítico e a promoção
de autonomia de seus alunos.
Ao iniciar uma tentativa de trabalho coletivo com a professora regente enquanto
extensionista alguns percalços ocorreram por diversos fatores. Por um lado, a professora
mostrava interesse pelas atividades propostas. Por outro, os afazeres e prazos em uma
classe de alfabetização tornava esse caminho complicado de se trilhar. Não por ser
classe de alfabetização, mas porque cada professora também possui sua metodologia, e
o que eu não faria seria passar por cima do que a professora achava ideal para sua
turma.
É importante dizer que esta professora possui formação de Artes e Formação de
Professores. Em uma de nossas conversas ela me relatou que havia feito formação de

sumário 574
VII Seminário Vozes da Educação

professores, mas que nunca havia imaginado trabalhar em salas de aula. Que prestou o
concurso para Séries Iniciais mais para ver “no que iria dar” e menos ou quase nada
para trabalhar como professora. Porém o telegrama chegou, e junto com ele, a
convocação. Segundo a professora ela nem se lembrava mais do então concurso, mas
acabou considerando o campo educacional como uma possibilidade de profissão, e
desde então assim vem sendo.
Neste período a turma que eu vinha acompanhando recebia diferentes projetos, o
que acontecia todos os dias. Para a direção isso era excelente. Uma classe de
alfabetização cheia de projetos. Para a professora, isto se tornou fardo. Ela se sentia
como se imaginassem que ela não soubesse fazer o seu trabalho, e que por isso,
“enfiavam” um monte de projetos em suas turmas. Uma sala pequena, que mal cabia os
materiais da turma. Um ar condicionado que chovia na mesa da professora. A luz do sol
que refletia na sala de madeira a prejudicar a visão do quadro. E além de tudo,
licenciandas de diferentes projetos sugerindo e apresentando propostas para suas aulas,
e eu, era mais uma.
Sem querer causar mais frustrações, em meus dias nesta escola, eu procurava de
todas as maneiras perturbar o menos possível esta professora, o que acabou me
limitando a uma cadeira no fundo da sala. Com tantas demandas, esta professora, por
vezes se esquecia das atividades que havíamos planejado para meu dia com a turma. A
insegurança de sair dos padrões que perpassaram na formação desta professora
normalista eram presentes, e essas não são minhas conclusões.
Após reuniões de retomadas de explicação do que era minha finalidade de
atuação na escola, sempre com bastante cautela, de maneira a deixar bastante
compreensível que o que eu queria era construir junto com ela, e não que ela sentisse
que eu quisesse impor algo em sua prática, conseguimos, desta vez com bastante
harmonia, elaborar uma calendário de atividades que iria nos direcionar no tempo que
nos restava.
Tudo parecia encantador. Selecionamos atividades lúdicas que conversavam
entre si. O famoso “agora vai”. Mas não foi. Não desta forma. Com as avaliações de
grande escala que as escolas da rede precisam participar, as mesmas que têm como
finalidades medir o nível de aprendizagem dos alunos (e com isso, o “desempenho” do
professor), nosso planejamento foi por água abaixo. Nossas datas coincidiram como os
dias das avaliações, e nossas vivências se reduziram a revisões e testes.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Mas ainda bem que o ambiente escolar não é feito apenas de frustrações, pelo
contrário. Lembra lá em cima quando disse que as práticas docentes não precisam ser
noticiadas para serem significativas, afetivas, construtivas e educativas? Pois então,
neste período, a professora iniciou um projeto de “super-heróis”, que nada mais era o
trabalho com a autoestima dos alunos, em que eles se percebiam como importantes,
apresentando suas qualidades ao representarem seus super-heróis como sendo eles
mesmos. Era a professora utilizando de sua formação artística para levar à sua sala de
aula um trabalho de desenho, pintura e escrita, e mais, que para além das normas
curriculares, que são legítimas, os cotidianos tecidos naquele espaço, continham o
intuito de valorização dos sujeitos que os compõem. Então percebi que as experiências
profissionais não são formadoras por si mesmas; é o modo como as pessoas as assumem
que as tornam potencialmente formadoras (MANHÃES, 2008).
Deste trabalho, conseguimos desenvolver nossos momentos de leitura.
Combinamos que eu, como extensionista, ficaria responsável por selecionar alguns
livros com temáticas que estivessem atravessando o ambiente escolar. A repercussão foi
tanta, que nos vimos contando histórias no pátio da escola, o que chamou atenção de
outros alunos que estavam no banco de reservas nos jogos de Educação Física e
decidiram se juntar a nós, o que me fez lembrar Manhães (2008, p. 84) quando diz que
“é preciso que essas prática tenham significado para aqueles que as realizam e para
todos os demais que tenham acesso a essas práticas, ou seja, que o sentido seja
descoberto e partilhado”. Foi um momento muito bonito de construção de relações e
afetos educativos.
Em uma destas seleções para livros, nos deparamos com um livro infantil que
trabalhava questões ambientais e economia de água. Isso se entrelaçava com os
conteúdos das apostilas, com as questões que a professora apresentava para os alunos e
até com as músicas educativas que ela colocava para tocar todos os dias por um
momento em suas aulas. Acabou-se por dar origem a um belíssimo cartaz, feito com o
molde dos próprios alunos, se tratando da quantidade de água que possuímos em nosso
corpo e sua importância. Esse cartaz acompanhou a turma em passeios externos e
permanece com eles até hoje.
Com isso, aprendi que como atuante de sala de aula, não podemos esperar que
nos deem espaço. Não podemos esperar que “uma hora tudo se ajeita”. A profissão
docente é constituída de atuação, de luta, também por espaços, mas mais por ideais.
Mais por crença em potenciais próprios, mais por valorização do ambiente e

sumário 576
VII Seminário Vozes da Educação

profissional, por sensação de pertencimento. É inevitável que ocorram percalços no


caminho, mas como admite Antônio Machado: Caminhante não há caminho/ Se faz
caminho a andar.

O mergulho que veio depois da goteira: Narrativa de Ilana Maria Bittencourt


Martins
Antes de entrar na escola, muito escutei sobre as boas experiências que ali
aconteceram: “essa escola é muito especial”, “eu fiz um projeto lindo com a turma”,
então minhas expectativas estavam lá em cima e muito animada fui de encontro ao
primeiro dia. Eu já tive antes experiências dentro de escolas do município com os
estágios obrigatórios e como mediadora, mas nunca tinha entrado em uma como
extensionista.
Cheguei na escola em uma segunda pós-carnaval. Assim que entrei, logo me
mandaram sentar numa cadeira na varanda da escola. Falaram para eu aguardar que já,
já alguém iria falar comigo e ali fiquei. Enquanto esperava, percebi uma movimentação
entre os funcionários, que entravam e saíam de uma sala, chamavam outros para ver -
“molhou tudo” e mais tarde fui saber que com as chuvas do carnaval uma das salas
molhou toda, tanto que não era possível ter aula ali.
Demorou bastante até alguém vir falar comigo de novo e quando isso aconteceu,
só me apontaram uma professora do segundo ano e falaram “você vai ficar com ela,
pode ir atrás dela”. Fui então acompanhando seus passos até entrar em sua sala. Não
conhecia nada na escola e a primeira coisa que ela disse para mim é foi: “você pode
sentar aqui atrás”. Saí naquele dia desanimada e com vários pensamentos na cabeça. E
foi nessa mesma semana que entendi o que é a extensão, pois como teria encontro do
ConPAS na mesma semana que foi o “trágico” primeiro dia na escola, estávamos
fazendo a leitura do livro “Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas” no artigo
“Decifrando o pergaminho - os cotidianos das escolas nas lógicas das redes cotidianas”
de Nilda Alves. E enquanto lemos e discutimos o texto, logo percebi que naquele
primeiro dia era uma segunda pós- carnaval, estava tendo goteira na escola, uma turma
estava sem sala de aula, a professora não foi apresentada a mim e não sabia o que eu
faria, isso tudo pode ser sentido quando Nilda Alves (2008) tece que:

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Com todos esses fatos anotados e organizados, percebo que só é possível


analisar e começar a entender o cotidiano escolar em suas lógicas, através de
um grande mergulho na realidade cotidiana da escola e nunca exercitando o
tal olhar distante e neutro que me ensinaram e aprendi a usar. É preciso
questionar e “entender” o cheiro que vem da cozinha, porque isto terá a ver
com o trabalho das professoras e as condições reais de aprender dos alunos
(p. 20).

Então, as goteiras que estavam por toda a escola durante o primeiro dia em que
estive lá dentro, fizeram com que todo o corpo escolar estivesse presente para tentar
resolver e amenizar a situação que ocorria, para que os alunos pudessem ter aula da
melhor forma possível. E receber uma extensionista naquele momento, não era uma
prioridade, não perceberia isso e voltaria a escola desanimada, se não fosse a leitura,
troca e olhares que eu tive para a situação ocorrida. Olhar a movimentação no corredor,
escutar a conversa dos funcionários aflitos tentando resolver a situação, ler e ser tocada
pela escrita da Nilda Alves, narrar o que foi vivenciado naquele dia, tudo isso é um
mergulho (ALVES, 2008) nos cotidianos escolares.
Ir para a escola semanalmente, tem sido mergulhar em sentimentos, certezas e
incertezas. Visto que meu primeiro dia com a professora na turma do segundo ano, foi
sentar na última cadeira sem muitas interações, o restante tem sido um nadar com ondas
movimentadas. A professora que estou acompanhando está para se aposentar. Esse vai
ser seu último ano como professora. Ela tem uma bagagem de muitos anos de sala de
aula e aceitou receber uma licencianda em sua turma. As primeiras semanas, mesmo eu
entrando na sala de uma forma mais positiva, não foram fáceis... continuei sentada na
última cadeira e só observava a turma sem grandes interações. Foram muitas narrativas
com a coordenadora da escola, minhas companheiras de projeto e as coordenadoras do
ConPAS, para tentar buscar a melhor forma aprofundar mais as relações. Comecei a
sentar mais no meio da turma, ao lado das crianças, a cortar papéis toda vez que a
professora pedia, a chegar mais cedo para planejarmos juntas e então percebi durante as
minhas narrativas, que faltava eu tecer com a própria professora e assim foi feito, falei
das minhas inseguranças, das possibilidades, das relações, e ela me correspondia em
cada frase de desabafo meu. Assim, como aponta Campos e Reis (2019),

As narrativas como método de investigação contribuem para uma


aproximação entre sujeitos pesquisados e sujeitos pesquisadores, permitindo
maior percepção sobre os significados que os professores dão às suas
experiências, à avaliação que fazem dos seus processos de aprender e ensinar,
assim como permitem um mergulho nos contextos vividos. A narrativa se
constitui também como experiência formativa. Nesse exercício cotidiano,
professores têm a possibilidade de (re)viver suas experiências e as dos outros

sumário 578
VII Seminário Vozes da Educação

que também narram. Assim, produzem diálogos entre o que fazem, o que
desejam, o que lhes é possível fazer e o que pensam e nesse percurso se
formam ou (auto)formam exercitando uma reflexão que vai além da
naturalização das ações cotidianas, criando outros sentidos para a sua
docência (2019, p. 3).

As narrativas conversadas e escritas foram fundamentais para que as reflexões


feitas sobre elas me fizessem entender o que faltava para alcançar a relação que
estávamos buscando e os caminhos que poderiam ser traçados a partir de então. Eu e a
professora combinamos que faríamos o projeto de jogos e brincadeiras e ele foi o
divisor de águas na estruturação das relações. Com o início do projeto, as crianças se
mostravam cada vez mais interessadas e participativas, e,enquanto isso, a professora
começou a chamar a turma de “nossa turma” e a pedir opinião sobre o planejamento
dela e as atividades que ela estava pensando em trazer para turma.
Esse aprendizado de poder atuar junto com a turma e a docente, montar um
projeto com resgate de jogos e brincadeiras antigos e considerando os que as crianças
atualmente jogam e brincam, para além das relações presentes na turma, me
oportunizou, como licencianda, vivenciar os caminhos que uma aula podem se conduzir
no momento em que se estabelece uma relação horizontal na prática cotidiana entre os
diversos sujeitos da prática e foge um pouco do que é comum dentro das apostilas e
cartilhas das escolas. Vê-los descobrir novas formas de aprender e junto a professora,
buscar cada vez mais novos caminhos para que isso ocorra.

Conclusão
As narrativas escritas, por mais que tenham sido tecidas a partir das vivências
em um mesmo espaço, apresentaram experiências diferentes, com visões, cheiros e
sentimentos diferentes porém, sempre emboladas (MANHÃES, 2008). Na construção
dessa ideia, Manhães também cita:

Os percursos de formação, portanto, não são lineares, mas sim vividos em


vias labirínticas; não são rupturas com o passado, e sim novas aberturas que
tecem as dimensões temporais e espaciais, mesmo que em alguns momentos
essas narrativas tenham um certo “ajustes de contas” com esse passado. Cada
história de vida, cada percurso, cada processo de formação é único. Tentar
elaborar conclusões generalizáveis seria absurdo. Neste caso, a verdade não
cabe na generalização. Existe uma singularidade de cada história de vida que
não permite que se considere como verdadeira toda generalização que não
tenha em conta essa singularidade (2008, p 86).

sumário 579
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Na construção do artigo tivemos um momento de partilha de nossas narrativas


individuais em que houveram descobertas a respeito da escola e dos sujeitos que nela
frequentam e isso foi importante para perceber que o trabalho coletivo docente e pensar
a docência acontece para além dos muros da escola em diferentes espaços, situações e
vicissitudes.
Além disso, todo o registro feito das vivências, contaram com trocas de olhares,
cheiros, gestos, conselhos, abraços. Nesses registros, colocamos tudo que sentimos em
sala de aula, nossas experiências, angústias, dúvidas e confortos através delas. Assim
como narra Baroni e Martins,

Cabia tudo no meu caderno de campo: os desenhos das crianças que tinham
curiosidade sobre as coisas que eu escrevia, uma atividade feita em sala,
meus sentimentos e olhar, que vai muito além do método que a professora
escolheu para alfabetizar aquela turma e inclui todas as relações e trocas que
aconteciam naquele ambiente (2019, p. 321).

Escrever sobre a escola pelas narrativas tem sido um trabalho também de


aperfeiçoamento das nossas escritas como licenciandas, podendo experimentar outras
formas de escrita acadêmicas, diferentes das que nos foram apresentadas ao longo da
nossa formação, que sempre foram feitas dentro de relatórios já elaborados nos moldes
do politicamente correto, e as narrativas nos possibilitam buscar as autoras que estão
dentro de nós e fora dos padrões exigidos pelo que se entende como saber/escrita
intelectual.

Referências
ALVES, Nilda. Decifrando o pergaminho – os cotidianos das escolas nas lógicas das
redes cotidianas. In: OLIVEIRA, I. B. de e ALVES, N. Pesquisa nos/dos/com os
cotidianos das escolas, sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2008.

ALVES, Nilda. OLIVEIRA, Inês Barbosa de (orgs.). Pesquisa nos/dos/com os


cotidianos das escolas: sobre redes de saberes. Petrópolis:DP et Alii, 3. ed. 2008.

BARONI, P. e MARTINS, I. M. B. Narrativas na formação: aprendizagens com as


escolas. _In_: SOUZA, C. F. et al. Cotidianos educacionais: fazeres, imagens e
formação docente. Rio de Janeiro: autografia. P. 318-330, 2019.

MANHÃES, L. C. Rede que te quero rede: por uma pedagogia da embolada. In:
OLIVEIRA, I.B. de; ALVES, N. Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas,
sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2008.

REIS, Graça. CAMPOS, Marina. Conversas entre professores: Produção de currículos


nos processos de formação contínua. NO PRELO.

sumário 580
VII Seminário Vozes da Educação

FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ENSINO NORMAL: UMA ANÁLISE DO


CURRÍCULO MÍNIMO DO RIO DE JANEIRO (2013)

Rodrigo de Brito dos Santos87


PPGEB UERJ
rodribri18@yahoo.com.br

Maria Cristina Ferreira dos Santos88


FFP UERJ/ CAp UERJ/ PPGEB e PPGEAS UERJ
mariacristinauerj@gmail.com
Grupo de Pesquisa Ensino, Formação, Currículos e Culturas
Fomento: FAPERJ

Introdução
Nos estudos sobre formação docente podem ser abordados diferentes aspectos,
como: a identidade profissional, a organização curricular dos cursos de formação, os
saberes e fazeres docentes, entre outros. Para Nóvoa (2009), questões relacionadas à
diversidade, aprendizagens e usos de novas tecnologias exigem reflexão e intervenção
docente. Pimenta (1994, p. 93) acrescenta que “[...] teoria e prática são indissociáveis
como práxis” e o ato de educar seria, portanto uma construção de dialogicidade da
interação sujeito-nação sociedade. Gauthier et al. (2006, p. 185) relevam um elenco de
saberes pontuais para o docente e apontam que “[...] repertório de elementos inerentes
ao ato sendo entendidos ainda como repertório de subsídios que se transformam em
direcionamentos a serem aplicados em sala de aula”.
No que concerne ao ensino médio, as Diretrizes Curriculares Nacionais
(BRASIL, 2012) expressam caminhos para a estrutura e o funcionamento desta etapa da
educação básica e, devido à sua relação com a qualificação profissional, torna-se
relevante orientar a condução das disciplinas componentes deste nível de ensino. Nas
Orientações Curriculares para o ensino médio destaca-se que:

87 Mestrando do Programa de Pós-graduação de Ensino em Educação Básica (PPGEB) da Universidade


do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
88 Docente da Faculdade de Formação de Professores e do Instituto de Aplicação da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (CAP UERJ). Docente dos Programas de Pós-graduação em Ensino de
Educação Básica (PPGEB) e Ensino de Ciências, Ambiente e Sociedade (PPGEAS) na UERJ.

sumário 581
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Os professores, neste contexto de mudança, precisam saber orientar seus


alunos sobre onde e como colher informações, como tratá-las e como utilizá-
las, ensiná-los a pesquisarem. A pesquisa pode ser um componente muito
importante na relação dos alunos com o meio em que vivem e com a ciência
que estão aprendendo. A pesquisa pode ser instrumento importante para o
desenvolvimento da compreensão e para explicação dos fenômenos sociais
(BRASIL, 2006, p. 125 - 126).

Algumas indagações podem ser construídas no decorrer da pesquisa e do


estabelecimento de conexões entre as disciplinas escolares: de que forma a organização
curricular possibilita a abordagem de temas do cotidiano que necessitam de
intervenção? De que forma temas relevantes são invisibilizados no currículo de
formação docente e repercutem no trabalho dos professores e professoras na escola?
Nesse sentido, os estudos de Giroux (1995) contribuem para reflexões:

No que se refere ao papel do professor e da professora, novas formas de


conceber a escola, os conhecimentos e o currículo, desafiam-nos a ultrapassar
a noção de transmissores de informações. Sobretudo, seríamos produtores
culturais e nossas práticas pedagógicas deveriam privilegiar a organização de
experiências através das quais os estudantes pudessem vislumbrar o caráter
socialmente construído ‘de seus conhecimentos e experiências, num mundo
extremamente cambiante de representações e valores (GIROUX, 1995, p.
101).

Ampliando esta discussão, Santos (1990) impulsiona percepções acerca das


alterações na constituição das disciplinas de um currículo, estabelecendo conexões com
elementos externos como contexto político, econômico e social - bem como internos –
como a organização de sujeitos com ideologias comuns, a organização dos espaços, a
articulação de experiências na área e mobilizações de cunho socio-ideológico que se
referem a escolhas curriculares. Goodson (1995) destaca a relevância de estudos sobre
a construção socio-histórica do currículo e da análise de mudanças e rupturas nas
disciplinas escolares. Contribuindo com esta reflexão, Sacristán (2000, p. 61) afirma
que: “O currículo é a ligação entre a cultura e a sociedade exterior à escola e à
educação; entre o conhecimento e cultura herdados e a aprendizagem dos alunos; entre a
teoria (ideias, suposições e aspirações) e a prática possível, dadas determinadas
condições”.
Nessa investigação as perguntas mobilizadoras são: como o Currículo Mínimo
do Ensino Normalestá estruturado e quais componentes curriculares abordam questões

sumário 582
VII Seminário Vozes da Educação

de gênero e sexualidade? Quais foram os destaques dados nessas abordagens e como


podem influenciar na formação docente no ensino normal?
O objetivo deste estudo é analisar como o currículo que estrutura a habilitação
profissional para a docência no ensino normal no estado do Rio de Janeiro dialoga com
questões de gênero e sexualidade e a formação docente. Considera-se que a busca de
alternativas metodológicas e pedagógicas para abordagens sobre a diversidade cultural,
gênero e sexualidade representa um desafio que, de modo geral, exige novos
posicionamentos docentes, propostas inclusivas e éticas diante de representações sociais
e do cotidiano.

Metodologia
Neste estudo optou-se por uma pesquisa documental de natureza qualitativa. A
pesquisa documental, bem como outros tipos de pesquisa, propõe-se a produzir novos
conhecimentos, criar novas formas de compreender os fenômenos e dar a conhecer a
forma como estes têm sido desenvolvidos (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI,
2009). Para Lüdke e André (1986), a análise documental visa a estudar e analisar um ou
vários documentos na busca de identificar informações factuais nos mesmos; descobrir
as circunstâncias sociais, econômicas e ecológicas com as quais podem estar
relacionados, atendo-se sempre às questões de interesse. Esta análise é constituída pelas
etapas de escolha e organização dos documentos e de posterior análise.
O documento escrito constitui uma fonte relevante para pesquisadores nas
ciências humanas e sociais. Ele “[...] permite ainda acrescentar a dimensão do tempo à
compreensão do social” e “[...] permanece como o único testemunho de atividades
particulares ocorridas num passado recente” (CELLARD, 2012, p. 259). Ainda na visão
desse autor, amplia-se o conceito de documento como: “[...] tudo o que é vestígio do
passado, tudo o que serve de testemunho [...] pode tratar-se de textos escritos, mas
também de documentos de natureza iconográfica e cinematográfica, ou qualquer outro
tipo de testemunho registrado, objetos do cotidiano, elementos folclóricos”
(CELLARD, 2008, p. 297).
Na análise documental foram realizadas: levantamento de termos relacionados à
sexualidade, gênero e masculinidade e afins nos componentes curriculares; análise do
Caderno de Fundamentos da Educação e das orientações para o trabalho; e do texto da
disciplina Sociologia da Educação.

sumário 583
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Para a análise dos conteúdos relacionados à sexualidade, gênero e


masculinidade nos componentes curriculares foi utilizada a técnica proposta por Bardin
(2011). Segundo Bardin (2011 p.38), a análise de conteúdo consiste na combinação de
diversas técnicas de análise “[...] visando por procedimentos sistemáticos os objetivos
de descrição do conteúdo das mensagens indicadores [...] que permitem a inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção/recepção [...]” de tais mensagens.
Ainda na visão desse autor, no método de análise de conteúdo há exigência de uma pré-
análise, onde o pesquisador deve eleger quais serão suas unidades de análise e o não
tem um procedimento metodológico exato, mas que é empírica e deve ser reinventada
dentro do processo, devendo ser adequada de acordo com as necessidades da pesquisa.
Foi realizada a busca das palavras: masculino, feminino, sexo, sexual, sexuais,
sexuado, sexualidade e gênero no texto do Currículo Mínimodo Rio de Janeiro do
Curso Normal - Formação de Professores (2013). A análise deste documento visa
compreender se existem abordagens sobre gênero e sexualidade nos diferentes
componentes curriculares e se podem estabelecer conexão entre esta temática e a
formação e o trabalho docente.

Resultados e discussão

A materialidade do Currículo Mínimo 2013- Curso Normal

O Currículo Mínimo 2013- Curso Normal- Formação de Professores está


organizado em seis Cadernos: Práticas Pedagógicas (12 páginas); Parte Diversificada
(12 páginas); Laboratórios Pedagógicos (32 páginas); Formação Complementar (8
páginas); Conhecimentos Didáticos Metodológicos (24 páginas) e Fundamentos da
Educação (20 páginas). Os Cadernos estão organizados em: apresentação, introdução,
fundamentação teórica para cada série contemplada, disciplina(s) no respectivo Caderno
e ficha técnica da equipe responsável pelasua elaboração e organização.
Os atuais Cadernos foram reestruturados em 2012 e apresentados aos docentes
em 2013, com alterações: a exclusão da disciplina Ciências Físicas e da Natureza
(presente na versão anterior de 2007); mudanças na disciplina Abordagens Psico
Sociolingúisticas do Processo de Alfabetização, passando a ser ofertada a disciplina
Processo de Alfabetização e Letramento, e a inserção de seis Laboratórios Pedagógicos,
distribuídos da seguinte forma: um laboratório na 1ª série, dois laboratórios na 2ª série e
quatro laboratórios na 3ª série.

sumário 584
VII Seminário Vozes da Educação

Na atual versão do Currículo Mínimo (2012), os Cadernos têm a seguinte


organização: Apresentação – onde se relata a reformulação do currículo junto à
Secretaria Estadual de Educação; Introdução - com uma caracterização da área e das
disciplinas vinculadas; a apresentação de eixos por bimestre e das habilidades e
competências a serem alcançadas para em cada uma das séries do curso; e a equipe de
elaboração do caderno.
Conforme Moreira e Silva (1997, p. 28), “[...] o currículo é um terreno de
produção e de política cultural, no qual os materiais existentes funcionam como matéria
prima de criação e recriação e, sobretudo, de contestação e transgressão”. O currículo
escolar tem ação na formação e desenvolvimento dos estudantes e a ideologia, cultura e
poder nele configurados são determinantes para o processo educacional que se
produzirá.
Discriminações se fazem presente em todo âmbito social e a escola não fica
isenta de representar, diariamente, episódios de incompreensão dos seus atores face às
múltiplas percepções de como os sujeitos que nela interagem constituem sua identidade,
subjetividade e ampliam contornos e posturas para a diversidade.

A materialidade do Caderno de Fundamentos da Educação e a Sociologia da


Educação
O Caderno de Fundamentos da Educação apresenta 20 páginas, englobando
quatro disciplinas escolares - História e Filosofia da Educação, Sociologia da Educação,
Psicologia da Educação e Política Educacional e Organização do Sistema de Ensino - e
apresentação sumária de cada uma das disciplinas, sendo necessário o professor buscar
em outras fontes a complementação da fundamentação teórico-metodológica para
organização do trabalho docente. Em seguida há a apresentação das disciplinas História
e Filosofia da Educação (ofertadas na 2ª e 3ª séries), Sociologia da Educação (ofertada
na 3ª série), Psicologia da Educação (ofertada na 2ª e 3ª séries), Política Educacional e
Organização do Sistema de Ensino (ofertada na 3ª série) e, posteriormente, as
habilidades a serem desenvolvidas em cada bimestre. No final do Caderno é
explicitada a composição da equipe que atuou na sua elaboração.
O Caderno de Sociologia da Educação é composto por 4 (quatro) eixos,
apresentados com as respectivas habilidades a serem alcançadas. No 1º bimestre o eixo
temático é intitulado “A relação entre sociologia e educação”, emque se abordam temas
como a educação e a socialização dos indivíduos, o conhecimento de autores e suas

sumário 585
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

abordagens do pensamento sociológico, a dualidade educação e escolarização e a


relação educação e aspectos da vida social.
No 2º bimestre, apresenta-se “Educação – um tema sociológico atual”, em que
pontuam-se diferentes discursos presentes na sociedade a respeito da educação, visando
a analisar as diferentes concepções de educação presentes no mundo contemporâneo e
descrever como os meios de comunicação interferem na construção de uma modelo de
educação.
“Educação, cidadania e poder” é o tema apresentado no 3º bimestre, em que são
discutidas e educação e as instituições escolares como promotoras da construção e
exercício da cidadania, as diferentes concepções políticas acerca do Estado e as relações
de poder que interferem na educação de indivíduos.
Finaliza-se com o eixo “Escola: um lugar de relações sociais” no 4º bimestre,
abordando aspectos políticos, econômicos e culturais presentes na sociedade e seu
impacto no cotidiano escolar, relações sociais presentes na escola e sua relação com a
reprodução de dominação de classes e a relação escola e outras instituições
socializadoras, sobretudo a relação família e escola.
Para Goodson (1995), é relevante estudar mudanças e continuidades na
construção social do currículo escolar. Foram notadas mudanças em relação à versão
anterior: o texto referente à Sociologia da Educação constava de 11 laudas,
apresentando-se da seguinte forma: conhecimentos necessários ao estudo da disciplina,
objetivos a serem alcançados, abordagens e interfaces possíveis, indicação com
articulação com outras disciplinas do currículo e referências bibliográficas, além de
sugestões de leituras como forma de enriquecimento do professor frente ao
planejamento das aulas.
Sendo a instituição escolar um âmbito propício para a construção de saberes, e
seus atores os protagonistas, Nóvoa (2009) pondera a relevância do debate sobre a
relação entre a construção de conhecimento e as práticas pedagógicas. O planejamento
pode contribuir para o processo articulador: “O planejamento é um processo de
racionalização, organização e coordenação da ação docente, articulando a atividade
escolar e a problemática do contexto social” (LIBÂNEO, 1994, p. 222).

Abordagens de gênero e sexualidade no Currículo Mínimo


Foi realizada a análise de conteúdo, procurando identificar e quantificar o
número de vezes em que foram localizadas palavras e expressões relacionadas a gênero

sumário 586
VII Seminário Vozes da Educação

e sexualidade. As palavras masculino, feminino, sexo, sexual, sexuais, sexuado,


sexualidade e gênero foram localizadas nos Cadernos de Orientação das Disciplinas
Pedagógicas e na Base Comum - Ciências Humanas, Ciências da Natureza, Matemática,
Linguagens e Códigos (Tabela 1).

Tabela 1 – Distribuição dos termos masculino, feminino, gênero, sexo e sexualidade e


afins nos componentes do Currículo Mínimo do Rio de Janeiro- Curso Normal

Componentes Número de palavras ou expressões No.


Curriculares (por componente) Total
Mascu Femin Sexual Sexo/ (A) Gêne
lino ino idade Sexual Sexuad ro
Sexuais o
Biologia 2 2 2 3 3 0 12
Sociologia 0 0 0 0 0 0 0
Educação Física 0 0 0 0 0 1 1

Sociologia da 0 0 0 0 0 0 0
Educação
História e Filosofia da 0 0 0 0 0 0 0
Educação
Artes 0 0 1 0 0 1 2
Geografia 0 0 0 0 0 1 1
Psicologia da 0 0 1 1 0 0 2
Educação
No. Total 2 2 4 4 3 3 18

Fonte: Elaborado pelos autores, 2019.

Cinco disciplinas do ensino normal abordam questões referentes a gênero e


sexualidade. Foram localizadas 12 palavras referindo-se a masculino, feminino,
sexualidade, sexo, sexual, sexuado e termos afins na disciplina Biologia. Apenas na
Biologia foram localizados dois termos associados a masculino e feminino. Esse
resultado aponta o destaque dado a essa disciplina na abordagem de aspectos
relacionados a masculino, feminino, sexo e sexualidade no currículo escolar no ensino

sumário 587
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

normal. A palavra gênero foi localizada nas disciplinas Educação Física, Artes e
Geografia e se mostrou dissociada de abordagens de sexo e sexualidade.
. Esse resultado aponta a relevância do diálogo sobre essas questões e da
ampliação da discussão do tema em âmbito local, regional e global, entendendo que tais
considerações têm impacto imediato e direto em construções e desconstruções que
envolvem a escola. Refletir sobre a amplitude de abordagens de gênero e sexualidade
em disciplinas do curso normal nos auxilia a problematizar funções atribuídas aos
docentes da formação profissional como responsáveis pela construção de reflexões
importantes com os alunos para as suas vidas profissionais.
Alguns documentos curriculares se referem à orientação sexual, diversidade e
diferença de modo genérico, dificultando a organização de subsídios para o professor
explorar tais temáticas em sala de aula. A atual Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) apenas cita as palavras, sem oferecer suporte ao docente. Nesse sentido, se
distancia da Resolução CNE/CP Nº 2,que no artigo 22 estabelece que: “O CNE
elaborará normas específicas sobre computação, orientação sexual e identidade de
gênero” (BRASIL, 2017, p.12).
Com base na análise empreendida, pode-se constatar a ausência de
direcionamentos que sustentem a inserção de abordagens de gênero, sexualidade ou
masculinidade, no sentido de possibilitar um repensar sobre a prática, de forma que a
ação se transforme em conteúdo de ressignificação, com a conscientização sobre o
próprio fazer. Como aponta Pimenta (1998, p.158):

O alargamento da consciência se dá pela reflexão que o professor realiza na


ação. Em suas atividades cotidianas, o professor toma decisões diante das
situações concretas com as quais depara, com base nas quais constrói saberes
na ação [...] Mas a sua reflexão na ação precisa ultrapassar a situação
imediata. Para isso, é necessário mobilizar a reflexão sobre a reflexão na
ação. Ou seja, uma reflexão que se eleve da situação imediata, possibilitando
uma elaboração teórica de seus saberes.

Nesse caminho o docente pode se direcionar para a construção de sua autonomia


na profissão, enriquecendo-se de saberes e métodos e aprendendo com a resolução de
problemas, com o desenvolvimento de saberes e fazeres necessários para a formação
continuada no século XXI, e ressaltando novos olhares sobre a atuação e o
estabelecimento de rede de conexões de saberes, contribuindo para uma melhoria
compartilhada e participativa.

sumário 588
VII Seminário Vozes da Educação

Possibilidades de conexões entre as disciplinas e questões de gênero e sexualidade


A leitura e análise do Currículo Mínimo possibilitou compreender que aspectos
relacionados a questões de gênero e sexualidade são pouco destacados e não estão
relacionados, de modo direto, com o trabalho docente. Em uma leitura reflexiva, a
versão analisada do Currículo Mínimo (2013) contingencia a amplitude da reflexão
docente sobre a organização, coerência e qualidade no desenvolvimento de suas
atividades profissionais.
Não são apresentados nesse documento curricular recursos didáticos que
poderiam ampliar metodologias e estratégias de ensino na formação inicial. Tais
indagações são relevantes para a articulação de um currículo formal, dando vez e voz
aos protagonistas na elaboração, adaptação e avaliação de um conjunto de saberes e
fazeres circunstanciados pelo cotidiano escolar.
Algumas inquietações surgem diante da atuação docente e de como o professor
avalia o progresso do trabalho desenvolvido junto ao Currículo Mínimo a partir de suas
práticas. Redimensionar o currículo torna-se importante se reconhecermos o potencial
do que se propõe para um aluno e para o seu percurso diante de uma etapa ou período
de aprendizado escolar. Sacristán (2000) afirma que:

O currículo é uma práxis antes que um objeto estático emanado de um


modelo coerente de pensar a educação ou as aprendizagens necessárias das
crianças e dos jovens, que tampouco se esgota na parte explicita do projeto
de socialização cultural nas escolas. O currículo é uma prática na qual se
estabelece diálogo, por assim dizer, entre agentes sociais, elementos técnicos,
alunos que reagem frente a ele, professores que o modelam (SACRISTÁN,
2000, p.15-16).

Considera-se que os docentes possam necessitar de outros documentos para


orientação curricular além do caderno pedagógico, na procura de caminhos que
corroborem para a amplitude de saberes e fazeres docentes e que influenciem o trabalho
docente a ser desenvolvido.
Para Roldão (2007), a principal premissa da docência se constitui do agir, do
favorecimento de constituição de aprendizagens. Pressupõe, ainda, que os saberes
relacionados à docência divergem da profissão docente, e acrescenta que:

A formalização do conhecimento profissional ligado ao ato de ensinar


implica a consideração de uma constelação de saberes de vários tipos,
passíveis de diversas formalizações teóricas – científicas, científico didáticas,
pedagógicas (o que ensinar, como ensinar, a quem e de acordo com que
finalidades, condições e recursos), que contudo, se jogam num único saber

sumário 589
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

integrador, situado e contextual – como ensinar aqui e agora –, que se


configura como ‘prático’ (ROLDÃO, 2007, p. 98).

Há de se considerar também os objetivos a serem alcançados e o papel da escola


na docência, pois, ao limitarmos a um pequeno grupo de pesquisadores e professores a
participação e construção de um currículo ou de uma orientação, não se abre a
possibilidade de ampliar relevantes construções acerca do alcance das habilidades e
competências a serem construídas, para além das apresentadas e outras que possam
surgir na articulação entre teoria e prática.

Referências

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BRASIL. Conselho Nacional da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para o


Ensino Médio. Resolução CNE/CEB nº 02/2012 aprovada em 30 de janeiro de 2012,
Brasília-DF: Diário Oficial da União, 2012.

______. Orientações Curriculares do Ensino Médio. Brasília: MEC/SEB, 2006.

______. Resolução CNE/CP nº 2, de 22 de dezembro de 2017. Institui e orienta a


implantação da Base Nacional Comum Curricular, a ser respeitada obrigatoriamente ao
longo das etapas e respectivas modalidades no âmbito da Educação Básica.

CELLARD, A. 2008. A análise documental. In: J. Poupart, et al. (Orgs.). A pesquisa


qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes.

______. 2012. A análise documental. In: Nasser, A.C.A. A pesquisa qualitativa:


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GIROUX, H. A. Praticando estudos culturais nas faculdades de educação. In: SILVA,


Tomaz T. da (Org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais
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LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. 1986. A pesquisa em educação: abordagens qualitativas.


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sumário 590
VII Seminário Vozes da Educação

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Leopoldo, ano. I, n.I, jul.7.

sumário 591
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

CAMINHOS ESTÉTICOS PERCORRIDOS POR PROFESSORES EM


FORMAÇÃO: REMEMORAR, REFLETIR E TRANSFORMAR-SE

Monique de França Peixoto da Silva


UFF
mfpeixotos@gmail.com

Introdução: o contexto de uma pesquisa


Este artigo é fruto do trabalho realizado durante meu percurso como bolsista de
Iniciação Científica, na Universidade Federal Fluminense - UFF, inserida no projeto de
pesquisa intitulado “Espaços de formação docente: memórias e narrativas estéticas”.
Este projeto de pesquisa teve por objetivo reconhecer, nos percursos biográficos de
estudantes de Pedagogia, caminhos e marcas de sua formação estética. Recorrendo à
produção de memoriais de formação, compreendidos como registros das histórias de
vida, fertilizados pela ação do rememorar (PASSEGGI, 2008), buscou identificar e
analisar tempos e espaços de formação das sensibilidades dos futuros professores. A
direção teórico-metodológica assumida conduziu à problematização da contribuição da
formação escolar e universitária para os processos formativos estéticos e para os
repertórios artístico-culturais dos licenciandos-sujeitos da pesquisa. A pesquisa de
iniciação científica aqui referida, integra uma pesquisa maior, de caráter
interinstitucional, que vem sendo desenvolvida colaborativamente entre professoras da
Faculdade de Educação da UFF e da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de
Minas Gerais - UFMG (OSTETTO; BERNARDES, 2016).
A investigação parte do princípio que professores são mediadores culturais e
podem contribuir decisivamente para os processos de refinamento da sensibilidade
estética, de potencialização das linguagens expressivas e de ampliação dos repertórios
artístico-culturais das crianças na escola. Sendo assim, os objetivos que guiaram a
pesquisa são: a) Analisar proximidades e discrepâncias nos caminhos de formação
estética trilhados por estudantes de Arte e de Pedagogia, apontados em seus memoriais
de formação; b) Problematizar a contribuição da formação escolar e universitária nos
percursos biográficos dos licenciandos-sujeitos da pesquisa; c) Identificar, nos registros

sumário 592
VII Seminário Vozes da Educação

das histórias de vida fertilizados pela ação do rememorar, tempos e espaços de


formação estética, recorrentes e mais significativos; d) Discutir possibilidades
investigativo-formativas do “ateliê biográfico de projeto” (DELORY-MOMBERGER,
2006).
O projeto de investigação desenvolveu-se por meio de encontros-ateliês
realizados com estudantes do Curso de Pedagogia da UFF e do Curso de Artes da
UFMG. Contudo, o presente trabalho tratará dos dados produzidos a partir de atividades
desenvolvidas com os estudantes de Pedagogia da UFF, as quais foram acompanhadas
pela bolsista. Participaram da pesquisa 29 estudantes de Pedagogia da UFF, os quais
concordaram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, respondendo
dessa forma às exigências éticas.

Percurso metodológico
Compreende-se a dimensão estética como aquilo que conecta (VECCHI, 2013),
que atravessa nossa existência, que vai possibilitando a apropriação, o desenvolvimento
e o refinamento da sensibilidade ao longo da vida, pelas vias da cognição e do afeto,
sempre no encontro com o outro. “Seja em palavras, seja em imagens, a estética do
cotidiano, da vida diária, dialoga com as diferentes maneiras de ser e de estar no mundo,
com as individualidades, as diferenças, os gostos, as percepções e os interesses.”
(OSTETTO; BERNARDES, 2019, p. 175) e, nesse campo de compreensão, a pesquisa
procurou histórias de formação estéticas, contadas em narrativas de formação.
Para chegar às narrativas dos professores em formação, no caso os estudantes de
Pedagogia, a pesquisa inspirou-se teórico-metodologicamente na dinâmica constitutiva
do “ateliê biográfico de projeto”, compreendido como um procedimento que:

inscreve a história de vida em uma dinâmica prospectiva que liga o passado,


o presente e o futuro do sujeito e visa fazer emergir o seu projeto pessoal,
considerando a dimensão do relato como construção da experiência do
sujeito e da história de vida como espaço de mudança aberto ao projeto de si
(DELORY-MOMBERGER, 2006, p.359).

A proposta formulada pela referida autora contribui para a constituição de um


percurso metodológico que ilumina as dimensões experienciais e formativas inerentes
aos percursos de vida-formação, pois abre espaço para narrativas que se articulam entre
memórias, lembranças, esquecimento e experiência. Os discursos da memória, que
revelam aspectos formativos constitutivos de subjetividades e identidades docentes,

sumário 593
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

transformam-se em importantes chaves para a reflexão e redimensionamento da prática


docente: as narrativas de percursos pessoais, que contam histórias do vivido, são
acessadas por meio do pensar sobre si, e podem conduzir à tomada de consciência de si.
Na apresentação de si mesmo por meio do relato, o indivíduo se faz intérprete dele
mesmo:

[...] ele explicita as etapas e os campos temáticos de sua própria construção


biográfica. Ele também é intérprete do mundo histórico e social que é o dele:
ele constrói figuras, representações, valores [...], considerando que é no relato
que ele faz suas experiências de que o sujeito produz categorizações que lhe
permitem apropriar-se do mundo social e nele definir seu lugar (DELORY-
MOMBERGER, 2006, p.369).

É importante parar para pensar nas experiências vividas, pois esse ato de
rememorar e refletir o percurso pessoal contribui para identificar saberes e fazeres que
constituem a pessoa e, assim, ajuda a dar visibilidade aos tantos e particulares fios de
histórias que se entrelaçam em trajetórias profissionais/formativas. Por meio do
exercício da memória, o passado é revisitado e no encontro com suas marcas oferece
elementos para a compreensão do percurso que se mostra no presente e, desta forma,
direciona-se para novos projetos de futuro.
Como fundamentos teórico-metodológicos da pesquisa, também foram
incorporados princípios de uma “pedagogia da autonomia” (FREIRE, 2004), que
assinala a dialogicidade como elemento fundante de relações pedagógicas que
sustentam o trabalho formativo-educativo na escuta atenta, no acolhimento às diferenças
e na participação. Aspectos teórico-práticos dos ateliês de arte igualmente apoiaram a
dinâmica dos encontros-ateliês, então projetados como espaço de produção de dados
biográficos. (OSTETTO; BERNARDES, 2019).
Dentro da proposta metodológica adotada, os dados foram produzidos em quatro
etapas, chamadas de movimentos: 1) Movimento inicial: ativação das memórias,
pergunta-provocação-formulação oral: “o que você poderia dizer sobre seu encontro
com a arte”?; 2) Segundo movimento: Vivências corporais e produção de atividades
plástico-pictóricas, pressupondo a imersão nas histórias vividas – por onde se deu a
formação do olhar, do sensível, do estético?; 3) Terceiro movimento: Exercício-esboço
de escrita de si, projeto de memorial de formação, conduzido pela questão – “Que
experiências estéticas me constituíram?”; 4) Movimento síntese: A narrativa de si, o

sumário 594
VII Seminário Vozes da Educação

memorial de formação estética, materializado no “Diário poético das miudezas”.


(OSTETTO; BERNARDES, 2019).
O trabalho como bolsista de iniciação científica envolveu a participação nos
encontros-ateliês, organização e tabulação dos dados e delineamento da análise de um
específico material coletado: o memorial de formação estética, produzido pelos
estudantes participantes, cujas narrativas, posteriormente, deram forma ao “Diário
poético das miudezas”.
Foram estabelecidos eixos analíticos para tal tabulação, formulados ao modo de
questionamentos, abrindo-se ao diálogo com as narrativas produzidas: Os estudantes
relatam experiências que envolvam dança, música, teatro, museus, literatura, natureza,
outras? Os estudantes relatam experiências de arte/com arte que envolvam sua família
ou a escola? Em caso afirmativo, quais? Orientada por essas questões-chaves de leitura,
um quadro-síntese foi produzido. Além desta tabulação, um segundo quadro foi criado,
agora focando nas narrativas dos estudantes sobre o contato ou falta de contato com a
arte e sobre experiências culturais no decorrer de sua trajetória de formação, dentro e
fora da escola.
Na etapa que se seguiu, juntamente com a orientadora/coordenadora do projeto,
foram feitas análises quanti-qualitativas das informações previamente tabuladas. Para
tanto, procedeu-se à redução dos dados, reorganizando-os em categorias que
permitissem analisar quais experiências mais se destacavam nos percursos dos
estudantes. Observou-se: Quantos tiveram experiências com dança, teatro, música,
museus, natureza, literatura ou outras, relacionadas à formação das sensibilidades?
Quais foram essas experiências? Onde e quando estas experiências aconteceram? Quais
gêneros de dança, música, leituras aparecem em suas narrativas? Destes quadros
surgiram dados quantitativos que foram assim sistematizados em novos quadros para
análise. Através deles foi possível perceber com maior minúcia como, onde, quando
ocorreram atividades importantes que formaram esteticamente estes estudantes no
decorrer de suas histórias de vida.

Nas narrativas, histórias e projetos se mostram


Os dados da pesquisa apontam que os encontros-ateliês e suas propostas, que
envolviam o contato com materiais expressivos, abriram espaço para que fossem
puxados fios de memórias, permitiram aos sujeitos (no caso, estudantes de Pedagogia) o
exercício de reflexão sobre as dimensões estéticas, artísticas e brincantes que compõem

sumário 595
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

suas histórias de vida. As narrativas autobiográficas de formação estética surgem como


uma forma dos estudantes não só contarem um pouco da sua história, como refletirem
sobre ela, trazendo à consciência processos e experiências marcados nessa história para,
então, ressignificá-los. Por meio da escrita narrativa reflexiva, tiveram a oportunidade
de identificar momentos que se fizeram essenciais para a construção do seu eu sensível,
através de linguagens tão inerentes à infância e do quão imprescindível se torna
potencializar tais linguagens na prática educacional.
O brincar, o contato com a natureza, as relações familiares, as músicas, os sons,
as viagens, aparecem de forma viva e saudosa, trazendo à tona a compreensão de como
estes momentos moldaram quem são hoje, como pessoa, mas também como futuro
profissional da educação. Assim, a cada fio puxado das belezas, dores e delícias de suas
infâncias, de forma muitas vezes poéticas, os estudantes foram ao encontro de outros
espaços que estão guardados dentro de si: revisitaram e aguçaram as crianças que ainda
existem dentro de si mesmos, mas que facilmente são esquecidas.

[...] as vezes me pego a pensar se não é tudo envolto pela dimensão estética
quando somos crianças: acordar de manhã cedo no sítio do vovô, sentar ao
lado dele e ver o sol nascer dentre aquele verde molhado do sereno da noite
me inspirou a desenhar paisagens, muitas delas. As Onze Horas que tinham
perto da casa do sítio me ensinavam a cuidar e entender a delicadeza das
coisas, a fragilidade da vida. O cheiro do feijão da bisa me provocava
(provoca até hoje, com o feijão da vovó) uma sensação de pertencimento.
Tudo fazia parte do meu dia a dia, era normal e vivo (Memorial de formação
estética, estudante Raquel).

Quanto mais tempo vamos pensando nas nossas memórias, mais coisas
incríveis vamos relembrando. Não me recordava de como eu era feliz
naquele lugar pacato, onde nossa maior felicidade era aproveitar o dia,
montando a piscina, limpando, pegando sol, inflando as bóias, correndo,
chamando os amigos para aproveitar com a gente (Memorial de formação
estética, estudante Gabriela).

Meu pai era um verdadeiro profissional em contar histórias, ele sempre nos
contava uma antes de dormir, sempre representando os personagens,
imitando suas vozes e barulhos. Me lembro de brincarmos de João e Maria,
onde eu era a Maria, minha irmã era o João e meu pai era a bruxa. É
impossível esquecer a famosa risada da bruxa que ele sempre fazia e tirava da
gente muitas gargalhadas. Acho que ele é minha maior inspiração quando
hoje, conto histórias para as crianças (Memorial de formação estética,
estudante Julia).

O processo de rememorar acontecimentos conduziu os participantes aos


passados tempos da infância e, de lá, trouxe à superfície do papel a constatação do
abandono das dimensões lúdicas e criativas, inerente à própria natureza humana. Como
elas se perderam, quando, onde, por quê? As resposta a estas perguntas, debatidas

sumário 596
VII Seminário Vozes da Educação

durante os encontros-ateliês, surgiram a partir da memória dos próprios estudantes,


durante o percurso de escrita de si e não foram poucos os que falavam sobre como estas
dimensões foram desaparecendo, sobretudo, por conta da sua inserção na vida escolar.
Por exemplo:

Quando na escola, minhas lembranças mais fortes são de ter sido


padronizada: escreva nessa linha, pinte esse círculo, canetinhas apenas para
contorno das formas... Pouco a pouco me vi enquadrada em um jeito
específico de fazer as coisas. Quanto mais me afastava das coisas da terra,
mais moldada pela escola eu era. (Memorial de formação estética, estudante
Raquel).
[...] com a entrada no ensino fundamental as experiências e experimentações
com a arte foram se distanciando. Pois naquele momento já haviam outras
“prioridades” em sala de aula, fazendo com que a arte fosse designada apenas
para um tempo de um dia na semana. [...] a arte que era frequente e relaxante,
tornou-se uma arte curta e às vezes entediante (Memorial de Formação
estética, estudante Beatriz Maria).

Além disso, foi possível perceber o quanto as atividades na escola, que deveriam
ser artísticas, estiveram voltadas não para a experimentação, expressão ou fruição, mas
para apresentações para os pais, em especial, nas datas comemorativas.

[...] recordo-me que todas as atividades propostas eram controladas,


direcionadas, guiadas. Tinham um motivo por trás, era para servir para
alguma coisa: mostrar para os pais. Além disso, apresentavam relação direta
com datas comemorativas o que demonstra claramente que o planejamento
nas duas instituições pré-escolares que passei era baseado em datas
comemorativas (Memorial de formação estética, estudante Vitor).

Apesar disso, na análise das narrativas, observou-se a importante contribuição da


escola para a ampliação do repertório artístico-cultural; a escola aparece nos memoriais
como um espaço que proporcionou, para muitos estudantes, a primeira ida a espaços
culturais, como museus, teatros, bibliotecas. Figuras de professores inspiradores que
ampliavam esse gosto, contato, interesse pela arte e centros culturais, também aparecem
nas narrativas. Outro dado bastante claro: como as experiências estéticas têm grande
importância em outras instituições além da escolar, e como a presença (ou ausência)
desses fazeres artísticos marca diferentes tipos de relação com a família, com amigos,
vizinhos e instituições religiosas.
Notou-se também que, ao longo da pesquisa e nos memoriais produzidos, os
estudantes participantes reafirmam a importância de refletir sobre sua história, de
lembrar de suas experiências significadas ao longo da vida, para que possam ser
professores que olhem, acolham e potencializem as linguagens expressivas das crianças

sumário 597
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

com as quais vão trabalhar; compreendem e reforçam que, para cuidar da formação
estético-artística, da sensibilidade de seus alunos, é preciso cuidar da sua própria
formação artístico-cultural. Afirmam, na escrita narrativo-reflexiva, que a ludicidade, o
fazer a mão, o (re)despertar do seu eu-artístico, marcado pelo brincar e pela criação, não
deveriam permanecer esquecidas, nas desbotadas lembranças da infância, mas que
deveriam ser vivenciadas por eles, nos cursos de formação, para que futuramente
pudessem ser professores inteiros, que libertam e ampliam as experiências estéticas de
suas crianças. Esta perspectiva pode ser exemplificada na escrita de vários estudantes:

[nesse processo, aprendi ] quanto é fundamental possibilitar aos nossos


futuros alunos o contato com a arte. Sem amarras, desenhos prontos,
reprodução mecânica que educa o aluno somente para o mercado de trabalho,
restringindo-os de pensar e agir com liberdade, criatividade e
responsabilidade (Memorial de Formação estética, estudante Mariana).

[...] o professor precisa estar sensível com o mundo a sua volta. Sua paixão
por educação precisa estar atrelada em conhecer novos lugares, a perceber o
lugar atual, um processo de desaceleração. Nesse mundo com pressa, o
professor precisa desenvolver a sensibilidade para que assim seja capaz de
auxiliar seus alunos a construírem sua sensibilidade ao mundo (Memorial de
Formação estética, estudante Patrícia).

Outro destaque é para a Universidade: ao mesmo tempo em que foi destacada


como uma instituição que incentivou seus estudantes a visitarem espaços culturais, ela
também apareceu nas narrativas como um espaço que silencia o sujeito na sua dimensão
estética, por meio dos padrões acadêmicos rígidos, que não deixa muito espaço para
experimentar, errar, ser autor. As disciplinas que propiciaram o contato com a arte e o
desenvolvimento da dimensão estética foram exceções.
As narrativas autobiográficas de formação estética foram um meio dos
estudantes de Pedagogia poderem relatar e refletir sobre: quando, como, onde e porque
formou-se a sua sensibilidade estética, ou, em outro sentido, quando, como, onde e
porque ocorreu o processo de engessamento de seus corpos. Além disso, a reflexão
através da escrita de si, assim como as discussões, as leituras e os fazeres no decorrer
dos encontros-ateliês, fez com que os estudantes percebessem a importância de o
professor cuidar primeiro do seu próprio despertar (ou seria redespertar?) estético, antes
de partir para esta busca nas crianças.
Na Resolução Nº 5 do Conselho Nacional de Educação, que fala sobre princípios
e diretrizes para Educação Infantil (campo de maior interesse dessa pesquisa),
encontramos como um dos princípios o estético, que diz respeito à sensibilidade, à

sumário 598
VII Seminário Vozes da Educação

criatividade, à ludicidade e à “liberdade de expressão nas diferentes manifestações


artísticas e culturais” (BRASIL, 2009). Ou seja, a sensibilidade é um dos princípios para
a formação do sujeito-criança, sendo a experiência com a cultura, a arte e suas
manifestações, um canal importante para a garantia desse princípio. Mas, onde está a
sensibilidade estética do professor? Qual sua bagagem, seu repertório artístico-cultural?
É nesse contexto que concluímos: para que o professor possa trabalhar de forma
sensibilizadora precisa, primeiro, estar ele próprio sensibilizado e preocupado em fazer,
encontrar e experienciar arte em diferentes formas, dimensões, locais.
A dimensão acadêmica e teórica na Pedagogia é de extrema importância, mas
não pode nem deve estar presente ao ponto de impedir que os futuros professores
tenham contato com sua criatividade, com sua expressão. Não foi raro aparecerem
textos de narrativas estéticas com uma escrita bastante rígida, pouco fluída e criativa,
com as formatações acadêmicas que impediam o sujeito de se mostrar. Escritas que
contavam histórias pouco detalhadas, e até tímidas, sem identidade e vibração,
mostrando, de certa forma, o peso que este processo escolar-acadêmico traz, até mesmo
na hora de escrever sobre as próprias lembranças. Os estudantes relataram essa
dificuldade de criar, de imaginar, de inventar, contaram como a experiência de fazer
com o corpo todo (na experiência dos encontros-ateliês biográficos) vinha sendo
importante para ampliar sua formação estética; afirmavam que, para quebrar certos
padrões, ainda havia um longo caminho a percorrer.
Contudo, sendo este um curso que forma professores, que por sua vez, poderá
contribuir para ampliar (ou diminuir) processos estéticos das crianças na escola é uma
contradição que haja uma preocupação tão diminuta no currículo, no que tange a
formação estética dos estudantes de Pedagogia. Afinal, como irão propor a fruição de
músicas e renovadas formas de ler o mundo, como oferecer oportunidades de brincar,
dançar, imaginar e criar, se no professor essas experiências estiverem adormecidas e
silenciadas? Se não desenha, ou se tem vergonha de seu desenho, classificando-o como
feio, provavelmente irá classificar também os desenhos das crianças, terá dificuldade
em compreender que as produções artísticas infantis são formas de expressão. Como
trabalhar com o que não possui ou não cultiva? Especialmente, se não tiver
oportunidade de descobrir e compreender a importância da dimensão sensível, artístico
e cultural para si e para a educação, no percurso da formação universitária. Segundo os
estudantes participantes da pesquisa, as poucas experiências oferecidas nas propostas

sumário 599
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

curriculares do curso de Pedagogia, que tratam do assunto, estão em espaços de


disciplinas optativas, nem sempre acessíveis, por conta de horários, sobretudo.

Palavras finais de um ciclo e abertura para outras reflexões


Participando da presente pesquisa, organizando os dados e analisando seus
conteúdos, foi possível entender como o processo escolar, em todos os níveis, tem
adormecido corpos, brincadeiras, sensibilidades, criatividade e expressão dos
estudantes, mas também como é fundamental abrir espaços para refletir sobre isso e
projetar alternativas, no percurso de formação docente. Além disso, ficou evidente os
limites do curso de formação de professores, que em seu currículo ainda está bastante
aquém na preocupação de propor espaços de experiências estéticas: há poucas
oportunidades para fruir arte, para fazer, experimentar, vivenciar de corpo inteiro, com
todas as linguagens, não apenas a científica. As narrativas indicam, por outro lado, o
papel fundamental que a universidade pode desempenhar como espaço de cultura e
como ponte com a cultura e a arte, trabalhando no sentido de reintegração, e
potencialização, das linguagens expressivas do futuro professor.
A escrita de si, surgiu como uma forma de dar espaço às vozes e de acolher as
vozes na história de cada estudante e, a partir delas, possibilitar a reflexão sobre o que é
ser professor, quais dimensões humanas o integram e quais precisam ser resgatadas de
volta. A partir de um processo criativo e expressivo livre, o conhecimento de si mesmo
foi ampliado e ainda trouxe reflexões sobre o seu futuro. Como afirmam as
pesquisadoras-coordenadoras do projeto aqui apresentado:

A história de vida narrada é, assim, uma mediação de conhecimento de si em


sua existencialidade que oferece à reflexão de seu autor oportunidades de
tomada de consciência sobre seus diferentes registros de expressão e de
representações de si, assim como sobre as dinâmicas que orientaram a sua
formação (OSTETTO; BERNARDES, 2019, p. 14).

Ainda que para alguns a experiência de revisitar suas memórias e selecioná-las a


fim de colocar no papel e refletir sobre elas, à priore tenha sido desafiadora, os
estudantes conseguiram perceber a sua relevância para o processo de formação de
educadores, como no exemplo:

Acredito que todo o educador deve ter essa sede de compreender a si, aquilo
que o move, que o transforma, para seu autoconhecimento, para sua própria

sumário 600
VII Seminário Vozes da Educação

ampliação e para diferenciar as experiências das crianças. (Memorial de


Formação Estética, estudante Sara).

Todos os movimentos propostos e suscitados pela pesquisa, já citados


anteriormente, baseados no fazer com o corpo todo, mostram o quão importante é que
todo a dimensão do ser esteja presente no fazer educacional e como contribuem para o
processo de escrita de si, assim como para a reflexão sobre a própria história docente.
Os espaços para poesia, desenho, canto, brincadeira, experimentações, criações, devem
se manter vivos no dia a dia do professor (ou futuro professor), para que ele se aproprie
de referenciais e instrumentais simbólicos que contribuam para que se livre das amarras
do medo e do corpo adormecido; para que possa libertar, impulsionar, ampliar, mediar
esteticamente toda a sua dimensão criativa e, assim, seguir contribuindo para que estas
dimensões não se percam durante o processo escolar das crianças.

Referências
BRASIL. Resolução Nº 5, de 17 de dezembro de 2009. Fixa as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Poder Executivo, Brasília, DF, 18 dez. 2009. Seção 1, n. 242, p. 18-19. Disponível em:
http://www.seduc.ro.gov.br/portal/legislacao/RESCNE005_2009.pdf. Acesso em: 5
out. 2019.

DELORY-MOMBERGER, C. Formação e socialização: os ateliês biográficos de


projeto. Educação e Pesquisa. São Paulo: v32, n2, ago, 2006.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 30. ed.


São Paulo: Paz e Terra, 2004.

OSTETTO, L. E.; BERNARDES, R. K. Espaços de formação docente: memórias e


narrativas estéticas. Projeto de pesquisa. Universidade Federal Fluminense/
Universidade Federal de Minas Gerais, 2016. (Digitado).

OSTETTO, L. E; BERNARDES, R. K. Infâncias em diários de formação estética:


narrativas de estudantes de pedagogia e de arte. Revista @mbienteeducação. São
Paulo: Universidade Cidade de São Paulo, v. 12, n. 2, p. 164-180 mai/ago 2019.

PASSEGGI, M. C. Memoriais auto-bio-gráficos: a arte profissional de tecer uma figura


pública de si. In: PASSEGGI, M. C.; BARBOSA, T. M. N. (Orgs.). Memórias,
memoriais: pesquisa e formação docente. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus,
2008. p. 27-42.

VECCHI, Vea. Arte e criatividade em Reggio Emilia: explorando o papel e a


potencialidade do ateliê na educação da primeira infância. São Paulo: Phorte, 2017.

sumário 601
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

LEITURA, LITERATURA E NARRATIVAS: UMA EXPERIÊNCIA DE


FORMAÇÃO

Jacqueline Martins da Silva


UFF/GEPPROFI/SEMECT/FME Niterói
jacqueflower@hotmail.com

Não existe a primeira nem a última palavra, e não há


limites para o contexto dialógico (este se estende ao
passado sem limites e ao futuro sem limites)(Bakhtin).

O presente trabalho fundamenta-se na perspectiva de pesquisa narrativa


(auto)biográfica na qual tem nos ajudado, com sua diversidade teórico-metodológica, a
refletir sobre os processos de significação dos sujeitos, bem como sobre suas trajetórias
de vida e formação. Por esse viés, temos a possibilidade de dialogar sobre as diversas
temáticas que versam sobre o campo da educação e da formação docente pelo fio das
memórias e narrativas, visto que estas são compreendidas como lócus de produção de
conhecimento. Desse modo, a leitura que os sujeitos fazem de seus percursos de vida e
formação são fontes inesgotáveis de sentidos e, portanto, possibilidade profícua para
uma concepção outra de epistemologia e hermenêutica.
Os princípios que nos unem no caminho do aporte (auto)biográfico apontam
para a centralidade dos sujeitos com suas histórias e narrativas, circularidade entre
palavra e escuta e para o atravessamento dialógico entre saberes experienciais e
referenciais teórico-metodológicos, a fim de reinventar “modos de
vivernarrarpesquisarformar” (BRAGANÇA, 2018, p. 67). Nesse sentido, retomo a
epígrafe acima, pois nos ajuda a refletir sobre os múltiplos modos de expressão das
palavras que prenhes de sentido não se prendem a uma única significação, mas
expressam transbordamentos, nos constituem e são constituídas por nós. Dirijo o meu
olhar para essa tessitura dialógica que corrobora para movimentos de (trans)formação,
partilha e de constituição identitária.
A costura desse texto é resultado da relação dialógica com/entre uma
experiência de formação como professora-pesquisadora da rede pública municipal de
Niterói, narrativas docentes e autores que nos ajudam a pensar a respeito das temáticas

sumário 602
VII Seminário Vozes da Educação

aqui abordadas. Compõe esta escrita, então, relatos de professores sobre a relação com
a leitura, sobretudo, com a leitura literária no período em que eram alunos. São
memórias compartilhadas em um encontro formativo e que cheias de significâncias e
com força (auto)formativa podem ajudar a (re)pensar a leitura literária na escola, as
práticas de leitura da/na escola e a formação do leitor-autor.
Rememorar a vida, o passado não é sinônimo de descrição fidedigna dos fatos,
mas simboliza representação da realidade. Essa tessitura que representa os
acontecimentos está repleta de significações, logo há inúmeras possibilidades de
reinterpretações. Esses relatos de trajetórias vividas podem promover um movimento de
(auto)formação, de reflexividade, de produção de sua própria posição de sujeito que é,
ao mesmo, singular e social. Memória e narração são fios que se entrelaçam cheios de
complexidades e de modo não linear.
Bragança (2004) assinala que a memória utiliza-se de diversos recursos para
trazer à tona acontecimentos, pessoas, lugares que marcaram a trajetória de vida,
construindo uma história articulada e com sentido, a fim de ser reorganizada pelo
narrador. Nesse sentido, a autora destaca ainda que tanto a memória quanto a narração
são alternativas que se contrapõem as políticas de conhecimento que de maneira
articulada controlam o trabalho do professor e sufocam sua autonomia.
Uma pesquisa outra de investigação e formação que considera a trajetória de
vida dos sujeitos, suas histórias, saberes e narrativas como potência formativa para
construção do conhecimento traz à baila a racionalidade, o incabamento dos sujeitos, a
autoria, relação entre academia e escola, o contexto sócio-histórico singular constituído
socialmente, as marcas dos “grupos primários: Famílias, peer groups de trabalho, de
vizinhança, de classe, da caserna, etc.” (Ferraroti, 2010, p.51). Para o autor, todos esses
grupos corroboram ao mesmo tempo para a dimensão psicológica dos seus participantes
e na dimensão estrutural de um sistema social.
Essa significativa contribuição nos remete aos escritos de Mikhail Bakhtin sobre
a palavra que se constrói no encontro de duas consciências, na/a partir das relações
sociais. Portanto, tomamos consciência de nós mesmos através dos outros, o outro
contribui para a nossa formação à medida que recebemos dele as palavras, as formas,
enfim, tudo o que nos diz respeito e nos chega do mundo exterior.

sumário 603
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo
exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha mãe, etc.), com
a sua entonação, em sua tonalidade valorativo-emocional. A princípio eu
tomo consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras, as
formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim mesmo
(Bakhtin, 2011, p. 373).

O autor nos inspira a refletir sobre a formação de leitores-autores pelo viés da


relação com o outro, com o mundo e com as palavras nos entremeios dos fios e tramas
discursivos, pedagógicos e relacionais que contribuem para a construção da
representação que vamos tendo de nós mesmos e, consequentemente, da consciência
que em nós vai se formando. Outro que na relação comigo ajuda-me a pensar
responsivamente sobre o mundo, a vida e o que estou sendo. Nesse sentido, o indivíduo,
como sujeito histórico, se constitui na/pela linguagem.
A linguagem para Bakhtin tem caráter dialógico e como criação coletiva está em
movimento, sempre inacabada. A palavra “sempre carregada de um conteúdo ou de um
sentido vivencial” (BAKHTIN, 2014, p. 99) encontra-se como arena onde os valores
sociais podem ser explicitados e postos em confronto. A linguagem pode ainda ser
compreendida, a partir do autor, como construção social, expressão viva de experiências
vivas, que resulta da interação humana, nascendo de um diálogo entre o eu e outro.
Nesta via de discussão, aproximamo-nos das duas faces defendidas por Larrosa:
a leitura como formação e a formação como leitura. Larrosa (1996) nos convoca a
pensar que a íntima relação estabelecida entre o texto e a subjetividade resulta na leitura
como formação, gerando experiência. Trata-se de pensar a leitura como “algo que nos
forma (ou nos de-forma e nos trans-forma), como algo que nos constitui ou nos põe em
questão naquilo que somos.” (p.133). Em outras palavras, o papel formativo da leitura
representa construção de sentido, relação de significação entre texto e leitor que o faz
ser capaz de pensar, de se ver para além de si mesmo. É relação subjetiva e profunda
com o texto lido.
Compreender a leitura como processo formativo implica militância, na tentativa
de desnaturalizar práticas que podem ser esvaziadas de sentido e/ou ter o tom de
controle, de cerceamento e de emudecimento de vozes. Pressupõe um sujeito autor de
sua trajetória formativa e das notas dialógicas que constrói sobre sua atuação
profissional, por isso as reflexões aqui tecidas juntamente com as narrativas de
professores podem nos ajudar a (re)pensar a leitura e a literatura como um ato político,
ético e estético, o lugar e as práticas da leitura e da literatura na sala de aula.

sumário 604
VII Seminário Vozes da Educação

Como preconizam Fontoura e Henriques,

Para sermos capazes de enxergar o que a experiência de leitura em um certo


indivíduo, devemos olhar suas memórias, escutar as histórias de cada
vivência, procurando encontrar modificações que a leitura foi capaz de fazer.
Nossa vida é formada por narrativas, que, ao longo de experiências de
formação, podem adquirir novas leituras (2014, p.351).

As histórias que narramos ou que nos são narradas vão ajudando a construir
nossa trajetória de vida e formação. Por isso, narrar os acontecidos, a experiência que
“nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (LARROSA, 2002, p. 21) é reconhecer
que somos todos narradores, protagonistas e participantes nas relações que
estabelecemos com os outros e com o mundo. Contar histórias, registrar memórias são
ações que caminham na contramão do esquecimento, da velocidade desenfreada que
camufla os acontecimentos cotidianos, do excesso de informações que transitam na
fugacidade, do definhamento da arte de narrar denunciado por Walter Benjamin.
Narrar(-se) representa, sobretudo, dar sentido ao que somos e ao que nos
acontece. Em outras palavras, tem a ver com a possibilidade de o sujeito constituir um
processo de conhecimento de si, das relações que estabelece com o seu percurso
formativo e com as experiências e aprendizagens que constituiu ao longo da vida. As
narrativas são possibilidades de produção de sentidos em contextos diversos, pois os
sentidos que lhe são possíveis se constroem na relação e no olhar do outro e com outras
histórias. Reafirmo que as narrativas trazem a possibilidade de compreensão do social e
do político, pois trazem em sua essência o individual e o coletivo, entretecida pelos atos
de memórias, incluindo a dimensão estética constitutiva desse processo e assim, ajudar
a tecer palavras e imagens que falam da constituição de subjetividades.
Neste sentido, as narrativas podem incidir sobre as identidades destes
profissionais como “uma chave para tudo que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1994,
p. 37). Desta forma, compreendidas como produção de saber, elas podem constituir-se
como uma documentação pedagógica, uma vez que permite ao sujeito reconhecer seu
percurso a posteriori, relembrar suas histórias e experiências de leitura, reconhecer e
refletir sobre seus processos formativos, suas trajetórias e pensar sobre suas práticas.
Narrar é ato responsivo e responsável em que narrador e ouvinte, inseridos em um fluxo
narrativo, constituem uma perspectiva histórica que vai de encontro à ideia de um
tempo “homogêneo e vazio” (BENJAMIN, 1994, p. 229).

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Nesse processo interacional e discursivo, reconhecemo-nos como seres


constituintes de linguagem, sujeitos autores de nosso percurso formativo, capazes de
vivermos nossas histórias como um texto, inscrito no social e de nos reaproximarmos de
nossas memórias, compreendendo-as como força potencial para uma leitura constante e
renovada de quem somos, do presente e dos processos de formação existentes. Nessa
direção, sustento a ideia da formação do sujeito leitor-autor pelo viés da produção de
sentido, da possibilidade de perceber-se sujeito do discurso, repensando com imagens e
ideias do passado prenhe de futuro, as experiências com a leitura e a literatura.
Rememorar o passado não implica somente restaurá-lo, “mas também uma
transformação do presente tal que, se o passado perdido aí for encontrado, ele não fique
o mesmo, mas seja ele também, retomado e transformado” (GAGNEBIN, 2013, p.16).
Outro aspecto importante a ressaltar dentro desse contexto de trabalho com as
narrativas é a possibilidade de colocar o professor como sujeito de sua própria história.
Esta perspectiva de análise traz à cena a ideia de que o fazer docente, a prática
pedagógica é construída a partir de inúmeras referências. Portanto, narrar memórias e
experiências pode corroborar para o movimento de atribuir novos sentidos ao que viveu
e fazer a pessoa espiar para dentro de si mesmo. Ao abordar sobre as narrativas e
formação de professores numa perspectiva emancipatória, Maria Isabel da Cunha
(2010) salienta que provocar o professor para que este organize narrativas sobre as
referências que ajudam a compor sua trajetória de vida e formação, “é fazê-lo viver um
processo profundamente pedagógico, onde sua condição existencial é o ponto de partida
para a construção do seu desempenho na vida e na profissão.” (p. 202).
Narrativa e experiência se entrelaçam, tornam-se parte encarnada nos sujeitos, à
medida que são (com)partilhadas. Por isso, na tentativa de mostrar uma experiência,
uma inquietude, como diz Larrosa (1996), trago a experiência de formação que vivencio
como professora e componente da Coordenação de Promoção da leitura da rede
municipal de educação de Niterói – RJ. Uma das nossas propostas de trabalho é a
promoção de encontros formativos com os professores nas unidades de educação. Estes
são momentos profícuos em que podemos ampliar o debate sobre a formação de
leitores-autores, refletir a respeito do texto literário e suas potencialidades e
compartilhar o saber da experiência.
Em um desses encontros, em meio à discussão do entrelace entre leitura e
formação, pedi aos professores para narrarem, de forma escrita, como a relação com a
leitura, sobretudo, com a literária se deu no período em que eram alunos. A proposta foi

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VII Seminário Vozes da Educação

lançada a fim de podermos dialogar e refletir a respeito da temática do encontro pelo


viés das nossas trajetórias de vida e formação. Assim, trago as escritas docentes,
seguidas de pontos de reflexões. Compartilho nas linhas seguintes algumas das muitas
tessituras literárias que nos acontece (LARROSA, 2002) e que podem oportunizar
reinvenções próprias e alheias.

Memórias (literárias): o que narram os professores?

Na escola, na 2ª série, havia rodízio de livros, em que levávamos livros para


casa. Líamos e, na semana seguinte, compartilhávamos com os colegas o que
havíamos lido. Uma história marcante que tenho com um livro é um chamado
Cata-vento, no qual tinha um conto do chuchu. Por conta dessa história,
chamei meu cachorro de chuchu. Foi marcante porque eu me sentia bem em
dizer que o nome do meu animalzinho havia saído de um livro (p.1).

Não lembro o ano de escolaridade, mas me recordo que a professora


costumava contar histórias. Todos sentados em suas carteiras. Anos depois,
costumava ler os livros da coleção Vagalume e adorava. Os livros ficavam
por um tempo com os alunos e depois trocávamos (p. 2).

As narrativas docentes acima trazem pistas que a escola exerce um papel


significativo no processo de formação do sujeito leitor, podendo a leitura e a literatura
ocupar ou não o lugar do pertencimento, da essencialidade e das experiências de leitura.
Lajolo (1997) diz que “a literatura constitui modalidade privilegiada de leitura.” (p.
105). Nesse sentido, a leitura literária na escola precisa ser apropriada pelos
protagonistas, tendo lugar cativo nos planejamentos, projetos de leitura, planos de ação
e etc. Precisa ser compreendida como prática valorativa, com imensurável valor para a
formação humana, ética e estética dos sujeitos. O relato P1 revela propostas de leitura
mais participativas, tendo a possibilidade de rodízio de livros, levar livros para casa e
compartilhar as histórias lidas. Essas ações nos provocam a reafirmar que a leitura
literária abre-se como possibilidade de entrar em relação com o outro, com outras
formas ser e estar no mundo.
Leitura literária como lugar de significações, produção de sentido, constituição
de subjetividade contribui para a formação do leitor literário à medida que este se forma
ao escolher suas leituras, ao apreciar as significações da obra, ao transpor o texto para o
seus fazeres e prazeres. É possível inferir no relato P2 que a escola pode ter contribuído
para a formação do professor como leitor e que havia a presença de um modelo mais
tradicional de prática de leitura, com alunos sentados em carteiras, por exemplo. Nesse
sentido, as reflexões e histórias narradas podem corroborar para o desenvolvimento de

sumário 607
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

práticas de leitura no ambiente escolar que levem a encontros, amorosidade e reflexão.


Propostas que caminhem na contramão de atividades mecanicistas de leitura, em que
não há construção de sentido, como experimento para se chegar a um saber já previsto;
e se lancem em direção à possibilidade de configurar experiências de leitura, com
potencial inesgotável de significação.
Como mencionado anteriormente, no encontro formativo desenvolvido por mim
em uma unidade escolar propus que os professores escrevessem como a relação com a
leitura, sobretudo, com a literária se deu no período em que eram alunos. Contudo,
alguns docentes narraram a relação que tiveram com a leitura (literária) sem mencionar
especificamente a escola como lócus da experiência vivida ou expressando não ter
lembranças. Penso que essas narrativas conservam suas forças germinativas
(BENJAMIN, 1994, p.204) à medida que se potencializam como processo de formação
e de conhecimento, podem desencadear outras histórias e nos ajudar a refletir a respeito
da formação do leitor-autor.
Relatam os professores:

Dois livros me marcaram na infância/adolescência: Memórias de um cabo de


vassoura e Ana Terra – O tempo e o vento. O primeiro me despertou o gosto
pela escrita. O segundo me instigou à curiosidade sobre o processo da
adolescência e os primeiros conhecimentos sobre como pode ser a vida de
uma mulher (p.3).

Sempre amei ler, sabia que através da leitura poderia me deslocar no tempo e
espaço, sair da minha vida real para um mundo todo novo. Um livro que me
marcou foi O mundo de Sophia. Eu me via representada na personagem (p.4).

Não tenho lembranças de leituras na escola, mas nessa época eu era


apaixonada pelas histórias de Ágatha Christie. Acho que li a coleção toda.
Outra coisa que me lembro da época é que minha mãe assinava o Clube do
Livro, então, todo mês chegava um livro novo lá em casa (p.5).

Não tenho lembrança de nenhum momento marcante. Só livros mandados


pela professora e depois fazia prova do livro e resumo (p.6).

As narrativas trazem pistas sobre como as histórias de vida e formação ressoam


no modo como nos formamos leitores-autores. O encontro com essas narrativas
permite-nos tentar entender e defender, assim como Larrosa (1996), a leitura que se tece
e (entre)tece na troca, na interação e interlocução com o outro, com o texto, em um
movimento dialógico. Podemos perceber nos relatos P3, P4 e P5 que não há menção à
escola, mas são histórias que relatam uma relação dialógica do leitor com o texto. Os
professores explicitam como a leitura literária enquanto valor, convocação à empatia

sumário 608
VII Seminário Vozes da Educação

pode trazer transformações para a vida pessoal, instigando-os a curiosidade, a


identificação, ao questionamento crítico de mundo, levando o sujeito a conhecer e a
inscrever-se no mundo.
A narrativa P6 é emblemática, pois a principio traz que não há rememoração
marcante, mas em seguida relata a obrigatoriedade de leituras, com provas e resumos.
Lajolo (1997) diz que “a literatura constitui modalidade privilegiada de leitura” (p.105)
e, em outro texto mais recente, a autora defende a literatura como contexto e não como
pretexto para alguma coisa, constituindo-se, neste sentido, um desserviço, à medida que
as práticas utilitaristas afastam os leitores e não os aproxima do texto. Portanto, a
narrativa docente traz à reflexão que é preciso investir em atividades de/com a leitura
que permita o sujeito “pensar, ser crítico da situação, relacionar o antes e o depois,
entender a história, ser parte dela, continuá-la, modificá-la. Desvelar.” (KRAMER,
2000, p. 20).
A leitura como formação, experiência não consiste em decifração ou atribuição
de um único sentido. A experiência de leitura é a possibilidade que se abre para
provocar o leitor, fazendo-o sair da mesmice, da inércia intelectual que a modernidade
pode acentuar, posto que o aproxima do outro. E diante da oportunidade de deparar-se
com o Outro (BAKHTIN, 2014), no sentido bakhtiniano de entender o termo, a leitura
não se encontra nem no texto, nem fora dele, mas na relação e interlocução entre aquele
que escreve e aquele que lê, mediado pelo texto. Assim, constrói-se a leitura como ato
político, ético e estético e formam-se leitores críticos, reflexivos e conscientes.

Por ora, algumas considerações


A contribuição, mediante o presente texto, é contribuir para a elaboração de
modos outros de compreender a formação de sujeitos leitores-autores, evidenciando a
perspectiva de pesquisa narrativa (auto)biográfica. Rememoro as palavras da epígrafe
para reafirmar que este contexto dialógico não se esgota aqui, pelo contrário, a ideia é
que o leitor entre no diálogo e acrescente suas palavras às que se encontram escritas,
construindo elos enunciativos e reflexivos.
O objetivo foi estabelecer um movimento de reflexão entre teoria e prática,
universidade e escola, a fim de suscitar outras narrativas e formar um coral de
resistência. Nesse sentido, os escritos de Freire (1984) ajudam-nos na discussão aqui
pautada que é a leitura como possibilidade de diálogos. O autor aponta que a leitura
pode se constituir como ato crítico e reflexivo, pois há um entrelaçamento entre a leitura

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

e o contexto ao qual o sujeito pertence. A palavra pronunciada ou a leitura realizada flui


do mundo, portanto, apropriar-se do texto surge indissociável da ideia de ler o mundo.
Além disso, exercemos a leitura como ato crítico e reflexivo à medida que a entendemos
como um movimento vivo em que me apropriando, reflexivamente, do que é lido e
mediante uma prática consciente, tenho a possibilidade de transformar e reescrever o
meio no qual estou inserido.
Recorro ao autor supracitado para quem o ato de ler não é um processo que se
esgota na simples decodificação da palavra escrita, mas é ação que dialoga com o
mundo antes, durante e após a leitura por meio de movimento dinâmico, carregado de
significação e de experiência existencial, para pensar a ideia potente e inovadora da
palavramundo (p. 12). Pensar na palavamundo como centralidade para o
desenvolvimento das ações que compõem o trabalho de ensino nas escolas, entre vida
escolar e realidade local, entre o social e o singular, entre as subjetividades e as
particularidades que formam as complexidades do indivíduo.
Na contramão das iminentes uniformidades que podem levar a massificação do
indivíduo, a reducionismos da leitura no cotidiano escolar e ao empobrecimento crítico-
reflexivo do sujeito leitor-autor, buscamos, com o auxílio das reflexões de Walter
Benjamin (1994), dialogar com as memórias tecidas, de modo individual e coletivo, a
fim de constituir um fluxo narrativo que nos permita tecer conhecimentos, alargar
sentidos e expandir horizontes. Não há como ensinar tudo a todos da mesma forma, pois
há identidades e trajetórias diferenciadas. Os sujeitos carregam consigo marcas,
percursos, histórias, rastros, brechas diferentes. Portanto, o trabalho com as narrativas é
relação dialógica com o outro, autoanálise, construção de modos outros de compreender
a prática, é, sobretudo, ação profundamente formativa.
Rememorar a trajetória de vida e formação, escrever sobre os processos
formativos que nos constituem é posicionamento político, ético e estético. É resistência
e luta por uma educação igualitária, plural e construída a partir e nas relações. É
compreender criticamente, interpretar e reescrever as leituras que faço, apropriando-me
do mundo e me (re)fazendo como sujeito. É valorização simultânea do social e do
singular que nos fazem ser quem somos. Freire nos convoca a tomada de consciência do
nosso inacabamento e a inserção em um “permanente movimento de busca” (FREIRE,
1996, p.33-34). A natureza inacabada que nos torna quem somos é a mesma que nos
lança em direção ao outro e nos (trans)forma, por isso a ideia é que as palavras

sumário 610
VII Seminário Vozes da Educação

circulem, deflagrem o despertar literário, nos movam, ecoem nossas vozes ao mundo,
promovam ressignificações em nós e em nossos fazeres.

Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo. Martins Fontes, 2011.

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BRAGANÇA, I. Formação permanente de educadores: memória e narração. In: Haydée


da Graça Ferreira de Figueiredo (in memorian)... [et.al.]. Vozes da Educação: 500 anos
de Brasil. Rio de Janeiro: UERJ, DEPEXT, 2004, p. 69-73.

______. Pesquisaformação narrativa (auto)biográfica: trajetórias e tessituras teórico-


metodológicas. In: ABRAHÃO, M.H.M.; DA CUNHA, J. L. VILLAS BÔAS, L.
(Org.). Pesquisa (auto)biográfica: diálogos epistêmico-metodológicos. Curitiba: CRV,
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BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras
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CUNHA, M. I. da. Narrativas e formação de professores: uma abordagem


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FERRAROTTI, F. Sobre a autonomia do método biográfico. In: NÓVOA, A.;


FINGER, M. (Org.). O método (auto)biográfico e a formação. São Paulo:
Paulus/EDUFRN, 2010, p. 30-57.

FONTOURA, H. A. HENRIQUES, E. M. de O. Leitura como formação, formação


como leitura: processos narrativos/formativos em questão. Linhas Críticas,Brasília,
DF, v.20, n.42, p. 345-361, mai./ago.2014.

FREIRE, P. A importância do ato de ler. In: FREIRE, P. A importância do ato de ler:


em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1984, p. 11 a 24.
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Paz e Terra, 1996.
GAGNEBIN, J M. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva,
2013. (Estudos, 142; Dirigida por J. Guinsburg)

KRAMER, S. Leitura e escrita como experiência – seu papel na formação de sujeitos


sociais. Revista Presença Pedagógica, Belo Horizonte, MG, v.6, n.31, p. 17-27,
jan./fev. 2000.

LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1997.

LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira


de Educação. nº19, jan./fev./mar./abr. 2002, p. 20-28.

sumário 611
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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Costa, M. V. (Org.). Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em
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119 f. Dissertação (Mestrado em Educação – Processos Formativos e Desigualdades
Sociais) – Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2016.

YUNES, E.; OSWALD, M. L. A experiência da leitura. São Paulo: Loyola, 2003.

sumário 612
VII Seminário Vozes da Educação

O RACISMO NOS COTIDIANOS ESCOLARES: CONVERSAS NAS REDES DOS


‘PRATICANTESPENSANTES’

Brenda de O. Coutinho de Araújo


UERJ89
brcoutinho23@outlook.com

Elaine Sotero
UERJ90
elainesotero2@gmail.com

Introdução
O presente trabalho foi desenvolvido a partir das experiências do projeto de
pesquisa do Laboratório Educação e Imagem/ProPEd/UERJ, sob o título “PROCESSOS
CURRICULARES E MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS: os modos como questões
sociais se transformam em questões curriculares nas escolas”; coordenado pela
professora Nilda Alves. O projeto tem por objetivo principal compreender como as
questões dos fluxos migratórios se inserem nos cotidianos escolares. No decorrer do
projeto, desenvolvemos ‘cineconveconversas’91,nas quais trabalhamos com filmes que
tratam de movimentos migratórios, ressaltando as principais questões presentes nos
filmes e afirmando a importância dessa discussão na contemporaneidade, em tempos
de tensões políticas. Porém, a autora inicial do artigo optou que o mesmo não se
tornasse apenas um relato individual, mas também uma troca de conversas entre duas
amigas de graduação. Foram diversas conversas compartilhadas sobre nossas diferentes

89
Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
90
Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do GRPesq
‘Currículos, redes educativas, imagens e sons’, no Laboratório Educação e Imagem/UERJ, Coordenado
pela professora Nilda Alves.
91
Recentemente, por proposta de uma das componentes do grupo – Rosa Helena Mendonça – passamos
a chamar este movimento de ‘cineconversas’, pois de fato, sem seguir a tradição de cineclubes, o
movimento que realizamos tem as ‘conversas’ em torno de temáticas introduzidas pelo processo de
‘verouvirsentirpensar’ os filmes como lócus central dessas pesquisas. Assim, não se trata de conhecer os
filmes em si e discuti-los em sua historicidade, construção técnica, como obra artística de um criador etc
– o que caracterizaria os processos realizados em um cineclube - mas de tê-los como iniciador de
pensamentos que permitam as ‘conversas’.

sumário 613
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

vivencias nos ‘espaçostempos’. Vivencias essas que foram capazes de tecer redes
totalmente distintas uma da outra, devido à enorme desigualdade racial ainda existente
em nosso país
Por meio dos estudos com os cotidianos, na monografia de final de curso,
compartilhei a minha trajetória de vida até me tornar professora. No primeiro capítulo,
contei as dificuldades e as alegrias vividas até o ingresso na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro e as experiências como bolsista do grupo de pesquisa “Currículos, redes
educativas, imagens e sons”, do Laboratório Educação e Imagem coordenado pela
professora Nilda Alves. No segundo capítulo, dialoguei com as experiências no grupo
de pesquisa, a importância das pesquisas ‘nosdoscom’ os cotidianos. No terceiro
capítulo, conversei com os filmes Besouro (2009; direção João Daniel Tikhomiroff),
‘Preciosa’ (2009; direção: Lee Daniels) e ‘Escritores da Liberdade’ (2007; direção:
Richard LaGravenese), filmes que me marcaram nesta trajetória no Laboratório
Educação e Imagem e que me influenciaram como professora. Através destes
questionamentos que me permiti compartilhar com outra ‘praticantepensantes’minhas
vivencias e percebemos que a educação que temos é regulamentada por um currículo
eurocêntrico, propomos assim, a descolonização dos currículos (GOMES, 2012),
através das redes educativas e dos mundos culturais presentes nos cotidianos escolares
criando, nessa perspectiva, um outro currículo - plural, crítico e atento - nos cotidianos.
Concluímos afirmando que foram todas essas inúmeras experiências que tocaram as
nossas redes educativas, em especial as de formação e que teceram a professoras que
somos hoje. Elas continuarão influenciando, junto a outras experiências, a professora
que pretendemos ser amanhã.
Assim, conversamos no artigo de final de curso - no mesmo sentido usado pelo
grupo – com alguns filmes que me marcaram nesta trajetória da graduação, ressaltando
de que maneira eles nos influenciaram, de que forma eles nos possibilitaram, como eles
puderam contribuir para nossa formação e de que forma eles podem ser usados, na
noção de redes educativas, em muitos outros cotidianos escolares. Inspirada também na
Lei nº 13.006/14 que institucionalizou a obrigatoriedade de no mínimo duas horas de
exibição de filmes brasileiros por mês em toda a educação básica, apesar de suas
dificuldades de implementação – é uma proposta de tentar inverter esse cenário de
desigualdade para a população negra. Historicamente a parcela negra da sociedade
brasileira vive a exclusão, tanto da participação do poder político e econômico, como da

sumário 614
VII Seminário Vozes da Educação

participação na história e na criação cultural. Fato esse concordado e muito debatido por
ambas ‘praticantespensantes’ que estão presentes no artigo.

Os “usos” dos filmes como intercessores para a formação de professores


Dos três filmes selecionados e citados acima, dois se encaixam na categoria
criada por nós de filmes de professores: Escritores da Liberdade e Preciosa. As
narrativas destes dois filmes trazem reflexões sobre os cotidianos escolares e os desafios
que os docentes e discentes enfrentam. O outro filme é Besouro que não lida
diretamente com o cotidiano escolar, mas que tem presente em sua narrativa duas
questões pertinentes para nossas reflexões aqui: as relações de ‘aprenderensinar’
existentes nos cotidianos das tradicionais manifestações negras brasileiras,
principalmente a arte da capoeira – expressão cultural tornada Patrimônio Cultural
Brasileiro, em 2008; a outra questão é exatamente a riqueza cultural e simbólica desta
manifestação e de outras, como candomblé, que são afirmações da inventividade e
criatividade afro-brasileira, que nem sempre recebe o seu devido reconhecimento.
As imagens, narrativas e sons de outros filmes ‘vistosouvidossentidospensados’
como: Assédio, La Noire de...,entre outros, me tocaram também, fazendo-me sentir
orgulho de ser negra, pois frequentemente somos influenciados por preconceitos e por
meio disso, rejeitarmos nossas origens africanas, por diversos motivos, desde estéticos,
como cabelo crespo, até culturais, por ser uma cultura inferiorizada e popular. É de
suma importância para uma professora negra se afirmar como negra, e também é
importante para uma professora branca que também se encontra no presente trabalho,
reconhecer seus privilégios e procurar compreender um pouco mais da vivencia de
outros sujeitos que enfrentam dilemas considerados mais complexos, por conta de suas
origens. Por meio deste posicionamento, distante do disfarce da “morena”, “escurinha”
ou “dar cor”, podemos contribuir para o empoderamento de outros estudantes nos
cotidianos escolares, levando-os a assumirem, sem vergonha, a sua cor e as suas
origens.

Siyanda: migrações ontem e hoje nas imagens, narrativas e sons dos cinemas
negros
Recentemente tivemos contato com o filme Siyanda (2017) um exemplo de
relação contemporânea, mas histórica dos fluxos migratórios. Siyanda é um curta
metragem brasileiro, produção de Hugo Lima e de outros jovens cineastas que

sumário 615
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

realizaram o filme para o festival 72 Horas, em 2016. A narrativa retrata o contato de


uma imigrante africana com o solo sagrado da região portuária da Pequena África.
Apesar de desolada a protagonista encontra afago nos seus ancestrais orixás que a
guiam. Estes orixás possuem uma conexão ainda presente da protagonista com as suas
religiões de matriz africana, religiões essas que ainda sofrem com uma enorme carga de
preconceito perante uma sociedade branca e cristã. Apesar da distância física de seu
território de origem, a personagem que e confrontada por inúmeros conflitos no seu
cotidiano, como por exemplo, a ausência de oportunidades para uma sobrevivência
digna, porém ainda assim mantem uma relação de afeto e memória com as religiões de
matrizes africanas, os orixás nesse contexto se constituem para além de uma singela
ligação com sua crença, mas também evidenciam como as redes que nos constituem em
nossos ‘espaçostempos’, são capazes de se reinventar em outros ‘espaçostempos’e
mesmo assim permanecer presente em nossas memórias.
Partindo de outra interpretação, também fomos capazes de enxergar naquele
cenário outro aspecto importante. Sabemos que devido ao racismo de um país que
cultuou a escravidão durante uma longa jornada, ainda estamos vivendo as sequelas
desse período histórico em nosso país. Como mulher branca que agora fala e que
também julga a luta contra o racismo inegociável, muitas vezes me percebi privilegiada
em muitos ambientes devido a minha etnia, como se nós estivéssemos constantemente
em grandes papeis de destaques sociais, apesar dos negros serem a maioria em nossa
população brasileira Percebi também, como é importante para mim como uma pessoa
que reconhece seus privilégios, e também para as pessoas negras que são vítimas do
racismo a todo o momento, encontrar nos ‘espaçostempos’uma pessoa negra em
grandes destaques, pois reforça para os ‘praticantespensantes’ negros, que seus
semelhantes estão enfrentando as barreiras sociais do racismo, e para mim como mulher
branca educadora, que outros indivíduos estão ocupando os mesmos ‘espacostempos’
que eu ocupo, o que se constitui de fato um direito dessa população, que em muitos
meios se encontra a margem da sociedade, com as diversas formas de resistência e
criação há a possibilidade de existir a uma sociedade mais igualitária quanto as diversas
etnias.
Dessa forma voltando ao curta, percebemos nos outros personagens, indivíduos
que se identificaram com a personagem central, sendo assim começaram a segui-la pelo
seu trajeto como se encontrassem na mesma um tipo de identificação e força. Mas que
tipo de identificação poderia ser essa? Identificação de serem um grupo de pessoas

sumário 616
VII Seminário Vozes da Educação

negras, que se encontravam em contextos diferentes, uns com vestimentas diferentes,


outros concentrados em algum afazer, mas todos carregavam consigo a força de serem
negros perante uma sociedade que ainda tem muito o que percorrer na luta contra o
racismo. Bem me recordo das inúmeras vezes que a cor de minha pele me favoreceu em
diversos ‘espaçostempos’, em que os brancos ocupavam com maior destaque os cargos
sociais. Eu me via naqueles lugares, eu era representada, eu possuo um privilegio que
muitos indivíduos negros ainda não possuem, porém como educadora, luto para que
meus semelhantes tenham o mesmo direito que a mim foi concedido, e luto para que a
sala de aula seja um ‘espaçotempo’de resistência contra o racismo, mas também um
espaço de criação de alternativas.
O filme Syianda, citado anteriormente, venceu no festival como Melhor roteiro
e 3º Melhor curta. Com esta repercussão os cineastas envolvidos fundaram o coletivo
Siyanda do Cinema Experimental do Negro. Este movimento é um reflexo do
crescimento do cinema negro atualmente, onde somos "desafiados a repensar, artistas e
intelectuais negros insurgentes buscam novas formas de escrever e falar sobre raça e
representação" (HOOKS, 2019, p. p. 33).A atriz que protagoniza o filme vive mais uma
intercessão entre a vida e a arte Mariama Bahfugiu, da Gâmbia, em 2014, quando ia ser
obrigada a casar definitivamente com o homem que era prometido a ela desde seus treze
anos. No período de realização do filme ela cursava o primeiro período do curso de
Relações Internacionais, com bolsas por auxílio da Cáritas que a acolheu como
refugiada.
Com as experiências, conflitos e possibilidades presentes nos filmes percebemos
que estes tecem redes educativas que nos permitem pensar sobre a complexidade dos
fluxos migratórios, podendo servir como intercessores para a discussão na formação de
professores, em espaços não formais como cineclubes, ONGs, residências particulares,
dentre outros, ou até mesmo em espaços formais, como escolas básicas, com a devida
adaptação as faixas etárias.
Com estas breves considerações sobre diáspora, identidade e diferença podemos
afirmar que os fluxos migratórios contemporâneos têm muito a contribuir para a
reflexão sobre nossas culturas. Além do movimento de retornarmos a nossas origens
migratórias, percebendo o quão intrínseco ela é na formação das sociedades do
ocidente, podemos questionar e criticar mazelas e desigualdades que têm origens nestes
marcos de civilidade, como o racismo.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Redes Educativas e currículos


É basicamente isto que Alves (2011) considera como redes educativas, as
experiências, as vivências, as memórias, os sentidos, os afetos, os desafetos e uma
complexa trama de tessituras que compõem esses múltiplos encontros de
‘conhecimentossignificações’ que constituem a educação. A formação de professores se
dá então “em múltiplas redes educativas, entendidas todas como de ‘práticasteorias’, ou
dito de outro modo, nas quais práticas e teorias estão sempre presentes e se
interrelacionam de diferentes modos” (ALVES, CALDAS, ROSA, 2015, p. 4).
Para as pesquisas ‘nosdoscom’ os cotidianos o cinema possui uma posição
significativa na relação formativa. Os filmes por seu potencial afetivo carregam muitos
sentidos para todos. Principalmente os filmes queridos, os filmes de nossas infâncias
que nos lembram de momentos especiais e marcantes. As memórias são um fator
constituinte da rede de afetos que vão influenciar nossas decisões na vida adulta. Os
filmes, além de repletos de sentimentos, são criações que nos permitem diversas
reflexões sobre fatos sociais, desta forma assistindo filmes podemos desencadear
conversas que nos permitem pensar a prática docente
Por fim, as pesquisas com os cotidianos permitiram que nos aproximássemos da
diversidade da vida, pensando com todas as redes que nos formam e as quais formamos.
Em meio a todas essas redes que me fizeram enxergar a importância da minha
identidade como mulher negra e também a importância de compartilhar vivencias com
outra ‘praticantespensantes’, de forma espontânea fui tecendo ideias ao longo dos anos,
que me fizeram ir além do pensado por mim antes de entrar para universidade Pública.
Candidatei-me ao Mestrado em EducaçãoProped/Uerj 2019, já professora graduada,
formada em Pedagogia no semestre de 2018.2, pela Faculdade de Educação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e pretendo pesquisar e compreender “como
questões de urgência social como as migrações, podem se transformar em questões
curriculares”. A pesquisa se dará com os movimentos migratórios africanos e as redes
educativas e terá como metodologia o uso das ‘cineconversas’, que consistem em
conversas após a exibição de filmes e documentários, partindo do projeto sobre
migração e enfatizando as questões raciais e de gênero.
A partir das leituras de mulheres negras como Neusa Santos (1990), Conceição
Evaristo (2005) e Djamila Ribeiro (2018), pude compreender um pouco mais como vive
a mulher negra no Brasil. Sendo assim, irei pesquisar relações entre a trajetória de
mulheres negras brasileiras e migrantes africanas; pensando a importância dessa questão

sumário 618
VII Seminário Vozes da Educação

nas redes educativas e nos currículos nos cotidianos, propondo, através de


‘cineconversas’ dialogar acerca do tema.
Nesses ‘espaçostempos’, já aprovada para o mestrado, penso em desenvolver
‘cineconversas’ com os ‘praticantespensantes’ de uma turma de PPP (Pesquisa e Prática
Pedagógica), pois através desta metodologia de pesquisa creio que será possível uma
troca de experiências ‘nosdoscom’ os cotidianos entre todos os participantes. Um filme
não reproduz a realidade (DELEUZE, 2007; 1985), mas é criação humana a partir da
própria realidade e serve como potência para se pensar as questões cotidianas.
É através das conversas que surgem as narrativas dos ‘praticantespensantes’ nas
pesquisas. Os artefatos audiovisuais como o cinema e outras mídias, podem aparecer
nos currículos e nos cotidianos escolares como forma de potencializar essas conversas e
de se tentar mudar certos paradigmas. É possível fazer uso dos filmes e das narrativas
que emergem das conversas para se pensar diversos aspectos da população negra
brasileira, enfatizando o ‘ensinoaprendizagem’ das histórias e culturas africanas, como
institucionalizado na Lei n0 10.639/03. A migração de hoje tem relação com a
colonização de ontem e é uma forma de compreender as diásporas africanas, permitindo
um pensamento que nos una aos muitos migrantes, imigrantes e refugiados que nos
rodeiam, na atualidade. Sem esquecer que somos todos (ou quase todos) descendentes
de povos que vieram de longe, quase sempre forçados, por inúmeras razões que
precisam ser compreendidas pela sociedade. E as escolas têm um papel relevante nesse
processo, e esse é um dos pontos a ser pesquisado.

Superando o racismo no currículo – algumas considerações


Pelos filmes selecionados aqui fica evidente as duas questões nos moveram a
escolher tais filmes: a questão racial e a questão do professor. Durante nossa trajetória
de formação como professora começamos a ficar mais atenta às questões raciais por
diversos motivos. Presenciamos um aumento da discussão racial em diversos
‘espaçostempos’: com colegas de sala, nas aulas, em eventos específicos, em redes
sociais, em filmes e em muitas outras formas de mídias.
O contato com a questão racial me fez afirmar, mais uma vez, minha condição
de mulher negra e encontrei em relatos de muitos outros colegas que as dificuldades que
muitos sentiam eram as mesmas dificuldades que eu sentia E a outra parte presente
nesse artigo se percebeu como uma mulher branca rodeada de privilégios, reconheceu e
assumiu uma postura que mesmo branca também era seu dever a luta contra o racismo.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O racismo é ainda um mal velado na sociedade brasileira, apesar dos esforços de


diferentes setores sociais como os dos chamados movimentos negros, por exemplo,
diversas pessoas ainda sentem na pele cotidianamente o preconceito, mas ele não é
reconhecido, efeitos da secular pretensa democracia racial brasileira. Ainda assim
podemos considerar que estamos vivendo um momento político de extrema
importância, pois vem nos possibilitando uma gama de debates sobre essas temáticas,
em diversos ‘espaçostempos’,cada relato nessas inúmeras conversas sobre o cotidiano
dos ‘praticantespensantes’ tem a possibilidade de resgatar inúmeras memórias das redes
que os constituem, essas redes por sua vez englobam diversos espaços e emoções. Essas
redes estão presentes no trabalho, no meio religioso, na família, no convívio social entre
amigos etc. São diversas redes com ‘conhecimentossignificacões’ que diferem uma da
outra, porém cada uma possui uma experiência individual para o sujeito. Os cotidianos
como ‘espaçostempos’de criação de ‘conhecimentossignificacões’ são também,
infelizmente, espaços que acabam por reproduzir tais redes de discriminações, como o
racismo, atuando na ótica vertical das estratégias, como diz Certeau (1998). Desta
forma, se o racismo é cotidiano, é nosso dever como professoras propor soluções para
este problema exatamente pela mesma via: a discussão do racismo precisa estar presente
nos cotidianos escolares. Não está dentro das possibilidades ignorar esse problema
social, ele precisa ser discutido e debatido de forma constante dentro dos
‘espaçostempos’ , principalmente dentro dos meios educacionais
A veia denunciativa e crítica é um dos principais apelos feitos como reparo ao
racismo, porém da mesma forma, pensando nas táticas com Certeau, é preciso, além de
resistir, criar outras possibilidades para se superar o racismo nos cotidianos escolares.
Mesmo prevalecendo uma cultura hegemônica que desvaloriza os conhecimentos, as
culturas e as histórias africanas, indígenas e de outros povos que não ‘se encaixam’ no
princípio do eurocentrismo, é preciso proporcionar outras possibilidades a estas
epistemes desvalorizadas.
Se a sociedade está permeada desse racismo velado não é de surpreender que o
‘dentrofora’da escola também esteja, tanto nos cotidianos, como principalmente nos
currículos. No sentido das estratégias, os currículos das bases, das diretrizes e dos
parâmetros não conseguem atender plenamente a estas demandas, apesar de todas as
transversalidades.
Porém, existem políticas no nível macro que possibilitam algumas atuações no
sentido do combate ao racismo, como é a Lei nº 10.639/03. Esta Lei estabelece a

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VII Seminário Vozes da Educação

obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira dentro da


educação básica, tendo sido complementada, em 2009, pela Lei 11.645 que inclui o
ensino de história e cultura dos povos indígenas. Essas políticas públicas curriculares
promovem o que Nilma Lino Gomes cunhou como descolonização do currículo.

A força das culturas consideradas negadas e silenciadas nos currículos tende


a aumentar cada vez mais nos últimos anos. As mudanças sociais, os
processos hegemônicos e contra-hegemônicos de globalização e as tensões
políticas em torno do conhecimento e dos seus efeitos sobre a sociedade e o
meio ambiente introduzem, cada vez mais, outra dinâmica cultural e
societária que está a exigir uma nova relação entre desigualdade, diversidade
cultural e conhecimento. Os ditos excluídos começam a reagir de forma
diferente: lançam mão de estratégias coletivas e individuais. Articulam-se em
rede. A tão falada globalização que quebraria as fronteiras aproximando
mercados e acirrando a exploração capitalista se vê não somente diante de
um movimento de uma globalização contra-hegemônica, nos dizeres Santos
(2006), mas também de formas autônomas de reação, algumas delas duras
e violentas. Esse contexto complexo atinge as escolas, as universidades, o
campo de produção do conhecimento e a formação de professores/as.
Juntamente às formas novas de exploração capitalista surgem movimentos de
luta pela democracia, governos populares, reações contra-hegemônicas de
países considerados periféricos ou em desenvolvimento. Esse processo atinge
os currículos, os sujeitos e suas práticas, instando-os a um processo de
renovação. Não mais a renovação restrita à teoria, mas aquela que cobra uma
real relação teoria e prática. E mais: uma renovação do imaginário
pedagógico e da relação entre os sujeitos da educação. Os currículos passam
a ser um dos territórios em disputa, sobretudo desses novos sujeitos sociais
organizados em ações coletivas e movimentos sociais (GOMES, 2012, p.
102-103).

Com esta medida contra-hegemônica de romper com as matrizes totalizantes


europeias dos currículos brasileiros, estamos propondo uma descolonização dos
currículos escolares. Com o advento das Leis citadas acima, apesar das dificuldades de
implementação, presenciamos diversas atividades neste viés acontecendo nas escolas,
desde livros, encenação de peças, confecção de murais, personagens, pinturas, inúmeras
metodologias diferentes...
Neste mesmo caminho, propomos aqui o “uso”, no sentido de Certeau (1998), de
filmes que tragam as mais diversas discussões para os cotidianos escolares, tanto os de
formação de professores, como os de educação básica. Mesmo alguns filmes não
trazendo como proposta central certos tipos de reflexão. Sobre os usos Certeau diz que

Essas operações de emprego – ou melhor de reemprego - se multiplicam com


a extensão dos fenômenos de aculturação, ou seja, com os deslocamentos que
substituem maneiras ou métodos de transitar pela identificação com o lugar.
Isso não impede que correspondam a uma arte muito antiga de “fazer com”.
Gosto de dar-lhes o nome de usos, embora a palavra designe geralmente
procedimentos estereotipados recebidos e reproduzidos por um grupo, seus

sumário 621
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

“usos e costumes”. O problema está na ambiguidade da palavra, pois, nesses


“usos”, trata-se precisamente de reconhecer “ações” (no sentido militar da
palavra) que são a sua formalidade e sua inventividade próprias e que
organizam em surdina o trabalho de formigas do consumo (1998, p. 93).

Mesmo o cinema não sendo uma representação fidedigna do real (GUERON,


2011), para pensar nossos cotidianos, principalmente os escolares, as imagens,
narrativas e sons do cinema têm se mostrado extremamente interessantes como
possibilidades menos estruturadas e formais de problematização dos cotidianos
escolares (ALVES, FERRAÇO, 2015, p. 312). É aí que está presente a potência do ato
de ver, ouvir, sentir um artefato cultural para os cotidianos escolares. Estes aparecem
“como alternativa mais potente para o entendimento dos processos de
invenção/resistência que são vividos na complexidade das redes tecidas pelos
praticantes dos cotidianos escolares” (Ibidem).
Os mundos culturais dos ‘praticantespensantes’ dos cotidianos escolares são
tecidos em redes educativas que rompem com as dicotomias e hegemonias da ciência
moderna.

Ao pensar “a cultura” como uma rede de operações produtoras de


“saberesfazeres”, poderes e significados, Certeau (1995) descolou a
compreensão de ação cultural ou política como algo realizado de forma
centralizada e de cima para baixo para algo tecido permanentemente nas/com
as práticas sociais cotidianas que produzem significados para aqueles que as
realizam (ALVES, FERRAÇO e SOARES, 2017, p. 13).

Assim, os acontecimentos dos cotidianos escolares, apesar de cerceados por


hegemonias curriculares, como a excludente Base Nacional Comum Curricular ou a
includente Lei nº 10.639/03, criam currículos cotidianamente, aliando-se a estas
legislaturas ou não. A criação de currículos nos cotidianos escolares acontece com o ato
da tessitura das diferentes redes educativas de ‘conhecimentossignificações’ que estão
presentes neles. Assim,

essas considerações nos permitem ver, complexamente, os processos de


centralização dos currículos e as influências possíveis na formação docente:
se por um lado, percebemos os movimentos de centralização curricular que,
oficial e mundialmente, vão se agudizando no presente, por outro lado,
entendemos que estes processos têm a ver com articulações múltiplas
nas/das/com as diversas redes educativas que formamos e que nos formam a
todos, nos cotidianos. Mais do que isto, como pesquisadoras com os
cotidianos, vamos buscando compreender como nos indicou Certeau (1994)
que, apesar de todas as determinações oficiais centralizadoras e de
manipulações sem fim nas mídias, nenhuma sociedade cai toda ela subjugada
às determinações hegemônicas (ALVES, CALDAS, ROSA, 2015, p. 5).

sumário 622
VII Seminário Vozes da Educação

Partindo então das experiências de vida próximas, das vivências e dos


acontecimentos do cotidiano é possível se criar um currículo no chão da escola, um
currículo tecido por muitos autores que ressignifiquem práticas aviltantes como o
racismo. Um currículo que seja plural e abarque os diferentes mundos culturais que
habitam o ‘dentrofora’ dos ‘praticantespensantes’ dos cotidianos escolares. Um
currículo que, através de situações de opressão, como racismo, machismo, misoginia,
homofobia, transfobia, possa propor uma outra prática pedagógica. Tecer e reinventar a
educação, longe dos desmandos governamentais que cada vez a sucateia mais, é uma
das formas de pensarmos em uma educação plural, crítica e de qualidade.
Como foi citado ao longo do trabalho, é necessário não apenas a resistência, mas
também a criação, e os ‘praticantespensantes’ necessitam estar a todo instante
impulsionados a não só apenas a resistirem, mas também criarem condições para que a
escola seja um ‘espaçotempo’de acolhimento a diversidade. É preciso que se
existamcada vez mais projetos e atividades que proporcionem uma educação crítica e
representativa, se tratando da população negra, é importante que as crianças se
sintamrepresentadas pelas suas origens, então julgamos necessário a escolha de livros
didáticose narrativas infantis que contenham protagonistas afrodescendentes, além do
estudo dasreligiões de matriz africana, apesar de já temos a lei 10.639/06 que nos
garanta a importânciadessa questão. É necessário que se batalhe a todo o momento pelo
cumprimento da mesma, pois ainda existem diversas esferas conservadoras da nossa
sociedade quetentam embarreirar este avanço. Dessa forma, é preciso que nos
apeguemos em artefatose estratégias no nosso cotidiano para que possamos possibilitar
‘espaçostempos’ de maior acolhimento.

Referências
ALVES, Nilda. Processos curriculares e movimentos migratórios: os modos como
questões sociais se transformam em questões curriculares nas escolas. Rio de Janeiro.
(Projeto de pesquisa entre 2017 e 2022)

ALVES, Nilda. Redes educativas, fluxos culturais e trabalho docente – o caso do


cinema, suas imagens e sons. Rio de Janeiro: ProPEd/UERJ, 2011. (Projeto de pesquisa,
entre 2012 e 2017; financiamento: UERJ, FAPERJ, CNPq).

ALVES, Nilda. Tecer conhecimento em rede. In: ALVES, N.; GARCIA, R. L. O


sentido da escola. Rio de Janeiro: D, P & A, 1999. p. 111- 120.

sumário 623
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ALVES, Nilda; CALDAS, Alessandra Nunes; ROSA, Rebeca Brandão. Formação de


professores com filmes: os clichês como formadores de docentes. S. Paulo: PUC-S.
Paulo/Programa de Pós-graduação em Educação-Currículo. Revista e-Curriculum.
Dossiê ABdC - "Formação Docente frente às políticas no cenário de centralização
curricular", vol 13, n. 4, out-dez 2015: 775-793.

ALVES, Nilda; FERRAÇO, Carlos Eduardo; SOARES, Maria da Conceição.Michel de


Certeau e as pesquisas nos/dos/com os cotidianos em educação no Brasil. Pedagogía y
Saberes.n. 46, Universidad Pedagógica Nacional Facultad de Educación. 2017, pp. 7-
17.

BRASIL. Lei 13.006, de 26 de junho de 2014, acrescenta § 8o ao art. 26 da Lei no


9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para obrigar a exibição de filmes de produção nacional nas escolas de
educação básica. Diário Oficial da União, Brasília, 25 jun. 2014.

BRASIL. Ministério da Educação. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei


n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial
da União, Brasília, 10 jan. 2003.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano – artes de fazer – 3ª ed., Vol.1.


Petrópolis: Vozes, 1998.

Disponível em: https://youtu.be/j4PzzLrJ1yg Acesso em: 27/09/2019


Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/educacao/vida-de-calouro/refugiada-
africana-foge-de-casamento-arranjado-para-estudar-no-brasil-sonha-empoderar-
mulheres-rv1-1-22630743.html Acesso: 27/09/2019

GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos


currículos. Revista Currículo sem Fronteiras, v.12, n.1, pp. 98-109, Jan/Abr 2012.

GLISSANT, Édouard.Introdução a uma poética da diversidade.


Trad. Enilce Albergaria Rocha. Juiz de Fora: UFJF, 2005.

HOOKs, bell. Olhares negros: Raça e representação. Editora Elefante, 1º ed. 2019.

JESUS, Fernando Santos de; GRUBER, Valerie. A estética da (re)existência: olhares


filosóficos sobre o mestre de capoeira. In: Encontro e Estudos Multidisciplinares em
Cultura - XIII ENECULT, Salvador, v.1. 2017.

sumário 624
VII Seminário Vozes da Educação

O DIREITO AO ACESSO A ESCOLA DA POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA


E PROCESSOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Roberta Dias de Sousa


UERJ FFP
betadias3112@gmail.com

A população negra e o acesso à educação


Vivemos no Brasil uma realidade histórica de Educação que em muitos
momentos foi preterida e deixada a margem. No Brasil colônia não houve uma
preocupação em educar a sociedade, visto que essa sociedade eram os índios e os negros
escravizados. Acreditava-se que a preocupação era a de catequisar esses povos, já que
eles não compartilhavam da fé cristã como os portugueses. Cury (2014), nos mostra que
após a independência do Brasil, apenas em 1824 a Constituição foi outorgada e nela
apareceu a oferta gratuita de ensino a todos os cidadãos, porém a ideia de cidadão era de
“livres, naturalizados e libertos”, logo os negros, índios e mulheres não receberiam o
ensino, o que torna a Educação muito restrita a um pequeno grupo de pessoas. Esse
cenário colabora tanto para o atraso da instrução da sociedade de forma mais completa
como também faz com que a possibilidade de um grupo significativo da sociedade
demore mais tempo para ter o seu direito de acesso à educação garantido.
Na Constituição de 1934 é que teremos, após um grande período de discussões e
embasado pela forte necessidade de escolarizar a população que tinha índices
alarmantes de analfabetismo e um número muito baixo de matrículas de crianças no
ensino primário, que ocorria pelo número reduzido de escolas, a educação como dever
do estado e direito de todos. Nessa Constituição vemos pela primeira vez a preocupação
e discussão sobre a formação de professores com a necessidade de uma formação
específica para forjar mestres de ensino primário. Nesse ínterim tivemos mudanças e
diferentes defesas em torno da instrução pública no país, o que nem de longe conseguiu
minimizar a demora em se instituir legalmente a educação. Entretanto o Estado Novo
adiou a efetivação dessa Constituição até 1945 e várias leis previstas ficaram em
suspenso até o fim do regime autoritário.

sumário 625
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Cabe aqui lembrar que muitas das conquistas em termos legais foram
decorrentes do grande clamor dos intelectuais da época, em diferentes momentos
históricos, principalmente os que assinaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação
(1932) e o Manifesto Mais Uma Vez Convocados (1959), além da Carta Brasileira de
Educação Democrática (1946) e mais recentemente a Carta de Goiânia (1986), que
traziam em seus apelos uma maior preocupação com a formação da sociedade brasileira,
com uma educação integral, laica e de responsabilidade do Estado.

A leitura desses quatro documentos desenha uma linha de continuidade na


história da educação republicana em nosso país. Os manifestos e as cartas
pela educação democrática selecionados nesse estudo pontuam o largo
período de 1932 a 1986. Por cerca de meio século, os educadores da antiga e
das novas gerações trouxeram a público as declarações de princípios e os
planos de ação no âmbito da educação por meio de cartas e manifestos,
dentre outras estratégias, com o objetivo de alertar as autoridades
competentes, esclarecer a opinião pública e mobilizar a sociedade em prol da
efetivação dos princípios democráticos na condução da política
educacional(XAVIER, 2003 p.11).

Xavier traz essa análise da larga e duradoura tentativa dos intelectuais de trazer a
discussão e a efetivação de uma política educacional democrática e de qualidade, e
embora essa pauta seja antiga essa busca ainda não encontrou seu fim. Tivemos avanços
em termos de leis, porém ainda estamos longe de conseguir efetivar algumas políticas.
Diante desse panorama, podemos perceber o quão lentamente vem ocorrendo as
mudanças na legislação e na educação do Brasil. A formação profissional com o
incentivo a formação continuada e especialização só apareceram na última Constituição
em 1988 após a ditadura militar. Algumas diretrizes e planejamento de recursos apenas
foram contemplados nessa última versão.
Percebemos assim duas questões centrais para a discussão que aqui se propõe, a
primeira diz respeito a grande parcela da população que foi negligenciada por muitos
anos no que determina ou não a obrigatoriedade e gratuidade de ensino, a segunda a
determinação bastante recente da obrigatoriedade do ensino da história africana e
afrodescendente. Ambas têm uma relação muito próxima se pensarmos que em grande
parte as pessoas que tiveram seu direito a educação negado ou dificultado foram os
negros escravizados, seus descendentes e em alguns momentos as mulheres.
Percebemos através da história que a Educação dos brasileiros pertenceu, por
muito tempo, as elites, fossem elas do poder ou do saber, nesse grupo não entravam os
povos escravizados e seus descendentes, e por muitos anos essa realidade se perpetuou.

sumário 626
VII Seminário Vozes da Educação

Essa inserção tardia criou um abismo entre as classes e foi um dos pontos determinantes
para que essa parcela da população não conseguisse alcançar níveis de escolaridade
mais avançados, por muitos anos em nossa sociedade.
Enquanto a educação não se tornou obrigatória e gratuita e um direito subjetivo
para todo o ensino fundamental e médio a maior parte da população vindas dessas
camadas foi deixada a margem e na maior parte das vezes sem conseguir alcançar
minimamente uma instrução adequada.

A busca pelo direito a educação democrática


De acordo com Almeida e Sanchez a situação do negro sobre as questões
educacionais, já era discutida por grupos de mobilização dos negros possivelmente
desde 1920, havia alguns grupos que se reuniam em ginásios, grêmios e clubes na
tentativa de organizar uma maneira de educar a população negra.

No início da fase republicana a instrução de negros foi realizada, sobretudo,


por meio das escolas criadas pelas próprias associações negras. Aulas
públicas oferecidas por instituições religiosas e pelos asilos de órfãos, escolas
particulares e escolas de quilombos também contribuíram para esse acesso
aos conteúdos escolares. Houve, ainda, a frequência de alunos negros à rede
pública de ensino(...) (ALMEIDA & SANCHES, 2016 p. 240).

Os autores ainda relatam que em alguns momentos criaram-se escolas


filantrópicas que acabavam não conseguindo se manter por muito tempo pela escassez
de recursos, mas ressurgiam tempos depois, o que foi promovendo uma educação
repartida para a população negra. Havia ainda, a tentativa de incentivar os pais das
crianças negras a levá-las a escola e da importância de educá-las, mas em muitos casos
não havia sucesso nessa iniciativa. Percebemos como era difícil, por muitas razões, a
inserção do negro na vida escolar, e o quanto muitos lutaram para que esse direito se
tornasse possível. Os movimentos buscavam a inserção do negro na sociedade e foram
de muitas maneiras tentando fazer com que essa educação que não era garantida pelo
estado fosse oferecida por outros meios.
Outro problema que podemos perceber se dá em relação a grande morosidade
nas políticas educacionais e no avanço de uma educação própria e não uma reprodução
das escolas da Europa. Anísio Teixeira (1969) relata como a escola brasileira demorou
para se materializar. Durante um longo período (por todo o Império após a
Independência) não existiu a necessidade de se educar um povo.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O que é fato é que chegamos à independência sem imprensa e sem escolas


superiores, com a maior parte da nossa elite formada na Europa, o que
continuou a acontecer durante boa parte do Império. (...) Por outro lado, o
desenvolvimento do País era tão lento e suas condições até a abolição, de
certo modo tão estáveis, que a nação não se ressentiu demasiadamente da
escassez de sua armadura educacional (TEIXEIRA, 1969, p. 49).

A educação para o povo não era uma preocupação naquele momento, manter o
sistema escravista e o das classes sociais era oportuno, como as elites tinham sua
educação garantida fossem nas casas com preceptoras ou fora do país, não se
estabeleceu um sistema de ensino para todos. Com o avanço da tecnologia e a
modernização do trabalho, passou a existir a necessidade de se educar a população para
que essa pudesse ser mão de obra trabalhadora, visto que até o momento a escola era
para as elites e só formava intelectuais sem a preocupação de formar os cidadãos para
atuarem na sociedade e nem para formar pessoas aptas para o trabalho.
Anísio faz uma crítica bastante significativa para mostrar que a escola que o
Brasil adotou de uma maneira geral, foi uma incorporação que ele chama de
transplantação das escolas da Europa. A crítica vem da maneira como cada sociedade
tem suas particularidades, e precisa pensar sobre suas condições para a elaboração do
seu próprio sistema. O que cabe para um povo e uma cultura não irá caber para outra.
Burke (2007) nos faz refletir sobre a “tradições fora do lugar”, analisando que trazer
uma prática cultural descontextualizada provoca esse lugar incompleto, deficiente, que
não consegue se estabelecer e nem se adaptar, existindo uma diferença entre o que se
transmite e o que se recebe.
O apelo pelas mudanças na educação que se tornavam urgentes foi feita pelos
Manifestos. A necessidade de ampliar a quantidade de vagas, de desvincular a educação
da religião, de uma formação integral e que formasse cidadãos e não uma elite foi
fortemente defendida nos dois documentos assinados por intelectuais da época.
Florestan Fernandes foi um desses intelectuais que participou do Manifesto Mais Uma
Vez Convocados, que após 26 anos do primeiro ainda pleiteava as mesmas questões
acerca da qualidade do ensino no país.
Florestan Fernandes (SANTOS, 2005) faz críticas de como se deu e continuava
estabilizada a Educação no Brasil. Ele demonstrava uma grande preocupação em pensar
um sistema público de ensino que se faça realmente democrático, com uso de verbas
públicas e com uma administração adequada. Ele entendia que o povo não precisa

sumário 628
VII Seminário Vozes da Educação

apenas de alimentação e moradia, ele precisa de cultura e do direito a uma participação


social. Uma das denúncias de Florestan é a de que o sistema educacional público não
conseguia avançar e se democratizar por pressões da burguesia e da igreja, que
reivindicavam dinheiro público para escolas privadas e eram contra a laicidade no
ensino. Juntando-se a isso o fato de o Conselho Nacional de Educação ser constituído
em grande parte por pessoas ligadas as instituições privadas de ensino e aliadas a igreja,
o que dificultava o avanço nas questões que beneficiariam a população de maneira
geral.
Florestan defendia ainda que os cientistas sociais devem se unir aos professores
para pensar formas de democratizar a educação, embora ele saiba que esse fato
isoladamente não poderia mudar a realidade, mas sim proporcionar uma pequena
mudança nas relações sociais.
Para pensadores como Anisio Teixeira e Florestan Fernandes, a questão não era
apenas ampliar o número de vagas e sim pensar uma educação que formasse pessoas
aptas a atuar na sociedade, conscientes de seu papel social e preparadas para o trabalho
e para a vida.
Era nesse contexto de uma estrutura educacional muito defasada, que não
contemplava a todos que a população negra começou a ter acesso ao ensino,
aproximadamente na década de 1950 é que o negro começa a ter o acesso à escola.
Porém uma escola de horários reduzidos, com poucas vagas e que vinha sofrendo uma
desvalorização dos profissionais.
Essa escola que começou a permitir o ingresso da população negra, não permitia
sua permanência, fosse pela discriminação social e racial, fosse pela falta de condições
financeiras para compra de material e de roupa adequada, fosse pela necessidade de
trabalhar que essas crianças e jovens tinham para auxiliar suas famílias ou pela ausência
dos pais dessas crianças visto que esses trabalhavam e não podiam estar presentes
sempre que solicitados. Como podemos ver neste trecho:

Essas ausências de crianças e famílias, bem como o fato de os alunos não


realizarem em seus lares as tarefas escolares solicitadas pelos professores, e
até mesmo o tipo de roupa usado pelas crianças, eram frequentemente
interpretados por professores e inspetores como um desinteresse de pais e
responsáveis pela escolarização de seus filhos (ALMEIDA & SANCHEZ,
2016 p. 236).

sumário 629
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

As dificuldades e enfrentamentos que essas crianças e suas famílias sofriam,


acabavam por expulsá-los da escola, havia uma evasão, que em muitos casos, ocorria
mais pela impossibilidade de permanecer em um lugar com regras sociais que eles não
conseguiam acompanhar e a falta de compreensão por parte das instituições que tinham
um olhar eurocêntrico sobre as relações escolares.
Essa instituição que se propôs a formar o cidadão comum, acabou sendo o
espaço escolar de maioria negra. Pessoas que tiveram em seu histórico familiar e na
própria história da educação brasileira estado sempre a margem. Podemos pensar no
conceito de marginal a partir de Saviani que ao tentar determinar as teorias
educacionais, seus conceitos e temporalidades traz os conceitos de marginais para cada
uma delas. Segundo Saviani:

A marginalidade é vista como um problema social e a educação, que dispõe


de autonomia em relação à sociedade, estaria, por esta razão, capacitada a
intervir eficazmente na sociedade, transformando-a, tornando-a melhor,
corrigindo as injustiças; em suma, promovendo a equalização social (1999,
p.27).

Portanto a escola seria o lugar de reparação das injustiças sociais e de correção


dos problemas decorrentes de um histórico de falhas e negligências por parte das
políticas públicas. A escola deixou a população negra e pobre de lado na maior parte
dessa construção e quando conseguiram o seu acesso a instrução encontraram um
sistema que não se consolidou. Além disso essa escola por muito tempo não se
preocupou com a história desse povo, sua ascendência e suas culturas. Desde a estrutura
até a maneira como a história do Brasil era contada mostrava um lugar que não era do
negro, que não os mostrava como parte influente e atuante de um povo. Eles chegaram
em um lugar ao qual nunca pertenceram e continuaram invisibilizados pela estrutura
que lá encontraram. A população pobre e negra continuou com seu direito negado,
tendo apenas uma matrícula nessa escola sem dela fazer parte. O conceito de violência
simbólica que também é trazido por Saviani (1999) nos fala sobre essa dominação
cultural das classes populares através da força econômica (violência material), o que
ocorre não só na escola, mas também através das mídias, propagandas e atividades
artísticas e religiosas.
Com esse panorama podemos perceber a grande dificuldade que a população
negra enfrentou para que tivesse seu direito a educação garantido. Vimos que durante o
estabelecimento da instituição escolar procurou-se de várias maneiras impedir, dificultar

sumário 630
VII Seminário Vozes da Educação

ou inviabilizar o acesso dessas pessoas a escola. Percebemos também o grande esforço e


empenho do movimento negro em defender o direito a escolaridade dos seus.
A escola que eles tiveram e tem acesso ainda hoje é uma escola em crise. Uma
escola que como pontua Faria Filho é uma escola “dos outros e não dos nossos”, ele
denuncia que:

Em primeiro lugar o impacto é grande porque é a classe média que poderia,


com mais propriedade, discutir as características de uma educação de
qualidade, pois é ela que detém os códigos escolares necessários para tal. Em
segundo lugar, ao abandonar a escola pública, a classe média – ou seja, os
profissionais liberais, os acadêmicos, e profissionais das mídias - passou a
discutir a qualidade da educação dos FILHOS DOS OUTROS, pois os seus
filhos estavam (e estão) na escola privada (2012, p. 107).

Faria Filho traz para pensarmos que ao sair da escola pública a classe média
deixou de defender sua qualidade, já que a defesa da qualidade para o outro não é a
mesma que para os seus. Levanta ainda que essa saída dos filhos da classe média evita
que estes tenham contato com os filhos da classe baixa, agora pertencentes a escola
pública. A instituição escolar foi, e ainda vem sendo em muitos casos, a reprodução da
hierarquia e a reprodutora das diferenças entre as classes sociais.
A partir desse contexto percebemos a importância das ações afirmativas e da
legislação atual sobre a questão do negro na sociedade. A importância da lei 10.639/03
para que essas pessoas se sintam pertencentes a essa escola, para que entendam sua
chegada e seu caminho na história de nosso país até aqui. Para que compreendam sua
trajetória e possam mudar seu futuro.

A formação de professores no município de Itaboraí: alguns caminhos

A partir de 2009,a Coordenação de Educação Infantil do município de Itaboraí


passou a oferecer encontros bimestrais para todas as professoras dessa etapa de ensino,
as docentes eram liberadas do trabalho nesse dia, os encontros ocorriam em todos os
dias de uma semana a cada bimestre. Após o Simpósio de Educação de 2012 em que
houve um Grupo de Trabalho (GT) sobre formação e prática curricular, viu-se a
necessidade de se reformular os referenciais teóricos para a Educação Infantil, o que se
iniciou no segundo semestre do mesmo ano e se consolidou no ano seguinte havendo a
participação de todas as escolas da rede que opinaram e contribuíram para a construção
desse documento. (CELESTINO & SOUSA, 2019)

sumário 631
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O referencial trouxe um novo olhar sobre a Educação Infantil do município,


trazendo uma perspectiva de experiências e brincadeiras para as relações de
ensinoaprendizado com as crianças. Deixou de ser pautado em aprendizado por idade e
passou a ser por eixos e expectativas podendo a criança experimentar diversas
possibilidades, independente da etapa de ensino em que se encontra.
Em 2013 iniciou-se a implantação do 1/3 de planejamento, de acordo com a Lei
11.738/08 parágrafo 4º em que se determina “na composição da jornada de trabalho,
observar-se-á o limite máximo de 2/3 (dois terços) da carga horária para o desempenho
das atividades de interação com os educandos.”. Para que essa lei pudesse ser efetivada
foram contratados professores substitutos de áreas diversificadas que assumiam as
turmas nos horários em que esses professores se ausentavam. As formações continuadas
bimestrais, durante o ano letivo, eram oferecidas durante toda uma semana para que o
professor pudesse participar desse momento, sem prejudicar o funcionamento da escola.
Entre os anos de 2015 e 2016, esse funcionamento começou a ser prejudicado
pela falta de professores contratados, que nesse momento era realizado por apenas um
professor substituto e não mais contemplando diversas áreas. E em 2017 o 1/3 de
planejamento acabou se extinguindo tendo vista que não havia aporte legal e nem
organizacional do município para a continuidade. Atualmente essas formações voltaram
a ser esporádicas como antes de 2009, e vem tentando se firmar.
Como podemos perceber o município de Itaboraí teve avanços e retrocessos com
relação a formação continuada de seus profissionais. Por alguns anos esses profissionais
tiveram seu direito garantido e hoje torna-se muito difícil o retorno dessas atividades
pela falta de infraestrutura e verba para que as mesmas ocorram. A rede já possuía um
histórico de formação de seus profissionais e atualmente busca estratégias, muitas vezes
precárias, de dar continuidade a essa prática.

A experiência do CEMEI
Em meio a essa realidade de perdas e tentativa de reconstrução que ocorre a
experiência vivida por um Centro Municipal de Educação Infantil. Apesar dessa
preocupação, o que percebemos, é que algumas questões ainda não conseguiram se
ajustar na formação dos profissionais de educação. Temas atuais e que foram
incorporados mais recentemente ao currículo escolar ainda encontram entraves na sua
implementação.

sumário 632
VII Seminário Vozes da Educação

Trabalho há 12 anos no município de Itaboraí, lotada como professora já


vivenciei experiências em três unidades de Educação Infantil e participei desses
movimentos de políticas de formação bem de perto. No ano de 2017 fui convidada a
coordenar pedagogicamente a escola em que estava lotada, CEMEI Visconde de
Itaboraí. No ano seguinte, nas primeiras semanas de aula em que temos meio período
para adaptação dos alunos e a outra metade para estudo e construção do projeto anual,
fomos percebendo, professoras e equipe diretiva, algumas questões relativas a aceitação
das crianças como seus nomes, seus cabelos e sua cor. Juntando-se ao que ocorria com
os pais no momento da matrícula, em que ficavam muito tensos e indecisos quanto a cor
de seus filhos, pensamos na necessidade em falar sobre a construção da identidade das
crianças.
Com essa constatação montamos em 2018 o projeto pedagógico anual da escola.
Nos primeiros encontros do ano letivo para pensarmos juntas a temática de trabalho
daquele ano, todas essas questões foram problematizadas no grupo de professoras,
percebemos a relevância de falarmos sobre as raízes culturais brasileiras, enfatizando a
cultura indígena e africana. Nesse momento iniciamos uma busca pelos materiais que
poderiam auxiliar nesse movimento e nesse aprendizado, para realizarmos esse trabalho
com as crianças. E constatamos que muito pouco sabíamos e tínhamos como contribuir
para que essa temática fosse abordada com os pequenos. As conversas com as
professoras nas reuniões de planejamento, mostravam da dificuldade de todo o grupo
em explorar uma cultura que nós não tivemos acesso enquanto estudantes do curso
normal ou da pedagogia.
Podemos constatar na lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003:

Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares,


torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.§ 1o O
conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo
da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes
à História do Brasil.§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-
Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em
especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira
(BRASIL, 2003).

Apesar disso, o que percebemos é que as professoras mais novas não tiveram
acesso a esse direito em sua formação inicial e as professoras que atuavam há mais
tempo não conseguiram ter em sua formação continuada uma preocupação para o

sumário 633
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

aprendizado da cultura afro-brasileira e africana. Com esse olhar que comecei a pensar a
formação desses professores de Educação Infantil. Da importância que tem a formação
para que as práticas afirmativas na escola sejam mais proveitosas, para que os debates e
o conhecimento circulem de forma mais eficaz.
Iniciamos então uma busca conjunta por essa formação que não tivemos acesso,
e procuramos dentro de nossas possibilidades fazer das duas horas semanais que
dispúnhamos para o planejamento coletivo, um lugar de troca de saberes e de
experiência, e um momento de estudo coletivo. Como nos diz Nóvoa:

A colegialidade docente, isto é, a possibilidade de os professores atuarem


como um colégio (um coletivo), tem uma referência organizacional (o projeto
educativo da escola) e uma referência pedagógica (a construção de novos
ambientes educativos), mas tem ainda uma terceira referência: o reforço de
uma profissionalidade docente baseada na colaboração e na cooperação,
aquilo que os anglo-saxões designam literalmente por “comunidades de
prática”, mas cuja melhor tradução é “comunidades de trabalho” ou
“comunidades profissionais” (2019, p.205).

Nóvoa traz para pensarmos a possibilidade de formarmos grupos de estudo e de


pesquisa entre pares. Fazer com que os professores formem uma rede de auxílio e de
busca pelo saber coletivo, pois dessa maneira temos um conjunto que se forma e que se
torna mais forte em busca de uma identidade educativa. Nóvoa (2017) também nos faz
pensar sobre a importância da diversidade e da pluralidade no ambiente educacional,
que o professor deve se preocupar com a sociedade em que está inserido, e este lugar
em que o professor se encontra, precisa contribuir para sua atuação. Além do fato de
universidades e escolas cooperarem umas com as outras com seus saberes específicos,
para que juntas possam construir um conhecimento pautado nas questões que surgem na
prática e atividades que tenham respaldo teórico para sua construção e implantação.
O que vivenciamos naquele momento foi uma tentativa de sanar as falhas de
nossa formação, que não conseguiram nos preparar para falar de parte da nossa cultura
que por muito tempo ficou silenciada. Tivemos nesse momento, a oportunidade de
sermos professoras pesquisadoras e de tratar a história africana e afro-brasileira com
importância e representatividade para as crianças. Conseguimos realizar naquele ano um
trabalho que privilegiou diferentes lugares e culturas, que possibilitou para crianças,
pais e professoras uma nova perspectiva sobre os povos que nos formaram.
A importância desse lugar de pesquisa e aprendizado que pode ser criado nesse
entre-lugar (Nóvoa, 2017) é o que pode fazer com que o professor tenha uma formação

sumário 634
VII Seminário Vozes da Educação

mais completa e inserida no seu contexto social. Florestan Fernandes (2010) nos aponta
o quanto o professor não pode estar imune quanto ao que ocorre na comunidade em que
atua e nem deve ser neutro quanto as questões sociais, visto que essas também o
formam e não podem se dissociar. Educar requer consciência crítica de seu papel e das
mudanças que podemos provocar.

Para refletirmos
Desde a década de 1990 temos visto ganhando mais força alguns movimentos de
apoio a educação escolar do negro, a criação de pré-vestibulares para negros e pobres
para que esses tenham acesso à universidade vem surgindo em muitos lugares. A
política de cotas que veio como um meio paliativo e transitório, mas que permanece
devido as condições desfavoráveis do ensino fundamental e médio, já mudou muito o
acesso da população negra as instituições de ensino superior. Os diversos coletivos que
se espalham com diferentes projetos, mas com um objetivo em comum, que é o de
fortalecer a população negra e pobre para que esses consigam ter acesso a uma vida
digna em uma sociedade democrática em que eles façam parte.
A história da educação nos mostra o longo caminho de hierarquização que a
escola possui e que dificultou e/ou inviabilizou a permanência do negro nessa
instituição. As práticas pautadas na cultura dominante e sem a perspectiva de incluir o
diferente atrasou esse processo de democratização.
Pensar nas políticas para que as pessoas negras tenham acesso e consigam
permanecer na escola pública ainda é um desafio. Mas temos que pensar que algumas
práticas já foram iniciadas e que precisamos estar atentos para que as mudanças e o
direito a educação sejam mantidos.
É preciso estar atento a representatividade e a realização de um trabalho
pedagógico que consiga inserir as pessoas negras e das camadas populares no espaço
escolar, entendendo esse espaço como dele e para ele. Ações nesse sentido precisam
crescer e ter visibilidade.
A escola pública atual para se tornar verdadeiramente democrática e inclusiva,
precisa pensar em práticas pedagógicas que tragam a cultura de seu povo para o debate
e aprendizado, precisa pensar em diversos olhares sobre as histórias que nos contam e a
história real do povo brasileiro e da formação desse país. E principalmente trazer um
novo olhar sobre a situação que o negro viveu.

sumário 635
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Ainda é necessário que muitas mudanças aconteçam para que possamos alcançar
a equiparação do acesso e a democratização do ensino e que a educação seja realmente
um direito de todos. Mas se conseguirmos continuar com os passos que já foram dados
e buscar novos caminhos para que essa democratização ocorra, poderemos enfim ter
uma sociedade cidadã e democrática.

Referências
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formal no Brasil. Revista Brasileira de Educação, São Paulo: USP, v.10, n. 2, p. 234-
246, 2016.

BURKE, P. Cultura, educação, tradição. In: GATTI JUNIOR, D.; PINTASSILGO, J.


(orgs.) Percursos e desafios da pesquisa e do ensino de História da Educação.
Uberlândia: EDFU, 2007. p. 13-22.

CELESTINO, J. M. C.; SOUSA, R. D. Espaços formativos potencializadores:


aprendizados dentro e fora do espaço escolar. In: X Seminário As Redes Educativas e
as Tecnologias: Liberdade acadêmica, produção e circulação de conhecimentos.
2019 Rio de Janeiro. Anais eletrônicos ISBN: 978-85-8427-046-0. Rio de Janeiro,
UERJ, 2019. Disponível em: <http://www.seminarioredes.com.br/xredes/index.php#>.
Acesso em 20 out. 2019.

CURY, C. R. J. Educação e Constituições nacionais. In: CURY, C. R. J. Educação e


direito à educação no Brasil: um histórico pelas Constituições. Belo Horizonte:
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FARIA FILHO, L. Educação pública: a invenção do presente. Belo Horizonte:


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FERNADES, F. A formação política e o trabalho do professor. In: OLIVEIRA, M. M.


Florestan Fernandes. Recife. Editora Massangana. 2010. p. 119 – 140.
HECKERT, A. L. C. Florestan Fernandes e a década de 1980. “Tudo na vida é sério,
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NÓVOA, A. Entre a formação e a profissão: ensaio sobre o modo como nos tornamos
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______ Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente. Cadernos de
Pesquisa. São Paulo, v. 47, n. 166, p. 1106-1133, out/dez, 2017.

SANTOS, M. A. Educação e democracia no pensamento de Florestan Fernandes na


década de 1960. In: FÁVERO, O. (org.) Democracia e educação em Florestan
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SAVIANI, D. Escola e democracia. Polêmicas do nosso tempo. Campinas – SP: Ed.


Autores Associados, 1999.

sumário 636
VII Seminário Vozes da Educação

TEIXEIRA, A. A crise Educacional Brasileira. In: ______. Educação no Brasil. São


Paulo: Editora Cia Nacional, 1969.

XAVIER. L. N. Manifestos, cartas, educação e democracia. In: GONDRA. J. G.;


MAGALDI. A. M. A reorganização do campo educacional no Brasil:
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113-145.

sumário 637
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

NARRATIVAS (AUTO)BIOGRÁFICAS
EXPERIÊNCIAS DE VIDA E FORMAÇÃO

Roberta Dias de Sousa


UERJ/FFP
betadias3112@gmail.com

Jane Marchon Cordeiro Celestino


SEME/ Itaboraí
UERJ/FFP
janemarchon@hotmail.com

Prometo
Aprender a costurar
só pra poder alinhavar asas e voar
pra bem longe
sempre que der na telha.
Alessandra Roscoe

Histórias atravessadas por uma cidade


A escrita deste texto a quatro mãos, começa muito antes dele se constituir.
Professoras, pedagogas, mães, pesquisadoras, nas nossas promessas, nos nossos
limiares, nos encontros de vida e formação ele foi sendo alinhavado. Profissionalmente
nossa cumplicidade nasceu nos miúdos do cotidiano escolar, na cidade de Itaboraí, RJ,
já nos ensaios de formar e formar-se, onde pensávamos a subversão de práticas que não
viessem de encontro com as crianças as quais trabalhávamos na Educação Infantil. Nas
conversas, nos registros, nos diálogos com outras professoras, percebíamos que não
seríamos sujeitos que abrem e fecham portas, que éramos da invencionática escrita por
Manoel de Barros. Assim, tramávamos pequenas revoluções diárias (FOUCAULT,
2014) e compreendíamos o que (NÓVOA, 2009) defende como a necessidade de uma
formação de professores dentro da profissão.
Inúmeros foram os contextos que nos aproximaram a partir do primeiro
encontro. Trabalhando na mesma rede, nossas histórias se entrecruzaram a todo o tempo
como professoras, coordenadora e assessora pedagógica, formadoras locais. Atualmente

sumário 638
VII Seminário Vozes da Educação

trabalhamos em redes de ensino distintas, costuramos asas para voar bem longe e nos
(re)encontrarmos pelos caminhos de pensar a formação de professores no movimento da
pesquisaformação.
No município de Itaboraí, não diferente do contexto nacional a formação
continuada das/dos professoras/res é desafio constante para o grupo de profissionais que
militam por esta e pelas infâncias com as quais constroem suas práticas. Atualmente
vivem um momento de buscas e reconquista de alguns direitos que foram perdidos nos
últimos anos, após uma sequência de políticas que vinham fortalecendo garantia de
alguns direitos ocorrendo desde 2009 e se consolidaram em 2013, no que tange ao
direito ao estudo e planejamento, a partir de 2015 as políticas não mais avançaram.
O município localizado a 40 km da capital Rio de Janeiro, que traz ainda muitas
características de uma cidade rural e vinha se estruturando para o recebimento do
Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro (COMPERJ), porém como a
instalação da mesma não se efetivou e as obras ficaram interrompidas a cidade começou
a sofrer um declínio devido ao grande números de pessoas que migraram em busca de
emprego e dos investimentos que ficaram perdidos como prédios comerciais e
condomínios, já que era previsto um número significativo de pessoas morando e
trabalhando na cidade.
Nesse contexto de desestruturação, percebemos fortemente o quanto os
encontros de formação continuada instituídas pelo município necessitavam ser
retomadas. Pois mesmo afirmando como BRAGANÇA: “que potencialmente todos os
espaços embora entendendo que a formação acontece também em outros espaços, e
tempos da vida são espaços e tempos de formação, de transformação humana” 2018,
p,158). Esta era uma lacuna a ser preenchida.

É preciso (re)existir
A formação de professores não foi uma preocupação imediata dos governos
desde o início da escolarização no Brasil. A obrigatoriedade de formação como
preocupação do governo somente apareceu na constituição de 1934, sendo pensada de
forma prescritiva sanar os grandes índices de analfabetismo existentes na época e a
partir desse momento é que se começa a pensar políticas de formação inicial.
A formação continuada das professoras da Educação Infantil é uma preocupação
mais recente e no município de Itaboraí vinha ocorrendo de forma sistemática entre os
anos de 2009 e 2014, como iniciativa da coordenação de Educação Infantil

sumário 639
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

(CELESTINO E SOUSA, 2018 p.3) trazendo novos olhares para a formação e práticas
das professoras de Educação Infantil, que tem seus cargos garantidos em concurso
públicos desde 2008, porém, a rede de ensino que tem crescido em seus atendimentos às
crianças, principalmente na faixa etária de 4 a 6 anos, decorrente do cumprimento da
Meta 1 do Plano Nacional de Educação (PNE, 2014), hoje ainda complementa seu
quadro de professoras(es) com contratos temporários através de processos seletivos,
fortalecendo ainda mais a necessidade dos encontros de formação continuada numa
perspectiva coletiva.
Mesmo com muitas tensões, as formações continuadas num movimento de
resistência coletiva vem acontecendo, burlando entraves e se constituindo como um
movimento formativo das professoras da Educação Infantil da rede pública municipal
de ensino de Itaboraí. Neste contexto, entendemos a força que tem esse grupo de
professoras e acreditamos SER o “passarinho” que nos apresenta Mário Quintana nos
versos do seu Poeminho do contra:

Todos esses daí que aí estão


atravancando meu
caminho
Eles passarão...
Eu passarinho!

Os movimentos acontecem: nos/as próprios/as Centros Municipais de Educação


Infantil (CEMEI) e escolas de ensino fundamental com espaços ou turmas de Educação
Infantil, com rodas de conversa, trocas de experiências entre as professoras/es das
unidades escolares, saídas formativas em espaços públicos, além das formações
oferecidas as sextas feira, dentro do horário de trabalho, utilizando de diversas
estratégias para que estes encontros sejam garantidos e reúna as professoras a seus
pares.
A partir as experiências como professoras, coordenadora pedagógica, assessora
pedagógica atuantes em CEMEI e na Coordenação de Educação Infantil da Secretaria
Municipal de Educação (SEME), apresentaremos a seguir os fios que originaram a
pensar, organizar e propor o ciclo de formação continuada com professoras/es da
Educação Infantil realizada no presente ano.
Os movimentos formativos realizados ao longo dos anos e que se reafirmam
durante as apresentações de trabalhos durante a Jornada Pedagógica da Educação
Infantil (JOPEI), que este ano terá sua 7ª edição, as professoras vêm narrando de suas

sumário 640
VII Seminário Vozes da Educação

práticas e de seus fazeres a alguns anos o que tem nos feito também refletir e repensar
os encontros de formação sempre a partir do viés não prescritivo, o que é um embate
frente as novas políticas que se apontam para a Educação Infantil no Brasil de hoje. Nós
diante desses, fortalecemo-nos na palavra de Paulo Freire ao dizer que: “A formação do
educador deve instrumentalizá-lo para que ele crie e recrie a sua prática através da
reflexão sobre o seu cotidiano (1991, p.80)
No ano de 2017, em parceria com a UERJ/ FFP realizamos o curso de extensão
“Das artes de fazer, as artes de dizer” (CERTEAU, 2014) também nos aproximando das
narrativas (auto)biográficas. O movimento gerado a partir da pesquisa de Mestrado
(UERJ/FFP) da professora, agora já Mestra Thais Motta e está aguardando a liberação
do processo para tiragem de 200 exemplares do livro a ser lançado com as narrativas
escolhidas pelas professoras ao longo do curso.
Seguimos... e no início do ano, enviamos à todos os/as CEMEI/escolas um
formulário de pesquisa sobre que tipo de encontro formativo era a preferência das/os
professoras/es e o resultado apontou para a formação em regime de curso com carga
horária acima de 60h. Assim, fomos pensando o roteiro após as inscrições prévias das
professoras pelo aplicativos que facilitou com que a notícia se espalhasse aos quatro
cantos. Em nossas pesquisas encontramos no livro Receita para bem crescer (ROSCOE,
2016) um trecho que daria nome ao Ciclo92 de formação continuada com professoras
da Educação Infantil: Acordando nos graúdos a intensidade dos miúdos.
O livro traz um texto profundo sobre algumas promessas que devemos fazer na
infância para bem crescer e porque não dizer bem viver, crescer, viver, ensinar,
aprender, experimentar, experienciar...Prometemos e muitas vezes não cumprimos, nos
distanciamos das crianças que fomos rapidamente em meio a vida atribulada dos
adultos, mas nesses (re)encontros com as crianças que fomos e capazes nos levar a:

“(...) parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais
devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir
mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o
juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço” (LARROSA 2002, p.24).

92
Chamamos de ciclo de formação por entendermos que este não se findará. É parte do percurso
formativo.

sumário 641
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Assim, conseguimos junto ao CIEP 130 -Elias de Miranda Saraiva a liberação da


biblioteca para os encontros já que as sextas feiras esta não funcionava para
atendimento aos alunos. Era o espaço perfeito! Fácil acesso, amplo e iluminado para
receber os grupos, com banheiro, cercado de sol ou chuva, e a natureza que se
confundia com a via principal
da cidade. Assim, fomos costurando cada encontro pensando em cada detalhe.
Era preciso uma lista para não esquecer! Quem disse? Não esquecer de checar a lista no
dia anterior:

LISTA PARA A FORMAÇÃO DE SEXTA


✓ Colocar as caixas nos carros (chitas, potes de materiais papeis,
tintas, brinquedos...
✓ Deixar o pó de café (às vezes fazer em casa casa separar os
materiais; notebook, Datashow, fios, caixa de som;
✓ Declarações, lista de presença.

Nas manhãs de sexta feira, chegávamos em nossos carros e arrumávamos tudo


para receber as professoras e só saíamos ao findar o dia. Recebíamos dois grupos por
dia. No primeiro encontro os abraços de quem já nos conhecia e sorrisos tensos de quem
está chegando e não sabe o que está por vir. Tudo pronto, era hora de começar.
Traçamos o roteiro dos encontros e fizemos o convite a viver a formação não como
aprendizagem situada no tempo e no espaço, mas como ação vital de construção de si
próprio (MOITA, 1992. propostas como movimento reflexivo sobre o ser professora da
Educação Infantil, suas práticas com as crianças numa formação em partilhada.

Espaço preparado para receber as professoras

Fonte: arquivo pessoal

sumário 642
VII Seminário Vozes da Educação

Com propostas em que pudessem acionar as memórias de infância, eram


tecidas a partir dessas, narrativas de si num movimento reflexivo que ao narrar a vida
narrassem também da prática, em um movimento complexo de interlocução que ao
mesmo tempo era individual, era também coletivo o que PÉREZ (2010), chama do
ponto de vista da pesquisa de autoheteroformação.

Professoras narradoras de suas práticas

Fonte: arquivo pessoal

Algumas reflexões provisórias


As diferentes linguagens comunicativas recheavam de sentido o caráter
simbólico dado a cada uma. Também abusávamos dos diferentes tipos de materiais,
suportes (bandejas de isopor e papelão, tecidos, papel pardo, plástico, papelão, caixas,
madeiras, elementos da natureza) e dos riscantes (canetas, pilot, tintas artificiais e
produzidas nos encontros, carvão, giz, massinha, pinga gotas, escova de dentes, palha
de aço, espuma...)
Esses elementos possibilitaram maior experiência ao reconectarem-se com as
memórias de infância, percebíamos que tais propostas revelavam para as professoras
muito de si, ao refletirem buscavam na vida formas de viver a prática “eu me senti livre,
uma sensação gostosa de quando eu era criança”. às vezes a gente esquece das coisas
e esquecemos que as crianças não são adultas.” Maria trouxe essa reflexão em uma de
suas narrativas.

sumário 643
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A partir das narrativas (auto)biográficas as professoras percebiam que suas


histórias se entrelaçavam com as das outras. “Igualzinha a mim, eu estou me vendo na
sua história”. Era possível ver que a escrita começava a fluir quando se desprendiam do
certo ou errado, e que escrever é perigoso (BRAGANÇA e MORAIS, 2017). Sim é
perigos por ser revelador, mas também traz a tona a palavra, palavra da professora que
que é potente em sua essência. BENJAMIM, afirma que a narrativa: “não está
interessada em transmitir o puro em-si da coisa narrada como uma informação ou um
relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele.
Assim, imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do
vaso” (1994, p. 205).
A proposta do Ciclo de formação continuada também se fez como o nosso
processo formativo investigativo, que tem buscado formas outras de se constituir como
pessoa, professoras, pesquisadora. Fosse de encontro a outras vozes que ousaram a
tomar a palavra. Que possamos ter a intensidade dos miúdos para acordar em nós
graúdos a força da palavra refletida na riqueza de nossas escritas escrita (auto)
biográficas.

Referências
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contam: narrativas orais e escritas como dispositivo de formação docente. Parnaíba,
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Acesso em 20 out. 2019.

sumário 645
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

DEZ ANOS DO PROJETO ESTUDO DE EGRESSOS DA FACULDADE DE


FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA UERJ: ALGUMAS QUESTÕES SOBRE
A FORMAÇÃO POLÍTICA NA FORMAÇÃO DOCENTE

Maria Tereza Goudard Tavares


UERJ FFP
mtgtavares@yahoo.com.br

Os movimentos sociais educam a própria educação


(Miguel Arroyo).

I – Introdução
O presente artigo tem várias intencionalidades, talvez a principal delas seja fazer
uma singela homenagem ao grupo e ao trabalho de sísifo que vimos fazendo nos
últimos dez (10) anos num projeto, a meu ver estratégico, que é o Estudo de Egressos da
FFP. Outra intenção é colocar em debate e fazer circular questões resultantes da
pesquisa em desenvolvimento “A Faculdade de Formação de Professores em números:
um estudo sobre estudantes egressos das Licenciaturas no período de 1998 – 2008”,
coordenado pela Professora Drª. Maria Tereza Goudard Tavares, pela Pedagoga e
Coordenadora de Graduação Gláucia Braga Ladeira Fernandes e pelo Graduado em
Matemática e Bolsista Mariel Costa Moderno. Assim, o artigo em tela intenciona
apresentar alguns movimentos da pesquisa que está sendo desenvolvida com um grupo
de estudantes egressos das licenciaturas da FFP, especificamente do curso de Geografia,
com inserção profissional nas redes públicas de ensino do Leste Fluminense.
O projeto “A FFP em números: um estudo sobre estudantes egressos das
Licenciaturas no período de 1998 – 2008” tem como objetivo institucional, produzir um
amplo e sistemático levantamento do número de estudantes egressos formado pela
unidade nos últimos 10 (dez) anos, investigando principalmente, a situação ocupacional
destes egressos nos municípios que compõem o Leste Fluminense, pesquisando,
principalmente, como vem se dando a sua trajetória profissional no cotidiano das
escolas (ALVES e GARCIA, 2004).

sumário 646
VII Seminário Vozes da Educação

Tal estudo vem possibilitando entre outros objetivos, traçar um mapeamento da


inserção profissional de nossos estudantes egressos, investigando a sua situação
ocupacional, buscando compreender como os processos formativos vêm constituindo as
suas identidades docentes (PERRENOUD, 2002). Neste sentido, o trabalho a ser
apresentado procura discutir aspectos teórico-práticos da profissão professor (NÓVOA,
1995) procurando investigar e compreender processos formativos docentes em relação
com os movimentos sociais a partir da análise das respostas a uma pergunta “Em que
medida a sua formação na FFP propiciou o reconhecimento do papel dos movimentos
sociais na democratização/melhoria da educação brasileira?” Entendemos que a
participação e vinculação de inúmeros egressos em projetos de pesquisa e extensão
vinculados aos movimentos sociais (Negro, MST, meio ambiente, direito à cidade,
movimento sindical, movimento feminista, etc.) pode nos oferecer pistas preciosas
sobre como cada sujeito professor/a constrói o seu ethos profissional e sua identidade
pessoal e profissional no mundo da escola(TAVARES, 2019). Ressaltamos a
importância deste estudo para a Faculdade de Formação de Professores da UERJ, ao
qual tem nos provocado a repensar os processos formativos desenvolvidos em nossas
sete licenciaturas, a saber: Ciências Biológicas, Geografia, História, Letras
(Português/Inglês e Português/Licenciaturas), Pedagogia e Matemática.
Em relação aos objetivos de nosso estudo, vimos intencionando investigar a
partir do material coletado sobre (e com) os estudantes egressos das sete licenciaturas da
FFP, a situação acadêmica e ocupacional destes estudantes, com vistas à construção de
um banco de dados sobre os egressos da FFP nos últimos dez (10) anos.
Do ponto de vista específico de nossa pesquisa, temos intencionado:
• Realizar um levantamento dos egressos da FFP a partir de um cadastro de
estudantes preenchido pela secretaria da Unidade, na data da colação de
grau;
• Encaminhar por meio digital, aos estudantes egressos contatados, os survey
pré-definidos;
• Proceder a leitura dos surveys aplicados, dando tratamento analítico aos
mesmos;
• Elaborar tabelas e gráficos sobre a situação acadêmica e ocupacional dos
estudantes egressos, que responderam ao survey aplicado;
• Elaborar um relatório descritivo minucioso sobre os dados coletados;

sumário 647
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

• Levantar dados para divulgação e avaliação interna dos cursos de


Graduação.
• Realizar reuniões específicas com grupos focais das Licenciaturas em
estudo, avaliando as contribuições e impactos do processo formativo
acadêmico em sua atuação profissional.
• Elaborar materiais de divulgação dos cursos para as escolas de Ensino Médio
e Pré-vestibulares, artigos e textos científicos com vistas à socialização do
material produzido.

II – A construção da tessitura da pesquisa: Pensar processos formativos a


contrapelo
Do ponto de vista teórico-metodológico, trata-se de uma pesquisa de caráter
quantitativo-qualitativo, cujos procedimentos metodológicos envolvem vários
movimentos: reuniões semanais do grupo de pesquisa, dinamizando as orientações
técnicas de coleta e organização de dados do estudo, leitura crítica, tabulação e
problematização dos dados coletados através dos questionários on-line, dividido em
quatro eixos (situação profissional atual; adequação entre a formação oferecida no curso
e às exigências no mercado de trabalho; avaliação do curso e da instituição; demandas
por formação continuada)enviados aos estudantes egressos da FFPe encontros com
grupos focais das Licenciaturas em estudo. Nesses anos de desenvolvimento da
pesquisa, priorizamos também, a organização de um material institucional destinado à
apresentação nas escolas das redes municipais e estaduais de São Gonçalo, visando à
divulgação da FFP como única Universidade Pública no Município.
Tendo em vista os objetivos do nosso artigo no VIII Seminário Vozes da
Educação, procurei focalizar um grupo de 06 (seis) egressos do curso de Geografia da
Faculdade de Formação de Professores da UERJ. O critério de escolha deste grupo focal
ancorou-se na relação vivenciada por esses egressos enquanto estudantes e a sua
participação em projetos de pesquisa e extensão vinculados aos Movimentos Sociais na
Universidade Pública.

III – Dialogando com estudantes egressos do curso de Geografia: por uma


epistemologia da escuta junto aos egressos
Nas últimas décadas, inúmeros têm sido os debates e reflexões no campo da
formação de professores. De maneira sucinta, esses debates ocorridos tanto em nível

sumário 648
VII Seminário Vozes da Educação

local, como também em nível nacional e internacional, vêm expressando uma profunda
e tensa disputa sobre o campo da formação de professores. Inclusive, as próprias
posições de entidades nacionais como a ANFOPE, ANPED, CONED, MEC e as
internacionais como o Banco Mundial, dentre outras, expressam divergências
profundas, tanto em nível político, como epistemológico.
Diante desse cenário, brevemente apresentado por nós, ressaltamos que os
debates, embates acerca da formação de professores nos remetem às relações entre
Educação e Sociedade, sendo configuradas e dando novas configurações aos dilemas
teórico-práticos que atravessam essas relações. Marilena Chauí, em artigo publicado no
início da década de 80, já apontava para a complexidade político-ideológica das
concepções em disputa sobre/no campo da formação de profissionais:

Quem lê o Emílio de Rousseau, o que são as luzes? de Kant, a fenomenologia


do espírito de Hegel, a educação para a liberdade de Dewey, as propostas da
Escola Nova e da Escola Ativa, as de Summer Hill, ou de Freinet, para não
mencionar a República de Platão, os Dos ofícios de Cícero e o De Magistro,
de Santo Agostinho, há de perceber que a ideia de formação é inseparável de
um determinado campo teórico e do contexto histórico no qual é formulada a
proposta pedagógica, de sorte que esta não pode ser compreendida sem a
compreensão do papel atribuído ao pedagogo, com relação à sociedade, à
política e ao saber. Lembradas estas obviedades, a questão colocada — que é
´formar`? — permanece inteiramente aberta à procura de resposta (CHAUÍ,
1980).

Concordando com Marilena Chauí, ressaltamos que este trabalho não tem a
pretensão de responder a esta questão, ou apresentar posições que possam ser
generalizadas e prescritas como alternativas face aos problemas presentes no interior da
formação docente. O que gostaríamos de problematizar, remete ao conjunto de
experiências que vimos desenvolvendo e refletindo cotidianamente, na Faculdade de
Formação de Professores da UERJ, em São Gonçalo, estado do Rio de Janeiro. Este
conjunto de experiências de formação compartilhada, que tem como principal
concepção político-epistemológica, a ideia de formação em rede (ALVES, 1998, 2000 e
2002), longe de querer se afirmar como um modelo a ser reproduzido em outros
contextos formativos, trabalha com a concepção freireana de que toda formação é
projeto e utopia, porque busca, na prática, por intermédio das experiências e no mundo
das contingências, uma formação que possibilite aos professores e professoras
realizarem as diferentes dimensões (profissionais, afetivas, éticas, estéticas, políticas,
epistemológicas, etc.) da docência (Freire, 1997).

sumário 649
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Diante das tensões que essa concepção de formação nos coloca, acreditamos
que, somente fazendo-a circular, isto é, narrando-a, problematizando-a, refletindo-a
coletivamente é que revigoramos questões modais, tais como: O que é formar? Para que
se forma? Onde se forma e como se forma?
Assim, o estudo com os egressos objetiva pesquisar movimentos de seus
processos de formação em uma Faculdade de Formação de Professores. Formação esta,
que vem se balizando pelo desafio freireano do diálogo como possibilidade de
construção conjunta. A formação cidadã que perseguimos (TAVARES, 2019) nutre-se
das aprendizagens do passado, das tensões do presente e dos desafios intuídos no futuro.
Recuperar a partir dessa trajetória (lembramos que toda memória é sempre ficção e
seleção) mais do que um pretexto, torna-se uma experiência potente de revisitar nossas
“políticas de formação”, buscando (re)conhecer a(s) teoria(s) e a(s) prática(s) em
movimento(s) que a(s) atravessa(m).
Destacamos uma parte do estudo (ainda muito preliminar) com alguns egressos
do curso de Geografia, apresentando respostas destes à questão:

“Em que medida a sua formação na FFP propiciou o reconhecimento do


papel dos movimentos sociais na democratização/melhoria da educação
brasileira?”

As respostas dos egressos nos ofereceram dados expressivos para iniciarmos


uma análise compreensiva sobre a relação destes com os movimentos sociais e a
inserção profissional dos mesmos, como podemos destacar nos relatos a seguir:

O curso de geografia tem variadas leituras de mundo e professores


extremamente qualificados. Na humana tínhamos variadas leituras e debates
que nos faziam refletir acerca da realidade social, baseada num mundo onde
o capital controla as relações econômico-sociais através da manutenção do
poder das elites em detrimento a serviços básicos de má qualidade que o
Estado presta, como educação, saúde, transporte etc. Na geografia física
havia professores que nos mostravam os processos provenientes da natureza
e sua transformação do espaço fazendo link com a ação humana e suas
relações no território, as transformações e problemáticas. Hoje dou aula na
rede Municipal do Rio de Janeiro e busco levar aos meus alunos o que posso
dessa visão de mundo, sob uma perspectiva marxista (Léo Eccard).

Posso afirmar que a formação de caráter socialista e a influência do


Marxismo muito presente na formação dos professores, proporciona ao aluno
uma experiência única de diferentes aspectos sociais. O grande diferencial, a
meu ver, da universidade pública é o incentivo a pesquisa, aos trabalhos de
campos e estágios de vivências, durante o curso tive a oportunidade de
integrar-me ao movimento do MST em um estágio de vivência, também
conheci algumas comunidades quilombolas que impactaram de uma forma
positiva a minha formação acadêmica (Tadeu Albuquerque).

sumário 650
VII Seminário Vozes da Educação

Minha formação nesta instituição e toda minha experiência como bolsista


CNPq e Faperj contribuíram para que hoje, Professor da Rede Estadual de
Ensino do RJ de Geografia e Diretor da Rede Municipal do RJ pudesse ter
um novo olhar as inúmeras necessidades e questões vivenciadas pelos meus
alunos. Perceber o meio que eles estão inseridos e as diversas redes sociais
envolvidas facilita o trabalho como Educador e Gestor. Hoje percebo o
quanto foi importante na minha graduação ter tido a oportunidade de
experimentar esses novos olhares (Adriano Machado).

Prezadxs, considero que minha formação na FFP foi fundamental para o tipo
de atuação política que exercito hoje no movimento sindical de professores e
de área (Associação de Geógrafos- AGB) onde milito. Seja pelas
experiências acadêmicas fora da sala de aula que complementaram minha
formação básica, seja pelas disciplinas onde a ideia de universidade, de
Geografia e de escola socialmente referenciadas eram constantemente
pontuadas. Atenciosamente - Professor de Geografia - estudante da UERJ-
FFP entre os anos de 2000 e 2005(Astrogildo de França).

Na medida em que deixei de colocar um olhar segundo o senso comum e o


ampliei de forma mais holística, mais profunda e com melhor e mais apurada
reflexão (Paulo).

A minha formação na FFP foi de extrema importância, não só para o


reconhecimento do papel dos movimentos sociais, na democratização e
melhoria da educação brasileira, como em todo o conhecimento adquirido.
Tal formação vem favorecer a capacitação dos meus alunos e a sua não
alienação diante de contextos apresentados a eles, em geral, pela mídia. A
medida de tal formação não pode ser quantificada, apenas sentida quando os
conceitos dos alunos relacionados a tais temas são expostos através de
debates, textos, atividades lúdicas entre outros de forma madura, consciente e
realista. Sempre à disposição, Atenciosamente (Professora Jupiara de Jesus
Pereira da Silva).

Bom dia! A minha formação na FFP me proporcionou um aprendizado


diferenciado, devido a compreensão que a sociedade vive a margem de uma
penúria moldada aos interesses do sistema (governo) onde a capacidade de
reflexão é podada. Tudo vem pronto, porém, foi nesse recinto através de
várias leituras, discussões, debates enfim é que esse discurso dominante pôde
ser percebido. A partir do momento que educação permite que alguns
consigam romper com esse alfabetismo de direitos a questionar e proporciona
a oportunidade de uma releitura não aos moldes do capitalismo, mas aos
verdadeiros interesses ocultados pelos pontos, vírgulas e reticencias, nesse
momento o sentimento de conquista reflete nas buscas pelos direitos.
Concluo que refletir não é radicalizar, portanto os movimentos sociais são
importantes no contexto histórico da sociedade, porém acredito que não
podemos ir ao extremo o equilíbrio é fundamental para não cairmos no
radicalismo, sendo assim podemos contribuir para melhorias importantes na
educação contribuindo na educação de cidadãos politizados. Que o diálogo
esclarecido seja a base da luta e não as armas do ódio intolerante.
Abraço,(Osana Mota Silva).

A partir das respostas acima, observamos com base em estudos desenvolvidos


no interior do nosso projeto, que estudar o processo formativo a partir e em diálogo com
os/as egressos /as, torna-se fundamental, à medida que a relevante saber o que os
egressos pensam a respeito da formação recebida, conhecer o que fazem como

sumário 651
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

profissionais e suas adequações aos setores que atuam, além de notar o período entre a
formação do egresso e sua inserção no profissional no trabalho compatível com a área
em que se graduou, e se está trabalhando na área correspondente ou não, possibilitando
assim uma reflexão crítica sobre a formação e sua relação com as necessidades do
mercado de trabalho. Tal reflexão também inclui tomar ciência de qual organização
empregatícia o egresso está trabalhando e se o curso acrescentou algo a mais no âmbito
cultural e social.

IV- Dialogando com as vozes dos egressos: questões preliminares


Em linhas gerais, as respostas dadas pelos egressos às questões das lutas pelos
direitos sociais, pelo “direito a ter direitos” nos obriga a retomar a problemática do
poder local e das escalas do poder nos jogos decisórios das políticas sociais e
educacionais. Qual o poder do poder local? Será que descentralizar competências
decisórias e/ou executoras é necessariamente fortalecer a democracia? É possível
conseguir melhorias na forma como o Estado se relaciona com a sociedade civil? Ou o
que o Estado permite é o fortalecimento de “mandonismos locais”? Como a tecnocracia
estatal se relaciona com estes dispositivos aparentemente voltados para o
compartilhamento de poderes com a população? Qual o espaço concedido aos
profissionais de educação, em especial aos educadores/as populares das escolas públicas
nestes processos?
No presente texto optamos por enfocar algumas concepções de egressos em
diálogo com autores/as que fazem alusão à eclosão dos movimentos populares na
década de 1980, bem como ao seu refluxo no período de pós-democratização brasileira,
tais como Arroyo (2003), Daniel (1988), Gohn (2005),Tavares (2003, 2019), entre
outros. Para fins de compreensão dos movimentos sociais e dos cenários de
implementação das políticas públicas de educação no país, adotamos como perspectiva
para a nossa análise, o conceito de poder local sugerido por Celso Daniel (1988).
Como proposto,o exercício de poder não se resume ao Estado, mas está
disseminado em múltiplas instituições sociais em diferentes modalidades de poder local,
sendo que no Brasil, especialmente devido às formas históricas de organização e
estruturação do Estado, o conceito de poder local vem sendo remetido à esfera
municipal.
Tal abordagem conceitual sobre poder local articula-se à concepção de Estado
conforme abordagem de Gramsci (1995), na qual também nos apoiamos, sendo este não

sumário 652
VII Seminário Vozes da Educação

apenas um aparelho de governo, mas, também “o aparelho privado de hegemonia ou


sociedade civil”. Nesse sentido, ao tratar-se da sociedade civil, esta não diz respeito
apenas aos movimentos sociais populares articulados pelas classes subalternas. Dela
também fazem parte diversificados grupos de interesses que estão relacionados ao poder
governamental e que também compõem o poder político local (TAVARES, 2003). No
entanto, nesta esfera as disputas ocorrem, sobretudo, nas tensões e vinculações entre o
poder econômico e o poder social, conforme nos mostram os cenários nos quais as
políticas educacionais são implementadas (ou não) nos municípios brasileiros, em
particular em São Gonçalo, um dos mais importantes e populosos do Estado do Rio de
Janeiro, com mais de um milhão de habitantes.
Neste sentido, procuramos no texto em tela, problematizar e analisar a
concepção de egressos formados em Geografia pela FFP, bem como suas inserções em
projetos vinculados a alguns movimentos sociais durante a graduação. Compreendemos
que estudar de forma mais aprofundada as lutas dos(as) professores(as) no lugar, isto é,
os embates realizados nas entranhas do poder local poderá nos oferecer pistas fecundas
sobre processos de democratização da educação nos municípios do Leste Fluminense,
principalmente, ao apontar e fissurar alguns interesses em disputas no campo da
educação nesses municípios. Diante das questões brevemente colocadas, defendemos
que a construção de processos formativos docentes ancorados na construção e
fortalecimento da democracia, exige pensa-la como fundamento das políticas no campo
educacional. A luta pelo fortalecimento do campo democrático como condição basilar
de pensar a escola pública e a da formação docente, nos parece hoje, no contemporâneo,
uma exigência política e epistêmica da qual os currículos da Faculdade de Formação de
Professores da UERJ não pode desconsiderar.

V-Considerações Finais, ainda que provisórias

A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que


vivemos é na verdade regra geral. Precisamos construir um conceito
de História que corresponda a essa verdade. Nesse momento,
perceberemos que nossa tarefa é criar um verdadeiro estado de
emergência (Walter Benjamin).

sumário 653
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

As falas dos egressos do curso de Geografia, ainda que de forma embrionária,


vem confirmando que o Estado não é a expressão única de interesses dominantes, que
não é impermeável às pressões advindas de outros grupos da sociedade. Estado e
sociedade civil são espaços de lutas pela hegemonia ou direção político-ideológica em
torno de um projeto, nos quais estão em confronto os diversos interesses. Do ponto de
vista político, a hegemonia não é alcançada exclusivamente com a coerção, mas
também com o consenso, conquistado nas instituições da sociedade civil, dentre as
quais podemos situar as organizações populares, pois há “possibilidades de, no interior
da ordem burguesa, [...] ter lugar a representação de interesses (ainda que parciais) das
classes subalternas” (COUTINHO, 1989, p.54).Porém, como “toda relação de
hegemonia (ou de direção consensual) implica um grau maior ou menor de concessão
aos interesses da classe ou grupo sobre o qual se quer exercer a hegemonia”
(COUTINHO, 1989, p. 56).
Atualmente no estado do Rio de Janeiro, as relações entre os movimentos sociais
e o poder público também envolvem o consenso ou momentos de consenso. É
emblemática, nesse sentido, a fala do egresso Tadeu Albuquerque:

Posso afirmar que a formação de caráter socialista e a influência do


Marxismo muito presente na formação dos professores, proporciona ao aluno
uma experiência única de diferentes aspectos sociais. O grande diferencial, a
meu ver, da universidade pública é o incentivo a pesquisa, aos trabalhos de
campos e estágios de vivências, durante o curso tive a oportunidade de
integrar-me ao movimento do MST em um estágio de vivência, também
conheci algumas comunidades quilombolas que impactaram de uma forma
positiva a minha formação acadêmica.

Para esse professor, a sua experiência junto aos movimentos sociais, tais como
MST e comunidades quilombolas, impactaram a sua formação acadêmica de forma
positiva. Nesse sentido, defendemos a importância de um currículo em movimento nas
diferentes licenciaturas da FFP. Um currículo que se abra às múltiplas dimensões da
realidade, sobretudo que reconheça o papel do conhecimento produzido nas lutas
sociais, nos embates travados entre a sociedade civil e o Estado na direção dos direitos
sociais.
Em linhas gerais, as respostas dos egressos à pergunta formulada em nosso
estudo, nos incentiva ao seu aprofundamento, principalmente a nos exigir a ampliação o
escopo de nossa investigação junto aos egressos das outras licenciaturas, tendo em vista
a representação positiva que os egressos manifestam sobre seus processos formativos na

sumário 654
VII Seminário Vozes da Educação

FFP. A questão inicialmente partilhada, isto é, que a experiência de participação em


projetos vinculados aos movimentos sociais aparenta fortalecer a relação com a
docência e a implicação com a escola pública. Tal possibilidade parece ser confirmada
pelas respostas dadas e citadas por nós nesse trabalho. O desafio que se coloca no atual
contexto é discutir com os professores e professoras da faculdade o impacto e a
ampliação desses projetos na formação inicial dos estudantes, ampliando a dimensão
política e acadêmica da participação dos mesmos em tais projetos. A fala do egresso
Astrogildo de França, professor de Geografia e estudante da FFP no período de 2000 a
2005 nos convoca a pensar os processos formativos em sua multidimensionalidade, nos
exigindo a sensibilidade política e a vigorosidade epistêmica para continuar a missão
institucional de nossa universidade:

Considero que minha formação na FFP foi fundamental para o tipo de


atuação política que exercito hoje no movimento sindical de professores e de
área (associação de geógrafos) onde milito. Seja pelas experiências
acadêmicas fora da sala de aula que complementaram minha formação
básica, seja pelas disciplinas onde a ideia de universidade, de Geografia e de
escola socialmente referenciadas eram constantemente pontuadas.
Atenciosamente - Professor de Geografia - estudante da UERJ-FFP entre os
anos de 2000 e 2005(Astrogildo de França).

Dialogando com o estudante e hoje (2019) professor da FFP/UERJ, do curso de


Geografia, Astrogildo de França reiteramos o desafio que nós, professoras e professores
temos na defesa da democracia e no campo de uma pedagogia crítica (APPLE, 2017),
que possa reconhecer nos movimentos sociais aliados preciosos na defesa da escola
pública laica, e socialmente referenciada.

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sumário 656
VII Seminário Vozes da Educação

Dez anos de Estudos de Egressos na Faculdade de Formação de Professores da


UERJ: percursos formativos e inserção Profissional em debate

Mariel Costa Moderno

O presente artigo é resultante da pesquisa em desenvolvimento “A Faculdade de


Formação de Professores em números: um estudo sobre estudantes egressos das
Licenciaturas no período de 1998 – 2008”, coordenado pela Professora Drª. Maria
Tereza Goudard Tavares, pela Pedagoga da UERJ Gláucia Braga Ladeira Fernandes e
pelo pós-graduado em Matemática e bolsista Mariel Costa Moderno, dentro do escopo
institucional do Projeto Proatec/UERJ, desde 2009. Diante dessa breve apresentação,
reiteramos que o trabalho em tela intenciona apresentar alguns movimentos da pesquisa
que está sendo desenvolvida nos últimos 10 (dez) anos junto aos egressos das
Licenciaturas da FFP, focando nos que já tenham inserção profissional nas redes
públicas de ensino do Leste Fluminense.
O projeto, que comemora os seus 10 anos em 2019, tem como objetivo
institucional, produzir um amplo e sistemático levantamento do número de estudantes
egressos formado pela unidade, investigando principalmente, a situação ocupacional
destes egressos nos municípios que compõem o Leste Fluminense, pesquisando,
principalmente, como vem se dando a sua trajetória profissional no cotidiano das
escolas (ALVES e GARCIA, 2004).
Tal estudo vem possibilitando entre outros objetivos, traçar um mapeamento da
inserção profissional de nossos estudantes egressos, investigando a sua situação
ocupacional, buscando compreender como os processos formativos vêm constituindo as
suas identidades docentes (PERRENOUD, 2002). Neste sentido, o trabalho a ser
apresentado discute aspectos teórico-práticos da profissão professor (NÓVOA, 1995)
procurando investigar e compreender como cada sujeito professor/a constrói o seu ethos
profissional e sua identidade pessoal e profissional no mundo da escola. Ressaltamos a
importância deste estudo para a Faculdade de Formação de Professores da UERJ, ao
qual tem nos provocado a repensar os processos formativos desenvolvidos em nossas
sete licenciaturas, a saber: Ciências Biológicas, Geografia, História, Letras
(Português/Inglês e Português/Licenciaturas), Pedagogia e Matemática.

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Em relação aos objetivos de nosso estudo, vimos intencionando investigar a


partir do material coletado sobre (e com) os estudantes egressos das sete licenciaturas da
FFP, a situação acadêmica e ocupacional destes estudantes, com vistas à construção de
um banco de dados sobre os egressos da FFP nos últimos dez (10) anos. Do ponto de
vista específico de nossa pesquisa, vimos intencionado:
• Encaminhar por meio digital, aos estudantes egressos contatados, os survey
pré-definidos;
• Proceder a leitura dos surveys aplicados, dando tratamento analítico aos
mesmos;
• Elaborar tabelas e gráficos sobre a situação acadêmica e ocupacional dos
estudantes egressos, que responderam ao survey aplicado;
• Elaborar um relatório descritivo minucioso sobre os dados coletados;
• Levantar dados para divulgação e avaliação interna dos cursos de
Graduação;
• Realizar reuniões específicas com grupos focais das Licenciaturas em
estudo, avaliando as contribuições e impactos do processo formativo
acadêmico em sua atuação profissional;
• Elaborar materiais de divulgação dos cursos para as escolas de Ensino Médio
e Pré-vestibulares, artigos e textos científicos com vistas à socialização do
material produzido.

2 – Caminhos teóricos e metodológicos: a construção da tessitura da pesquisa


Do ponto de vista teórico-metodológico, trata-se de uma pesquisa de caráter
quali-quantitativo, cujos procedimentos metodológicos envolvem vários movimentos:
reuniões semanais do grupo de pesquisa, dinamizando as orientações técnicas de coleta
e organização de dados do estudo, leitura crítica, tabulação e problematização dos dados
coletados através dos questionários on-line, dividido em quatro eixos, a saber:
situaçãoprofissional atual; adequação entre a formação oferecida no curso e às
exigências no mercado de trabalho; avaliação do curso e da instituição; demandas
por formação continuada) enviados aos estudantes egressos da FFP e encontros
com grupos focais dasLicenciaturas em estudo. Nesses anos de desenvolvimento da
pesquisa, priorizamos também, a organização de um material institucional destinado à
apresentação nas escolas das redes municipais e estaduais de São Gonçalo, visando à

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VII Seminário Vozes da Educação

divulgação da FFP como única Universidade Pública num município com graves
desigualdades sociais, econômicas e educacionais. Desigualdades estas, que impactam e
desafiam o trabalho das escolas e, sobretudo, o trabalho docente.
Destacamos que no projeto em tela, o questionário aplicado aos egressos, é uma
ferramenta fundamental para a realização de grande parte dos estudos. Sem esse
instrumento a pesquisa não pode ser realizada e, ainda assim, nem sempre lhe é dado o
devido valor. Atingir os objetivos de uma pesquisa depende muito da eficiência do
questionário. E portanto, elaborar um questionário não é tarefa fácil. Desenvolver um
questionário adequado aos objetivos da pesquisa chega a ser uma ciência, uma vez que
muitos cuidados devem ser tomados. A maneira como for formulada uma pergunta os
resultados podem ser os mais diversos. Pode-se dizer que é um projeto dentro do
próprio projeto de pesquisa. Abaixo, elencamos algumas questões acerca do
questionário.
Por que criar um questionário de pesquisa online? O uso de questionários de
pesquisa online para coletar dados apresenta diversas vantagens, especialmente se
compararmos a outros formatos. Alguns dos seus principais benefícios são:
Permite alcançar mais facilmente um maior número de egressos: ao contrário de
pesquisas de campo e entrevistas presenciais, o questionário de pesquisa online pode ser
enviado para um grande número de egressos em menos tempo.
Além disso, um questionário online não apresenta limitações geográficas.
Independente da cidade, estado ou país em que a pessoa está, será possível coletar suas
respostas. Para divulgá-lo, você pode, por exemplo, utilizar sua base de contatos para
enviar o questionário via email, publicar nas redes sociais e/ou no blog.
era menores custos financeiros e de logística: outra vantagem dos questionários
online é a redução no tempo e na logística de entrevistas realizadas, principalmente se
compararmos às entrevistas presenciais. Nesse formato de coleta, não é preciso se
deslocar para entrevistar os participantes, o que reduz gastos com transporte e tempo da
sua equipe, por exemplo.
Apresenta maior facilidade de captação e análise, sendo este um dos grandes
diferenciais dos questionários de pesquisas online: a maior facilidade de computar e
compilar dados, principalmente se ela for quantitativa. Em outros instrumentos de
coleta, seria preciso registrar individualmente as respostas de cada um dos participantes,
o que seria pouco eficiente ou até inviável, dependendo da distância.

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Ao utilizar formulários online, porém, esse processo passa a ser feito de forma
mais automatizada e muitas ferramentas fornecem até mesmo um relatório com a
análise dos dados em tempo real, ainda que simplificada;
Proporciona maior conveniência para os participantes, pois permite aos
participantes organizar e planejar o seu tempo para resposta. Se, por exemplo, a
pesquisa fosse realizada por telefone ou presencialmente, talvez você não conseguisse
participar em outro momento. Entretanto, por ser um questionário online, você poderá
acessá-lo novamente em outro dia ou horário, quando for de seu tempo e/ou vontade.
Assim, esse formato de pesquisa oferece maior comodidade e conveniência para os
egressos, que podem realizá-la no seu tempo.

2.1- O Questionário e a sua aplicabilidade ao longo dos dez anos do Projeto:


desafios na escuta dos egressos
No esforço de desenvolver um questionário online que seja dialógico, e bem
recebido pelo seu público-alvo, é preciso seguir alguns passos essenciais:

a) Definição de objetivo e tema da pesquisa


Antes de iniciar a criação do questionário, a primeira etapa é determinar qual é o
objetivo da sua pesquisa. Afinal, seus objetivos irão delimitar toda a definição de
perguntas;

b) Escolha do público-alvo
Depois de definir o tema, você provavelmente já terá em mente quem será o
público-alvo da sua pesquisa. A definição de quem serão os seus respondentes é
fundamental para que você utilize a linguagem mais adequada em cada caso, e para que
você possa segmentar o questionário a partir de seus respondentes;

c) Definição de suas questões de estudo:


Com o tema e o objetivo escolhidos, é preciso definir suas questões de estudo, o
que a sua pesquisa quer investigar. A partir delas, você poderá entender com mais
clareza o que você gostaria de descobrir e o que é essencial para construir as perguntas
do seu questionário online. Para definir as suas questões, é preciso levar em
consideração o tema, o público-alvo, os objetivos propostos e as informações que a sua
pesquisa pretende conseguir.

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d) Formulação das perguntas


Com as questões de estudo definidas, chegou a hora de dar início à criação das
perguntas. Para construir o questionário, é preciso manter sempre em mente:
• O tema e os objetivos, para delimitar a pesquisa e manter o foco na obtenção
de informações que a sua pesquisa realmente necessita;
• O público-alvo, já que é ele quem irá ditar a linguagem e os termos
utilizados na pesquisa, além dos assuntos abordados nas perguntas. Afinal, é
preciso garantir que os seus participantes saibam respondê-las. As questões
formuladas devem expressar de forma clara e objetiva o que será preciso
perguntar para confirmarmos ou refutarmos as previsões feitas.

Isto porque, depois de passar pelos três primeiros passos, as diretrizes para a
criação e a exigência por determinadas questões já ficam bem explícitas, entretanto,
também é importante ter atenção a outros pontos. Vamos a eles:

e) Rascunho da estrutura
Nesta etapa, o mais indicado é, primeiramente, fazer um esboço do seu
questionário. Isso é importante para otimizar seu tempo. Durante o processo de criação
das perguntas, é comum haver alterações, tais como excluir algumas questões, adicionar
outras e inverter a ordem das perguntas, alterar opções, até chegarmos na versão final.
omo a passagem das questões para a ferramenta pode ser um pouco trabalhosa,
finalizar antes a estrutura do questionário online pode evitar um retrabalho da sua
equipe. Além disso, muitas das pesquisas podem envolver a participação e a aprovação
de diferentes pessoas.

f) Objetividade e clareza nas perguntas


Um erro muito comum e que pode afetar toda a sua coleta de dados é a falta de
objetividade e clareza em uma pesquisa. Para evitar esse problema, ao formular o seu
questionário, tenha muito cuidado com:
• Criação de perguntas ou alternativas que são ambíguas;
• Ortografia, pontuação e escrita impecáveis para uma melhor compreensão
geral;

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• Perguntas que não oferecem todas as alternativas de resposta possíveis: caso


o respondente não consiga encontrar a melhor opção, há chances de ele
selecionar qualquer uma ou até mesmo abandonar o questionário. Esse tipo
de erro pode enviesar os dados obtidos;

g) Modelos de pergunta
• Pergunta eliminatória: Caso você tenha escolhido um nicho específico de
respondentes, ou apenas respondentes de um determinado gênero, por
exemplo, será necessário utilizar essa pergunta. Ela funciona como um filtro,
para evitar que pessoas que não fazem parte do seu público-alvo respondam
à pesquisa. Em particular, o nicho específico de nossa pesquisa são todas as
pessoas que se graduaram na FFP;
• Pergunta de resposta única: Esse modelo de pergunta é um dos mais comuns.
Nele, o respondente só pode selecionar uma alternativa entre as opções
oferecidas. No questionário do projeto algumas das perguntas de resposta
única são sexo, curso concluído, tempo entre a formatura e o início da
atividade, dentre outras;
• Pergunta de seleção múltipla: Neste modelo, o respondente pode selecionar
uma, mais ou todas as opções que desejar entre as alternativas oferecidas. No
questionário do projeto, algumas das perguntas de seleção múltipla são os
cursos que os egressos desejariam fazer em caso de especialização, mestrado
e doutorado e a esfera de local onde trabalha (pública, particular, autônoma
e, na pública, municipal, estadual e/ou federal) Algumas das perguntas,
inicialmente eram de questão única, mas observou-se a necessidade de
alteração.
• Pergunta em escala: Nesse formato de pergunta, o respondente escolhe em
uma escala de pontos pré-determinada por você. Ela pode variar de 0 a 5, 0 a
10, 1 a 5, entre outros. Em geral, esse tipo de pergunta é utilizado para julgar
afirmativas, e um exemplo conhecido é o de “excelente/péssimo”,no caso do
questionário, quando são as perguntas de auto-avaliação ou de avaliação do
curso (no âmbito profissional e pessoal), dos professores, perspectiva
profissional e satisfação salarial;

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• Perguntas abertas: Nesse tipo de questão, o participante pode escrever sua


resposta livremente, sem opções pré-determinadas. Geralmente, para melhor
captação de dados, tal opção não é recomendável, pelo alto risco de
diferentes respostas, ainda que sejam semelhantes. Por isso, no questionário,
as únicas perguntas abertas são o nome, data de nascimento, ano de entrada e
saída do curso e uma questão livre, onde eles podem fazer comentários sobre
algo do questionário, da faculdade ou o que mais desejarem comentar.
• Lista suspensa ou dropdown: O formato de lista suspensa é aquele em que as
alternativas estão disponíveis em uma barra de rolagem. É muito utilizado
para questões em que há muitas opções e estas são curtas, como em uma
pergunta sobre o ano de nascimento do respondente, por exemplo.

h) Revisão e construção do questionário


Depois de formular as perguntas, é fundamental uma revisão no questionário,
levando-se em consideração, principalmente:
• Se as questões estão seguindo uma sequência lógica e, se for necessário, faça
alterações na ordem buscando eliminar:
• Repetição de questões;
• Questões desnecessárias, descartando uma eventual redundância;
• Questões que não foram pensadas a princípio, porém à medida que as
respostas são analisadas, revisar e quiçá adicionar novas questões;
• Questões subjetivas e longas, de forma que se tornem menores as chances de
os respondentes abandonarem a pesquisa antes do fim;
• Possíveis erros de ortografia e ambiguidade.

Depois de rever tudo, finalmente poderá enviar o questionário para gerar as


respostas e começar a analisa-las.

3- O que dizem os egressos:considerações sobre o questionário


A partir de toda a formulação e discussão do questionário aplicado em nosso
projeto, os e-mails foram enviados e as respostas começaram a ser enviadas. À medida
que foram chegando em quantidade suficiente, iniciou-se a análise qualitativa do
questionário, e alguns resultados foram notados. Pelo fato de serem mais de 30

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perguntas, ficaria demasiadamente grande analisar todas uma a uma, portanto, vamos
destacar algumas delas, sobretudo aquelas que, para nós, possuíam mais relação com os
objetivos do projeto:
Dentre os sete cursos de licenciatura da FFP, o de Geografia representa a maior
porcentagem das respostas: 19%. Entretanto, se unirmos os dois cursos de Letras
(Português/Inglês e Portguês/Literatura) ambos juntos somam 29%. Já Matemática
representa o menor percentual, com 8%.
Do ponto de vista de gênero, as mulheres representam mais de dois terços das
respostas, com 68%. Pelo fato de a UERJ ter sido pioneira no sistema de cotas, esta
pergunta também fez parte, e cerca de 21% dos egressos que responderam o
questionário foram cotistas, o que demonstra o papel social da faculdade de formação
de professores da UERJ.
Do ponto de vista da inserção profissional, mais de 70% dos egressos trabalhava
na área do curso no momento que respondeu o questionário, impulsionado pelo fato de
46% deles já estarem trabalhando durante a graduação. Dentre os que não trabalhavam
na área ou não trabalhavam, os principais motivos são o mercado de trabalho saturado e
melhor oportunidade em outras áreas.
Do ponto de vista econômico, mais da metade, 57%, ganha até 3 salários
mínimos como remuneração. Aqui, entramos nas questões em escala. Desses egressos
que recebem até 3 salários, cerca de 65% tem os níveis de satisfação financeira 1 e 2
(muito baixo e baixo, respectivamente). EM contrapartida, os 2% que ganham acima de
10 salários mínimos possuem apenas 6% que tem os níveis de satisfação 1 e 2 (muito
baixo e baixo). Também foi notado que 78% dos que recebem mais de 10 salários
mínimos trabalham na área de atuação, já para quem ganha até 3 salários, o percentual
cai para 58%.
Do ponto de vista pedagógico-curricular, a contribuição do curso tanto no
âmbito profissional quanto no pessoal, cerca de 32% dos respondentes diz ter sido muita
a contribuição profissional. Já 70% revela ter sido muita a contribuição no âmbito
pessoal.
Sobre a formação continuada, cerca de 62% dos egressos fez ou fazia na ocasião
em que respondeu uma pós-graduação. Interessantemente, 3% ingressaram em outra
graduação. Dentre os egressos da pós-graduação, 60% fez ou faziam especialização, e
aproximadamente 2% estavam já no nível de pós-doutorado, o que explicita a
preocupação e o envolvimento dos professores com seu percurso formativo.

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4- Considerações finais

A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que


vivemos é na verdade regra geral. Precisamos construir um conceito de
História que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que
nossa tarefa é criar um verdadeiro estado de emergência (Walter Benjamin).

Nestes dez anos de trabalho, muitos foram os desafios e conquistas do projeto


“A Faculdade de Formação de Professores em números: um estudo sobre estudantes
egressos das Licenciaturas no período de 1998 – 2008”. Isto posto, gostaríamos de
retomar a epígrafe de Walter Benjamim, acima citada. Compreendemos que a tradição
no campo formativo que a Faculdade de Formação de Professores vem acumulando em
seu longo processo institucional de formar professores no leste fluminense, de certa
forma, vem sendo explicitado nos cerca de 2.300 questionários respondidos pelos
egressos até o momento presente. Do ponto vista do conceito do curso,
aproximadamente 80% dos egressos consideram boa ou ótima a respectiva licenciatura
na qual concluiu e cerca de 86% declararam que, provavelmente ou certamente
retornariam à FFP para realizar outros cursos, sejam de graduação ou pós-graduação.
Nesse sentido, vimos perguntando, com base nos estudos realizados em que
medida a educação e os processos formativos que oferecemos em nossas Licenciaturas
na FFP interrogam e dialogam com a educação escolar? Com o mundo da escola? Em
que medida no contemporâneo, o pensamento social e educacional brasileiro acolhe e é
tensionado em nossos currículos? Em que medida os(as) estudantes que ainda querem
cursar licenciaturas e ser professores(as) são formados e se reconhecem educandos(as) e
educadores(as) nas lutas empreendidas pelo direito à universidade pública, gratuita e de
qualidade? Em que medida os estudantes formados por nós se reconhecem na luta em
defesa da qualidade da escola pública, principalmente frente aos governos que vem
atacando a educação pública, sobretudo a escola pública? Estas questões e tantas outras
nos parecem fundamentais de serem problematizadas junto aos professores e
professoras da Faculdade de Formação de Professore da UERJ, que ao se perguntarem
sobre “o que é formar?” “E como formar?” “E para quê formar?” se abrem para um
território político e epistêmico complexo, no qual outras gramáticas formativas
(TAVARES, 2019), além daquelas vinculadas ao currículo formal e institucional,
podem ser pensadas e praticadas como matrizes formadoras basilares para se pensar

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processos formativos a contrapelo, taiscomo as respostas dos egressos do questionário


parecem nos fazer pensar. Que possamos aprender com eles e elas!

Referências
ALVES, N. Pesquisa no/do cotidiano das escolas. Rio de Janeiro: 2002.

CHAUÍ, M. Ideologia e Educação. Educação e Sociedade. São Paulo: Cedes/Cortez,


Nº05, 1980.

DANIEL, C. Poder Local – convergência entre estruturas, forças e agentes: Poder


local no Brasil urbano. Revista de Estudos Regionais e Urbanos. Ano VIII, Nº 24,
1988.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1989.

______. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

GRAMSCI, A. Concepção dialética da História. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1995.

NÓVOA, A. Profissão Professor. Lisboa: Porto Editora,1995.

PERRENOUD, P. Práticas Pedagógicas, profissão docente e formação. Lisboa: Dom


Quixote, 2002.

TAVARES, M.T.G. Os pequenos e cidade: O papel da Escola na construção de uma


alfabetização cidadã. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ, Rio de Janeiro, 2003, Mimeo.

TAVARES, M.T.G, FERNANDES, G.B.L., MODERNO, M.C.; A Faculdade de


Formação de Professores em números: um estudo sobre estudantes egressos das
Licenciaturas no período de 1998 – 2008. Rio de Janeiro, 2009.

TAVARES, M. T. G. Pensando a Formação de professores das infâncias a contrapelo:


desafios contemporâneos da formação de docentes em periferias urbanas. In: Denise
Aquino Alves Martins; Menissa Cicera Bessa Carrijo; Carmen Lúcia Artioli Rolim -
Orgs. (Org.). Singularidades e Resistências na Formação de Professores:
novos/velhos enfrentamentos. 1ed.Jundiaí: Paco Editorial, 2019, v. 1, p. 13-35.

MODERNO, M. C.Processos formativos e movimentos sociais: o que dizem os


egressos da Faculdade de Formação de Professores da UERJ sobre seus processos de
formação, in Seminário Geopraxis, UESB, 2019

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VII Seminário Vozes da Educação

NARRATIVAS DOCENTES: A FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM


COLETIVOS LATINO-AMERICANOS

DanusaTederiche
FFP/UERJ
danusa.tederiche@hotmail.com

Introduzindo a discussão

Estou no esforço de lembrar o dia que quis ser professor...Agora, mesmo


tendo pouca experiência em sala de aula como educador, tento reconhecer e,
quem sabe, ser incentivo para alguém seguir a profissão, e provocar os
primeiros sinais. Não existe “receita de bolo”, mas talvez a sala de aula seja
uma grande panela e os estudantes como se fossem pipocas prestes a estourar
(Fragmento da narrativa do estudante Dennys, produzida no coletivo
REDEALE).

O fragmento do texto produzido pelo estudante Dennys no coletivo brasileiro


Rede de Docentes que Estudam e Narram sobre Infância, Alfabetização, Leitura e
Escrita – REDEALE nos dão pistas de suas reflexões acerca da sua formação docente,
do seu papel enquanto professor e de suas expectativas quanto a sua atuação
profissional. Nesse sentido, as narrativas docentes permitem reconhecer a formação do
professor, fortalecendo ainda o lugar do professor como pesquisador de sua própria
prática, como produtor de conhecimento e que também se perceba como um intelectual.
Assim, os escritos de professores corroboram ainda, para firmar a profissão docente e
compreender suas histórias de vida e formação nos reflexos de suas práticas, pois como
afirma Nóvoa:

Ser professor é conquistar uma posição no seio da profissão, mas é também


tomar posição, publicamente, sobre os grandes temas educativos e participar
na construção das políticas públicas. É aprender a intervir como professor
(2017, p. 1130).

Compreendendo o papel do professor segundo Nóvoa, daquele que precisa


tomar uma posição acerca da educação, é que defendemos no coletivo REDEALE, na
troca entre pares com o coletivo peruano Desenredando Nudos, a escrita de narrativas
de professores como metodologia que afirma a profissão docente, além de refletir e

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construir saberes e práticas pedagógicas. Portanto, o esforço teórico-metodológico,


primordialmente, se dá em pensar e praticar uma investigação, que seja também uma
formação com os(as) professores(as) e não para os(as) professores(as), filiando-nos às
preocupações apontadas por Lima, Geraldi e Geraldi,

Consideramos que o modo como muitas pesquisas têm caracterizado os


profissionais da educação e o cotidiano da escola é distante, enviesado e
diferente dos modos de compreensão e significação elaborados pelos próprios
sujeitos pesquisados (2015, p.3).

As interlocuções com os/as docentes nos coletivos latino-americanos tem


permitido afirmar que as experiências e os conhecimentos produzidos a partir da prática
cotidiana são peças-chave no movimento de reinvenção da escola. Uma escola que
encontra-se hoje, mais que nunca, sob a égide de políticas colonizadoras fortemente
alinhadas às necessidades do chamado mercado global. Sendo os países latino-
americanos produtos da expansão da civilização ocidental, de um colonialismo
organizado sistemático (FERNANDES, 1975, p.12), é que as histórias de professores
acerca de suas práticas nos permite perceber a narrativa de si também como um ato
político, pois favorece a emancipação do sujeito, pensado como indivíduo e/ou como
coletivo (a classe dos/das professores/as) (ARAUJO, 2016, p. 46).
Os coletivos latino-americanos REDEALE e Red Desenredando Nudos investem
seus esforços, a partir da troca entre pares, nos trabalhos desenvolvidos nas redes e nos
encontros virtuais (via Skype) e/ou presenciais como os eventos Iberoamericano e os
Encontros de Maestros que ocorrem periodicamente, numa metodologia que
potencialize e permitam os/as professores/as a assumirem o protagonismos no seu
processo de formação e que, a partir das narrativas docentes, de suas histórias de vida,
possam se perceber produtores de conhecimento, pois a narrativa não só expressa a
experiência do vivido, mas permite uma reflexão sobre a experiência corroborando para
a construção de conhecimento.

Coletivos Latino-americanos: a troca entre pares na formação docente


Uma das propostas nos coletivos latino-americanos é a participação nos
encontros docentes como o Iberoamericano, que ocorrem trianualmente. Nesse sentido,
no VI Encuentro Iberoamericano de Colectivos Escolares y Redes de Maestras y
Maestros em 2011, as coordenadoras do coletivo REDEALE ensaiam suas primeiras

sumário 668
VII Seminário Vozes da Educação

interlocuções com a Red Latinoamericana de maestros y maestras que hacen


investigación desde la escuela e la comunidad.

Quanto ao nosso coletivo docente, nomeado por nós de REDEALE (Rede de


Docentes que Estudam e Narram Alfabetização, Leitura e Escrita), foi sendo
gestado a partir da sintonia encontrada desde as primeiras interlocuções com
a Red Latinoamericana de maestros y maestras que hacen investigación
desde la escuela e la comunidade que se deram durante a participação de
Jacqueline Morais e Mairce Araújo no VI Encuentro Iberoamericano de
Colectivos Escolares y Redes de Maestras y Maestros, na cidade de Huerta
Grande, Córdoba, Argentina, no período de 17 a 22 de julho de 2011
(MORAIS e ARAÚJO, 2018, p.17).

O referido encontro no Iberoamericano mobilizou as professoras Mairce Araújo


e Jacqueline Morais iniciar um trabalho com coletivos docentes em São Gonçalo – Rio
de Janeiro, contudo, somente em abril de 2015 o REDEALE se forma como um coletivo
tendo sua primeira reunião.
O REDEALE se constitui vinculado ao coletivo Rede de Formação Docente –
Narrativas e Experiências – Rede Formad, coordenado pela professora Carmem
Sanches, que foi criado em 2010 na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UniRio) e que em 2015 (mesmo anos da formação do REDEALE) se torna uma rede
convocante para o Iberoamericano, sendo então uma das redes organizadoras do evento.
O REDEALE após encontros no Iberomericano, efetivou seu diálogo com a Red
de Maestras y Maestros Desenredando Nudos, coordenado pela professora Maria Isabel
Gutiérrez a partir de reuniões/conversas mensais via Skype para consolidar um espaço
de troca de experiências e de diálogo entre universidades e escola básica, a fim de
promover reflexões sobre as práticas pedagógicas numa perspectiva de investigação-
formação.
Em um dos primeiros encontros foram apresentadas algumas atividades
desenvolvidas na Escuela Campesina Alternativa – ECA, localizada em Cajamarca-
Peru, uma instituição que faz parte de uma associação civil sem fins lucrativos.

La Escuela Campesina Alternativa (programa de la ACIES) es una


instituición educativa privada, que tiene como base la Educación Popular
Alternativa, planteada como um conjunto de processos mediante los cuales
las comunidades de base recuperan sus saberes, reivindican sus
conocimientos y abonan su comprensión del mundo en interacción com
conocimientos foráneos, sin subyugarlos próprios, com participación efectiva
y encaminhados a la protección y conservación saludable de la tierra y el
ambiente sin injerencias coloniales de ninguna índole (ARAÚJO, CHÁVEZ,
FARIA et al, 2018, pág. 37).

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Uma das primeiras ações entre os coletivos a partir do diálogo entre pares, foram
as trocas de experiências das atividades as quais os participantes dos coletivos estavam
desenvolvendo nas instituições de ensino que trabalhavam. No Brasil foi apresentado a
Escola Municipal Paulo Macedo Amaral, localizada no bairro Colubandê, São
Gonçalo–RJ, e as professoras peruanas apresentaram a Escuela Campesina de
Cajamarca. Desse encontro surgiram algumas propostas de trocas de atividades e
produção de escrita dessas experiências. Sendo assim, os coletivos iniciavam suas
escritas docentes a partir de suas experiências do vivido, e, em meio ao processo de
produção da escrita, o REDEALE foi convidado pelo coletivo Desenredando Nudos a
participar de um evento que aconteceria no mês de julho de 2016. O evento tratava-se
do III Encuentro Nacional del Colectivo Peruano de Docentes que Hacen investigación
e Innovación desde la Escuela y su Comunidad, em Huancayo – Peru, assim, a produção
da escrita reflexiva acerca do vivido, foi crescendo e provocando em nós um olhar de
pesquisa sobre a experiência, nos implicando apor nossa assinatura assumindo autoria
de nossas narrativas, pois, refletindo sobre o que ocorreu, essas pesquisas concorrem
tanto para a formação profissional quanto para a constituição do pesquisador (LIMA,
GERALDI e GERALDI, 2015, p.26).
Se a formação é fundamental para construir a profissionalidade docente, e não
só para preparar os professores do ponto de vista técnico, científico ou pedagógico
(NÓVOA, 2017, p. 1131), ao pensar as narrativas de professoras nos diálogos entre
pares a partir das experiências formativas entre redes da América Latina como objeto da
formação e da pesquisa, busca-se perceber os três processos apresentados por Prado e
Rodrigues (2015; p.190) como potencialidade da narrativa: investigação em educação,
reflexão pedagógica e formação. Nesse sentido, a narrativa favorece a explicitação do
vivido como também possibilita a teorização do vivido, transformando-o em
conhecimento acadêmico (PRADO e RODRIGUES, 2015; p. 204). Contudo, a narrativa
não é apenas uma metodologia, mas, uma maneira para construir a realidade (BRUNER
apud BOTÍA; 2002), pois a narrativa não só expressa a experiência do vivido, mas
permite uma reflexão sobre a experiência corroborando para a construção de
conhecimento.

La narrativa no essólo una metodología; como señalóBruner (1988), es una


forma de construir realidad, por lo que lametodología se asienta, diríamos, en
una ontología. En primer lugar, laindividualidad no
puedeexplicarseúnicamente por referentes extraterritoriales, por emplearlos
términos de Julia Kristeva. La subjetividades, más bien, una

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VII Seminário Vozes da Educação

condiciónnecesariadelconocimiento social. La narrativa no sóloexpresa


importantes dimensiones de laexperiencia vivida, sino que, más radicalmente,
media lapropiaexperiencia y configura laconstrucción social de larealidad.
Además, un enfoque narrativo prioriza unyo dialógico, sunaturaleza
relacional y comunitaria, donde lasubjetividad es una construcción social,
intersubjetivamente conformada por el discurso comunicativo. El juego de
subjetividades, enunproceso dialógico, se convierteenun modo privilegiado
de construir conocimiento (BOTÌA; 2002; p.4).

A escrita narrativa tem sido um caminho para buscar pensar e praticar uma
(auto)formação docente, numa perspectiva dialógica e reflexiva. Perspectiva essa
tensionadora de lógicas e proposições que, historicamente, tem reservado um lugar às
professoras, especialmente, da educação infantil e dos anos iniciais da escola básica, o
papel de meras aplicadoras de um conhecimento ou uma metodologia produzida por
outrem, nas secretarias de educação, nos laboratórios científicos, nos gabinetes de
pesquisa, que passam ao largo da escola.
Para Lima, Geraldi e Geraldi:

Essas pesquisas decorrem de uma situação não experimental, mas vivencial.


Podem ser chamadas de narrativas de experiências educativas. A
especificidade delas reside no fato de que o sujeito da experiência a narra
para, debruçando-se sobre o próprio vivido e narrado, extrair lições que
valham como conhecimentos produzidos a posteriori, resultando do embate
entre a experiência e os estudos teóricos realizados após a experiência
narrada. Como refletem sobre o que ocorreu, essas pesquisas concorrem tanto
para a formação profissional quanto para a constituição do pesquisador.
Oportunizam aprendizagem de pesquisador ao sujeito/objeto da pesquisa que
aprende a pesquisar no processo e pesquisando aprende mais sobre o
exercício de sua profissão de professor e sobre sua própria vida (p. 26-27,
2014).

Compreendendo os saberes docentes, que não inclui só os específicos da prática


pedagógica, mas fundamentam as práticas, é possível identificar a partir das narrativas,
elementos anunciadores de uma identidade profissional docente. Para Montanucci e
Haas:

No sentido de compreender a constituição da identidade do professor é


indispensável estabelecer um diálogo com a história pessoal e recente deste
professor, considerar também as mudanças que vêem ocorrendo ou poderão
ocorrer no campo da educação e do ensino, pois só se aprende a realidade
atual articulando-a com uma reconstrução teórica.
Os saberes construídos pelos professores pesquisados ao longo de suas
trajetórias profissionais são mobilizados em suas experiências, por meio de
um constante diálogo entre suas teorias e a prática situada, uma vez que o
desempenho da profissão também se constitui em oportunidades de intensa
aprendizagem e formação (2011, p. 10084).

sumário 671
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Nesse sentido, os coletivos latino-americanos vem desenvolvendo seu diálogo e


fortalecendo sua parceria, entendendo que a troca entre pares, as experiências
compartilhadas pelos docentes dos coletivos corroboram para a reflexão de suas práticas
e sua formação quanto profissional da educação, considerando ainda, os relatos do
vivido como caminho de perceber seu fazer docente e possibilidade na formação de
professores quanto pesquisadores de suas práticas.
A formação docente percebida na troca entre pares dos coletivos latino-
americanos tem nos ensinado que o movimento de reconhecer-se como professora
pesquisadora que indaga, busca, reflete sobre a própria prática se amplia, se adensa, se
corporifica na escrita docente. Nesse sentido, apostar que o registro escrito pelos/as
próprios docentes de suas narrativas orais, que comumente estão presentes no cotidiano
escolar, pode ser um modo legítimo destes profissionais divulgarem saberes e
conhecimentos advindos desta ação responsiva. (PRADO, SOLIGO, 2015, p 51).Como
podemos perceber na troca das narrativas escrita entre as professora Jacqueline (Brasil)
e Isabel (Peru).

Libertação

Eu gostava de usar o uniforme escolar. Vestia com orgulho aquela


composição de branco e azul, como uma honrosa distinção: “há muitas
crianças que queriam poder usar camisa branca de tricoline e saia de tergal
pregueada.”, dizia minha mãe, com tom acusador, quando pressentia em
meus olhos o desejo de gazetear uma aula. Resignava-me com um misto de
culpa e alegria de não ser uma daquelas meninas sem escola.
- Quem sabe responder? – intimou naquele dia a professora, depois de longa
explicação sobre répteis e anfíbios.
Pela primeira vez não ergui de pronto a mão direita, esperando ser chamada
em instantes pela educadora. Pela primeira vez não desejei mais que tudo na
vida ser a aluna-boazinha que, esperando com paciência a vez de falar,
mostra aos colegas como deve-se agir em sala de aula. Pela primeira vez
experimentei, como num gesto de libertação, deixar meu olhar vaguear pelas
paredes da sala, sem direção, sem motivo estritamente escolar. Não queria
responder nada. Absolutamente nada. Queria tão somente o pequeno gesto da
distância, se não do corpo, pelo menos da mente. Mas parece que naqueles
tempos, o prazer da liberdade devia ser interditado as meninas boazinhas.
- Responde, Jacqueline. Qual a diferença entre répteis e anfíbios?
Retornei minha atenção para a sala e para a professora mas agora algo
pareceria diferente. Sem saber muito porque, e tomada de incomum coragem,
um gesto nunca antes tentado, atirei o lápis no chão, gritando:
- Não quero responder!!
Começava ali minha paixão pela potência libertadora dos pequenos gestos
infantis que rompem com formas de viver as normas e tradições. Começava
ali meu desejo de ser professora da infância (Fragmento da narrativa da
professora Jacqueline produzida como de troca entre pares nos coletivos
latinoamericanos).

sumário 672
VII Seminário Vozes da Educação

A escrita narrativa da professora Jacqueline provocando uma reflexão acerca de


libertação, a partir da sua história de vida, da sua história de infância permitiu a
professora leitora Isabel pensar sua ação responsiva (PRADO, SOLIGO, 2015, p 51)
que está relacionada ao seu trabalho profissional e compromisso com a transformação
social conforme percebemos em sua carta resposta.

Carta Resposta

El título de tu texto “liberación” me lleva a reflexionar que a veces, sinquerer


lo, hemos ido y vamos entrando em pequeñas y grandes cárceles que un
sistema de dominación introdujo em nuestra vida, familia, escuela, trabajo y
muchas veces em el entorno más cercano. Miles de veces, pensar diferente y
querer ser libre, me hizo y me hace reconocer mis miedos, temores de
arriesgar y apostar por una comunidad de comunidades; sin embargo, saber
que tú reflexionas lalibertad en esta simpleactitud de romper el esquema
impuesto, me alienta em reconocer que no estoy tan solita.
Finalmente Jaqueline me cautivó tu texto, porque hablar de liberación y no
reflexionarlo desde uno mismo esquedarnos en conceptos y teorías no
siempre practicadas.
Te agradezco mucho por escribir tan lindo.
Um abrazo fraterno.
Isabel (Fragmento da carta da professora Isabel produzida como atividade de
troca entre pares nos coletivos latinoamericanos).

Retomando para reflexão a metodologia com as escritas de professores, uma


segunda atividade foi sendo alinhavada entre os coletivos latino-americanos, contudo, a
proposta dos coletivos era de produção de escrita semelhante a crônicas do cotidiano,
denominadas Pipocas Pedagógicas(PRADO; 2013, conforme o texto Libertação escrito
pela professora Jacqueline Morais. A Pipoca Pedagógica é um gênero ‘inventado’ pelo
grupo de professores que participa do GEPEC (Grupo de Estudos e Pesquisas em
Educação Continuada da Faculdade de Educação da UNICAMP) e segundo Soligo, hoje
praticado por muitos educadores de diferentes lugares.

É um tipo de crônica do cotidiano, uma breve narrativa de acontecimentos


que têm lugar na escola. Trata-se de outra forma de registro, bem diferente
dos registros pedagógicos mais habituais: nesse tipo de escrito o autor não
faz uma reflexão explícita, mas narra uma história, um episódio de sua
história profissional, que suscita reflexão no leitor (SOLIGO, 2019).

Sendo assim, a proposta adotada se deu com estudantes e professores que em


seus textos, suas pipocas pedagógicas, narrassem suas experiências do vivido numa
perspectiva de que a escrita de si em textos narrativos pudessem auxiliar no exercício
da metarreflexão e da tomada de consciência auxiliando no processo de pensar sua

sumário 673
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

própria prática (PRADO; TERRA; 2013; p. 248) e na sua formação docente, as


pipocas pedagógicas foram o estilo de escrita eleito e proposto pelo coletivo brasileiro
para dialogar com as professoras peruanas. Nesse sentido, a troca entre pares,
movimento do REDEALE e da Rede Desenredando Nudos acordava uma prática de
produção de escrita das pipocas pedagógicas.
As pipocas foram sendo produzidas no mês de abril de 2018 com 11 autores
brasileiros escrevendo suas narrativas e 18 autores peruanas. Todo esse movimento de
escrita das pipocas permitia compreender que através do encontro entre pares dos
coletivos poderíamos ensinar e aprender na troca de experiências e ainda perceber o
professor como pesquisador através da narrativa do vivido.
No decorrer das atividades de produção das narrativas em formato de Pipocas
Pedagógicas iniciadas no REDEALE, outro movimento de produção de escrita foi
levantado como possibilidade de desdobramento. A escrita de cartas, com objetivo de
fazer a leitura entre pares das Pipocas Pedagógicas brasileiras e peruanas. A leitura
entre pares é um movimento adotado no Encuentro de Maestros, no Iberoamericano,
bem como em outros Seminários, Congressos e Eventos Pedagógicos e serve como uma
ferramenta de diálogo na expectativa de orientar a experiência educacional.

La lectura entre pares es un diálogo y reflexión colectiva de manera escrita,


virtual o presencial, entres dos o más personas que permite compartir,
enriquecer, reflexionar, recibir su gerencias y comentar una investigación o
narrativa pedagógica.
La lectura entre pares es parte del proceso oficial de acompañamiento de
reflexión pedagógica y como requisito de participación para el IX Encuentro
Internacional de Redes y Colectivos docentes que realizan investigación e
innovación desde su escuela y comunidad. Sirve como herramienta de
diálogo com el objetivo de orientar a que la experiencia educativa (Texto
retirado da Guía de“Lectura entre pares a nivel nacional” COPREDIIEC;
2019).

E para seguir com a reflexão coletiva das pipocas pedagógicas na


modalidade escrita, conforme proposta da leitura entre pares, as coordenadoras do
REDEALE acordaram junto ao coletivo brasileiro que seriam escritos os comentários
das leituras através de cartas como respostas às professoras peruanas.
Sendo assim, e por concordância entre os coletivos, o movimento adotado na
proposta de atividades e trocas entre os pares da América Latina para o ano de 2018
seguiu inicialmente com 1) Escrita das narrativas pedagógicas, numa perspectiva de
narrar em formato de pipocas pedagógicas; 2) Leitura entre pares realizado pelos
participantes dos coletivos ; 3) Resposta da leitura a partir de uma troca afetuosa através

sumário 674
VII Seminário Vozes da Educação

de cartas e 4) Concluir a atividade com a publicação de um livro a partir das narrativas


pedagógicas dos coletivos.
Perceber todo esse movimento que dava vida aos coletivos, que ultrapassava
fronteiras, afinava uma parceria e fomentava uma expectativa da descoberta do outro,
de suas experiências, seu fazer pedagógico e suas histórias de vida, permite refletir
acerca das histórias não contadas, das histórias de professores como importantes para a
formação docente e sobretudo, para que, as narrativas pedagógicas, as experiências e
histórias do vivido dos professores narradores brasileiros e peruanos, permitam pensar o
professor-pesquisador-narrador (PRADO e SERODIO; 2015;p.92)
Nessa perspectiva, retomo a fala do estudante e professor Dennys (2018) quando
diz que mesmo tendo pouca experiência em sala de aula como educador, tento
reconhecer e, quem sabe, ser incentivo para alguém seguir a profissão, e provocar os
primeiros sinais. Estes escritos docentes que além de dar pistas de suas reflexões acerca
da sua formação docente, do seu papel quanto professor e de suas expectativas quanto a
sua atuação profissional, permite perceber a escrita narrativa como recurso que
corrobora para que se faça as reflexões sobre sua prática e seu saber-fazer profissional.
Permite ainda, reconhecer a formação do professor, fortalecendo seu lugar de
intelectual, de produtor de conhecimento, de professor-pesquisador, pesquisador de sua
própria prática corroborando ainda, para firmar a profissão docente e compreender suas
histórias de vida e formação nos reflexos de suas práticas.

Considerações finais
Os processos investigativos-formativos vividos no diálogo entre pares das redes
Redeale-Brasil e Rede Desenredando Nudos-Peru, reafirmam o/a docente como
pesquisador/a de sua própria prática, como condição para construirmos novas
compreensões sobre a escola, o processo ensino-aprendizagem, as questões políticas-
ideológicas que permeiam o cotidiano, as práticas pedagógicas e o próprio ser docente.
A participação em coletivos docentes que assumem uma postura investigativa a
partir do cotidiano da escola e da comunidade tem ajudado no enfrentamento ao desafio
de transformar narrativas orais, prática mais tradicional entre docentes, em narrativas
escritas e difundir os saberes produzidos no cotidiano escolar. A escrita das narrativas
por professores/as se inscreve, assim, como um esforço e como luta para dizer a própria
palavra, seus saberes e dizer sobre si, como um exercício de autoria.

sumário 675
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Tendo como base suas histórias de vida, as narrativas dos/das professores/as


sejam orais ou escritas podem nos remeter à reflexão de Florestan, segundo a qual:

As histórias de vida de pessoas que se encontram no limite de situações


históricas e/ou étnicas tornam-se sociologicamente relevantes, uma vez que
seu exame possibilita perceber o que elas fazem nesses “momentos em que o
rumo pré-traçado pela origem e pela situação de classe entra em crise” (idem.
P. 18). Assim, não só as rupturas propriamente sociais são importantes para
compreender as transformações na sociedade, também contam as rupturas
interiores, a partir das quais o indivíduo tem de decidir os rumos de sua vida
e, neles, os da sociedade (SANTOS, p. 88, 1996).

Uma vez que os registros dos/das docentes estão permeados pelos


atravessamentos provocados por questões não apenas de ordem social, como também
pelas respostas que vão sendo gestadas pelos/as próprios/as docentes a tais questões.
A narrativa da experiência, oralmente ou por escrito, como exercício coletivo,
permite uma aproximação entre o mundo vivido e o mundo da teoria como diz Lima,
Geraldi e Geraldi (2014), pois combase nessa perspectiva, podem-se tirar lições ou
conselhos autorizados pela experiência de um vivido em particular (LIMA, p. 38,2006)
Nesse sentido, o REDEALE tem defendido junto com Lima, Geraldie Geraldi
(2015) que o melhor caminho para compreender as práticas das professores/as nas
escolas, e junto com eles/elas produzir uma epistemologia da prática, é ouví-las/os, em
suas narrativas orais ou escritas, reconhecendo-os/as como intelectuais produtores/as do
ser docente, apoiando-as em seu processo de se fazerem professoras e pesquisadoras,
sujeitos que querem compreender o que lhes toca, o que lhes acontece e o que fazem
acontecer.( p. 42).
As experiências que temos vivido junto aos coletivos docentes latino americanos
têm reafirmado para nós a potência das narrativas docentes e da formação entre pares na
produção de pedagogias e epistemologias comprometidas com perspectivas
emancipadoras do saber fazer docente.

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para-degustar/comment-page-1/>visualizado em 25/05/2019 às 15:19h.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ANÁLISE DA DIDÁTICA E MEDIAÇÃO DO CONHECIMENTO DOS


PROFESSORES DE GEOGRAFIA EM SÃO GONÇALO – CONDIÇÕES DOS
PROFESSORES FRENTE À ESCOLA PÚBLICA

Beatriz Carvalho Torres


UERJ FFP
beatriztorres9610@gmail.com

1. Introdução
Sabemos que o sistema de ensino público tem sofrido com o mau funcionamento
de sua gestão, e isto tem trazido consequências ao trabalho docente e na aprendizagem
dos alunos. Desde a falta de recursos, até a desmotivação dos profissionais da educação,
por não terem muitas das vezes condições de exercer plenamente seu trabalho por
questões salariais, de estrutura, de ambiente, entre outros. Também pode-se dizer até do
desinteresse de alguns alunos frente aos conteúdos e a vivencia dentro da escola, são
evidências do momento que passa a dinâmica escolar pública no país.
Pode-se observar que as disciplinas nas escolas acabam sendo marginalizadas
como no caso da Geografia que busca desenvolver uma leitura crítica espacial nos
alunos. Desta forma, pode-se ainda perceber em alguns casos professores, em
decorrência da desmotivação frente ao trabalho docente adotam práticas mais voltadas
ao tradicional, evidenciando a geografia “simplória e enfadonha” como cita Yves
Lacoste (1976) em seu livro “Geografia, isto serve em primeiro lugar para fazer a
guerra”. Contudo, também observa-se vários professores que buscam desenvolver um
ensino crítico em seus estudantes.
Por isso, a pergunta que emerge neste cenário é: De que forma se envolverá este
aluno para uma aprendizagem geográfica onde se evidencie o olhar crítico deste aluno
ao seu entorno? Sendo assim, é necessário, portanto, uma pratica de ensino que
evidencie uma abordagem de inter-relação entre a realidade do aluno e os conteúdos e
conceitos geográficos, entendendo “que esse conhecimento é construído a partir das
relações que os alunos fazem com o mundo, com os outros e com os saberes
acumulados ao longo da história.” (SACRAMENTO, 2012, p.21).
Sobre isso aborda Cavalcanti (2010, p.3) “o professor deve atuar na mediação
didática, o que implica investir no processo de reflexão sobre a contribuição da
Geografia na vida cotidiana, sem perder de vista sua importância para uma análise

sumário 678
VII Seminário Vozes da Educação

crítica da realidade social.” Desta forma, o aluno poderá não apenas estudar o conteúdo
de Geografia, mas se ver como sujeito atuante no processo de aprendizagem,
participante da disciplinaa qual aprende, olhando seu entorno não mais passivamente,
mas com olhar crítico e ativo da realidade vivida. Esta perspectiva acaba com a noção
de insignificância dos conteúdos Geográficos na vida dos alunos, fazendo-os ver
Geografia como uma disciplina importante no seu processo formativo como ser em no
espaço.
O professor neste caso, entendendo a realidade de cada aluno dialoga conteúdos
de geografia física, interligando estas duas realidades a prevenção e riscos, levando
ambos os alunos, de diferentes realidades, a um entendimento dos conteúdos
geográficos e sua relação com o espaço que vivem e atuam.
Com isso, o objetivo deste trabalho é analisar a didática e mediação do
conhecimento de dois professores de Geografia de escolas públicas de duas áreas
centrais da cidade de São Gonçalo. Desta forma, compreendendo como os professores
buscam entender o processo de mediação do ensino considerando a didática no
desenvolvimento da aprendizagem. E apresentar a análise de dados da pesquisa
“Didática e Mediação do conhecimento de professores de Geografia em São Gonçalo”,
no período de 2018-2020, coordenado pela Professora Dra. Ana Claudia Ramos
Sacramento, que visa compreender a mediação e didática desenvolvidas pelos
professores das escolas públicas de São Gonçalo no processo de ensino dos conteúdos
geográficos, a fim de possibilitar a reflexão sobre o ensino aprendizagem de geografia.
Vale ressaltar que este trabalho é a continuação de pesquisas realizadas de 2014
a 2018, nas quais Sousa; Sacramento (2017) buscaram trabalhar como os professores,
no processo de construção e produção do seu trabalho, compreender o processo de
mediação que orientam suas ações didáticas durante a aula no município de São
Gonçalo. Souza (2018) em sua monografia de conclusão de curso de licenciatura
investigou a didática e mediação de três professores de escolas públicas distintas do
município de São Gonçalo; Sousa; Sacramento (2019) buscam analisar os professores e
a relação destes com o livro didático na produção do conhecimento geográfico em sala
de aula.
Como metodologia optou-se pela abordagem qualitativa, a partir da etnografia
escolar, a fim de investigar como os sujeitos interpretam suas experiências e o modo
como estruturam o mundo social em que vivem. (ANDRÉ, 2000). Considerando o

sumário 679
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

aluno como sujeito e incorporando, portanto, sua realidade ao processo de


aprendizagem.
Na primeira parte, será discutida a metodologia da pesquisa, quais são os
direcionamentos e as etapas para o desenvolvimento do trabalho; na segunda parte o
fundamento teórico e os resultados referentes a didática de dois professores da rede
pública de São Gonçalo.

2. Etnografia escolar como metodologia para compreender a mediação do


professor
A pesquisa tem como aporte metodológico por abordar qualitativa, a partir da
etnografia escolar, pois faz com que o pesquisador analise as práticas escolares dentro
da vivencia cotidiana deste espaço escolar, como aborda Franco; Ghedin (2008) e André
(2000), entendendo tanto professores como alunos atores ativos nesta prática. Uma vez
que dentro da escola podemos compreender os contextos existentes em diversos níveis,
mas que neste texto será tratada a mediação do professor e sua relação com o estudante.
Dentro dessa perspectiva salienta Sacramento (2012, p. 31), a compreensão
sobre pesquisa não é mais aquela baseada somente na descrição ou na tentativa de
quantificar os dados, mas voltada também, e principalmente, para a análise do grupo da
prática docente e da aprendizagem do aluno. Ou seja, a etnografia escolar nos faz olhar
a prática escolar, de dentro do local onde esta acontece, para dialogar com os sujeitos
dessa prática, ao observar como ela influencia no processo de ensino-aprendizagem dos
alunos. Desta forma, ela possibilita, segundo autora, entender o outro, aquilo que os
sujeitos são na realidade, assim, percebendo o mundo do outro, e seu agir sobre algo.
Utilizamo-nos, portanto, das ideias de André (2000), nas quais podemos
trabalhar esta abordagem em três fases importantes no processo metodológico: escolha
do local da pesquisa, sistematização dos dados e explicação e interpretação da realidade,
as quais nos ajudam no momento de refletir os dados da pesquisa.
Sendo assim, esta análise foi feita a partir, primeiro, das observações das
práticas de dois professores em duas escolas estaduais de localidades centrais de São
Gonçalo (Figura 1), escola 1, no Bairro do Paraíso e escola 2, no Bairro Zé Garoto
(Figura 2), realizadas durante o período de março a outubro, na escola 1 foram 32 aulas
assistidas e na escola 2 foram 36 aulas assistidas.Ambas as escolas são disputadas para
ingresso dos alunos.

sumário 680
VII Seminário Vozes da Educação

O objeto do estudo é investigar, sobretudo as ações didáticas e a forma como se


articula os conteúdos e conceitos geográficos ao cotidiano e realidade destes alunos,
além, da maneira como estes alunos recebem estes conhecimentos e sua relação com o
professor, a partir desta abordagem.
No segundo momento há o exercício do reconhecimento da escola, assim como,
sua infraestrutura, a relação dos alunos com o espaço escolar, e uma sistematização dos
dados, através da observação das aulas realizadas pelos professores e analise por meio
de um roteiro de observação das aulas a fim de analisar a ocorrência do processo de
didática e medição por parte dos professores.
E, por fim, em um terceiro momento há a interpretação da realidade onde por
meio de leituras sobre didática e mediação do ensino de Geografia, atreladas aos
resultados das análises dos roteiros, podemos refletir a vivência de professores e
estudantes na sala de aula.

Figura 1: Mapa de localização do município de São Gonçalo

Fonte: Arthur Alves Bispo dos Santos, 2018.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Figura 2: localização das escolas 1 e 2

Em vermelho: Escola 1/ Em amarelo: Escola 2. Fonte: Google Maps, 2019.

3. A aula e o processo de mediação do professor


A aula é o momento onde o professor media, ou deveria o saber construído
através da interação entre os conteúdos, conceitos e a realidade cotidiana do aluno. Para
uma boa aula é necessário que ele analise sua didática, ou seja, “como este professor irá
conduzir a organização e produção deste conhecimento escolar partindo da relação com
seu objeto de trabalho: a mediação do saber” (SACRAMENTO, 2012, p. 106).
Dessa forma, é necessário que este professor entenda como adaptar as demandas
da aula, conteúdos, conceitos, assim como, as realidades do aluno, baseando-se nos
fundamentos didático pedagógicos, a partir das diversas formas de ensinar, para melhor
conduzir a aula, de forma que haja mediação do saber.
Bem como pensar como o enfoque social na aprendizagem dos estudantes
podem ser parte da mediação do conhecimento para problematizar os aspectos sociais,
uma vez que o conhecimento começa a ser construído de maneira individual e
socializado pelo saber.

sumário 682
VII Seminário Vozes da Educação

Para tanto Sousa; Sacramento (2019) destaca que de acordo da forma como o
professor articula o conhecimento, a metodologia e as formas didático com os recursos
para ensinar este pode tratar os alunos a refletirem sobre as maneiras de ver e ler o
mundo.
Destarte, esse aluno deve ser entendido em suas múltiplas atividades e realidades
culturais, para que haja o entendimento das suas diversas práticas sociais no espaço,
pois cada um é distinto em suas historias e atuam no espaço com práticas diferentes, é
necessário dessa forma, como cita Sacramento (2012, p. 93): “Para ensinarem e
mediarem o conhecimento é importante que os docentes tenham formações, tanto
acadêmica como cultural. Desta maneira, eles precisam ampliar seus referencias
culturais, frequentando espaços diferenciados”.
Assim, o professor deve, entendendo-se como ser atuante e vivente da realidade
social que é distinta em realidades espaciais diferentes, entender as práticas sociais de
cada aluno, suas experiências, visões de mundo, crenças, modo de vida. E dialogar suas
realidades aos conteúdos geográficos. Com isso, o professor conseguirá trabalhar com o
aluno a noção de espaço geográfico. Desta forma, haverá não apenas o desenvolvimento
acadêmico deste professor, mas também cultural, compreendendo as multiplicidades da
realidade espacial de seus alunos, levando-os a compreensão da sociedade,
principalmente pela educação (SOUSA, 2018). Como exemplo, podemos citar a relação
do aluno que vive perto de um rio, e a relação do aluno que vive perto de uma encosta,
ambos vivem em realidades distintas, porém, alinhadas a uma abordagem mútua.
Segundo Sousa; Sacramento (2017, p. 876) cabe a cada professor compreender
os fundamentos didático-pedagógicos para trabalhar e usar aquele que tem mais sentido
para a organização didática da sua. Dessa forma, ele, durante a dinâmica de aula e
entendendo o perfil de cada aluno compreenderá a forma que irá conduzir a aula, e
mediar os conceitos e conteúdos geográficos.
Desta maneira, a mediação do conhecimento é necessária por parte dos
professores que irão dialogar com os alunos o “conhecimento construído a partir das
relações que os alunos fazem com o mundo, com os outros e com os saberes
acumulados ao longo das histórias. Sendo assim, é importante, não só organizar e
estimular os saberes dos alunos empíricos como científicos, mas também pensar como
fazer a interação desses conhecimentos que são concretizados na prática escolar
(SACRAMENTO, 2012, p. 21). É preciso, portanto, para isso, que o docente avalie sua
prática de ensino, refletindo sobre sua didática, entendendo o ato de ensinar como

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

“aquele que promove e amplia o desenvolvimento das capacidades intelectuais dos


alunos por meio dos conteúdos.” (LIBANÊO, 2011a). Como diz a teoria do pedagogo
russo Lev Vigotsky encontrada na obra de LIBANÊO (2011 b, p. 3): “O objetivo do
ensino é o desenvolvimento das capacidades mentais e da subjetividade dos alunos
através da assimilação consciente e ativa dos conteúdos, em cujo processo se leva em
conta os motivos dos alunos”.
Ao mediar a aula este professor estará contribuindo para a construção de uma
relação impar com seus estudantes, articulando não só a disciplina escolar, mas todo o
meio que promova certa aprendizagem Sacramento (s.d,p.3. no prelo), o que o leva a
entender o aluno como ser munido de bagagens culturais, dando ao professor a
oportunidade de interligar essas bagagens aos conteúdos geográficos transmitindo a esse
aluno da melhor forma possível o conteúdo, gerando um saber espacializado. Como
aborda Libâneo (2009, s/p):

Como ação de mediação, a razão de ser do ensino é assegurar os meios e as


condições para que ocorra o encontro formativo – afetivo, cognitivo, ético,
estético – entre o aluno e o objeto de conhecimento, ou seja, a confrontação
ativa, cognitiva e afetiva, do aluno com a matéria. O trabalho do professor
consiste em fazer a mediação entre os aspectos externos e os aspectos
internos da educação e do ensino.

Sendo assim, ao unir todos esses elementos, o professor possibilita ao aluno,


uma aula que o envolva, que o represente, fazendo-o se sentir parte da geografia que se
aprende. Nesta perspectiva, iremos trazer algumas análises que obtivemos através das
observações, e frente às discussões teóricas abordadas acima.

4. Compreendendo as escolas da pesquisa


A escola é um local de diversas relações, de diálogo e construção de saberes,
porém, atualmente a escola pública tem sofrido diversos ataques que vão de encontro à
manutenção da sua significação: Uma instituição capaz de propagar conhecimento. Isso
tem ocorrido nos últimos anos devido à política neoliberal vigente com caráter
meritocrático, desigual, que tem visado o conhecimento dos alunos a encarar a escola
como “passagem” para o mercado de trabalho, o que promove ainda mais o processo de
ensino por memorização de conteúdos, despido de uma análise crítica da realidade. Em
relação a isto aborda Couto (2014 p.251-252):

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VII Seminário Vozes da Educação

As atuais políticas educacionais reproduzem o processo de expansão com


precarização da educação pública brasileira. Entretanto, há especificidades na
atual conjuntura neoliberal, visualizadas na finalidade de formação do
trabalhador flexível e de consumidores (finalidade da educação), nas
políticasde currículo e avaliação externa - ações de controle da
escola/professores-,e na política produtivista da meritocracia, de flexibilidade
dos salários, condições de trabalho, visando otimizar custos em função de
metas burocráticas.

Além disto, os recorrentes cortes de verbas educacionais propiciam um ambiente


escolar de impossibilidades e dificuldades aos professores, acarretando a estes a tarefa
de desenvolver ensino e aprendizagem em meio às intempéries. Os professores
precisam incentivar alunos, desmotivados frente aos conteúdos e a vivência na escola,
devido à mentalidade de não serventia destes aprendizados para a vida, propagado por
projetos que pensam mais a qualificação profissional. Dessa forma, vale ressaltar aqui
os programas de avaliação que visam à padronização das escolas em empresas,
submetendo-as a padrões e metas, e a aplicação de provas, imersas em uma logica de
meritocracia, o que distancia ainda mais os alunos do processo de ensino aprendizagem.
“Frente a esta dinâmica emerge o desafio do professor de despertar o interesse
do aluno através de um processo pedagógico que se organize a partir da sua experiência
cotidiana e da resolução de problemas” (COUTO, 2014, p. 252). Podemos desenvolver
assim, metodologias e práticas independente das dificuldades encontradas na escola
atualmente, que vise o conhecimento, relacionando os conceitos e conteúdos
geográficos às realidades de cada aluno.
Sendo assim faz-se necessário que este professor aproxime o aluno do conteúdo
de Geografia, possibilitando o olhar deste acerca do espaço vivido e das relações
expressas neste, sejam elas relações de poder inseridas no sentido a invisibilizar o papel
necessário do olhar crítico frente a realidade. Desta forma, a importância da mediação
emerge no sentido que esta une a apropriação do conteúdo e a capacidade de relacioná-
lo a realidade possibilitando ao aluno o pensamento crítico.
Neste sentido, é essencial compreender e analisar o processo de didática e
mediação de conhecimento que perpassa pelo uso da etnografia escolar, a fim de
aproximar o pesquisador da vivencia cotidiana e das práticas escolares, para buscar
neste item caracterizar as escolas onde foi realizada esta pesquisa, observando suas
condições.
A escola 1 está localizada no Bairro do Paraíso no quarto distrito de Neves,
município de São Gonçalo, um bairro majoritariamente residencial, tendo suas vias

sumário 685
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

principais com muitos comércios e fluxo intenso de pessoas e transportes. Sendo,


portanto o entorno na escola 1 movimentado devido as diversas atividades. Vale
ressaltar em sua localização a proximidade com a comunidade do Feijão, na parte de
trás da escola, onde devido a eventos de confrontos periódicos, prejudica a continuidade
das aulas, que são em muitos casos suspensas a fim de proteger o bem-estar dos alunos.
A escola conta com três turnos, sendo eles manha tarde e noite, distribuídos
entre o primeiro, segundo e terceiro anos do ensino Médio. Também oferece aos alunos
a merenda escolar, além de em infraestrutura como laboratório de informática,
biblioteca, auditórios e quadra de esportes. Vale ressaltar que no período das
observações, a escola estava passando por obras em algumas salas, dessa forma, houve
o remanejamento das turmas para estes espaços citados.
A escola 2 está localizada no Bairro do Zé Garoto, primeiro distrito do
município de São Gonçalo, engloba a área central da cidade, localizando-se ao lado da
praça Zé Garoto, histórica em sediar eventos festivos e culturais da cidade, assim
também como a proximidade com os comércios centrais da cidade e atividades politicas
e econômicas , tendo portanto, um fluxo bem maior de pessoas, transportes e comércios.
A escola conta com três turnos, sendo eles manha, tarde e noite, distribuídos
entre o primeiro, segundo e terceiro anos do ensino Médio. Também, oferece aos alunos
a merenda escolar. Em sua infraestrutura conta com biblioteca, auditório e quadra de
esportes.
Ambas as escolas, por serem centrais, recebem alunos de diversas áreas da
cidade, divergindo no perfil dos mesmos, conforme ocorre a mudança de turnos, e
contam com um corpo de funcionários como inspetores, bem alinhados as dinâmicas
escolares.

5. Análises e discussões sobre as concepções didáticas dos professores


A aula deve ser pensada seguindo alguns aspectos necessários. É preciso que o
professor reflita em suas concepções didatico-pedagogicas assim como a relação que
terá com o aluno frente as suas realidades e os conteúdos geográficos, buscando,
portanto, a melhor forma de dialogar sobre esses conteúdos. Para isso, é preciso, que o
professor se compreenda como participante do processo de ensino-aprendizagem, onde
este apresentará o conteúdo onde o aluno poderá se desenvolver através de uma ação
autônoma e criativa. Como aborda Libâneo (2011 b, p. 5):

sumário 686
VII Seminário Vozes da Educação

O papel do professor, portanto é o de planejar, selecionar e organizar os


conteúdos, programar tarefas, criar condições de estudo dentro da classe,
incentivar os alunos para o estudo, ou seja, o professor dirige as atividades de
aprendizagem dos alunos a fim de que estes se tornem sujeitos ativos da
própria aprendizagem.

Sendo assim, a processo didático deve este inserido em um ambiente onde o


professor, prepara a aula, organiza os conteúdos e atividades, conduzindo e criando
condições de aprendizagem para os alunos, que estarão participando deste processo
ativamente associando os conteúdos a sua realidade. Dessa forma, o professor, no
momento da elaboração da aula, precisa pensar em questões como: de que elementos
são necessários para elaborar essa aula? Como fazer com que os alunos se tornem
participantes ativos da aula?como desenvolver para que os alunos possam saber
trabalhar juntos? (SACRAMENTO, s.d. p.3.), com isso haverá um processo efetivo de
mediação do conteúdo de Geografia. Dessa forma, face o exposto, analisaremos mais
adiante, as concepções didáticas dos professores das escolas analisadas 1 e 2.

5.1. Concepções didáticas da professora da escola 1


As observações das aulas da professora 1, foram realizadas compreendendo o
período de março até outubro de 2019. A turma observada foi uma turma de 2° ano do
ensino médio, constituída de aproximadamente 25 a 30 alunos.
Os alunos em relação à realização das atividades e aprendizagem, em sua grande
maioria desenvolve as atividades propostas, eles eram participativos nos momentos de
diálogo sobre o conteúdo, porém durante o restante da aula observou-se, por parte deles,
certa apatia. Podia-se perceber sempre conversas entre si sobre outros assuntos não
pertinentes à atividade enquanto a realizavam. Porém, a relação entre professora e os
alunos era sem muita interação ou diálogo durante as aulas, restringindo o diálogo aos
momentos de explicação do conteúdo e avisos sobre provas e datas, sendo assim, a
professora acabava ficando um pouco destacada da turma durante todo o período
restante de aula.
Quanto aos conteúdos, ela se baseou a partir do Currículo Mínimo estabelecido
pela SEEDUC – Secretaria do Estado e Educação do Rio de Janeiro, fazendo uma
inversão dos temas de acordo com o currículo, devido a uma abordagem da escola,
adaptando o currículo. Dessa forma, ela trabalhou a temática de Urbanização mundial e
Brasileira, com conteúdos como Matrizes/modais de transporte no Brasil e mundo,
globalização. Os conceitos de espaço-tempo referentes ao 2° Bimestre e as temáticas de

sumário 687
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Blocos econômicos apresentando conteúdos como Blocos econômicos regionais,


comercio internacional, utilizando conceitos como importação e exportação, no 3°
Bimestre.
Os conteúdos foram trabalhados sempre através do método tradicional com
exposição de resumos no quadro, e exposição verbal, seguidos, na aula seguinte, por
questões sobre este assunto abordado na aula anterior. Em algumas aulas, perto do
período de provas, tinham sua configuração alterada para: atividades no quadro, sendo
passadas para a próxima aula as discussões sobre a atividade, nas quais os estudantes
receberiam o visto no caderno. Em alguns momentos das aulas, percebia-se a busca por
uma aproximação entre os conteúdos com a escala local, bem como com os conceitos
geográficos. Neste momento, observava-se mais a participação doe estudantes, porém,
durante todo o resto delas, o ambiente da sala se tornava apático, devido à falta de
outras atividades que poderia mediar os conhecimentos geográficos.
Dessa forma, observa-se em poucos momentos das aulas uma tentativa de
mediação por parte da professora, como trazer a realidade dos alunos associada aos
conteúdos geográficos, o que, no momento, instigava-os a aprendizagem e
envolvimento, porém, estes momentos eram curtos, não aproveitando totalmente o
tempo de aula para desenvolver outros processos e atividades que promoveriam o
processo de aprendizagem. Portanto, tornando a maioria das aulas, com grande tempo
ocioso e fomentando o desinteresse e a falta de uma relação dialógica entre os alunos e
a professora.

5.2. Concepções didáticas do professor da escola 2


As observações das aulas do professor 2 foram realizadas entre o período de
junho até outubro de 2019. A turma observada foi uma turma de 1° ano, constituída de
aproximadamente 30 alunos.
Em relação à aprendizagem e a realização das atividades, os alunos se
envolviam bem nas aulas, eram participativos e em sua maioria realizavam as atividades
propostas pelo professor. A relação entre o professor e os alunos era sempre boa,
mesmo sendo uma turma bem agitada, no momento da exposição do conteúdo o
professor os envolvia bem, não tendo grandes problemas com eles. No inicio das aulas,
o professor buscava saber como estava sendo a semana dos alunos ou o dia de
atividades na escola. Havia uma relação de bom humor entre eles, o que atraia a atenção
dos alunos ao professor.

sumário 688
VII Seminário Vozes da Educação

Quanto aos conteúdos, o professor se baseou no Currículo Mínimo estabelecido


pela SEEDUC – Secretaria do Estado e Educação do Rio de Janeiro, abordando as
temáticas de Dinâmica Climática, abordando conteúdos como tempo e clima e fatores
climáticos referentes ao 2° Bimestre e Transformações do Relevo, abordando conteúdos
como agentes do relevo e camadas da terra, referentes ao 3° Bimestre. Utilizou-se
sempre do quadro para fazer a exposição do conteúdo, e a exposição verbal. Alguns
alunos durante a discussão dos conteúdos sempre faziam perguntas, relacionadas ao
envolvimento dos conteúdos com as questões locais. Ele se utilizava praticamente de
toda aula para a discussão do conteúdo, associando-o as discussões de questões locais
com alunos, de forma prática, por meio de perguntas diretamente a alguns alunos
específicos, trabalhando com que todos pudessem se envolver e participar das aulas.
Além disso, ele fazia croquis no quadro para facilitar como forma de recurso para
promover a explicação do conteúdo de clima, além de fazer associações e trazer
assuntos atuais da semana para comparar com o conteúdo abordado.
O desenvolvimento das aulas acontecia sempre em dois momentos, assim como
a professora 1: resumo no quadro, e exposição verbal sobre o conteúdo, e em aulas mais
próximas do período de prova: exercícios sobre os conteúdos abordados no bimestre.
Ambos os professores não utilizavam com frequência o livro didático, e sim, o
uso de resumos no quadro e atividades de revisão da matéria. Embora o professor 2
utilizasse desses métodos, havia uma preocupação com a forma da trabalhar dos
conteúdos aos alunos. Observou-se, também, uma tentativa de associar os projetos
interdisciplinares da escola às aulas, mesmo que apenas em uma aula. Os alunos
deveriam formular em grupo e apresentar na sala de aula uma paródia elaborada a partir
dos conteúdos trabalhados no 3° Bimestre, tendo, portanto um dia especifico para a
realização desta atividade, sendo a melhor parodia escolhida para representar a turma no
dia do evento “Geo Festival” – Evento anual de paródias da escola, envolvendo todos os
professores de Geografia e todas as turmas da escola.
Dessa forma, observamos que o professor 2, mesmo não tendo muitos recursos
didáticos a sua disposição, se preocupou em aproximar os conteúdos com a dinâmica
local dos alunos, a fim de desenvolver uma aprendizagem mais mediada, porém,
utilizou metodologias mais voltadas ao tradicional, assim como a professora 1. Porém
destacou-se em ambos, métodos mais voltados ao tradicional.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

6. Considerações finais
A partir da pesquisa podemos concluirque ambos os professores tem um
método tradicional, mas em uma relação didático-pedagógica, o professor 2 consegue
desenvolver com o alunos uma melhor mediação da aprendizagem dos conteúdos
geográficos, justamente pela sua relação de interesse em associar sempre a realidade dos
alunos aos conteúdos ensinados, o que gerou dinamismo e debate na sala de aula.
Segundo Libâneo (2011a, p. 88): “Uma boa didática, na perspectiva da mediação, é
aquela que promove e amplia o desenvolvimento das capacidades intelectuais dos
alunos por meio dos conteúdos”. E isto acontece através da participação deste aluno no
processo de aula, sendo assim, através das perguntas, e da abordagem de aproximação
do conteúdo com a discussão as diferentes escalas de análise geográficas dos alunos, há
uma inserção do senso crítico nestes alunos, o que os faz se compreenderem
participantes na geografia ensinada.
Porém por outro lado é importante neste processo pensar as diferentes ações a
serem utilizadas no processo de mediação do conhecimento, diversificando nas ações
metodológicas durante a realização da aula, não apenas, se utilizando de metodologias
voltadas apenas ao tradicional, mas observando a demanda da turma de forma a
possibilitar, entendendo cada um como ser dotado de experiências distintas, diferentes
atividades que irão “permitir a compreensão de fenômenos, conceitos e conteúdos.”
(SACRAMENTO, 2012, p. 264). Desta forma, alunos com maior sensibilidade a uma
forma de aprender, seja por imagem, música, por tarefa individual de assimilação, ou
tarefa em grupo, além de ações táteis, poderá absorver melhor o conteúdo e ter um olhar
crítico sobre este.
Sendo assim, é necessário pensar toda dinâmica da aula, não apenas o momento
de exposição dos conteúdos, mas, sobretudo a forma como esse conteúdo será mediado
entre os alunos. Assim, o professor pode refletir sobre sua aula, e a forma como
construirá suas atividades por meio de um processo de ensino aprendizagem,
possibilitando segundo Libâneo (2009), o desenvolvimento mental de seus alunos,
promovendo-lhes os modos e as condições que assegurem esse desenvolvimento.”
Portanto, pode fornecer aos alunos as “condições para o domínio dos processos mentais
para a interiorização dos conteúdos, formando em sua mente o pensamento teórico-
científico” (LIBÂNEO, 2009, p. 3-4).

sumário 690
VII Seminário Vozes da Educação

Referências
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2000.

CAVALCANTI, Lana de Souza. A Geografia e a realidade escolar contemporânea:


avanços, caminhos, alternativas. Anais do I Seminário Nacional: currículo em
movimento – Perspectivas Atuais Belo Horizonte, Anais... 2010, p. 1-16.

CAVALCANTI, Lana de Souza. Geografia, escola e construção de conhecimentos.


18ª edição. Campinas, SP: Papirus, 2013.

FRANCO, Maria Amélia Santoro; GHEDIN, Evandro. Questões de método na


construção da pesquisa em educação. São Paulo: Cortez, 2008. (Coleção Docência
em formação. Séries saberes pedagógicos).

COUTO, Marcos Antônio Campos. Práticas educativas na geografia que se ensina na


escola pública Brasileira. In: Caso, Maria Victoria Fernández; Gurevich, Raquel.
Didáctica de la geografia: prácticas escolares y formación de profesores – 1ª ed. -
Ciudad Autonóma de Buenos Aires: Biblos, 2014. p 251 - 269.

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Tradução Maria Cecília França – Campinas, SP: Papirus, 1988.

LIBÂNEO, José. Carlos. Teoria Histórico-Cultural e metodologia de ensino: para


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LIBÂNEO, José Carlos. Escola pública brasileira, um sonho frustado: falharam as


escolas ou as políticas educacionais? In: LIBÂNEO, José Carlos; SUANNO, Marilza
Vanessa Rosa. Didática e escola em uma sociedade complexa. Goiânia: CEPED, 2011
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LIBÂNEO, José Carlos. Didática e trabalho docente: a mediação didática do


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SACRAMENTO, Ana Claudia Ramos. Mediação e Didática Histórico-Crítica


Concepções para pensar a aula no Ensino de Geografia.s.d,p. 1 – 22. (digitalizado)

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Concepções didáticas e mediação das aulas de geografia: Estudo de professores da rede

sumário 691
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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de Prática de Ensino em Geografia: conhecimentos da Geografia: percursos de
formação docente e práticas na educação básica. Belo Horizonte: IGC, Anais..., 2017,
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SOUSA, Rafaella César dos Santos; SACRAMENTO, Ana Claudia Ramos. A


importância do livro didático e a mediação didática no ensino-aprendizagem da
Geografia Escolar. In: COSTA, Alvaro Daniel. Cultura, cidadania e políticas
públicas 2. (Org.). 1ed.Ponta Grossa: Atena, 2019, v. 2, p. 85-100.

sumário 692
VII Seminário Vozes da Educação

A ESCRITA COMO COMPANHEIRA – A ESCRITA COMO POSSIBILIDADE:


NARRATIVA DA EXPERIÊNCIA DE
PESQUISA-FORMAÇÃO EM ANDAMENTO

Liliam Ricarte de Oliveira93


UNICAMP
ricarteli@gmail.com

Para iniciar me apresentando e dizendo de onde falo, digo que sou professora de
educação infantil há 15 anos, desde o ano de 2004. Sou formada em Pedagogia pela
Unicamp desde 2002. Antes de 2004, fui professora de informática numa escola
particular de Campinas, passei um ano, divididos em dois meios anos como professora
da segunda série do ensino fundamental na rede municipal de Itaquaquecetuba, na
região da Grande São Paulo e meio ano como professora auxiliar na mesma escola
particular onde havia sido professora de informática anteriormente.
Tendo trabalhado por esses dois anos após minha formação no ensino
fundamental, senti um grande estranhamento quando iniciei o trabalho na educação
infantil em 2004, mas essa nova forma de olhar para a escola que me foi apresentada
pelas crianças pequenas me encantou e me afetou de tal forma que me pus a escrever
sobre esse meu cotidiano (com)vivido com elas num blog. Mas por que um blog e não
um caderno pessoal? Via no blog, na época, a possibilidade de que esse encantamento
pudesse transbordar os muros escolares e ser compartilhado com outras professoras,
outras pessoas. Ao mesmo tempo, escrever também me auxiliava um movimento de
ação-reflexão-ação sobre minha prática cotidiana com as crianças, me colocando como
uma professora-pesquisadora.
Assim, em 2018, 16 anos depois de formada no curso de pedagogia, 14 anos
trabalhando como professora de educação infantil, os últimos 8 anos na rede pública de
Campinas, sendo uma professora-pesquisadora de sua prática cotidiana, ingressei no
programa de Mestrado Profissional em Educação Escolar da Faculdade de Educação da
Unicamp.

93
Professora pela Rede Municipal de Campinas, Mestranda Profissional em Educação Escolar pela
Faculdade de Educação / UNICAMP.

sumário 693
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A ideia apresentada no projeto para o processo seletivo era o de retomar o


itinerário trilhado como professora, a partir destes escritos que o acompanharam,
procurando retomar os aprendizados deste período. Foi assim que passei também a
ocupar um outro lugar, simultaneamente ao lugar da professora de educação infantil e
professora-pesquisadora que continuo sendo: o lugar da mestranda-professora-
pesquisadora.
É essa mestranda-professora-pesquisadora quem olha os escritos tanto dela
própria (da mestranda, produzidos no caminhar da pesquisa), quanto os da professora-
pesquisadora nascidos do encantamento da professora.

A experiência da escrita e a escrita da experiência: a partir da escrita, com a


escrita, pela escrita
Escrevi um projeto para ingressar no programa de Mestrado Profissional em
Educação Escolar em 2017 trazendo como metáfora uma volta à estrada já percorrida
como professora de educação infantil, nas redes particular e pública municipal. Iniciei,
em 2018, sem saber como faria isso. Não sabia, ainda naquele momento, ser impossível
percorrer novamente os caminhos já percorridos. Ingressar no Mestrado Profissional,
em 2018, me propiciou um mergulho! Um mergulho em que, ao mesmo tempo, fui me
aproximando do referencial teórico do meu grupo de pesquisa, da metodologia narrativa
de pesquisa; em que, ao mesmo tempo, fui me encontrando, nas disciplinas que fazia,
com diversos professores, leituras e autores que me faziam pensar e repensar o meu
projeto de pesquisa nas disciplinas; tudo isto ao mesmo tempo também em que
continuava sendo professora de uma nova turma de crianças na escola.
Assim como a criança que falando, aprende a falar, foi imersa na pesquisa que
fui aprendendo a pesquisar, foi narrando, lendo, relendo, reencontrando vivências e
sentimentos e buscando as narrativas escritas ao longo da minha caminhada docente que
fui aprendendo a metodologia narrativa de pesquisa.
Lembro do conselho após o primeiro encontro que tive com minha orientadora:
narre este encontro, não só o que conversamos, mas também as percepções, sentimentos.
Foi deste conselho que nasceu o meu diário de pesquisa, que nomeei de Livro da Vida,
numa referência tanto ao Livro da Vida que acompanhou a escrita da tese da minha
orientadora, como do Livro em que Freinet organizava os escritos das crianças das quais
foi professor.

sumário 694
VII Seminário Vozes da Educação

Assim esta pesquisa foi se constituindo: com a aproximação com os grupos de


pesquisa, com as leituras, com os encontros propiciados pelas disciplinas que cursei,
com a retomada e organização das narrativas escritas quando professora-pesquisadora e
demais guardados do meu baú de professora, com esta nova narrativa que vinha fazendo
e que trazia as percepções do que vivia na pesquisa.
No viver-narrar da pesquisa fui percebendo como ela foi se constituindo
narrativamente em suas três dimensões, pois o registro do percurso se fazia
narrativamente e também ia se constituindo como mais uma fonte da pesquisa,
juntamente com as fontes principais, as narrativas escritas por mim ao longo de minha
caminhada como professora, e a forma de articular e organizar a pesquisa, assim como o
modo de sistematizar o conhecimento produzido, ou seja, o modo de produzir o
conhecimento também se faziam narrativamente (PRADO; SOLIGO; SIMAS, 2014).
E é nesse viver-narrar que ela vai me marcando como uma experiência. Uma
experiência a partir da escrita, com a escrita, pela escrita. Falo de experiência
juntamente com Larrosa, quando a diferencia das diversas vivências pelas quais
passamos cotidianamente e a situa como “o que nos acontece, o que nos toca”
(LARROSA, 2019, p.18).
Cada percepção, cada novo entendimento, cada constatação que eu fazia a partir
das narrativas que eu produzia durante a pesquisa me tocavam profundamente e me
ajudavam entender melhor alguns caminhos que segui como professora, alguns que
escolhi, outros que construí. Cada nova descoberta (ou redescoberta) se colocava para
mim como um acontecimento, como uma experiência. Se vivo uma experiência, me
coloco como sujeito da experiência, que se caracteriza pela sua disponibilidade, pela sua
abertura, como nos ensina Larrosa.
Me coloco como sujeito da experiência quando me exponho e atravesso esse
espaço indeterminado, buscando nas minhas experiências como professora as
descobertas e aprendizados deste período, possibilitando não só o encontro com as
memórias do passado, mas a produção de uma memória de futuro, ou seja, deste
encontro propiciado por essa pesquisa-formação nasce também a possibilidade de uma
professora melhor, mais consciente de seus caminhos, de suas escolhas, mais atenta ao
seu caminhar com as crianças. “Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à
sua própria transformação”, reforça o autor (Ibid, p.28).

sumário 695
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Assim, como sujeito da experiência, após o mergulho, me deixei seguir à deriva


pelos caminhos que a pesquisa me levava, mas os vivia todos de uma vez. Como relatei
em meu Livro da Vida:

Cada disciplina que fazia, cada autor que conhecia, cada texto que eu lia,
passava a estar comigo no barco no seguir da viagem, me ajudando a olhar o
trilhado desta viagem da pesquisa e todo o trilhado pelo meu itinerário
docente antes de embarcar. Mas vale lembrar que mesmo no barco a
docência continuava… Num ciclo, docência, pesquisa, deriva/encontro-
propiciado-por-ela se retroalimentam… Uma modifica a outra, que modifica
a outra, que modifica a outra… […] Não ter um caminho preestabelecido,
neste caso, permitiu vários encontros… O que marcava, entrava no barco, o
que não marcava, ficava pelo caminho. O que marcou e passou a viajar junto
foi modificando a forma como olhar para toda a viagem em si. (27 de outubro
de 2019)

A escrita do Memorial de Formação, importante ponto de partida para a pesquisa


e que marca, como ressalta Heloísa Proença, “o lugar irrepetível do sujeito como
importante também no processo de sua formação, mas também como fundamental no
exercício da pesquisa” (PROENÇA, 2015, p. 177) se fez nesse movimento de
deriva/encontro marcado pelo caminhar da pesquisa. Num movimento de escrita-
encontro-reescrita-encontro-reescrita… E que ainda se reescreve. Entendi esse
movimento e sigo nele, sem desanimar, assim como o senhor Palomar de Ítalo Calvino
no exercício de tentar descrever uma onda no mar:

De qualquer modo, o senhor Palomar não desanima e pensa, em cada


momento, que viu tudo aquilo que podia ver a partir do seu ponto de
observação; mas acaba por aparecer sempre qualquer coisa que ele não tinha
tomado em consideração (CALVINO, 1994, p.7).

E vou aprendendo as implicações desse viver-narrar-experienciar em minha


própria vida tanto pessoal como profissional. Foi narrando que percebi a potência do
ato de narrar. Mas não narrando sozinha. Foi narrando em diálogo com diversos
autores e diversos professores (estes outros que constituem a mestranda-professora-
pesquisadora se fosse possível fazer essa separação) que encontrei e reencontrei durante
estes quase dois anos que entendi melhor a potência do ato de narrar.

Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como


um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao
mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o
solo. Pois ‘fatos’ nada são além de camadas que apenas à exploração mais
cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. [...] E se ilude,
privando-se do melhor, quem só faz o inventário dos achados e não sabe

sumário 696
VII Seminário Vozes da Educação

assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho. Assim,


verdadeiras lembranças devem proceder informativamente muito menos do
que indicar o lugar exato onde o investigador se apoderou dela. A rigor, épica
e rapsodicamente, uma verdadeira lembrança deve, portanto, ao mesmo
tempo, fornecer uma imagem daquele que se lembra, assim como umbom
relatório arqueológico deve não apenas indicar as camadas das quais se
originam seus achados, mas também, antes de tudo, aquelas outras que
foram atravessadas anteriormente (BENJAMIN, 2000, p.239-240, grifos
meus).

Entendi que era importante buscar as escritas e as memórias vividas, mas mais
importante ainda era assinalar no hoje o lugar no qual é conservado o velho. Buscar
os vestígios do passado no presente e nos projetos de futuro. Deste modo, um
importante e fundamental momento foi a escrita do meu Memorial de Formação. Para
esta escrita, intensifiquei um processo de escavação na memória das lembranças que
trazia da escola, como aluna, como professora em formação no curso de pedagogia e
como professora. Como fios de memória, foram sendo puxados, propiciando, a partir
deles, uma tessitura que permitia ver um pouco dos caminhos, das descobertas, dos
encontros, das escolhas... Não foram puxados linearmente, cronologicamente. Cada fio
puxado trazia uma lembrança, que trazia outra, que trazia outra, não necessariamente na
sequência temporal vivida. Fui escavando, não só para organizar, elencar as memórias
encontradas, mas tentando entender como o que foi vivido me constituía como
professora hoje. A busca era pela constituição da professora, mas nessa busca foi
ficando evidente a indissociabilidade entre a professora e a mulher, a mãe, a filha, a
esposa, a aluna e a mestranda que também sou. Nesse processo de escavação, fui tendo
uma maior percepção do quanto me constituía com o Outro. Com os meus professores,
leituras, experiências e com as crianças das turmas em que fui professora. Nesse sentido,
dentre os diversos encontros e reencontros proporcionados a partir do início desta
pesquisa-formação, o mais importante tem sido o (re)encontro com esses meus Outros
que me constituem.
A aproximação com a filosofia bakhtiniana da linguagem a partir da minha
participação no GRUBAKH (Grupo de Estudos Bakhtinianos, vinculado ao GEPEC e
organizado pela Profa. Dra. Liana Serodio) a partir de agosto do ano passado tem sido
fundamental para entender o papel do outro. Segundo Bakhtin,

Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando


para o outro, através do outro e com o auxílio do outro. Os atos mais
importantes, que constituem a autoconsciência, são determinados pela
relação com outra consciência (com o tu). [...] Não se trata do que ocorre
dentro mas na fronteira entre a minha consciência e a consciência do outro,

sumário 697
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

no limiar. Todo o interior não se basta a si mesmo, está voltado para fora,
dialogado, cada vivência interior está na fronteira, encontra-se com outra, e
nesse encontro tenso está toda a sua essência (BAKHTIN, 2011, p.341).

Ao perceber, no viver-narrar-experienciar da pesquisa, destes atravessamentos


que o processo de escavação da memória possibilitaram, o esforço que venho tenho é o
de tentar deixar isso claro ao longo do registro escrito da minha pesquisa: a percepção
do quanto me constituí professora a partir do encontro com estes meus Outros. Venho
tentando evidenciar os caminhos que fui percorrendo no andamento da pesquisa e como
cada encontro ou reencontro me tocava de tal forma que fazia com que eu passasse a
olhar o caminho percorrido já de um outro lugar, fazendo com que as questões com as
quais eu ingressei disposta a pesquisar se desdobrassem em outras e também surgissem
outras questões nesse viver-narrar-experienciar da minha pesquisa-formação.

Seguindo num caminho que forma e transforma: pesquisa-formação


Hoje, observo o itinerário seguido pelo barquinho à deriva nos primeiros
movimentos-encontros da pesquisa e também pelos momentos em que peguei o remo e
segui em direção a alguns lugares apresentados a mim por estes encontros e o que vem
sendo produzido narrativamente ao longo desta viagem, vou percebendo como ela vem
se constituindo como uma viagem de formação, uma pesquisa-formação.
Nessa viagem de formação, vivendo os movimentos da pesquisa, os encontros,
desencontros, procura, memória e esquecimento, ao mesmo tempo em que vivo o
trabalho atual com as crianças e a vida, muitas vezes vivi/vivo a angústia de caminhar a
passos lentos, muitas vezes me esquecendo que a experiência, como ressalta Larrosa,

requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais
devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir
mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o
juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo a ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2019, p.25).

Permitir a deriva, por mais angustiante que seja em alguns momentos, marca a
experiência de formação que constitui esta pesquisa. Sim, esta uma pesquisa que se
assume pesquisa-formação desde o início. É uma pesquisa-experiência. Uma pesquisa
que me forma, me transforma desde o início, mesmo quando ainda era consciente de
que isso acontecia, quando me encontrava à deriva em seu mar, encontrando, agarrando

sumário 698
VII Seminário Vozes da Educação

e soltando o que marcava ou não, o que fazia sentido ou não, o que proporcionava um
diálogo ou não. Esta experiência, que é única para mim, que é única a cada um, ao ser
compartilhada possibilita que outros sentidos possam ser construídos por quem a lê,
fazendo com que esta leitura em si também se torne uma experiência única para cada
leitor, que, no diálogo com suas próprias experiências também possam construir novas
experiências. Por isso é, sim, uma pesquisa-formação, porque é formação para quem a
faz e para quem a lê.
Inês Bragança, num diálogo com Walter Benjamin e Jorge Larrosa, também
busca as relações entre a experiência e a pesquisa-formação:

Como definir o conceito de experiência instituinte? Essa reflexão nos leva ao


encontro das contribuições de Walter Benjamin, para o sentido das
‘experiências plenas’, que se traduzem por uma tessitura coletiva e pela
possibilidade de abertura polifônica. A experiência instituinte se afirma como
uma experiência comum, partilhada por um grupo, contrapondo-se, dessa
forma, à vivência pontual e fragmentada do sujeito isolado de seus pares. É
uma experiência aberta, não se afirma como ‘símbolo’, com um significado
unilateral, mas como ‘alegoria’, por seus múltiplos sentidos e leituras
(BRAGANÇA, 2012, p. 103).

Sim, a tessitura desta pesquisa é coletiva e polifônica. As vozes destes que


encontrei pelo caminho ressoam o tempo todo nela. A música, a poesia, os escritos
acadêmicos ou não, as vozes que dialogaram comigo nos grupos de Orientação Coletiva
(POLIFONIA) e Estudos Bakhtinianos (GRUBAKH), as vozes dos que leram meu texto
de qualificação, as vozes que ecoaram dos encontros proporcionados pelas disciplinas,
todas elas estão ali, possibilitando uma “experiência comum partilhada por um grupo”.
Demorei a entender que esta pesquisa que, à princípio, parecia ser formação
somente a mim só a mim também poderia ser formativa ao outro. Estando à deriva, com
cada vez mais outros junto comigo no barco, fui percebendo (com estes outros) a
centralidade da escrita nesta pesquisa. A pesquisa não é só sobre a minha prática, é
sobre uma professora que escreveu sobre sua prática. Nisso, ela também pergunta: o que
uma professora que registra sobre a sua prática cotidiana pode aprender? No que o
registro pode ajudar na ação-reflexão-ação cotidiana? Assim, neste caminhar do
barquinho, às vezes, à deriva, às vezes, não, outras questões vão se somando àquelas
questões iniciais, mostrando que este tipo de pesquisa realmente te coloca como sujeito
da experiência que se transforma no caminhar. A busca inicial pelos aprendizados ao
longo do itinerário docente vivido, questão inicial trazida no projeto de ingresso ao
Mestrado, no balançar do vai-e-vem do barquinho, foi sendo desdobrada em novos

sumário 699
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

questionamentos, evidenciando o lugar/papel da escrita ao longo deste itinerário… Fui


percebendo, no caminhar desta pesquisa que sua centralidade vai se mostrando em
trazer um diálogo entre a professora de hoje e suas narrativas escritas ao longo de seu
itinerário para falar sobre a escola, para falar sobre a constituição de uma professora
com suas crianças, para falar de uma professora que também se constitui professora
com a escrita sobre sua prática.

Na viagem de pesquisa-formação

Então me diz: qual é a graça de já saber o fim da estrada quando se


parte rumo ao nada? (Paulinho Moska).

Desde a preparação (na escrita do projeto e na participação do processo seletivo


para ingresso ao mestrado) aos primeiros momentos vivenciados (a entrada, as
disciplinas, os primeiros encontros), esta pesquisa tem paralelos com uma viagem. Não
aquela que eu apresentei em meu projeto inicial, numa estrada já preestabelecida, mas
que por um caminho inteiramente novo. Nesta viagem, diversos sentimentos vieram à
tona ao longo do caminho: expectativa, ansiedade, medo, incerteza, angústia, alegria,
orgulho... Ora a sensação de estar parada, ora a sensação de caminhar a passos lentos,
ora a sensação de caminhar rápido demais e mal conseguir acompanhar o barco!
Como uma viagem esta pesquisa me marca como uma experiência, única e
formativa. Transformadora. Pesquisa-formação desde o início, marcando uma pesquisa
que não aguarda para dialogar com a vida após sua conclusão e publicização, mas que é
tecida a partir do diálogo e da partilha na relação com os muitos outros que nos constitui
(BRAGANÇA, 2018).
Encerro ressaltando a importância de nós, professoras, tomarmos a palavra e
dizer sobre o lugar que ocupamos na escola, dar a ver o acontecimento das relações
cotidiano, desse lugar irrepetível que ocupamos e do qual somente nós podemos falar.
Em narrativas orais ou escritas, falar sobre o que nos acontece na escola somente quem
vive o cotidiano escolar pode falar. Na partilha da narrativa escrita, como imaginei
quando iniciei a escrita no blog, ao ultrapassar os muros escolares, existe a possibilidade
do encontro com outras experiências, dificuldades, erros e acertos, fazendo com que,
muitas vezes, o sentimento solitário em que, nós, professoras, vivemos na escola possa
ser diminuído. Nesse movimento de partilha, cada um lê aquela experiência do outro
com os olhos e os ouvidos de sua própria experiência e esse diálogo possibilita a

sumário 700
VII Seminário Vozes da Educação

formação de ambos, porque a experiência do outro te faz refletir sobre sua própria. A
escrita e a partilha possibilita um encontro de consciências.
Neste momento político em que estamos vivendo hoje, de desvalorização do
magistério, de desqualificação do trabalho docente, trazer o professor a falar sobre seu
trabalho, dar a ver o que acontece na escola, dar a ver as relações entre criança e
aprendizagem, entre criança e professora, dar a ver o aprendizado que acontece nestas
relações é de uma grandeza imensa. Esta escrita dos professores sobre seu trabalho é
também uma forma de resistência. Re-Existência. Os professores existem e re-existem
nesta escrita. E resistem!

Referências
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. 6ª ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2011.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II. 5ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense,


2000.

BRAGANÇA, Inês Ferreira de Souza. Histórias de Vida e Formação de Professores:


Diálogos entre Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: EDUERJ/FAPERJ, 2012. Disponível
em: https://doi.org/10.7476/9788575114698

______. Pesquisaformação narrativa (auto)biográfica: trajetórias e tessituras teórico-


metodológicas. In ABRAHÃO, Maria Helena M. B.; CUNHA, Jorge Luiz da; VILLAS
BOAS, Lúcia (orgs). Pesquisa (auto) biográfica: diálogos epistêmico-metodológicos.
Curitiba: CRV, 2018.

CALVINO, Ítalo. Palomar. São Paulo: Companhia das letras, 1994.

LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica


Editora, 2019.

PRADO, Guilherme do Val Toledo; SOLIGO, Rosaura; SIMAS, Vanessa França.


Pesquisa narrativa em três dimensões. 2014 [disponível em
https://rosaurasoligo.files.wordpress.com/2014/11/toledo-soligo-simas-pesquisa-
narrativa-em-trc3aas-dimensc3b5es.pdf acesso em 4/11/2019]

PROENÇA, Heloísa Helena D. M. Pesquisa narrativa autobiográfica: autoimplicação


responsiva do pesquisador. In PRADO, Guilherme do Val T.; SERODIO, Liana A.;
PROENÇA, Heloísa Helena D. M; RODRIGUES, Nara Caetano (orgs). Metodologia
narrativa de pesquisa em educação: uma perspectiva bakhtiniana. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2015.

sumário 701
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

NOS (DES)CAMINHOS DA PESQUISA-FORMAÇÃO NARRATIVA


(AUTO)BIOGRÁFICA EM EDUCAÇÃO -
FRAGMENTOS DA EXPERIÊNCIA COMO INGRESSANTE NO PROGRAMA
DE MESTRADO PROFISSIONAL EM EDUCAÇÃO ESCOLAR DA UNICAMP.

Juliana Vieira
UNICAMP
juvieira.educ@gmail.com

Para começar a conversa...

"Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na


esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem
limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e
depois” (Walter Benjamin).

Trazer para essa conversa, as narrativas escritas para uma disciplina de verão e a
participação como ouvinte de uma qualificação de mestrado, é dizer mais uma vez do
movimento (per)formativo da pesquisa-formação que me constitui professora-
pesquisadora no ato-ação narrativo.
As experiências partilhadas no curso de Mestrado Profissional em Educação
Escolar, da UNICAMP alteraram os trajetos metodológicos imaginados como o
possível caminho para a minha pesquisa, compondo narrativamente os desvios, vielas e
trilhas, as quais não poderiam deixar de somar-se à paisagem, nem aos olhos de viajante.
Inicialmente, não pretendia pesquisar-narrar em diálogo com as narrativas
escritas como parte das atividades desenvolvidas pelas disciplinas do curso, nem tinha a
ideia de que essa poderia ser uma possibilidade: uma pesquisa em curso, uma pesquisa
que se movimenta.
Para mim, aluna ingressante do mestrado, o movimento era linear: processo
seletivo dividido em quatro etapas, projeto de pesquisa “definido”, conversa com
orientadora para planejamento e ajustes na/da pesquisa, disciplinas obrigatórias e
eletivas para a fundamentação teórico-metodológica, seguido por qualificação e defesa
da dissertação.
Assistir pela primeira vez a uma qualificação de mestrado e participar
ativamente de algumas disciplinas, tomar nota das contribuições, tentar olhar com as

sumário 702
VII Seminário Vozes da Educação

minhas lentes, com as lentes de todos e de cada um foi uma experiência que me fez
retornar à pesquisa, retomá-la de um ponto antes não previsto no roteiro metodológico,
dando a ver uma pesquisa que se faz no trajeto, uma pesquisa viva, uma pesquisa-
formação.
A pesquisa-formação tem sua origem na pesquisa-ação, já que busca um efetivo
envolvimento dos pesquisadores na transformação individual e coletiva. Essa
perspectiva encontra fundamentação na dialética histórica, no conceito de práxis, tal
como proposto por Marx, que perspectiva uma filosofia que não apenas interprete o
mundo, mas possa transformá-lo, por meio de uma imbricação entre prática-teoria-
prática. (...). Nesse sentido, a pesquisa-formação coloca-se como um paradigma
metodológico que procura romper com a neutralidade e objetividade das práticas de
pesquisa, aproximando investigadores e participantes da dinâmica viva do
conhecimento. (BRAGANÇA; 2012; p.115).
Bragança, ao tematizar a força de palavras-conceito, nos traz junto com Josso,
um transbordamento da palavra pesquisa, para pesquisa-formação:

A narrativa em seus diversos modos de expressão – oral, escrita, imaginética,


videográfica – mobiliza processos reflexivos, conhecimentos e, assim,
pesquisadores/as e sujeitos se formam em partilha, tendo como fios dessa
formação as questões de estudo tematizadas. E a pesquisa (auto)biográfica
em educação caminha, conforme indica Josso (1994, p. 72), na direção de
“unir pesquisa e formação seria então uma abertura simultânea”
(BRAGANÇA, 2018, p.68).

Essa forma-outra de pesquisar, de fazer(se) ciência, onde o movimento reflexivo


inicial-contínuo-permanente desloca a ênfase da materialidade das fontes propriamente
ditas e dos possíveis resultados e/ou respostas da pesquisa, para o percurso
(per)formativo da mesma, os caminhos e (des)caminhos, o roteiro prévio, bem como os
desvios, tem provocado a reflexividade na/da/com uma prática ressignificada e
constituinte do docente-gente que ao narrar-pesquisar, pesquisar-narrar, busca criar um
movimento dialógico de reflexão, (per)formação e constituição identitária que revelam e
afirmam ou não, um modo de ser-estar na docência.
Deste modo, a escrita narrativa e a pesquisa narrativa (auto)biográfica como
opção teórico-metodológica na/da pesquisa-formação, possibilita uma produção de
conhecimento através da busca implicada de sentidos de ser-fazer, um conhecimento de
si, na partilha com os nossos outros instituintes. E nessa produção de sentidos através
das experiências narradas, a pesquisa é inevitavelmente atravessada por muitos, que vão

sumário 703
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de certo modo, modelando-a à muitas mãos. E gestos e vozes e silêncios e memórias e


olhares e leituras e escuta.

A experiência como aluna em uma disciplina de verão – narrativas de vida-


formação

Não há mais o que ver, saiba que não era assim. O fim de uma
viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi
visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se
vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde
primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a
pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É
preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para
traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a
viagem. Sempre (Saramago).

A primeira proposta da disciplina, ministrada pelo Prof.° Dr. Guilherme do Val


Toledo Prado, era escolher uma entre as experiências vividas e escrever uma narrativa
que dialogasse com um dos textos do livro Palomar, do Ítalo Calvino, presente na
bibliografia que nos foi enviada no penúltimo dia de dezembro do ano anterior. Sugeriu
que a cada leitura, nos perguntássemos:
O que eu vejo no texto que me chamou a atenção?
O que eu penso sobre o que eu vejo que me chamou a atenção?
O que vejo e penso do texto lido que pode colaborar com a reflexão do meu
projeto de pesquisa no Mestrado Profissional ou mesmo em minha atuação
profissional?
O que vês? O que pensas? O que fazes com o que vês e pensas?
Essa é a chave de ensino de Joseph Jacotot, narrado no livro "Mestre Ignorante"
de Jacques Ranciere (2007).
Escolhi o texto, O mundo observa o mundo para dialogar com as minhas
memórias sobre a dificuldade acentuada de visão desde a infância em um movimento
(per)formativo da pesquisa-formação, que se-nos transforma a partir da reflexão e do
entrelaçamento entre memória, experiência e narração. Narração do vivido refletido,
Nogueira e Soligo (2016).

O exercício do olhar (narrativa 1)


A dificuldade para enxergar apareceu logo na infância.
Desde os nove anos, era rotina anual ir ao oculista, levada pela mão da mãe.

sumário 704
VII Seminário Vozes da Educação

Os graus aumentavam a cada verificação.


Da “vista cansada” ao astigmatismo, do astigmatismo ao ceratocone, dos
óculos às
lentes de contato, das lentes de contato ao transplante de córnea.
Sem perceber, a relação olho-objetos traduzia-se num movimento de
aproximação e
afastamento, entre o não ver e o querer ver.
Após meia dúzia de palavras ditas, nunca por ela, sentava-se na cadeira de
couro com
encosto para a cabeça, o qual não alcançava. O apoio para os pés, ficava
distante um
palmo. Era uma cadeira para adultos, mas brincar de trocar as lentes para
enxergar
melhor, tinha um quê de diversão.
Uma luz se acendia e refletia na parede, turvos e desfocados, surgiam “Es” de
todos os
tamanhos e para todos os lados, para cima; para baixo; para um lado e para
outro.
Trocava-se as lentes
CLACT
- Melhora ou piora?
Silêncio
- De novo...
Trocava-se as lentes
CLACT
- Melhora ou piora?
Silêncio
- Pode voltar?
Voltava
CLACT
- Melhora ou piora?
CLACTCLACTCLACTACLACTCLACT...
Os “Es”, agora não mais desfocados, apareciam iluminados com todos os seus
tamanhos

sumário 705
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

e lados.
Olhar, olhar de novo, olhar demoradamente, piscar, focar, olhar por outro
ângulo, trocar as lentes...
E o exercício se repetia.

Era o exercício do olhar.


Na tessitura das narrativas, a ruptura ou emenda dos fios-palavras é um
movimento sempre presente, narrar a experiência é despertar a memória e os sentidos
para o que de fato nos é ou pode vir a ser constitutivo.
A partir da escrita dessa primeira narrativa, deveríamos dialogar com um
segundo texto, entre as leituras realizadas ao longo da disciplina. Em uma tímida
tentativa para compreender conceitos bakhtinianos, escolhi o artigo: “Bakhtin e os
processos de desenvolvimento Humano”, de Fábio Comin e Manoel Antônio dos Santos.

O Professor –pesquisador que ri e que chora (narrativa 2)


O ano era dois mil e quinze. Há alguns meses, não nos encontrávamos
pessoalmente, a amiga, ex Professora que tive na graduação, contava sobre a
continuidade da sua pesquisa de doutorado iniciada em Portugal, a qual daria
continuidade ou não, na Unicamp. Descreveu o ocorrido na semana anterior, quando
então, participou como ouvinte de uma banca que ocorrera, não sei se de mestrado ou
doutorado, na qual um orientador, emocionado, chorou.
Fiquei curiosa, pesquisei pelo nome, li algumas produções...quem seria esse
pesquisador que chora?
Escrevi um email para ele, narrando parte da minha trajetória e pedi uma
orientação, ainda que à distância para começar a pensar, a partir das experiências
profissionais que tive, num projeto de pesquisa para o mestrado, já que essa
dificuldade de encontrar um foco, me acompanhava, tanto de forma orgânica, como
subjetiva e prática, desde sempre.
O pesquisador que chora, é claro, respondeu a carta virtual. Não sugeriu foco
algum, mas deixou o convite para que eu frequentasse um tal Grupo de Terça.
Estive lá umas três vezes, antes de aceitar um outro convite para trabalhar na
secretaria de educação, na cidade onde sou concursada como Professora. O trabalho
exigia no mínimo, quarenta horas de dedicação exclusiva e inicialmente, nenhuma
flexibilidade de horário.

sumário 706
VII Seminário Vozes da Educação

O Grupo de Terça, que agora eu sabia, também tinha outro nome, o Grupo de
Estudos e Pesquisa em Educação Continuada - GEPEC, ficou lá...mais uma vez como
possibilidade distante de me aproximar do cotidiano acadêmico.
Tudo isso para dizer, que foi nesse contexto, do grupo de pesquisa, que ouvi
pela primeira vez, falarem sobre BAKHTIN.
No segundo ou terceiro encontro, aquela sensação de...isso não é para mim!
Percebi que, para acompanhar minimamente o diálogo daqueles professores-
pesquisadores, eu precisava de um conhecimento prévio que não tinha, conceitos e
palavras nunca ouvidos, que eu escutava, mas não ouvia...seria outra língua? Foi mais
ou menos assim, a primeira impressão, um autor para gente maluca, que não faz outra
coisa da vida senão estudar e que definitivamente eu nunca leria!
Já no contexto do Mestrado Profissional, durante o Seminário de pesquisa, após
a minha apresentação, uma das professoras da banca ressuscitou BAKHTIN, já morto,
velado e enterrado internamente. A mesma dizia que era um autor que precisava
aparecer, que dialogava com os conceitos que apareciam na minha escrita. As vozes da
consciência, da inconsciência, junto a todas as outras vozes internas, diziam: não, ele
de novo, não...
Minha orientadora marcou um encontro para conversarmos sobre as
contribuições do Seminário para a pesquisa e eu, já fui logo me adiantando que não
iria dar conta do BAKHTIN.
Conversamos, lamentamos não conseguirmos participar do Grupo de Estudos
bakhtinianos - GRUBAKH, combinamos de dialogar com outros autores e definimos os
(des)caminhos da pesquisa para o próximo semestre.
Já de “férias”, faço minha matrícula em uma disciplina obrigatória de verão e
na bibliografia, novamente Ele! Imprimo todos os textos porque preciso pegar, grifar,
escrever, circular, correr os olhos pela folha ainda, e não pela tela. Começo por
Larrosa, sigo com Nóvoa, Ítalo Calvino e é claro, entre as escolhas, por último,
BAKHTIN, em dois artigos de outros autores sobre, além de um texto próprio, Os
gêneros do discurso.
Durante a leitura de “Bakhtin e os processos de desenvolvimento humano”, de
Fábio Scorsolini Comin e Manoel Antônio dos Santos, o texto foi dando algumas
piscadelas, me seduzindo e confesso em segredo, para que minha orientadora não ouça
- fui gostando.

sumário 707
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Circulei alguns conceitos para retomá-los em uma segunda leitura, mais


apurada, embora mesmo após a (re)leitura ainda não consiga entendê-los de modo a
conseguir explicá-los com minhas palavras: dialogismo, polifonia, enunciado,
dialogicidade, dialogização, signos...Também encontrei um léxico de palavras, as quais
aparecem com certa frequência na minha escrita e que talvez tenha feito a Professora
presente na banca do Seminário, ressuscitar BAKHTIN, como: humano, revelar,
constitutivo, diálogo, outros, contexto histórico, desconstrução, processo, o eu e o outro,
o vir a ser, a palavra, a escrita, as relações...
Entrei no texto como aquela criança que entrava no consultório do “oculista”
quase sempre em penumbra. Ainda com a sensação de desconforto, sentada naquela
cadeira que não tinha o meu tamanho e não me acomodava direito.
E a brincadeira de enxergar as palavras e os seus múltiplos sentidos, trocar as
lentes e ajustar o foco, trouxe de novo aquele quê de diversão.
Agora não eram mais os “Es” de todos os tamanhos e para todos os lados, eram
enunciados inteiros que comigo, dialogavam.
Percebi que a escolha por determinadas palavras e não outras, por querer
encontrar um conteúdo que tenha também uma forma e que ambos sejam um conjunto
estético que comunica, que o meu emudecimento, bastante frequente, por querer
substituir palavras que antes eu dizia sem pensar, faz parte de um processo vivo e
orgânico de um desenvolvimento arquitetônico entre o que penso, o que digo ou não
digo, o que escrevo, o que sou-serei, comigo e principalmente, na relação com o outro/s.
As concepções de Bakhtin exigem do leitor um olhar múltiplo sobre o mundo e
sobre o outro. Trata-se de um olhar que vê o mundo a partir de ruídos, vozes, sentidos,
sons e linguagens que se misturam, (re)constroem-se, modificam-se e transformam-se
continuamente. Nesse papel compreensivo, a palavra assume um papel primordial, pois
é a partir dela que o sujeito constitui e é constituído. A palavra não seria apenas um
meio de comunicação, mas também conteúdo da própria atividade psíquica. O contexto
histórico transforma a palavra fria do dicionário em fios dialógicos vivos, que refletem
e refratam a realidade que a produziu. (SCORSOLINI; SANTOS, 2010, p. 751)
E nessa relação de existência na e com as palavras, ainda mais escritas do que
faladas, entro novamente no texto, agora um pouco mais crescida que aquela criança
que entrava no consultório do “oculista”. A cadeira já não parece tão grande, embora
um certo desconforto permaneça. A cabeça tenta encontrar o encosto, enquanto as
pontas dos pés já tocam levemente o apoio que antes ficava distante um palmo.

sumário 708
VII Seminário Vozes da Educação

De repente, passos se aproximam cada vez mais. São fortes e descompassados,


tenho a ideia de um sujeito alto.
Não é o oftalmologista quase mudo que entra pela sala para me ajudar a
enxergar melhor. É um sujeito-outro, que chega sorrindo, abrindo a boca de sono,
olhando para tudo, para todos e cada um. Não diz meia dúzia de palavras frias, mas
uma infinidade de palavras vivas, algumas ainda turvas, desfocadas, outras mais
nítidas. É um sujeito que se coloca para ver junto comigo.
CLACT, CLACT...
- Melhora ou piora? (Agora com palavras minhas)
- Melhora!!!
É ele, com toda sua inteireza, o Professor-pesquisador que ri e acho mesmo que
chora!

A experiência de assistir pela primeira vez a um exame de qualificação - Inventário


e (re)inventário no movimento da pesquisa-formação

Guardar
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é,
estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso
se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar (Antonio Cicero).

Em 11 de junho de 2019, durante a qualificação da colega e companheira de


Mestrado Profissional Lili, observei que a palavra 94“inventário” aparecia nas falas dos

94
Prática de inventariar as fontes da pesquisa, de organizá-las, tomando os inúmeros guardados de alguns
profissionais da educação, especialmente professoras e professores. Iniciou-se no GEPEC, a partir da tese
da professora e pesquisadora Corinta M.G.Geraldi, com orientação do Prof. Dr. Milton José de Almeida,

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

integrantes da banca, em especial, nas contribuições de Professor Guilherme do Val


Toledo Prado e da Professora Jacqueline de Fátima dos Santos Morais.
Entre atos de conflitos e possibilidades de abertura de outros horizontes no
caminho da pesquisa, percebo os ecos de uma palavra ainda recém-nascida em meu
vocabulário como professora-pesquisadora. Interessante como algumas palavras ainda
ocas em seus significados pessoais, ou até mesmo desconhecidas, vão sendo
compreendidas, tomando forma, paridas e tornando-se caras, imprescindíveis. É o caso
da palavra inventário e no meu caso, um (re)inventário.
Percebi que o movimento inicial de “abrir o baú”, o qual havia feito para a
escrita do Memorial de Formação, rememorando a partir dos meus guardados, tinha
sido apenas um ensaio. Ensaio no sentido de uma experimentação ainda na superfície de
uma provável experiência. Não com o devido olhar. Não com a devida atenção. Não
com a devida disponibilidade. Não com os devidos critérios. Não com a devida cautela.
Não com os campos problemáticos mais visíveis. Não com perguntas norteadoras.
Apenas um movimento de (des)guardar para ver o que saltava.
Naquele momento, acredito que em meados de abril/maio de 2018, o que me
saltou foram as cartas, até por obviedade, pelo gosto por escrever-receber e já por ter
como objetivo trabalhar com esse gênero na dissertação. A ideia inicial era produzir
cartas ao longo da pesquisa, cartas que narrassem a minha trajetória profissional e não
trabalhar com cartas já escritas, já que até então, os guardados para mim, não passavam
de guardados.
Foi durante o segundo encontro de orientação, que através da fala da minha
orientadora, percebi que os guardados eram muito mais do que eu poderia imaginar,
eram memórias materializadas que poderiam me ajudar a narrar-pesquisar minhas
práticas, trajetória e processos identitários. Por sugestão da Inês, comecei a reler as
cartas já escritas, selecionando algumas para dialogar com as narrativas, pensando nas
mesmas também como fontes fecundas para a pesquisa que começava a ganhar forma-
conteúdo.
Mas abrir o baú, enxergar que as cartas saltavam e começar a escrever sobre e
com elas, era o bastante? Poderia nomear esse movimento de inventariar? E o restante?
O que era? Por que guardava? Quais eram os volumes/quantificados? Foram guardados

segundo Morais (2011). O termo (re)inventário, presente nesta pesquisa, foi uma opção da pesquisadora
para denominar uma segunda tentativa de organização dos dados a partir dos seus guardados.

sumário 710
VII Seminário Vozes da Educação

em que época? Que (re)memorações provocavam em mim? Quem guardou? A mãe, a


aluna, a professora, a formadora, a coordenadora, a diretora? Essas perguntas me
acompanharam por dez dias, após a qualificação da Lili. Na mesma semana, lendo
fragmentos da biografia de Saramago, encontro:

“Guardo num armário (se se pode chamar guardar a ter coisas amontoadas, a
trouxe-mouxe) originais de artigos e conferências que tenho ando a escrever
e a dizer por aí (...). De longe em longe digo-me que é preciso fazer uma
limpeza nisto, ordenar a confusão, rasgar o que não interessa, mas em todas
as vezes acaba por desviar-me do propósito a dificuldade de decidir quais os
textos que vale a pena conservar (...) tive a surpresa de encontrar-me com um
artigo de que já não me lembrava (...). Anotação de 17 de fevereiro de 1996)

Envolvida pelas palavras de Saramago, incomodada com as palavras de


Guilherme e Jacqueline, decidi (re)inventariar os “amontoados” do baú e olhar de novo
para tudo aquilo às vésperas da minha qualificação, quase sem tempo para distrações,
com muito ainda por escrever, ler, pesquisar, narrar...Me coloquei novamente a olhar.
Arrasto o baú que se encontra junto às caixas de papelão que ainda ficaram da
mudança há 6 anos. Não há ainda armários para guardar os amontoados. Permanecem
num cômodo vazio, planejado para ser um closet. Puxo o baú por uma corda lateral que
é na verdade, uma alça, mas como está pesado e eu estou sozinha, não consigo carregá-
lo. Encosto na parede do quarto do meu filho, onde há uma cama vazia e começo a olhar
para cada material, à princípio, tentando separar em algumas categorias, que se
encontram apenas no campo do pensamento...cadernos, pastas, documentos, cartas,
desenhos...Olho um a um, leio, releio, vejo, revejo e penso no porquê foi guardado isso
e não aquilo.
Lembro das pessoas que conheci, convivi, dos espaços nos quais estive, nas
experiências, nos cargos e funções que exerci, nas memórias que ficaram e que ficarão.
O que restou no baú, já resistiu a muitos outros processos de ordenar e descartar. É um
movimento que ocorre ao final do ano com todas as professoras/es ao abrirem seus
armários das salas de aula e fazerem aquela faxina, nem sempre é fácil escolher o que
vai e o que fica, mas não conseguimos e nem podemos guardar tudo. Ou senão,
teríamos que ter uma segunda casa, só com essa finalidade.
Lembrei também, que na outra casa onde morei por 15 anos, os guardados
ficavam amontoados em duas partes do maleiro do meu guarda-roupas embutido de
madeira maciça, bastante espaçoso e que tinha a parte interna das portas toda escrita por
mim com frases à caneta piloto preta de ponta grossa...O que devem pensar sobre

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

escrever em guarda-roupas as pessoas que moram lá atualmente? Será que lixaram,


passaram tinta, arrancaram as portas, ou será que as palavras ali escritas e guardadas do
lado de dentro ainda são lidas por alguém?
Da cama ao chão, procuro uma outra organização, de forma a visualizar melhor
o material e penso que preciso criar um quadro que me ajude a olhar e pensar. Notei que
cada material, representava uma outra em mim. Sim, fui-sou outras. Estudante,
Professora, Formadora, Coordenadora Pedagógica, Diretora Escolar, Coordenadora de
Segmento...e os guardados revelavam esses lugares de ser-estar e de me constituir.
Decido por criar um quadro simples, na coluna da esquerda, o material
encontrado, na coluna do meio, a função e/ou cargo que eu ocupava na época e na
coluna da esquerda, uma breve descrição ou memória do que aquele material me
suscitou.
Durante o preenchimento do quadro, foram ganhando nitidez os motivos que me
fizeram-fazem manter esses materiais ainda que amontoados e desordenados dentro de
um baú. Cada qual com uma especial razão, as quais representam marcos importantes
em minha trajetória como estudante e profissional, conquistas, transições, desafios,
apegos, precauções...
No movimento do (re)inventário, muito mais do que selecionar quais seriam as
possíveis fontes da pesquisa (feitas no ensaio inicial), o objetivo foi para além de
rememorar e localizar as experiências no meu tempo-espaço não linear, olhar com os
olhos mais apurados da Professora-Pesquisadora em processo de (per)formação que já
não é a mesma que ingressou no Mestrado Profissional. Foi como trocar as lentes num
teste de visão, no qual as letras e posições ainda não estavam tão claras, anteriormente.
Neste sentido, percebo que (re)inventariar, ainda que num ponto avançado da
pesquisa, me possibilitou (re)flexões antes não alcançadas.
A experiência como ouvinte durante a qualificação de mestrado, mobilizou-me à
reflexão no processo de rememoração e produção escrita, na escrita. Uma narrativa oral
(qualificação de mestrado), que gerou um ecoamento de vozes, vozes que vez ou outra,
repetiam algumas palavras-conceito, que ressoaram, provocando uma ação, a de
revisitar os guardados e inventariar com mais rigor e reflexividade, com olhos de ver e
ver-se. (Re)inventariar, foi como trocar as lentes.

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VII Seminário Vozes da Educação

Para continuar a conversa...

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer


um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar
mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender
o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (Larrosa).

Ingressar no programa de mestrado de uma universidade pública, neste caso,


Mestrado Profissional em Educação Escolar da UNICAMP possibilitou a desconstrução
paradigmática de um único conceito sobre pesquisa e o que seria pesquisar, o qual
considerava até então.
Narrar as experiências de vida-formação, escrever uma dissertação
narrativamente tem sido uma um modo de resistir e insistir em formas-outras de fazer
ciência em educação. Ter um projeto de pesquisa, é ter em vista questões de estudo
desde o início, questões que não limitam ou são um fim em si mesmas, que não
pretendem antes, responder ou confirmar hipóteses levantadas, mas fazer emergir outras
questões e reflexões a partir das experiências rememoradas, narradas, escritas e
compartilhadas.
As inúmeras possibilidades de encontros e partilhas nas disciplinas cursadas, nos
grupos de pesquisa, nas orientações coletivas, qualificações, seminários, colocaram a
pesquisa a se movimentar e a pesquisadora a acompanhá-la em suas mutações e não o
contrário. E nesse saber, que é da/na experiência e que interroga o tempo todo o vivido,
vou tecendo uma pesquisa que se transforma porque antes, transformo-me todo o tempo
nas relações e experiências instituintes.
Em curso: uma pesquisa-formação.

Referências
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Trad. do francês
por Maria Ermantina Galvão; Rev. de Marina Appenzeller. 3 ed. São Paulo: Martins
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BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: Magia e técnica, arte e política:


ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São
Paulo: Editora Brasiliense, 2011. p. 114.

sumário 713
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

BRAGANÇA, I. F. S. Histórias de Vida e Formação de Professores: diálogos entre


Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: EDUERJ/FAPERJ, 2012; p. 115-582.

______. Pesquisaformação narrativa (auto)biográfica: trajetórias e tessituras


teórico-metodológicas. In: Maria Helena Menna Barreto Abrahão; Jorge Luiz da
Cunha; Lúcia Villas Bôas. (Org). Pesquisa (auto)biográfica: diálogos epistêmico-
metodológicos. Curitiba: Editora CRV, 2018; p. 65-81.

CALVINO, Ítalo. Palomar. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994, p. 62.

CICERO, Antonio. Guardar – Poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Editora Record,


1996, p. 337.

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em :<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php? script=sciarttext&pid=S0104-
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SOLIGO, R.; NOGUEIRA, E. G. D. . A experiência de escrita como espaço- tempo


de formação. In: Filomena de Arruda Monteiro; Adair Mendes Nacarato; Helena
Amaral da Fontoura. (Org.). Narrativas docentes, memorias e formação. Curitiba: CRV,
2016.

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VII Seminário Vozes da Educação

O CURSO NORMAL ENTRE MÍDIAS E NOVAS TECNOLOGIAS: UM


OLHAR ATENTO SOBRE AS POLÍTICAS EM TEXTO

Ana Paula da Silva Conceição Oliveira


UERJ/PROPED
ana.pedagogia @yahoo.com.br

Inicio este estudo buscando realizar reflexões sobre a temática tecnologia


educacional na formação de professores de nível médio, intuindo problematizar a
perspectiva instrumental que tem se propagado a esse respeito, inclusive nas políticas
educacionais vigentes. O discurso sobre as tecnologias como instrumento fundamental
às práticas pedagógicas de professores tem sido enunciado como se a transformação da
educação estivesse atrelada ao uso das tecnologias digitais da informação e
comunicação (TDIC). Estudos sobre currículo têm evidenciado que as reformas
educacionais têm caminhado em função do processo de globalização e de seus
interesses minuciosamente calculados. Tais mudanças no campo do currículo estariam
direcionadas a uma proposta universal de educação com enfoque na era da informação e
na lógica de competências (BEECH, 2009).
Nos últimos tempos a educação tem sido afetada por enunciações recorrentes
sobre a necessidade de professores fazerem uso de recursos tecnológicos na escola,
devido às demandas da sociedade atual, permeada por tecnologias acessíveis nas mãos
das crianças e dos jovens que vivem imersos às mídias digitais (OLIVEIRA, 2017). Tal
paradigma tem se instaurado na educação, tornando necessária a realização de pesquisas
que investiguem de forma mais profunda o cenário vigente, não cabendo a subutilização
das tecnologias ou reprodução passiva de discursos que, paulatinamente têm se
concretizado em textos presentes nas políticas educacionais.
O presente estudo encontra-se fundamentado nas leituras de Beech (2009),
Mainardes (2018) e Hypólito (2019) onde faço discussões sobre as políticas
educacionais em diálogo com Oliveira (2017), Filé (2015) e Peixoto (2015) no que se
refere aos seus apontamentos sobre tecnologia em educação. Como procedimento
metodológico, optamos por realizar uma análise do programa curricular da disciplina de
Integração das Mídias e Novas Tecnologias (IMNT) que compõe o currículo mínimo do

sumário 715
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Curso Normal, fornecido pela Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC). Na


proposta metodológica de uma análise documental, Gil (2008) afirma que para fins de
pesquisa científica são considerados os documentos, inclusive aqueles de instituições
governamentais. Para Richardson (1999) este tipo de análise consiste em uma série de
operações que objetivam estudar documentos com o propósito de compreender
contextos sociais e econômicos. Consideramos relevantes as contribuições teóricas e
metodológicas dos autores que nos ajudaram a refletir sobre o programa de tecnologia
na formação de professores de nível médio analisando sua relação com a lógica
neoliberal.
Na perspectiva de um estudo também interessado nas invenções cotidianas
apoiamo-nos nas contribuições de Certeau (2014) que se encontram em fase inicial, mas
já surgem neste trabalho como referencial para sua continuidade. Cabe ressaltar que a
potência na realização de uma análise documental é aquela onde verificamos a política
curricular em texto e sua possibilidade de reinterpretação nos espaços escolares.
Entendemos que as políticas não são apenas implementadas, mas também submetidas a
processos de recontextualização e recriação (MAINARDES, 2018 p.4).
No curso desta escrita, apresento o estudo em três momentos, destinando-se o
primeiro a situar o leitor sobre a existência de algumas políticas referentes às
tecnologias em educação, o que comprova uma demarcação da tecnologia no campo
escolar. Em seguida, realizo uma análise do programa curricular de Integração das
Mídias e Novas Tecnologias (IMNT), destinado à formação de professores do Curso
Normal, averiguando a tecnologia perspectivada sob uma ótica pragmática, instrumental
e reducionista, fundada nos interesses neoliberais (HYPÓLITO, 2019). No terceiro
momento, ainda de forma inconclusiva, faço algumas considerações sobre as políticas
educacionais, provocando outros modos de lê-las, interpretá-las ou mesmo recriá-las
para além do que pensam ou propõem os documentos oficiais, na tentativa de dar
prosseguimento à pesquisa interessada em conhecer os desvios e artes de fazer dos
praticantes escolares que de seus lugares produzem suas políticas (CERTEAU, 2014).
Um olhar panorâmico sobre a sociedade atual permite perceber a ubiquidade das
tecnologias digitais, cujastransformações significativas nos modos de pensar, comunicar,
ler, interagir, trabalhar e habitar tem se consolidado. Não foi por acaso que tais
mudanças ao longo do tempo exigiram novas configurações de sujeitos, visto que
quando outras tecnologias são inventadas, transformações em nós também ocorrem,
mesmo que necessariamente não paremos para pensar sobre. Apesar do aligeiramento

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VII Seminário Vozes da Educação

das mudanças, é preciso pensar no século através de uma vista aérea, de um olhar
panorâmico (HOBSBAWAN, 1995) que não nos prenda na atualidade sem conhecer
tudo o que ocorreu antes disso.
A revolução industrial e a lógica do capital trouxeram muitos desafios que
perduram na atualidade com uma nova roupagem, a globalização e suas demandas
inventadas. Neste sentido, a tecnologia da informação tornou-se ferramenta fundamental
para a implantação dos processos de reestruturação econômica (CASTELLS, 2007),
gerando aos mais diversos setores alterações significativas em suas práticas sociais e
profissionais, inclusive para a educação que é o campo desta pesquisa.
Neste sentido, a internacionalização das políticas educacionais têm se
intensificado em prol de uma proposta oficial de currículos (BEECH, 2009), tornando o
processo de reformas educacionais afinado com a consciência coletiva sobre o devir de
uma educação que responda às expectativas da globalização. Ao passo que o cenário
permeado pelo avanço das tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC) é
desenvolvido, novas demandas no universo social vão surgindo, especialmente no
âmbito do trabalho. Tudo isso tem implicado na estruturação de uma educação sob a
lógica de competências (ALBINO; SILVA, 2019), inclusive na formação de professores.
Ao final da década de 1990 o Ministério da Educação, através da portaria nº 522
em 09/04/1997, criou o Programa Nacional de Tecnologia Educacional (ProInfo) para a
promoção do uso pedagógico das tecnologias de informática e TICs na rede pública de
ensino fundamental e médio (BRASIL, 2007). O programa leva às escolas
computadores, recursos digitais e conteúdos educacionais, cabendo ao Distrito Federal,
Estados e municípios garantir a estrutura adequada para receber os laboratórios e
capacitar os professores para o uso das máquinas e tecnologias. Na referida política
passos são dados em função de um modelo educacional que agregue às suas práticas as
mídias digitais, surgindo em seu caminho alguns desencontros, entre eles, questões de
infraestrutura das escolas, sucateamento de recursos, burocratizações que interferem no
cotidiano escolar e falta de formação docente numa perspectiva não só técnica, mas
epistemológica.
Em termos de currículo, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) também
trouxeram a informática como componente curricular da área de Linguagens, Códigos e
suas Tecnologias fazendo relação com as transformações do mundo caracterizado pela
globalização. Neste mesmo caminho, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

também ressaltam a tecnologia da informação e comunicação como recursos em prol de


novos métodos didático-pedagógicos importantes para a educação básica.
Em resposta ao Plano Nacional de Educação (PNE), o modelo de educação
nacional têm sofrido transformações frente ao contexto das tecnologias, cujosprogramas
como o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR)
tem utilizado como estratégia a modalidade de educação a distância para expansão da
oferta de educação profissional. Neste mesmo percurso, a Universidade Aberta do
Brasil (UAB) também tem atuado na modalidade de educação a distância para a
formação inicial e continuada de professores da educação básica. Por fim, em termos de
políticas e reformas educacionais, temos a Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
numa proposta de normatização sobre o que será ensinado nas escolas, prescrevendo em
sua mais recente versão duas competências gerais relacionadas ao uso da tecnologia,
inserindo-a como parte integrante dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento da
educação infantil, nas práticas do ensino fundamental e médio.
A partir deste breve levantamento sobre algumas políticas educacionais
envolvendo as TDIC justificamos a relevância deste estudo salientando a necessidade de
refletir sobre o percurso dos programas educacionais cada vez mais afinados com a
proposta da educação num viés de instrumentalização em sobreposição à formação
crítico reflexiva dos sujeitos escolares. Consideramos imprescindível a formação
técnica dos professores para o uso das TDIC, desde que neste processo a criticidade
esteja presente. Através das leituras de Ball (1993) compreendemos a política como
discurso e como texto, sendo possível no âmbito da prática interpretá-la de diferentes
modos, ou seja, no movimento de formulação das políticas até sua prática, espaços para
a ação e a resposta são abertos (BEECH, 2009).

Análise do programa curricular de Integração das Mídias e Novas Tecnologias


(IMNT)
A disciplina de Integração das Mídias e Novas Tecnologias (IMNT) que integra
o Curso Normal, possui um documento de apresentação e orientação curricular
elaborado pela Secretaria Estadual de Educação (SEEDUC) que norteia o trabalho
docente nas escolas desde o ano de 2013, encontrando-se em vigência até os dias atuais.
A seguir apresentaremos uma análise relativa ao material estudado, refletindo sobre o
que afirma o texto do documento, chamando a atenção para um olhar crítico e
cauteloso quanto a proposta bem articulada e pautada nos interesses neoliberais.

sumário 718
VII Seminário Vozes da Educação

Ao realizar a leitura do documento evidenciamos uma posição preocupada com


o mercado, mas não com o incentivo à criticidade, o que se confirma quando em seu
texto introdutório encontramos a seguinte afirmativa:

As práticas sociais e as relações comerciais estão cada vez mais dependentes


das mídias e das tecnologias da informação e comunicação (TIC). Vivemos a
globalização (SANTOS, 2001). Nesse contexto, adaptar-se aos padrões de
usos de recursos tecnológicos faz-se imprescindível ao exercício profissional.
O enfrentamento dessa questão da educação pode partir da maneira como o
professor lida com as TIC, cada vez mais utilizadas pelos jovens (SEEDUC,
2013, p. 4).

Percebemos que a proposta de implantação da disciplina está condicionada ao


contexto da sociedade globalizada, inclusive quando cita “as relações sociais e
comerciais” como uma direção a ser seguida, um padrão de comportamento frente ao
panorama da globalização. Compreendemos a necessidade dos componentes
curriculares ampliarem as possibilidades formativas dos futuros professores,
especialmente em relação às tecnologias digitais, não limitando-as apenas a dimensão
instrumental (FILÉ, 2015). Desta forma, consideramos a relevância de uma formação
que, além de fornecer conhecimentos técnicos sobre as ferramentas do cenário global
também produza práticas crítico reflexivas a esse respeito. É preciso conhecer os lados
benéficos e maléficos das tecnologias para que os/as jovens normalistas em seu
processo formativo tenham a possibilidade de fazer uma escolha consciente.
Lembramos de Freire (1996) quando não divinizava nem diabolizava as tecnologias,
mas em seu tempo já suscitava a necessidade de pensar sobre.
Não descartamos os benefícios das tecnologias em educação, pelo contrário,
compreendemos as possibilidades de aprendizagem colaborativa por elas propiciadas e
consideramos legítimas as práticas educativas que utilizam as mídias digitais para
trabalhar a cidadania, vivificar os movimentos de insurgência e a participação ativa das
juventudes e de diferentes culturas que têm lutado em função da ciberdemocracia
(LEMOS, 2014). Indubitavelmente, convém pensarmos nestes componentes sem
ingenuidade, pois “vivemos num tempo de afirmação da identidade hegemônica do
sujeito otimizador do mercado” (SILVA, 2010 p.8), o que exige uma postura reflexiva
do educador frente a sua responsabilidade educativa, social e política. Consideramos
fundamental compreender que:

[...]Os mestres pensadores da metafísica econômica querem reduzir o espaço


do político e do social às escolhas permitidas pelo mercado; nós queremos

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

em troca, ampliar o espaço público e o do debate coletivo sobre o que


significa uma “boa” sociedade e quais as melhores maneiras de alcançá-la
(SILVA, 2010, p. 9).

A tradição crítica em educação sempre esteve preocupada com as questões de


currículo e sua centralidade na relação educativa, pois o mesmo solidifica ligações entre
saber, poder e identidade. Deste modo, as políticas curriculares, além de autenticarem
signos, conferem autoridade a uma determinada voz, instituindo e constituindo o “real”
desejado. Segundo o autor, este “real” representa os interesses da classe dominante,
configurando-se através das políticas curriculares criadas. A potência que notamos em
seu discurso refere-se à criticidade tão necessária no tempo atual, quando aborda a
importância do debate coletivo sobre o que seria uma “boa” sociedade, sem que isto
fosse elaborado através da sobreposição dos interesses neoliberais.
Viver na sociedade globalizada requer uma criticidade necessária, o que nos faz
compreender que possuir uma disciplina que discuta a presença das tecnologias digitais
no Curso Normal torna-se fundamental. Ressaltamos, porém, a necessidade de
transgredir as práticas implícitas no discurso da referida disciplina, tomando uma
posição astuta sobre a mesma. Deste modo, as práticas formativas contra hegemônicas
seriam o melhor caminho para romper com os objetivos mercadológicos incutidos na
elaboração deste componente curricular. Com isto, não pretendemos negar a
necessidade dos professores formarem-se para “usos” das tecnologias, já que o
conhecimento técnico sobre as ferramentas é indispensável; porém, não deve limitar-se
apenas ao manuseio instrumental. Apesar de a nova estrutura social caracterizar-se por
uma configuração tecnológica e informacional, seus modos de produção ainda são de
base capitalista (CASTELLS, 2007).
O documento referente à disciplina de IMNT propõe, a partir de sua redação,
que os professores saibam lidar com as tecnologias, promovendo práticas pedagógicas
que correspondam às especificidades da geração supostamente digital. Nota-se este
propósito através da seguinte afirmativa:

[...] as tecnologias que estão ao nosso alcance devem ser tratadas como
instrumentos excelentes para promover o aprendizado de forma
contextualizada, criativa e eficiente. Para isso faz-se necessário, que o
professor lide bem com tais recursos, a fim de promover aulas mais atrativas
para os seus alunos, em que exista a interação, imagens, sons, vídeos,
fotografias, mensagens, jogos, programas, dentre outros. É evidente que o
uso desses recursos deve estar muito bem organizado e planejado (SEEDUC,
2013, p.4).

sumário 720
VII Seminário Vozes da Educação

O documento cita a importância das TDIC comporem as práticas formativas dos


professores, quando afirma a necessidade de organização e de planejamento das aulas.
Aqui fica explícita uma intencionalidade didática, que envolve conhecer as tecnologias
e utilizá-las de forma instrumental, o que, segundo o documento, conduziria a eficiência
do ensino. A proposta sinaliza unicamente a importância do docente “saber lidar bem”
com as tecnologias, supondo assim a realização de aulas mais “atrativas”. Além da ideia
de encantamento proporcionada pelas TDIC, o que está em jogo é a necessidade de
formação destes professores para um “saber lidar” que envolva conhecimentos
instrumentais, pedagógicos, didáticos, epistemológicos e subversivos quando o conceito
instrumental prepondera sobre o epistêmico.
O termo “atrativo” contido no documento nos faz pensar nas tecnologias como
um canto de sereia, ávido por atrair educandos e educadores (BLIKSTEIN; ZUFFO,
2012). Apesar da melodia sedutora das TDIC é preciso pensá-la para além da lógica
instrumental, ou seja, como linguagem. Será nesta perspectiva que a tecnologia ganhará
outra dimensão, na produção de sentidos dada pelos sujeitos em sua relação com os
artefatos culturais.
De acordo com Bakhtin (1992), a língua é um fator social e, desta forma, a fala
está ligada estritamente ao ambiente coletivo que se comunica com significado. Neste
panorama, seria então uma tecnologia repleta de signos, ideologias, conflitos e
representações, todas elas presentes na sociedade, inclusive na instituição escolar, em
suas políticas, práticas e relações cotidianas. Para o autor a linguagem não é ferramenta,
mas conhecimento constitutivo, que marca a vida dos sujeitos e define a organização da
sociedade. Neste mesmo caminho, a tecnologia como prática cultural, representa uma
linguagem potencial nas relações de ensino e aprendizagem entre professores e alunos,
necessitando ser pensada e discutida nas práticas e políticas educacionais sob este viés.
A seguir apresentamos a proposta pedagógica da disciplina de IMNT, através de
seu currículo mínimo, elaborado para orientar os assuntos bimestrais que devem ser
contemplados pelos professores em suas práticas educacionais. Notamos que na
apresentação dos conteúdos há a sugestão de temáticas importantes para serem
trabalhadas nas aulas, necessitando transformarem-se em práticas possíveis, pois não
basta a existência de um programa abastecido de teorias e conteúdos, mas esvaziado de
substâncias que promovam suas concretudes (OLIVEIRA, 2017).

sumário 721
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Figura 1: O Currículo Mínimo da Disciplina de IMNT

Fonte: SEEDUC, 2013

De acordo com Peixoto (2015), as tecnologias não aparecem nos programas de


formação de professores como objeto de pesquisa e reflexão, mas apenas como
ferramentas ou meios de trabalho numa esfera didático-pedagógica. Percebemos esta
conotação no documento analisado quando afirma que:

sumário 722
VII Seminário Vozes da Educação

Refletiu-se, ainda, sobre a formação do educador para enfrentar os desafios


postos pela sociedade da informação e do conhecimento na inserção de um
sujeito atuante no mundo do trabalho, que utilize as novas ferramentas para
auxiliá-lo na construção de suas aulas e no despertar do aluno para o
aprendizado (SEEDUC, 2013, p. 5).

Obviamente, consideramos fundamental que os professores estejam habilitados


para utilizarem as tecnologias digitais, afinal, vivemos uma sociedade global, sendo as
TDIC o que a caracteriza. Mediante a isso, reforçamos a necessidade de responder a
esta sociedade com sabedoria, perspicácia e profissionalidade, superando a dimensão
apenas instrumental fornecida às TDIC. A profissionalidade a que nos referimos
envolve uma docência munida de conhecimentos teóricos e práticos sobre as
tecnologias, através de uma cientificidade não limitada a servir, mas impreterivelmente
disposta a lutar corajosamente contra as armadilhas neoliberais que através de sua
lógica, defende uma ética de mercado e não a ética universal do ser humano (FREIRE,
1996).
De acordo com Peixoto (2015), a educação de qualidade através da inclusão
digital não atende unicamente aos desejos dos estudantes que frequentam as escolas,
mas se incorpora a um projeto econômico que visa ampliar um mercado de
consumidores e de trabalhadores competentes de acordo com as leis do capital. Desta
forma, a disciplina de IMNT, não estaria preocupada apenas com a emancipação de
trabalhadores ou formação para a cidadania. Entre seus fragmentos textuais, a
preemiência da tecnologia numa lógica instrumental se confirma quando declara:

Partimos do pressuposto de que a tecnologia já é utilizada no cotidiano


escolar; entretanto consideramos a necessidade de ampliar as potencialidades
de seus diferentes meios. Compreendemos que o trabalho desenvolvido com
o uso das tecnologias pode representar uma mudança qualitativa no processo
de ensino e aprendizagem (SEEDUC, 2013, p. 4).

O autor Filé (2015) ressalta a necessidade de pensar sobre as tecnologias, não


em si mesmas, mas, impreterivelmente, nas suas repercussões sobre a vida cotidiana,
acrescentando ainda que as noções que muitos possuem sobre as TDIC apresentam-se
restritas à lógica instrumental e a realização de tarefas, impedindo leituras mais amplas
que se referem à complexidade que envolve as tecnologias na sociedade global. Neste
sentido:

sumário 723
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Tais reduções nos levam inevitavelmente a considerar as TICs a partir de


interesses mercadológicos, passando pela criação de necessidade de consumo
de determinados produtos, independentemente de projetos dos usuários, das
necessidades e das condições que envolvem tais usos (FILÉ, 2015, p.276).

Até aqui refletimos sobre as políticas em textos sem mencionar as


interpretações que podem ser realizadas pelos praticantes escolares de seus lugares. O
realce instrumental dado às TDIC desconsideram reflexões mais amplas e ignoram a
criticidade necessária frente aos contextos da sociedade globalizada. Conclui-se que a
qualidade da educação estaria atrelada ao “uso” da tecnologia, sem registrar
oficialmente em sua proposta, a necessidade de estruturar a escola para uma
acessibilidade dos recursos de acordo com sua realidade local. Afinal, se as tecnologias
são instrumentos necessários à escola, elas precisam estar acessíveis, abertas,
conectadas, atualizadas, em estado de usabilidade e não de sucateamento como é o caso
de muitas instituições.
O documento sinaliza que, a partir de cada realidade, “podemos utilizar as TICs
como ferramenta educacional, possibilitando a interação entre diversas disciplinas,
aparentemente distintas umas das outras”. Tal processo poderia, segundo o documento,
“aperfeiçoar a formulação de um saber crítico-reflexivo” (SEEDUC, 2013, p.4).
Sobre o exposto, convém pensar que a relação teoria e prática em educação deve
ser premissa de qualquer ação pedagógica. Em estudos anteriores pude discutir alguns
aspectos que envolvem o contexto escolar e a formação de professores permeada por
TDIC, sendo necessário compreender que utilizar as tecnologias como “ferramenta”
educacional pressupõe acesso a elas, assim como utilizá-las num processo de interação
entre diversas disciplinas exigiria um engajamento político-pedagógico, que englobasse
planejamentos coletivos, trocas entre docentes, momentos para dialogar e aprender-
ensinar juntos. Compreendemos que para um saber critico-reflexivo, a dimensão da
tecnologia não deveria restringir-se apenas ao conceito de recurso ou ferramenta, mas
alargar-se para a compreensão de linguagem, o que demanda muitos estudos, pesquisas
e experiências a esse respeito.
Certamente as proposições aqui discutidas ampliariam possibilidades para
diferentes traduções das políticas e dos currículos oficiais pensados para a educação.
Diante das colocações do documento da disciplina de IMNT, muitos fios precisariam
ser tecidos, no sentido de promoverem uma educação realmente significativa,
preocupada não só em atender as demandas da globalização, mas, impreterivelmente,

sumário 724
VII Seminário Vozes da Educação

intervir nos entornos da sociedade em busca de “transformações sociais e políticas”


(LEMOS, 2010 p.27). As práticas educacionais mediadas por TDIC numa dimensão
reflexiva e atuante rompem com sua subutilização tão presente nas propostas e
programas curriculares.

Outros modos de ler, interpretar e recriar as políticas educacionais.


Em seu texto conclusivo, a disciplina de IMNT apresenta-se como um processo
de elaboração embasado em pesquisas bibliográficas, discussões aprofundadas e olhar
crítico cujo objetivo principal teria sido o de aproximar os conteúdos curriculares da
realidade dos alunos e professores. Questionamos neste sentido, os equívocos nas
políticas quando não consideram a diversidade de contextos e realidades das escolas,
tornando como legítimo um discurso único, cabendo aos docentes sua aplicação.
Críticas em níveis mais amplos são realizados através de Hypólito (2019) quando
discute as políticas de formação docente a partir de propostas globais sendo estruturadas
localmente. Para o autor as reformas em educação têm transitado sob a lógica de
organizações econômicas, inclusive através do apoio de instituições interessadas no
mercado educacional bilionário que envolve a venda de materiais pedagógicos,
consultorias e prestações de serviços, terceirização da produção de materiais didáticos e
venda de sistemas apostilados, de sistemas de gestão educacionais, aplicativos e
plataformas digitais que monitoram o sistema administrativo e pedagógico das escolas
retirando dos professores sua autonomia docente.
Do mesmo modo que as tecnologias têm sido inseridas nas políticas
educacionais como possibilidades para as práticas docentes, não descartamos uma
preocupação sob sua subutilização quando fincada apenas nos propósitos neoliberias
pautados numa proposta de educação instrumental, controle das instituições e a própria
massificação do ensino através de propostas de educação a distância (EaD) sem
comprometimento ético com a educação. Não negamos os potenciais da educação
online quando pesquisas através de Santos (2014), comprovam suas contribuições,
apenas sinalizamos a necessidade de estudos aprofundados a esse respeito para que a
modalidade de EaD não se transforme em uma educação fragmentada, pragmática e
reducionista. De acordo com a autora, a educação online não significa “uma mera
evolução das práticas massivas da EaD” (SANTOS, 2014, p.18).
Outra dimensão que precisa ser pensada sobre a disciplina de IMNT é aquela
que tem decretado seu sucesso associado às ações do professor, desconsiderando outros

sumário 725
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

aspectos que envolvem seu processo de execução como artefatos culturais inacessíveis
nas escolas, falta de computadores e de acesso à internet, ausência de recursos
audiovisuais, desconhecimento técnico, científico, teórico e metodológico sobre as
TDIC e a deformação dos modos de ver e conceber a escola perpassada por celulares
nas mãos dos praticantes escolares, mas ainda invisibilizados pedagogicamente por
muitas escolas. Compreendemos que “uma implantação bem-sucedida” da disciplina de
IMNT não depende unicamente da ação do professor, exigindo outras políticas de ação
emergenciais que caminhem ao encontro de uma reestruturação da gestão educacional e
da flexibilização das estruturas de ensino (KENSKI, 2008 p.86).
Convém afirmar que, em relação às práticas docentes e discentes, estas tendem a
constatar-se como políticas potentes frente às inúmeras dificuldades cotidianas
encontradas em suas realidades. Diante da imagem da violência, do abandono e descaso
sofrido por muitas escolas públicas, pensamos na relevância das tecnologias de reação,
aquelas produtoras de sentidos criadas pelos praticantes escolares nos cenários que os
tomam. É preciso conhecer suas políticas interpretadas assim como as inventividades
geradas através das experiências vividas nas práticas contextuais (LOPES, 2010). Tais
políticas transfiguram-se em modos astutos de (re)ação. Neste sentido, a atuação de
políticas “envolve a tradução de textos em ação e as abstrações de ideias políticas em
práticas contextualizadas”(MAINARDES, 2018 p.6). O autor compreende que a
tradução da política é um processo produtivo e criativo envolvendo a construção de
estratégias para que a política seja posta em ação.
Consideramos extremamente relevante os movimentos de resistência pedagógica
quando professores e alunos, de seus lugares conseguem reprogramar os usos das
tecnologias para além do que rezam as políticas. Hypólito (2019) considera as ações
docentes de resistência e reinterpretação das políticas curriculares no cotidiano escolar
fundamentais, pois a educação tem sido penetrada pela lógica de mercado, da
responsabilização docente, das tecnologias de controle e dos fundamentos do
gerencialismo. Em relação às TDIC, estas vêm impregnadas por uma lógica do
consumo pensada por seus fabricantes, mas quando reprogramada pelos usuários
(CERTEAU, 1994) produz modos outros de pensar e traduzir as tecnologias em
educação. Desta forma, reafirmamos que a política no contexto da prática envolve
tradução e interpretação dos textos para as circunstâncias reais, onde cada instituição
através de suas singularidades significará suas próprias políticas (REZENDE;
BAPTISTA, 2015).

sumário 726
VII Seminário Vozes da Educação

Criticamos veementemente a compreensão minimalista sobre tecnologia


educacional quando esta é perspectivada como instrumento ou ferramenta de
transmissão de conteúdos curriculares ou mesmo enquanto aplicativos e plataformas
digitais preocupadas em monitorar o sistema administrativo e pedagógico das escolas,
retirando do professorado sua autonomia docente (HYPÓLITO, 2019). Enquadrá-las
sob esta ótica significa uma redução de seus potenciais comunicacionais e uma rendição
aos interesses neoliberais, que paulatinamente vem presentificando-se nas políticas
educacionais oficiais.
Falamos aqui sobre a disciplina de IMNT como texto na política educacional do
Curso Normal que deriva diretrizes, normas e guias curriculares, movimentando “uma
indústria cultural montada em torno da escola e da educação” (SILVA, 2010 p.11).
Para o autor, a política curricular transformada em currículo reflete na escola e define as
funções de autoridade e iniciativa versadas pelos professores e alunos, assim como
determina o que transmite por conhecimento válido. Daí a necessidade de repensar e
renovar os estudos e práticas curriculares, visto que, a todo tempo, o currículo é atingido
frente aos novos paradigmas sociais, especialmente na atualidade, onde vivemos uma
“hibridização de identidades” e a própria junção do homem com a máquina; uma era
definitivamente cibernética, que precisa ser lida criticamente para não corresponder ao
projeto hegemônico e sua visão de mercado, interessada em fabricar identidades afins
aos seus interesses.
No tempo de novas TDIC, percebemos a necessidade de construção de
identidades críticas, que lutem pela permanência do público, pela igualdade de
condições, pela cidadania e justiça social, onde as tecnologias tornam-se meios para
amplificar as vozes, produzir saberes, compartilhar culturas e confrontar as relações de
poder, alienação e opressão. A capacidade dos praticantes escolares produzirem
mecanismos que ludibriem as tentativas de manipulação subentendidas nas propostas
curriculares possibilita uma formação mais sólida, traduzindo-se em munição para a
vida na sociedade, vida esta que não se limita em servir aos interesses da globalização
com ingenuidade, mas, impreterivelmente, usa as suas ferramentas como ato de
resistência e luta.
Ao realizar este estudo, foi possível constatar que a existência de um
componente curricular no Curso Normal destinado a discutir as tecnologias digitais é
fundamental. Contudo, os programas e políticas curriculares precisam valorizar
efetivamente as vozes daqueles que vivem diariamente a escola, oferecendo espaços

sumário 727
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

legítimos de reflexão. Consideramos que as práticas pedagógicas necessitam ampliar as


possibilidades formativas permeadas pelas tecnologias, compreendendo-as como
ambientes que compõem as culturas atuais, necessitando serem pensadas
epistemologicamente.
No curso da pesquisa é preciso continuar pensando criticamente sobre as TDIC
no campo educacional, evitando seduzir-se pelas armadilhas e fetiches de uma
globalização que tem as estratégias para vender seu peixe, mas não se preparou para as
possíveis reprogramações, táticas e artes de fazer (CERTEAU, 2014) dos praticantes
escolares. Nesta trilha pretendemos prosseguir realizando novas leituras e escritas,
analisando como as mídias e novas tecnologias se integram na formação de professores
para além de um componente curricular. Interessa-nos ainda conhecer as alternativas
docentes e discentes frente às ausências sofridas pelos praticantes escolares quando um
hiato prepondera entre as políticas oficiais e as estruturas locais.

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sumário 728
VII Seminário Vozes da Educação

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sumário 730
VII Seminário Vozes da Educação

O COTIDIANO NO ESPAÇO ESCOLAR


VIVIDO POR UM ESTUDANTE DIAGNOSTICADO COM CEGUEIRA

Vanessa de Araújo Canela


FFP/UERJ
canelaaraujo@gmail.com

Contar uma história é enumerar,


ordenar os rastros que conservam o que se viu.
Tomaz Tadeu da Silva

Pensando sobre a composição desta escrita, resolvi narrar a experiência que tem
me atravessado por anos de minha vida. Narrar tudo aquilo que tem me movido a pensar
no outro que é tido como “diferente”, dentrodo padrão de normatização que rege a
escola na sociedade em que vivemos
Mas, como problematizar essas questões para compor essa escrita?Como trazer
esses atravessamentos de forma que possamos pensar no outro e compreender as suas
singularidades?Essas questões me afetam e me deslocam a narrar a trajetória de vida do
Matheus, estudante diagnosticado com cegueira.
Além de redigir sobre as experiências que vivi com Matheus dentro da escola,
acredito ser importante trazer também suas próprias narrativas construídas dentro do
espaço escolar. O objetivo é apresentar alguns aspectos que nos ajudem a pensar e
problematizar discursos e olhares que vêm sendo construídos, muitas vezes, de forma
despercebida sobre o outro.
Algo se passou para que tenhamos medo da diferença, para que não aceitemos as
presenças que não sejam semelhantesas nossas. Algo espúrio se passou para que só
desejemos o que é normal e regular, o que já conhecemos,o que já domesticamos, o que
não nos confronte com nossas incertezas e ambiguidades. As palavras de Skliar(2015)
nos defrontam com nossas certezas de comodidade, de não-estrangeirismo, de
pertencimento e, acima de tudo, com o que aceitamos em nossas fronteiras. O medo e o
fascínio da alteridade dizem mais a respeito de nós do que do outro, dizem respeito à
nossa obsessão pela normalidade. É a partir dessa obsessão pela normalidade, pelas
regularidades funcionais, pelas certezas, que um olhar sobre os deficientes é construído.

sumário 731
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A normalidade elabora falas, discursos sobre eles, seja para encerrá-los em escolas
especiais e torná-los invisíveis, seja para incluí-los em posições subalternas.
(CLÍMACO, 2010, p. 9).
Pensando nos olhares, nos discursos que vêm sendo construídos sobre esse outro
que é dito como diferente em nossa sociedade, começo a pensar na condição do
Matheus, das dificuldades que são apresentadas em suas falas cotidianamente, e algo
começa a me inquietar, deslocando-me apensar em todos aqueles,quepossuemuma
semelhança na forma a compor a vida, como Matheus.
Para esta escrita, tenho como objetivo trazer a narrativa do Matheus, suas
memórias e questões que o afetam como sujeito. Porém antes de narrara experiência do
Matheus, acho importante trazer a sua história de vida para compreendermosmelhor o
caminho que nos levou até aqui.
Matheus nasceu com glaucoma congênito, ele tem um resíduo de visão que o
ajuda bastante nas tarefas do dia a dia, porém dentro do discurso médicoMatheus foi
diagnosticado com cegueira.
Recordo-me do seu primeiro dia de vida, quando a enfermeira foi deixar
Matheus no quarto, ele abriu os seus olhos e a enfermeira disse que serianecessário
retornar com o bebê para o médico, pois “os seus olhos não tinham uma cor normal”.
Essa fala da enfermeira ecoou por muitos anos em minha vida, fazendo-me
pensar no discurso que aquela criança já experimentava em suas primeiras horas de
vida. Talvez, naquele momento, de forma inconsciente, o meu corpo começou a iniciar
um processo de alerta, pois mesmo que eu não pudesse compreender de forma
consciente, inconscientementeeu já me preparava para enfrentar esses discursos que
iriam permear em nossas vidas, atravessando-nos ao ponto deme impulsionar hoje aqui,
na elaboraçãocrítica desta narrativa, e deslocou-mea pensar em outras possibilidades e
formas de estar ecompor a vida, questionando as fronteiras rigidamente demarcadas,
conforme bem elucida Ferri (2006, p. 293):

Na construção do padrão alicerçado em supostos universais de normalidade,


as diferenças serviram de delimitação rígida de suas fronteiras, uma vez que
o lugar que os outros deveriam ocupar foi bastante demarcado. Essas
fronteiras, com estabelecimento de um normal absoluto e um anormal
ameaçador, não constroem apenas o que está fora dela, mas é fundamental
para o que está dentro do limite da normalidade: as relações que
estabelecemos com as diferenças constroem quem somos (apud CLÍMACO,
2010, p. 9)

sumário 732
VII Seminário Vozes da Educação

Pensando em um padrão que foi implementado pela sociedade, começo a


experimentar o sentido e os efeitosdo conceito de normalidade no dia a diado Matheus,
onde os olhares, os discursos legitimam o outro pela falta. Pensando sobre isso, tenho
como ideia trazer algumas das experiências do Matheus, onde ele traz como relato a
suanarrativa, suasexperiências vividasem seu cotidiano dentro do espaço escolar.
Compreendendo alguns deslocamentos que Matheus exerce no seu dia a dia, tenho
como objetivo, não só trazer a trajetória do Matheus, mas também trazer a questão do
currículo, que atravessa Matheus constantemente dentro do espaço escolar.
Ao crescer Matheus vivenciou diálogos, que marcam claramente a forma como
ele veio sendo percebido, identificado pelos que se relacionam com ele. O que narramos
a seguir é um destes exemplos.

__Matheus você é cego!


__Eu não sou cego, eu tenho deficiência visual, mas antes de ter a condição
da deficiência visual, eu sou Matheus, estudante, dublador, amigo, alegre,
uma pessoa como você.Por exemplo...
continuouMatheus em uma conversa com um amigo na escola.
__Você tem cabelo!Você é um cabelo?Então: assim sou eu, eu tenho a
deficiência visual, mas não sou um deficiente. Sou Matheus, assim como
você não é um cabelo.
Relatos do Matheus

Acho importante trazer esse relato do Matheus para dar continuidade a esta
narrativa, poiso que observamos na maioria das vezes são os olhares que, de certa
forma, construímos sobre o outro, mesmo que de formainconsciente e “inocente”.
Porém, reproduzimos e fortalecemos osdiscursosque rotulam o outro pautadopela norma
quese coaduna como um padrão. Segundo Júlia Clímaco:

Construímo-nos como sujeitos em uma sempre presente mediação do outro,


em constitutivas e inescapáveis relações de alteridade. Essa relação com o
outro se constrói na materialidade cotidiana e está, portanto, permeada pelos
poderes que regem as relações.A contemporaneidade cria uma nova
perplexidade em relação a esse outro, que parece nos ameaçar – perdemo-
nos, pois nos foi ensinado a distância do outro, a necessidade de controlar
espaços; torná-los verticais; dominar o outro em posições subalternas para
que nos identifiquem como sujeitos(CLÍMACO, 2010, p. 18).

Pensando sobre a construção do sujeito, como afirma Clímaco, compreendemos


que a mesma se dá na relação como outro, eque,se constitui de forma histórica. A
contemporaneidade, segundo o autor, reforça o olhar da diferença como uma forma de
distanciamento do “sujeito padrão”.

sumário 733
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Mas, como podemos transformar o nosso olhar, que foi construído para estes
sujeitos e estudantes que compõe a vida e compartilham de nossas escolas? Como
extinguir o discurso frio e mecânico de que “não estamos preparados” enquanto
professores, o qual vem ganhando força dentro do espaço escolar?
São essas questões que me possibilitam escrever, pensar e problematizar alguns
desses conflitos que se passam na vida do Matheus, com o objetivo de compor essa
narrativa.Todas as vezes que inicio uma narrativa sobre a vida do Matheus, um filme se
passa em minha cabeça, e começam a surgir tantas memórias, que às vezes sinto que
fico um pouco confusa. Não que isso me afete a ponto de me desnortear, mas, talvez,
seja algo mais profundo. Percebo nessa trajetória de vida entre mãe e filho o quanto foi
preciso ter fôlego, parar para respirar, secar as lágrimas, ser firme mesmo quando o meu
coração queria chorar pelas falas duras, pelos olhares que de certa forma rotulavam o
meu filho, e, mesmo havendo o silêncio na fala, era possível traduzir o olhar…
Não conseguia compreender tamanha ignorância em algumas perguntas
relacionadas ao Matheus, e ao mesmo tempo não compreendia a insensibilidade do
outro perante ele. As pessoas não compreendiam que uma criança poderia nascer com
cegueira, elas não suportavam – a ponto de vir ao meu encontro com muitas perguntas,
não percebiam que eu era a mãe do Matheus e que ele estava ao meu lado escutando.
Recordo-me de só ter vontade de ir ao shopping quando estava bem, pois se eu não
estivesse em “um dia legal”, com certeza aqueles olhares iriam me magoar a ponto de
me fazer chorar.
Nunca deixei que esses sentimentos pudessem transparecer ao Matheus, pois
sentia a necessidade de fazê-lo sentir-se forte, pois aqueles olhares, aquelas perguntas
iriam se perpetuar não só em minha vida, mas na dele também. Por isso, sempre
respondia a condição do meu filho com um sorriso no rosto e com a transparência de
que é possível compor a vida de outras formas.
Além trazer, para este texto, a narrativa do Matheus, hoje um jovem adolescente
que transita no espaço escolar regular, penso ser importante relatar também, alguns
deslocamentos do Matheus enquanto criança para traçar melhor a sua jornada de vida.
Tenho como objetivo trazer uma narrativa rica em detalhes, onde a memória se faz
presente, mostrando-nos minuciosamente uma particularidade para compreendermos
melhor a sua jornada de vida, que se tece até aqui. Segundo Jöel Candau:

sumário 734
VII Seminário Vozes da Educação

A memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós


modelada. Isso resume perfeitamente a dialética da memória e da identidade
que se conjugam, se nutrem mutuamente, se apoiam uma na outra para
produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito, uma narrativa. Ao
final, resta apenas o esquecimento (CANDAU, 2018, p. 16).

A “memória e identidade estão indissoluvelmente ligadas” (CANDAU, 2018, p.


16). Talvez, seja por isso que quando trago a trajetória de vida do Matheus, percebo que
estou sempre me transformando a partir das experiências dele. E foi a partir de sua
condição de cegueira que me torno estudante, pesquisadora que tem um olhar disponível
para a questão da alteridade. Foi por decorrência da experiência de vida do meu filho
que ingressei na universidade, com objetivo de compreender melhor a sua singularidade
de compor a vida.
Foi através da sua necessidade de fazer a leitura e escrita em braille que ingresso
também no meu primeiro curso em braille, onde tive a oportunidade de ter o meu
primeiro contato com este tipo de leitura e escrita.
Confesso que quando conheci o código em braille, fiquei fascinada, foi amor à
primeira vista, algo ali começava a se transformar dentro de mim.Admito que quando
iniciei este curso, tinha como intenção ajudar, auxiliar nos estudos do Matheus, pois
acreditava que se eu soubesse o código em braille todos os meus problemas estariam
resolvidos, e eu como mãe poderia ajudar o meu filho com as suas dificuldades das
tarefas da escola. Este curso me mobilizou bastante e a partir dele, prometi pra mim
mesma que iria estudar para me tornar professora. Meu desejo era poder lecionar para
estudantes que tivessem a mesma condição do Matheus.
Nessa época, estava procurando uma escola regular para matricular Matheus.
Encaramos alguns conflitos dentro do espaço escolar. Escutamos por inúmeras vezes
um discurso de falta de preparação das instituições escolares para receber meu filho
como aluno. A partir de falas como: “não estamos preparados” começo a me questionar
e problematizar o que seria estar preparado, pois eu como mãe também não estava
preparada para receber um filho diagnosticado com cegueira. Foi a partir da minha
disponibilidade em querer conhecer este outro que acabava de chegar a minha vida, que
iniciei um processo de aprendizado com meu filho.
Então, por isso, não conseguia compreender esses discursos de que as escolas
não estavam preparadas, pois eu como mãe também não havia me preparado para ter um
filho diagnosticado com cegueira, porém, aprendi a partir do encontro com ele. Através
da minha disponibilidade de querer estar junto.

sumário 735
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O que pode significar a expressão “estar preparados” ou “não estar preparados”?


Como pode ser compreendida esta afirmação? Seria “saber o que fazer” diante de cada
criança, diante de cada corpo, diante de cada língua, diante de cada aprendizagem,
diante de cada forma de estar no mundo? Pessoalmente, acredito que é impossível saber,
sentir e estar preparado para aquilo que possa advir e acontecer no futuro. Devemos
enfatizar a ideia de que, mais que estar preparados (antecipados para o que virá para o
que, nunca saberemos, o que de fato será) trata-se de estar disponíveis e de ser
responsáveis
É preciso, portanto, estarmos disponíveis para conhecer o outro, fazendo um
movimento de escuta, onde as marcas de seus corpos não sejam a prioridade que nos faz
reconhecê-lo, apontando-o como deficiente e priorizando um discurso antes mesmo de
conhecê-lo. Como podemos atravessar, pausar essas falas que a todo tempo estão
marginalizando pessoas como o Matheus. Como podemos transformar os nossos olhares
para cada pessoa que compõe a vida em sua singularidade?
Penso que seja necessário compreendermos, enquanto professores, que a
diferença se faz necessária. Quando um estudante chega à escola com qualquer tipo de
necessidade, o professor necessita estar atento para sua especificidade. Não podemos
colocá-los em um mesmo pacote e padronizá-los.

Setembro de 2019:
__Mãe, hoje paguei o maior mico na escola!
Assim chega o Matheus em casa, indignado!
Continuou:
__ Você não faz ideia do que aconteceu. Hoje, eu tive aula de música e o
meu professor anotou as notas musicais no quadro. Até aí, estava tudo bem,
depois eu iria pegar essas notas com algum amigo, pois é sempre o que eu
faço.
__ Mas o professor teve a “brilhante” ideia de me chamar lá na frente da sala
e colocar uma cadeira para eu subir e tentar de alguma forma me fazer olhar,
ver com os olhos aquelas notas musicais.Como se não bastasse eu não
conseguir ver as notas, eu ainda tive que subir na cadeira.
__ Os meus colegas de sala de aula insistiram para que o meu professor
desenhasse as notas no quadro de forma ampliada, mas o meu professor não
deu ouvidos para a turma.
__ Foi um mico total!
Relatos do Matheus

Pensando nos atravessamentos de um estudante com cegueira, acredito ser


importante discutir sobre situações ocorridas com o Matheus e que têm ricos efeitos na
construção da minha identidade hoje enquanto pedagoga. Penso na importância de

sumário 736
VII Seminário Vozes da Educação

trazer a memória para esta narrativa e os detalhes dos primeiros anos de vida de meu
filho.
A memória é, acima de tudo, uma reconstrução continuamente atualizada do
passado, mais do que uma reconstituição fiel do mesmo: “a memória é de fato mais um
enquadramento do que um conteúdo, um objetivo sempre alcançável, um conjunto de
estratégias, um ‘estar aqui’ que vale menos pelo que é do que pelo que fazemos
dele.”(CANDAU, 2018, p. 9).
Penso que antes de continuar escrevendo sobre o tema escolhido seria
importante trazer o que me fez pensar em escrever sobre ele, bem como quais são os
motivos que me deslocam a pensar sobre essa realidade aplicada em nossas escolas. Sou
formada em Pedagogia pela UERJ, mãe de um jovem adolescente que foi diagnosticado
pelos médicos com deficiência visual. As questões do currículo escolar me atravessam a
todo tempo, pois sempre vou às reuniões na escola do meu filho pedir uma adaptação
curricular, conversar sobre o método utilizado pela escola, no processo de ensino e
aprendizagem do Matheus. Porém, sempre surgem muitos conflitos quando nos
reunimos com toda a equipe pedagógica.
Ao pensar sobre essas questões que fazem parte, não só da minha realidade, mas
também de muitas outras pessoas que compartilham do espaço escolar. Gostaria de
trazer para esta escrita alguns relatos de experiência, onde narro sobre situações que me
atravessaram. Porém, antes de dar continuidade, a esta temática, acho que seria
importante discutir a noção de teoria e o como o currículo se inicia:

Em geral, está implícita, na noção de teoria, a suposição de que a teoria


“descobre” o “real”, de que há uma correspondência entre a “teoria” e a
realidade. De uma forma ou de outra, a noção envolvida é sempre
representacional, especular, mimética: a teoria representa, espelha a
realidade. A teoria é uma representação, uma imagem, um reflexo, um signo
de uma realidade que – cronologicamente, ontologicamente- a precede.
Assim já para entrar em nosso tema, uma teoria do currículo começaria por
supor que existe, “lá fora”, esperando para ser descoberta, descrita e
explicada, uma coisa chamada “currículo”. O currículo seria um objeto que
precederia a teoria, a qual entraria em cena para descobri-lo, descrevê-lo
explica-lo. (SILVA, 2010 p. 10).

Nesta perspectiva, o autor também traz o conceito de pós-estruturalismo que


contribui para pensarmos sobre o diálogo entre teoria e prática. Ou seja, a teoria não
seria apenas uma construção linguística que “traduz” o que ocorre na realidade,
interpretando-a ou descrevendo-a. Nas palavras de Silva (2010):

sumário 737
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

De acordo com essa visão, é impossível separar a descrição simbólica,


linguística da realidade – isto é, a teoria - de seus “efeitos de realidade”. A
teoria não se limitaria, pois, a descobrir, descrever, a explicar a realidade: a
teoria estaria irremediavelmente implicada na sua produção. Ao descrever
um “objeto”, a teoria de certo modo, inventa-o. O objeto que a teoria
supostamente descreve é efetivamente um produto da criação. Nessa direção,
faria mais sentido falar não em teorias, mas em discursos ou textos. Ao
deslocar a ênfase do conceito de teoria para o discurso, a perspectiva pós-
estruturalista quer destacar precisamente o envolvimento das descrições
linguísticas da “realidade” em sua produção (SILVA, 2010 p.11,12)

O autor também destaca o processo de industrialização com os movimentos


imigratórios, que intensificavam a massificação da escolarização. Com isso houve um
impulso de pessoas ligadas à educação no processo de industrialização e os movimentos
que surgiam, intensificando a massificação da escolarização, e também por um impulso
por parte de pessoas ligadas a administração da educação, racionalizando o processo de
construção e o desenvolvimento da testagem dos currículos. O autor também cita quais
eram os objetivos da escolarização de massas na época, trazendo alguns exemplos ao
longo do texto sobre a ideia de formar um trabalhador especializado. Existia uma
dualidade de pensamentos do que a escola poderia ensinar: as habilidades básicas de
escrever, ler e contar. Ou, uma filosofia mais profunda humanística. Na época em que
esses conflitos começaram a surgir, o autor BOBBIT era considerado um marco dentro
deste estabelecimento, trazendo a ideia de que: “a escola funcionaria da mesma forma
que uma empresa comercial ou industrial” (SILVA, 2010 p. 12):

O currículo é visto como um processo de racionalização de resultados


educacionais, cuidadosa e rigorosamente especificados e medidos. O modelo
institucional dessa concepção de currículo é a fábrica (BOBBIT, 1918, apud
SILVA, 2010 p. 12).

Ao pensarmos sobre o currículo e o sistema de onde foi iniciado, talvez


possamos questionar, refletir sobre alguns padrões que foram implementados nas
escolas, nos espaços físicos que a todo tempo os nossos estudantes estão transitando.
Quando falamos do currículo e da escola, também podemos pensar sobre os gestos que
estão presentes na vida escolar de cada educando, como a hora da entrada nas escolas, o
intervalo, o sinal para sinalizar a cada término de cada matéria, desde a entrada até a
saída do turno destes estudantes e os conteúdos que são aplicados. Aquilo que Bobbitt
dizia ser “currículo” passou, efetivamente, a ser o “currículo”, ao qual um número
considerável de escolas veio a aderir, e na sequencia os professores, estudantes e
gestores educacionais.

sumário 738
VII Seminário Vozes da Educação

Pensando sobre a organização escolar e compreendendo de onde surge o modelo


de currículo implementado em boa parte de nossas escolas, quando pensamos na palavra
currículo, pensamos apenas no conhecimento, deixando escapar os efeitos que ele
possui na construção de nossas identidades, como sujeitos e estudantes.

Nas teorias do currículo, entretanto, a pergunta “o quê?” nunca está separada


de uma outra importante pergunta:” o que eles ou elas devem ser?” ou,
melhor “o que eles ou elas devem se tornar? Afinal um currículo busca
precisamente modificar as pessoas que vão “seguir” aquele currículo. Na
verdade, de alguma forma, essa pergunta precede à pergunta “o quê?”, na
medida em que as teorias do currículo deduzem o tipo de conhecimento
considerado importante justamente a partir de descrições sobre o tipo de
pessoas que elas consideram ideal (SILVA, 2010 p.15).

“O currículo, na perspectiva pós- estruturalista, também é visto de uma forma de


exercer o poder. Pois privilegiar um tipo de conhecimento é uma operação de poder.”
(SILVA, 2010 p.15). Pensando sobre a forma de exercer o poder, questiono-me sobre
esses dispositivos que permeiam o meio escolar e até mesmo ultrapassam a autonomia
do professor em sala de aula. Talvez, não paramos para pensar sobre o poder que os
livros didáticos têm sobre os professores dentro de nossas escolas. Pois esses materiais
já trazem os conteúdos prontos de forma em que todos vão apreender da mesma forma,
não respeitando a singularidade de cada sujeito e ditando o que é necessário ser aplicado
em sala de aula, questionando a autonomia do professor.

É precisamente a questão do poder que vai separar as teorias tradicionais das


teorias críticas e pós-críticas do currículo. As teorias tradicionais pretendem
ser apenas isso: “teorias” neutras, científicas, desinteressadas. As teorias
críticas e as teorias pós-críticas, em contraste, argumentam que nenhuma
teoria é neutra, científica ou desinteressada, mas que está, inevitavelmente,
implicada em relações de poder. As teorias tradicionais, ao aceitar mais
facilmente status quo, os conhecimentos e os saberes dominantes, acabam em
se concentrar em questões técnicas (SILVA, 2010 p. 16).

As diferentes teorias se diferenciam, gerando uma pergunta sobre o saber, sobre


o conhecimento, fazendo-nos pensar sobre essas questões que em grande parte estão
implicadas no currículo escolar, deixando passar outros modos de se compreender e
estar no mundo. Pensando sobre essas formas de ensino e aprendizagem, acho que seria
importante trazer para este trabalho um relato de uma das experiências que vivi
enquanto mãe de uma criança diagnosticada com cegueira dentro do espaço escolar,
pois considero que a experiência vivida pelo Matheus neste espaço talvez tenha sido sob
uma forma hegemônica do currículo.

sumário 739
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Matheus é um menino que nasceu com glaucoma congênito e tem apenas um


resíduo de visão e é, por isso, dito como cego dentro do discurso médico. Por muitos
anos Matheus frequentou o Instituto Benjamin Constant (IBC), escola para pessoas com
deficiência visual. Porém, quando Matheus passou para o primeiro ano do ensino
fundamental, resolvi que esse seria o seu ultimo ano, pois não aguentávamos sair de São
Gonçalo para Urca todos os dias - era exaustivo. Pois, bem, Matheus terminou o seu
primeiro ano e o coloquei em uma escola regular, onde o Matheus se sentiu muito bem
recebido. Porém, com o passar do tempo, muitos questionamentos começam a surgir
pela parte do Matheus, questionando, muitas das vezes, a didática da professora e os
métodos que eram utilizados pela escola.
Uma vez, Matheus voltando da escola me perguntou: Mãe, por que esses livros
de sala de aula são tão importantes? E continuou: tudo o que a gente faz na sala tem que
estar ligado aos livros, e não tem nada pra fazer além disso: ele estava reclamando
porque ele, por não poder ler, não tinha acesso aos livros e, portanto, às atividades na
sala.
Ele mostrou uma inquietação, pois ele não compreendia o que estava escrito
naquele material, não compreendia as figuras que ali estavam ilustradas para passar
algum tipo de informação. Recordo-me que na época, essa experiência foi a minha porta
de entrada para eu pensar sobre a educação, a alteridade que compõe o espaço escolar.
A partir desse momento iniciei a minha vida acadêmica, pois nessa experiência vivida
pelo, e com, o Matheus, comecei a pensar nesses outros que compõe o espaço escolar
com as suas singularidades.
A partir das circunstâncias contidas nesse relato de experiência, gostaria de dar
continuidade a essa escrita, trazendo os conceitos de cada teoria, tentando articular, os
efeitos que as mesmas trazem para os estudantes que passam pelo sistema educacional:

As teorias tradicionais se preocupam com questões de organização. As


teorias críticas e pós-críticas, por sua vez, não se limitam a perguntar “o
quê”? , mas submetem este “quê” a um constante questionamento. Sua
questão central, seria pois não tanto “o quê”?, mas “por quê?”. Por que esse
conhecimento e não o outro? Quais interesses fazem com que esse
conhecimento e não o outro esteja no currículo? Por que privilegiar um
determinado tipo de identidade ou subjetividade e não outro? As teorias
críticas e pós-críticas de currículo estão preocupadas com as conexões entre,
identidade e poder. (SILVA, 2010 p. 16)

O conceito da teoria nos faz refletir sobre questões que atravessam o espaço
escolar e que na maioria das vezes não nos atentamos a pensar sobre o cotidiano escolar

sumário 740
VII Seminário Vozes da Educação

e algumas formas de disciplina que permeiam este lugar. Porém, ainda conversando
com o texto de SILVA:

Os conceitos de uma teoria organizam e estruturam nossa forma de ver a


“realidade”. Assim, uma forma útil de distinguirmos as diferentes teorias do
currículo é através do exame dos diferentes conceitos que elas empregam.
Neste sentido, as teorias críticas de currículo ao deslocar a ênfase dos
conceitos simplesmente pedagógicos de ensino e aprendizagem para os
conceitos de ideologia e poder, por exemplo, nos permitiram a ver a
educação de uma nova perspectiva. Da mesma forma, ao enfatizarem o
conceito de discurso em vez do conceito de ideologia, as teorias pós-críticas
de currículo efetuaram um outro importante deslocamento na nossa maneira
de conceber o currículo(.SILVA,2010,p. 16)

Gostaria de dar continuidade a esta escrita, articulando também com o tema:


“Das teorias tradicionais, as teorias críticas”, onde a questão do Currículo que, apesar de
hoje essa palavra produzir um grande efeito, o que vemos é que mesmo antes do
surgimento deste termo, professores e professoras, filósofos e teóricos da educação
sempre estiveram envolvidos e se articulavam com o conceito.

De certa forma, todas as teorias pedagógicas e educacionais são também


teorias sobre o currículo. As diferentes filosofias educacionais e as diferentes
pedagogias, em diferentes épocas, bem antes da institucionalização do estudo
do currículo como campo especializado, não deixaram de fazer especulações
sobre o currículo, mesmo que não utilizassem o termo (SILVA, 2010 p.21).

Gostaria de trazer para esse trabalho, de forma condensada, as características de


cada um dos conceitos que atravessam o nosso cotidiano escolar, para que possamos
compreender o que cada um deles enfatiza:
Diferente da teoria tradicional, a teoria crítica do currículo efetua uma completa
inversão nos fundamentos tradicionais. Enquanto a teoria tradicional não se preocupa
com os questionamentos educacionais e segue uma linha de organização e elaboração
do currículo, fazendo com que os modelos tradicionais só se preocupassem com a
técnica da produção do currículo. As teorias críticas têm como objetivo trazer os
questionamentos educacionais e sociais, transformando estes sujeitos em seres que
refletem sobre a sua prática.
Antes o currículo era visto de uma forma mecânica, com o intuito de preparar o
estudante para o mercado de trabalho, para atender as questões burocráticas. Não é por
acaso que o conceito central nesta perspectiva era atender o “desenvolvimento
curricular”. O currículo era tido como uma forma de atender aos critérios, as exigências

sumário 741
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

profissionais para a vida adulta do estudante. Com isso tinha-se como objetivo
desenvolver um trabalho técnico, onde esses jovens já eram preparados para o mercado
de trabalho.
Em 1902, antes mesmo de BOBBIT ter escrito o seu livro, o John Dewey traz
uma perspectiva diferente de currículo, apesar desse ser o nome do seu livro na época.
Para John Dewey, era preciso que o nosso currículo pudesse ter uma visão mais ampla,
mais democrática, não só pensando na educação formal como um produto, mas, sim,
sinalizando a importância de se ter um planejamento curricular, observando a vida de
cada estudante, levando em consideração as suas experiências que cada um traz em sua
bagagem, partindo dos interesses de cada sujeito. Assim como Dewey, penso que ao
longo de minha formação, tive encontros com alguns autores que nos fazem pensar
sobre a importância de se conhecer o sujeito que transita o espaço escolar. Assim como
Dewey, tive alguns interlocutores que me fazem pensar sobre estes sujeitos que chegam
à escola cheios de curiosidades para descobrir o novo.
Gostaria de conectar este texto com o que Jorge Larrosa fala sobre o conceito de
experiência, fazendo-nos pensar sobre os efeitos que ela exerce em nossas vidas e
também nos deslocamentos que ela produz na vida de cada educando:

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o
que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas
coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo
o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. (...) Nunca se
passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. Em primeiro
lugar pelo excesso de informação. A informação não é experiência. E mais, a
informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da
experiência, quase uma antiexperiência. (...) Em segundo lugar, a experiência
é cada vez mais rara por excesso de opinião. (...) Em terceiro lugar, a
experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa
demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz o
estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo
ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. (...) Em quarto lugar, a
experiência é cada vez mais rara por excesso de trabalho. Esse ponto me
parece importante porque às vezes se confunde experiência com trabalho. (...)
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer
um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar
mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender
o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2002, p. 21-
24).

sumário 742
VII Seminário Vozes da Educação

Com isto, podemos nos questionar sobre qual seria o papel do currículo – ou,
qual seria o papel da escola? É o currículo que molda o aluno e o formata para o
trabalho e para o mundo que se ideologize, ou, de forma distinta, é o currículo que deve
adaptar-se aos alunos, respeitando-se seus potenciais, cultura, experiências, anseios e
peculiaridades?
Quando falamos de alunos que tem necessidades especiais a serem observadas
para que possam, como os demais, ter acesso ao conhecimento que se pretende
compartilhar nas escolas, redobramos nossas indagações e nos aventuramos a estender o
olhar sobre o problema vivenciado por estes alunos no cotidiano escolar, como similar a
situação enfrentada por qualquer aluno que se faça percebido como diferente. Todavia,
com maior agudeza, por suas especificidades.
Desta forma, há uma imperiosa necessidade de que a gestão escolar se ocupe em
refletir sobre o tema, sobre como adequar as exigências de um padrão de normalidade
pré-estabelecido, expresso na delimitação curricular à realidade de muitas diferenças e
possibilidades, características dos alunos que se fazem presentes no cotidiano escolar.

Referências
CANDAU, Jöel. Memória e identidade. São Paulo. Contexto: 2018.

CLÍMACO, Júlia Campos. Discursos jurídicos e pedagógicos sobre a diferença na


educação especial.Argentina: FLACSO–FacultadLatinoamericana de CiênciasSociales
- Sede Academica, 2010.

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Conferência


proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas, traduzida e publicada
por Leituras SME; Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das unidades da Rede
Municipal de Educação de Campinas/FUMEC.. Jan/Fev/Mar/Abr 2002. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf

SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3ª ed.


Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

______. O sujeito da Educação. Estudos Foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 2011.

SKLIAR, C. B. Incluir as diferenças? Sobre um problema mal formulado e uma


realidade insuportável. Revista Interinstitucional Artes de Educar. Rio de Janeiro:V. 1
N. 1, fev - mai 2015.

sumário 743
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ESTÁGIOS E NARRATIVAS: UMA REDE DE POSSÍVEIS NO PERCURSO


FORMATIVO DE LICENCIANDAS DE PEDAGOGIA

Ana Carolina Fernandes de Lima


Universidade Federal do Rio Janeiro
cidmarignacio@gmail.com

Barbara da Silva Santos Corrêa


Universidade Federal do Rio Janeiro
barbaracorrea13@gmail.com

O presente artigo é baseado nas nossas experiências enquanto licenciandas do


curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), durante nossos estágios obrigatórios em turmas dos anos iniciais do
ensino fundamental vivenciando distintas práticas e fazendo uso de narrativas enquanto
instrumentos potentes para reflexão acerca dessas mesmas práticas. Participamos do
grupo de pesquisa CONVERSAS ENTRE PROFESSORES: alteridades e
singularidades (ConPAS), orientadas pelas professoras Graça Reis e Patricia Baroni, o
grupo propõe encontros para discussões que se envolvem na formação de professores,
usando de outras epistemologias para que possamos tecer saberes e possibilidades, esse
foi o lugar onde tornou-se possível iniciar as abordagens e ideias deste texto.
Quando pensamos no curso de licenciatura, o estágio supervisionado entra como
uma importante etapa em nossa formação como futuras professoras. É onde muitas de
nós experienciamos nosso primeiro contato com o ambiente escolar assumindo uma
perspectiva docente. É quando retornamos ao local que frequentamos por anos como
alunas, “a escola”, e começamos a construir nossa identidade profissional. O estágio se
apresenta então como a oportunidade de podermos perceber a indissociabilidade entre
teoria e prática na formação, mas será que isso de fato acontece com todos nós
licenciandas?

A complexa relação teoria e prática (para alguns), para nós, prática-teoria-


prática ou práticateoriaprática que, de tão imbricadas, chegam a se confundir.

sumário 744
VII Seminário Vozes da Educação

Pois haveria prática despida de teoria? Ou teoria descolada da prática? Para


nós, não. [...] De pouco nos valeria produzir belas explicações teóricas se elas
não contribuíssem para a transformação do mundo. Isto não significa
desvalorizar a teoria. Muito ao contrário. Buscamos na boa teoria, melhores
explicações para a complexidade da realidade com a qual nos deparamos.
Não para apenas compreendê-la, mas para com a teoria podermos criar
coletivamente estratégias de intervenção transformadora numa perspectiva
emancipatória. A prática, para nós, é portanto, o critério de verdade; é ela que
valida a teoria (GARCIA, 2003, p. 12).

No atual currículo do curso de Pedagogia da UFRJ nós possuímos uma carga


horária de estágios muito extensa, é obrigatório cumprir cinco estágios em
espaçostempos diversos nas instituições educativas, que são: Prática de ensino nos Anos
Iniciais do Ensino Fundamental, Prática de Ensino na Educação Infantil, Prática em
Políticas e Administração Escolar, Prática de Ensino de Educação de Jovens e Adultos e
Prática de Ensino no Magistério e Disciplinas Pedagógicas do Ensino Médio, cada uma
delas com carga horária total de 160 horas, sendo 100 horas a serem cumpridas nas
escolas de estágio e 60 horas na disciplina de Prática de Ensino. Ao todo, temos 500
horas de estágio para serem cumpridas mais 300 horas de carga horária das disciplinas
de prática.
Dentro de cada estágio, além das 100 horas que precisamos cumprir, temos que
lidar também com as avaliações e as metodologias de cada professor de prática. A
maioria dos professores opta pelo acompanhamento de uma atividade de regência nas
turmas das escolas onde estagiamos e a entrega de um relatório de estágio ao final da
disciplina. Alguns dos relatórios propostos são compostos por uma sequência de
questões a serem respondidas e com poucas brechas para a originalidade e autoria das
licenciandas. Sentimos falta também de espaços onde possam ser elencadas as vivências
cotidianas e toda a complexidade e singularidade que abarca tais vivências. As
regências são atividades de cinquenta minutos que as licenciandas ministram ao fim do
estágio nas turmas que acompanharam, nessa aula o professor da disciplina de prática
acompanha para avaliar a atividade. Não pretendemos com esta reflexão afirmar que os
relatórios de estágio não são instrumentos formativos legítimos, mas expressar que
existem outros possíveis na formação tão qualificados quanto os relatórios.
Ao refletir sobre a relação entre um curso de licenciatura e seus estágios
escolares supervisionados, pensamos ser necessário um olhar para a formação dos
profissionais da educação que estão ali, para o contexto social no qual a escola está
inserida e quem são os sujeitos atuantes daquela comunidade. Perceber o mundo à nossa
volta nem sempre é fácil e quando temos tantas orientações a serem seguidas, será que

sumário 745
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

conseguimos perceber esse universo? O que a gente perde em valor de experiência


quando nossas narrativas não são levadas em consideração?

Valorização das Narrativas


Quando o tema é a escrita das licenciandas no espaço acadêmico, o peso da
escrita científica se mostra rigorosa desde o primeiro período do curso. Essa
inflexibilidade no momento da escrita traz certo amedrontamento por parte das
licenciandas quando há necessidade de qualquer produção textual, pois o rigor
acadêmico se distancia da vida cotidiana. Ansiedade, estresse e irritabilidade são alguns
estados que rodeiam à produção de um texto científico nos momentos da graduação.
Quando a escrita é tomada não só pela narrativa, mas também pela falta de elementos
que devem estar presentes em um texto categorizado como científico, isso qualifica
negativamente não apenas a produção, como também suas autoras. Faz com que esse
seja visto apenas de modo negativo e, por vezes, gera enormes críticas para quem o
escreveu.

Existe, portanto, fora daquilo que à ciência é permitido organizar e


definir em função de estruturas e permanências, uma vida cotidiana,
com operações, atos e usos práticos, de objetos, regras e linguagens,
historicamente constituídos e reconstituídos de acordo e em função de
situações, de conjunturas plurais móveis, Há “maneiras de fazer”
(caminhar, ler, produzir, falar), “maneiras de utilizar” que se tecem
em rede de ações reais, que não são e não poderiam ser mera repetição
de uma ordem social preestabelecida e explicada no abstrato.
(OLIVEIRA, 2008, p 54)

Os conhecimentos abarcados pelas narrativas não são passíveis de generalização


e elas não recebem a validação de saber científico por conta disto. Ao olhar para essa
inferiorização não só das narrativas, mas também de tudo que não é dito como científico
no meio acadêmico, é necessário pensar de onde vem esse constante “endeusamento” do
que pode ser classificado e com o que define a qualificação de saber científico.
Santos (2002) justifica que a valorização de um saber científico vem de decisões
baseadas em saberes hegemônicos provindos de um pensamento colonizador que limita
quando e como se pode relatar uma ideia ou acontecimentos. A ideia de que o que não
está “dentro da caixinha”, esse pensamento de que tudo que vem de um lugar
“desconhecido”, das desvalorizadas epistemologias do sul, e que saem dos tópicos de

sumário 746
VII Seminário Vozes da Educação

como se faz uma pesquisa científica deve ser descartado ou não deve ser tido como
saber, acaba por não valorizar o que se passa nas rotinas fora do meio acadêmico.

Designamos a diversidade epistemológica do mundo por epistemologias do


Sul. O Sul é aqui concebido metaforicamente como um campo de desafios
epistêmicos, que procuram reparar os danos e impactos historicamente
causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo. Esta
concepção do Sul sobrepõe-se em parte com o Sul geográfico, o conjunto de
países e regiões do mundo que foram submetidos ao colonialismo europeu e
que, com exceção da Austrália e da Nova Zelândia, não atingiram níveis de
desenvolvimento econômico semelhantes ao do Norte global (Europa e
América do Norte). (SANTOS; MENESES, 2009, p 12)

As narrativas são uma possibilidade daquilo que não cabem dentro desta
“caixinha”. Em sua grande maioria, são descartadas com o discurso de que não existe
valor de pesquisa. As experiências dos sujeitos, por mais que venham, por mais que
transbordem a complexidade dos conhecimentos cotidianos, são vistas como mero
achismo e, portanto, seus valores são negados. Segundo Ong,

(...) a narrativa, em toda a parte, constitui um gênero capital da arte verbal


sempre presente, desde as culturas orais primárias até a cultura escrita e o
processamento eletrônico da informação. [...] o conhecimento e o discurso
nascem da experiência humana e o modo básico de processar verbalmente
essa experiência é explicar mais ou menos como ela nasce e existe, encaixada
no fluxo temporal. Desenvolver um enredo e um modo de lidar com esse
fluxo. (ALVES, 2008, p 34)

Com esta citação, se entende que desde sempre na cultura humana narramos
histórias, e o quanto elas são importantes para a construção da história.
Quando o assunto são os relatórios de estágios, o uso das narrativas não só
poderia ser validado, como também explorado em diversos contextos. Ao cessar a nossa
possibilidade de refletir sobre as nossas práticas através das narrativas se está negando a
nós, não só a formação enquanto professoras, mas também a chance de desconstruir
padrões e metodologias vindas de teorias muitas vezes fora do contexto das realidades
do chão da escola. É importante percebermos o universo escolar a partir um olhar mais
plural para as vivências dos cotidianos, para as práticas da professora regente, para as
realidades das escolas e das crianças.
Ao estabelecer enquanto critério de avaliação a implementação de um relatório
criteriosamente demarcado, sem espaço para as vivências do cotidiano, acabamos por
objetificar e nos distanciar destes mesmos cotidianos do qual fazemos parte e reduzimos
a formação complexa oportunizada pelas vivências do estágio à mera observação. O

sumário 747
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

propósito dos estágios é oferecer perspectivas, heterogeneidades, desconstruções,


sensações, cheiros e gostos dos cotidianos das escolas com toda a sua complexidade.
Nessa concepção de real vivência das experiências, compreendemos que os
conhecimentos produzidos cotidianamente agregam não só à nossa formação como
docente, mas também nos traz autonomia em nossos atos dentro e fora da licenciatura.

Aprendemos com todos os setores dominantes, durante os últimos quatro


séculos, que os modos como se cria conhecimentos nos cotidianos não têm
importância ou estão errados e, por isso mesmo, precisam ser superados. Isto
se traduz em uma situação na qual não os notamos, achando que ‘é assim
mesmo’. Resulta que não os fixamos, não sabemos como são e, menos ainda,
sabemos analisar os processos de sua criação ou como analisá-los para
melhor compreendê-los. (ALVES, 2008, p.16)

Ao desvalorizar nossas ideias e experiências acaba-se criando um cenário de


reprodução de ideias idênticas, quase um plágio entre as licenciandas. Os relatórios são
baseados sempre nas mesmas questões e isso faz com que muitas vezes aconteça um
compartilhamento/empréstimo de relatórios já feitos nos anos anteriores. Infelizmente, a
rotina de um estudante que trabalha, estuda e tem as obrigatoriedades do estágio para
cumprir é bastante pesada e faz com que esses estudantes criem meios outros para
darem conta do que lhes é roteirizado e este acaba sendo o único jeito para que se possa
dar um pouco mais de atenção à rotina dos estágios, das disciplinas e da vida pessoal.
A fim de demarcar o lugar da narrativa nas produções acadêmicas, optamos
neste artigo por fazê-las e, sendo assim, apresentaremos a seguir nossas experiências
enquanto constitutivas de nossa formação docente. Abaixo apresentamos as vivências
de cada uma nós e por esse motivo, a escrita se dá a partir de agora prioritariamente na
primeira pessoa do singular.

Narrativas de uma vivência engessada e tolhida.


Ingressei originariamente no curso de Pedagogia no turno matutino e ao longo
da graduação precisei trocar para o turno noturno. Estava em meu sétimo período e
precisava começar a fazer as disciplinas de prática. Acabei optando pela prática de
séries iniciais, pois era a que se encaixava em meu horário.
A disciplina se deu de forma gradual. Conseguimos seguir com o planejamento
do cronograma da professora ao longo do semestre. No primeiro dia de aula, nos foi
apresentada uma bibliografia extensa e complexa da disciplina, a qual antecipo que nem
a metade foi utilizada de fato durante o curso. A professora nos orientou com relação

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VII Seminário Vozes da Educação

aos documentos e burocracias que são necessárias para estágios realizados nas escolas
municipais do Rio de Janeiro e para o Colégio de Aplicação da UFRJ. Além disso,
estabeleceu um repertório bem pequeno de escolas onde poderíamos fazer os estágios.
Para minha surpresa, todas as escolas se concentravam no eixo Centro-Zona Sul do Rio
de Janeiro, o que dificultou bastante as nossas escolhas.
Como métodos avaliativos da disciplina tiveram trabalhos em grupos, trabalhos
individuais, uma regência que seria dada após completarmos mais de cinquenta horas de
estágios e um relatório. Toda a turma ficou bastante apreensiva com a regência e com os
relatórios e a professora disse que conversaríamos sobre isso ao longo da disciplina.
Optei por fazer o estágio no Colégio de Aplicação da UFRJ. Tal escolha se deu em
função de haver menos burocracia para o início do estágio. Era exigido de nós apenas a
entrega de uma carta de apresentação da universidade, o termo de compromisso de
estágio e uma foto. Para fazer estágio nas escolas municipais, havia uma quantidade
maior de documentos, dificuldades em alocar os estudantes nas escolas requeridas pela
professora da universidade, além de um dia inteiro (ou mais) dispensado apenas para a
resolução dessas questões.
O estágio no Colégio de Aplicação me apresentou uma realidade bem diferente
do que eu esperava. Assim como nas escolas municipais, as turmas eram heterogêneas,
de modo que encontramos com estudantes de todas as classes sociais/econômicas e
alunos incluídos. No entanto, os professores trabalham com a bidocência e o número de
alunos por turma também é reduzido. A licencianda que vai para o Colégio de
Aplicação possui um tempo de cinquenta minutos por semana para conversar com o
professor que está acompanhando o seu estágio. Esse professor é ciente de que ocupa
um papel importante enquanto formador na nossa trajetória.
Durante o estágio, pude acompanhar uma turma do segundo ano, no turno
vespertino. A turma tinha duas professoras que alternavam seus dias de trabalho e uma
mediadora que acompanhava um aluno autista incluído. Eram quinze crianças, oito
meninos e sete meninas. Por ser um colégio de aplicação, os estudantes estão
acostumados a receber estagiários e estagiárias nas aulas regulares, nas aulas de música,
artes e de educação física.
Por ter sido meu primeiro estágio, a apreensão era grande por não saber o que de
fato deveria observar ou não, o que era importante ou não, a ponto de ser colocado no
relatório. Conversando com meus colegas de turma, pude notar que essa apreensão era
presente em todos. Durante as aulas na disciplina de Prática de Ensino, a professora nos

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pediu para fazermos uma lista do que achávamos importante para observarmos: relação
dos docentes com as crianças, relação da escola com as crianças, estrutura da escola, das
salas de aulas, etc. Ao final a professora nos deu uma lista com os “Aspectos
Observáveis na Escola” e disse que nós deveríamos nos basear nesta lista e, a partir
destes tópicos, poderíamos escrever nosso relatório final.
Além desta lista, tivemos outras orientações para a escrita do relatório e do que
registrar durante nosso período de estágio. Deveríamos escrever as atividades dadas aos
estudantes pela professora regente da turma e preencher algumas perguntas com uma
infinidade de dados, como: (1) identificação da escola, (2) características físicas e
estruturais da escola e da sala de aula, (3) público atendido (estudantes, família e
comunidade do seu entorno), (4) relação da escola com as famílias dos estudantes e a
comunidade, (5) condições gerais de trabalho na escola e na sala de aula, (6)
identificação do(a) professor(a) regente (nome, idade, formação profissional, tempo de
experiência na docência e tempo de trabalho na escola campo de estágio), (7)
caracterização da sala de aula e da turma observada (número de alunos por sexo, faixa
etária, com necessidades especiais, alfabetizados e não alfabetizados), (8) processos de
ensino e aprendizagem em andamento, (9) conteúdos abordados pelo docente no
período observado, (10) recursos e materiais didáticos (enumerar e comentar), (11)
rotinas de trabalho observadas, (12) relação professor/aluno e aluno/aluno (aspectos
positivos e pontos críticos), (13) planejamento curricular (como é realizado na escola e
pelo professor), (14) processos de avaliação e (15) as impressões do estagiário sobre os
desafios encontrados na sala de aula observada.
Diante de tantas regras a serem seguidas na hora da escrita, nós, como
licenciandas que buscamos ser aprovados em uma determinada disciplina, priorizamos o
método avaliativo ainda que não concordássemos com ele. Tendo em vista que o
relatório valia metade da nossa nota, é evidente que iríamos priorizá-lo e fazer tal como
nossa professora exigia. Infelizmente com isso, meus olhos ficaram programados para
observar o que foi pedido e dificilmente consegui ir além do que foi proposto como
“aspectos observáveis”. Não há maneiras de se fazer pesquisa com os cotidianos
partindo da referência de um olhar que não compreende a especificidade e a
complexidade do espaçotempo das escolas. Com a metodologia que foi empregada
durante a disciplina, sinto que perdi grande parte da minha autonomia e autoria, pois
precisava restringir minha escrita e meu olhar ao que foi pedido e orientado
anteriormente.

sumário 750
VII Seminário Vozes da Educação

Uma vez perguntamos a essa professora de Prática de Ensino o porquê de ela


não aceitar o caderno/diário de campo como método avaliativo, visto que, eles possuíam
ricas narrativas e por vezes até escrita das crianças da turma. A resposta dela foi: “Já
utilizei diários de campo como avaliação, mas são entregues muito empobrecidos de
informação. Precisamos de detalhes mais específicos, afinal de contas somos
pesquisadores”.
Não me lembro de possuir sentimentos de ansiedade ou de desespero com
relação ao estágio, pois estava tão engessada com a metodologia avaliativa da disciplina
que não me permiti viver o cotidiano escolar. Apenas me preocupei em responder o
questionário de “aspectos observáveis na escola”. Como foi meu primeiro estágio,
fiquei muito restrita ao que foi solicitado e acredito que hoje não agiria desse jeito. É
importante destacar que, durante a realização do estágio, fui muito bem recebida pela
turma e pela escola como um todo.
Com relação às práticas da professora regente desta turma onde eu fazia meu
estágio, ela estava sempre muito disposta em dialogar comigo sobre o que eu estava
vendo na faculdade ou sobre minhas inquietações em relação à turma e à escola, ela
gostava de saber que autores estávamos trabalhando na aulas da Universidade e pedia
sempre para socializar esses textos com ela. Sobre a professora de Prática de Ensino que
regia a disciplina na universidade, a mesma sempre se demonstrou solícita e aberta a
conversar conosco sobre as atividades que víamos nos estágios ou sobre alguns
problemas que porventura apareciam. Sinto que a minha vivência no estágio foi boa,
mas acredito que não consegui me relacionar tão bem com a construção do relatório.
Os relatórios são tão parecidos entre si, pois são sempre as mesmas questões e as
escolas oferecidas para estágio são sempre as mesmas que, eu mesma já enviei o meu
relatório para pelo menos mais cinco amigos de curso para que os ajudasse na hora da
escrita e sei que eles por sua vez quando concluíram também enviaram esses relatórios
para outras pessoas.

Narrativas de um cotidiano escolar libertador


Na Faculdade de educação, as disciplinas de Estágio estão presentes nos últimos
períodos do curso, no atual currículo. O que acaba acontecendo é o movimento que
fragmenta “pensar” e “fazer”, com uma lógica que coloca no início do curso as
disciplinas mais teóricas e no fim as disciplinas mais “práticas” como se fosse
necessária uma teoria que dê suporte à prática. Pimenta (2005) traz a ideia de que:

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Os currículos de formação têm-se constituído em um aglomerado de


disciplinas, isoladas entre si, sem qualquer explicitação de seus nexos com a
realidade que lhes deu origem. Assim, sequer pode-se denominá-las de
teorias, pois constituem apenas saberes disciplinares, em cursos de formação
que, em geral, estão completamente desvinculados do campo de atuação
profissional dos futuros formandos. Neles, as disciplinas do currículo
assumem quase total autonomia em relação ao campo de atuação dos
profissionais e, especialmente, ao significado social, cultural, humano da
ação desse profissional. O que significa ser profissional? Que profissional se
quer formar? Qual a contribuição da área na construção da sociedade
humana, de suas relações e de suas estruturas de poder e de dominação?
Quais os nexos com o conhecimento científico produzido e em produção?
São questões que, muitas vezes, não são consideradas nos programas das
disciplinas, nos conteúdos, objetivos e métodos que desenvolvem. (2005, p.6)

Acabei “seguindo o currículo”, mas não comecei com o estágio destinado ao


meu período, acabei escolhendo a Prática de Ensino das Séries iniciais como primeira
disciplina com estágio supervisionado. Por já ter participado de um projeto de extensão
que realizava ações e atividades em turmas de alfabetização numa escola municipal do
Rio de Janeiro, pensei em realizar o estágio na mesma escola e com a mesma turma para
me sentir mais segura.
Quando as aulas da disciplina foram iniciadas o sentimento de calma me
inundou quando a professora disse que não iríamos usar os tão famosos relatórios
formais de mais de 50 páginas. Faríamos um caderno de campo com nossas narrativas
de experiência e com escrita das crianças (se essas desejassem fazê-lo). Ao ouvir relatos
de outras licenciandas que já haviam passado pelas experiências do estágio, o maior
descontentamento era com os relatórios que, além de enormes, pediam informações
muito formais e não ajudavam com a real experiência que elas tinham com a turma,
com as crianças e a professora regente.
A professora da disciplina estava em constante preocupação com nossas
experiências e como era a relação da escola com as crianças, da professora com as
crianças, das crianças com a professora e da professora com a escola. Além de ouvir
nossos relatos, ela também problematizou várias ideias e conceitos predefinidos que
tínhamos em relação à escola pública e, em relação à idealização metodológica que
estava impregnada em nós por conta de um estudo profundo de teorias sem presença das
realidades das salas de aulas. Acredito que muitas dessas questões que geram
afirmações negativas deveriam ser mais debatidas e trabalhadas durante a formação, e
não apenas com professores que tenham práticas distintas aos demais.

sumário 752
VII Seminário Vozes da Educação

Na escola municipal, acabei sendo alocada numa turma de quinto ano por conta
da grande presença de projetos e estagiários nas turmas de alfabetização, o que me
deixou profundamente ansiosa (não a ansiedade saudável, quase em desespero) já que
não possuía experiências com crianças desta faixa etária.
As crianças foram incrivelmente receptivas e a professora parecia estar surpresa
por ter uma estagiária em sala, pois aparentemente toda a concentração de estagiários
era para as turmas de primeiro e de segundo ano e já havia passado três anos desde a
última estagiária.
Essa experiência começou a tecer em mim um conjunto de reflexões acerca dos
muitos modos como as Práticas de Ensino vêm sendo ofertadas as licenciandas.
Diferentemente do que eu experienciei durante a disciplina, as narrativas de meus
colegas que cursaram as Práticas de Ensino com outros docentes e em outras turmas,
apresentavam uma hiper teorização do que é feito nas escolas, nos estágios.
O que acontece quando somos (licenciandas) imersos em conceitos, teorias,
pesquisas quantitativas, objetificação da escola e dos sujeitos das escolas? Começamos
a construir em nossos imaginários uma escola ideal, uma professora regente ideal, uma
turma ideal com estudantes ideais. Todas essas idealizações não correspondem em nada
ao que vi nos cotidianos e todas as suas complexidades transbordam. E assim, dentro
das universidades, ampliamos a ideia de escola enquanto o lugar do que é praticado
erradamente, tecendo críticas descabidas às práticas docentes sem nem sermos
professores formados ainda.
É recorrente em diálogos com colegas da universidade a ideia de que quando a
professora regente trabalha com uma vertente mais tradicional, é mais rígida ou opta por
rotinas que não convém com esse “ideal”, autoriza-se a crítica à prática desta docente.
Nasce uma má vontade de ir para o estágio e, por muitas vezes acontece uma atitude de
afronta para com a mesma. De acordo com este ponto de vista, não parece possível que
um professor regente dos anos iniciais possa ser um professor formador para
licenciandas como eu.
Contudo, ao poder ter o espaço de partilha das minhas narrativas de estágio, a
professora da disciplina de Prática de Ensino pode ouvir esse mal estar que não vinha
apenas de mim, mas de boa parte das licenciandas e nos provocou a refletir com os
cotidianos das professoras do ensino fundamental, suas trajetórias, suas lutas diárias,
suas práticas autorais. Quanto à metodologia utilizada nas salas de aula, ela também nos
fez pensar se a abordagem da professora estava sendo eficaz, e nos fez perceber que

sumário 753
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

saber a teoria não implica que ela será eficaz e nem que será compatível com as
realidades fora da Universidade, ela problematizou conosco se de fato existem
metodologias certas ou erradas, se consideramos que a escola é plural.
Sobre a regência, ter aulas nas quais pude expressar meus sentimentos e poder
escrever sobre minhas experiências, me proporcionou reflexões que teci junto com as
crianças, com o que era praticado, com as aprendizagens, com as relações estabelecidas
no espaçotempo da escola e com a inventividade cotidiana de seus sujeitos. Acredito
que se eu tivesse em uma dinâmica de me preocupar com um relatório espesso,
burocrático e quantitativo, provavelmente eu não teria me dado conta da potência
formativa do estágio.
Pude fazer experimentação na minha regência ao trabalhar o sistema gástrico e a
mastigação de alimentos, usando coisas baratas e acessíveis que fizeram as crianças
riremaprenderem. Poder ter ajuda para desconstruir as expectativas que tinha baseadas
no ideal de prática docente, fez com que a relação entre eu e a professora regente
mudasse e se fraternizasse. Assim, pude pensar com ela a respeito da regência e com as
crianças. Ao pensar não só em mim e em minhas concepções foi possível ser imersa em
novas formas de resolver situações, além de conseguir ter mais autonomia para refletir
solidariamente.
Consegui também pensar na minha formação, em como eu a estava levando, a
maneira que condicionei a olhar para ela. Estava reproduzindo não só um achismo
enorme referente às práticas das professoras, mas também reproduzindo um olhar que
não condizia com a realidade de uma sala de aula no Rio de Janeiro.

Tecendonarrando conclusões
Criar uma desconfiança epistemológica e questionar as vias únicas é uma
possibilidade quando trabalhamos com Certeau (1994) que fala sobre “supor o plural
como originário”. Existem muitos jeitos de ser e de estar no mundo. O relatório
burocrático não torna a prática de uma professora inferior à outra, é apenas uma outra
maneira de se fazer. Do mesmo modo que não criticamos a professora regente que tem
uma prática tradicional. O que pretendemos com esse artigo é mostrar que outras
maneiras são possíveis!
Para nós enquanto licenciandas é importante que possamos pensar a
teoriapráticateoria ou a práticateoriaprática, pois, quando dissociamos prática de teoria

sumário 754
VII Seminário Vozes da Educação

acabamos reproduzindo a ideia de elas são distintas e que não se pode pesquisar a
prática sem uma teoria, quando na verdade elas estão relacionadas.
Notando que a valorização das narrativas e as formas de lidar com as mesmas
variam de professor para professor, defendemos que outras maneiras são executáveis,
capazes de mudar e desconstruir motivações e ações. Ao debatermos sobre o uso de
outras formas epistemológicas e sua relevância no meio acadêmico nos foi permitido
entender a valorização de algumas práticas em relação a outras quando a questão é a
avaliação das licenciandas de pedagogia durante a disciplina de estágio supervisionado.
A partir do momento em que nós como licenciandas e futuras professoras
criamos um olhar atento ao nosso redor, mais que somente o olhar, rompemos com os
paradigmas, sentimos que reeducamos todos os nossos sentidos básicos para os deixar
fluir e assim percebermos o cotidiano através dos sons, dos cheiros, dos gestos, gostos e
a vida de todo dia que é potente e plena de saberes. Observando os dois relatos
percebemos nessa prática horizontalizada, vivemos cada uma das experiências distintas
e, essas produziram maneiras diferentes de participação da escola na formação de cada
uma.

Na medida em que entendemos que uma teoria é contribuição, mas também


limite, na busca de compreensão dos cotidianos, vamos assumir a
necessidade de trabalhar com diferentes e múltiplos referenciais, buscando,
em cada um, sua contribuição possível para o trabalho que se pretende fazer.
À complexidade que reconhecemos no mundo, precisamos relacionar modos
complexos de buscar compreendê-lo, de pesquisá-lo, de com ele dialogar e
aprender. (OLIVEIRA, 2016 p.41)

Referências
ALVES, Nilda. Decifrando o pergaminho - os cotidianos das escolas nas lógicas das
redes cotidianas. In: ALVES, Nilda; OLIVEIRA, Inês Barbosa de (ORGS.). Pesquisa
nos/dos/com os cotidianos das escolas sobre redes de saberes. RJ: DP&A, 2008.

CERTEAU, Michel de. A economia escriturística, In: A invenção do cotidiano:artes


de fazer.Petrópolis:Vozes, 1994.

GARCIA, Regina Leite. Tentando Compreender a Complexidade do Cotidiano. In:


GARCIA, Regina Leite et al. (Org.). Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de
Janeiro: DP&A, 2003.

OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Certeau e as artes de fazer: as noções de uso, tática e
trajetória na pesquisa em educação. In: ALVES, Nilda; OLIVEIRA, Inês Barbosa de

sumário 755
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

(ORGS.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas sobre redes de saberes.


RJ: DP&A, 2008.

______ Cotidianos aprendentes: Nilda Alves, Regina Leite Garcia e as lições


nos/dos/com os cotidianos. Revista MOMENTO - Diálogos em Educação, ISSN
0102-2717, v. 25, n. 1, p. 33-49, jan./jun. 2016, Rio Grande/RS, Brasil

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e das uma
sociologia das emergências. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento
prudente para uma vida decente: um discurso sobre as Ciências revisitado. São
Paulo: Cortez, 2004.

Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra.


Almeidina, 2009.

PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria Socorro Lucema. Estágio e docência:


diferentes concepções. Revista Poíesis -Volume 3, Números 3 e 4, pp.5-24, 2005/2006.

sumário 756
VII Seminário Vozes da Educação

VOZES DA EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DAS AÇÕES COMO BOLSISTAS


DE EXTENSÃO

Tamyres Athaide Buczynski Patti de Miranda


UERJ – FFP
tamyresbuczynski@gmail.com

Apresentando o Projeto Vozes


Há cerca de 20 anos, o Núcleo de Pesquisa e Extensão Vozes da Educação
Memória(s), História(s) e Formação de Professores/as foi fundado, mais precisamente
no ano de 1996, na Faculdade de Formação de Professores, situada em São Gonçalo
(munícipio pertencente ao Estado do Rio de Janeiro). Tal projeto conta com as
fundadoras a seguir: Haydeé Figueirêdo (1950- 2003), Martha Hess e Maria Tereza
Goudard Tavares. O grupo reúne professores/as-pesquisadores/as da universidade e da
escola básica, estudantes de graduação e pós-graduação, em um diálogo
interinstitucional entre a Faculdade de Formação de Professores (FFP) da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e as escolas.
A partir da articulação pesquisa-ensino-extensão, temos constituído diferentes
espaços de memória, diálogo e formação com estudantes e docentes, buscando o
registro da história de vida de educadores/as que fazem, no cotidiano, as memórias das
práticas educativas em São Gonçalo, trabalhando com a abordagem resgate,
investigação-formação no sentido de estabelecer relações dessas histórias com a
trajetória da educação e da formação de professores/as no Município. Embasando-se
nos conceitos de dialogismo e polifonia, o núcleo em questãotem como umas das
principais características narrar os saberes e experiênciasdos educadores e dos
educandos para além do universo acadêmico, dandoespaço para as redes de ensino
escolar, além de viabilizar e fazer com quealgumas vozes, que muitas vezes foram
esquecidas, possam ser reconhecidas,estabelecendo, sempre, um diálogo com outras
realidades e falas. Nessesentido, os conceitos de “dialogismo e polifonia” do autor
Bakhtin se aplicam,imensamente, ao contexto do grupo. Assim, o grupo frisa que a
linguagem não encerra em si, mas se dá pela interação com o outro, como o autor
CristóvãoTezza afirma na passagem a seguir:

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Nossas palavras não são ‘nossas’ apenas;elas nascem, vivem e morrem na


fronteira do nosso mundo e do mundo alheio;elas são respostas explícitas ou
implícitas às palavras do outro, elas só seiluminam no poderoso pano de
fundo das mil vozes que nos rodeiam. (TEZZA,1988, p. 55).

O Grupo de Pesquisa Vozes da Educação: Memória (s), História(s), Formação


de Professores é um desdobramento de ações investigativas desenvolvidas a partir de
parcerias com escolas da rede. Atualmente, o projeto mencionado articula quatro linhas
de pesquisa: Memória e história das escolas de São Gonçalo; Memória, história e
formação de professores no Brasil; Processos formativos: concepções, memórias,
narrativas e práticas. Nessa perspectiva, percursos vem se desenvolvendo com o estudo
de textos teóricos e realidades que são reconstruídas em rodas de conversas, pesquisas e
oportunidades de formação, tensões e desafios do ato de ensinar, mostrando
diversificados instrumentos para criar e (re)inventar caminhos e soluções,
continuamente, tecendo os processos de mudança, construindo e reconstruindo
identidades ao longo da vida. O autor Português Antônio Nóvoa traz uma reflexão sobre
os processos de formativos dos indivíduos e ressalta que:

A formação assemelha-se a um processo de socialização, no decurso do qual


os contextos familiares, escolares e profissionais constituem lugares de
regulação de processos específicos que se entrelaçam uns nos outros, dando
uma forma original a cada história de vida. (NÓVOA, 2010, p. 94)

Como já supracitado, o grupo em questão desenvolve suas pesquisas e estudos


debruçados em conceitos, como dialogismo e polifonia. Nesse sentido, o projeto
relaciona-se com a ideia de que há diversificadas vozes, e que elas têm como
característica primordial a heterogeneidade. Assim, os professores que reúnem-se para
compor o grupo em questão fazem uso de tais conceitos para dialogar com o cotidiano
docente dentro das escolas básicas do município de São Gonçalo e toda interação entre
os professores, alunos e corpo educacional que compõe a instituição de ensino. Segundo
o autor Bakhtin- pensador que norteia uma das vertentes principais do grupo (a
polifonia e dialogismo) - levanta como a linguagem atravessa fronteiras, sendo ela
muito mais que uma forma comunicativa, e sim fruto da interação social:

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato


de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
fisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal
constitui assim a realidade fundamental da língua. (BAKHTIN, 2004, p.
123).

sumário 758
VII Seminário Vozes da Educação

Partindo desses conceitos, o trabalho do grupo vem sendo desenvolvido, não


somente no universo acadêmico, mas constrói-se na interação com a comunidade
externa à Faculdade de Formação de Professores (UERJ-FFP).
O Vozes, como carinhosamente chamamos o grupo, tem o desafio de
problematizar e tencionar as relações entre as experiências, políticas, história e
memória, buscando dialogicamente, possíveis caminhos para que a cidadania possa ser
vivenciada pela grande parcela da população que se encontra excluída. Assim, o projeto,
com todo o apoio dos docentes que o compõe, estabelece um papel fundamental quanto
à reflexão sobre o ensino, os professores, após diálogo e pesquisa, pensam a educação
como uma ferramenta democrática de grande importância para prática de um ensino
diferenciado, que mostre aos alunos que eles não apenas estão no mundo, mas que
fazem parte dele, fazendo, desse modo, com que haja uma garantia de espaços para o
exercício da palavra, do diálogo, da cidadania.
Seguindo toda a estrutura de uma educação libertadora e emancipatória, os
docentes e pesquisadores do Projeto fazem uso, constantemente, da pedagogia freiriana,
levando em consideração, sempre, a vivência de cada aluno e toda o universo que o
norteia. Cada ser é único, e, cada discente, principalmente os da rede de ensino básico e
público/municipal, possui suas trajetórias, saberes, cultura, vivências, histórias e
memórias, assim, nenhum deles deve ser observado como um ser sem conhecimento no
qual serão depositados conteúdos a fim de que ele se torne um banco de conhecimentos
especificamente curriculares, como a educação bancária presa. O vozes, se baseando
nos estudos e pensamentos de Freire, preza pela valorização do conhecimento de mundo
que cada educando possui, defendendo, assim, uma educação libertadora e democrática.
De acordo com Paulo Freire:

(...) a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de


depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e
valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação “bancária”,
mas um ato cognoscente... O antagonismo entre as duas concepções, uma, a
“bancária [grifos do autor], que serve à dominação; outra, a
problematizadora, que serve à libertação, toma corpo exatamente aí.
Enquanto a primeira, necessariamente, mantém a contradição educador-
educando, a segunda realiza a superação (p. 78).

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Como são feitas as ações do Vozes? Como as bolsistas de extensão auxiliam nesses
processos?
Além do desenvolvimento desses estudos, o núcleo de Pesquisa e Extensão faz
visitações às escolas, principalmente municipais de São Gonçalo, para estabelecer ações
de levamento de memórias e histórias da escola/professor/aluno. Atualmente, há um
projeto sendo elaborado em um colégio da rede municipal de São Gonçalo, localizado
no bairro Jardim Catarina (CIEP Anita Garibaldi).
A escola Anita Garibaldi conta com número grande refugiados de diversificados
países, como: Cabo Verde, República do Congo e Angola, até o momento. Dessa forma,
as professoras/pesquisadores e bolsistas do Projeto Vozes têm ido à escola em questão,
com o intuito de levantar esses dados para uma melhor análise, e tem buscado entender
o cotidiano dos docentes da Instituição dentro desse universo, buscando demostrar o
ponto de vista e vivência narradas por cada educador. Além disso, o levantamento de
memórias - uma das características do Projeto - tem sido construído pelos professores
dessa mesma escola em conjunto com os docentes que compõem o Projeto Vozes.
O Projeto também conta com idas a outras escolas, como o Ciep Anaia Pequeno,
onde foi produzido um pequeno documentário que conta as memórias e história do
instituto; ademais, o núcleo reúne-se para elaboração de seminários que ocorrem na
Faculdade de Formação de Professores, estando em sua VII edição do Seminário Vozes
da Educação, e , também, de Educação Popular - produzido pelo referido Projeto. Para
além disso, o Grupo em questão produz e organiza lançamentos de livros de professores
do próprio Projeto, como por exemplo “Vozes da Educação, Formação de Professores,
Narrativas, Políticas e Memórias” lançado pela editora Eduerj e por alguns docentes que
compõem o grupo; essa obra é composta por 13 artigos elaborados por pesquisadores
que dialogam sobre a formação docente, com diferentesquestionamentos e observações.
Outro lançamento que reuniu uma das professoras/ pesquisadoras do Grupo foi o
“Construindo Pontes: Paulo Freire entre saberes, projetos e continentes.” que elucida as
diversificadas pontes existentes de diferentes natureza e extensões.
A seguir, serão expostas algumas imagens que resultaram do auxílio das
bolsistas do Projeto de Extensão em conjunto com toda comunidade interna do Grupo
nos processos descritos acima:

sumário 760
VII Seminário Vozes da Educação

Figura 1 - Lançamento do Livro ” Formação de professores para uma educação


plural democrática.”

Fonte: Foto retirada de celular de uma das bolsistas de Extensão.

Figura 2: CIEP Anita Garibaldi (Roda de conversa elaborada pelo Grupo Vozes)

Fonte: Foto retirada do celular de uma das bolsistas de extensão.

sumário 761
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Figura 3: IV Seminário Educação Popular - Vozes da Educação/ 1º Evento em que


as bolsistas de Extensão Ana Carolina e Tamyres de Miranda auxiliaram

Fonte:https://www.facebook.com/135609837255019/photos/a.138841100265226/138841023598567/?typ
e=3&theater

Figura 4: VII Seminário Vozes da Educação/ 2019- 2º Seminário em que haverá a


participação das bolsistas

Fonte:
https://www.facebook.com/VozesdaEducacaoUERJ/photos/p.1400074413475397/1400074413475397/?t
ype=1&theater

sumário 762
VII Seminário Vozes da Educação

Dessa maneira, é possível perceber que, para além do apoio no colhimento de


novas memórias em conjunto com os professores/ pesquisadores do grupo, os bolsistas
auxiliam no processo de captura de imagens para o acervo de memória do Vozes. Além
disso, prestam assistência na elaboração de rodas de conversa, seminários, eventos
acadêmicos e toda atividade que envolva o universo de um bolsista de extensão para
além da comunidade interna da Faculdade de Formação de Professores (UERJ-FFP),
reconhecendo a importância da atividade para a comunidade externa e todos os seus
impactos.
A participação de estudantes da graduação no Núcleo de Pesquisa e Extensão
Vozes da Educação promove um envolvimento social que se desenvolve através de
estudos dirigidos e diálogos que contribuem para uma formação mais ampla e cidadã.
Nessa perspectiva, há uma abertura de possibilidades para uma reflexão da prática
docente, fornecendo auxílios pedagógicos e teóricos que nos ajudem a resolver dilemas
reais existentes dentro das escolas,viabilizando o (des)envolvimento dos/as bolsistas em
atividades que (trans)formam o conhecimento teórico em conhecimento prático.

Como as atividades desempenhadas têm um impacto, significativo, na vida dos


bolsistas de Extensão?
Como bolsistas do Projeto foi possível estabelecer uma maior relação e contato
real com a universidade, vivenciando, em conjunto com os docentes que compõem o
Vozes, todo o universo que envolve pesquisa dentro do ambiente acadêmico, como:
busca de dados, auxílio na junção das memórias, elaboração de seminários e eventos
que ocorrem na Universidade, debates sobre textos e livros estudados no cotidiano.
Todavia, é de importância crucial ressaltar que tais atividades perpassaram o universo
acadêmico, contribuindo para que nossos horizontes e visões fossem alteradas sobre o
que é, de fato, a atividade de extensão.
Partindo da vivência como estagiárias - bolsistas do Vozes, pudemos perceber
como é de suma importância a atividade de extensão, de um modo geral. Além de
produzir um novo conhecimento a ser trabalhado e articulado por nós (bolsistas) e por
toda comunidade interna da FFP (Faculdade de Formação de Professores), levamos para
a comunidade externa, em uma atividade conjunta com a academia, os conhecimentos e
saberes adquiridos com o ensino e a pesquisa elaborados dentro da instituição. Dessa
forma, além de observar a troca mútua entre universidade - população, foi possível
modificar a nossa relação com a instituição e vida pessoal.

sumário 763
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Assim, nesse sentido, pudemos, de fato, compreender e ficarmos mais


suscetíveis quando tratamos de assuntos que envolvem a educação e todas as suas
especificidades. Ademais, o cotidiano como bolsistas proporciona na atuação em
publicações e em eventos acadêmicos que promovem a multiplicação dos
conhecimentos adquiridos por meio de atividades extensionistas, alargando o
entendimento e a percepção de mundo daqueles que em breve serão futuros professores
(bolsistas do projeto).

Atravessando barreiras: conclusões sobre o Projeto e a atividade Extensionista


Diante das análises e apontamentos e toda uma reflexão feita a partir da nossa
visão como bolsistas de extensão, é possível que levantemos alguns pontos importantes
para o pensamento do Projeto de Pesquisa e Extensão Vozes da Educação Memória(s),
História(s) e Formação de Professores/as. Assim, é possível concluir, portanto, que as
atividades elaboradas pelas estagiárias de extensão, em consonância com os professores/
pesquisadores do grupo,perpassam o universo acadêmico, atravessando os muros da
Universidade, tornando viável o contato real com a população, aproximando-se, ainda
mais, das Instituições de Ensino Básico da Rede Municipal de São Gonçalo.
Outrossim, além das atividades cotidianas elaboradas por bolsistas, essa torna-se
diferenciada pelo contato real com ambiente escolar, estudos teóricos aprofundados
sobre os temas abordados, temáticas diferenciadas, além de uma busca constante por
parte dos professores por uma educação plural e democrática. Nesse sentido, a visão
como estagiárias de extensão, graduandas e futuras professoras foi alterada por
completo, possibilitando uma abertura nos horizontes, adquirindo, assim, experiências
cruciais para o nosso processo formativo, educativo e cultural, podendo nos auxiliar
quando nos deparamos com questões que envolvam o ambiente do ensino.
Diante disso, as atividades desenvolvidas pelo grupo de Pesquisa e Extensão
Vozes da Educação são diversas e contemplam temáticas de vários eixos. Assim, toda
essa individualização coletiva converge, de certo modo, para o mesmo ponto e nos
promove uma articulação de saberes acadêmicos, populares, ensino e pesquisa,
proporcionando a interação entre os diferentes segmentos sociais e enriquecendo o
conhecimento teórico da academia, por meio de experiências construtivas vivenciadas
fora da sala de aula, potencializando a autonomia de estudos como bolsistas,
promovendo interação e pensamento crítico.

sumário 764
VII Seminário Vozes da Educação

Ao refletirmos sobre o período em que estamos inseridas no Grupo de Pesquisa


e Extensão Vozes a Educação percebemos as dificuldades e dilemas enfrentados
diariamente por docentes dentro do cotidiano escolar, mediante a uma aprendizagem
experimental que o contato com os escolas com professores da escola básica, com
mestres, doutores em educação, autores, textos, eventos acadêmicos dentro e fora dos
muros da Universidade, podemos perceber que a junção dessas diferentes instâncias
mediadoras auxilia nossos processos identitários. Tendo como resultado, dessa forma,
uma identidade inacabada que segue em constante construção.
A função de ser bolsistas de extensão do Projeto traz benefícios que vão além do
financeiro, pois o tempo investido de 20 horas semanais se torna pequeno quando
comparado as vantagens. Os resultados são muito positivos, pois nos motivam a
ingressar na profissão, ao mesmo tempo, nos faz ter mais conhecimento sobre os
professores das escolas do Município de São Gonçalo, onde os projetos do grupo se
desenvolvem, e, acima de tudo a rever as práticas educacionais. Podemos afirmar, com
toda certeza, que os saberes adquiridos através das experiências vividas como bolsistas
têm grande valor em nosso processo de construção de conhecimento.
Além disso, toda a atividade já mencionada nos faz perceber a importância e a
diferença que uma formação continuada que favoreça o desenvolvimento das
habilidades escolares adquiridasna academia ou na prática escolar pode fazer na vida
profissional de um docente iniciante ou veterano, promovendo segurança e capacitação
aos formadores de formadores para que , enquanto docentes que seremos, possamos
promover dentro das salas de aula um ensino cada vez melhor para nossos alunos,
também nos fazendo vibrar, sobretudo, colocar em prática a ideia inicial: uma busca
incessante por um educação libertadora e democrática.
Sendo assim, ao divulgarmos as possibilidades de pensar a educação que o
Núcleo de Pesquisa e Extensão Vozes da Educação Memória (s) e História (s) é
possível que concebamos experiências formativas através de diálogos com vozes dos
professores/as das escolas básicas. Com isso, esperamos, imensamente contribuir para o
aprofundamento de debates e reflexões sobre o fazer docente, demostrando nossas
atividades como bolsistas de extensão do projeto já mencionado, toda o cotidiano em
questão, elucidando as experiências por nós vivenciadas, através do contato constante
com a universidade e comunidade externa, dando, assim, visibilidade às diversas
alternativas de formação e aprofundamento de conhecimento.

sumário 765
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Referências
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Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 3, p. 174-181, set./dez. 2010.

______. Políticas de formação continuada e de inserção à docência no Brasil.


Educação Unisinos, Rio Grande do Sul, v. 19, n. 1, p.33-44, jan./ abr 2015.

ARAÚJO, M. S.; MORAIS, J. S. Vozes Da Educação. Formação de Professores


Narrativas Políticas e Memórias. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012. 330 p.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

GATTI, B. A.; BARRETTO, E. S. S.; ANDRÉ, M. E. D. A. Políticas Docentes no


Brasil: um estado da arte. Brasília: UNESCO, 2011. 297 p.

NÓVOA, M.; FINGER, A. (Org.). OMétodo (auto)biográfico e a Formação. Natal,


RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010.

OLIVEIRA, E.; GABARRA, L.; PROENÇA, L. (Orgs.) Construindo pontes: Paulo


Freire entre saberes, projetos e continentes. Ceará: EDUECE, 2018.

TEZZA, Cristovão. Discurso poético e discurso romanesco na teoria de Bakhtin.In:


FARACO et al. Uma introdução a Bakhtin. Curitiba: Hatier, 1988

VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas


fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Editora
Hucitec, 2004.

sumário 766
VII Seminário Vozes da Educação

EXPERIÊNCIAS FORMATIVAS, ESTUDOS E REFLEXÕES DE


PROFESSORES SOBRE O INÍCIO DA CARREIRA DOCENTE

Ana Carolina Paulo da Cruz


Licenciatura em Pedagogia – UERJ/FFP
anasbcruz@gmail.com

Do ponto de vista histórico observamos os aspectos da educação brasileira e os


processos complexos que tem passado ao longo das últimas décadas, sendo muitos os
problemas educacionais presentes em nosso país. As realidades são diversas e os
dilemas enfrentados têm origem interna e externa, sendo eles: socioeconômicos, ligados
às desigualdades de oportunidades, de aprendizagem, de acesso e permanência a
ambientes educacionais que propiciam o aprendizado e ainda os desafios da estrutura
educacional em si. O cenário social atual, em que a educação se insere, tem se
tornado cada vez mais difícil e gerado complicações no desenvolvimento e na formação
de professores, em suas relações e metodologias formativas, tanto nos cursos de
licenciatura, bem como no campo de formação continuada. Entretanto nenhuma
reforma, inovação ou transformação educacional perdura sem o docente. O panorama
educacional reflete problemas da sociedade contemporânea, e para superá-los serão
necessários mais do que reformas educacionais, pois o mal que tem afetado o trabalho
escolar traz necessidades sociais de cooperação.
Um dos maiores incentivadores da Educação e defensor do ensino público,
gratuito, laico e obrigatório em nosso país foi o intelectual Anísio Teixeira, que
acreditava que: “Educar é crescer. E crescer é viver. Educação é, assim, vida no sentido
mais autêntico da palavra”. Os aspectos históricos, sociais, culturais e políticos da
educação em nosso país devem ser considerados sempre que pensarmos nos processos
formativos de seus profissionais, porquanto nos possibilita uma melhor compreensão
das práticas e conflitos existentes na formação e no trabalho docente. Sendo assim,
pensar como a sociedade se apresenta e se movimenta é de suma importância para
perceber de que forma esses aspectos sociais atravessam o cotidiano escolar e como
dialogam com as práticas docentes.

sumário 767
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Segundo Gatti, Barreto, André e Almeida (2019), mudanças acontecem a todo


tempo em vários setores de nossas vidas podendo ser de natureza profissional, pessoal,
social e/ou outros produzindo ou reproduzindo diferenciações, contradições,
realizações, conflitos, renovações, inquietações e esses movimentos também cruzam a
existência, hábitos e rotinas das escolas e da formação dos professores.

Temos problematizações quanto aos caminhos trilhados historicamente,


tanto no mundo social como no mundo das ciências e nos processos
educacionais, e há procura de alternativas para compreender situações, para
as convivências, para o pesquisar e o explicar, para o ensinar. Instalam-se
buscas por novas formas de compreensão de fatos, ocorrências e realidades,
tanto quanto ao mundo natural como quanto ao mundo social. (Bernadete
Gatti,2017, p.724)

Todavia, vale ressaltar que a escola não vai resolver todos os problemas da
sociedade, por mais que conte com profissionais dedicados e capacitados, pois a
formação dos indivíduos não se dá apenas dentro das instituições escolares e sim em
diferentes lugares, tempos e de diversas formas. Segundo Bragança (2012, p.63)
“Como sujeitos históricos, construímo-nos a partir das relações que estabelecemos com
nós mesmos e com os outros.” Somos formados por vários outros que existem dentro de
nós, que nos atravessaram e deixaram suas marcas. Do ponto de vista das pesquisas em
Educação, muito se tem discutido o tema formação de professores, que vem sendo alvo
de várias pesquisas e debates. As práticas do trabalho docente ganharam maior
notoriedade no meio acadêmico nacional, especialmente na elaboração de teses e
dissertações a partir de uma demanda crescente de investigação. Desta maneira,
verificamos a importância desse tema para os profissionais de educação, tornando
necessário expandir essa esfera de estudos para que docentes possam construir suas
identidades refletindo suas histórias de vida e revisitando as relações que os
atravessaram tanto no campo pessoal quanto no profissional.

A formação assemelha-se a um processo de socialização, no decurso do qual


os contextos familiares, escolares e profissionais constituem lugares de
regulação de processos específicos que se enredam uns com os outros,
dando uma forma original a cada história de vida. Na família de origem, na
casa, na escola, no seio dos grupos profissionais, as relações marcantes, que
ficam na memória, são dominadas por bipolaridade de rejeição e de adesão.
A formação passa pelas contrariedades que foi preciso ultrapassar, pelas
aberturas oferecidas. O professor é evocado como responsável, tanto por um
fracasso como por um sucesso. (Antonio Nóvoa, 2010.p. 94).

sumário 768
VII Seminário Vozes da Educação

E pensando dentro dessa conjuntura, surgiram inquietações que me impulsionam


a pesquisar algumas questões sobre o processo de formação de professores e analisar
como se dá a inserção profissional de professores/as iniciantes nas redes de ensino.
Para fundamentar a reflexão a que nos referimos, vamos lançar mão de bibliografias,
entrevistas semiestruturadas presenciais e online com egressos do curso e Pedagogia da
Faculdade de Formação de Professores/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
graduados/as no final da década de 1990. Por fim, estudar, a partir da ótica dos
egressos, as contribuições e impactos do processo formativo na atuação profissional e
na vida, pessoal e social, pensando a formação inicial e continuada de professores a
partir do contexto de seu trabalho e das situações vivenciadas no cotidiano das escolas,
das considerações acerca da realidade enfrentada após seu ingresso na vida profissional.

Trajetórias de vida: reflexões sobre os processos formativos


“Observamos que a vida e a formação docente trazem um movimento em que se
encontram a formação acadêmica institucional, a familiar, pessoal/de vida, opções
religiosas, memória escolar e tantas outras”. Nóvoa (1991, p.70). O processo de
formação docente é uma construção social e ideológica. Não nascemos professor/a, nos
tornamos professor/a. Os percursos e discussões que alinham o nosso desenvolvimento
nos ajudam na construção de nossa identidade docente. Enquanto professores, levamos
para dentro da sala de aula conhecimentos e memórias adquiridos ao longo de nossa
trajetória social e histórica, desta maneira, vamos nos construindo como pessoa e como
professor/a. Quando pensamos em formação de professores, temos autores que nos
referendam, como NÓVOA (1992) para quem os problemas dos docentes não são
apenas instrumentais, mas comportam situações que envolvem outros aspectos, trazem
incertezas, conflitos de valores, mas principalmente são únicos e exigem profissionais
competentes que demonstrem capacidade reflexiva. Este autor comenta que quando
visamos à qualidade do ensino, é fundamental que abordemos a proposta de formação a
partir de três eixos estratégicos: a pessoa do professor e a sua experiência, a profissão e
seus saberes e a escola e seus projetos. Pontua, ainda, a importância de uma análise
compartilhada. O autor considera necessário e imprescindível que a prática reflexiva
aconteça entre os pares, dialogicamente, para que esse espaço seja propiciador de
fortalecimento para o desenvolvimento do trabalho. Para ele, a prática do professor,
embora momentaneamente individual, estará sempre carregada de condições político-
sociais e institucionais nas quais está inserida (NÓVOA, 2003).

sumário 769
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Para Bragança (2012) o exercício vivo dos saberes docentes surge no/do
cotidiano escolar, saberes que são construídos pelos sujeitos ao longo de suas vidas na
junção de sentidos pessoais, éticos e científicos. Segundo a autora, os processos
formativos não nascem apenas dentro de instituições formais, eles se entrelaçam e se
constituem em relações comuns entre diversas dimensões formativas, entre saberes
acadêmicos e experienciais, memórias e narrativas, práticas e teorias. “A memória traz o
registro vivo de diferentes experienciais sociais da docência que foram se acumulando
ao longo da trajetória não só histórica da profissão, mas também pessoal de cada
professor/a” (2012, p.33).
Os processos educativos transcorrem de diversas formas e necessitam ser
estudados com consciência, considerando as diversidades sociais e culturais, pois não
existe igualdade, permanência e estabilidade entre a humanidade. Nesta perspectiva
onde as diferenças se revelam de forma tão acentuada nos impossibilita de ver a
formação de professores como uma ciência rígida presa em conceitos do século XX. No
entanto como ressalta Paulo Freire para que haja uma educação libertadora e
emancipatóriaé necessário formar professores(as) conscientes do papel social e
fundamental que exercem em nossa sociedade “Pode funcionar como um antídoto do
medo, e da inércia reprodutora, para alimentar liberdade e democracia”
(Bragança,2012,p.21).

Assim, a formação fala da experiência pessoal do sujeito, profundamente


articulada aos contextos sociais e culturais mais amplos. A literatura que
toma como referência a abordagem (auto)biográfica sinaliza concepções de
formação que dialogam e se entrelaçam, concepções que se manifestam em
diversos desdobramentos teóricos–metodológicos para o campo educativo e a
formação de professores. (BRAGANÇA, 2012, p.68)

A formação docente deveria ter como principal objetivo promover reflexão e


participação com o intuito de desenvolver nos futuros professores a capacidade
reflexiva em grupo, no decorrer de um processo contínuo baseado nas relações
interpessoais e nas histórias de vida, que trazem marcas do passado enquanto constrói o
presente e o futuro.
A autora Bernadete Gatti(2013) destaca a necessidade de se repensar a
concepção vigente sobre “prática” e “teoria” e acrescenta afirmando que prática
educacional é prática social. Já Marli André, nos provoca a pensar na defasagem que
existe e persiste com relação ao contato dos estudantes com a prática escolar ressaltando

sumário 770
VII Seminário Vozes da Educação

que isso tende a dificultar o entendimento dos estudantes das universidades a


reconhecerem qual é o seu papel.

Assim, a reflexão é uma travessia fundamental para as histórias de vida no


campo da formação, é um olhar para dentro, um revisitar da vida em suas
múltiplas relações, tanto para análise dos percursos pessoais como
profissionais. Trata-se da reflexividade crítica, como autoanálise que
repercute na compreensão das concepções que temos, das influências que
sofremos, podendo, nesse sentido, ser geradora de conscientização, de um
ressignificar do vivido. Na formação de professores, esse ressignificar
assume um caráter emancipatório, articulando dimensões antológicas,
pedagógicas e políticas, ou seja, um caráter instituinte de formas pessoais,
profissionais e sociais de estar no mundo e com as pessoas. (Inês Bragança,
2012. P. 89)

Inserção profissional: mais uma etapa no processo formativo


Para motivar as reflexões sobre a formação inicial e os processos de aquisição de
capacidades humanas e sociais necessárias para a condução da aula, é necessário um
trabalho em equipe entre sistema escolar, conteúdos, didática e essencialmente uma
reflexão sobre os valores. Gatti (2003) afirma que, a formação inicial pressupõe um
processo, que assegure um conjunto de habilidades aos estudantes/professores, que
permita iniciar sua carreira docente com um mínimo de condições pessoais de
qualificação. A articulação entre teoria e prática, a formação da identidade docente pois,
nesse período, o/a futuro professor/a inicia uma transformação entre o papel de aluno e
o papel de professor. É no espaço concreto de cada escola, em torno de problemas
pedagógicos ou educativos reais, que se desenvolve a verdadeira formação.
Universidades e especialistas externos são importantes no plano teórico e
metodológico. Mas todo esse conhecimento só terá eficácia se o professor conseguir
inseri-lo em sua dinâmica pessoal e articulá-lo com seu processo de desenvolvimento.
(NÓVOA, 2001) Entende-se a formação e o desenvolvimento profissional de
professores como um processo individual e coletivo que floresce ao longo de suas
carreiras, que deveria ter como principal objetivo promover um pensamento crítico que
permita desenvolver nos futuros professores uma capacidade reflexiva. Essas análises
tendem a se intensificar no local de trabalho docente, as vivencias do ambiente escolar
contribuem para o aperfeiçoamento profissional dos/as professores/as através das
práticas que movimentam o cotidiano da escola, integrando diferentes tipos de
oportunidades e experiências que auxiliam a construção da identidade decente.
Nos últimos anos os processos de aprender e ensinar tem passado por mudanças,
sendo vistos com mais compreensão e a formação profissional dos professores

sumário 771
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

considerado como um processo a longo prazo, baseado nas relações interpessoais.


Historicamente, os docentes desenvolveram identidades isoladas. Falta uma dimensão
de grupo, que rejeite o corporativismo e afirme a existência de um coletivo profissional.
Refiro-me à participação nos planos de regulação do trabalho escolar, de pesquisa, de
avaliação conjunta e de formação continuada, para permitir a partilha de tarefas e de
responsabilidades. As equipes de trabalho são fundamentais para estimular o debate e a
reflexão. É preciso ainda participar de movimentos pedagógicos que reúnam
profissionais de origens diversas em torno de um mesmo programa de renovação do
ensino.

Considerações em movimento
Por se tratar de um recorte de uma pesquisa monográfica em andamento, trago
considerações parciais. O autor Antonio Nóvoa nos provoca a pensar a iniciação do
trabalho docente como um desafio social, apontando as inserções profissionais como
uma das maiores dificuldades enfrentadas por nossos professores no início da carreira.
Segundo ele, cuidamos mal dos professores iniciantes, que por vezes são lançados nas
piores escolas e horários. O autor acrescenta que: “se não formos capazes de construir
formas de integração, mais harmoniosas e coerentes, desses/as professores/as, nós
vamos justamente acentuar, nesses primeiros anos de profissão, dinâmicas de
sobrevivência individual que conduzem necessariamente a um fechamento
individualista dos professores” (Nóvoa,2006, p. 14).
É preciso pensar em políticas e práticas institucionais de acolhimento para os
jovens professores, que os motivem e ampare profissional, social e pedagogicamente
nesta fase de transição e integração docente. Ao pensarmos que a escola também é lugar
de formação docente podemos destacar a importância que o processo de socialização
traz para os professores iniciantes, as condições de trabalho são muitas vezes
fundamentais para a permanência ou não desses indivíduos na profissão. Esta
concepção da escola como formadora da identidade profissional docente também é
destacada por Nóvoa (2001,s/p) quando afirma que “o desenvolvimento pessoal e
profissional depende muito do contexto em que exercemos nossa atividade. Todo
professor deve ver a escola não somente como o lugar onde ele ensina, mas onde
aprende”.
Os saberes adquiridos nas práticas experimentais do cotidiano escolar se
incorporam aos conhecimentos obtidos nos cursos de Licenciatura, constituindo os

sumário 772
VII Seminário Vozes da Educação

saberes docentes, e apontando a escola como lugar de aprendizagem. Os ensinamentos


de Imbernón (2010, p. 37) sustentam epistemologicamente a lógica argumentativa
supracitada, quando ele discute que formação é um processo que aparentemente começa
na prática, mas na verdade começa “da práxis, já que a experiência prática possui uma
teoria, implícita ou explícita, que a fundamenta”.
O ingresso no mercado de trabalho traz desafios para o coletivo. Professores em
geral são afetados sejam iniciantes ou não, o docente ao entrar em uma sala de aula se
depara com a multiplicidade e complexidade humana, expondo-se a acontecimentos
inesperados, apaixonantes no qual é preciso lidar. As inquietudes existentes em uma
sala de aula em que grande número de alunos desperta uma necessidade de reinvenção,
de rompimento com mecanismos que travam a criação e a autonomia. Nessa aventura
docente, os/as professores/as iluminam o caminho e alargam o horizonte encorajando
desejos, sonhos, curiosidade e mudanças.

São muitas as tarefas a serem enfrentadas pelos iniciantes, segundo Marcelo


García (2011, p. 9), tais como: procurar conhecer os estudantes, o currículo e
o contexto escolar; planejar adequadamente o currículo e o ensino; começar a
desenvolver um repertório docente que lhes permita sobreviver como
professores; criar uma comunidade de aprendizagem na classe; e continuar a
desenvolver uma identidade profissional. É grande a responsabilidade com a
aprendizagem dos alunos. (apud André, 2012, p. 115)

A partir desse estudo inicial bibliográfico, foi se delineando novos


questionamentos acerca da inserção profissional de docentes no início da carreira. Na
tentativa de responder algumas das questões abordadas, um grupo de pedagogas
graduadas pela UERJ/FFP há quase duas décadas, quando o curso de Pedagogia ainda
era recente na Faculdade de Formação de Professores em São Gonçalo, terá um papel
fundamental para a elaboração desta pesquisa, pois através das narrativas sobre os
movimentos de entrada no mercado de trabalho, salientando as experiências vivenciadas
no processo e transição discente/docente, os caminhos trilhados na construção da
identidade docente, os desdobramentos e questões do cotidiano escolar.

Consideramos que o estudo do perfil dos estudantes pode trazer inícios


significativos a respeito das novas configurações que se delineiam no próprio
Curso, além de indicar possibilidades de análise das mediações entre esse
perfil e a trajetória das políticas educacionais para a formação inicial de
professorese a necessária reconstrução cotidiana da prática de formação que
se dá no dia-a-dia de nosso trabalho.(BRAGANÇA, 2009, p.9)

sumário 773
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O texto busca contribuir para uma reflexão sobre os processos formativos e


inserção profissional, com base nas narrativas de/as professores/as egressos da
UERJ/FFP, construindo diálogos acerca das memórias e experiências docentes que nos
possibilite questionar e perceber os impactos da iniciação docente na formação da
identidade profissional do/a professor/a. Visamos conhecer as diferentes maneiras
do desenvolvimento docente, no interior das salas de aula, por meio da uma pesquisa
qualitativa e dialética. O processo formativo é contínuo, mas não linear. Ademais
investigar alguns aspectos da formação profissional desses sujeitos, relacionando
ciência e experiência de vida, intencionando conhecer e/ou ampliar o entendimento
sobre os dilemas da profissão, desenvolvendo uma reflexão acerca das principais
contribuições do curso de Pedagogia para sua prática docente no cotidiano escolar.
A pesquisa está dando os seus primeiros passos e ponderar essas questões é
valioso para o desenvolvimento da minha identidade, pois também serei educadora,
logo, tende a auxiliar na compreensão e construção de um profissional que atuará como
um agente crítico-reflexivo no trabalho docente. Segundo Bragança (2008, apud
Bragança 2010, p.17) “Os objetivos da biografia educativa são pedagógicos, entretanto,
o falar sobre a vida e suas tramas, leva o sujeito a uma reflexão sobre si e sobre o
mundo que é potencialmente formadora, transformadora”.

Referências
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Pol%c3%adticas%20e%20programas%20de%20apoio%20aos%20professores%20inici
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BRAGANÇA, Inês Ferreira de Souza. Histórias de vida e formação de professores:


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Vânia Medeiros. Trabalho Docente: experiências formativas e inserção profissional,
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Formação de professores/as. REVISTA ELETRÔNICA PESQUISEDUCA, v. 2, n. 03,
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VII Seminário Vozes da Educação

http://periodicos.unisantos.br/index.php/pesquiseduca/article/view/50/pdf Acesso em 12
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infâncias, a Contrapelo: Conversando sobre pesquisa, práticas e política, Texto mineo
2018.

sumário 775
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

PERU-BRASIL: ROMPENDO FRONTEIRAS ATRAVÉS DE CARTAS ENTRE


DOCENTES

Thaís Coutinho de Barros Coelho


UERJ-FFP
thaiscoutinhodebarros@gmail.com

Maria Clara Rodrigues Fortes


UERJ-FFP
mariaclara.uerjffp@gmail.com

Introdução
“Rede de Docentes que Estudam e Narram sobre Infância, Alfabetização,
Leitura e Escrita” (REDEALE) é um coletivo brasileiro que se reúne na Faculdade de
Formação de Professores (FFP), unidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), localizada em São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro. Tal coletivo é
coordenado pelas professoras Mairce Araújo e Jacqueline Morais é constituído por
estudantes de graduação, mestrado, doutorado e professores (as) que desejam participar
de discussões sobre formação docente.
O REDEALE foi criado a partir da participação de professores e estudantes
brasileiros no VII Encuentro Iberoamericano de Coletivos e Redes de Maestros y
Maestras que Hacen Investigacion e Innovación Desde su Escuela y Comunidad,
ocorrido na cidade de Cajamarca, no Peru em julho de 2014. Este evento faz parte de
um conjunto de encontros de professores e professoras latino-americanos que se reúnem
coletivamente para trocar experiências sobre suas realidades profissionais. A inscrição
só é permitida “em redes”, ou seja, os decentes que desejam participar destes encontros
precisam estar associados a uma rede de professores. Tal encontro permitiu a
articulação com o coletivo docente “Red Desenredando Nudos”, composto por
professores peruanos, que propôs manter contato após o encontro.
Esse contato tem o objetivo de manter e fortalecer as trocas de experiências
através de diálogos entre os docentes de Brasil e Peru que se reuniram naquele Encontro.
No decorrer desse trabalho será apresentado e discutido à luz de referenciais
bibliográficos como ocorreu e vem ocorrendo essas trocas entre os docentes, em

sumário 776
VII Seminário Vozes da Educação

especial será dado foco à proposta de escrita de cartas como resposta às narrativas
docentes enviadas pelos professores peruanos.

As Experiências que nos formam


Como estratégia de interação, criou-se uma rotina mensal de encontros via
Skype. Desta forma, buscamos compartilhar experiências docentes, com o intuito de
fortalecer a luta por uma escola popular e emancipadora na América Latina, no qual
os(as) professores(as) não sejam meros(as) repetidores/as de conteúdos e alunos(as)
recipientes ou depósitos de informações. O diálogo entre as redes de coletivos docente
constitui uma forma de resistência ao reafirmar os/as docentes como intelectuais,
autores(as) e produtores de suas práticas. Como ressalta Cunha (2009), “ao narrar tanto
as trajetórias pessoais e profissionais, os seres humanos produzem um conhecimento
estratégico através do qual (re) constroem a própria existência.”, (CUNHA, 2009, p. 4).
Cada pessoa tem suas experiências e é preciso registrá-la para não serem esquecidas ou
apagadas, segundo Cunha (2009) “não há experiência humana que não possa ser
expressa em narrativas.” (CUNHA, 2009, p. 4)
Nos encontros realizados na FFP há a presença de professores(as) de redes
públicas de ensino e da universidade, graduandos/das, mestrandos/as e mestres, que
compartilham experiências escolares e de vida. Essa composição fundamenta-se no
princípio Freiriano de que “Ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se
educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”,
(FREIRE, 2014, p. 95). Precisamos de outros pensamentos, outras ideias, para trilhar
caminhos mais amplos.
Como parte do projeto, os participantes dos coletivos dos dois países,
escreveram narrativas que contavam suas experiências pedagógicas, enfatizando o
cotidiano escolar. Segundo Araújo e Morais (2018):

Narrativas docentes revelam saberes e fazeres pedagógicos construídos e


vividos em diferentes Tempos e lugares, em boa parte das vezes alimentados
em coletivos, indicando que professores/as se formam em múltiplos espaços
e tempos, em movimentos diversos e de natureza complexa, permeados por
relações grupais, colaborativas e dialógicas. (ARAÚJO e MORAIS, 2018,
p.25)

Estando como professoras pesquisadoras em formação, participante de tal


projeto, tendo a possibilidade de aprender com o outro, de ouvir e de registrar tudo

sumário 777
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

aquilo que nos afeta e nos move, pode-se perceber como tal aprendizado é importante.
Adquire-se novos conhecimentos a cada dia, mesmo que seja com as mínimas coisas,
cada experiência vivida é única.
Benjamin (1994) nos ajuda a compreender a importância da narrativa na
preservação das experiências vividas, individuais e coletivas, em especial num tempo
onde, como alerta o autor “a arte de narrar está em vias de extinção” (BENJAMIN,
1994, p. 197). Assim, a escrita docente de seu fazer cotidiano, representa tanto uma luta
contra o esquecimento quanto uma defesa pelo direito à palavra e ao dizer, aspectos que
merecem atenção nestes tempos modernos. O mesmo autor nos alerta sobre a
necessidade de desenvolvermos sobre as experiências vividas uma atenção, já que elas
se perdem quando as histórias não são mais conservadas. (BENJAMIN, 1994).
É o que também Bosi (2003) nos chama atenção. Ela afirma que a classe
dominante ao impor seus tempos modernos acelerados, suas filas de bancos, formulários
e outras burocracias, vêm apagando narrativas. As pessoas não contam mais suas
histórias, prejudicando a própria memória dos sujeitos e das famílias. De acordo com
essa autora, todas as classes sociais são afetadas por essa perda das narrativas e da
memória, mas é nas pessoas mais simples que ainda encontramos resistência, a classe
dominante impõe sua lógica, mas os grupos populares, em especial as pessoas mais
idosas, tentam manter suas histórias vivas, contando essas histórias. Portanto, é preciso
narrar, e uma forma de conservar a narrativa, é escrevendo-a.
As histórias docentes são dispositivos que temos lançado mão nos processos de
formação junto às/aos professoras (es), já que estes permitem que compartilhemos, não
meras informações, mas verdadeiras experiências, já que a narrativa:

não está interessada em transmitir o puro em-si da coisa narrada como uma
informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para
em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador,
como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIM, 1994 p. 205)

As narrativas das(os) professoras(es) foram marcadas por relatos pessoais,


histórias de vida, acontecimentos escolares, dificuldades que enfrentam, como diz
Lopes (2006) todo espaço pertence a alguém. Deste modo ao escrevermos sobre nossas
histórias afirmamos a ocupação de um espaço, um espaço vivido por nós e que pela
escrita é registrado podendo ser compartilhado com outros. Cada narrativa teve seu
toque pessoal e profissional. Fizemos o que chamamos de “leitura entre pares” das

sumário 778
VII Seminário Vozes da Educação

narrativas. Todos leram os textos, apontando o que poderia ser melhorado, destacando o
que provocou deslocamentos e aprendizagens. Foi um grande desafio já que os
professores peruanos não escreveram em português, e sim, em espanhol. Os textos
algumas vezes eram longos, outras vezes curtos, e a cada dificuldade recorria-se ao
dicionário espanhol-português. Estava sendo lido relatos de alguém, sujeitos dotados de
singularidades, e precisava-se da maior compreensão para poder analisar o que estava
sendo narrado, e assim tendo melhor entendimento da mensagem.
O grupo nesse momento se dedicou com afinco por não ser um idioma que a
maioria dominava ou já tinha algum contato, e todos, cada um à sua maneira, leram,
outros traduziram, mas o objetivo era o mesmo, compreender a mensagem passada, para
enfim devolverem aos peruanos suas narrativas com apontamentos.

Cartas – Um outro olhar para novas experiências


Como dizer a professores de outro país, outra cultura, outras vivências, que
havia em suas narrativas aspectos que não compreendíamos muito bem? Então, em
meio a discussões em grupo, foi pensado um gênero textual que potencializasse a
comunicação entre os(as) autores(as), tendo em vista as diferenças de idiomas
(português e espanhol). Surgiu no coletivo¸ a proposta de escrevermos correspondências
para os professores(as) peruanos(as). Entendemos que tal opção seria uma forma afetiva
e carinhosa de ampliar o diálogo e a compreensão entre os(as) autores(as) dos dois
países. Uma carta poderia favorecer o diálogo por permitir um estilo mais íntimo, no
qual perguntar, sugerir, expor o sentido construído a partir da leitura, poderia acontecer
de maneira mais leve, com uma escrita suave, ao mesmo tempo sem perder o padrão
que o próprio gênero textual apresenta.
A escrita de cartas existe a mais de quatro mil anos, e tal gênero vem sofrendo
modificações de acordo com a sociedade de seu tempo. Elas saem dos ambientes
restritos dos palácios e vão para as ruas pois surgia-se a necessidade de trocar
informações de maneira não presencial. A carta, segundo Andrade (2011), “se
popularizou entre os indivíduos que viam nessa prática uma maneira de estabelecer
contato com parentes e amigos distantes.”, (ANDRADE, 2011, p. 3).
Tal escolha nos levou a outros desafios: como escrever uma carta? Como ser
próximo de alguém que não conhecemos? Conforme Andrade (2011):

sumário 779
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A carta não deve ser vista apenas como uma forma textual que permite a
troca de informação. Além de seu conteúdo, isto, além do que efetivamente
se diz, a carta – segundo Violi – sempre diz algo mais: fala por si mesma,
revela o ato de ter sido escrita, testemunha de sua própria existência.
(ANDRADE, 2011, p.6)

Alguns de nós, especialmente os/as mais jovens, nunca havia escrito uma carta
antes. Começamos a conversar sobre nossas experiências pessoais com a escrita de
cartas. Em meio a conversa surgiram as cartas escritas para namorados, projetos de
troca de correspondência em escola-correio amigo-, no qual as crianças escreviam
cartinhas para quem quisesse e colocavam em um recipiente. Em uma data determinada
uma pessoa da escola vestia-se de carteiro e entregava a carta para cada destinatário.
Assim o gênero textual foi trabalhado, as crianças aprenderam a lidar com as emoções,
pois nem todas receberam a correspondência e foi ensinado na prática como produzir a
mesma. Araújo e Morais (2018) afirmam que “A sugestão da escrita de cartas
possibilitaria que os alunos conhecessem outra cultura, bem como exercessem a escrita
com sentido e função social”, (ARAÚJO e MORAIS, 2018, p.65). Havia estranhamento
diante do desafio de escrever para alguém que não conhecíamos.
Ao mesmo tempo que líamos e escrevíamos as cartas, conversávamos sobre as
aprendizagens provocadas em tais situações, sobre as experiências que nos formam e
transformam, sobre saberes colocados em circulação a partir de intercâmbios como
aquele que estávamos vivendo.
A opção pela produção das cartas nos possibilitou evitar um certo formato
acadêmico mais impessoal, investindo numa proximidade maior que a correspondência
poderia nos permitir. De acordo com Foucault (1992) “Escrever é pois mostrar-se, dar-
se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro. (…) De certo modo, a carta
proporciona um face a face.” (FOUCAULT, 1992, p.136) Escrever cartas, nesta
perspectiva, pressupõe colocar-se nessa escrita.
E como é difícil escrever, ao escrever pensamos no que escrevemos, como
escrevemos, para quem escrevemos e como o outro entende que se lê. Esse movimento
assusta um pouco, pois escreveríamos para professoras (es) de outro país, a cada linha o
nervosismo e a ansiedade aumentava. De acordo com Prado, Ferreira e Fernandes
(2011):

Sabemos o quanto escrever é sempre um desafio e o quanto é necessário


assumi-lo com persistência. Senão por outra razão, porque a escrita pode nos
ajudar a conhecer melhor quem somos nós, a refletir sobre o que fazemos e

sumário 780
VII Seminário Vozes da Educação

pensamos, a sistematizar os saberes e conhecimentos que produzimos, a


desenvolver nossa capacidade de escrever. (PRADO, FERREIRA e
FERNANDES,2011, p. 145)

Em uma carta sentimos a presença de quem escreve, a emoção com que relata,
por mais que existem padrões, sentimos o outro que a escreveu. Ao produzir as
correspondências para os(as) professores(as) peruanos(as), cada uma enviada por e-mail
com um toque pessoal de seu(sua) autor(a), ficamos com a expectativa do impacto que
causaria em quem recebeu. Como reagiriam? Será que ficariam chateados pelos
apontamentos? Quando será que eles responderiam?
De acordo com Bosi (2003) “ao narrar uma experiência profunda, nós a
perdemos também, naquele momento em que ela se corporifica (e se enrijece) na
narrativa. Porém o mutismo também petrifica a lembrança que se paralisa e sedimenta
no fundo da garganta” (BOSI, 2003. p.15), ou seja, quando contamos nossa história ela
deixa de ser apenas nossa, podemos imaginar o desafio que foi para os professores
peruanos relatar suas histórias, suas vivências, mas não contar essas histórias poderia
significar apagar a sua importância e a própria existência dessas experiências em suas
memórias.
Passaram-se alguns dias e o coletivo docente peruano entrou em contato por e-
mail agradecendo as nossas cartas. Disseram que esperavam um texto em forma de
relatório, no qual seriam apontados apenas erros e faltas. Contaram que foi uma
surpresa quando receberam cartas, contendo apontamentos de forma carinhosa e sutil.
Disseram também que refariam as deles pois responderam às nossas narrativas em
forma de relatório, mas que a experiência foi tão boa que resolveram fazer da mesma
forma.
A ideia da correspondência como modo de compartilhar as impressões e
avaliações dos textos lidos foi abraçada pelos/as docentes peruanos/as que nos enviaram
respostas às nossas cartas. Cada um de nós recebeu resposta à carta escrita para eles, os
peruanos agradeciam pelo cuidado e carinho, alguns diziam o quão importante foram
aquelas palavras (alguns textos eram relatos de vida), outros agradeciam às sugestões e
informaram que utilizariam em seus textos.
A seguir serão reproduzidos o texto de narrativa de uma das professoras
peruanas, a resposta em forma de carta de uma das graduandas pesquisadoras brasileiras
e a resposta da docente peruana.

sumário 781
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

¿Esto, es una violación a la cultura?


Yo ya era maestra y mi primera experiencia de trabajo fue con mujeres
campesinas que debían venir a la ciudad, apoyadas por un proyecto, para
formarlas como promotoras campesinas. Alguien, una vez dijo “esto es una
violación a la cultura”, me pareció extraña la frase, pero aún no la
comprendía bien. Solo pensaba que mi experiencia de trabajo, era para salir
adelante. Nada de lo que aprendí, en mi escuela para maestros, amanecidas
haciendo trabajos, horas y horas sentada escuchando la teoría e innumerables
figuras literarias, fonética, fonología, gramática; puede ponerlo en práctica.
Lo que sí me sirvió fue el título profesional de profesora que me acreditó
para postular a una plaza docente.
Trabajé con 40 mujeres, entre 18 y 40 años de edad. Una vino embarazada y
abortó a su hijo haciendo educación física, era un curso de la propuesta
curricular dictado por un ex militar. Otras alumnas utilizaban los plumones
del Ing. de producción agropecuaria, para pintarse los labios y pasear los
domingos en la plaza de armas de Cajamarca, otras con los pocos ahorros que
traían, se compraron el pantalón Jeans para parecer de la ciudad y
confundirse con la multitud de chicas que encontraban a su paso. Ahora me
pongo a reflexionar cómo la ropa, el vestido y la marca nos hacen perder
identidad. Para las alumnas era muy difícil utilizar los servicios higiénicos de
la ciudad, se subían con zapatos sobre la taza del wáter, otras no sabían cómo
utilizar toallas higiénicas durante su periodo de menstruación. No podría
decir si fue bueno o malo, pero para algunas mujeres, los primeros días fue
de llanto y tristeza de su chacra, su familia, sus recuerdos. Yo misma pasaba
el mismo proceso, pues me tuve que internar a vivir con ellas por el lapso de
dos meses. Nos acompañamos en nuestra tristeza. Muchas mujeres eran
mayores que yo, tenía 23 años y solo tenía mi título de maestra unos tres
meses atrás.
La experiencia termino cantando una canción que quedó grabada en mi
recuerdo:
¡…8 minutos me quedan ya, para retirarme de este lugar….!
Hoy, luego de 25 años puedo encontrarme con mis alumnas que venden pollo
en el mercado, limpiando casas, o buscándome en el Facebook con la
pregunta ¿Eres, Isabel, la profesora de la Escuela Rural Andina?
Dos años trabajé en esta institución con innumerables experiencias por contar.
María Isabel Gutiérrez Chávez
(Narrativa escrita pela professora peruana María Isabel Gutiérrez Chávez)

sumário 782
VII Seminário Vozes da Educação

Imagem 1 – Carta à Professora Maria Gutiérrez

Fonte: Acervo pessoal

Cajamarca, 19 de noviembre
Apreciada María Clara,
Muchas gracias por su carta, es un gusto haber recibido sus reflexiones y
también dudas que espero poder responder.
Terminé mis estudios de formación como maestra a los 23 años y puedo
decirle que esta experiencia de trabajo en la Escuela Rural Andina, que era
una ONG de mucho prestigio por su apoyo al desarrollo rural en Cajamarca;
marcó mi vida para saber lo que NO debo hacer en mi vida profesional como
maestra. Haber escrito este texto y sus preguntas me hacen reflexionarla así,
luego de 25 años.
Actualmente soy parte del equipo de la Escuela Campesina Alternativa, un
proyecto que se va construyendo desde una experiencia de trabajo
comunitario, saberes andinos, necesidades y recursos de la zona. Tenemos
objetivos además de una propuesta curricular, sin embargo nuestra propuesta
curricular se afianza con trabajo diario y con la reflexión de cada uno de los
participantes, no siempre la experiencia es fácil, pero reconocernos
comunidad nos ayuda. En contraste con mi experiencia en el programa de
capacitación a mujeres campesinas mi experiencia actual me lleva a pensar
que un proyecto educativo no debe ser intervencionista y menos una
propuesta educativa que favorece un mal llamado desarrollo, basado en el
mercado, consumo, industrialización, dinero y beneficio para las grandes
empresas que nos compran y nos venden. En este sentido, un proyecto

sumário 783
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

educativo, una escuela que no construye su currículo desde las comunidades,


su cultura, necesidades y el sueño colectivo del dónde quieres llegar, podría
fácilmente ser una violación cultural.
Junto con un equipo de trabajo, participé de un proyecto de evaluación, de
este programa de capacitación a mujeres campesinas y pudimos comprobar
que el 50% de alumnas, tomaban la experiencia como un trampolín para
asentar su vida en la ciudad. Recuerdo una anécdota: hace unos años, algunas
de las alumnas que conocí y que radican en Cajamarca querían organizarse
para formar una ONG y promover el desarrollo de su comunidad, me
pidieron apoyo para la organización, entonces les pregunté ¿Qué comunidad
quieren? ¿Qué encontraste en la ciudad, que no hay en tu comunidad?
Escuchar la frase “Promover el desarrollo de su comunidad” siempre mina mi
sentir, creo que es mirado desde fuera y no pensado como un proceso
individual y colectivo de construcción comunitaria. No duraron mucho las
reuniones con las alumnas.
Puedo decirle María Clara, que ser maestra es una experiencia extraordinaria
en la que más que enseñar aprendemos. Fíjese, su carta me ha hecho pensar
mucho en una época de mi vida que casi la había olvidado. Usted, en este
caso ha sido el motor de este aprendizaje y reflexión. ¡¡Usted, ha sido mi
maestra!!
Finalmente, María Clara, le copio un cuento de Eduardo Galeano, que
muchas veces leo para motivarme cuando voy a trabajar con las niñas, niños,
jóvenes y adultos.
María Clara, ha sido un gusto escribirme con usted, me gustaría poder seguir
en contacto, para poder ir reflexionando juntas.
Un abrazo desde Cajamarca.
María Isabel
(Narrativa escrita pela professora peruana María Isabel Gutiérrez Chávez em
resposta à carta de Maria Clara)

Considerações Finais
Portanto, a Rede de Docentes que Estudam e Narram sobre Infância,
Alfabetização, Leitura e Escrita (REDEALE) desempenha um importante papel na
formação das/dos discentes e também das professoras e professores já graduados. A
troca de experiências por meio das narrativas e diferentes formas de diálogo, seja por
Skype ou nos encontros, possibilita o crescimento enquanto profissional, mas também o
crescimento pessoal, enquanto sujeito. A vivência de escrever e trocar cartas enriqueceu
ainda mais essas experiências e essa formação.
Essa forma de diálogo aumentou a laço entre os países, garantindo maior
proximidade, na certeza de que a troca com o outro é o que forma e transforma, não
importando o espaço geográfico, ou mesmo a diferença de idioma, que sempre remete a
diferença cultural. O saber não tem barreiras e atravessa fronteiras.

Referências

sumário 784
VII Seminário Vozes da Educação

ANDRADE,M. L. C. V. O. A arte de escrever cartas e sua aplicação nas práticas


escolares. Linha d'Água, v. 30 p. 82-100, 2011

ARAÚJO, M. S.; MORAIS, Jacqueline de Fátima dos Santos. (Org.) Brasil-Peru:


Experiências Educativas a partir de uma expedição pedagógica. 1. ed. São Carlos –
SP; Pedro & João, 2018. v. 100. 171p.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política:ensaios sobre literatura e


história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social. São Paulo.
Ateliê Editorial. 2003.

CUNHA, R. C. A pesquisa narrativa: Uma estratégia investigativa sobre o ser


professor. In: 5° Encontro de Pesquisa em Educação da UFPI, 2009, Teresina. 5°
Encontro de Pesquisa em Educação da UFPI. Teresina; Edufpi, 2009. v. 1.

FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992.
Pp. 129-160.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 58a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2014.

LOPES, Jader Janer Moreira; VASCONCELLOS, T. Geografia da infância:


territorialidades infantis. In: Currículo sem Fronteiras, Países de Língua Portuguesa, v.
06, n. 1, pp. 103-127, jan/ jun 2006.

PRADO, Guilherme de Val Toledo; FERREIRA, Cláudia Roberta; FERNANDES, Carla


Helena. Narrativas pedagógicas e memórias de formação: escrita dos profissionais da
educação. Revista Teias, Rio de Janeiro, v.12, n.26, p. 143-153, set/dez.2011.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

CURSO REALIDADE BRASILEIRA: UM INTERCÂMBIO DE EXPERIÊNCIA


MILITANTE

Dennys Henrique Miranda Nunes


FFP UERJ
dennyshenriquemirandanunes@gmail.com

Introdução
O Curso Realidade Brasileira (CRB), organizado, inicialmente, pelo campo
popular, tem como atores de organização e atuação o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento dos
Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) entre
outros. Juntos, eles organizam uma formação política no entendimento de mudança da
realidade em que vivemos, sob a ótica do ensino-aprendizagem, sendo orientada pela
prática-teoria-prática da educação popular. Esse tipo de metodologia entende a ação
sobre a realidade, como um processo dialógico e indissociável entre a teoria e a prática.
A primeira turma foi organizada na Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJV) em 2001 com a ajuda de diversas organizações populares e teve a presença de
mais de 100 educandos. O curso tem como berço o entendimento e acúmulo das duas
grandes marchas do MST em direção à Brasília, nos anos de 1997 e 1999, que reuniu
milhares de pessoas. Assim, a ideia de organizar os diferentes setores do campo e da
cidade, para o entendimento da realidade brasileira é de uma iniciativa recente na
formação de quadros políticos no Brasil. Ela nasce após um longo período de
retrocessos nas políticas sociais no país, como o golpe militar (1964-1985) e as políticas
neoliberais de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, na década de
1990.
A turma do IV Curso Realidade Brasileira no Rio de Janeiro no ano de 2019, é
organizada após diversas derrotas da classe trabalhadora e de partidos políticos de
esquerda no âmbito local, regional e nacional. Ela é pensada em uma conjuntura política
de Estado de Exceção desde 2016, o qual tivemos uma quebra do regime democrático
de direito com o Impeachment (2015-2016) da Presidenta Dilma Rousseff. Além disso,

sumário 786
VII Seminário Vozes da Educação

tivemos a ascensão da extrema direita ao poder, marcado na figura do Presidente Jair


Bolsonaro e de diversas políticas de enfrentamento à educação pública.
A organização a qual faço parte, e fui selecionado para estar presente nesse
espaço de formação, é a Juventude do Partido dos Trabalhadores (JPT). Vale dizer, que
é a primeira participação da JPT no CRB no Rio de Janeiro; nas três primeiras edições,
que ocorreram em 2003, 2006 e 2013, só nesta última é que tivemos a participação de
militantes do PT participando da formação. Mas não enquanto representação coletiva da
JPT, mas de outras organização e entidades.
Em virtude dos retrocessos que vivemos, o entendimento sobre a realidade
permite que atuamos de forma crítica e cria a possibilidade de organizamos as camadas
populares para o enfrentamento da ordem opressora vigente. Para fazer essa leitura,
alguns autores têm baseado o curso, além da produção de uma Coletânea de textos da
Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), como, por exemplo, apresenta o projeto
do Curso no Rio de Janeiro em 2019:

Em 2012 foi lançada a série “Realidade Brasileira – Grandes Pensadores”,


uma produção fruto da parceria da TVE Paraná, Escola Nacional Florestan
Fernandes (ENFF) e a Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR), com apoio do
Ministério da Cultura (MinC). A primeira etapa desse projeto consistiu na
produção de um kit contendo seis documentários e seis cartilhas destinados a
resgatar e difundir a vida e obra de grandes pensadores brasileiros que
procuraram ao longo do século XX interpretar e explicar nossa realidade a
partir das diferentes áreas do conhecimento. Entre os pensadores escolhidos
para compor esse primeiro kit estão Florestan Fernandes, Paulo Freire, Darcy
Ribeiro, Caio Prado Junior, Celso Furtado, e Madre Cristina. (Projeto do
Curso Realidade Brasileira/RJ, 2019, p. 4).

O kit base de 6 textos foi pensado como uma estrutura mínima de módulos para
a realização da formação, sendo os temas: Educação popular e método de trabalho de
base; Formação social brasileira; O povo brasileiro e o racismo em nossa formação
social; O patriarcado na formação social brasileira; Questão agrária; Questão Urbana;
Recursos naturais, Gestão Energética e Geopolítica; Economia Política e Conjuntura e
atualidade do projeto popular para o Brasil são trabalhados.
Dessa forma, tenho como o objetivo geral da pesquisa a compreenção das
diferentes formas de formação militante nos cursos de educação popular na América
Latina, abordando como experiência inicial o Curso Realidade Brasileira da Escola
Nacional Florestan Fernandes (ENFF). Além disso, busco identificar as redes de
formação continuada no campo da educação popular, observando como essas práticas
permitem a compreensão da realidade partidária, sindical e educativa. Além, da busca

sumário 787
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de entendermos como a educação popular permite práticas diferentes e ações de


conhecimento da realidade em que vivemos.

Desenvolvimento
Os ataques que a educação vem sofrendo por políticas públicas que visam
esvaziar os ambientes de formação, com um caráter de privatizar o ensino fundamental,
médio e superior, só pode ser revertido com organização e luta. Através desse
entendimento, é preciso que tenhamos uma educação que não apenas forme mão de
obra barata, mas que possibilite uma Pedagogia da Autonomia, como nos ensina Paulo
Freire (2016).
Diante disso, o processo de formação emancipadora que é trabalhado nos
diversos cursos de trabalho de base do campo popular, sendo encabeçado pelo MST,
buscam a autonomia do conhecimento através do trabalho a partir da realidade temporal
e espacial de cada organização e educando, assim:

Refletir sore a formação humana na perspectiva emancipadora requer


delimitar uma intencionalidade; compartilho da ideia que não se realiza
formação no vazio, no nada. Assim, ao refletir sobre os processos formativos
inéditos viáveis, precisamos pensar o projeto histórico que temos e o que
queremos construir, e nesse bojo refletir que tipo de formação para qual ser
humano. (BOGO, 2015, p. 19).

Por isso, quando pensamos no inédito na educação e na vida, estamos pensando


sobre o que ainda não temos e não somos, mas sobre o que podemos ter e ser. E uma
educação humana, democrática, igualitária e georreferenciada faz parte desse projeto de
sociedade, sendo a educação um pilar estruturante.
A ideia de trazer pensadores e pensadoras nacionais para o entendimento da
realidade em que vivemos, aborda diversas áreas do conhecimento e permite o
entendimento do nosso cotidiano nas lutas sindicais, estudantis e políticas, como aponta
o trecho a seguir:

O Curso Realidade Brasileira vem para ir além desses caminhos já


apontados, buscando retomar os ensinamentos acumulados pela classe
trabalhadora, mas se recusavam a um pensamento eurocêntrico e formalista
em que o povo brasileiro está restrito a ser, no máximo, coadjuvante de sua
própria história. (Projeto Curso Realidade Brasileira/RJ, 2019, pág. 6)

Por isso, entendemos que existe a necessidade da produção e teorização nacional


sobre as nossas práticas, vivências e experiências, possibilitando, como nos ensina

sumário 788
VII Seminário Vozes da Educação

Walter Benjamin (1994), um intercâmbio de experiências sobre os diferentes


atravessamentos das nossas diferentes realidades. Tenho apostado que narrar processos
de formação docente e autobiográficos é olhar a história a contrapelo.
A educação que está sendo aqui pensada, é a educação como conduta para o
nosso entendimento enquanto seres políticos, historicizados e que constroem diferentes
espacialidades. Diante disso, a possibilidade do entendimento enquanto seres atuantes
no mundo e contra a opressão do status quo, abre margem para as insatisfações sociais e
que geram organizações, como aparece em “Educação como prática da liberdade”:

Se a conscientização abre caminho à expressão das insatisfações sociais é


porque estas são componentes reais de uma situação de opressão; se muitos
dos trabalhadores recém-alfabetizados aderiram ao movimento de
organização dos sindicatos é porque eles próprios perceberam um caminho
legítimo para a defesa de seus interesses e de seus companheiros de trabalho;
finalmente, se a conscientização das classes populares significa radicalização
política é simplesmente porque as classes populares são radicais, ainda
mesmo que não o saibam. (WEFFORT Apud FREIRE, 2012, p, 19).

Ao entendermos que a organização das classes populares passa pelo trabalho nas
bases sociais, e que esse trabalho é carregado de intencionalidade, precisamos nos
formar com eles e para eles. A educação como um ato político vai de contra as ideias
vigentes nos últimos anos do cenário educacional e político do país, onde programas
como o Escola Sem Partido, que buscam cercear o direito da educação crítica, estão a
todo tempo vindo aos debates. Além disso, não podemos esquecer dos cortes nas bolsas
de pesquisas, o sucateamento das agências de fomento, como o Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
Na formação de educadores populares e militantes de organizações partidárias
de caráter crítico e revolucionário, a educação das massas é um dos métodos de
conhecimento e intervenção no cotidiano em que vivemos. Por isso, temos privilegiado
os construtos de Paulo Freire, no entendimento de que a educação popular:

[..] é uma conduta, um compromisso, uma postura. É um ato político.


Portanto, não é neutra. O nosso trabalho formativo é voltado para a
transformação da realidade, de maneira que todas as pessoas tenham vida
digna e possam ser felizes. O saber científico ajuda a entender que a
violência, a miséria e a falta de perspectivas em que vive o povo não é
resultado de mera fatalidade. (Projeto do Curso Realidade Brasileira/RJ,
2019, p. 7).

sumário 789
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Diante disso, educar não pode ser visto como uma transferência de
conhecimento. O educador ao mesmo tempo que educa, também aprende com o
educando (FREIRE, 2016). E nessa ótica, a presença de educandos fazendo a facilitação
dos módulos no CRB é comum, visto que esse processo não está desassociado da
formação de ambos, além da questão do trabalho militante. A prática de dividir a turma
em Núcleos de Base (NB), faz parte da metodologia de aprendizagem, onde existe um
rodízio de tarefas como alimentação, segurança, mística, coordenação do dia e cultural.
Alguns autores têm me ajudado a pensar e refletir sobre a formação continuada,
a educação popular, os coletivos docentes, as narrativas autobiográficas e a formação
em redes docentes. Assim, aceitando que esses conceitos e métodos investigativos são a
base da pesquisa, que estou realizando enquanto um professor-pesquisador-viajante,
parafraseando Maria Teresa Esteban e Edwirges Zaccur. Entendo que,

Pesquisar pode se dar a partir de um questionamento, de uma pergunta, de


uma ideia fixa, articuladora de um processo empírico-teórico de uma
investigação. O nosso Machado de Assis já advertia por trás do espírito
crítico de Brás Cubas: “Deus te livre, caro leitor, de uma ideia fixa”.
(ESTEBAN e ZACCUR, 2002, p. 15).

Diante disso, o conceito que as autoras trazem de professora-pesquisadora


(2002), ao abordarem sobre a pesquisa como eixo e processo da formação docente nas
séries iniciais, nos ajuda a entender que o professor (a) e o pesquisador (a) não estão
desassociados. Assim, quando pensamos sobre os processos de ensino-aprendizagem
dentro e fora dos espaços formais de educação, estamos apostando no educador e na
educadora como atores que produzem conhecimento, narrativas e espacialidades.
O Curso Realidade Brasileira, como uma iniciativa de educação popular no
Brasil, é uma metodologia recente de formação política de sujeitos comuns. Assim,
atores que são considerados desimportantes para a história hegemônica, aqui ganham
amplitude de voz e são vistos como seres políticos. Essa opção metodológica, antes de
tudo tem um caráter político, e como nos ensina Walter Benjamin, é olhar a história à
contrapelo.
Essa análise passa pelo o entendimento de que as narrativas docentes fazem
parte de um processo formativo coletivo e individual. A modernidade é um período
onde produzimos muitas informações, as relações sociais estão sendo atravessadas pela
necessidade da rapidez e fluidez. Por isso, como no ensina W. Benjamin,

sumário 790
VII Seminário Vozes da Educação

É a experiência de narrar que está em vias de extinção. São cada vez mais
raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo
que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se
estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e
inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 1994, p.
198).

A experiência de se formar com o outro e não para o outro, está cada vez mais
escassa. A informação é diferente do processo narrativo, “ela só tem valor no momento
em que é nova.” (BENJAMIN, 1994, p, 204). A narrativa é vista como a palavra
compartilhada, que é vivida, que produz conhecimento e pode ser (re)criada diversas
vezes, dando diferentes significados para quem narra, escuta, escreve ou lê.
O cotidiano nos possibilita diversas experiências enquanto educadores. As
experiências e o seu intercâmbio estão atravessados por espacialidades que são únicas,
um exemplo, ainda usando as ideias do Benjamin, é o narrador do senso comum:

“Quem viaja tem muito o que contar”, diz o povo, e com isso imaginamos o
narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com
prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e
que conhece histórias e tradições. (BENJAMIN, 1994, p, 198-199).

Ao fazer a análise de que existem esses dois grupos de narradores, estamos


abordando sobre experiências do cotidiano vivido e valorizando essas outras formas de
conhecimentos e saberes. Assim, consideramos que “nada do que um dia aconteceu
pode ser considerado perdido para a história” (BENJAMIN, 1994, p, 223). Dessa forma,
a ideia de professor-pesquisador-viajante que aqui está sendo pensada, remete as
diferentes experiências vividas no âmbito formativo, apostando no intercâmbio entres os
educadores de uma mesma escola, bairro, município, cidade, estado ou país.
Por isso, a ideia de que não existe um eu que aprende e ensina, mas um nós que
aprendemos e ensinamos, dialoga com a educação popular freireana, onde o
professor/educador tem um papel de destaque, pois,

É fundamental, portanto, que o/a professor/a se instrumentalize para


observar, questionar e redimensionar o seu cotidiano. Tal movimento só se
torna concreto através do permanente diálogo prática-teoria-prática. A prática
sinaliza questões e a teoria ajuda a apreender estas sinalizações, a interpretá-
las e a propor alternativas, que se transformam em novas práticas, portanto,
ponto de partida para novas indagações, alimentando permanentemente o
processo reflexivo que motiva a constante busca pela ampliação dos
conhecimentos que se dispõe. (ESTEBAN e ZACCUR, 2002, p, 21).

sumário 791
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A narrativa sobre a própria prática possibilita o entendimento do conhecimento


como um processo dialético. Ele não tem um fim, não se esgota, a compreensão da
realidade educacional e social é dinâmica e precisa ser constantemente (re)pensada.
Aqui entre razízes e opções (SANTOS, 1996), optamos pela exaltação das
raízes, entendendo que,

O pensamento das raízes é o pensamento de tudo aquilo que é profundo,


permanente, único e singular, tudo aquilo que dá segurança e consistência; o
pensamento das opções é o pensamento de tudo aquilo que é variável,
efémero, substituível, possível e indeterminado a partir das raízes. (SANTOS,
1996, p, 9).

Diante disso, a educação como um instrumento de mudança da realidade precisa


ser pensada e colocada em prática como uma raiz por uma sociedade justa e
democrática. A possibilidade de emancipação dos homens e mulheres, que buscam uma
educação libertadora, que priorizem o diálogo e que tenham como objetivo a construção
da personalidade democrática e solidária, como nos ensina Paulo Freire em Pedagogia
do Oprimido (2016) é viável.
Como um dos métodos investigativos, darei privilégio a narrativas
autobiográficas que venho produzindo ao longo da formação no Curso Realidade
Brasileira, através da organização no núcleo de base e como integrante da Coordenação
Político-Pedagógica do curso. Assim, é importante entendermos como funciona a
metodologia de organização nos cursos do campo popular:

Desse modo, as turmas são organizadas em núcleos de base (NB) compostos


geralmente por dez educandos. Os NB são considerados espaços de
participação primária, são instâncias de base do processo de gestão tanto no
MST como na coletividade maior, como nos cursos de formação. São nos NB
que ocorrem todos os processos de debates, formação política e organização
das tarefas indicadas pela coletividade do curso. Eles não são espaços
artificiais; os membros de cada NB têm como atribuição conhecer os limites
e virtudes dos seus participantes, e contribuir na reeducação de seus membros
através da ajuda cotidiana, do companheirismo e da crítica e autocrítica. No
desenvolvimento desse processo de autogestão os professores em formação
são responsáveis pelo planejamento e realização de várias tarefas, realizadas
em forma de rodízio entre os NB. (BOGO Apud TAVARES, 2015, p, 33).

Ao abordar sobre a organicidade da formação de educandos do MST, Maria


Nalva Rodrigues de Araujo Bogo compartilha pistas de como a formação do campo
popular é pensada nos seus diferentes espaços, como acontece nos Encontros dos Sem
Terrinhas, na Formação de Jovens e Adultos do MST, na Formação de Educadores e,

sumário 792
VII Seminário Vozes da Educação

trago também, na formação de militantes políticos, como é o caso do CRB. A


organização através de núcleos de base permite trocas de saberes e experiências, pois os
núcleos buscam ser divididos de forma harmônica, não gerando disparidade entre
jovens e adultos, ou homens e mulheres.
Diante disso, trago aqui um relato autobiográfico que escrevi no caderno do
CRB, como forma de registrar as minhas primeiras impressões sobre a organização e
metodologia do curso:

Ainda não conhecia o que é o CRB, mas como era a oportunidade de


formação política, prontamente me coloquei a disposição. Eu já conhecia a
metodologia de ensino-aprendizagem do campo popular. Na disciplina de
Estágio Supervisionado no Ensino de Geografia IV, ainda na graduação, fiz
um trabalho de campo na Escola Nacional Florestan Fernandes. Lá foi
possível, mesmo sendo uma experiência de dois dias, aprender sobre a
divisão de tarefas em núcleos de base. (Relato Dennys Henrique,
09/06/2019).

Os registros das minhas experiências através dos cadernos de campo, foi uma
metodologia de escrita que aprendi como bolsista de Iniciação Científica do Grupo
Alfabetização, Leitura e Escrita (GPALE), coordenado pela Professora Dª. Jaqueline
Morais. As narrativas escritas de experiências nos possibilitam refletir sobre o saber da
experiência como aborda Jorge Larrosa (2002).

Considerações finais
Ao longo da experiência até aqui no Curso Realidade Brasileira, pude ter contato
com diferentes temas que nos ajudam a entender a dinâmica da formação territorial,
cultural e econômica do Brasil, por uma ótica da análise crítica e emancipatória, como
nos ensina Paulo Freire. Diante disso, a experiência vivenciada e produzida durante os
módulos, tem possibilitado a reflexão sobre a minha prática militante e de pesquisador
no campo da Educação Popular.
A possibilidade de aprender e ensinar com outros militantes organizados, como
o Levante Popular da Juventude, o Movimento dos Atingidos por Barragens, a Marcha
Mundial das Mulheres, a Consulta Popular e o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra, têm ampliado a minha percepção sobre diferentes realidades militantes na
cidade do Rio de Janeiro. Esse intercâmbio de experiências possibilita conhecer e
aprender realidade outras, realidades concretas que estão presentes em diferentes
espaços, seja no campo ou na cidade. Como nos ajuda a pensar Maria Bogo:

sumário 793
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Para o Movimento, as lutas econômicas, políticas, culturais e formativas não


estão separadas. Isso denota que as práticas formativas (reuniões, cursos,
encontros, debates, marchas, ocupações etc). desenvolvidas em diversos
espaços produzem possibilidades de mudanças coletivas a serviço da classe
trabalhadora, pois são vinculadas às lutas sociais. (BOGO Apud TAVARES,
2015, p, 37).

A experiência e o acúmulo político do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra


tem sido vanguarda no campo da formação política para o campo da esquerda no Brasil
e na América Latina. Uma demonstração disso, foi a inauguração da Escola Nacional
Florestan Fernandes em Guararema, São Paulo, em janeiro de 2005. Onde é possível
diversos seguimentos e coletivos políticos visitarem e fazerem cursos de formação. A
experiência do CRB, apesar de ser recente, tem sido destaque para a formação política e
crítica de diversos militantes.
O acúmulo dos tempos, espaços vividos que são construídos por diferentes
setores do campo da esquerda e do campo progressista, tem sido pouco compartilhando
no intuito da formação e da pesquisa. A metodologia de narrativas docentes e militantes
podem contribuir com esse aprendizado, na medida em que a experiência é viva e
formativa. Por isso, entendo que escrever nossas memórias de formação também se
constitui um ato político, onde diferentes pessoas, de diferentes lugares, podem
aprender e ensinar com atravessamentos do cotidiano, mudando a sua visão sobre a sua
realidade e o mundo.
Por isso, vamos escrever, pois como nos ensina Freire “é escrevendo que se
aprende a escrever”. Além disso, a narrativa e o diálogo permitem a troca de
conhecimento, assim como coloca Sérgio Haddad ao abordar sobre o método de Paulo
Freire:

Paulo acreditava no diálogo como método de apreensão do conhecimento e


aumento da consciência cidadã. Defendia que os educandos fossem ouvidos,
que exprimissem suas ideias como exercício democrático e de construção da
autonomia, de preparação para a vida. Propunha o diálogo efetivo, crítico,
respeitoso, sem que o professor abrisse mão da sua responsabilidade como
educador no preparo das aulas e no domínio de conteúdos. Era contra a
educação de uma via só, em que o professor dita aulas e o aluno escuta, o
primeiro sabe o e segundo não sabe, um é sujeito e outro objeto, como
detalhou em Pedagogia do oprimido. Para ele todos tinham o que aportar
nesse processo de diálogo, assim como todos aprendiam em qualquer
processo educativo: “Não há docência sem discência”, afirmaria. (HADDAD
Apud CÁSSIO, 2019, p. 145-146).

sumário 794
VII Seminário Vozes da Educação

É nesse ínterim dialético de troca entre ensinamentos e aprendizagens, é que


tenho pensado na formação de quadros políticos, pesquisadores e formação continuada
de professores. Aceitando que todos temos algo a aprender, assim como todos tem algo
a ensinar. A possibilidade do encontro com educandos de outros campos políticos, além
do qual se está organizado, permite essa troca de conhecimento, esse intercâmbio de
experiência militante.

Referências
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
In:______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BOGO, Maria Nalva Rodrigues de Araujo. Desafios aos Processos Formativos e


inéditos viáveis – 1964 e o tempo presente: apontamentos sobre a experiência do
MST. TAVARES, Maria Tereza. In:______. Educação popular, movimentos sociais e
formação de professores: os 50 anos do golpe militar de 1964 e a mobilização de
inéditos viáveis no campo social e educativo. / Maria Tereza Goudard Tavares, Márcia
Soares de Alvarenga e Catia Antonia da Silva (orgs.). – 1ed. – São Paulo: Outras
Expressões, 2015. 220 p.

ESTEBAN, Maria Teresa e ZACCUR, Edwiges. A pesquisa como eixo de formação


docente. In:______. Professora-pesquisadora: uma práxis em construção. Rio de
Janeiro: Editora DPIA, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido/ 60ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa/ 53ª ed –


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

______. Educação como prática da liberdade/ 14. ed. ver atual. –Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2011.

HADDAD, Sérgio. Paulo Freire, o educador proibido de educar. In: ______.


CÁSSIO, Fernando. Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela
liberdade de ensinar / Alessandro Mariano ... [et al.]; organização Fernando Cássio;
prólogo de Fernando Haddad. – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2019.

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista


Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-27, jan0abr., 2002.

NÓVOA, António. Carta a um jovem investigador em Educação. Investigar em


Educação, n. 3, p. 13-22, 2015.

Projeto Curso Realidade Brasileira, s/n, Rio de Janeiro, 2019.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A queda do Angelus Novus: Para além da equação


moderna entre raízes e opções. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 45, maio, 1996.

sumário 795
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

DESCOLONIZAÇÃO DOS CURRÍCULOS: NARRATIVAS E EXPERIÊNCIAS

Jéssica Gomes Carvalho 95


UERJ/FFP
jessicagomes.jsc@gmail.com

Mariana Carlos Alves96


UERJ/FFP
marianageouerj@gmail.com

Este artigo apresenta parte de uma pesquisa em andamento que se realiza no


contexto do projeto de pesquisa e extensão “Diálogos escolas-universidade: processos
de formação docente e produção dos currículos nos cotidianos”, que busca
compreender questões nos currículos que dizem respeito às produções cotidianas das
escolas e dos professores. O projeto está sendo desenvolvido este ano em uma escola
municipal em Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro. Buscando estudar a
presença no cotidiano escolar de questões que dialoguem com a lei 10.639/03 e
comtemplem a discussão étnico racial nos currículos produzidos. Usando narrativas
vividas e outras experiências, neste artigo será abordada a questão da colonização em
nossos documentos curriculares que é um ponto crucial para toda discussão, que se
desdobra em diante, pois nos permite problematizar a suposta neutralidade dos
documentos curriculares.
Neste grupo de pesquisa é possível conhecer um campo onde os cotidianos são
epistemologia e metodologia. Diante da especificidade desse complexo
teóriocometodológico 97 , surgiu há mais de 20 anos as pesquisas nos/dos/com os
cotidianos (ALVES e OLIVEIRA, 2008), que entre outras, trabalha a partir de

95
Bolsista de iniciação científica no grupo de pesquisa Diálogos escolas-universidade: processos de
formação docente e produção dos currículos nos cotidianos.
96
Bolsista de extensão no grupo de pesquisa Diálogos escolas-universidade: processos de formação
docente e produção dos currículos nos cotidianos.
97
As pesquisas nos/dos/com os cotidianos usa a junção das palavras para produzir um outro sentido para
a palavra, deslocando a dicotomização que o modo hegemônico de pensar, representado pela ciência
moderna tende a fazer.

sumário 796
VII Seminário Vozes da Educação

narrativas, que são filmadas e transcritas, e com imagens. Os pesquisadores do campo


têm desenvolvido ações que envolvem a pesquisa e a formação do próprio cotidiano da
escola, uma pesquisa intervenção. São consideradas pesquisas pós-qualitativas, na
perspectiva de considerar diferentes ordens das coisas e diferentes distribuições do que
temos sido e podemos ser.
Este artigo se desdobrará em três seções, que inspirada por Grada Kilombo que
em seu livro Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, traz nos títulos de
cada capítulo uma narrativa e ao lado os conceitos que serão abordados. Nesta seção,
cada título apresentado é uma narrativa ouvida ao longo desta pesquisa. Não serão
apresentadas apenas as narrativas dos encontros da pesquisa, mas também, narrativas de
estudantes de licenciatura que estão cursando uma disciplina que tem como tema
discutir as questões étnico raciais e narrativas que aconteceram em outras aulas, no
grupo de estudo, em palestras e em outros espaços, o que nos possibilita observar que o
assunto é recorrente em vários momentos, pois faz parte do nosso cotidiano.

“O currículo nunca é pensado neutro, sempre se quer algo com o currículo. Não
podemos ter uma visão ingênua.”
As frases que dão título a este capítulo foram ditas, por uma professora, em uma
disciplina de currículo e elas dialogam com a ideia que iremos discorrer adiante, pois
nos convida a deslocar a noção da neutralidade nos documentos curriculares. É possível
entender através das pesquisas nos/dos/com os cotidianos que os currículos não são as
listagens de conteúdos que têm nas escolas, isto são os documentos curriculares. As
pesquisas com os cotidianos, dialogam com os currículos como produção cotidiana, que
são tudo o que professores e alunos produzem no cotidiano escolar.
Tomaz Tadeu da Silva ao falar das teorias pós-críticas do currículo, destaca o
poder como elemento fundamental. A partir desses estudos pode-se perceber que um
documento curricular é construído socialmente. E essa construção é histórica, marcada
pelas disputas de poder. Ao questionar por que de determinadas disciplinas estarem nas
escolas, o porquê as matérias são fragmentas e o modo como são, perceberemos que
assim foram construídas historicamente. Com a noção de que o currículo é uma
construção social aprendemos que a pergunta importante não é “quais conhecimentos
são válidos?”, mas sim “quais conhecimentos são considerados válidos?” (SILVA,
2010, p.148). Considerar um conhecimento válido ou não nos permite indagar o motivo

sumário 797
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

da escolha. Quando falamos em uma época colonial, o que era considerado válido era o
que garantisse e afirmasse o poder do colonizador.

Depois das teorias pós-críticas do currículo torna-se impossível pensar o


currículo simplesmente através de conceitos técnicos como os de ensino e
eficiência ou de categorias psicológicas como as de aprendizagem e
desenvolvimento ou ainda de imagens estáticas como as de grade curricular e
lista de conteúdos. Num cenário pós-crítico, o currículo pode ser todas essas
coisas, pois ele é também aquilo que dele se faz, nossa imaginação está agora
livre para pensá-lo através de outras metáforas, para concebê-lo de outras
formas, para vê-lo de perspectivas que não se restringem àquelas que nos
foram legados pelas estreitas categorias da tradição. Com as teorias críticas
aprendemos que o currículo é, definitivamente, um espaço de poder. (SILVA,
2010, p.147)

Assim, é possível compreender o currículo como este espaço de produção, que


pode ser cotidianamente reinventado. Por isso encontraremos práticas docentes que
apesar dos documentos curriculares serem ideologicamente racistas, cotidianamente
problematizam esses documentos, buscando descolonizar suas práticas.
Diante disso, são visíveis fortes debates sobre o que deve ou não estar nos
documentos curriculares, o que expressa o grande campo de disputa que este é. Quando
se pensa em o que será retirado está se pensando em que sociedade se quer ter, pois se
entende que na escola será formado o cidadão.
Pensando no significado da palavra currículo, pode-se trazer sinônimos como
percurso, mapa, caminho. A escolha de um caminho mostra a intencionalidade que se
tem. Quando se escolhe os conhecimentos que irão compor um documento curricular,
os escolhem pensando, nos objetivos que se quer com ele. Quando naturalizam os
documentos curriculares se esconde tudo isso, não permitindo, ou dificultando, uma
reflexão acerca dele, o que nos faz aceitá-los sem problematizá-los e contestá-los. Ao
propor, às vezes impor, um projeto educativo, este está atrelado a um projeto de
sociedade, pois ao indicar um percurso, indica-se também o sujeito que deseja para
determinada sociedade. Quando se escolhe só contar a história do Brasil a partir da
perspectiva do europeu, que só nos mostra o negro inferior e escravizado, podemos
problematizar se o projeto não é inferiorizar o negro para este não interferir no modo
como as coisas estão, no status quo.
Com isso, se faz necessário estar atento e desconstruir a ideia de que um
documento curricular é neutro. A classe dominada sai da escola muito cedo. Quando se
fala em classe dominada no Brasil, estamos falando dos negros também. Olhando as
pesquisas de evasão, ou expulsão, escolar, veremos que a maioria era negro e o mesmo

sumário 798
VII Seminário Vozes da Educação

ocorrerá com os presos e mortos. É ingênuo pensar que isso é natural. A classe
dominada no Brasil tem cor! A pobreza no Brasil tem cor! Precisamos problematizar
porque essa cor é negra. Os documentos curriculares são mais um dos instrumentos de
manutenção e aprofundamento do racismo e da segregação (por causa das escolhas do
que abordar). Por isso as escolas se tornam importantes nesta discussão, quando
entendemos que o racismo é estrutural na sociedade brasileira.
A desigualdade entre negros e brancos na sociedade brasileira é bem evidente, e
é claro que essa desigualdade também aparecerá nas escolas. As representações
negativas sobre o negro também são difundidas no espaço escolar. Por muito tempo os
livros didáticos só tinham imagens de negros escravizados ou em trabalhos
considerados subalternos, assim, a imagem do negro inferior era disseminada. As
escolas não são lugares a margem da sociedade por isso, professores e alunos convivem
com o racismo ordinalmente, pois como Trindade (2008, p. 48-49) declarou

O racismo, como todas as outras ideologias de dominação, vai ser


reproduzido na escola, através da negação do aluno e do professor, negação
da sua história, da sua vida, dos seus modos de ser, pensar e agir, de se
expressar, que são tidos como inferiores aos do branco (classe dominante) e,
por isso, passíveis de submissão, de serem esquecidos e calados.

Essa negação ocorre no que podemos chamar de colonização dos currículos, o


que será abordado mais adiante. Uma narrativa que ocorreu na aula de estágio chama a
atenção, e ao ler “calados” na citação acima, foi possível recordar dela. Uma aluna ao
ser provocada a pensar algo da sua fase na educação básica e de um professor que tenha
marcado, logo lembrou, na verdade nunca esqueceu, de um episódio racista. Ela contou
que alguns meninos puxavam seus cabelos na sala de aula e isto a incomodava. Pedindo
para parar e não sendo atendida, ela falou para o professor que a disse: “Agora você
perdeu um ponto. Você é muito chata”. Neste contexto, a errada é a menina negra, pois
esta não deveria reclamar. Como pode alguém que não tem direto à fala, ficar
reclamando? A pessoa negra é que não tem que se importar com que os outros querem
falar, porque estes podem falar o que querem. Podem importunar alguém que não tem o
cabelo que eles acham que todos deveriam ter. Logo, este passa a ser passível de
submissão.
Pensamentos como estes ainda circulam em nossa sociedade. Talvez observando
a lei 10.639/03 alguém possa achar então que os governantes que estruturam o poder
institucional percebendo as desigualdades decidiram então sancionar esta lei. Porém, se

sumário 799
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

buscarmos a história desta lei, saberemos que esta, é sinônimo de luta. Se dependesse do
grupo dominante esta nunca existiria. Os bastidores e a trajetória desta lei nos dizem
que esta tinha a proposta inicial de ter uma disciplina obrigatória que estudaria a história
da África e a luta dos afrodescendentes no Brasil. Esta proposta nem votada foi no
senado, e depois de oito anos parada, foi arquivada. Só em 2003, quando o presidente
Luis Inácio Lula da Silva assume a presidência do Brasil é que assinou a Lei 10.639/03,
com algumas alterações do projeto inicial. A Lei foi deliberada da seguinte forma:

Art. 26-A Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e


particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira. § 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no
Brasil, a cultura negra Brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica
e política pertinentes à História do Brasil. § 2º Os conteúdos referentes à
História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura
e História Brasileiras. (BRASIL, 2003)

Essa lei é potencializadora das discussões nas escolas por seu caráter normativo

Quanto às inovações, é notório que se institucionaliza o ensino não só da


cultura como das lutas dos afrodescendentes. Passa-se da sugestão de se
“levar em conta”, para a obrigatoriedade. Neste sentido, o movimento negro
conseguiu um avanço de grande dimensão uma vez que, historicamente, “os
currículos demonstram uma seleção dos grupos que deviam ser representados
e de que forma” (SILVA, 2009, p.193). A lei 10.639-03 garantiu a
representação da “luta dos negros” e que essa se desse a partir de referenciais
identitários positivos, ao inserir a temática no currículo da base nacional
comum, como também na obrigatoriedade de que todas as escolas no Brasil
tratem desse tema. Inegavelmente, a valorização das identidades passa pelo
caminho da Educação. (SILVA, 2016, p. 37)

Mesmo com seu caráter normativo, a lei não se faz por si só, como disse uma
doutoranda em um dos encontros do grupo de pesquisa sobre a lei 10.639/03: “Se você
não se movimenta é uma lei morta”. Neste sentido, podemos concluir que a lei é a
institucionalização, é um fato importante, mas que precisa de pessoas para fazê-la
acontecer. Por isso, quando falamos da lei 10.639/03 precisamos observar os
professores e suas produções cotidianas de currículo. Não podemos acreditar que a lei é
como uma receita de bolo, que uma vez falada é só fazer e dará certo. É recorrente
ouvirmos ainda nas escolas: “Nossa, aquela pessoa é negra e tem atitudes racistas”, com
um tom de espanto, mas se pensarmos que o racismo é estrutural, entenderemos tal

sumário 800
VII Seminário Vozes da Educação

atitude. Por isso se faz necessário processos de desconstruções, desaprendizagens,


desformação e desconstrução, para enfim chegarmos à descolonização.

"O professor do meu irmão pulou a história da África, dizendo que aquilo não era
importante"
Esta narrativa foi dita por um aluno na disciplina que tem como tema, discutir as
relações raciais. O racismo é aprendido historicamente, culturalmente e socialmente.
Como nós, pessoas, somos seres sócio-histórico e cultural, estamos aprendendo a
sermos racistas também. Por isso, é possível enxergar pessoas negras, mas que não se
reconhecem, pois já está posto que ser negro é “algo ruim”. Um professor relatou no
grupo de estudos, que um aluno dele não se reconhecia como negro, pois o avô dele
disse, pelo fato do pai do aluno ser branco e a mãe negra, que "ainda bem que ele não
tinha puxado a cor da família da mãe". Podemos compreender que dia após dia a
ideologia do racismo não brinca de disseminar um pensamento e formar pessoas
racistas. Por isso são necessárias desconstruções. Como disse Gomes (2012, p.107) a
descolonização

(...) produzirá imagens desestabilizadoras, susceptíveis de desenvolver nos


estudantes e nos professores a capacidade de espanto e de indignação e uma
postura de inconformismo (...) Portanto, a descolonização do currículo
implica conflito, confronto, negociações e produz algo novo. Ela se insere
em outros processos de descolonização maiores e mais profundos, ou seja, do
poder e do saber (...)

São estas desaprendizagens que possibilitarão novas aprendizagens. Os espaços


que nos permitem desaprender é um espaço de formação. A maioria dos professores
aprenderam em um currículo colonizado, aprenderam a valorizar uma visão
hegemônica, aprenderam que só precisam falar de questões raciais em datas pontuais,
por isso são importantes os processos de desformação (LONTRA; EMILIÃO, 2017)
porque assim ampliam-se a possibilidade de termos práticas anti-racistas.
É importante ressaltar que uma vez que temos práticas anti-racistas, não estamos
livres de termos atitudes racistas em outras situações, pois o racismo está nas estruturas
culturais e para combatermos precisamos estar atentos, pois suas aprendizagens já estão
em nós. Uma professora disse em mais um encontro, que uma pessoa, que dialoga sobre
essas questões raciais, foi em uma palestra e ao ver duas pessoas negras chegando
pensou "ah, devem ser as merendeiras". Porém eram professoras. Essa pessoa, que era a

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

palestrante do dia, ficou se questionando como ela tinha caído naquela. É o que já foi
mencionado, o racismo todo mundo aprende. Por isso nos são importantes os des...
desaprender, desinformar, desconstruir e descolonizar.
Quando se coloniza um lugar, o colonizador chega impondo a sua cultura, seus
costumes e seus modos de ser, com o intuito de controlar aquela identidade. Com isso,
outros conhecimentos e lógicas são invisibilizados pelas lógicas hegemônicas, que só
permitem uma percepção. É legitimada apenas um modo de ser, o que torna o legítimo,
único.

É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder. Existe uma
palavra em igbo na qual sempre penso quando considero as estruturas de
poder no mundo: nkali. É um substantivo que, em tradução livre, quer dizer
"ser maior do que o outro". Assim como o mundo econômico e político, as
histórias também são definidas pelo princípio de nkali: como elas são
contadas, quem as contas, quando são contadas e quantas são contadas
depende muito de poder. O poder é a habilidade não apenas de contar a
história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva. O
poeta palestino Mourid Barghouti escreveu que, se você quiser espoliar um
povo, a maneira mais simples é contar a história dele e começar com "em
segundo lugar". Comece a história com as flechas dos índios americanos, e
não com a chegada dos britânicos, e a história será completamente diferente.
Comece a história com fracasso do Estado africano, e não com a criação
colonial do Estado africano, e a história será completamente diferente
(ADICHE, 2019, p. 22-23).

Falar dos negros no Brasil e não lembrar de como chegaram aqui, também pode
mudar toda a história. Os africanos foram trazidos à força para a América Latina,
processo que chamamos de Diáspora Africana, para serem escravizados. Um elemento
que se relaciona com a discussão que nos propomos a fazer nesse artigo é a árvore do
esquecimento: o Baobá.

Reza a lenda que antes de os negros entrarem no navio negreiro eram


obrigados a dar voltas em torno da “árvore do esquecimento”, cujo objetivo
era apagar de suas mentes toda lembrança e memória do passado, pois os
senhores de escravos acreditavam que, desprovidos de memória, de
identidade cultural e de raízes, se tornariam seres passivos, sem nenhuma
vontade de reagir ante as atrocidades da escravidão" (FEREIRA, 2012, p. 2-
3).

Os livros não contavam estas histórias, na verdade nem fizeram questão em


lembrar, pois o intuito, como se pode ver, era esquecer. Se hoje ainda não superamos
isso, podemos dizer que a descolonização ainda não ocorreu. É necessário darmos uma
volta inversa no Baobá.

sumário 802
VII Seminário Vozes da Educação

Outra questão é que não deixaram apenas de contar a história de um povo, mas
contaram, ou inventaram, o que quiseram falar. Se somente for visto o negro
escravizado nos livros, como queremos que crianças o vejam no mundo? Se as crianças
só escutam que o negro é perigoso, como queremos que elas assim não o reconheçam
como tais? Se as crianças escutam preconceitos das práticas religiosas africanas, como
queremos que elas a respeitem? É como fala Adichie (2019, p. 26) “A história única cria
estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que seja mentira, mas que são
incompletos. Eles fazem com que uma história se torna única história”.
Um discurso incrível pode ser presenciado no estágio, sobre essa questão da
religião, em uma turma de 1º ano de uma escola pública periférica da região
metropolitana do Rio de Janeiro. A professora se propôs a contar a história A Princesa e
a Ervilha, história que já possibilita a discussão sobre a cultura africana, pois conta a
história de um príncipe africano à procura de uma princesa, e traz ilustrações que
mostram a cultura africana. Já era possível imaginar que teria uma boa discussão a partir
do livro, porém algo imprescindível, como é cada dia na escola, ocorreu. Duas crianças
começaram a discutir, e o problema foi que o menino disse que a data de aniversário da
menina, era a data mais feia que tinha. Claro, a menina se indignou e não o deixou
afirmar aquilo. Querendo saber o porquê desta opinião, a professora perguntou ao
menino e ele disse que era porque nesta data as pessoas dão doces, nas ruas, que ele não
poderia comer. Era a semana do dia de São Cosme Damião e a professora percebeu que
talvez o menino estaria confundindo as datas. Ela perguntou porque ele não comia os
doces e ele respondeu que era porque ele era de uma igreja, e uma amiga da sua mãe
havia dito que pegou esses doces, NÃO COMEU (ele enfatizou bem isto), e queimou.
Quando ela queimou haviam vários bichos. A professora foi conversando e dizendo que
não era bem assim, que na verdade o doce não tem bicho e a pessoa falava isso por
preconceito a religião das outras. Ele rebateu, a conversa rendeu e a professora
enfatizou a importância de respeitar os pensamentos diferentes. Indo para a história e
vendo as roupas africanas se pôde ouvir algumas narrativas das crianças como:
“Princesa existe só na Inglaterra, nos Estados Unidos... Aqui já morreram”. A
professora exclamou e apontou para os livros: “Na África também existe”. Vendo as
princesas africanas uma disse: "antigamente eram vestidas assim". E a professora falou
que não era antigamente, mas eram outras culturas, diferentes da nossa. Vendo o rei
deitado em algo que parecia um tapete ou rede, e vendo que a casa não era um castelo
como são representados os reis, o menino disse: “Antigamente eles não eram iguais a

sumário 803
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

nós, eles eram pobres", e a professora insistiu: "Ele não era pobre não, ele era Rei”. Mas
como acreditar em um rei que não é loiro, não tem coroa e nem castelo? As crianças
associaram as roupas como algo do passado, pois não tem contato com essa cultura.
Para eles, aquelas imagens eram de pessoas pobres, pois o tipo de riqueza que se
valoriza é uma riqueza que vem de uma cultura ocidental.
Em uma palestra na UERJ Maracanã com a Carina Kaplan, professora na
Universidade de Buenos Aires, dirigente do Programa de Pesquisa em Transformações,
Subjetividade e Processos Educacionais, ela apresentou sua pesquisa, realizada na
Argentina, com crianças e adolescentes de camadas populares e de escolas públicas.
Falando um pouco sobre violência física e violência simbólica ela trouxe um vídeo, a
fim de problematizar a violência e o racismo, e evidenciar uma sociedade com matriz
racista. A Carina foi trazendo exemplos de violência simbólica que se transformava em
violência física e disse que uma adolescente ouviu: "Eu bato em você porque você é
negra". Adiante trouxe-nos um vídeo, onde crianças de 11 a 13 anos eram colocadas
diante de duas bonecas, uma branca e uma negra. Foram sendo feitas perguntas às
crianças e elas tinham que apontar para uma das bonecas. Quando perguntou qual era a
boneca mais bonita todas apontaram para a branca, e a mais feia, para a negra. Quando
tinham que indicar a mais inteligente, era a branca e a mais amiga também. Quando
questionada por que a negra era feia, uma criança respondeu: "Porque ela bate". Quando
perguntou qual era a amiga a resposta foi: "Esta, porque é branca". Quando perguntaram
por que a criança negra era feia uma respondeu: "Porque não gosto de cor de café".
Nessas narrativas é perceptível que o racismo ainda existe e negá-lo é não ter a
possibilidade de diminuí-lo. Reconhecer que fomos formados por três matrizes, e não
uma, é o começo para descolonizarmos e redistribuirmos os capítulos para contar essa
história. As crianças precisam conhecer outras histórias e para isso é preciso deslocar as
narrativas eurocêntricas e trazer outras narrativas para o centro das histórias.
Os negros precisam olhar nos livros didáticos, nas literaturas, nas escolas, no
mundo, e se encontrarem, se sentirem representados, não apenas vistos de maneira
inferiorizada. Trazendo essas histórias e memórias, valorizando as culturas africanas,
podemos visibilizar realidades menos desiguais e ouvir menos narrativas como:

“Pedir para a aluna se desenhar e ela se desenhou branca e de olhos azuis,


mas ela é negra”. (Aluna de pedagogia, relatando um dia no estágio)
“Temos uma aluna negra e ficamos sabendo que ela foi internada, pois tomou
banho de cloro, pois disseram que ela era negra”. (Palestrante em um
seminário sobre questões raciais)

sumário 804
VII Seminário Vozes da Educação

“Havia uma menina vista com problemas pois só usava lápis de cor preto e
marrom. Sua mãe foi chamada na escola e chegando em casa contou para sua
outra filha que a disse: "Ah mãe, ela é muito lenta. Todo mundo pega as
outras cores e só sobram o marrom e o preto. É por isso!". (Fala de uma
professora)

Precisamos nos incomodar com o fato da cor marrom e preta não caber nos
desenhos, com as piadas racistas, que muitas vezes são tidas como brincadeiras, com a
história eurocêntrica que perpetua práticas colonizadoras.

“Só estudo relações raciais se aparecer nas eletivas, se couber na grade, se eu


quiser”
Esta narrativa foi dita por um professor em uma aula que tem como objetivo
discutir questões raciais. Ele dizia isso pelo fato da disciplina ser uma eletiva e não
obrigatória. Na proposta da reformulação curricular para o curso de Pedagogia da
UERJ/FFP, a disciplina já aparece como eletiva. Umas das coisas que sempre chamou
atenção foi exatamente essa disciplina ser ofertada como eletiva. Somente neste
período, o sétimo, graduandas, conseguiram cursar esta disciplina, quase se formando
sem conseguir fazê-la. Essa questão se torna discutível quando pensamos o professor
como um elemento fundamental na descolonização dos currículos. Gomes (2003, p. 77)
afirma que

É também tarefa do educador e da educadora entender o conjunto de


representações sobre o negro existente na sociedade e na escola, e enfatizar
as representações positivas construídas politicamente pelos movimentos
negros e pela comunidade negra. A discussão sobre a cultura negra poderá
nos ajudar nessa tarefa. Mas isso requer um posicionamento. Implica a
construção de práticas pedagógicas de combate à discriminação racial, um
rompimento com a “naturalização” das diferenças étnico/raciais, pois esta
sempre desliza para o racismo biológico e acaba por reforçar o mito da
democracia racial. Uma alternativa para a construção de práticas pedagógicas
que se posicionem contra a discriminação racial é a compreensão, a
divulgação e o trabalho educativo que destaca a radicalidade da cultura
negra. Essa é uma tarefa tanto dos cursos de formação de professores quanto
dos profissionais e pesquisadores/as que já estão na prática.

Nos encontros do curso de extensão, na escola de Niterói, buscou-se perceber


por meio das "conversas" (GARCIA, 2014) o que os professores têm produzido de
currículo. Entendemos com base nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos, que os
currículos são as produções cotidianas de alunos e professores e as narrativas permitem
acessar este movimento de produção.

sumário 805
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

No primeiro encontro na escola onde estão sendo realizadas o curso de extensão,


umas das professoras relatou um projeto em relação a questão étnico racial. A ideia era
que os alunos relatassem casos de racismo e depois houvesse um debate. Porém, os
resultados foram tão “chocantes e tristes” que uma professora deu a ideia de apresentar
os relatos aos pais. Conversando em uma reunião elas decidiram fazer a apresentação
aos pais. No dia em que os pais foram à escola os relatos foram lidos pelas professoras,
sem antes dizer sobre o que se tratava. No decorrer dos relatos um dos pais percebeu
que aquelas eram falas sobre o racismo. Maravilhado ele começou a dizer: - “Vocês
estão gravando isso? Grava, Grava! Eles estão falando de racismo. Isso é muito
importante”. Pôde-se observar que crianças souberam relatar o racismo com um
domínio próprio de quem já o vivenciou e isso chocou as professoras, que decidiram
agir de uma maneira não antes pensada. Como disse um doutorando participante do
grupo de pesquisa, ao falar sobre o Café com Currículo na abertura deste semestre
“Fazemos a escola a cada dia”. Ouvindo uma professora deficiente visual, em uma das
rodas de conversa, relatando sobre a sua chegada à escola e sobre o seu contato com seu
aluno, onde foram tecidas algumas reflexões sobre a questão da representatividade. O
aluno, também deficiente visual, achava que iria enxergar, esperava o milagre
diariamente. Mas, no convívio com a professora se viu representado da maneira que é e
começou a se aspirar em uma profissão e também com uma família, pois vê isso na
professora. O negro em grande parte da história também não se viu/vê representado na
escola, pois por muito tempo os livros didáticos só tinham imagens de negros
escravizados ou em trabalhos considerados subalternos. Com isso, a imagem de que o
negro era inferior era disseminada. Negros que foram importantes historicamente, por
exemplo, eram esquecidos e priorizava-se a parte da escravatura. Assim podemos ver
que nos espaços escolares também podem estar sendo difundidas essas representações
negativas sobre o negro.
Pode-se conhecer acompanhando mais um dia da roda de conversa, um projeto
que a professora mobilizadora da conversa neste dia, realizou com sua turma de
alfabetização. O projeto se chamava Africanidades e seus objetivos eram mostrar a
riqueza da cultura africana, a diversidade do continente africano e suas relações com a
cultura brasileira. Uma das atividades que realizou consistia em um caderno, usado
como se fosse um glosário, onde os alunos pesquisavam palavras do nosso cotidiano,
que tivessem matriz africana. Em outro momento ela pediu que colocassem no caderno
pesquisas sobre as comidas, roupas e etc. Para desconstruir a imagem do “negro escravo

sumário 806
VII Seminário Vozes da Educação

e miserável”, a professora levou imagens de negros “poderosos”, trabalhando,


desfilando, disputando medalhas em competições, entre outras imagens e os alunos
escreviam sobre as imagens. Esta foi uma experiência de um currículo produzido em
torno da questão étnico racial, que se caracteriza como um resultado das buscas por
narrativas que trouxessem essas temáticas envolvidas com a questão étnico raciais.
Em uma das aulas de currículo, a professora disse que "a primeira pergunta que
se deve fazer ao decidir o que deve estar no currículo é se este conhecimento é
importante para o sujeito da sociedade brasileira". Com isso se torna ainda mais
legítima a lei 10.639/03, pois como disse Santos (2017, p. 277)

Outra forma de contar a história e a importância dos negros do Brasil seria


analisando que hoje chamamos de cultura brasileira. Apesar das imensas
dificuldades vividas pela população negra ao longo de toda a história do
Brasil, é inegável que a herança deixada pelos africanos e seus descendentes
é parte constitutiva da cultura brasileira.

Essa pesquisa ainda se apresenta com várias indagações a serem discutidas e


ainda outros questionamentos que podem se mostrar no cotidiano da pesquisa, que
poderão suscitar outras perguntas. Identificar em que contexto essas questões aparecem
na sala e como a discussão tem sido levada adiante, é relevante. Quando entendemos
que essa enorme desigualdade que ainda temos em nosso país foi construída
historicamente e socialmente, assim como nossos documentos curriculares, temos mais
clareza para enfrentar as fases das desigualdades, considerando o respeito e o
reconhecimento a este povo negro. Não se pode mais negar essa cultura, como por
muito tempo fez a ideologia dominante. A lei 10.639/2003 torna-se uma aliada neste
caminho que se coloca a percorrer.
Lembrar-se da Lei Áurea e acreditar que a mudança ocorreu de imediato é uma
ilusão. Ela não significou mudança imediata e nem mudança total. Muitos negros sequer
sabiam o que fazer a partir daquele momento que deixaram de ser escravizados. O
tempo passou, mas a luta continua. O preconceito, o racismo e a discriminação
continuam presentes na vida dos negros no Brasil e por isso não podemos cessar essa
discussão. Essa discussão é parte do passado, do presente e o sonho é que esteja no
futuro apenas para elucidar que a diversidade venceu e que a luta sempre vale a pena.
Como Martin Luther King sonhou, ainda devemos sonhar. Sonhar que as
pessoas sejam julgadas pelo seu caráter e não pela cor que a sua pele pode apresentar.
Nós temos um sonho... e lutaremos para esse sonho se concretizar.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Referências
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Companhia das Letras, 2019.

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das escolas. Petrópolis: DP et Alii, 2008.

BRASIL. Lei n°10.639, de 9 de janeiro de 2013. Altera a Lei n°9.394, de 20 de


dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para
incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira” e dá outras providências. Diário Oficial [da] Republica
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 10 jan. 2003. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm> Acesso em: 20 nov.
2018

FERREIRA, Amanda Crispim. “Recordar é preciso”: considerações sobre a figura do


griot e a importância de suas narrativas na formação da memória coletiva e afro-
brasileira. Revista Em Tese. v. 18, n. 2, 2012. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/3813>. Acesso
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GARCIA, Alexandra. "Defina metodologia": questões para pensar a pesquisa e a


produção de conhecimentos nos currículos e processos formativos cotidianos. In:
GARCIA, Alexandra; OLIVEIRA, Inês Barbosa de. (Org.). Aventuras de
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GOMES, Nilma Lino. Cultura Negra e Educação. Revista Brasileira de Educação, n.


23, p.75-85, maio/jun/jul/ago. 2003. Disponível em:
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GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos


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LONTRA, Viviane.; EMILIÃO, Soymara Vieira. (Des)formação de professores:


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sumário 808
VII Seminário Vozes da Educação

SANTOS, Ynaê Lopes dos. História da África e do Brasil Afrodescendente. 1. ed.


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SILVA, Maria de Fátima Barbosa. Histórias reveladas em águas escondidas: uma


ponte intercultural entre as demandas sociais e o Ensino de História. 2016. 133p.
Dissertação. (Mestrado Profissional em Ensino em Educação Básica)

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documento de Identidade: uma introdução às teorias do


currículo. 3.ed. Belo Horizonte: Autencia Editora, 2010.

TRINDADE, Azoilda Loretto. O racismo no cotidiano escolar. In: BARROS, José


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Contribuições para uma reeducação das relações étnico-raciais no ensino básico. Rio de
Janeiro: Quartet-FAPERJ, 2008. p. 37-57

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

OFICINA PEDAGÓGICA: A LITERACIA HISTÓRICA E A


FORMAÇÃO EM SALA DE AULA

Jéssica Guimarães Barbosa


UERJ
jessik.verde@hotmail.com

Introdução
A proposta de realização da oficina surge como uma demanda do Colégio Ouro
Preto, instituição da rede particular de ensino que idealizou uma semana de formação
continuada para os professores da instituição com o objetivo de pensar as questões que
mais foram levantadas nos encontros pedagógicos e cotidiano do ambiente escolar.
Oficinas de caligrafia, oficinas matemáticas e outras oficinas que procuravam atender as
demandas internas da instituição, buscando valorizar a relação professor/aluno para que
assim seja possível alcançar os melhores resultados.
A importância da realização de oficinas pedagógicas no processo de formação
continuada e de compartilhamento de experiências se faz central para o aperfeiçoamento
didático do professor. As possibilidades de promover dinâmicas em que todos os
presentes interajam e trabalhem a temática em conjunto é fundamental para romper as
possíveis hierarquias que pensam o conhecimento como algo passível de ser transferido.
Quando substituímos a palavra transferência por construção coletiva, estamos
atribuindo tanto ao professor, quanto ao aluno as potencialidades no processo de
construção do conhecimento, realizado em meio as trocas e investigações realizadas em
sala de aula. A ideia de passividade não se aplica a realização de oficinas, na prática das
oficinas todos os presentes se constituem como protagonistas.
As possibilidades formativas produzidas em atividades que possuem como foco
a interação dos sujeitos e a construção coletiva do conhecimento é responsável por
possibilitar as ampliações práticas do conceito de formação. Quando pensamos a
educação de maneira diferenciada, isso é, pautada no diálogo, estamos constantemente
formando e sendo formados por ações, palavras, experiências, possibilidades e afetos.
Acreditar que a sala de aula é um espaço de formação coletiva em que professores e

sumário 810
VII Seminário Vozes da Educação

alunos igualmente são afetados por experiências formativas concretas e fundamentais


que constantemente alteram as práticas dos sujeitos envolvidos.
As oficinas foram pensadas inicialmente com o intuito de promover de maneira
lúdica o conhecimento, porém como as séries atendidas na oficina foram diversas,
escolhemos partir para o princípio do acolhimento e dos sentidos que as diferentes
formas e construções históricas vão ganhando em nossa vida, sem trabalhar com um
tema específico. Trabalhar com a afetividade e o interesse não é uma tarefa fácil, mas
procuramos demonstrar isso de maneira lúdica e interativa. Uma encenação em sala de
aula, trabalhar com a organização das cadeiras, com as práticas cotidianas, e de
organização dos alunos e com os materiais referenciais que os alunos já conhecem.
Todas essas marcas possibilitam que o aluno se familiarize com os fatos, com o tempo e
com o espaço.
Afetar e ser afetado é uma das características essenciais da prática educativa que
tem como centralidade o diálogo, a coletividade e a inovação. Ao trilhar esse caminho,
fomos procurar compreender as dimensões e necessidades que mais estavam presentes
na fala das professoras em relação ao ensino de História, e a partir dessa demanda
pensar os mecanismos da ludicidade e da interação que pudesse contribuir para a
superação de tais dificuldades apresentadas. Os pontos de maior tensionalidade entre os
professores e a prática foram as questões que envolvem a temporalidade, as dificuldades
de estabelecer ligações entre o presente e o passado que façam sentido no imaginário
infantil.
Esse conjunto de questões que comumente aparecem nas falas de professores e
alunos, refletem diretamente nas diferentes formas de dialogar sobre o assunto em sala
de aula, os professores por desejarem atender as expectativas dos alunos e os alunos por
procurarem associar a sala de aula ao cotidiano de diferentes formas. É em meio as
possibilidades e transformações dos cotidianos que a formação continuada e constante
dos professores se faz valer, favorecendo o compartilhamento das experiências e dos
conhecimentos produzidos dessa relação. Desse jeito, caminhando em direção a prática,
as oficinas que se configuram como atividades interativas têm se justificado, como uma
ferramenta pedagógica formativa que interage com a utilização das dimensões lúdicas,
históricas e afetivas em sua idealização.
As possibilidades de acesso a informações proporcionadas por diferentes meio e
mídias sociais contribuem para que a escola esteja a todo momento em constante
processo de atualização, superando as ideias de transmissão do conhecimento e

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

procurando promover a interação consciente do aluno ao processo de construção e


articulação do presente e do passado, como investigador de uma história que ainda está
em construção.
A superação da ideia de uma história única que explique a realidade nacional e
mundial está superada, agora, cabe a nós professores levar essa consciência histórica
para dentro de sala de aula. A história pensada a partir do conceito de literacia
possibilita a interação do aluno como um investigador do passado, que pensa o
contexto, as causas e as consequências a partir dos vestígios do tempo presente. A
possibilidade de analisar a história como uma constante disputa de poder entre
diferentes povos, essa realidade pode ser acrescida a realidade local desse aluno. Os
“porquês” que muitas vezes deixamos de responder ou associar aos temas de interesse
dos alunos vão construindo lacunas que acabam afastando esses alunos do interesse pela
história.

Metodologia
A difusão do conhecimento histórico produzido a partir de critérios
investigativos que se realizam na coletividade só é possível quando nos sentimos
pertencentes ou instigados a “buscar” sentidos para aquele conhecimento. O
conhecimento e as diferentes formas de produzi-lo interagem constantemente com a sala
de aula, já que mesma é um local próprio da construção do conhecimento com seus
diferentes sujeitos e diversificada interação entre eles.
No processo de idealização da oficina procuramos desenvolver mecanismos de
entrelaçamento dos temas centrais de discussão e o cotidiano desses professores, para
que dessa forma os mesmos conseguissem se ver acolhidos pelo conhecimento histórico
proveniente de cada história de vida e do bairro em que se localiza a escola, visto que
previamente, fomos informados que parte dos profissionais da instituição e a maioria
dos alunos residem no mesmo bairro do Colégio.
Para que a oficina pudesse ser realizada da melhor forma possível, pensamos
execução de 3 eixos temáticos que trabalharam com as questões da afetividade e
reconhecimento, tempo e espaço. Realizamos cada eixo a partir de uma atividade
diferente, com intensas discussões e participação dos professores, que compartilharam
suas práticas e dividiram suas angústias em relação ao ensino de História.
A primeira atividade começou, na prática, a ser construída uma semana antes da
oficina. Foi solicitado que cada professor pensasse em um objeto familiar antigo que

sumário 812
VII Seminário Vozes da Educação

seja capaz de despertar sentimentos familiares em sua trajetória pessoal e coletiva. No


dia da oficina muitos foram os objetos que passaram a compor a mesa de “retalhos da
história”, como investigadores que somos, foi sugerido que cada um escolhesse um
objeto da mesa (podendo ser o seu ou não) e a partir dele construísse uma narrativa de
interação com ele. Vinil, fita cassete, fita, álbum de casamento, uniforme escolar,
monóculo fotográfico, moedas, selos e cartas, todos esses objetos foram responsáveis
por orientar o desenvolvimento da primeira fase da oficina.
Os relatos dos professores foram os mais variados possíveis, desde experiências
positivas a experiências negativas, lembranças familiares ou de amigos, mas o objetivo
principal foi socializar as lembranças que são produzidas pelo relato do outro sobre o
seu objeto. Provocar no outro o sentimento de identificação com algo que nos constitui
como sujeitos, talvez, seja o objetivo principal e a tarefa mais difícil do “ser professor”.
Ao relatarem as histórias que foram sendo produzidas passaram a ocorrer interações
mais intensas, que dialogavam sobre as múltiplas experiências de um único fato ( fonte
histórica). E ao externalizar as diferentes construções foi possível observar a emoção
produzida na construção coletiva e interpretativa de cada fato.
O sentimento de pertencimento e de participação ativa no processo possibilitou
que a oficina começasse afetando e sendo afetada pelo conjunto de experiências que de
pessoais passaram a ser coletivas e em meio ao coletivo passaram a produzir um
conhecimento diferenciado, semelhante ao conhecimento produzido em sala de aula. O
fato das professoras estarem imersa em uma realidade conhecida, e que foi
intencionalmente abordada de diferentes pontos de vista possibilitou que novos
questionamento fossem inseridos ao dialogo, como por exemplo, o que faz com que
você se sinta acolhida? Quais as possibilidades de, como mediadores do processo
escolar, levar esse acolhimento para sala de aula?
As questões foram sendo levantadas e respondidas pelas próprias professoras
que passaram a socializar suas experiências positivas em relação ao resgate familiar das
histórias pessoais dos alunos, que não incentivados a reconstruir sua própria história e a
partir dela pensar o passado e o presente, relacionando as mudanças acarretadas com o
passar do tempo. Como era antes e como é hoje? Como eu era e como eu sou? Quem
constitui a minha família e quais as histórias e lugares por onde já passamos?
Essas questões contribuem para que sejam trabalhadas as dimensões do nosso
lugar no mundo, nosso papel crítico como investigador de um passado/presente/futuro
em construção. As possibilidades de completude entre a prática das oficinas e o ideal de

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pensamento da literacia histórica, trabalhados em conjunto podem vir a assumir


dimensões formativas que contribuem significativamente para a ampliação do conceito
de história em sala de aula.
Os outros dois momentos da oficina, no que se refere a relação territorial e
espacial foi sendo automaticamente inseridos na discussão. A proposta de pensar o
conteúdo a partir do condicionamento territorial local do aluno foi sendo pensado e
problematizado. Por exemplo, foi sugerido que os professores pensassem em uma forma
de aproximar os alunos da relação entre a chegada dos portugueses ao Brasil e o contato
com os indígenas, as professoras chegaram a resultados interessantes em relação a
realidade local e familiar dos estudantes. A realidade da casa do aluno com o seu quarto
e sua estrutura familiar estabelecida, a chegada de uma família diferente em sua casa.
Foi também sugerido por uma das professoras que trabalhássemos as potencialidades da
organização do espaço escolar, com suas divisões em salas que poderia se aproximar da
organização em capitanias hereditárias. E o aluno como investigador dessa realidade,
passaria a pensar os espaços a partir do conteúdo histórico, o que possibilitaria a
interação e intensa relação dos sujeitos.
Essas possibilidades de pensar criticamente que norteiam o conceito de literacia
se constitui um dos caminhos de aproximação do passado que os alunos muitas vezes
compreendem como distante e irrelevante para o presente, e que em conjunto trabalhem
para a construção de um futuro consciente de seus papéis.

Desenvolvimento
As potencialidades dos alunos devem ser sempre valorizadas, o aluno não é um
ser que chega a escola sem conhecimento. As ideias que constituem as teorias
construtivistas (SANTOS, 2014), assim como a literacia histórica reconhecem que os
saberes prévios dos alunos é um dos eixos centrais da ideia de construção coletiva dos
saberes. O reconhecimento dos saberes dos alunos é capaz de propiciar o diálogo, visto
que se compreendo que em meio a relação professor/ aluno um deles se reconheça como
superior, a tendência é que a relação passe a se estabelecer de maneira vertical, o que
reforçaria a ideia ultrapassada de levar conhecimento.
A necessidade de reconhecer as fundamentações/contribuições que os alunos
levam consigo para a sala de aula, a valorização das suas questões, dos seus
conhecimentos, de suas vivências e motivações que em outros espaços são colocados

sumário 814
VII Seminário Vozes da Educação

para escanteio, na escola deve ser valorizado como um facilitador do entrelaçamento do


aluno com as novas dimensões do conhecimento a que são apresentados. Pois é a partir
dessa valorização inicial que o aluno começa a compreender as potencialidades
existentes no saber. A importância de compreender e relacionar as dimensões do
aprendizado, associados ao respeito as diferentes formas de saber.
A compreensão por parte do professor de que muitas vezes o conhecimento do
aluno se configura como “(…) mais ou menos elaborados, mais ou menos coerentes, e,
sobretudo, mais ou menos pertinentes, mais ou menos adequados ou inadequados (…)”
(SANTOS, 2014,p. 21), é fundamental para a elaboração de caminhos possíveis que
possam auxiliar os estudantes ao constante aperfeiçoamento e pensamento crítico,
embasado em seus saberes familiar, escolar e regional para que dessa forma o
conhecimento passe a se aprimorar a ponto de se relacionar diretamente com as outras
formas de conhecimento.
A ferramenta facilitadora do conhecimento não se baseia na noção de
hierarquização do conhecimento, muito pelo contrário, é conhecendo as dimensões
necessárias para o desenvolvimento dos conhecimentos necessários ao saber escolar,
que se desenvolvem mecanismos que propiciem a interação e apreensão crítica dos
novos conhecimentos que lhe são apresentados. A construção destes, parte sempre
daqueles outros que o aluno já possui e que ressignifica e reconstrói em seu imaginário
em meio as novas experiências escolares a que são incorporados.
Segundo TAVARES (2012) é fundamental enxergar no aluno a capacidade de se
apresentar como “agente” de sua própria formação, com isso eles deixam de ser
compreendidos como expectadores e passam a vivenciar experiências de exploradores
do conhecimento. O processo de construção de autonomia discente deve ser incentivado
desde a educação infantil, na qual o aluno é compreendido como responsável no
processo de construção de novos conhecimentos. O processo de autorresponsabilidade
sobre o que é ou não proposto e desenvolvido em sala de aula, compreendendo que o
sistema de ensino-aprendizagem requer a participação de todos os “agentes” detentores
do conhecimento e sua intensa interação.
A participação ativa desses diferentes sujeitos só se concretiza de maneira
sustentável quando ambos compreendem que são fundamentais para o bom resultado
coletivo e individual (SANTOS, 2014). O aluno ao se tornar responsável pelo seu
conhecimento, acaba atribuindo ao professor o papel de mediador desse processo que
teria por objetivo facilitar a interação dos saberes. O professor como “gestor das

sumário 815
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

aprendizagens” (CARVALHO, 2014) nada mais é que o apresentador de ferramentas


que possibilitem a interação das situações conceituais e dos processos práticos,
incentivando o aluno a pensar criticamente a construção das situações e suas possíveis
consequências. A construção do conhecimento em meio a parceria entre o professor e os
alunos (SANTOS, 2014). A alteração do conceito de aprendizagem e de
autorresponsabilidade por parte dos alunos não contribui para a diminuição do papel
fundamental do professor, muito pelo contrário, o professor passa a assumir novas
funções, ficando responsável por organizar as aulas e instigar os alunos a pensar
criticamente os conhecimentos apresentados, selecionando materiais que possibilitem
desenvolver no aluno a capacidade de interação com o processo de investigação
(SANTOS, 2014).
Em suma, conhecer a realidade local dos alunos e trabalhar suas potencialidades
é uma das novas tarefas práticas da sala de aula (CASTELLAR, 2005). A centralidade
das diferentes formas de aprendizagem caminha lado a lado em meio ao processo de
ensino aprendizagem que valoriza as trajetórias dos alunos, o social e o emocional se
associam ao desenvolvimento cognitivo, formando não apenas bons alunos, mas
também bons cidadãos. O incentivo a participação nas investigações que contribuam
para o desenvolvimento de pertencimento do aluno em relação ao processo de aprender
(SANTOS, 2014).
As bases idealizadoras do pensar oficineiro que entrelaça os saberes práticos
investigativos da literacia histórica e a formação de professores possibilita a ampliação
do conceito de sala de aula e do papel do aluno em meio ao processo de ensino
aprendizagem. Pertencer foi a palavra que norteou o primeiro ato da oficina, construir
nas professoras presentes o sentimento de identificação com a prática histórica e
investigativa de valorização do conhecimento de cada uma delas, a partir desse
momento foi possível observar uma mudança de postura nas professoras em relação a
participação e posicionamento frente a oficina. E esse é, e será sempre o nosso desafio
diário em sala de aula, incentivar no aluno o sentimento de pertencimento e participação
no processo de ensino-aprendizagem.
A intensificação das relações horizontais entre professores e alunos que foram
constantemente incentivadas na oficina, ajudam a desenvolver as competências
formativas cognitivas e ao mesmo tempo, consegue perceber seus interesses e
motivações.

sumário 816
VII Seminário Vozes da Educação

O conceito de errado ou certo devem ser trabalhados, para que em meio a


experiências formativas o aluno consiga compreender o que pode ser superado ou
potencializado do seu conhecimento prévio, esse tipo de construção deve ser realizada a
partir do constante diálogo entre professor/aluno e aluno/aluno (SANTOS, 2014).
O encorajamento do aluno a tentar descobrir, de pensar e discutir coletivamente
as possibilidades de resposta. A autonomia e a iniciativa de dar o ponta pé inicial e
coletivamente com o auxílio do professor chegar a um denominador comum é suficiente
para provocar no aluno a ruptura com a ideia de história pronta e distante de sua
realidade.

Resultados e Discussão
São muitos os desafios que o Ensino de História vem tentando superar, a ruptura
com teorias que hierarquizavam o conhecimento e exclui-a os sujeitos, a desvalorização
das histórias locais em função da valorização das histórias universais e homogêneas de
valorização das nacionalidades. A substituição dos valores positivistas e a
transformação e ampliação dos caminhos possíveis da história provocada pelos
questionamentos da Escola dos Analles, vem possibilitando que outros conceitos
referentes a fonte histórica, a valorização da história oral e dos saberes locais fossem
ganhando lugar.
No decorrer desse conjunto de mudanças tem sido possível implementar novos
mecanismos provocadores de situações que contribuam para que o ensino de História
possa ser gerido a partir do entrelaçamento do presente e do passado, que articulado
com o papel do professor, consegue provocar os alunos a ponto de possibilitar a criação
de um elo crítico entre as diferentes formas de conhecer e de aprender.
Os obstáculos que se realizam nas dificuldades de interação entre a teoria e a
prática tanto por parte dos alunos, quando por parte dos professores pode ser encarada
como um dos maiores desafios da sala de aula. A ruptura com os caminhos tradicionais
de superação da ideia de educação enciclopédica, que transfere o conhecimento do
professor para o aluno sem levar em consideração os saberes prévios e a capacidade do
aluno em produzir e ressignificar o seu próprio conhecimento vem sendo superada,
UFA!
E agora, o que fazer? A oficina teve por objetivo fazer com que o professor
inicialmente reconhecesse que ao se tornar parte praticante do conhecimento histórico,
ao se tornar um investigador dos objetos e compartilhar suas experiências o cenário e a

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

interação/participação dos mesmos na oficina foi modificada. Aquele olhar de


desconfiança, talvez, de insegurança deu lugar ao desejo de participar e se concretizou
na participação ativa dos mesmos em sua própria formação. A possibilidade de se
colocar no lugar do outro para trabalhar com questões de desinteresse e afastamento do
que compreendemos como importante ou irrelevante a nossa formação foi posto para
essas professoras de maneira prática.
Na grande maioria as presentes na oficina demonstraram um crescente interesse
em pensar criticamente as possibilidades de alterar e ampliar suas tentativas de construir
uma prática histórica em sala de aula que se aproxime mais com o conceito de literacia
histórica, que compreende criticamente o processo de formação e de participação ativa
dos alunos. Quando compreendemos a importância do conhecimento do outro e
atribuímos lugar de destaque a eles, estamos contribuindo para que o mesmo passe a
valorizar o seu próprio conhecimento que outrora, fora desvalorizado ou inferiorizado
em comparação com o saber científico.
Em se tratando do ambiente específico da sala de aula e das dinâmicas pautadas
no diálogo que ocorrem em seu interior, os saberes provenientes dos alunos facilitam o
processo consciente de participação e interação dos agentes quando os mesmos se
sentem valorizados. Começa assim a romper com o tradicional, procurando desenvolver
novos caminhos para a compreensão por parte dos alunos e dos professores da História
e das diferentes formas de produzir o conhecimento (BARCA, 2012).
As perguntas que podem ser feitas a esse processo deixam de estar relacionada
as questões centrais do professor e passam a ser norteadas nas perspectivas dos alunos,
deixando de ser “Como ensinar História” e passando a ser “como compreendem e o que
aprendem os alunos em História”(BARCA, 2009). Dessa forma, a compreensão das
formas de apreensão que interajam a fim de promover o olhar crítico do aluno em
relação as experiências do presente e do passado são mais importantes que “o que os
alunos sabem” o “como” dá lugar ao “que” e a história continua a se reescrever.
Essas mudanças sugeridas, e que começam a se inserir na prática da sala de aula
não tem por objetivo modificar a estrutura de pensar dos alunos e dos professores, mas
sim, possibilitar que ocorra a interação desses sujeitos em meio ao processo de ensino-
aprendizagem. A compreensão do seu papel de, como professores e alunos, consciente
das possibilidades e das experiências que podem ser vivenciadas contribuam para a
formação dos “agentes” nos diferentes campos formativos possíveis.

sumário 818
VII Seminário Vozes da Educação

Considerações Finais
As possibilidades de refletir sobre os impactos da oficina na prática pedagógica
das professoras pode ser inicialmente percebida no momento em que foram incentivadas
a produzir algo a partir de suas próprias experiências pessoais, visto que, as experiências
têm um papel fundamental na formação dos indivíduos. Segundo Walter Benjamin
(1994) a experiência, capaz de nos atravessar(marcar) produz efeitos mais significativos
em nossa formação do que a simples informação. As experiências e nossas vivências
instituídas como conhecimento prévio é capaz de alterar os sentidos de história que nos
são construídos. Ao analisarmos uma informação que não parte de uma perspectiva
conhecida e uma outra informação que é acrescida de um relato de experiência que nos
é comum, acabamos por construir um vínculo que possibilita o melhor entendimento e
alteração dos sentidos que em algum comento construímos como “agentes” da história.
Nesse sentido, o afeto e o cuidado em valorizar o que temos inicialmente é
projetar um futuro com um entendimento do presente e do passado que contribua para a
formação não apenas histórica do aluno, mas para a sua formação como cidadão. Os
processos formativos a que professores e alunos experienciam diariamente em sala de
aula e em outros diversos espaços de socialização contribuem para a formação de
sujeitos ativos capazes de pensar sua prática pautada em critérios cada vez mais
horizontais e dinâmicos.

Referências
BARCA, Isabel. Aula oficina: do projeto à avaliação. In: BARCA, Isabel (Org.). Para
uma educação de qualidade. Atas da Quarta Jornada de Educação Histórica. Braga:
Centro de Investigação em Educação (CIED)/Instituto de Educação e
Psicologia/Universidade do Minho, 2004. p. 131-144.

______. Literacia e consciência histórica. Educar, Curitiba, PR, n. especial, p. 93-112,


2006.

______. (2009). Investigação em Educação Histórica em Portugal: esboço de uma


síntese. Quintas Jornadas Internacionais da Educação Histórica (2009), p. 11-27.

______. Ideias Chave para a Educação Histórica: uma busca de (inter) identidades.
«Hist. R.» (2012), p. 37-51.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. Volume I.


Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994b.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista


Brasileira de Educação, n. 19, Jan/Fev/Mar/Abr, 2002, p.20-28.

sumário 819
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

CARVALHO, Carla Fernanda Salazar. O contributo das ideias prévias dos alunos no
desenvolvimento da aprendizagem conceptual em História e em Geografia: um
estudo com os alunos do 3.º ciclo do ensino básico. Braga: Universidade do Minho,
2013. Tese de Mestrado.

CARVALHO, Marina Alexandra Nunes Silva. A progressão do conhecimento


histórico e geográfico com base no levantamento de ideias prévias: um estudo com
alunos do 8.º ano de escolaridade. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias, 2014. Tese de Mestrado.

CASTELLAR, Sonia. Educação Geográfica: A psicogenética e o conhecimento escolar.


Caderno Cedes. (2005), p. 209-225.

sumário 820
VII Seminário Vozes da Educação

EIXO 2
HISTÓRIAS, POLÍTICAS E DIREITO À EDUCAÇÃO

sumário 821
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

RESSONÂNCIAS DO CAPITALISMO DEPENDENTE BRASILEIRO NA EJA

Adalberto de Moraes Gomes Filho


Fundação Municipal de Educação de Niterói
adalbertogfilho@uol.com.br

Introdução
Este artigo está inserido no projeto em andamento no mestrado em Educação da
Faculdade de Formação de Professores (FFP) – UERJ, na linha de pesquisa Políticas,
Direitos e Desigualdades Sociais, que se propõe a analisar os desdobramentos do
Capitalismo Dependente (FERNANDES, 2009)no processo de juvenilização nas turmas
do 2º segmento do Ensino Fundamental da Educação de Jovens e Adultos das escolas
públicas da rede de ensino do município de Niterói.
O objeto de estudo deste trabalho será examinado na perspectiva do
Materialismo Histórico e Dialético, a partir de três das suas categorias teórico-
metodológicas: totalidade, contradição e mediação.

Para Marx, a sociedade burguesa é uma totalidade concreta. Não é um "todo"


constituído por "partes" funcionalmente integradas. Antes, é uma totalidade
concreta inclusiva e macroscópica, de máxima complexidade, constituída por
totalidades de menor complexidade. [...]. Mas a totalidade concreta e
articulada que é a sociedade burguesa é uma totalidade dinâmica - seu
movimento resulta do caráter contraditório de todas as totalidades que
compõem a totalidade inclusiva e macroscópica. Sem as contradições, as
totalidades seriam totalidades inertes, mortas - e o que a análise registra é
precisamente a sua contínua transformação. [...]. Enfim, uma questão crucial
reside em descobrir as relações entre os processos ocorrentes nas totalidades
constitutivas tomadas na sua diversidade e entre elas e a totalidade inclusiva
que é a sociedade burguesa. Tais relações nunca são diretas; elas são
mediadas não apenas pelos distintos níveis de complexidade, mas, sobretudo,
pela estrutura peculiar de cada totalidade. Sem os sistemas de mediações
(internas e externas) que articulam tais totalidades, a totalidade concreta que
é a sociedade burguesa seria uma totalidade indiferenciada - e a
indiferenciação cancelaria o caráter do concreto, já determinado como
"unidade do diverso". (NETTO, 2011, p. 56-58).

Dessaforma, o método adotado possibilita compreender o fenômeno a ser


estudado, os impactos do Capitalismo Dependente brasileiro na EJA, como fruto de
múltiplas determinações, construídas historicamente.

sumário 822
VII Seminário Vozes da Educação

A presente pesquisa tem um caráter qualitativo.Afirmação, esta, embasada pelo


texto a seguir:

A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se ocupa,


nas Ciências Sociais, com um nível de realidade que não pode ou não deveria
ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo dos significados, dos
motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse
conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade
social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o
que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e
partilhada com seus semelhantes. O universo da produção humana que pode
ser resumido no mundo das relações, das representações e da
intencionalidade e é objeto da pesquisa qualitativa dificilmente pode ser
traduzido em números e indicadores quantificáveis. (MINAYO, 2009, p. 21).

Este trabalho tem por objetivo verificar quais desdobramentos o fato do Brasil
ser um país de Capitalismo Dependente repercutem na Educação de Jovens e Adultos, a
partir da leitura e análise de textos de pesquisadores que se debruçam no estudo deste
assunto.

Teoria da Dependência
A Teoria da Dependência surgiu a partir da crítica de estruturalistas e marxistas,
as duas vertentes existentes nesta linha de pensamento, ao processo de substituição das
importações. Segundo seus teóricos, o processo de desenvolvimento dos países
periféricos só pode ser compreendido no contexto das suas relações com os países
centrais.
Na relação de interdependência, os países centrais são os dominantes ao
mesmo tempo que os periféricos estão na situação de dominados. Essa relação se
originou no período histórico do colonialismo e do imperialismo, mas perdura até os
dias de hoje. Não existe um consenso sobre os fatores que motivam essa dependência.
Alguns estruturalistas dizem que o avanço das empresas multinacionais tem provocando
crises nas empresas nacionais dos países periféricos, muitas delas chegando ao
encerramento das atividades e, consequentemente, gerando um aumento no número de
desempregados. Outros, da mesma vertente, afirmam que as empresas multinacionais
criam padrões dependentes de consumo, pois contribuem para a elevação da
concentração de renda nos países dominados. Ainda existem outros que acreditam na
possibilidade da relação de dependência produzir altas taxas de crescimento econômico,
não estando os países periféricos fadados à estagnação, uma vez que a dependência

sumário 823
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pode variar de um país para outro, devido aos seus fatores históricos, econômicos,
sociais e políticos.
Por outro lado, a perspectiva marxista entende que a relação de dependência
reproduz o aumento da subordinação dos países dominados. O fato deles não possuírem
um parque industrial de bens de capital consolidado os fazem dependentes das
importações de máquinas e tecnologias dos países centrais, necessárias para a
implementação do processo de substituição das importações. Mesmo os países
periféricos mais industrializados não dominam, na maior parte das suas indústrias,
tecnologia moderna suficiente para competir com as empresas multinacionais que se
instalaram em seus territórios. Existe um outro fator que pode explicar a permanência
da dependência, a superexploração do trabalho pelo capital. Ela consiste na exploração
exacerbada da mão de obra dos países periféricos para compensar as remessas de parte
do lucro das empresas multinacionais para seus países-sede, normalmente, centrais.
As principais diferenças entre as duas vertentes da Teoria da Dependência estão
nas propostas que cada uma defende para superar a relação de dominação entre os dois
grupos de países e nos instrumentos analíticos utilizados para implementar tais
proposituras. Os marxistas, por motivos óbvios, adotam conceitos provenientes da
política econômica abraçada por Marx, mas discordam dele quando afirmam que o
crescimento do capitalismo, nos países periféricos, não traz características progressivas
tal como ocorre nos centrais. Devido a essa discordância, eles são chamados, por alguns
autores, de neomarxistas. A única saída possível para o fim da dependência, apresentada
por esse grupo, seria uma mudança para o modelo socialista de organização
socioeconômica em escala mundial. Já os estruturalistas afirmam que bastaria uma
reforma mais profunda do capitalismo, que pudesse dar origem a uma outra ordem
econômica internacional, para acabar com a relação de subordinação entre os países do
mundo.
O auge da Teoria da Dependência se deu nas décadas de 1960 e 1970, mas
mantém sua relevância até os dias de hoje. Passou por mudanças nas suas duas
vertentes, os marxistas passaram a denominá-la de Teoria do Sistema-mundo e os
estruturalistas, atualmente, são mais conhecidos como neoestruturalistas. (KAY, 2018).

O Capitalismo Dependente brasileiro e seu impacto na EJA


Na relação entre Capitalismo Dependente e educação, Florestan Fernandes é a
principal referência adotada por esta pesquisa. Duas das suas mais importantes obras

sumário 824
VII Seminário Vozes da Educação

contribuem para problematizar a EJA no contexto teórico oferecido pelo autor. Em


“Sociedade de classes e subdesenvolvimento” e “A Revolução Burguesa no Brasil”,
Florestan Fernandes aborda o dilema do desafio educacional brasileiro ao situar que o
Capitalismo Dependente está na gênese de classes e grupos sociais no Brasil e na
América Latina. Para Fernandes,

Os países latino-americanos enfrentam duas realidades ásperas: 1) estruturas


econômicas, socioculturais e políticas internas que podem absorver as
transformações do capitalismo, mas que inibem a integração nacional e o
desenvolvimento autônomo; 2) dominação externa que estimula a
modernização e o crescimento, nos estágios mais avançados do capitalismo,
mas que impede a revolução nacional e uma autonomia real. Os dois aspectos
são faces opostas da mesma moeda. A situação heteronômica é redefinida
pela ação recíproca de fatores estruturais e dinâmicos, internos e externos. Os
setores sociais que possuem o controle das sociedades latino-americanas são
tão interessados e responsáveis por essa situação quanto os grupos externos,
que dela tiram proveito. (FERNANDES,1975, p. 26).

O jogo desta ação recíproca mobiliza forças conservadoras e modernizadoras.


No entanto, no caso brasileiro, observa-se o predomínio das forças conservadoras que
modulam o acesso à educação como estruturante de seu projeto societário excludente e
elitista.
A análise da EJA brasileira deve ser feita a partir de um estudo da organização
socioeconômica do país. Historicamente, o Brasil se mantém subordinado aos países
centrais ocidentais, desde o período colonial até o presente momento. A subordinação
no período colonial pode ser observada em “O elemento capitalista do mercado colonial
era imposto de fora para dentro e realizava-se, de fato, através dos dinamismos jurídico-
políticos e econômicos dos mercados metropolitanos” (FERNANDES, 1975, p. 47-48).
Mesmo após a independência brasileira e a posterior Proclamação da República foram
mantidas as estruturas (sociais e econômicas) que deram origem a dependência que
existe em relação aos países centrais capitalistas.
Durante seu processo de formação como classe, a burguesia brasileira não
rompeu com sua subordinação ao capital internacional. Contrariamente, se manteve a
serviço dos interesses econômicos desse grupo, dividindo com ele seus ganhos
financeiros.
A coexistência entre o arcaico e o moderno brasileiros faz parte da forma
encontrada pelo Capitalismo local de promover um desenvolvimento desigual que
garanta a acumulação e reprodução do capital e perpetue a dependência.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Consoante Fernandes (1975), os países de Capitalismo Dependente poderiam


buscar sua autonomia através de dois processos revolucionários: a “revolução dentro da
ordem”, sem o rompimento com o modelo capitalista, mas propondo que sua burguesia
adote uma postura autônoma; e a “revolução contra a ordem”, através da adoção do
socialismo.
A relação de subordinação dos países periféricos é analisada por Quijano (2005)
a partir de outro ponto de vista. Ele introduz a categoria de raça para estudar a
dominação imposta pelos colonizadores europeus aos países da América Latina.

Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às


relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da
Europa como nova id-entidade depois da América e a expansão do
colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da
perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da
ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação
entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso significou uma nova
maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de
superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então
demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social
universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto
mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados
foram postos numa situação natural de inferioridade, e consequentemente
também seus traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e
culturais. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério fundamental
para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na
estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de
classificação social universal da população mundial. (QUIJANO, 2005, p.
118).

As origens do Capitalismo Dependente estão no tipo de colonização praticada na


América Latina, que impôs uma visão eurocêntrica do conhecimento, subjugando todos
os povos não-europeus aos interesses dos colonizadores.
Uma das formas encontradas pela burguesia brasileira para perpetuar a grande
desigualdade social existente no país foi a adoção de políticas públicas, voltadas para a
educação, que reforçasse a dualidade escolar. Dessa forma, temos escolas
profissionalizantes que atendem a classe trabalhadora e as clássicas direcionadas para a
elite. As intenções do primeiro tipo de escola citada estão claras em:

Na escola atual, em função da crise profunda da tradição cultural e da


concepção da vida e do homem, verifica-se um processo de progressiva
degenerescência: as escolas de tipo profissional, isto é, preocupadas em
satisfazer interesses práticos imediatos, predominam sobre a escola
formativa, imediatamente desinteressada. O aspecto paradoxal reside em que
este novo tipo de escola aparece e é louvado como democrático, quando na

sumário 826
VII Seminário Vozes da Educação

realidade, não só é destinado a perpetuar as diferenças sociais, como ainda a


cristalizá-las em formas chinesas. (GRAMSCI, 2006, p. 49).

A dualidade escolar era, e ainda é, utilizada para formar precariamente a mão de


obra da classe trabalhadora para o serviço técnico, afastando-a das tarefas decisórias,
intelectuais e científicas. Estas são destinadas à elite, contribuindo para sua perpetuação
no poder. Contra este sistema educacional segregador, Gramsci propõe a escola única,
onde todos, de qualquer classe social, receberiam uma formação mais humanista, geral,
na qual seria possível a construção crítica do conhecimento.

A crise terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta linha: escola
única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre de modo
justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente
(tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de
trabalho intelectual. Deste tipo de escola única, através de repetidas
experiências de orientação profissional, passar-se-á a uma das escolas
especializadas ou ao trabalho produtivo. (GRAMSCI, 2006, p. 33-34).

Freire (1994) também defende uma pedagogia dialógica, problematizante, que


valorize todos os conhecimentos produzidos pela classe trabalhadora para sua
emancipação, libertando-a da opressão imposta pela elite.
A EJA brasileira se apresenta como um dos locais de produção de conhecimento
onde se materializa as diversas formas de desigualdades sociais do Brasil: de gênero, de
raça, de classe, de gerações entre outras.
Observou-se no Brasil, nas décadas de 1990 e 2000, a implementação de
reformas, de cunho neoliberal, com o intuito de retirar alguns ganhos sociais e políticos
conquistados a partir da Constituição Federal de 1988. Esse quadro de mudanças vem
atender os interesses do capital internacional, colocando o país numa situação, ainda
maior, de subalternidade dentro da ordem hegemônica mundial. Foi neste contexto que
a reforma educacional brasileira foi posta em prática na década de 1990. A Lei de
Diretrizes e Bases (LDB) 9.394/96 e outras leis da área da educação foram
promulgadas, neste período, trazendo como mudanças principais a redefinição do
financiamento público da educação, a focalização das ações governamentais em grupos
de extrema pobreza e o acirramento do caráter compensatório das políticas públicas.
Essas reformas promoveram um significativo recuo nas políticas educacionais voltadas
para a EJA, reforçando o papel secundário que ela possui no cenário da educação
brasileira.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Porém, é preciso destacar um avanço trazido pela citada LDB, a expressão


Ensino Supletivo foi substituída por Educação de Jovens e Adultos. Esta mudança
conceitual foi elogiada por profissionais que atuam na área.

A mudança de ensino supletivo para educação de jovens e adultos não é uma


mera atualização vocabular. Houve um alargamento do conceito ao mudar a
expressão de ensino para educação. Enquanto o termo “ensino” se restringe à
mera instrução, o termo “educação” é muito mais amplo, compreendendo os
diversos processos de formação (SOARES, 2002, p. 12).

Em contrapartida, o art. 38 da LDB continua se referindo a cursos e exames


supletivos, não descartado, totalmente, os caráteres de suplência, correção de fluxo e
compensação da educação. A mudança nas idades mínimas para a realização dos
exames supletivos, de 18 para 15 anos no Ensino Fundamental e de 21 para 18 anos no
Ensino Médio, desqualifica a EJA e a escola, como espaços sistemáticos de formação de
cidadania, estimulando a certificação. A Educação Profissional ganhou um espaço, na
LDB, maior do que a EJA. Este fato demonstra que a última não é uma prioridade para
o poder público, que privilegia a preparação de jovens e adultos para o mercado de
trabalho e não para a vida.
As referidas mudanças nas regras de financiamento fizeram com que o Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério (FUNDEF), criado em 1996, não incluísse os alunos matriculados no Ensino
Fundamental, do então chamado ensino supletivo, no total de matrículas que teriam
direito ao repasse dos recursos desse fundo. Este impedimento provocou a redução de
ofertas de vagas do supletivo por parte dos estados e municípios brasileiros, que
passaram a dar prioridade ao ensino regular noturno, este sim abrangido pelas verbas do
FUNDEF, mas que não apresentavam nenhuma preocupação em adaptar seu currículo
de acordo com as demandas específicas dos jovens e adultos.
Reiterando a desqualificação da EJA, o Decreto nº 2.208/97 foi implementado
pelo governo federal, com o objetivo de institucionalizar a educação profissional. Ele
subdividiu essa formação em três diferentes níveis independentes, o primeiro deles não
exigindo qualquer tipo de escolaridade pré-existente. Estes cursos pouco contribuíram
para a formação ampla e profissional dos seus alunos trabalhadores.
Observou-se a partir desse momento uma nova divisão de responsabilidades
entre os Ministérios da Educação e o do Trabalho e Emprego. Cabendo ao último a
oferta da educação profissional de nível básico, em grande parte, através de cursos

sumário 828
VII Seminário Vozes da Educação

instrumentais de curta duração, financiados pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador


(FAT), voltados para as classes trabalhadores mais pobres. A execução desses cursos
cabia à diversas instituições da sociedade civil: ONGs, o Sistema S, entidades sindicais
representantes dos trabalhadores e outras.
O último decreto citado foi revogado por outro de nº 5.154/04, que, por sua vez,
não promoveu mudanças significativas na sistematização da educação profissional,
conforme ratifica Rodrigues (2005, p. 267) “o decreto apenas reconhece (ou naturaliza)
os diferentes projetos político-pedagógicos, clivados pela dualidade estrutural social,
presentes na sociedade de classes em que vivemos”.
A implementação de sucessivos decretos-lei não altera a marca histórica da EJA.
Ela continua sendo uma educação aligeirada, política e pedagogicamente frágil,
empenhada em preservar a organização social que atenda aos interesses hegemônicos do
capital, em reduzir os índices de baixa escolaridade e em combater as distorções idade-
ano de ensino. Ainda está distante de promover a emancipação da classe trabalhadora,
através da socialização dos conhecimentos produzidos historicamente.
Apesar da EJA ter ganho maior destaque durante o período do primeiro mandato
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, especialmente entre 2003 e 2006, sua
valorização ficou mais restrita ao discurso político. O aumento das ações públicas
direcionadas para esta modalidade de ensino não representou mudanças no seu perfil
descrito anteriormente, pois estavam centradas na ampliação da certificação,
especialmente do Ensino Fundamental, na formação profissional e, em menor grau, na
conclusão do Ensino Médio.
Entre os projetos implementados para a EJA, durante o período citado no
parágrafo anterior, merecem destaque: o Programa Brasil Alfabetizado, o Fazendo
Escola (ambos executados pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade – SECAD), o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (PROJOVEM), o
Projeto Escola de Fábrica e o Programa de Integração da Educação Profissional ao
Ensino Médio para Jovens e Adultos (PROEJA).
Os programas mencionados representam uma política de educação, para os
jovens e adultos da classe trabalhadora, que perpetua a dualidade do sistema
educacional brasileiro. Mantendo-os afastados dos processos de escolarização
sistemáticos e, ao mesmo tempo, estimulando-os à certificação. Por outro lado, aqueles
pertencentes à elite têm livre acesso a uma formação educacional mais ampla,

sumário 829
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

formadora de cidadãos com maior capacidade crítica e não, apenas, de mão de obra que
precisa ser inserida no mercado de trabalho.
A educação ofertada para os jovens e adultos brasileiros, da classe trabalhadora,
segue de forma coerente com o caráter subordinado que o Brasil se insere na
organização econômica mundial. Não são necessários grandes investimentos na
educação, pois o país se coloca no comércio internacional, predominantemente, como
produtor de insumos primários. Atividade, esta, que não exige maiores qualificações
profissionais, quando comparada com aquelas produtoras de tecnologias.
Seguindo a lógica da reprodução e acumulação do capital, a decisão de ampliar a
oferta de educação para os jovens e adultos da classe trabalhadora tem servido:

1) para exercer funções de controle social, mediante o alívio à pobreza,


revestindo-se, assim, de um caráter contenedor de insatisfações,
proporcionando aparentes soluções dentro da ordem capitalista;

2) como fator de difusão dos valores relativos à competitividade, à


empregabilidade e ao empreendedorismo, aos quais está subjacente a crença
na individualização da problemática do desemprego e a transferência estrita,
para o indivíduo, das iniciativas e responsabilidades referentes à sua situação
no quadro societário;

3) à qualificação da maior parte da força de trabalho para exercício do trabalho


simples. (RUMMERT, S. M.; VENTURA, J. P., 2007, p. 41).

A EJA carece de um outro olhar do poder público que não se restrinja às


políticas de governos que mantenham o perfil descrito acima, mas que possam ampliar,
também de forma qualitativa, a oferta de educação para os jovens e adultos da classe
trabalhadora. Tratando esta modalidade de ensino de maneira isonômica, quando
comparada com os demais segmentos da Educação Básica. Especialmente, no que diz
respeito a maior atenção na quantidade de recursos, ainda insuficientes, que precisam
ser repassados para colocar em prática as melhorias necessárias na, tão fragilizada,
Educação de Jovens e Adultos.
A par da relação entre trabalho e educação, na qual a EJA vem sendo
continuamente configurada, pode-se apreender que as legislações, atinentes a esta
modalidade de ensino, oficializam sua juvenilização, com um efeito deletério imediato.
Qual seja, jovens escolarizados pela via rápida da certificação, com o objetivo de
estarem disponíveis para o mercado, cada vez mais precarizado e sem garantias
protetivas da força de trabalho.

sumário 830
VII Seminário Vozes da Educação

Tal aspecto parece corroborar a ideia de que a legislação reflete muito mais um
sentido de direito à educação conformada ao Capitalismo Dependente, cujas leis
expressaram proposições de interesses de classe que organizam o arcabouço legislativo.
No Brasil, as legislações que envolvem as políticas governamentais de/para jovens e
adultos parecem confirmar, cada vez mais, a inexorável existência de sua conexão com
os projetos políticos e econômicos que foram e continuam sendo desenvolvidos no país,
condicionando a questão do direito à educação de jovens e adultos da classe
trabalhadora aos marcos ideológicos determinados por estes projetos.

Considerações provisórias
A construção da sociedade brasileira, ao longo da sua história, seguindo um
modelo de Capitalismo Dependente, gerou uma grande desigualdade social. Os avanços
econômicos encontrados para ampliar a produção e acumulação de capital não
reverberaram na redução dessas desigualdades. Muito pelo contrário, esta é a forma de
organização socioeconômica que a burguesia brasileira forjou para se perpetuar no
poder e se manter subordinada aos interesses do capital internacional hegemônico. Os
jovens e adultos da EJA, provenientes da classe trabalhadora, são vítimas desse modelo
perverso de sociedade, pois as políticas públicas voltadas para a educação reforçam a
dualidade escolar e não estão comprometidas com a emancipação desse grupo social.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 832
VII Seminário Vozes da Educação

A JUVENILIZAÇÃO DA EJA NO ENSINO MÉDIO NO ESTADO DO RIO DE


JANEIRO

Marcos Vinicius Reis Fernandes


FFP/UERJ
viniciusiserj@gmail.com

Introdução
O interesse em pesquisar a inserção de sujeitos jovens e em uma frequência cada
vez mais acelerada na modalidade de Educação Básica intitulada Educação de Jovens e
Adultos (EJA) se deu a partir da minha inserção no campo enquanto egresso jovem da
EJA do Ensino Médio. Ainda nesse espaço podia perceber diversas trajetórias de vida e
objetivos variados quanto à ocupação desse espaço, mas todos possuíam uma marca
social de classe, todos eram filhos da classe trabalhadora.
Neste trabalho, é interesse trazer à discussãoo fenômeno da juvenilização na
modalidade de ensino da educação básica denominada Educação de Jovens e Adultos
(EJA), especificamentena etapa do Ensino Médio da rede estadual do Rio de Janeiro.
Para corroborar com a análise traremos os dados do Censo da Educação Básica de 2018
e do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), coletados através do site
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
Através de pesquisa realizada por Sérgio Haddad, em 1987, intitulada “Ensino
Supletivo no Brasil: o estado da arte” pode-se verificar que o públicocomposto por
jovens na EJA, até então denominada Supletivo98, já era em um número considerável:
“são predominantemente jovens, tendo em sua maioria menos de 20 anos no 1º grau e
ate 25 anos quando considerados o 1º e o 2º graus conjuntamente” (HADDAD, 1987, p.
98).Assimevidencia-se que esse fenômeno não é algo novo.

98
Art. 27 da Lei 4.024/1961. Primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

sumário 833
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

SEEDUC e IDEB
Centralizando nossos esforços em analisar o movimento do fenômeno noEstado
do Rio de Janeiro, acreditamosser interessante fazer uma contextualização a partir do
investimento em políticas de ascensão ao Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica (IDEB) no período compreendido entre o último mandato de Governador do
Cabral e o primeiro de Pezão (2010-2014). Após a catastrófica penúltima colocação no
IDEB em 2009, a Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC) passou a ser gerenciada
pelo economista Wilson Risolia 99 , com o discurso de colocar o RJ entre as quatro
primeiras colocações do IDEB na edição de 2013.
Com base em um discurso em defesa da “qualidade” na educação, e dando
continuidade ao tratamento historicamente discriminatório dispensado à EJA, que o
então Secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro guiou sua gestão na pasta. A
concepção de qualidade elencada pelo gestor da pasta refere-se ao mercado
economicista, mercantilista. Nesse sentido, compartilhamos com o pensamento de que
“[...] este critério de adaptabilidade e ajuste ao mercado é profundamente negativo
(antidemocrático e dualizante) quando se aplica ao campo das políticas públicas do
setor educativo” (GENTILI, 1995, p. 132). Ainda segundo o autor, a introdução dessa
concepção de qualidade se deu na América Latina, sobretudo no Brasil, em um período
onde estávamos transitando de um regime totalitário a um regime democrático. Visando
barrar o avanço da construção de uma democracia radical, o neoconservadorismo age
pautado na demonização do Estado e na exaltação do mercado, de modo a silenciar
rapidamente questões importantes na relação Estado-Sociedade, como por exemplo, a
democratização da educação. Daí, “as demandas de democratização se imprimiram em
um marco caracterizado pela negação mesma de uma institucionalidade democrática ou,
mais corretamente, pela imposição autoritária de um novo tipo de democracia: a
democracia delegativa” (GENTILI, 1995 p. 120). Uma democracia controlada,
“tutelada”, pelas elites capitalistas dirigentes.
Pensamos ser incompatível a comparação entre a produção e o comércio de uma
mercadoria, um objeto, com a construção e o processo educacional; ainda mais em uma
nação marcada por grandes diversidades regionais e porprofundas desigualdades
sociais. Assim sendo, acreditamos ser falacioso o discurso da qualidade na educação

99
Graduado em Ciências Econômicas, pós-graduado em Engenharia Econômica, Desenvolvimento
Econômico e MBA em Finanças. Atualmente ocupa o cargo de Secretário Geral da Fundação Roberto
Marinho.

sumário 834
VII Seminário Vozes da Educação

quando o núcleo analisado se restringe a apenas o resultado de índices em exames de


larga escala, que omitem as demais realidades que permeiam as escolas e a rede
educacional, como por exemplo, precarização do trabalho docente, condições físicas da
escola, realidade social que a escola está imersa, realidade sócioeconômica dos
educandos, etc. Esse processo que se dá nas indústrias, de segregação das funções
manual x intelectual, é incompatível com um projeto educacional emancipatório,
embasado na reflexão e na promoção da cidadania.
É inviável o docente trabalhar como um vendedor, um agente do mercado, com
o objetivo de bater metas para receber bônus, como 14º salário, preparando alunos para
exames. Alunos são seres humanos que possuem limitações, diversidades,
desigualdades entre si, não são objetos que se produzem em série. Nessa lógica
mercantilista, de produção em série, Risolia começou a separar as peças que eram
consideradas “defeituosas” na produção, que fazia com que seus números não
avançassem no IDEB.
Inicialmente, sancionou a Resolução SEEDUC nº 4814/12 que estabelecia as
normas e procedimentos para ingresso e permanência de alunos para o ano letivo de
2013. A resolução estabelecia, em seu artigo quinto, os procedimentos para a Pré-
Matrícula Informatizada:

§2° - Somente poderão ser matriculados na 1ª série do Ensino Médio Regular


e Ensino Médio Inovador100 os alunos com idade máxima de 20 anos. (RIO
DE JANEIRO, 2012).

Políticas desse tipo que recortam o público da EJAatravés da idade influenciam


para o ingresso de jovens cada vez mais jovens na EJA. Uma juvenilização induzida,
com novas características, corroborando para aanálisede Lemos:

Um jovem que traz a exclusão do sistema educacional, muitas vezes pela


entrada precoce no mundo do trabalho, é diferente do jovem que, tendo
acesso e permanência garantidos, não teve o direito ao aprendizado, ele
mesmo excluído de uma escola para outra escola, muitas vezes sem que tenha
escolha, induzido à transferência, ou convidado a se retirar. A entrada desses
jovens inaugura uma busca de identidade dentro da modalidade. (LEMOS,
2017, p. 39).

O programa Ensino Médio Inovador – ProEMI - foi instituído pela Portaria nº 971, de 9 de outubro de
100

2009 do MEC, no contexto da implementação das ações voltadas ao Plano de Desenvolvimento da


Educação – PDE. Na SEEDUC/RJ estabelecia uma educação de tempo integral.

sumário 835
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Através destes excertos, a SEEDUC explicita seu projeto de educação gerido


pela burguesia “uma escola que discrimina, que nega o saber da classe dominada e que
a impede de expressar esse saber bem como de ter acesso ao saber elaborado e
sistematizado, ou lhe dá apenas acesso parcial, que inculca como universal a visão
burguesa de realidade” (FRIGOTTO, 2010, p. 251). Estas medidas operadas pelo
governo evidenciam o caráter da exclusão e hierarquização destes jovens no interior da
própria escola, impossibilitando o pleito a uma vaga no Ensino Médio Regular.Sujeitos
esses que mais uma vez são marcados em suas trajetórias por decisões impostas,
corroborando para seus futuros pré-estabelecidos.
Um dos fatores para a reorganização da rede estadual, elegendo a estratégia de
aceleração da escolarização de jovens considerados fora da “idade certa” para a série
frequentada tem a ver com a não participação da EJA e dos projetos de aceleração no
IDEB. Tal estratégia produziu desdobramentos que necessitam melhor ser analisados.
Entre estes, o de privar esse público que está fora da idade “certa”, mas em sua maioria
dentro da escola, de escolher a modalidade que gostaria de estudar, restando os exames
de certificações ou a EJA como as únicas possibilidades de prosseguir suas trajetórias
escolares.Em última instância, estamos diante de um fenômeno da juvenilização da
EJA, produzida pelas políticas em curso nas redes públicas escolares.
Através do gráfico abaixo podemos fazer um acompanhamento da linha do
Indicador de Rendimento, que referencia a Taxa de Aprovação, reprovação e evasão.

Gráfico 1 – Dados do IDEB e suas variáveis

TAXA
0,9
0,8
0,7
0,6
0,5
0,4 TAXA
0,3
0,2
0,1
0
2009 2011 2013 2015 2017

Fonte: o autor. Baseado nos dados do INEP.

sumário 836
VII Seminário Vozes da Educação

Ressaltamos que coletamos nas variáveis acima números referentes


apenas a rede pública estadual a fim de uma impressão mais real, contudo o IDEB
utiliza a média contendo os dados da rede pública e privada para montar o ranking dos
Estados e posteriormente gerar a média nacional. Através da representação é notório o
salto nos indicadores, contudo podemos ver o início de uma regressão dos números ao
fim do objetivo alcançado por Risolia, trazendo a tona às contradições denunciadas por
docentes, sindicato e pesquisadores. Na edição 2017 o RJ ficou na décima colocação
nacional.Cabe lembrar que este ano teremos mais uma edição bianual do IDEB, sendo a
primeira na vigência da Base Nacional Comum Curricular.

As políticas da SEEDUC para Jovens e Adultos


A EJA para o Ensino Médio na SEEDUC RJ foi instituída em 26 de agosto de
2003, através da deliberação do Conselho Estadual de Educação (CEE) n. 285. Em seu
Art. 1º é ressaltado que:

Os cursos de Educação de Jovens e Adultos autorizados pelo órgão


competente do Poder Público Estadual e oferecidos por instituições de ensino
privadas ou públicas que não integrantes da Administração Pública Direta do
estado e dos Municípios, devidamente credenciadas, qualquer que seja a
metodologia aplicada, não terão duração inferior a 24 (vinte e quatro) meses,
quando se tratar de ensino correspondente às quatro últimas séries do Ensino
Fundamental, nem inferior a 18 (dezoito) meses, quando em nível
equivalente ao Ensino Médio. (RIO DE JANEIRO, 2003).

A partir desta deliberação, a referida rede de ensino implementou a EJA no


Ensino Médio em três fases, a serem cursadas em 18 meses. No entanto, com a
assunção do novo Secretário, no final de 2010, e com a implementação de seu programa
de reformulação da pasta, algumas mudanças foram instituídas.
Devido ao perfil mercantil do novo gestor, a EJA passou a ser norteada também
por amostras de resultados. Deste modo, “tendo observado os desempenhos
insuficientes da fase III no Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de
Janeiro (SAERJ), foi introduzida na rede de ensino uma nova proposta de oferta de EJA
em quatro módulos, também semestrais”. (FRREIRA; HOTTZ e VILARDI, 2018, p. 1).
Em 2012, institui-se a Nova EJA, através do Parecer SEEDUC nº 091:

Para efetiva implementação desta política foi construída uma metodologia


completa, composta dos seguintes elementos: 1 – Matriz curricular
específica; 2 – Formação de professores da EJA; 3 – Material Didático
impresso do aluno; 4 – Material do professor; 5 – Processo de avaliação de

sumário 837
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

estudo; 6 – EJA virtual. Todos elementos estão concatenados temporalmente,


tendo como base a matriz curricular. A matriz curricular de referência está
estruturada em 4 módulos [...] A estrutura organizacional das disciplinas da
área de Ciência Humanas (Língua Estrangeira, História, Geografia, Artes,
Filosofia e Sociologia) e as da área de Ciências da Natureza (Biologia,
Química, Física e Educação Física) estão distribuídas em períodos alternados,
o que não se aplica às disciplinas de Matemática e Língua Portuguesa,
presentes nos 4 módulos. (RIO DE JANEIRO, 2012, p. 48).

Esta nova proposta para EJA traz em sua base “[...] uma metodologia que utilize
estratégias de despertar e desenvolver nos jovens e adultos, habilidades e competências
exigidas na sociedade e no mundo do trabalho” (RIO DE JANEIRO, 2012, p.5) e tem
como foco principal os conhecimentos de Língua Portuguesa e Matemática, pois são as
abordadas no SAERJ. Além do controle via o exame, a nova perspectiva para a EJA
diminui a autonomia docente, ao submeter que faça à utilização dos manuais didáticos
elaborados pela rede.
Em paralelo à oferta da EJA, a rede estadual também desenvolve, desde 2009,
um programa de aceleração de estudos para alunos que precisam concluir o Ensino
Fundamental e Médio. Denominado Programa Autonomia, este em parceria com a
Fundação Roberto Marinho “utiliza o material do Telecurso, livros e DVDs, e a
metodologia Telessala, que cria um ambiente de aprendizagem prazeroso, participativo
e estimula a pesquisa e a criatividade. O Autonomia tem um professor para trabalhar
todas as disciplinas”. (RIO DE JANEIRO, 2012).
Segundo nota oficial publicada pelo SEPE, há uma lógica valorativa pelo gestor
Risolia no programa Autonomia e nos demais que objetivam a correção de fluxo, pois
visam diminuir a distorção idade série e consequentemente influenciam diretamente nas
avaliações de larga escala:

[...] está em jogo a melhoria dos indicadores que compõem o IDEB: ao


acelerar a formação destes alunos (que levarão apenas um ano para completar
o ensino fundamental e 18 meses para terminar o ensino médio), o
“autonomia” diminui a distorção idade-série e a repetência escolar elevando
consequentemente o IDEB. Mas a que preço?” (SEPE, 2012).

Pensar essa política elencada pela SEEDUC nos leva a fazer uma reflexão junto
à Teoria do Capital Humano em que:

O processo educativo, escolar ou não, é reduzido à função de produzir um


conjunto de habilidades intelectuais, desenvolvimento de determinadas
atitudes, transmissão de um determinado volume de conhecimentos que

sumário 838
VII Seminário Vozes da Educação

funcionam como geradores de capacidade de trabalho e, consequentemente,


de produção. (FRIGOTTO, 2010, p. 51).

De acordo com a referida Teoria o indivíduo teria sua ascensão econômica e


social através da educação escolar, quanto maior o número de anos de treinamento,
escolarização, maior seria seu progresso, tendo melhores ocupações, com maior
prestígio e salário. Só dependeria dele, de seu esforço. Entretanto, para que se tenha um
maior “sucesso” escolar há certos fatores que influenciam diretamente, como por
exemplo, o fator econômico da família e a frequência escolar de seus pais. Inicialmente
já é possível perceber uma circularidade desta teoria do capital.
Historicamente o sistema capitalista em sua fase concorrencial, liberalismo, é
movido pela produção em um nível cada vez maior e com um gasto cada vez menor no
processo de trabalho. Nesse processo de concorrência se da à incorporação das
máquinas no processo produtivo. O papel antes exercido pelo homem, agora é realizado
pela máquina. Passa-se a uma “submissão real [...] em vez de o operário utilizar os
meios de produção, os meios de produção é que utilizam o operário”. (FRIGOTTO, 2010,
p. 94). Esse conhecimento científico que fazia com que o capital dependesse do
trabalhador agora pertence à máquina.
Na lógica para expansãodo capital, acontece o “movimento de autovalorização
do capital”, que consiste na acumulação, na concentração e na centralização do capital.
Na acumulação há a extração de mais valia que permite a concentração de riqueza nas
mãos de alguns poucos capitalistas. Já na fase da centralização ocorre a quebra de
alguns capitalistas, os pequenos. Esses acabam ou são agregados aos capitalistas
maiores, expropriadores são expropriados.
Essa mudança de panoramaem que havia muitos capitalistas em livre
concorrência ao panorama monopolista mexeu com a estrutura do sistema capitalista
formando um excesso de poupança e alterando sua taxa média de lucro.

Assim indicando a possibilidade histórica de sua superação [...] há a fusão do


capital bancário e industrial e a formação do capital financeiro vai revelar
como se vão determinando novas formas de relações de produção pelo
processo de concentração e centralização do capital – e a razão estrutural do
fenômeno político do imperialismo. (FRIGOTTO, 2010, p. 105).

O Estado deixa um papel dissimulado de neutralidade, antes exercido na


dinâmica da livre concorrência, e passa a um papel intervencionista, mediador do
conflito entre as forças sociais e produtor de mercadorias e valores. “Vai se caracterizar

sumário 839
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

como o patamar por onde passam os interesses intercapitalistas” (FRIGOTTO, 2010, p.


137). Nesse contexto chega-se ao âmbito educacional e pedagógico, com a promessa de
uma educação de qualidade, eficiente:

O remédio para tirar o sistema educacional da sua inoperância e ineficácia


era “tecnificar a educação”, isto é, conceber o sistema educacional como uma
empresa e aplicar-lhe as técnicas e as máquinas que haviam produzido ótimos
resultados no desempenho industrial. (FRIGOTTO, 2010, p. 140).

Diante dessa teoria vende-se a ideia que a apropriação de anos de escolarização


é um capital de tamanha importância, como o econômico, sendo através dele que se dáà
potencialização do trabalho. Através da escolarização o trabalhador teria as condições
necessárias para construir seu patrimônio, acumular bens. Embebida na meritocracia,
segundo essa lógica só dependeria do indivíduo. Com isso, há a naturalização e
legitimação da concentração de capital por parte das elites, dando a ideia de que éfruto
de um esforço, de merecimento.
Podemos abarcar uma crítica a esta proposta de elevação da qualidade
educacional que a SEEDUC propôs, levando-se em conta apenas o IDEB, pois “o
instrumental estatístico utilizado como um fim em si e a partir de pseudoproblemas se
constitui num elemento camuflador da realidade” (FRIGOTTO, 2010, p. 241). Ainda
perseguindo compreender a finalidade e superar o aparente frente à essa lógica de
exames de larga escala, vinculados à organismos internacionais, como o Banco
Mundial,Frigotto nos mostra ainda que esses organismos escamoteiam as relações
imperialistas de força, poder e dominação, mediante

o desenvolvimento da crença de que a desigualdade entre países não é uma


questão orgânica do sistema no seu conjunto, mas algo conjuntural que pode
ser corrigido mediante a alteração de fatores tais como a qualificação de
recursos humanos, a modernização etc. A passagem do subdesenvolvimento,
neste caso, passa a ser uma questão de tempo e adequação de fatores.
(FRIGOTTO, 2010, p. 245).

A Nova Educação de Jovens e Adultos (NEJA) e o Programa Autonomia têm


como objetivo possibilitar que alunos com idade acima da série frequentada concluam
seus estudos em um tempo menor que a Educação Regular.
Segundo informativo do site da SEEDUC, de 09 de outubro de 2012, a Nova
EJA foi elaborada em parceria com Fundação Centro de Ciências e Educação Superior à
Distância do Estado do Rio de Janeiro (CECIERJ), e implantada em sala a partir de

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VII Seminário Vozes da Educação

2013 em todas as escolas que ofertavam a EJA no Ensino Médio. As aulas são
presenciais, de segunda a sexta-feira. A Nova EJA tem carga horária diária reduzidade
três horas e vinte minutos por dia. É possível observar que no NEJAhá a preocupação
de se incluir de forma excludente (BORDIEU, 2007) tanto jovens e adultos que estejam
fora da escola,como aqueles que já estão dentro dela com a chamada defasagem idade-
série. Isto significa dizer que a elevação da escolarização pode ser garantida por meio
destas estratégias e modulações da oferta da EJA contribuindo para a ampliação das
possibilidades de acesso à certificação vazia. A despeito desta crítica, encontram
ressonâncias na expressão do que Gramsci (2000) compreendeu como sendo a “marca
social da escola”, com fins de perpetuar em grupos sociais “uma determinada função
tradicional, dirigente ou instrumental” (GRAMSCI, 2000, p. 49).
Podemos perguntar sobre qual o sentido de se aligeirar a escolarização de
jovens, produzindo a migração compulsória para a EJA, se a escola já é marcada
socialmente, destinada a estratos sociais desiguais?
Buscando caminhos para esse diálogo, temos como suporte metodológico o
método do Materialismo Histórico Dialético pensado por Karl Marx, no qual se
reproduz a realidade em todos os planos e dimensões. O homem diante da realidade, em
seu contato primário, age de forma prática no contato material com o objeto, a natureza
e com outros homens. Ele não se abstrai e analisa teoricamente e criticamente. Assim:
“[...] a práxis utilitária e imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o
homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e
manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas da realidade” (KOSIK,
2002, p. 14).
Visando superar à pseudoconcreticidade e buscar a compreensãodo fenômeno da
Juvenilização na EJA no Ensino Médio do Rio de Janeiro buscamos interpretar os dados
para melhor interpretar a realidade concreta. Dados em esferas macro e micro, nacional
e local; fim a decomposição do todo. “Os fenômenos e as formas fenomênicas das
coisas se reproduzem espontaneamente no pensamento comum como realidade [...]”
(KOSIK, 2002, p. 19), porque o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da
práxis humana, ademais totalidade não significa todos os fatos, mas a realidade como
um todo estruturado, dialético, de modo que possamos compreender racionalmente um
fato qualquer que seja.

Análise dos dados

sumário 841
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Fizemos um estudo do Censo da Educação Básica de 2018, através do site do


Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), onde
verificamos que o Brasil possui um total de 7.709.929 pessoas matriculadas no Ensino
Médio, sendo 7% das matrículas no estado do RJ e dessas 75% estão alocadas pela
Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC). Essa maior alocação
de vagas pela rede Estadual segue a recomendação da Lei de Diretrizes e Bases para
Educação(LDB) nº 9394/96. Propondo uma melhor visualização construímos o gráfico
abaixo.

Gráfico 2 – Percentual de Matrículas no Ensino Médio Regular

MATRÍCULAS ENSINO MÉDIO REGULAR

93% 75%
7%

25%

OUTROS ESTADOS RJ TOTAL SEEDUC FEDERAL, MUNICIPAL E PRIVADO

Fonte: o autor. Baseado nos dados do CENSO 2018 do INEP.

É notória a responsabilidade que possuem as redes estaduais, pois gerenciam as


escolas da grande massa trabalhadora. Essa situação se agrava na EJA, pois o percentual
de matrículas sob responsabilidade da SEEDUC équase 10% maior se comparado ao
Médio regular. Podemos verificar conforme o gráfico 3.

sumário 842
VII Seminário Vozes da Educação

Gráfico 3 – Percentual de Matrículas no Ensino Médio EJA

MATRÍCULAS ENSINO MÉDIO EJA

92%
84%
8%

16%

OUTROS ESTADOS RJ TOTAL SEEDUC FEDERAL, MUNICIPAL E PRIVADO

Fonte: o autor. Baseado nos dados do CENSO 2018 do INEP.

Ainda acordo o Censo Escolar 2018 podemos verificar que a modalidade EJA
vem perdendo espaço para o Exame de Certificação denominado ENCCEJA. Tal
perspectiva nos leva a pensar e buscar entender o processo de desescolarização e de
certificação vazia como uma hipótese do que vem se construindo no país. Através do
gráfico 4 propomos uma melhor visualização.

Gráfico 4 – Percentual de Matrículas Ensino Médio Brasil.

MATRÍCULAS BRASIL

13%

14%

74%

EM REGULAR EM EJA ENCCEJA EM

Fonte: o autor. Baseado nos dados do CENSO 2018 do INEP.

Através do exame, jovens e adultos podem obter o certificado de conclusão do


ensino fundamental e médio, desde que tenham, como requisito, 15 e 18 anos
respectivamente no ato da inscrição. Como resultado imediato dessa política de governo

sumário 843
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

visualiza-se o aumento do número de inscrições em 2019 de 75% comparando a 2018,


totalizando 2.973.375 inscritos. É a indução à adesão de uma “certificação vazia”.
Evidenciando a materialidade do fenômeno da Juvenilização, mostramos através
do gráfico 5 a faixa etária que predominantemente vem ocupando os espaços da EJA. O
gráfico abarca os dados da EJA no geral, incluindo Ensino Fundamental e Médio, pois o
INEP não disponibilizou os dados de forma específica a cada etapa. Podemos perceber
que esse é um fenômeno que não se limita ao RJ, mas sim perpassa o país.

Gráfico 5 – Percentual de Matrículas no Ensino Médio Regular

PERCENTUAL DA FAIXA ETÁRIA DOS ALUNOS DA


EJA ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO
80

60

40

20

0
BRASIL RJ

15 - 29 ACIMA DE 29

Fonte: o autor. Baseado nos dados do CENSO 2018 do INEP.

Considerações finais
Concluímos, de forma inicial, que as reflexões abarcadas junto à temática da
juvenilização da EJA do EM não podem ser analisadas deslocadas de sua historicidade e
de sua materialidade. Buscamos nesse movimento inicial trazer as primeiras reflexões
de modo a tentar superar a visão naturalizada do fenômeno; a pseudoconcreticidade.
Pensar a Educação de jovens e Adultos é pensar a relação de classe na
perspectiva de Marx. Assim realizamos uma análise da conjuntura do Estado brasileiro
e de suas implicações junto à sociedade. Vinculando infraestrutura e superestruturas, em

sumário 844
VII Seminário Vozes da Educação

comosuas implicações diretas no Estado capitalista brasileiro da Teoria do Capital


Humano.
Compreendemos que a escola possui uma relação mediata na sociedade de
classes e não imediata na produção. Assim o Estado em seu papel intervencionista, age
como representante dos interesses da burguesia, porém dissimulando a neutralidade.
Entramos este ano com uma nova gestão governamental, contudo os desafios
parecem de décadas atrás. Podemos acompanhar no início do ano letivo, através das
mídias de comunicação, as denúncias da população civil, sindicatos e movimentos
sociais a respeito da falta de vagas para matrícula no Ensino Médio. Um número
absurdo de 20 mil vagas. Uma constatação clara do não cumprimento da
universalização da educação básica.
Esta conjuntura remete à fatura de uma política de fechamento de turmas e
escolas, através daotimização, superlotando-as. Especialmente as noturnas de EJA, com
justificativa de falta de segurança pública. Ao invés de garantir a segurança, o Estado
fecha escolas.
Frente a esse panorama, é mais que urgente e necessária a luta por políticas
públicas de continuidade que valorizem a escola pública e a modalidade Educação de
Jovens e Adultos como um espaço de direito que possui suas particularidades objetivas,
rompendo com a concepção de um local de aceleração da escolarização/certificação dos
e das jovens. É, sobretudo, nesse espaço da escola pública que poderemos caminhar em
busca de um “bom senso” e de uma integração para revolução. O caminho possível para
formação de dirigentes oriundos das massas.

Referências
FERREIRA, C. S; HOTTZ, A. D e VILARDI, L. O. Um novo modelo de EJA para o
Ensino Médio no Rio de Janeiro. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.18222/
eae.v29i71.4707>. Acesso em: 19 dez. 2018.

FRIGOTTO, G. A produtividade da Escola Improdutiva: um (re)exame das relações


entre educação e estrutura econômico-social capitalista. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

GENTILI, P. O discurso da qualidade como nova retórica conservadora no campo


educacional. In: GENTILI, P; SILVA, T. T. (Orgs.). Neoliberalismo: qualidade total e
educação: visões críticas. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Vol. 3. Maquiavel. Notas sobre o Estado e


a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
HADDAD, S. Ensino Supletivo no Brasil: o estado da arte. Brasília: Reduc/INEP, 1987.

sumário 845
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

INEP. Sinopse Estatística da Educação Básica. Brasília, DF. 2018. Disponível


em:<portal.inep.gov.br/sinopses-estatisticas-da-educacao-basica>. Acesso em 19 maio
2019.

KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

LEMOS, A. G. de.Reflexões acerca da migração perversa de jovens para o Peja no


município do Rio de Janeiro.PPGEdu UNIRIO, 2017.

RIO DE JANEIRO. Conselho Estadual de Educação. Câmara de Educação Básica.


Deliberação CEE n. 285/2003, de 26 de agosto de 2003. Altera normas para o
funcionamento de cursos destinados à Educação para Jovens e Adultos, revoga os
artigos 7º, 8º, 9º e 12º da Deliberação CEE n. 259/2000, e dá outras providências. Rio
de Janeiro, 26 de agosto de 2003. Disponível em:
www.cee.rj.gov.br/coletanea/d285.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2019.

RIO DE JANEIRO. SEEDUC. Resolução n. 4814 de 27 de agosto de 2012a. Estabelece


normas e procedimentos para ingresso e permanência de alunos na rede Estadual de
Ensino/SEEDUC para o ano letivo de 2013 e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.rj.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=f02ae6c2-b004-4da8-9a5e-
a06f95b0f1ff&groupId= 91317>.Acesso em: 10 nov. 2018.

SEPE. Nota oficial do SEPE sobre o Projeto Autonomia da SEEDUC: autonomia para
quem? Rio de Janeiro, 2012b. Disponível em: <http://seperj.org.br/ver_noticia.
php?cod_noticia=2758>. Acesso em 16 jan. 2019.

sumário 846
VII Seminário Vozes da Educação

MICROFEITURAS ENTRE TRAJETÓRIAS E PRÁTICAS


FORMATIVAS NA DIFERENÇA

Raquel Rosa Reis Monteiro


UERJ/FFP
raquel.rosa.reis@gmail.com

Todo sistema de educação éuma maneira política de


manter ou de modificar a apropriação
dos discursos com os saberes e os poderes
que eles trazem consigo
(Michel Foucault).

Na educação, sabe-se notoriamente que, as trajetórias de formação estudantis


eprofessorais na escola básica são habitualmentepadronizadas por meio de políticas que
se pretendem prescritivasna orientação de práticas encarnadas epresas a discursos
políticos daquilo “que se pensa ser uma boa educação” (GALLO, 2014, p.20). Tais
discursos operam, obviamente,na constituição dos sujeitos numa estrutura que
simultaneamenteproduzo campo educacional, bem como, diferentes trajetórias.
Dos fazeres educativos institucionalizados, disciplinados, programados (em
relação àsmetodologias daeducação hegemônica)aos saberes que operam nas brechas
produzidas no encontro de experiências na escola básica, encontramos possibilidades de
pensar junto com Foucault, numa interessante análise, que nos permite problematizar os
enfrentamentos e jogos de poder que permeiam as trajetórias da educação
inclusiva.Poderiam as trajetóriasde encontrosconsiderados menores, produzidas na
escola básica, nos apresentar possibilidades decaminhos outros, a partir de experiências
e efeitos de encontros desnormatizadosdos saberes prescritos pelas políticas instituintes,
que operam sobre os corpos no processo de educação escolar para seguramente
complementar ou suplementar a escolarização dos estudantes?
Desse modo, intentamos no ensaio desta escrita, pensar a educação produzida a
partir daqueles acontecimentos micros, produzidos por meio da experiência na
alteridade, do encontro comprotagonistas do cotidiano na Sala de
RecursosMultifuncionais. Tensionamosainda, a padronização materializada

sumário 847
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

politicamente na institucionalização deste espaço, compreendendo-o para além de um


ambiente para encontros perspectivados sobre os moldes de diagnósticos e que,
geralmente, toma como discurso, a concepção de incompletude dos corpos na relação
pedagógica e na produção do encontro educativo.Preferimos ensaiá-lo e pensá-lo, como
espaço de experiências e de encontros entre trajetórias.

O poder encarnado aos documentos legais e seus efeitos nas trajetórias e práticas
(re) imaginadas de educação na diferença
O poder não existe fora das relações, já advertiaFoucault (1976). Assim, os
processos formativos e as práticas educativas que compõem a educação básica,
indubitavelmente, estão inscritas na sociedade trazendo consigo disputas, lutas e
políticas de estado que historicamente operam configurando o cenário das relações
educativas. Segundo Foucault(1976),o poder “se exerce e só existe no ato”
(p.18)produzido por uma ação sobre ação, “o poder não se resume a algo que pode ser
retomado, trocado nem dado e só há poder onde há liberdade, já que neste jogo
permanente e ao mesmo tempo recíproco, o poder precisa de sujeitos que enquanto
“livres’ teriam diante de si possibilidades para o embate” (FOUCAULT, 2005, p.18).
Assim, o poder não é coerção,ele se manifesta abrindo também um espaço silencioso
para a resistência.

Quando definimos o exercício do poder como um modo de ação sobre as


ações dos outros, quando o caracterizamos como “governo” dos homens [...]
incluímos um importante elemento: a liberdade. O poder só se exerce entre
sujeitos “livres”,enquanto “livres”-entendendo-se por isto, sujeitos
individuais ou coletivos que tem diante de si um campo de possibilidades
onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de
comportamento podem acontecer. Não há relação de poder onde as
determinações estão saturadas- a escravidão não é uma relação de poder [...]
trata-se de uma relação física de coação[...]. Neste jogo, a liberdade aparecerá
como condição de existência do poder (e, ao mesmo tempo, sua precondição
[...] (FOUCAULT, 2015,p.12)

No campo educativo, isso nos permite pensar a forma como se produzemas


trajetórias estudantis numa possível açãoentramada do poder político sobre os
sujeitos.Entendendo como Foucault, que as relações de poder incidem sobre a vida,
percebemos como fundamental movimento, pensar as lógicas instituintes quedão
contornos as trajetórias ditas “deficientes” na escola básica, no espaço da sala de
recursos multifuncionais, trajetórias essas produzidas por meio de discursos políticos no
campo da educação especialencarnada a relações de forças como:leis, normas, políticas,

sumário 848
VII Seminário Vozes da Educação

disputas que produzem estecampo e atuam na constituição de sujeitos que cursam este
espaço na escola básica.
Por outro lado, essa conversa também, permite-nos, simultaneamente, pensar em
modos outros de operar na educação por meio de resistência onde o poder se manifesta,
sobretudo por meio de saberes institucionalizados, médicos, normatizados e cimentados
nas propostas educativas inclusivas.
Não obstante a importância da emergência das políticas educativas inclusivas,
fato este de extrema importância quepossibilitou a escolarização de muitos estudantes
queantes não chegavam à escola regular. A questão que nos toma aqui, é quetais
trajetórias, por vezes,parecemestardesenhadas fundamentalmente num parecer
uniformemente guiado pelo discurso majoritário da norma, que orienta também o
discurso pedagógico que encerra ou “tolera” a permanência dos estudantes nas
instituições escolares a partir de uma obrigatoriedade de aceitação sobre o outro.
Claro que ao pensarmos nas formas como o poder político atua na constituição
de trajetórias de sujeitos ditos “com deficiência” na escola e especificamente o processo
de institucionalização política inscritano espaço da sala de recursos multifuncionais,
cabe-nos trazer aqui, inicialmente o conceito de trajetórias.
Em um contexto educativo que se inscreve alinhado eimbricado ao poder
político, o que seria pensar a educação entre trajetórias? Como pensar trajetórias de
encontros na sala de recursos multifuncionais na ordem do micro na educação?

Al hablar de trayectoria nos referimos a un recorrido, uncaminho


enconstrucción permanente, que tal como loseñalaArdoino (2005) vamucho
más allá de laidea de algo que se modeliza, que se puede antecipar ensu
totalidade o que se lleva a cabo mecanicamente respondendo sólo a algunas
pautas o regulaciones. No es um protocolo que se sigue, preferimos pensarlo
como um intinerario em situación. (GRECO e NICASTRO, 2012, p.23)

Expandindo o pensamento por meio dos interlocutores que conversam conosco


nesta produção,poderíamos refletir o queastrajetórias não são: não são “unespacio para
hacer algo de alguien” (NICASTRO & GRECO. 2012.p.46) muito menos é um espaço
de formação que fabricaestudantes,tão pouco se constitui em um único caminho para os
mesmos estudantes, também podemos supor que muito menos seja algo pensado tão
somente no plano institucional. Pensar em trajetórias é pensar no encontro de vidas com
sentidos que requerem sempre práticas de reinvenção a cada encontro. A caminhada vai
tomando forma sem um modelo ou meta predeterminada.Muito comumente, a

sumário 849
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

caminhada educativa de alunos com trajetórias estudantis outras, é narrada por alguns
profissionais da educação como inviável ou impossibilitada, visto que essas trajetórias
são fundamentadas pela ideia da norma ou da linearidade na formação.
Na contramão desse processo, Foucault (2005) nos apresenta
algumasconsiderações sobre os mecanismos de poder que compõem aregulação de
saberes ditoscientíficos, tecnológicos e normalizados produzidos dentro do que ele
chama de uma “centralização piramidal que permitecontrole desses saberes” (p. 216) e
consequentemente das trajetórias estudantis nas salas de recursos da escola básica.
Refletindo sobre o que o autor nos coloca, perceberemos uma disciplinarização
de saberesjurídicos que no interior de conjuntos institucionais,inscrevem-setambém na
escola econtornam, especialmente,as práticas educativas inclusivas controladas pelo
aparelho estatal. Contudo, tais saberes (normatizados) não nascem do interior
dasexperiências e práticas pedagógicas entendidas como não oficiais(porque não
regulamentadas em nenhuma lei). Os saberesproduzidos na relação com os outros, com
a experiência, habitualmente ficamfora do olhar normativo e científico porqueo
pensamentoque toma a ciência enquanto norma,não opera despossuído de parâmetros e
referenciais técnicos. Por isso, os saberes que pertencemao micro ou, da ordem da
experiênciana escola básica, comumente,são vistos como “inexperientes, inconsistentes
cientificamente, por isso nulos e habitualmente consideradossaberes desqualificados,
saberes não conceituais, saberes insuficientemente elaborados, ingênuos ou
hierarquicamente inferiores” (FOUCAULT, 2005, p.12)

E foi pelo reaparecimento desses saberes de baixo, desses saberes não


qualificados, desses saberes desqualificados mesmo, foi pelo reaparecimento
desses saberes: o do psiquiatrizado, o do doente, o do enfermeiro, o do
médico, mas paralelo e marginal em comparação com o saber médico, o
saber do delinqiiente, etc. - esse saber que denominarei, se quiserem, o "saber
das pessoas" (e que não é de modo algum um saber comum, um bom senso,
mas, ao contrário, um saber particular, um saber local, regional, um saber
diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas
acontundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam) -, foi pelo
reaparecimento desses saberes locais das pessoas, desses saberes
desqualificados, que foi feita a crítica. (FOUCAULT, 2005, p.12)

Do ponto de vista dos saberes ditos essenciais ao mundo da educação e


centralizados pelos discursos jurídicos e técnicos que dão funcionamento aos sistemas
regulares de ensino, se faz importante trazer (não desqualificando tais ações que
promoveram condições de acesso a pessoas consideradas público alvo da educação

sumário 850
VII Seminário Vozes da Educação

especial) algumas políticas públicas que conduzem os sistemas de ensino e


consecutivamente as trajetórias discentes e docentes.
Escolhemos como porta de entrada, no que se refere a documentos legais, que
são imprescindíveis para o entendimento do contexto educacional, social e político pelo
qual assegurou o direito à educação inclusiva nos sistemas regulares de ensino, a
Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008) e
o Manual de Orientação: Programa de Implantação de Sala de Recursos Multifuncionais
(2010) elaborado pelo Ministério da Educação através da Secretaria de Educação
Especial. Vale ressaltar que o que se coloca em questão em nossa produção, não é
compreender como aprendem os estudantes diagnosticados com deficiência, nem quem
são esses estudantes; “não é tanto quem é o outro ou o que acontece com o outro, ou o
que lhe falta,” (SKLIAR, 2012, p.2), mas talvez, operando para além destes conceitos,
para além das normatizações que organizam o ambiente da sala de recursos, pensar
“qual o pensamento ético que liga você com o outro, ou dois outros diferentes entre si”
(SKLIAR, 2012, p.2) para reinventar outras possibilidades neste espaço para estar
juntos, numa produção micropolíticado cotidiano da escola.
A educação especial,convencionalmente, “se organizou como atendimento
educacional especializado substitutivo ao ensino comum” (BRASIL, 2010, p.1) o que
levou a criação de “instituições especializadas, escolas especiais e classes especiais”
(BRASIL, 2010, p.2) reforçando o caráter de segregação e exclusãodos sujeitos
considerados desviantes da normativa padronizada dos corpos, mentes ou língua na
educação regular. Mais tarde, numaperspectiva integracionista, foram impulsionadas
ações políticas que provocaram reformulação nos sistemas educacionais de modo a
superar a dicotomia entre a educação especial e o ensino regular. Assim, consagrada
pelos movimentos mundiais de luta na perspectiva inclusiva cujo clamor representou
um impacto que ressoou social, política e historicamente, a educação especial alcançou
espaço e possibilitou a regulamentação da escolarização das pessoas ditas com
deficiência especialmente através da emergência da Política Nacional de Educação
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008), que, representando uma política
pública inclusiva de acesso universal à educação, reconheceu o direito “de todos os
estudantes estarem juntos, aprendendo e participando, sem nenhum tipo de

sumário 851
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

discriminação” (MEC/SECADI 101 .2008) afirmando como público alvo da educação


especial os seguintes estudantes:

*Alunos com deficiência- aqueles que têm impedimentos de longo prazo de


natureza física, intelectual, mental ou sensorial, os quais, em interação com
diversas barreiras, podem ter obstruído sua participação plena e efetiva na
escola e na sociedade.
*Alunos com transtornos globais do desenvolvimento- aqueles que
apresentam um quadro de alterações no desenvolvimento neuropsicomotor,
comprometimento nas relações sociais, na comunicação ou estereotipias
motoras. Incluem-se nesta definição alunos com autismo síndromes do
espectro do autismo psicose infantil;
*Alunos com altas habilidades ou superdotação- aqueles que apresentam um
potencial elevado e grande envolvimento com as áreas do conhecimento
humano, isoladas ou combinadas: intelectual, acadêmica, liderança,
psicomotora, artes e criatividade. (BRASIL, 2010, p.7)

A leitura desses documentos nos permite“forçar o pensamento a pensar”


queDeleuze (1988): introduziu-se, por força de lei, ali nas escolas e/ou nas salas de
recursosalguém/umas trajetórias das quais não se quer conviver ou educar? Sendo
assim, se sustentaria a ideia de estar juntos nas escolas ou sutilmente aquele seria o
espaço institucionalizado para “tolerar” a existência outra demarcando a anormalidade?
Uma trajetória de pensamentos vai se forjando e me permite pensar, mais
especificamente num lugar produzido para tais sujeitos na escola: Sala de Recursos
Multifuncionais que é definida pelo Ministério da Educação, através do Manual que
implementou seu funcionamento, como “um ambiente educativo com “equipamentos,
mobiliários e materiais didáticos e pedagógicos para a oferta do atendimento
educacional especializado” (BRASIL, 2010, p.5) “ofertado no turno oposto ao do
ensino regular” (BRASIL, 2010,p. 6)
Definindo as ações em formas de atendimento educacional à escolarização dos
alunos, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva
ressalta ao determinar suas diretrizes, que as atividades desenvolvidas no atendimento
educacional especializado “complementa e/ou suplementa a formação dos estudantes”.
(BRASIL, 2008, p. 6)

1º Os sistemas de ensino devem matricular os estudantes com deficiência,


transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas
classes comuns do ensino regular e no atendimento educacional especializado
(AEE), complementar ou suplementar a escolarização ofertado em sala de
recursos multifuncionais [...] (BRASIL, 2010. p.6 grifo nosso)

sumário 852
VII Seminário Vozes da Educação

Interpelando o que nos dizem essas legislações, encontramos algumas questões


que nos inquietam: a prática de complementar ou suplementar a escolarização dos
estudantes na sala de recursos multifuncionais não operaria estreitamente ligada à
concepção de um discurso legitimado historicamente sobre a deficiência que incide
sobre a vida dos sujeitos e queencarnado pelos dispositivos institucionais ou
medicalizados demarcam o corpo dito deficiente? Não são tais trajetórias corpos e
caminhos marcados pelas políticasde poder?Como tais discursos operam na produção
de uma verdade que se institucionaliza?

[...] tomarei um outro exemplo: o da constituição de um dispositivo


médico−legal em que, [...] foram multiplicados os controles, as intervenções
[...] sobre condutas ou comportamentos de pessoas normais. Isto conduziu a
este enorme edifício, ao mesmo tempo teórico e legislativo, construído em
torno da questão da degenerescência e dos degenerados. O que aconteceu
neste caso? Todos os tipos de sujeito intervieram: o pessoal administrativo,
por exemplo, por razões de ordem pública, mas principalmente os médicos e
os magistrados [...]Eu estaria tentado a dizer que, de fato, havia nisto uma
necessidade (que não se precisa necessariamente chamar de interesse) ligada
à própria existência de uma psiquiatria que se tornou autônoma, mas que, a
partir de então, devia fundar sua intervenção fazendo-se reconhecer como
parte da higiene pública. [...]. (FOUCAULT, 2008,p.8)

A educação inclusiva em meio a muitas legislações, movimentos sociais e em


conformidade com o direito de assegurar aeducação especial como modalidade de
ensino em todos os níveis, a sujeitos que antes não habitavam a escola, passou a fazer
parte da proposta pedagógica da escola regular promovendo o atendimento aos
estudantes e de acordo com o documento considerando:

Pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo, de


natureza física, mental ou sensorial, que em interação com diversas barreiras,
podem ter restringida sua participação plena e efetiva na escola e na
sociedade. Os estudantes com transtornos globais do desenvolvimento são
aqueles que apresentam alterações qualitativas das interações sociais
recíprocas e na comunicação, um repertório de interesses e atividades,
restrito, estereotipado e repetitivo. Incluem-se nesse grupo estudantes com
autismo, síndromes do espectro do autismo e psicose infantil. Estudantes com
altas habilidades/superdotação demonstram potencial elevado em qualquer
uma das seguintes áreas, isoladas ou combinadas: intelectual, acadêmica,
liderança, psicomotricidade e artes [...] (BRASIL. Política Nacional de
Educação Especial, 2008)

Na perspectiva dalegislaçãoa política de inclusão, juridicamente éentendida


como “a entrada nas classes comuns de ensino regular” dos alunos que apresentam
“deficiências” compondo assim, o “público alvo da educação especial”. (BRASIL,

sumário 853
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

2008).A definição de quem são esses outros bem como os procedimentos técnicos na
produção das relações educativas é afirmada na forma própria da lei que considera
incluir, na perspectiva do direito, das normativas legais. Geralmente, esse é o discurso
que habita o campo educacional.

A norma é o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar


quanto a uma população que se quer regulamentar. A sociedade de
normalização não e, pois, nessas condições, uma espécie de sociedade
disciplinar generalizada cujas instituições disciplinares teriam se alastrado e
finalmente recoberto todo o espaço - essa não e, acho eu, senão uma primeira
interpretação, e insuficiente, da idéia de sociedade de normalização. A
sociedade de normalização é urna sociedade em que se cruzam, conforme
uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da
regulamentação (FOUCAULT, 2005, p. 302)

As leis, resoluções, decretos, pareceres, portarias vinculam-se a educação como


“um lugar de discurso em constante disputa e transformação, em que várias vozes
ecoam ao mesmo tempo em que a voz da normalidade se mantém.” (CLIMACO, 2010,
p.9). As leis refletem sobre a educação especial numa dimensão, por vezes, resumida,
como área técnica especializada, cujos saberes organizados e disciplinados dentro de
lógicas instituintes, normatizadamente prescritivas, configuramtrajetórias fabricadas,
reguladas, trajetórias, por vezes, também destinadas a serem encerradas nos sistemas de
ensino básico, já que se configuram como desviantes da formação educativa consagrada
pela normalidade.
Interessante torna-se ainda, perceber as correlações entrelaçadas entreos saberes
que chamamos de “macros” que produzem “efeitos centralizadores de poder vinculados
a uma instituição” (p.14) dos quaisFoucault sublinhou no curso oferecido no College de
France no ano de 1975-1976, na obra em defesa da sociedade, na aula de 07 de janeiro,
e ossaberessujeitados, dentre eles,“toda uma serie de saberes que estavam
desqualificados como saberes não conceituais” (p.12).Os saberes configurados pelas
legislações que regem a educação especial, talvez, possam ser entendidos dentro de
umprocesso de “hierarquia de saberes”(p.15). Não que tais saberes não tenham
fornecido importantes conquistas ao campo supracitado, pelo contrário, destacamos
aquiincansavelmente sua importância no conjunto de ações que deu organicidade aos
sistemas educativos no que se refere à política inclusiva. Perguntamo-nos, entretanto
com Foucault: "quais tipos de saber [...] querem desqualificar no momento em que [...]
dizem ser esse saber uma ciência? (2005. p.15).

sumário 854
VII Seminário Vozes da Educação

Talvez, antesde pensar aspolíticas educativas inclusivas dentro de um bloco de


saberes tecnicamente jurídicos e legais, não seria necessário primeiro nos
interrogarmosem que medida essas regras de construção dialogam entre os
acontecimentos educativos? Mais ainda, em que medida sua institucionalização o
distingue, o eleva ou o entronizacomo saber erudito e qualificado, anulando, sepultando
ou desqualificando os demais saberes? Isto se daria porque tais saberes são
considerados como ciência? E é a ciência que pode qualificar um saber (FOUCAULT,
2005),uma experiência no mundo da educação?
Se hácerta objeção a fazer dentro do pensara educaçãosubmetida a termos tão
somente científicos, sistematizados, é que ela é mais do que isso: ela érelação. Então,
penso que entre o plano político dos movimentos regrados pelas políticas, quese
articulam ao discurso de poder e operam num plano macro,e as relações nos bastidores,
nos enfrentamentos, no micro que é produzido nos espaços de formação, não pautados
pelos saberes técnicos, controlados ou médicos, há experiências que emergem que não
são traduzidas por nenhumas políticas, mas que tem lugar e também são potentes para
se pensar as relações educativas entre trajetórias que não são fabricáveis.
Assim, tais saberes experienciais no campo educacional, aqueles ditos pequenos,
“inúteis”, que dependem de muito esforço e vistos como desnecessários já que (segundo
a lógica normativa)produzem poucos efeitos é o que trazemos para fazer ressoar aqui
como uma micropolítica produzida entre microfeituras de encontros que não se
propõem guiados (apenas) pelas normas da legislação que dão organicidade a educação
inclusiva.
Como nas relações de poder também operam as possibilidades de resistência,
conforme nos ensina Foucault (2015)percebemos a lógica dura da escola como
possibilidades de microfeiturasna produção da vida com sujeitos com outras formas de
existiratravés de práticas (re)imaginadas que não são dadas pela norma. “Por isso, nossa
aposta emerge da micropolítica, entendida como uma experimentação ativa [...] que nos
permita reconhecer o mundo e a nós próprios [...] para viver de outros modos de
formare de existir (DIAS, 2014, p.45).
A educação, afirmada somente nos modos de funcionamento macropolítico, nos
leva a pensar numa relação programada que sobre o véu da idílica política inclusiva,
desqualifica a experiência. O que chamamos de macropolítico refere-se às grandezas de
uma educação oficializada, pautada apenas em parâmetros considerados supremos,
completos, referenciados por uma ciência “metrificada, metodologizada” que nasce de

sumário 855
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

“teoria e métodos pedagógicos presos aos cânones, àquilo que se pensa ser uma boa
educação.”(GALLO, 2014, p.20). Pensar nas relações entre o macro e micro na
educação não supõe pensá-las correlacionadas a grandezas de maior e menor “de tipo
matemático” (GALLO, 2014, p.24). O que entendemos como micro se atualiza em sua
forma de açãodentro de um plano macro. Todavia as duas operam no interior dessas
relações onde “o maior pode devir menor e o menor pode ser capturado tornando-se
maior. Mas ambos também podem simplesmente não se encontrar, operando em modos
distintos e ao mesmo tempo, sem qualquer comunicação”(GALLO, 2014, p.24). E é
dando destaque a saberes que operam em modos outros na produção de uma relação
atravessada pelo que chamamos de micro (ou menor, diz Gallo inspirado em Deleuze e
Guattari), é que pensamos numa educação produzida nas microfeituras de encontros,
conversas e experiências. A perspectiva macropolítica, assegura direitos inclusivos no
sistema geral de educação, mas talvez, não se renda tão facilmente a uma prática de
formação sensível e ética que se materializa ao estar juntos com outros na Sala de
Recursos Multifuncionais.
Poderíamos escolher como diretriz na educação regular,as feituras produzidas
pelo caminho institucional que apoiados em discursoscentralizadores vinculados a
leis,institucionalizam a alteridade, normatizam trajetórias tornadas deficientes e
produzem uma verdade sobre os corpos. Esse caminho, habitualmente, tem sido
otraçado pelaeducação regular instituída pelas grandiloquências das políticas educativas
para a Sala de Recursos Multifuncionais, entretanto, seduz-nos o mistério de outros
caminhares pensados por uma pedagogia outra: reinventadapor passos com
microfeiturasentre experiências relacionais que não podem ser prescrita ou normatizada
especialmente porque ela surge da ordem do singular, do não prescrito, surge da
ordemdo inesperado entre trajetórias que se fazem no curso de existências, de vidas, de
encontros, de experiências na diferença.

Potências produzidas nas microfeiturasde experiências na diferença102


Temos feito ressoar em nosso trabalho, alguns conceitos bastante caros aos
estudos desenvolvidos por muitos autores: trajetórias,experiência e diferença. A questão
da diferença é enunciada, aqui, como “condição irredutível da experiência de existir.”
Assim, “diferença, apenas é o que há” (RIBETTO, 2014, p.46), é o que existe e

sumário 856
VII Seminário Vozes da Educação

atravessa a condição de existência de todas as pessoas no mundo. Que significa então,


na vida educativa pensar a experiência desde um contexto marcado pela materialização
das políticas educacionais e a relação singular e deslocadora do que vai nos passando na
alteridade? Creio que significa isso que Larrosa (2002) chama de “o que nos passa”,ou
seja, o acontecimento de alguma coisa da ordem do singular que me desloca e me
possibilita, inclusive, conversar no mundo da educação e da formação humana. É o que
Foucault também denomina de experiência-limite, não a vivida, “mas o invivível da
vida. Não a experiência possível, mas a experiência impossível. Não a experiência
trivial, mas aquela em que a vida atinge o máximo de intensidade” (PELBART,2013,
p.46).
Isto posto, trazemos então, experiências vivenciadas na alteridade, partir da
produção de encontros outros em uma escola básica no município de São Gonçalo.
Essas experiências, a semelhança do que sinaliza Foucault, não são da ordem mera do
cotidiano, por isso quem sabe, ela se prolongue e nos permita refletir sobre novos
deslocamentos e dobras ou modos outros de existência e fazeres entre trajetórias?

O cenário que vai emergindo, trazuma animação grande no espaço da Sala de


Recursos. O encontro apresentava um ar de festa. Além do cenáriofestivo e
decorado por algumas lembranças (que traz a memória dos participantes
alguns momentos que tivemos durante o ano letivo de 2018), outros detalhes
como mesa e lembranças confeccionadas para os estudantes, trazemanimação
e entusiasmo da maioria das pessoas que vão chegando a esse território
(estudantes adolescentes cursando os anos finais do ensino fundamental e
matriculados na sala de recursos, pais, funcionários e alguns professores).
Trata-se de um encontro coletivo organizado para momentos de
confraternização de fim de ano. Afinal, comemorar e encontrar são fios que
tramam as nossas redes e trajetórias de vida repleta de sentidos que vamos
saboreando e continuadamente tecendo na escola.O primeiro adolescente a
chegar traz consigo um sorriso contagiante no rosto. Não tem a fala que
marcaria um: bom dia! Mas, um sorriso que atravessa seus lábios e produz
um olhar expressivo de felicidade. Parecia saborear aquele acontecimento.
Gesticulava com suas mãos e naquela ocasião, descobrimos que adorava tirar
fotos. Parecia tão feliz que sinceramente não sei expressar o que de fato,
o/nos atravessava, talvez os gestos produzidos na experiência de estar juntos.
Chegam os demais participantes e entram na sala semelhantemente com
expressõesde alegria que contagiava-nos no encontro festivo. Entre troca de
risos, ficamos em pé e nos pusemos em roda. Aproximei-me na frente de
cada um em roda e distribui alguns corações e flores aos participantes
olhando nos olhos de cada um e recitando pausadamente partes de uma
música que nos atravessou em um de nossos encontros: (Diário de
Trajetórias)

Sem perceber, a semente se transforma em árvore, a lagarta vira borboleta e o


vento vai contando a história.Sem perceber, a gota se transforma em nuvem,
o amarelo vai ficando verde e o tempo vai contando a história, sem perceber,
os olhares vão virando flores, as estrelas vão virando nomes e a gente muda
de dentro pra fora. Sem perceber, a certeza se transforma em dúvida, os
abraços vão ficando livres e as ondas vão contando a história. Sem perceber,

sumário 857
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

o barulho vira pensamento, a janela se transforma em sonho e as folhas vão


contando a história. Sem perceber, as pessoas vão ficando próximas, os
chinelos vão ficando gastos e as pedras vão contando a história. Sem
perceber, os amigos vão ficando velhos, o sorriso vai ficando largo e a gente
muda de dentro pra fora. Sem perceber os olhares vão virando flores, sem
perceber as estrelas vão virando nomes. Sem perceber as pessoas vão ficando
próximas. Sem perceber os chinelos vão ficando gastos. Sem perceber, os
amigos vão ficando velhos. Sem perceber, o sorriso vai ficando largo. Sem
perceber a semente se transforma em árvore, sem perceber, a lagarta vira
borboleta. Sem perceber a gente muda de dentro pra fora sem perceber.
Música em família

O conjunto de intensidadeque abrem caminhos no encontro entre trajetórias nos


permite pensar com Foucault (2005) que, talvez, seja preciso haver uma “reviravolta de
saberes” que encontrem um sentido mais próximo da vida, do toque, dos gestos
sensíveis que produzem a educação na diferença. Os renomados saberes precisam
encontrar uma conexão entre a razão ética e jurídica que exprimam,de fato, uma política
da vida.

Ao ir passando com passos demorados por cada participante, fui afetada pelo
sorriso e lagrimas dos olhares de cada um. Era como se não esperassem esse
momento deslocador. Um momento feito da fragilidade de uma gestualidade
singular que provoca intensidades, que afetam. Encontro-me nesses
encontros, e me pergunto de quantas maneiras sutis podemos anular ou afetar
com gestos menores o outro no encontro. (Diário de Trajetórias)

y ¿cómodesdeciraquellaidea de que para estar juntos habría que, primero,


preparar labienvenida al otroen todos losdetalles, conocerlo de antemano,
regular sullegada y luego, después, más tarde, sólo más tarde,
sentirnosresponsables y desearlarelación? (SKLIAR, 2010, p.110)

Preguntas y más preguntas: ¿Ha fracasadolanecesidad de vivir juntos, es


decir, no es necesario que vivamos juntos?, ¿no es posiblevivir juntos?, ¿ha
fracasadoelvivir juntos porque es una hipocresíasostener que seaposible?, ¿ha
fracasadolautopía porque, al fin y al cabo, no es más que una utopía?, ¿ha
fracasadolaescuela porque nunca estarán “todos”?, o
¿hafracasadolaeducación, porque no creólanecesidad, no
borrólahipocresíanisostuvolautopíadelvivir, al fin, juntos? (SKLIAR, 2010,
p.111)

Assim, seguimos entre trajetórias formativas que possibilitem a produção de um


saber em passagem, que inspira, reinventa, afeta, bagunça a cultura escolar e em que a
lógica do sentido não está dada no cotidiano da educação maior. Opera na intensidade
das experiências e produz uma educação da ordem micro: aquelaque opera para além
das políticas, das secretarias, dos gabinetes, aquela que permite estar juntos no cotidiano
da sala de aula e no emergir de uma potência criadora e singular.

sumário 858
VII Seminário Vozes da Educação

A educação menor, ao investir nos vínculos, fratura a lógica racionalista que


desperdiça a experiência e que tem, como conseqüência direta, a deformação
de sentidos atribuídos a aprendizagem. [...] A educação menor se engendra
[...]na escuta sensível [...] o que potencializa outros desenhos do pensamento,
outras compreensões das singularidades do aprender e outras formulações
para as relações em sala de aula. (PEREZ, 2014, p.121)

De um modo ensaístico fazemos ressoar aqui essas experiências que compõem


os processos educativos enunciados desde um encontro menor com trajetórias de vidas
que produzem saberes na fragilidade de um encontro que marca experiências singulares.
Talvez, o texto possibilite um efeito, um alargamento da caminhada formativa expressa
e composta por gentes que com trajetórias imodeláveis, nos ensinam que os processos
educativos se enunciam também desde o que é considerado mínimo: acontecimentos
que nos tiram o lugar a partir de uma relação educativa outra: que se produza eticamente
com qualquer um, qualquer trajetória e que possibilita o acolher de gestos e saberes nas
micro- feituras de um encontro educativoque aposta na micro política da vida cotidiana.

Referências
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de Salas de Recursos Multifuncionais, 2010.

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DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado.


Rio de janeiro: Gral,1988. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/0B2a3UynNKV2CUHhlSDROQm9qQUU/edit Acesso
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https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/81007/mod_resource/content/1/TC%20Sobre
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Michel Foucoault. Uma trajetoria filosófica para alem do estruturalismo e da

sumário 859
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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Carlos Skliar. Revista Teias. V. 13, n.30. 265-283, set/dez 2012

SKLIAR,Carlos,“Lossentidosimplicados enel estar-juntos de laeducación”, Revista


Educación y Pedagogía. Medellín, Universidad de Antioquia, Facultad de Educación,
vol. 22, núm. 56, enero-abril, 2010, pp. 101-111.

Notas
i
Ministério da Educação/ Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização , Diversidade e Inclusão.
iiA palavra diferença está estreitamente ancorada neste trabalho a um conceito muito caro produzido no
campo da filosofia da diferença problematizados por autores como Deleuze, Guatarri, Skliar, Derrida etc.
Considera-se diferença aquilo que há, aquilo que existe como condição de existência dos sujeitos em suas
formas de ser e estar no mundo. Não pluralizamos essa palavra porque, imperceptivelmente, o termo
permitiria fomentar a lógica de fragmentação de grupos classificando-os segundo padrões pré
estabelecidos pela perspectiva camuflada da diversidade, como por exemplo: deficientes, negros etc.
fazendo-nos cair em armadilhas de nomear “o diferente”. Assim, singularizamos essa palavra pensando a
diferença apenas como o que existe e atravessa a condição de existência de todas as pessoas no mundo.

sumário 860
VII Seminário Vozes da Educação

A ESCUTA DOS SUBALTERNOS: REFLEXÕES E EXPERIÊNCIAS DE


EDUCAÇÃO POPULAR EM DUAS FAVELAS CARIOCAS

Carolina Silva de Alencar


FFP/UERJ
carolinasalencar@yahoo.com.br

Keila Maria de Araujo Silva


FFP/UERJ
keila@fau.ufrj.br

A esperança de produzir o objeto é tão fundamental ao


operário quão indispensável é a esperança de refazer o
mundo na luta dos oprimidos e das oprimidas (Paulo
Freire, 1997, p.16).

As pesquisas de Mestrado realizadas em duas favelas cariocas tiveram como


sujeitos de suas investigações, moradores destes territórios historicamente segregados e
atravessados de estigmas sociais. Suas vozes contribuíram para análises e reflexões a
cerca das memórias que os mesmos tinham sobre suas infâncias nestes espaços, bem
como sobre as expectativas que possuem em relação à educação de seus filhos e filhas.
O silêncio, o medo e a violência vivida nestes locais, apareceram fortemente nas falas
desses moradores, mas as narrativas também nos revelaram histórias de amor,
solidariedade, coragem e alegrias.
Desse modo, as pesquisadas realizadas procuraram refletir sobre as vozes dos
moradores das favelas, ponderando sobre o pouco ou nenhum valor que atribuem aos
seus conhecimentos, cultura, modos de vida, permitindo que somente sobressaiam os
conhecimentos presentes na escola e/ou advindos dos conhecimentos relativos ao
capital cultural hegemônico e demais conhecimentos adquiridos por meio dele. De
modo geral, em nossa experiência de pesquisa, percebemos que as pessoas que vivem
em situação de pobreza como nas periferias e favelas interpretam que por viverem
nessas condições são menos capazes, pouco inteligentes ou mesmo merecedores
daquele infortúnio, esse acontecimento desnuda sinais de uma sociedade de fato,
doente. Uma sociedade verdadeiramente mais justa deveria promover a igualdade e o

sumário 861
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

enraizamento da população subalternizada, da população oprimida como nos convida a


pensar Paulo Freire (1987).
Assim, procuramos ouvir as vozes dos moradores e a sua relação com a
escolarização de seus filhos e a sua própria. A descoberta de outros saberes a partir
desse caminhar pelas favelas, alcançou potência no encontro e no caráter educativo que
nele se ancorou. Encontramos nesse trilhar e nesse trabalho de escuta, um labirinto de
fios arrumados, tão entrelaçados, resultando em histórias de luta, especialmente pelo
direito à educação.
Ao final, apontamos como a escuta sensível (BARBIER, 1992) pode ser
considerada uma importante forma de dispositivo político-epistêmico. Para este diálogo,
trazemos o filósofo italiano Giorgio Agamben (2009). Para o autor, o dispositivo tem
sempre uma função estratégica concreta e se inscreve a partir de uma relação de poder.
O que propomos é pensar o conceito de dispositivo, a partir da escuta sensível
(BARBIER, 1992) nessa relação de poder e função estratégica. Cabe também ressaltar
que os aportes recebidos do grupo de pesquisa no qual estamos inseridas fortaleceram e
ajudaram a traçar o percurso no campo de pesquisa e alicerçar o trabalho dessa escuta.

“Pode o favelado falar?”: a escuta como um direito dos diferentes sujeitos das
classes populares
Ancorando-se na obra “Pode o subalterno falar?”, da autora indiana Gayatri
Chakravorty Spivak (2010), apresentamos uma reflexão sobre o direito à escuta dos
sujeitos das classes populares. Ou melhor, defendemos a ideia da escuta como um
direito das classes populares, em especial da escuta dos moradores de favelas.
A pergunta trazida pela autora, que dá nome à sua obra, inspirou-nos a refletir
sobre as vozes dos subalternos, daqueles que têm suas vozes silenciadas, que não têm
direito à fala e que talvez, por conta das profundas desigualdades sociais presentes
historicamente na sociedade brasileira, também não tenham tido direito à escola.
Para tanto, segundo a autora citada, o sujeito subalterno é aquele pertencente “às
camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos
mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros
plenos no estrato social dominante” (SPIVAK, 2010, p.12). Os moradores de favela são
assim considerados historicamente, sujeitos subalternizados. Subalternos por serem
pobres, por serem negros e/ou afrodescendentes, por não pertencerem à classe
dominante, por não terem acesso a uma educação pública de qualidade, por não se

sumário 862
VII Seminário Vozes da Educação

sentirem inseridos em espaços de representação político-social. Reflexo de uma


formação colonial e racista, que nos deixou uma sociedade profundamente desigual e
autoritária (CHAUÍ, 2000).
Trazemos, ainda, para o diálogo a autora Marilia Pontes Sposito que em sua obra
“A Ilusão Fecunda”, compartilha a experiência vivenciada por ela diante do movimento
de luta pelo direito à educação de um grupo de jovens e mulheres na cidade de
Ermelindo, estado de São Paulo. Nesta experiência relatada pela autora, o silêncio
apareceu como um produto do que ela chama, “de quem não teve muito escola”
(SPOSITO, 1993, p. 350).
Sposito (1993) afirma que: “O silêncio está presente na cultura dos subalternos
como produto histórico de um determinado modo de vida” (SPOSITO, 1993, p. 349).
Os sujeitos de nossas pesquisas, os moradores de duas favelas cariocas, têm o silêncio
como talvez um dos principais modos de participação na sociedade. Portanto, garantir a
“fala” dos sujeitos subalternos seria uma tentativa da sua autonomia diante da sociedade
excludente em que eles se encontram.
Ainda refletindo sobre o texto de Spivak (2010), indagamos: pode o favelado
falar? Assim como a autora, nossa preocupação se concentra nos desafios encontrados
para ultrapassar as formas hegemônicas que dificultam e muitas vezes impedem a
educação emancipadora das classes populares. A voz precisa ser escutada e um caminho
de liberdade, trilhado reafirmando que o morador(a) da favela pode falar.
O resultado desse movimento nos faz refletir sobre o pensamento de Sposito
(1993), quando nos traz os efeitos do “quefazer” político nos movimentos sociais, que
vão surgindo com as práticas coletivas, valorizando as decisões democráticas.

Mas é preciso ainda avançar na reflexão, porque as implicações desse


“quefazer” político, transcendem a dimensão propriamente política ao
possibilitarem redefinição mais radical das relações entre o público, o
privado, entre o cidadão e o indivíduo na sociedade moderna (SPOSITO,
1993, p. 326).

As ações gestadas em torno da crítica ao modelo tradicional de educação passam


a ser práticas políticas que deixam de ser privilégios dos setores dominantes da
sociedade, sendo então, uma modalidade de ação de homens/mulheres comuns, como os
entrevistados nas favelas investigadas. Uma prática educativa voltada para as vivências
dos sujeitos envolvidos se faz necessária, com conscientização de todos do seu papel
político-social. Práticas que transformem todo o espaço ao seu redor em uma grande

sumário 863
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

sala de aula. É notória a necessidade de políticas públicas que incentivem ações e


movimentos com objetivos de elevar e diversificar os processos educativos, traçando
um caminho legítimo de garantia de direitos em defesa dos direitos humanos dessa
população.
É grande o desafio de professores, pesquisadores e todos os envolvidos no
campo da educação popular de identificar, articular e implementar ações para as
transformações sociais. Victor Valla (1986) também registra em uma de suas pesquisas,
a origem das favelas no Rio de Janeiro, constituídas de migrantes das áreas agrícolas,
migrantes provenientes de outras cidades do interior, como também moradores da área
urbana do município que necessitavam de proximidade entre o local de moradia e o
trabalho. Victor Valla, em sua pesquisa “Educação e Favela” (1986), acompanhou de
perto as favelas e as adversidades enfrentadas, problematizando a participação social e o
reconhecimento do que lá é produzido. Dialogando com o texto de Valla, pensamos
aqui em Tavares (2015), que discute em seu texto “Educação popular e movimentos
sociais contemporâneos: algumas notas para reflexão”, um breve inventário da
Educação Popular, após 50 anos do golpe militar no Brasil e os movimentos sociais que
acompanharam essa trajetória. Empenhou-se em refletir sobre como essa
pedagogia/epistemologia sobreviveu ao Golpe de Estado de 1964 e continua sendo uma
“práxis político pedagógica, uma teoria educativa e prática sociocultural dos oprimidos,
dos pobres, dos subalternos” (TAVARES, 2015, p. 53).
Ressalta o método Paulo Freire, a sua função conscientizadora, a cartilha de
alfabetização e a sua função politizadora, desde a década de 60 na alfabetização de
adultos. No contexto, aponta o caminho de sobrevivência da Educação Popular no
interior da Igreja Católica, sua reorganização nas Associações de Moradores, nos
Movimentos do Campo, Partidos Políticos e Sindicatos, “fóruns de aprendizado da
cidadania e discursos de resistência” (TAVARES, 2015, p.55). Debruçando-nos sobre o
texto de Tavares (2015), compreendemos que a Educação Popular está, visto que lá é
também gestada, nos diversos movimentos sociais na busca por direitos humanos,

Como não reconhecer que nas propostas das pastorais da Igreja Católica –
pastorais da terra, dos trabalhadores urbanos – nos movimentos étnico-
raciais, nos movimentos em torno da criança e dos adolescentes, nos
movimentos estudantis, na educação nos presídios, nos projetos de saúde
popular e práticas extensionistas das universidades etc. não subsiste o clima
da Educação Popular? A luta pelos Direitos Humanos, em sua função
educativa, é uma convergência moderna da visão de mundo da educação
popular dos anos 1960 – assim como os movimentos em defesa da mulher, da

sumário 864
VII Seminário Vozes da Educação

população negra e das populações indígenas. As greves do ABC paulista, das


quais nasceu o PT, há 34 anos, não caíram do céu por descuido – elas
resultaram de uma acumulação de forças da classe operária, dos camponeses
sem terras, dos povos indígenas e suas lutas seculares, além das classes
médias urbanas em torno de um repensar político, de uma renovação do
sindicalismo, de um salto qualitativo do processo educativo, tudo em sintonia
(e também em tensão) por um repensar de mundo, na qual o autoritarismo, a
concentração de poder, a repressão e a violência de Estado no campo e na
cidade já não podiam ser sustentados e impostos à maioria da população
brasileira (TAVARES, 2015, p.55).

Compartilhamos do pensamento de Tavares (2015) e ponderamos sobre muitos


movimentos de ONGs, Associações, Igrejas e Templos que se organizam e se unem nas
favelas num trabalho conjunto, mesmo cercado de muitas contradições e tensões que
essas vozes implicam, sobretudo no atual contexto político-social brasileiro de expansão
do conservadorismo e tentativa de destruição do campo democrático.
No texto “Da Arte à Ciência: a morte do educador”, Marilena Chauí discute
entre outras questões, a constatação de que vivemos num mundo no qual “o vínculo
entre o saber e o poder tornou-se indissolúvel, não sendo mais possível manter o álibi
dos liberais, isto é, de que o saber é mal usado pelo poder. Identificaram-se” (CHAUÍ,
p.59). Ressalta as maneiras antidemocráticas de lidar com o pensamento, sendo criados
mecanismos de impedimento ao direito de produção de cultura, de acesso aos produtos
da cultura, ficando o sujeito muitas vezes reduzido a mero executante do saber, excluído
da sua elaboração. Observa-se no discurso de Chauí, a transformação da arte de ensinar
em ciência manipuladora, não mais um simples lembrar, conhecer, reconhecer, mas um
“progresso científico” que nos dirá como “ver, tocar, sentir, falar, ouvir, escrever, ler,
pensar e viver”. Buscando o diálogo com Chauí, ponderamos sobre a sobrevivência do
pensar vindo da troca de experiências, da arte de ensinar/aprender de forma
compartilhada. A autora nos desperta ao desafio do pensamento quando faz uma
reflexão sobre o discurso e práticas científicas que se apropriam de regras de exclusão e
inclusão, reforçando a divisão social. Afirma também que a ciência é um “poderoso
instrumento” de dominação, visto que é “fonte de intimidação” (CHAUI, 1982, p. 58).
Ressalta com propriedade, a interposição da ciência entre a experiência real de cada
sujeito e a sua vida onde se encontra sempre presente, a fala do especialista:

Entre nosso corpo e nossa sexualidade, interpõe-se a fala do sexólogo, entre


nosso trabalho e nossa obra, interpõe-se a fala do técnico, entre nós como
trabalhadores e o patronato, interpõe-se o especialista das “relações
humanas”, entre a mãe e a criança, interpõe-se a fala do pediatra e da
nutricionista, entre nós e a natureza, a fala do ecologista, entre nós e nossa
classe, a fala do sociólogo e do politólogo, entre nós e nossa alma, a fala do

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

psicólogo (muitas vezes para negar que tenhamos alma, isto é, consciência).
E entre nós e nossos alunos, a fala do pedagogo (CHAUÍ, 1982, p. 58).

Inúmeras vezes, as falas desses especialistas geram em nós um sentimento de


insegurança, arma potente da dominação e do controle, “determinando o que cada um
de nós deve ser para, simplesmente, poder ser”, pondera Chauí.
Entendemos que os diversos modos capitalistas de conhecimento, sobretudo a
epistemologia hegemônica, utilizam ainda fortes dispositivos de controle e coíbem o
direito à outra concepção de cultura, não monolítica, bem como desvaloriza a produção
cultural das classes populares. Quanto mais longe do saber, mais sob controle as
camadas populares estarão. A ciência contemporânea hegemônica visa à produção e o
fortalecimento do sistema capitalista, deixando para trás a constituição de sujeitos
pensantes, críticos. Pelos caminhos da favela, observamos que ali há um solo fértil de
criatividade e cultura, nascidas em lugares não reconhecidos como espaços legítimos da
produção do saber e do conhecimento.
Caminhando por espaços e vielas das favelas pesquisadas, observamos a
simplicidade e a precariedade no viver das famílias e um cotidiano marcado por
sofrimento, como também pela força e alegria que embalam as histórias que surgem em
simples conversas. Em nosso trabalho de investigar o direito à educação dos moradores
de duas favelas cariocas nos vimos mergulhadas nesse universo, onde a atenção à escuta
sensível (BARBIER, 1992) torna-se o fio condutor do conhecimento.
Durante a pesquisa por nós realizada, tornou-se fundamental e desafiante, nos
colocar no lugar de escutadoras daqueles que, como a prática nos mostrou, vêm se
tornando invisíveisna estrutura social contemporânea. Por isso, adotar a escuta dos
sujeitos e suas famílias, pertencentes às classes populares, como metodologia deste
trabalho, se tornou importante na medida em que eles puderam falar sobre suas vidas,
percepções e expectativas. Isso talvez nunca tenha acontecido em suas vidas, sendo um
acontecimento relevante e possivelmente os tenha motivado em ter suas vozes escutadas
outras vezes.
Segundo o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (2000), o olhar, o ouvir e o
escrever estão destacados como três momentos estratégicos do trabalho do antropólogo.

Se o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na


pesquisa empírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso
pensamento, uma vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar [...]
é no processo de redação de um texto que nosso pensamento caminha,

sumário 866
VII Seminário Vozes da Educação

encontrando soluções que dificilmente aparecerão antes da textualização dos


dados provenientes da observação sistemática. [...] o ato de escrever e o de
pensar são de tal forma solidários entre si que, juntos formam praticamente
um mesmo ato cognitivo (OLIVEIRA, 2000, p.32).

É no ato de observar (olhar, escutar) que o(a) pesquisador(a), vive a experiência


de estar no campo, usufruindo das experiências humanas a partir das relações sociais do
grupo, para posteriormente escrever com a mente despida de preconceitos e recepcionar
o conhecimento vindo do pesquisado que não é pensado e/ou reconhecido como um
objeto, e sim como sujeito da pesquisa. Nessa pesquisa empírica, o objeto passa a
sujeito, visto que na investigação, ele é atuante e participativo, o ator, cabendo ao
pesquisador à função de observador atento, sensível, preocupado em escutar o outro em
sua alteridade radical.
Refletir sobre essa busca nos convida a questionar o significado da pergunta pelo
outro. O que se pretende compreender quando dizemos que buscamos o outro na
pesquisa em educação popular? Skliar (2003), afirma que o outro da educação foi
sempre anulado e que a escola se dirige à captura maciça dos mesmos. Assim ela, a
escola, satisfaz a sua necessidade ou missão de possuir esse outro através de reformas
pedagógicas e de novas expressões. O que pretendemos em nossas pesquisas foi escutar
o outro como uma necessidade de conhecer nossas semelhanças e diferenças, de buscar
aquilo que nos permitisse uma relação de plena cumplicidade, mas que respeitasse as
nossas alteridades constitutivas.

A escuta sensível como dispositivo político-epistêmico


O sociólogo José de Souza Martins (2009), afirma que hegemonicamente as
Ciências Sociais têm uma concepção definida de quais são as fontes aceitáveis e
respeitáveis do dado sociológico. Afirma ainda que as Ciências Humanas não têm sido
capazes de decifrar o silêncio daqueles que não foram eleitos pelo saber acadêmico
como informantes válidos dos pesquisadores. Ao propor a pesquisa com sujeitos das
classes populares, o que se colocou, foi uma tentativa de incluir suas vozes num campo
que pouco as considera como o sujeito de uma investigação. Fazendo um diálogo com
Martins, trazer o favelado como testemunha [1], em nossas pesquisas, foi oportunizar a
escuta dos mudos da história.
Barbier (2007) afirma que não há nas Ciências da Educação um estudo básico
sobre a “sensibilidade”. Segundo o autor “sensibilidade”, é o que ele chama de uma

sumário 867
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

“empatia generalizada” em relação a tudo o que se vive e ao que existe. Buscar essa
sensibilidade no cotidiano de nossas pesquisas, com moradores de favelas que pouco
têm suas vozes escutadas, que pouco falam sobre suas expectativas foi uma busca difícil
enquanto pesquisadoras.
A tensão em planejar e conduzir as entrevistas, nos fez aprender a desenvolver
uma escuta mais atenta e principalmente encorajar aquelas pessoas a se expressarem,
com uma rigorosa atenção sobre o preconceito e sobre julgamentos prévios. Fazer e
refazer a mesma pergunta algumas vezes foi necessário neste processo e isto nos
permitiu compreender de maneira ética e responsiva ainda mais, a tipologia dos sujeitos
que tínhamos em nossas pesquisas.
Pois, como afirma Bourdieu (2012):

“Tentar saber o que se faz quando se inicia uma relação de entrevista é em


primeiro lugar tentar conhecer os efeitos que se podem produzir sem o saber
por esta espécie de intrusão sempre um pouco arbitrária que está no princípio
da troca (especialmente pela maneira de se apresentar a pesquisa, pelos
estímulos dados ou recusados, etc.) é tentar esclarecer o sentido que o
pesquisado se faz da situação, da pesquisa em geral, da relação particular na
qual ela se estabelece, dos fins que ela busca e explicar as razões que o levam
a aceitar de participar da troca.” (BOURDIEU, 2012, p. 695)

Para tanto, Barbier (2007) afirma: “Antes de situar uma pessoa no seu “lugar”,
comecemos por reconhecê-la em seu ser, na sua qualidade de pessoa complexa dotada
de uma liberdade e de uma imaginação criadora” (BARBIER, 2007, p. 96).
Portanto, a metodologia adotada em nossas investigações, exigiu-nos uma
constante troca, uma busca por reconhecer o outro em sua alteridade, estabelecendo
uma relação respeitosa e compreensiva. Bourdieu (2012), afirma que a pesquisa é uma
relação social e nos aponta para a importância de compreender o outro tendo clareza de
suas intenções e princípios neste processo. Destacamos uma citação do autor que
corrobora esta ideia:

“Para que seja possível uma relação de pesquisa o mais próxima possível do
limite ideal, muitas condições deveriam ser preenchidas: não é suficiente
agir, como o faz espontaneamente todo “bom” pesquisador, no que pode ser
consciente ou inconscientemente controlado na interação, principalmente o
nível da linguagem utilizada e todos os sinais verbais ou não verbais próprios
a estimular a colaboração das pessoas interrogadas, que não podem dar uma
resposta digna desse nome à pergunta a menos que elas possam delas se
apropriar e se tornarem os sujeitos. Deve-se agir também, em certos casos,
sobre a própria estrutura da relação (e, por isso, na estrutura do mercado
linguístico e simbólico), portanto na própria escolha das pessoas interrogadas
e dos interrogadores.” (BOURDIEU, 2012, p. 696).

sumário 868
VII Seminário Vozes da Educação

Portanto, a opção metodológica de nossos trabalhos foi utilizar uma escuta


sensível (BARBIER, 1992) como forma de dispositivo político-epistêmico. Desta
maneira, procuramos escutar os moradores das favelas na tentativa de possibilitar que
aqueles socialmente e historicamente emudecidos pudessem se tornar mais visíveis.
Escutar aqueles que foram e ainda continuam sendo oprimidos (FREIRE, 1987). E
porque escutá-los e não somente ouvi-los? Barbier (1992) nos fala de uma escuta
sensível, que diferente de apenas ouvir o outro, procura compreender esse outro em sua
complexidade, suas atitudes, comportamentos, opiniões, sem que aquele que escuta o
julgue ou compare. Utilizar a escuta sensível como uma ferramenta teórico-
metodológica significou também estabelecer uma relação de confiança com os sujeitos
das pesquisas.
Desta maneira, escutar para compreender exige uma sensibilidade maior em
relação ao outro. O que pretendemos foi escutá-los sobre o que pensam em relação à
Educação de suas crianças, sobre como compreendem o direito de suas crianças de
frequentarem uma instituição escolar. Pois para Martins (2009) “a fala é um instrumento
de direito, uma proclamação, negação daquilo que o silencio é – submissão,
complacência, desigualdade, menoridade” (MARTINS, 2009, p. 104). Por isso, escutá-
los, por isso enxergá-los e compreendê-los como sujeitos privilegiados dessa
investigação. Principalmente, para possibilitar que suas vozes funcionassem como um
instrumento de libertação, reinvindicação e de pertencimento aos lugares que habitam,
em especial ao direito à educação.
Segundo o filósofo Giorgio Agamben (2009), dispositivo refere-se a “qualquer
coisa que tenha de algum modo à capacidade de capturar, orientar, determinar,
interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os
discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40). Ou seja, para o autor
dispositivo inclui qualquer elemento material ou simbólico,linguística e não-linguística,
um processo, um modo de se relacionar, discursos, instituições, etc. O dispositivo é
portanto, a rede que se estabelece entre esses elementos.
Dialogando com o conceito de dispositivo de Giorgio Agamben (2009),
entendemos a escuta sensível (BARBIER, 1992) como uma prática ou um mecanismo a
ser utilizado no processo de reconhecimento e tentativa de assegurar, que aqueles que
foram sempre tratados como subalternos deixem ser invisibilizados e ignorados. Essa
escuta mais atenta funcionaria como um importante instrumento de luta política-
epistêmica, aplicado em diversos cenários em uma sociedade profundamente desigual e

sumário 869
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

autoritária como é a brasileira. E no caso específico dos moradores de favelas,


significaria assumir um dispositivo fundamental para favorecer o diálogo e a
participação dos mesmos no cotidiano das relações estabelecidas em diferentes
contextos de nossa sociedade.
Portanto, diante das questões apresentadas neste texto continuamos perguntando
e tentando afirmar: podem os moradores de favelas falarem?
Pensando sobre essa experiência, consideramos nesse contexto, os conceitos de
emancipação intelectual e educação popular encontrados nas obras de Paulo Freire
(1997) e Jacques Rancière (2002). Em espaços de pobreza econômica e abandono pelo
poder público como as favelas investigadas, a emancipação intelectual torna-se um
desafio e se faz necessária. De modo geral, para os moradores dessas favelas, somente
parece ter valor a educação escolar adquirida na escola tradicional e de fato essa é uma
ideia na qual, todos são orientados a acreditar (RANCIÈRE, 2002). Há de se investir na
igualdade das inteligências na contramão daquilo que é imposto às camadas mais pobres
da sociedade. Trata-se aqui de um mecanismo de despertar a curiosidade, a criatividade,
a emancipação num movimento de troca de conhecimento mútuo por uma educação
libertadora, no sentido dado por Freire. Não se pretende aqui levantar bandeiras em
direção à transformação da cultura e da educação popular em uma arma contra as forças
hegemônicas da ciência, entretanto entendemos que o valor da cultura popular leva-nos
aos caminhos da liberdade humana, no sentido mais forte da palavra e consciência do
seu lugar na sociedade para essa classe trabalhadora.

Por que não estabelecer uma necessária intimidade entre os saberes


curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm
como indivíduos? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas
de um tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade (FREIRE,
1997, p.34).

Concordando com o pensamento freireano (1987) e dialogando com ele,


acreditamos que a formação política dos(as) moradores(s) da favela não deveria estar
desagregada da sua formação pedagógica e vida cotidiana, ou seja, teríamos uma
pedagogia voltada para os atores sociais, trabalhada “com” eles e não “para” eles.
Nas vozes dos(as) entrevistados(as), observamos um aprendizado não recebido
na escola formal, visto que foram obrigados a abandoná-la ainda na infância, mas
conseguido na busca por seus ofícios, conhecimentos, cultura popular, porto seguro
encontrados nos pais, tios(as), avôs(as), vizinhos, ONGs, Igrejas, Associações e tantos

sumário 870
VII Seminário Vozes da Educação

outros atores que dentro da favela buscam meios de apontar o caminho de igualdade
numa sociedade que pressupõe-se justa. A informação aliada ao conhecimento
oportuniza o vínculo para a formação do sujeito crítico. Acreditamos que conhecer a sua
base, as raízes, as histórias de vida, a experiência trazida pelos antigos, seja alicerce
para o autoconhecimento e a compreensão do que pode ser feito na luta por direitos para
as camadas populares.

Algumas (in)conclusões que nos levam a continuar pensando caminhos:


As leituras que se faz da favela, como um lugar precário, ilegal, inacabado,
desordenado e inseguro (SILVA, 2013) a tornam um território ilegítimo na cidade. Em
pleno século XXI, as crianças da favela pesquisada procuram até hoje o seu lugar,
seguro e de acolhimento, pois não encontram um espaço digno de brincar, somente
cantos no meio do lixo, do esgoto e da precariedade das moradias. Lutamos para que as
crianças da favela possam ter direitos hoje e que não sejam mortas por balas perdidas.
Nesse contexto, refletimos sobre as palavras do geógrafo Andrelino Campos, quando
em seu livro Do quilombo à favela (2007), trouxe a realidade de um possível futuro para
as crianças da favela. Apresenta o espelho que hoje a infância dessas regiões vislumbra
sobre o seu o destino. Em sua maioria, olham os traficantes de drogas como verdadeiros
heróis da favela. Ao perguntar para uma criança/adolescente, “o que ele vai ser quando
crescer?”, Campos salienta que se espera obter, médico, engenheiro, professor, entre
outras como resposta quando se pertence às classes média ou alta. Essa expectativa é
atendida de acordo com o investimento da família e na trilha de profissões dos pais, tios,
avós, etc., que estão presentes no cotidiano desses meninos e meninas. Servem de
espelho construído com o universo à sua volta. “E o modelo das classes mais pobres?”

Funciona hoje como antes? Vejamos. O emprego é difícil, mal remunerado, e


quase sempre não representa o que poderia ser chamado de sucesso
profissional. A esses fatores deveremos acrescentar o ambiente das favelas.
[...] Com a atual conjuntura, existem mais membros das famílias que estão
desempregados que aqueles inseridos no mercado formal de trabalho [...]. Na
escola, onde estava [...] um dos melhores exemplos, o professor, é hoje
alguém triste, mal remunerado e insatisfeito com a sua profissão. Deixou há
muito de ser copiado como modelo. Infelizmente, restou aquele que faz
sucesso nas favelas ou em qualquer lugar em que a população mais pobre
vive; o traficante. Este é o protótipo do sucesso para os jovens pobres [...].
Uma questão fundamental: ele, de alguma maneira, é “respeitado” por todos
(CAMPOS, 2007, p.127).

Em linhas gerais, o olhar preconceituoso e eivado de senso comum da sociedade


contemporânea ainda cria verdadeiras barreiras a uma visão sem pré-julgamentos, não

sumário 871
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

permitindo sentir e colocar-se no lugar do outro, num exercício de alteridade. Nota-se


um afastamento, uma discriminação com aqueles que residem na favela – asfalto X
favela – como se todos os seus moradores fossem criminosos. Criou-se um estigma de
associar a favela à criminalidade. Nos últimos anos, as favelas cariocas têm sido pauta
nas discussões em vários fóruns, que pensam com profundidade de temas importantes
sobre a realidade, o pensamento criativo, a economia solidária, música, a arte da favela
e a nosso ver, trata-se de uma ferramenta potente contra o preconceito e uma visão
estereotipada que precisa ser removida.
A extrema pobreza e a vida em situação de grande vulnerabilidade parece ser um
fator comum para os entrevistados e suas famílias e com isso outras questões também
emergem neste processo, onde percebemos o reconhecimento da escola como uma das
formas, ou talvez a única, de uma mudança na vida de seus filhos.
Sabemos que muitas vezes, tanto as famílias quanto as crianças acabam saindo
pouco da favela, o que faz com que não se reconheçam como parte da cidade. A favela,
como um componente da cidade, (re)produz seu território. Nela, são tecidas diferentes
relações e experiências. Milton Santos (2000), nos fala do território não como um
conceito, afirma que este se torna como tal apenas a partir de seu uso social. Logo, os
moradores das favelas pertencem a um território, nele habitam e dele se impregnam ao
realizar seus modos de existir. O território não é apenas um lugar físico que se habita, é
também um lugar simbólico, de afetos e de possibilidade de produção da vida em seus
dramas, mas também de criação de vínculos e (re)existências.
A violência urbana e a dificuldade de mobilidade nas áreas pobres e periféricas
da cidade tendem a limitar as crianças e suas famílias aos espaços dentro da favela.
No texto de Jailson de Souza e Silva (2005), observam-se os espaços e a
intensidade no viver dos moradores da favela.

Nas favelas as ruas são espaços da festa, do lazer, dos encontros afetivos, do
trabalho, da brincadeira [...]. Nas favelas também há perigos, sobretudo em
função da violência praticada por policiais e bandidos armados. No entanto,
as ruas ainda são espaços de aproximação, de sensações de pertencimento e
de mobilização em torno de causas individuais e coletivas. Ainda há vida nas
ruas, com a presença do inesperado e da supressão do domínio absoluto do
privado sobre o público (SILVA, 2005, p.98).

Os espaços de memória e história são importantes nesse processo de identidade e


pertencimento. Naqueles muros, ruelas, becos, casas reside o valor do pertencimento,
eternamente presentes nas falas dos entrevistados.

sumário 872
VII Seminário Vozes da Educação

No Brasil, fruto de nossa formação colonial e estrutura societária profundamente


desigual, apenas em raras ocasiões políticas conjunturais houve uma real atenção e
preocupação com a moradia, saúde, modo de vida e educação da população pobre já
marcada pela remoção brutal do cortiço à favela. Parece-nos que se trata de uma história
a ser esquecida. O modo de produção capitalista do espaço sempre encontra um
mecanismo de explorá-los, de mantê-los distante de algo que não foi feito para eles. O
poder público ainda os vê como uma “classe perigosa” a ser controlada, porém
valorosos no que diz respeito aos interesses pela força de trabalho que neles reside. De
fato, há uma falta de vontade política quanto à questão da integração da favela no
cenário social, com acesso aos serviços públicos de qualidade como cidadãos que são.
Fazendo uma reflexão sobre as diversas lutas contra o preconceito, contra a
desigualdade na busca do sonho de liberdade, presentes nas falas dos entrevistados,
compreendemos que os pressupostos da Educação Popular se tornam uma questão
necessária e urgente na luta das camadas populares, trazendo cidadania, valorização de
experiências, potencialidades e conhecimentos na construção de emancipação.
Nessa luta por uma educação conscientizadora e por igualdade de inteligências,
(FREIRE, 1987; RANCIÈRE, 2002), encontramos na escuta dessas vozes, saberes e
aprendizagens construídos no cotidiano da favela, adquiridos na educação informal, ou
na vontade de conhecer. A Educação Popular (VALLA, 1986; TAVARES, 2015) com
sua característica de estímulo ao diálogo e troca de experiências, participação ativa do
cidadão na vida social, política e econômica da sociedade, com a valorização dos
saberes e diferentes culturas populares, fortalece as camadas mais empobrecidas,
possibilitando uma consciência cidadã, frente à instabilidade do devir, num momento de
tamanha negação à felicidade humana.
Em linhas gerais, os objetivos de nossas pesquisas foram trazer a escuta dessas
vozes, reiterando o papel da Educação Popular como possibilidade de fortalecer os
grupos favelados em suas ações de autoemancipação e luta por direitos, sobretudo pelo
direito à educação como possibilidade política e pedagógica de afirmação de um modo
de estar no mundo. Finalizamos esse texto, pretexto para muitas conversas, fazendo um
diálogo com Carlos Rodrigues Brandão (2014, p.14), com quem aprendemos que “todo
o nosso trabalho em pesquisar o que quer que seja deve desaguar em uma das muitas
dimensões de uma ação social e, entre elas, de uma educação vivida e pensada como
uma experiência socialmente perene e pessoalmente permanente na vida de cada um
de seus sujeitos: pessoas e povos”.

sumário 873
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Nota
[1] José de Souza Martins (2009), trás a expressão A criança como testemunha, onde
problematiza e as apresenta como sujeitos da sua pesquisa.

Referências
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2009.

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1992.

______. A pesquisa-ação./René Barbier. Tradução de Lucie Didio. – Brasília: Liber


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BRANDÃO, Carlos. Rodrigues. Prefácio: Perguntas, pesquisas. Para quem? Para


quê?In: OLIVEIRA, M. W. ; SOUZA, F., R.(ORGs.). Processos Educativos em
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CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela – a produção do “espaço criminalizado no


Rio de Janeiro". 2ª Ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2007.

CHAUÍ, Marilena. “Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária”. Ed. Perseu


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FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 42.ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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______.Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:


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MARTINS, José de Souza. Fronteira: A degradação do Outro nos confins do humano.


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OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo. 2.ed. São Paulo. Editora
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SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência


universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.

sumário 874
VII Seminário Vozes da Educação

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______.As favelas como territórios de reinvenção na cidade. Cadernos do


Desenvolvimento Fluminense, n. 1, Rio de Janeiro: UERJ-Fundação CEPERJ-IPP,
2013.

SKLIAR, C. A educação e a pergunta pelos Outros: diferença. Alteridade, diversidade


e os outros “outros”. Ponto de Vista, Florianópolis, n.05, p. 37-49, 2003.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da


UFMG, 2010.

SPOSITO, Marília Pontes. A ilusão fecunda, a luta por educação nos movimentos
populares. São Paulo. Ed. Hucitec, Edusp, 1993.

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação


intelectual. Tradução de Lilian do Valle. Belo Horizonte. Autêntica, 2002.

TAVARES, Maria Tereza Goudard. Educação popular e movimentos sociais


contemporâneos: algumas notas para reflexão. In: Revista da FAEEBA – Educação e
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VALLA, Victor Vincent. Educação e Favela – Políticas para as favelas do Rio de


Janeiro, 1940-1985. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1986.

sumário 875
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ENLACES ENTRE EXTENSÃO E PESQUISA DO GRUPO VOZES DA


EDUCAÇÃO: POLIFONIA E DIALOGISMO COMO PERSPECTIVAS
EPISTEMOLÓGICAS

Marcia Soares de Alvarenga103


FFP UERJ
msalvarenga@uol.com.br

Ana Carolina Paulo da Cruz104


FFP UERJ
anasbcruz@gmail.com

Tamyres Athaide Buczynski Patti de Miranda105


FFP UERJ
Contatos: tamyresbuczynski@gmail.com

Notas para uma introdução: de um lugar entre as vozes no Núcleo Vozes da


Educação
Ao trazer à superfície do vivido, do aprendido, nestes quase vinte anos da
criação do Núcleo Vozes, não nos parecerá necessário ou suficiente, já concordando
com a advertência do romanceiro Guimarães Rosa para quem “(...) contar seguido,
alinhavado, só mesmo as coisas de rasa importância .Tem horas antigas que ficaram
muito mais perto da gente do que outras, de recente data”.(ROSA, 1982, p.78 ). Ainda
mais porque cada um dos participantes do Núcleo Vozes nele nos inscrevemos com
percursos institucionais anteriores, com inventários iniciados e distintos que
alinhavamos a um outro: o Núcleo de Pesquisa e Extensão Vozes da Educação –
História e Memória das Escolas de São Gonçalo.
A partir destes percursos, nestes vinte anos, talvez seja necessário elaborar a
crítica de nós mesmos, um “conheça-te a ti mesmo” para um começo de um inventário,
como nos propõe Gramsci (1991, p. 12); inventário este iniciado a partir do que outros
nos legaram e nos deixaram marcas; um inventário do “Vozes”, a partir dos nossos
próprios.
Pensamos que para este inventário, cada um de nós deposita um trecho da nossa
história institucional e a dos nossos afetos. Histórias que às vezes se misturam, outras
103
Professora Associada FFP UERJ, Dept. de Educação, PPGEdu- Processos Formativos e Desigualdades
Sociais.
104
Graduanda de licenciatura em Pedagogia, FFP UERJ; Bolsista de Extensão do Núcleo de Pesquisa
Vozes da Educação.
105
Graduanda em Licenciatura Letras: Português-Literatura; Bolsista de Extensão do Núcleo de Pesquisa
Vozes da Educação.

sumário 876
VII Seminário Vozes da Educação

vezes não, mas dialeticamente têm beneficiado o “Vozes”, tanto em riqueza epistêmica,
quanto nos modos de fazer pesquisa e extensão em ato.
Como todas nós, de uma forma ou de outra, inventariamos o legado do Vozes,
optamos não pelo acúmulo do que nele vivemos e ou aprendemos, mas, como o vemos
em sua contribuição política e epistemológica; como grupo de pesquisa e extensão na
Faculdade de Formação de Professores (FFP-UERJ). Para esta introdução, convido,
assim, a voz de uma intelectual da cidade de São Gonçalo, a voz de Haydèe Figueirêdo
(apud NUNES, 2010, p. 45) uma das três primeiras vozes a criar-nomear o Núcleo
Vozes, memorá-lo para nossa fortuna epistêmica e afetiva, como grupo de pesquisa e
extensão:

O Núcleo de Pesquisa e Extensão Vozes da Educação traz, na sua origem,


uma necessidade de aglutinar os docentes, em torno das atividades de
pesquisa e extensão. (...). Entendíamos em 1996 que, com tal proposta,
romperíamos com uma tradição existente no interior da Faculdade de
Formação de Professores, sobretudo no Departamento de Educação (DEDU),
de oferecer apenas o ensino como atividade acadêmica.

A voz de Haydèe Figuerêdo nos diz muito sobre o que nos apresenta Paul
Zumthor, na epígrafe deste texto, a nomeação do Vozes, enquanto “palavra-tenda”
buscou e busca aglutinar docentes desejosos de fazer pesquisa e extensão em uma
unidade acadêmica com tradição de ensino e situada na periferia da própria UERJ
Maracanã.
Por sua vez, Tavares (2007, p.3) rememora que o Núcleo Vozes se
institucionalizou pelo“desejo de conhecer, de reconstruir a memória e a História da
Educação escolar gonçalense, de criar interfaces com as escolas e com os sujeitos
escolares”.(TAVARES, idem, p.6).
O enlace com a cidade e, especificamente, com os sujeitos das escolas e as
instituições educativas, vem consolidando o Vozes como núcleo de pesquisa e extensão
reconhecido, tanto nos espaços institucionais acadêmicos, quanto nas redes nacionais e
internacionais de professores, na produção do conhecimento sobre questões temáticas
que articulam memória, história, políticas e formação. (ALVARENGA; MAURÍCIO e
RIBETTO, 2014).
Na oportunidade que as vozes de Haydèe Figueiredo, Martha Hees e Maria
Tereza Tavares nos oferecem, juntamos à voz do poeta ao nos servir das palavras
“tenda” e “acampamento” como metáforas em benefício de nosso olhar sobre o Vozes e

sumário 877
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de algumas contribuições que possam, por ventura, servirem ao seu inventário.


Assumimos, então, nossas palavras neste texto, enquanto palavras-tendas, reunidas a
outras que em noite iluminada, em acampamento há vinte anos, (re)criam o Vozes,
assim mesmo no plural.
Sem pretensão memorialística, nos escrevemos e somos inscritas no Núcleo
Vozes, primeiro grupo de pesquisa ao qual formalmente me vinculo ao ingressar como
professora concursada em 1999, na Faculdade de Formação de Professores-UERJ.
Desde então, prosseguimos no “acampamento” com estas e outras “vozes”, tanto
daquelas que se incorporaram acadêmico-institucionalmente ao Núcleo e contribuem
para escrever a sua memória e história, quanto junto às vozes das quais me venho/vejo
acompanhada: vozes de professores, de das infâncias, de estudantes de graduação e da
pós-graduação, estudantes jovens e adultos trabalhadores da escola básica, dos sujeitos
de movimentos sociais com as quais temos dialogado sobre as temáticas da formação de
professores, da memória e histórias, do direito à educação, do direito à
cidade.Escolhemos alguns fios para este aparente “desalinhavo” de nossas vozes no
Núcleo Vozes. Porém, vemos que estas vozes ressonam em fundo verbal e não verbal,
acústico e visual das linguagens; ressonam em palavras-tendas ao expressarem
compromisso político-epistêmico relacionado ao direito à cidade, à cidadania, às
demandas coletivas e singulares transportadas pelas e através das linguagens.
Nesse sentido, escrevemos este texto como quatro, entre tantas, vozes do
Núcleo Vozes, a partir das atividades de ensino, pesquisa e extensão, não apenas como
ato de ouvir palavras-vozes dos nossos interlocutores, mas que me juntando a elas,
como em um acampamento, produzo outras palavras nas e pelas palavras de outrem.
Para fins deste “(des)alinhavo”, escrevemos este texto compartilhando algumas
leituras sobre conceitos de polifonia e dialogismo; conceitos estes que imaginamos
estarem abrigados nas palavras-tendas dos que participamos/acampamos no Vozes.
Para tanto, num primeiro movimento do texto, nos ancoramos nas contribuições
de Mikhail Bakhtin, autor com o qual temos adensado teórico e metodologicamente a
perspectiva da extensão e pesquisa no campo das políticas públicas e nos contextos de
escolarização de jovens e adultos. Buscamos, no entanto, fazer este movimento na
companhia da voz de Haydèe Figueirêdo ao referendar o Vozes como grupo que tem o
duplo desafio de fazer pesquisa e extensão de modo indissociável.

sumário 878
VII Seminário Vozes da Educação

Sobre polifonia e dialogismo: o que estes conceitos têm a ver com o Núcleo Vozes? – um
diálogo com Haydèe Figueirêdo
Quando falamos de e sobre a palavra-tenda “Vozes”, precisamos levar em conta
que esta palavra, como criação verbal feita pelo trio de professoras que nomearam o
Núcleo de Pesquisa e Extensão, do DEDU, não se comporta como um signo fixado em
um sistema de regras lingüísticas, mas uma palavra com e pela, ao ser
pluralizada/polifônica, pode-se perscrutar o que a carrega: contrapontos para aquilo que
se dá a muitos.
Historicamente, a palavra “polifonia” nos leva ao contexto do seu aparecimento,
ou seja, o mundo medieval para dar nome a um estilo musical de raízes populares, em
oposição ao canto monódico gregoriano. Um estilo cantado, pelo menos por dois
cantores, no qual “cada nota da melodia principal é contracantada por uma única nota
da voz superior. Essas melodias eram escritas na época sob a forma de pontos, daí o
sentido original da palavra contraponto: ponto contra ponto”.(ROMAN, 1992, p. 208).
Mas é no século XIII, continua Roman (idem,p.208-209), que

as vozes dos motetos passam a se diferenciar, tanto rítmica como


melódicamente. Essa independência das vozes vai permitir que não só uma
melodia trovadoresca e um canto gregoriano apareçam simultaneamente
numa mesma peça, mas também que uma das vozes cante um hino em latim,
enquanto outra canta uma canção em francês. Essa ausência de identidade
entre as linhas melódicas, que se cruzam constantemente, permite formar um
verdadeiro trançado de linhas independentes.(...) Nessa politextualidade,
linguagens diferentes se interpenetram, confrontando-se o erudito e o
popular, o sacro e o profano.

A polifonia era uma linguagem dinâmica, nômade e ativa, conveniente para


expressar uma visão carnavalesca do mundo, que possuía o homem medieval oposta a
qualquer ideia de acabamento e perfeição. Em relação a isto, Bakhtin (1987) nos
revelara a relação da linguagem com a sociedade da época, as vozes dos “de baixo”, que
profanam criativamente o mundo, extravasam para a voz monovalente “dos de cima”,
com “contracanto – contraponto”.
Nesse sentido, talvez valha a pena avançar um pouco mais sobre o conceito de
polifonia, já que ela não é só atributo da música, mas, também, da escrita.
Assim como para Paul Zumthor, “o texto não é mais que a oportunidade do
gesto vocal” (1989, p. 65), por sua vez na perspectiva de Bakhtin, como esclarece
Bubnova (2011, p. 269), a escrita passa a ser privilegiada

sumário 879
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

justamente como um percurso capaz de traduzir a voz humana na medida em


que é portadora dos sentidos da existência, preservando de modo específico
suas modalidades, que ele (Bakhtin) caracteriza mediante metáforas
relacionadas à voz e à música: polifonia, contraponto, orquestração, palavra a
duas vozes, coro, tom, tonalidade, entonação, acento, etc. Não são categorias
estilísticas no sentido tradicional, que se configuram como traços distintivos
dos autores individuais, mas são concebidas como uma espécie de memória
semânticossocial, cujo depositário é a forma das palavras, e nesse aspecto
são, antes de mais nada, portadoras de valoração social.

Bakhtin não separa o mundo da voz e o mundo da letra. Ao contrário, letra e voz
se unem pela produção dinâmica dos sentidos para serem compreendidos e orientados
para uma leitura no contexto da vida, do processo ideológico do qual ela faz parte.
Esta formulação é presidida pelo conceito de polifonia criada no círculo de
Bakhtin e nos sugere que a expressividade de uma palavra expressa, não só relação com
e sobre aquilo do que se fala, mas, também, a própria relação do sujeito-falante com as
palavras do seu interlocutor. Melhor dizendo, “o sentido da voz em Bakhtin é mais de
ordem metafórica, porque não se trata da emissão vocal sonora, mas da maneira
semântico-social depositada na palavra”. (DAHLET, p. 264).
Nossa fala e nossos enunciados estão repletos de palavras dos outros,
caracterizadas em graus variados pela alteridade ou pela assimilação, pelo emprego
consciente ou não das palavras do outro. Desse modo, as palavras dos outros
introduzem o seu próprio “tom valorativo”, a sua própria expressividade que, por sua
vez, assimilamos, reestruturamos e modificamos, atribuindo novas expressividades e
novos tons valorativos.
Desse modo, na tese bakhtiniana, as palavras, habitadas que são pelas vozes dos
outros, são portadoras de visões de mundo e nesta perspectiva o autor irá confirmar a
linguagem não só como criação ideológica, mas, sobretudo, irá afirmar ser ela
inextricavelmente constituída pela dimensão dialógica. Esta dimensão implica em
conceber os enunciados de uma relação interativa e dialógica, entre sujeitos, mediados
pela palavra.
Na dimensão dialógica, não apenas estão presentes as vozes das pessoas que
imediatamente deles participam do diálogo, mas as vozes distantes que transitam no
presente da interação verbal, dando-lhes e/ou confrontando-lhes sentidos. Será, assim,
através dos diálogos vívidos, vividos ou imaginados que os sentidos refletem e se
confrontam no e durante o percurso das amplas temporalidades contextuais em que
presente e passado convivem coetaneamente, desenhando círculos infinitos de sentidos
em que o futuro, também, é o seu destino.

sumário 880
VII Seminário Vozes da Educação

Do ponto de vista epistemológico, compreendemos que, para nós do Vozes,


temos visto serem acumuladas no campo das ciências humanas, e particularmente na
área da educação, teórico e metodologicamente pesquisas que nos acenam com a
inalienável possibilidade de produzirmos conhecimentos sobre a realidade, tendo como
perspectiva a relação dialógica e dialética entre pesquisadores e os seus “objetos” de
investigação.
Ao elegermos este princípio epistemológico, os integrantes do Vozes nos
empenhamos, junto a tantos outros, a resgatar a dimensão do sujeito de conhecimento
em nossas questões de pesquisas, escrevendo-as, sem, contudo, apartar letra e voz.
Nesse aspecto, consideramos a relevância epistêmica sobre modos que elegemos
para fazermos pesquisa e extensão. É provável que, por esta razão, reconhecemos nas
observações assinaladas por Bakhtin (2000) a perspectiva dialética e dialógica como
uma via privilegiada na produção de conhecimento, com a qual buscamos dar densidade
à reflexão teórico-metodológica de pesquisas que vimos realizando.
Com Bakhtin temos depreendendo que o paradigma positivista posiciona o
sujeito pesquisador/a diante do seu objeto para falar sobre ele, dispensando a sua voz,
pois não o reconhece nele a sua própria humanidade.
Neste sentido, o pensamento deste autor registra, com profundidade, que as
ciências naturais produzem o conhecimento sobre a realidade de “forma monológica”.
Isto significa dizer que o pesquisador contempla o objeto, pronuncia-se sobre ele, sem
com ele dialogar, pois não vê nele sua consciência refletida e refratada no e pelo objeto.
Esta forma monológica só admite a existência de um único sujeito – o
pesquisador – aquele que pratica o ato de conhecimento sobre o objeto. Portanto, na
relação entre sujeito e objeto, somente o pesquisador é sujeito, negando ao objeto
exercer papel recíproco na produção do conhecimento, mas apenas existir enquanto
“coisa muda”.
Contrárias a esta orientação positivista, compartilhamos a disposição de
superarmos o paradigma positivista monológico. Desde a criação deste Núcleo, vimos
produzindo pesquisas de forma dialógica, pois acreditamos que os sujeitos das escolas,
dos movimentos sociais, da gestão pública são sujeitos e, como sujeitos, não são mudos.
Entre tantas pesquisas realizadas pelas pesquisadoras e pesquisador do Vozes, de
forma dialógica, encontro a de Haydèe Figueiredo (idem, 2010) quando ela
compreende o jornal e a fotografia como fontes e como textos, para as quais podemos

sumário 881
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

oferecer contrapontos às visões de mundo depositadas pelas vozes, tanto na palavra


escrita do jornal, quanto na imagem fotográfica:

Na impossibilidade atual de identificar individualmente cada documento


correspondente às séries constituídas, priorizei como estudo exploratório a
série Recortes de Jornal. Assim o fiz para atender a demanda de professores
de ensino básico que desejam trabalhar ou já trabalham com jornal enquanto
fonte e/ou texto.(p. 51).
Estudar o jornal como fonte implica buscar sua materialidade e cotidianidade.
Uma tentativa de descobrir o sentido do que tem por trás da notícia e
desvendar o autêntico objeto histórico sob as estratificações das convenções
fixadas (KOSIK, 1976). Tal estudo permite enxergar o jornal como produto
histórico-cultural, como agente social (p.53).

No que se refere às possibilidades de uso da fotografia enquanto documento,


nossa conversa (com elas) gira em torno do binômio testemunho/criação.
Potencialidades oferecidas pelas imagens, enquanto registros do passado,
vestígios deste naquilo que o fotógrafo desejou perenizar de um momento
vivido.

Ao trazer a abordagem sobre a perspectiva dialógica e dialética da pesquisa,


Haydèe Figueirêdo nos faz compreender que as fontes utilizadas nas pesquisas
historiográficas, por serem registros da aventura humana, não são mudas; conversamos
com elas, dialogamos com os sujeitos desta aventura que produziram a fonte, mesclando
nossas vozes na grande, média ou curta temporalidade que move a realidade do que e
sobre o que pesquisamos. Vale dizer, buscar possíveis respostas sobre o que nos faz
sentido, produzir sentidos, fazendo-os circular.

Posicionando nossas vozes como pesquisadoras no/do “Vozes”


As pesquisas realizadas por cada uma de nós no Vozes considera que as
temáticas sobre processos formativos, sejam da infância à vida adulta, as temáticas das
políticas públicas, da história da educação envolvem relações e sentidos sobre a
realidade como produções humanas. Daí o desafio de superar a reificação monológica e
positivista do mundo, o que nos faz enfrentar nossas questões de estudos, procurando
com elas entender que

Qualquer objeto de conhecimento (incluindo o homem) pode ser percebido e


conhecido a título de coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e
estudado a título de coisa porque, como sujeito, não pode, permanecendo
sujeito, ficar mudo; conseqüentemente, o conhecimento que se tem dele só
pode ser ‘dialógico’. (...) a dialética nasceu do diálogo para retornar ao
diálogo num nível superior (ao diálogo das pessoas) (BAKHTIN, 2000, p.
403-404).

sumário 882
VII Seminário Vozes da Educação

O olhar e o conhecimento sobre a realidade, na perspectiva dialética e dialógica,


não isolam ou posicionam aparteados o sujeito e o objeto da realidade a ser investigada,
assim como, não ignoram os conflitos produzidos por estes que dentro dela interagem,
se refletem e se refratam.
Nossas atividades, a partir de categorias analíticas tais como direito à educação,
memória, movimentos sociais e políticas públicas, formação de professores/as centrada
na escola, procuram se inscrever na corrente dos debates que vêm atravessando as
ciências sociais na contemporaneidade: a centralidade da dimensão local nas sociedades
contemporâneas
Sob esta orientação, focalizamos questões de pesquisas acompanhadas pelos
autores com os quais vimos dialogando na perspectiva dialética e dialógica abrigadas
nas palavras-tendas, e, desse modo, buscamos oferecer algumas contribuições aos
projetos coletivos (acampamento?) do “Vozes”.
O “Vozes da Educação” tem buscado uma permanente interlocução com o poder
local a fim de tecermos polifônica e dialogicamente os fios da educação no território
gonçalense com suas instituições, entidades e movimentos sociais.
Além disso, temos desenvolvido parcerias institucionais com vários grupos de
pesquisas nacionais e internacionais, tais como Grupo de Pesquisa Alfabetização dos
Alunos e Alunas das Classes Populares (GRUPALFA), Grupo de Estudos e Pesquisas
Escola Memória e Cotidiano (GEPEMC), Programa de Pesquisa, Aprendizagem-Ensino
e Extensão em Formação de Profissionais da Educação (Aleph) Federal Fluminense;
Grupo de Estudos e Pesquisas de Professoras(es) Alfabetizadoras(es) Narradoras(es)
(GEPPAN), locado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; Grupo de
Pesquisas e Estudos sobre Educação Continuada (GEPEC) locado na Universidade
Estadual de Campinas; Centro de Investigação Identidade(s) e Diversidade(s) (CIID)
locado no Instituto Politécnico de Leiria, e ainda com a Universidade de Évora e a
Universidade do Minho, em Portugal. Nossa história como grupo de Pesquisa e
Extensão evidencia uma trajetória construída a partir de ações que articularam um grupo
de professores(as) pesquisadores(as) da FFP/UERJ e escolas da rede gonçalense,
sindicatos, movimentos sociais, estudantes e bolsistas em um caminho de permanente
construção/reconstrução.
O Núcleo foi sendo gestado, lentamente, nas conversas informais, reuniões
departamentais, entre cafés e desejos compartilhados gerando diferentes pesquisas,
Núcleos de Memória nas Escolas, Cursos de Extensão, Seminários, Gincanas Culturais,

sumário 883
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

dentre tantas outras ações investigativas. Professores(as) pesquisadores(as) foram se


chegando e abrindo sempre a perspectiva de novos projetos e caminhos. Tomamos, com
frequência, a imagem do mosaico ou do caleidoscópio como metáforas representativas
da polifonia de vozes, de práticas de investigação-formação que ao mesmo tempo nos
articulam enquanto grupo e singularizam os percursos de professores(as) e alunos(as)
envolvidos.
Para este artigo, selecionamos dois recortes que trazem alguns dos resultados de
nossas pesquisas. No primeiro recorte, apresentamos a criação e implantação de
Núcleos de Memória nas escolas, a partir das gincanas culturais, um dos escopos de
nossas pesquisas. No segundo recorte, enfocamos a produção de sentidos sobre o direito
`educação de jovens e adultos, a partir das atividades que nomeamos de oficinas
pedagógicas.

Núcleos de Memória da Educação


Discutir sobre Núcleos de Memória requer, inicialmente, a abordagem de uma
das ações investigativas-extensionistas que tem sido importante ponto de partida no
Vozes da Educação para a construção de parcerias, bem como a constituição de seu
acervo: a gincana cultural “Sua Memória Vale Uma História”. Partindo do pressuposto
de que também o Núcleo Vozes é um “lugar de memória” , temos investido na potência
desta gincana. A partir dela são tecidas redes de ações que possibilitam múltiplas
interlocuções com as diferentes comunidades que constituem as escolas gonçalenses.
Esta ação partiu do desejo e do compromisso de aglutinar docentes e discentes em torno
das atividades de pesquisa e extensão do Departamento de Educação da Faculdade de
Formação de Professores.
Sobre o que fazer com o material da Gincana? Hees responde:

O primeiro passo foi explorá-lo. Saboreamos cada documento obtido. A


partir daí, fizemos uma primeira classificação precária e, nosso arquivo
passou a construir um primeiro fundo: Gincana Cultural.

A partir das gincanas, vivenciamos um dos mais importantes dispositivos para a


organização dos núcleos de memória das escolas gonçalenses. Deste modo, destacamos
a criação de 12 núcleos de memória que têm permitido situarmos as escolas como
“lugar de memória” da história da educação da cidade. Estes núcleos têm sido ainda

sumário 884
VII Seminário Vozes da Educação

uma das atividades de extensão e de pesquisa do Núcleo Vozes construído e oferecido


em parceria com as professoras da rede pública.
Os núcleos de memória foram organizados e estão sendo desenvolvidos
envolvendo professoras além de bolsistas de extensão e de iniciação científica que
integram o grupo de pesquisa Vozes da Educação. Este trabalho constitui fértil vínculo
entre a Universidade e as escolas. É importante recuperarmos que um dos objetivos dos
núcleos de memória das escolas é proporcionar o contato direto com as fontes primárias
que visam despertar o interesse dos sujeitos escolares pelo conhecimento da história
local e da instituição e dos sujeitos escolares. Desse modo, entendemos a importância de
problematizarmos o conceito de “centro de memória” nas instituições, apontando seu
caráter formador, ou seja, reconhecer a memória como ponto de partida para novas
lógicas de funcionamento no espaço escolar.
Como segundo recorte, trazemos uma outra experiência igualmente
representativa de nossos trabalhos são as oficinas pedagógicas realizadas com jovens e
adultos no Colégio Municipal Presidente Castello Branco. Durante as atividades,
convidamos os estudantes a discutirem temas relacionados a questões que envolve o
cotidiano de jovens e adultos trabalhadores.
Os temas das oficinas pedagógicas servem como ponte para o diálogo junto aos
professores, no sentido de refletirmos sobre práticas metodológicas em sala de aula.
Adotando a “compreensão de que toda palavra de um texto conduz para fora dos limites
desse texto”, (BAKHTIN, 1998), procuramos redimensionar através das oficinas, os
conhecimentos e experiências de cada jovem e adulto participantes das oficinas, para
que sentidos outros sobre os temas emergissem como ato enunciador de suas visões de
mundo.
A posição deste Bakhtin é a de que enunciado não é discurso, mas unidade viva
da comunicação verbal que é formada por elos que encadeiam um diálogo compondo a
ideologia do cotidiano. Para explicar este conceito, o autor nos afirma ser a vida
cotidiana, as experiências de vida de homens e mulheres, fluída pelas palavras.
Em uma das oficinas, apresentamos o filme Tempos Modernos e charges que
ilustravam de forma satírica relações de expropriação da força de trabalho no sistema
capitalista. Apresentamos textos verbais e não verbais, como meio de aproximação com
a linguagem visual fílmica. Notamos que os alfabetizandos se sentiam inseguros em
relação ao vínculo existente entre outras modalidades de linguagens, pois normalmente
só lhes é apresentada uma maneira conteudista, na qual a escrita é privilegiada.

sumário 885
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Durante a exibição do filme Tempos Modernos, pudemos compreender o quanto


o cinema mudo e preto e branco de Charles Chaplin é atemporal, contemporâneo.
Naquele momento destacou-se a fala de uma aluna, após a exibição do filme:

Eu era assim, trabalhava todo dia em pé numa fábrica de sandálias de plástico


para ganhar R$ 50,00por semana, trabalhava durante os fins de semana, sem
ter um dia de folga certo e por causa da repetição dos movimentos, comecei a
sentir dor nas mãos e pedi demissão. Retornei a escola para tentar conseguir
um emprego melhor (Depoimento estudante do sexo feminino, 17 anos de
idade).

Outros depoimentos passaram a ser dados a partir das próprias experiências de


jovens e adultos com o trabalho. Eram pedreiros, empregadas domésticas e diaristas.
Também homens e mulheres jovens e adultos que viviam do trabalho informal e
precarizado. Em seus depoimentos orais e escritos, a questão da desvalorização da força
de trabalho estava presente. Pareceu-nos claro que tais depoimentos expressaram a
compreensão dos estudantes através da crítica às atividades repetitivas e precarizadas
por estas empobrecerem, não só a capacidade criativa, mas, sobretudo, a dignidade da
vida humana.
Nesse sentido, superar as contradições das perversas relações de trabalho requer
reconhecer a educação de jovens e adultos trabalhadores para além da sua oferta
enquanto modalidade de ensino, mas, fundamentalmente, significa um esforço coletivo
de resgatar um direito subtraído dos trabalhadores das classes populares.
Ao problematizarmos, junto às professoras de turmas de alfabetização e pós-
alfabetização da escola, as dificuldades de acesso a textos escritos considerados como
“adequados para a alfabetização de jovens e adultos”, expressamos o nosso interesse em
compreender como os enunciados dos estudantes poderiam contribuir para o ensino da
língua materna.
Em outros diálogos com as vozes dos estudantes jovens e adultos ao narrarem
sua infância e vida adulta roubadas pela negação de direitos fundamentais, os estudantes
buscam escrever, não só palavras que fazem parte do seu cotidiano para descrever suas
lutas, suas histórias, mas, o seu “querer-dizer” (FREIRE,idem, 1987)através de um
gênero do discurso, o discurso oral, ao qual buscam se ajustar independentemente de
dominar a gramática e estrutura do texto escrito.

sumário 886
VII Seminário Vozes da Educação

Hoje sinto no rosto as margas


Do meu cansaço, nas minhas
Mãos ainda que cansada de tanto
Trabalhar, mais assim mesmo
Continuam a serem ages!
(Estudante do sexo feminino, 56 anos de idade, GII – 3ª e 4ª série ensino
fundamental).

É interessante observarmos nos textos dos estudantes uma linguagem estético-


poética pela qual reinventam, através de palavras, a própria vida. Ao assumir o papel de
autor/a jovens e adultos buscam reencantar a língua, sem as amarras dos textos
escolarizados que não respondem às perguntas relacionadas à vida e às expectativas de
jovens e adultos. Portanto, esvaziadas de sentidos.
Assim, a voz, assumida incongruente, não se limita à articulação oral da palavra,
mas à presença de um corpo ativo no contexto social que se faz ouvir e sentir enquanto
corpo. A oralidade não tem o monopólio de veicular a voz. Com efeito, a voz somente
passa a existir na nossa relação com os outros e com tudo que nos cerca, tornando-se
real para os outros e, portanto, para nós mesmos.
As dinâmicas das relações sociais que animam o contexto social noz fazem
voltar, mais uma vez, às vozes de Figueirêdo e Tavares (2004)
O local, palavra-tenda interpelada na primeira obra coletiva organizada pelo
Vozes, é nos apresentado pelas autoras “como espaço da totalidade social, tensionado
pela confluência dos processos macro e microssociais, parte do pressuposto que, num
período de globalização, cada vez mais o mundo se constitui numa articulação entre o
local, o nacional e o mundo” (idem, p. 7).
Ainda, seguindo as vozes das autoras, o local se apresenta como um desafio à
análise da sociedade contemporânea.

Temos nos perguntado sobre a proximidade e a distância da educação


gonçalense dos processos históricos que têm conformado os projetos
políticos pedagógicos da educação nacional e quais os efeitos destes, nas
práticas e representações no local. (FIGUEIRÊDO E TAVARES, 2004, p. 9).

A atividade vem produzindo um conjunto de resultados e se ancora no diálogo


com Santos ao compreendemos, com este autor, que a dialética entre mundo e lugar
reflete e refrata o movimento da realização histórica do concreto. Para Santos, “o
mundo está aí e o lugar colhe no mundo atributos que o realizam histórica e
geograficamente. É o mundo que se dá seletivamente no lugar”. ( Santos apud

sumário 887
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ALVARENGA e TAVARES, 2015, p. 48 ).É necessário, pois, realizar a leitura do lugar


como categoria político-epistêmica, mas, também, como categoria prático-política com
a qual perscrutamos vozes que produzem sentidos da ação de diferentes grupos sociais
que o tencionam na disputa de interesses e atendimento de suas demandas.

(In)conclusões – para acampar outras palavra-tendas


As atividades de extensão e pesquisa visam à produção de conhecimento e
demanda constante aproximação com a realidade. Esta aproximação tem na relação
dialógica um princípio inspirador que não nos permite alimentar sentidos verdadeiros e
absolutos sobre a realidade; muito menos subjugar a vida humana e a natureza à
vontade miúda dos propósitos de uma ideologia cientificista.
Entendo, assim, que as pesquisas que tenho desenvolvido no Vozes se filiam às
proposições dialética e dialógica, pois consideram que o pensamento humano,
manifestado por e em palavras, sonorizadas ou não sonorizadas, não pode ser
compreendido aparteado dos condicionamentos sociais por entre os quais emerge e
ressona.
Nesse sentido, escrevemos este texto como vozes entre muitas do Núcleo Vozes
que busca no enlace entre ensino, pesquisa e extensão, não apenas para ouvir palavras
dos nossos interlocutores, mas, como palavras-tendas habitadas por vozes que a estas e
outras nos juntamos como em um acampamento, produzindo outras palavras encarnadas
em atos nas e pelas palavras de outrem. Para tanto buscamos pelas atividades trazidas
para este texto contribuir para a discussão sobre um princípio epistemológico que possa
ser compartilhado junto às diferentes vozes que “armaram” as suas palavras-tendas no
Núcleo Vozes da Educação; princípio este buscado pelas perspectiva teórico-epistêmica
e metodológica em autores em referências sobre os conceitos polifonia e dialogismo.
Para continuar a produzir sentidos nas atividades de extensão e pesquisa que
realizamos no Vozes, concordamos que a palavra pertence a um mundo de relações
dialógicas, relações plenas de sentido, não nos permitindo concebê-la como um objeto
original – palavra inaugurada quando do momento em que os sujeitos passam a
problematizá-la ou a ela se referirem. O objeto de sentido, seja qual for, não é objeto
pela primeira vez de um enunciado e do contexto social do qual se deriva, nem os
sujeitos que dele falamos somos os primeiros a pronunciá-los e problematizá-los.
Do ponto de vista teórico-metodológico, desejando compreender os sentidos
sobre direito à educação de jovens e adultos nos enunciados acolhidos para as

sumário 888
VII Seminário Vozes da Educação

pesquisas, mantenho minha escuta em Bakhtin para dizer que estes enunciados formam
textos. Sendo textos, os enunciados constituem uma realidade imediata que habita os
diversos campos de preocupações das ciências humanas, pois, sem textos não há objeto
de estudos e de pensamento...
Os enunciados, enquanto textos, nascem do pensamento humano expressão das
relações dialéticas e dialógicas do ser no mundo. É por isso que os textos nunca podem
ser traduzidos até o fim, pois não existe um texto dos textos, potencial e único. Decorre
daí a ideia de o sentido ser potencialmente infinito.
O diálogo, assim, sugere a imagem de uma espiral cujo movimento de
circularidade não nos permite identificar o seu início ou seu fim, pois, na relação
dialógica vivenciada pelos sujeitos em um contexto social, os enunciados são criados e
recriados por tempos e espaços diversos, são polifônicos animados por múltiplas vozes
em réplicas, as vozes de muitos.
Entemos que no diálogo o “outro”exerce papel ativo na construção da
enunciação e na produção dos sentidos sobre o que e com quem queremos dialogar. É
com o “outro” que aprendemos a moldar a nossa fala e a construir a nossa consciência
sobre o mundo. Todo diálogo é sempre habitado, sendo construído interna ou
externamente - seja pela presença real ou imaginária com o “outro” – pelos enunciados
daqueles que o antecederam e por todos aqueles que irão sucedê-lo. Daí, a voz presente
de Haydèe para quem este texto se dobra como tributo e se faz homenagem às vozes das
companheiras e companheiro que continuamos “acampados” no Vozes, o que nos
permite afirmar que um inventário deste núcleo de pesquisa e extensão é escrito e
atualizado a cada texto que escrevemos e partilhamos na ciranda das “palavras-tendas”.

Referências
ALVARENGA, M. S.; TAVARES, M.T. (Orgs.) . Poder Local e Políticas Públicas
para Educação em periferias urbanas do estado do Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de
Janeiro: Quartet/FAPERJ, 2015

BAKHTIN, M.. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
______. (Volochinov).Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.

______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de


François Rabelais - Brasília: Hucitec, 1987.

BUBNOVA, T. Voz, sentido e diálogo em Bakhtin / Voice, sense and dialogue on


Bakhtin. Bakhtiniana, São Paulo, 6 (1): 268-280, Ago./Dez. 2011.

sumário 889
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 890
VII Seminário Vozes da Educação

O INSTITUTO PROFISSIONAL ORSINA DA FONSECA E AS RELAÇÕES


INTRINCADAS DA GOVERNAMENTABILIDADE DO CORPO SOCIAL E
INDIVIDUAL

Ma. Teresa Vitória F. Alves106


FFP UERJ
teresavalves@hotmail.com

Drª. Denize Sepulveda107


FFP UERJ
denizesepulveda@hotmail.com

Para Michel Foucault um dos fenômenos fundamentais do século XIX é a “(...)


assunção da vida pelo poder”, isto é, uma estatização do biológico, uma tomada de
poder sobre o homem enquanto ser vivo (FOUCAULT: 1999, pp. 285 - 286). O Estado
passa a se preocupar com os problemas relacionados a vida e a morte, gerir os corpos
que perambulam pela cidade, que se adoentam dentro das casas, que morrem e como
devem ser enterrados. Os soberanos se preocupam com o corpo social, com a vida deste
corpo social, sendo que “O problema da vida começa a problematizar-se no campo do
pensamento político, da análise do poder político” (FOUCAULT: 1999, p. 288).
Esta assunção da vida pelo poder estatal pode ser verificada na história da
educação brasileira a partir das reformas educacionais promovidas no império e na
república que analisaremos adiante. A preocupação com o gerenciamento da população
pouco a pouco torna-se, assunto para debates entre jornalistas, intelectuais, moralistas e
médicos. O próprio Estado Brasileiro diante da transição da mão de obra escrava para
mão de obra livre passava a ter um problema: como organizar e controlar o crescimento
das cidades e das camadas populares, cada vez mais engrossadas por ex-escravos e ex-
escravas e seus filhos (as) ventre livre?
As abordagens de M. Foucault sobre os mecanismos, as técnicas e tecnologias
de poder que fazem funcionar esse gerenciamento do estado em relação a vida humana
nos permite um olhar mais acurado para as formas pelas quais foram sendo construídas
as escolas técnicas para as mulheres. Em seu livro Vigiar e Punir, o filósofo demonstrou

106
Doutoranda do PPGEdu,FFP UERJ.
107
Doutora do PPGEdu,FFP UERJ.

sumário 891
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

como a partir do século XVII e ao longo do século XVIII surgiram técnicas de poder
centradas no corpo individual, ou seja, os procedimentos pelos quais se assegurava nas
escolas, no exército, nas oficinas, nos hospitais a distribuição espacial dos corpos
individuais: sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e vigilância que se
exercia sobre ele. Deste modo, o filósofo procurou mostrar como as técnicas que
buscavam aumentar a produtividades dos corpos por meio da vigilância, hierarquia e
inspeção vinculou-se a uma modalidade de poder sobre a vida que se aplica aos vivos, à
população e à vida se associa ao discurso racista e à luta das raças (Cf. MOTTA: 2003,
p. 08).
Essa transição da disciplina para um biopoder não anula a primeira, mas
articula-se a ela. Trata-se de uma governamentalidade, que foca na multiplicidade dos
homens que formam “(...) uma massa global, afetada por processo de conjunto que são
próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença,
etc..” (FOUCAULT: 1999, p. 289). A tomada do poder sobre o corpo, que de acordo
com os estudos foucaultianos se deram no século XVIII inaugurando uma sociedade
disciplinar e no século seguinte sobre o corpo da população, inaugurando um biopoder
contribuem para o estudo sobre as instituições educacionais no Brasil e em particular da
Escola Orsina da Fonseca, já que, essa instituição corrobora para a compreensão dos
debates sobre higiene, raça, gênero e controle populacional. As relações intricadas do
poder-saber estudadas por Foucault fomentam uma análise dos documentos da escola
capaz de perceber o funcionamento destas técnicas disciplinares e da biopolítica
presentes no Brasil da virada do século XIX e início do século XX.
A analítica do poder na modernidade realizada por Michel Foucault serve para
refletirmos sobre as instituições brasileiras, tal como, as escolas; já que o Brasil com
uma cultura política e intelectual eurocêntrica não ficou imune aos mesmos processos
da biopolítica diagnóstica por ele, na sociedade francesa na virada do século XX. A
biopolítica trata sobretudo do cuidado com a população demonstrado pelo estado por
meio de pesquisa, estudos e levantamento de dados como as taxas de natalidade e
mortalidade, de longevidade, reprodução e fecundidade- capaz de facilitar a gestão da
população a fim de evitar os custos econômicos com uma população doente. Trata-se
enfim de otimizar o tempo de trabalho do homem-corpo e do homem enquanto espécie.
As doenças, epidemias e anomalias diversas tornam-se, enfim, um caso de higiene
pública e, por conseguinte de educação.

sumário 892
VII Seminário Vozes da Educação

Apesar dos estudos de Michel Foucault terem como fontes os arquivos e


documentos franceses, o Brasil com uma cultura política eurocêntrica não ficou imune a
este processo. Esta biopolítica diagnosticada por ele e que cuida dos dados sobre
nascimentos e óbitos, da taxa de reprodução e fecundidade da população, da
longevidade, mapeia os fenômenos que possam, de uma certa maneira, reduzir a força
da população frente ao Estado, que possa diminuir o tempo do trabalho do homem-
corpo e do homem enquanto espécie, que provoca custos econômicos por causa de uma
doença, por causa das epidemias, das anomalias diversas, por falta de uma higiene
pública.
É neste contexto de preocupações do homem-espécie, com a massa, com os
corpos que perambulam pela cidade - capital do Rio de Janeiro, que surge o problema
de centralizar informações, medicalizar a população agir aonde a Igreja, que até então se
fazia quase que exclusivamente presente, é que podemos compreender a emergência de
se instituir Institutos e Escolas tanto femininas quanto masculinas, tendo como objetivo
sanar problemas ligados à criminalidade, promiscuidade e vadiagem dos menores que
perambulavam pela cidade - capital.
A cidade é tratada como um corpo (CAMARA: 2010) no qual se intervém para
torná-la civilizada, limpa e saudável aos moldes dos padrões europeus. No início do
século XX, a cidade do Rio de Janeiro:

(...) foi marcada pela derrubada de antigos casarões, abertura de novas


avenidas, arrasamento do Morro do Castelo e por sucessivos aterramentos e
saneamento de regiões até então inabitadas, como Copacabana e a Lagoa
Rodrigo de Freitas. Com essas investidas urbanísticas, a cidade viu surgir
novos contornos sociais e geográficos para a sua paisagem (CAMARA:
2010, p. 81).

A difusão dos ideais de modernidade, civilização e progresso se encontram


presentes na reestruturação não só do espaço físico como, também, no espargimento das
imagens dos habitantes e suas habitações, locais de trabalho ou de diversão que
reunidos amalgamam a cara da cidade do Rio de Janeiro, Capital Federal e Cartão –
Postal do país, não só para os outros Estados como para o mundo externo civilizado e
moderno.
Dentre as mudanças vividas e sentidas pela cidade-Capital encontramos as
reformas urbanas que alteram não apenas urbanisticamente vários lugares da cidade,
mas, também, os hábitos e costumes da população proibindo a circulação de ambulantes

sumário 893
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pelas grandes avenidas, como dar esmolas aos pobres, a forma de se vestir
publicamente, a imposição de hábitos de higiene e a vacinação coletiva, o saneamento
público, dentre outros aspectos que privilegiavam a moralização da população carioca,
criando e difundido para o país a ideia de civilização.
Mas como propagar essas novas normas de forma rápida e que a população, em
sua totalidade analfabeta, conseguisse entender? Nesse momento o Estado Brasileiro
utiliza-se da fotografia para propagar uma nova visão de mundo.

As fotografias foram tratadas como uma mensagem que configuram um


discurso visual que, cruzadas com jornais e periódicos cariocas da época,
complementaram o conjunto de documentos permitindo através da
intertextualidade uma interpretação dos modos de ser e agir da sociedade
carioca da belle époque. Além do que, na intenção de empregar a fotografia
para além de sua característica ilustrativa nos utilizamos de uma ampla série
com certa homogeneidade, proporcionando-nos dar conta das similaridades e
diferenças próprias dos grupos de imagens que nos propusemos analisar.
(GRALHA: 2008, p. 03)

Através das lentes do fotógrafo Augusto Malta, contratado em 1903 pelo


prefeito Pereira Passos para registrar as mudanças que começavam a ser operadas na
cidade-Capital, conseguimos entender como a reforma urbana mudou o comportamento,
os hábitos e a vida da população carioca.
Dentre os espaços destinados para a captura de imagens de modernidade e
progresso, atreladas a ideia de civilização está o Instituto Profissional Feminino. As
imagens capturadas pelas lentes e olhares de Augusto Malta do Instituto Profissional
Orsina da Fonseca já foram exploradas em pesquisas anteriores. Nestas foram
assinaladas o modo pelo qual estas fotografias demonstram como as alunas eram
retratadas no espaço escolar, os eventos e as atividades cotidianas que mais aparecem
nas suas imagens, as razões da implementação de um instituto profissionalizante
feminino e o projeto político-pedagógico do mesmo (BONATO; CAMARA: 1996, p.
10).
As fotografias de Augusto Malta (ARAÚJO: 2016) apresentavam as atividades
escolares cotidianas e as relações de poder no interior da instituição. Para Nailda Bonato
as imagens produzidas por ele refletiam a visão do poder oficial que o contratou
justamente para registrar a modernização da cidade do Rio de Janeiro implementadas
durante o governo do prefeito Pereira Passos.

sumário 894
VII Seminário Vozes da Educação

Imagem 01: Arquivo permanente da E. M. Orsina da Fonseca. Acervo CMOF

Augusto Malta registrou através de suas lentes as aulas de ginásticas, de


bordado, as atividades cívicas, as festas, o refeitório, os dormitórios, a exposição de
trabalhos manuais, bem como a arquitetura do edifício da escola. Assim,
monumentalizou-se a presença do Estado na educação das meninas, visitas de
autoridades como prefeitos, ministros e presidentes. Isso, ao longo dos anos,
transformou-se em registro e memória da história da escola.

Imagem 02: Arquivo permanente da E. M. Orsina da Fonseca.


Acervo CMOF. Série: Exposições

sumário 895
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Em seus estudos Nailda Bonato, afirma que os institutos femininos ocuparam o


centro do palco como modelo de educação de sucesso naquelas primeiras décadas da
república e, assim, muitas das fotos produzidas por Malta para difundir este modelo
escolar,

(...) parecem terem sido produzidas para a exposição, divulgação das práticas
pedagógicas, como propaganda e testemunho da façanha do estado como
educador, ao mesmo tempo cumprindo uma função educativa da população e
representativa do que e do como deve ser o feminino na sociedade.
(BOANTO: 2009, p. 03)

De acordo com Oliveira Junior, podemos destacar 03 gêneros específicos da


produção das imagens do fotógrafo Augusto Malta: o documentarismo, o paisagismo e
o retratismo. Sabendo-se que o primeiro define mais propriamente a caracterização das
fotografias de escolas, as quais constituiriam praticamente uma “série construída do
modo mais homogêneo possível” (CAMPOS: 2015, p. 44). Malta passou a ter um papel
de destaque na construção da memória carioca exercendo além da sua função
administrativa burocrática um papel político-social já que suas fotografias estavam
inseridas em um projeto que consistia em mudar a imagem da capital, transformando a
antiga cidade colonial do Rio de Janeiro em uma capital moderna.
Com as fotografias de Malta perpetuou-se historicamente a gestão de Pereira
Passos. Ele tinha a concepção da fotografia como um registro neutro da realidade,
objetivo, capaz de registrar a verdade das coisas (CIAVATTA, Apud CAMPOS: 2015,
p. 45).
Participando do governo de 19 prefeitos da cidade do Rio de Janeiro, ele
desempenhou seu papel de utilizar a imagem para registrar feitos da política pública e
em relação as instituições escolares suas fotografias “cumpriram perfeitamente esse
referido papel de registrar as realizações dos governos municipais” (CIAVATTA, Apud
CAMPOS: 2015, p. 45). Deste modo, ele destacou o que ele mesmo ou seus superiores
hierárquicos consideravam importante como registro da escola pública, pois “A imagem
captada por sua máquina fotográfica corresponde a um fragmento da realidade que
equivale a uma percepção que o fotógrafo tem de sua própria forma de ver o mundo”
CIAVATTA, Apud CAMPOS: 2015, p. 45).
No bojo dessas mudanças urbanísticas e moralizadoras a história do Instituto
Profissional Feminino da Orsina da Fonseca também se engendra e adentra no discurso

sumário 896
VII Seminário Vozes da Educação

eugenista e higienista que articulava educação e saúde. Trata-se de uma história que se
passa na “Era da higiene” (ROCHA: 2003), onde o disciplinamento da população, por
meio da articulação da higiene e da moral tornavam-se imperativos. Para Almeida
Junior a educação era, naquele momento, compreendida como a arte de formar hábitos,
objetivando assim:

(...) a atingir a aquisição de hábitos e desenvolver a capacidade de


compreensão e adaptação, a educação sanitária deveria ancorar-se em vários
elementos concretos, dentro os quais se destaca um conjunto de práticas que
deveriam instituir-se no cotidiano da escola, conformando os corpos e as
mentes dos alunos” (ROCHA: 2003, p.47).

No caso dos registros fotográficos do Instituto Profissional a higiene e a moral


eram estratégias de governo dos corpos das meninas a fim de extrair deles o máximo de
produtivo como numa grande indústria, na massificação dos produtos e mesmo da
própria educação. Pelas fotos vemos que há predominantemente a uniformização das
roupas, gestos e trabalhos realizados, poucos sorrisos escapam a lente lógica e moderna
do fotógrafo.
No espaço da sala de aula as teorias higienistas e eugenistas também aparecem
no conjunto de fotografias. Novamente exaltando a mesma uniformização de matérias
expostos nas carteiras, aos gestos concentrado a fala da professora e a postura desta no
comando e observação das demais. Um tablado para a professora e as carteiras dispostas
enfileiradas contribuem para o aspecto de ordem e progresso que as fotos do Instituto
procuravam demonstrar.

Imagem 03: Arquivo


permanente da E. M.
Orsina da Fonseca.
Acervo CMOF

sumário 897
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Coerentemente com o currículo estabelecido, o Instituto dedicava-se ao ensino


de mais horas as tarefas manuais do que teóricas. Contra as dez (10) disciplinas
tradicionais-teóricas, tais como, português, matemática, história e desenho, temos um
conjunto de 13 disciplinas que giram em torno da higiene, enfermagem até as aulas de
economia doméstica e contabilidade. Era um conjunto de disciplinas que cuidavam
tanto dos aspectos mais formais da educação até os mais técnicos com ênfase na higiene
e trabalhos domésticos.
As oficinas, por exemplo, tinham de caráter obrigatório e optativo. As de rendas
e bordados assim como as de corte e costura eram obrigatórias nos primeiros anos, já as
de flores e chapéus eram optativas.

Imagem 04: Arquivo permanente da E. M. Orsina da Fonseca. Acervo


CMOF -Série: Postais

Um conjunto de fotografias como estas se assemelham. Geralmente fotos


posadas e que registravam o labor das meninas como nas imagens das oficinas de
bordado e de confecção de chapéu. Uniformizadas e concentradas essas imagens dão o
sentido dos objetivos da educação nos primeiros anos da república ordem e progresso
por meio da valoração do esforço do trabalho. Quase sempre as fotografias traziam
também a professora que se destacava por sua indumentária diversa do uniforme das
meninas e de sua postura de comando ou observação tal como nesta imagem de uma
oficina de costura:
Geralmente em pé ou atrás da mesa do mestre, as professoras se posicionam de
forma a demonstrar o seu oficio vinculado a observação, o ensino e a correção das
tarefas. Une-se a essas sensações de trabalho e concentração ao da disciplina dos corpos

sumário 898
VII Seminário Vozes da Educação

e da uniformidade. Não há quase espaço para descontração nas imagens, se os corpos


não estavam curvados sob o oficio da costura e outras confecções estava ereto com os
braços rente ao corpo ao lado ou frente ao produto final do seu oficio. Quando o registro
fotográfico não capta o trabalho e o produto final, capta o exercício para o corpo.
Novamente não há lugar para descontração, todas realizam uniformemente o mesmo
movimento, seguindo a professora que se destaca a frente do conjunto de alunas.

Imagem 05: Arquivo permanente da E. M. Orsina da Fonseca. Acervo


CMOF -Série: Postais

Não apenas as fotografias de A. Malta retratam toda uma rede de saber-poder


instituída pelo governo republicano. Todas as técnicas advindas deste biopoder, deste
controle da vida populacional por parte do Estado que se irradia pelos médicos,
professores, policiais e outras instituições reproduzem e instituem mecanismos mais
sutis, racionais e seguros em torno da população.
Um dos mecanismos utilizados para a colocação de crianças órfãs de pai ou mãe
nos Institutos ou nas Escolas foi o atestado de pobreza solicitado por um dos pais ou
pelo tutor da criança para o delegado de polícia. Que após o atesto deveria ser levado
para o (a) diretor (a) da escola ou do Instituto para comprovação da situação das
crianças e que seria anexado à pasta de documento da aluna.

sumário 899
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Imagem 06: Arquivo permanente da E. M. Orsina da Fonseca. Acervo CMOF -Série:


Pastas das Alunas - Arquivo da Aluna Rachel Filgueiras Vianna, matriculada em
07/06/1927 no Instituto Profissional Feminino Orsina da Fonseca

Imagem 07: Arquivo permanente da E. M. Orsina da Fonseca. Acervo CMOF -Série: Pastas
das Alunas - Arquivo da Aluna Rachel Filgueiras Vianna, matriculada em 07/06/1927 no
Instituto Profissional Feminino Orsina da Fonseca

A cidade e a população aparecem como um problema da biopolítica, e, desta


forma, as teorias raciais que circulavam na Europa e nos EUA no final do século XIX,
foram reelaboradas no Brasil de maneira especial nos primeiros anos do século XX.

sumário 900
VII Seminário Vozes da Educação

A necessidade de uma “revolução de costumes”, voltada para a população mais


pobre atinge diretamente as crianças e jovens, prioritariamente as meninas oriundas de
populações pobres, pois essa revolução trazia em seu bojo a mudança de hábitos de
origem por maneiras ditas e vistas como civilizadas. Muito mais que instruir era
necessário educar. E essa educação se traduzia, também, como um ordenamento dos
corpos, fato que estava presente na legislação do ensino, nas formas de organização e
ocupação dos espaços não apenas escolares como também sociais, organização e
disposição dos tempos escolares, na estruturação da grade curricular e na oferta de
diferentes disciplinas nos programas de ensino, na difusão e instituição de hábitos
higiênicos que deveriam ser rigidamente acompanhados pelas equipes de inspeção
médica, presentes nas rotinas escolares, sempre próximas às práticas de trabalho, tudo
supervisionado e orientado pelos profissionais da educação: diretoras e professoras, que
se encontravam imbuídas em difundir os ideais de modernidade e civilização presente
nos discurso políticos e higienistas da época.
As formas pelas quais os seres humanos tornam-se sujeitos possuem diversas
histórias. Para Michel Foucault, podemos apreender a construção da subjetividade na
cultura ocidental estabelecendo suas raízes genealógicas, mediante a observação das
transformações culturais e das formas de governamentalidade. Isto é, para o filósofo, o
genealogista deve estar atento para as mudanças que operaram nas mais fugidias
práticas cotidianas e não perder de vista as normas que foram sendo transformadas,
transgredidas ou reafirmadas, no interior de uma determinada cultura, para o governo do
outro e de si mesmo (FOUCAULT: 2001c). Este tipo de investigação histórica tem uma
preocupação com os perigos do presente. Perigos estes, desvelados pelas observações
que se podem fazer da passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle.
Este trabalho busca, assim, com M. Foucault realizar uma história da escola
Orsina da Fonseca atenta, não apenas ao vigiar e punir presente na escola moderna, mas,
principalmente, às técnicas de si através do empreendimento das transformações, na
nossa cultura, das “relações consigo mesmo”, com seu arcabouço técnico e seus efeitos
de saber. Em outras palavras, argumenta-se que na relação ensino-aprendizagem
presente no currículo escolar e em outras fontes da Orsina da Fonseca podemos inferir
essas técnicas e articulá-las a análise das formas de “governamentalidade”. Isto é, das
formas de governo de si por si e em relação ao outro como é encontrada na pedagogia,
nos conselhos de conduta, na direção espiritual, na prescrição dos modelos de vida etc.
(FOUCAULT: 1997, p. 111).

sumário 901
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Sustentamos a partir de M. Foucault que o sujeito só pode ser histórico e que o


campo da ação humana é o espaço no qual se desenvolvem as lutas em torno da
subjetividade. Na modernidade, conforme a sua análise, a constituição do ser sujeito
perpassa por estratégias dos saberes e práticas médicas que se ocupam da vida e de seus
perigos. Para uma melhor compreensão, deste, crescente poder sobre a vida na
modernidade o filósofo formulou o conceito de biopolítica, um poder que tem como
alvo, ao mesmo tempo, o corpo do indivíduo e a população. É sobre a vida da população
e do corpo que ocorrem os procedimentos de normalização que são estudados a partir
das diversas instituições como escola, família, exército e os diversos saberes sobre o
homem tal como a medicina.
A vigilância médica que marca a modernidade, para Foucault, sugere certas
condições de comportamento percebido através do olhar médico que compõe os
procedimentos de normalização que fazem parte da biopolítica. Para Peter Conrad
(1992), a vigilância médica descrita pelo filósofo é uma das categorias que compõe o
controle médico social em expansão na sociedade contemporânea. Fazem parte também
destas categorias a ideologia médica, a colaboração e a tecnologia que vem definir
determinados comportamentos, pessoas e coisas dentro do universo do que é
considerado normal ou patológico. A definição de medicalização, segundo o autor, dá a
legitimidade deste controle social exercido pelo poder médico. Medicalização é o
processo sociocultural, que pode ou não envolver um médico profissional, pelos quais
problemas não médicos são definidos e tratados como problema médico, usualmente em
termos de doença ou distúrbio (CONRAD: 1992, p. 211).
Nos trabalhos anteriores sobre a loucura, as ciências humanas, o nascimento da
clínica e das prisões Foucault já tinha deixado claro que a subjetividade do indivíduo é
construída pelos múltiplos poderes e saberes exercidos na igreja, na escola, na fábrica,
no hospício, na família entre outras relações e instituições sociais ocidentais modernas.
Estas pesquisas nos legaram um diagnóstico da modernidade: época em que os
indivíduos são definidos e segregados segundo um olhar, sobretudo médico e normativo
- que como produto e efeito de saberes e práticas sociais -são responsáveis por fabricar
subjetividades dóceis e disciplinadas.
As pesquisas do filósofo, em torno da formação de um saber sobre o homem,
provocaram deslocamentos sucessivos na noção de discurso até ser compreendido como
uma prática, entendida como produto de estratégias e relações de poder. As práticas
discursivas possuem função de corroborar nos processos de subjetivação. Uma vez em

sumário 902
VII Seminário Vozes da Educação

que elas sempre funcionam produzindo saberes em função das relações de poderes que
extrapolam as instituições e o aparelho de estado estando presente nas atividades
humanas mais cotidianas.
Foucault demonstrou a positividade desta relação saber-poder fundamentalmente
em seu trabalho sobre o nascimento da prisão moderna observando que o olhar
normativo se prolifera nas inúmeras estratégias como de controle e vigilância, junto
com todo um aparato médico-pedagógico e judicial que irá compor uma ortopedia
moral com a finalidade de formar subjetividades dóceis.
Mas, foi ao mudar a direção teórica e metodológica da sua História da
Sexualidade, nas obras O uso dos Prazeres e O Cuidado de Sique as práticas discursivas
passaram a serem entendidas por Foucault, como um modo pelo qual o indivíduo se
relaciona consigo mesmo, isto é, como meio de subjetivação exercida pelo indivíduo a
fim de tornar-se um sujeito que porta certos valores estéticos e éticos. Deste modo, as
práticas discursivas nos constituem historicamente, fazem parte de uma experiência, que
correlaciona numa cultura, saberes, tipos de normatividade e formas de subjetividade
(FOUCAULT: 2001, p.10).
É nesse sentido que as práticas discursivas que podemos analisar a partir das
imagens e documentos da escola serão compreendidas como objeto de estudo e análise
social, histórica, política e pedagógica das instituições educacionais da primeira
república. Sendo observadas as práticas educacionais, os procedimentos disciplinares,
as estratégias e as relações de poder o olhar deste trabalho se dirigirá para o
funcionamento dessas relações de poder-saber como instituidores de identidades
femininas reconhecidas socialmente como ideais.
A maneira de proceder sua investigação e as reflexões suscitadas pela obra de
Foucault como um todo tornou possível a elaboração da pesquisa que dá origem a esse
artigo que compreende a subjetividade dos indivíduos como uma construção sócio
histórica e cultural. Isto é, entende-se que o ser humano torna-se sujeito, como por
exemplo, de uma sexualidade, a partir de suas vivências entre práticas sociais e normas
que, de acordo com Foucault, são sempre efeitos de poder.
Essas questões são fundamentais quando tratamos de analisar os documentos de
uma escola voltada a educação das mulheres na virada do século XIX para o século XX
e nas primeiras décadas deste último. Afinal de contas, trata-se de pensar a educação
levando-se em conta a outras categorias e marcadores sociais como raça e gênero. No
caso da Escola Orsina da Fonseca cabe destacar a concepção hegemônica de que:

sumário 903
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

(...) as “mulheres deveriam ser mais educadas do que instruídas”, ou seja,


para elas a ênfase deveria recair sobre a formação moral, sobre a constituição
do caráter; sendo suficientes, provavelmente, doses pequenas ou doses
menores de instrução. Na opinião de muitos, não havia porque mobiliar a
cabeça da mulher com informações ou conhecimentos, já que seu destino
primordial – como esposa e mãe – exigiria, acima de tudo, uma moral sólida
e bons princípios. (LOURO: 2010, p. 446).

Daí um currículo recheado de aprendizagens relacionados a bordados e


artesanatos, a higiene da família e a construção da cidadania. Cidadania no sentido de
formação das filhas dos desamparados, das órfãs, das futuras esposas dos trabalhadores
enfim das camadas populares que deveriam aprender o valor do trabalho, do asseio, da
honestidade. Deste modo, higienistas e religiosos brasileiros responsabilizavam a
mulher pela manutenção da família saudável. “O casamento e a maternidade eram
efetivamente constituídos como a verdadeira carreira feminina” (cf. LOURO: 2010, p.
447).
Guacira Lopes Louro dedicou-se a pesquisar a escolarização do doméstico e a
chamar a atenção para as diferenças previstas na educação de mulheres e de homens.
Diferenças que se fazem de acordo com modelos, ideais, imagens que as diferentes
classes, raças, religiões etc. tem sobre mulher e sobre homem (LOURO; MAYER:
1993, p.3). Tendo como foco de análise uma escola técnica para mulheres no Rio
Grande do Sul, ela afirma:

É necessário lembrar que há uma explícita intenção de formação de


competentes donas de casa, os cursos ministrados na escola técnica seriam
provavelmente um interessante “estágio” antes do casamento. Assim,
provavelmente, a formação como costureira, modista, chapeleira, tapeçaria,
decoradora, etc; proporcionada pela instituição, representava o acréscimo de
importantes dotes, que iriam valorizar essas moças no “mercado de
casamento” (LOURO; MAYER: 1993, p.3).

Desta forma, a emergência da categoria de gênero recoloca a questão tornar-se


sujeito como ponto de partida para pensar o feminino e o masculino. Opondo-se a uma
postura essencialista e universalista, os estudos que levam em consideração a noção de
gênero visam “descartar alusões a um atavismo biológico para explicar as feições que o
feminino e o masculino assumem em múltiplas culturas” (HEILBORN: 2004, p. 19).
Nesta perspectiva construtivista da sexualidade que busca desnaturalizá-la, insere-se a
metodologia da pesquisa que embasa o presente trabalho que entende a subjetividade

sumário 904
VII Seminário Vozes da Educação

feminina como algo que é fabricado de acordo com a cultura e suas práticas sociais, na
qual a escola é um elemento fundamental.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 906
VII Seminário Vozes da Educação

PRÁTICAS POTENCIALIZADORAS NA ESCOLA PÚBLICA: O PALCO SAI


DA ESCOLA E AS PIPAS SÃO O CENÁRIO

Verônica Gomes de Aquino


EMVJSB
aquinoveronicaop@gmail.com

O presente texto nasce sem que houvesse pensado no tema das pipas ou, ainda,
no "I Festival de Pipas da Nicanor", atividade desenvolvida na Festa do Folclore em
agosto de 2002. Apresentando um álbum de fotografias à prof.ª Regina Leite Garcia,
que trazia fotos da escola e de algumas práticas desenvolvida por nós que trabalhamos
na Nicanor, fui chamada à atenção sobre as fotos de pipas no corredor da escola. Regina
me pediu para falar um pouco como o festival de pipas havia sido tecido. Não
imaginava que, ao contar o episódio, iniciava mais um capítulo da dissertação. Regina
sugeriu, então, que escrevesse sobre o tema “I Festival de Pipas da Nicanor”.
No momento do festival, não imaginava que a prática de fazer pipas pudesse ser
explorada; descuidei do material que poderia aprofundar na dissertação. O ainda não-
saber o que poderia ser transformado em material de pesquisa não impossibilitou que o
texto fosse escrito e também que fossem realizadas reflexões sobre as potencialidades
que pudessem vir a surgir a partir da dissertação.
Escrever o texto representou um desafio, pois teria que retomar meses e
recuperar dados que havia deixado de lado. Puxei, então, alguns fios me preocupando
principalmente com o processo de preparação, organização e com os conhecimentos que
estariam surgindo ao discutir o festival de pipas. Não sabia que caminhos
metodológicos tomar e optei por conversar com as pessoas que participaram do festival
e, a partir desse ponto, ou seja, da conversa com aqueles que realizaram o festival, fui
buscando outras pessoas, registrando falas e imagens dos “pipeiros” do Município de
São Gonçalo para que pudesse compreender em que o festival da Nicanor
potencializaria os sujeitos que nela estão.
Deste modo, ao escrever o texto, fui desenvolvendo duas preocupações na busca
de compreender o cotidiano da Escola Nicanor. A primeira é como, cotidiana e
coletivamente, os sujeitos escolares dialogam para organizar e realizar as atividades que

sumário 907
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

fazem o movimento da escola; a segunda diz respeito aos encontros dos conhecimentos
curriculares, aqui entendidos como os oficialmente escolhidos para o processo ensino-
aprendizagem, e os saberes que os sujeitos escolares trazem de suas redes de formação
para além da escola. Assim, fui trabalhando com os sujeitos escolares, os sujeitos não-
escolares, as fontes de livros, revistas, fotografias, as conversas informais e as reuniões
formais, tecendo uma rede não como uma imagem acabada, mas como conhecimentos
que são tecidos a partir de certos fios que vão sendo trançados, de outros fios que vão
sendo deixados provisoriamente de lado, de outros tantos que vão sendo destrançados
(Azevedo, 2001, p. 64).
A cena tem início no final do 1º semestre de 2002, durante as reuniões de
planejamento, quando pensamos nos eventos que deveriam acontecer entre agosto e
dezembro. No retorno do recesso de julho, no entanto, estávamos com a escola em obra
e eram muitas as dificuldades decorrentes disso; por isso, a equipe precisou rediscutir
como se organizar para o segundo semestre. Na primeira reunião, Janaína, orientadora
pedagógica, trouxe, como um dos pontos de pauta, a realização de uma atividade
cultural para atender à solicitação do Departamento de Cultura da SEMED. Marcelo,
professor de Educação Física, propôs a realização de um evento que pudesse recuperar a
ideia da festa junina, que deveria ter acontecido em julho, sugerindo, então, uma festa
do folclore, a ser realizada em 10 de agosto.
Devo acrescentar que o dia do folclore, comemorado no mês de agosto, foi
instituído nos calendários das escolas, nos anos duros de ditadura, especificamente em
1965, em decreto do presidente Castelo Branco. Os estudos realizados sobre o tema até
este período – que ampliavam as discussões do folclore e da cultura popular como
ciência e campo de estudo – foram deixados de lado.
A forma que conhecíamos dos modelos experimentados nas comemorações
sobre o tema nas escolas em que atuamos não nos permitiu, naquele momento,
problematizar o folclore e a cultura popular como campo de estudos e de pesquisa.
Ampliar os conhecimentos sobre costumes, crenças, músicas, ou seja, sobre os saberes
pertencentes à cultura de nossos alunos/as, não foi possível com a compreensão que
tínhamos e ainda hoje temos sobre folclore e cultura popular. Porém, Ana, ao levantar
hipótese de uma atividade que fosse diferente das já conhecidas, abre a possibilidade de
outras reflexões e ações. Discutindo sobre as atividades que aconteceriam durante a
festa e considerando a fala da professora Ana, Janaína propôs que talvez pudesse existir
um espaço para apresentação de pipas. O grupo achou a ideia interessante como uma

sumário 908
VII Seminário Vozes da Educação

das atividades da festa do folclore e as discussões deram origem ao “I Festival de Pipas


da Nicanor”, que foi sendo tecido pelo grupo nas reuniões que aconteceram para a
organização da festa do folclore. O festival foi uma das atividades escolhidas para a
festa, buscando recuperar os saberes populares do bairro Jardim Catarina.
Em relação à preparação do festival em si, surgiram algumas dificuldades, como,
por exemplo, fazer as pipas na escola, guardá-las quando não tínhamos espaço, dentre
outras. Regina, professora da 2ª etapa do 2º ciclo, dizia que não sabia fazer pipas e teria
dificuldades em saber como trabalhar com as crianças. Dificuldades de quem
desconhecia o fazer de pipas: este problema não era da Regina apenas, mas do grupo em
si, já que somente um ou outro dominava este conhecimento. Como poderíamos fazer
com as crianças algo que pressupunha um conhecimento que não dominávamos?
A questão sobre quais conhecimentos a produção de pipas poderia desenvolver e
como trabalhá-los relacionados ao currículo oficial, nas áreas instituídas por esse
currículo, não foi um ponto relevante nas discussões, pois nos preocupávamos com a
atividade que iria representar as tradições e valores da cultura popular.
Ao planejarmos as comemorações sobre o folclore – atividade que faz parte do
calendário escolar – e sem terem acontecido discussões mais específicas sobre o tema,
trabalhávamos com os saberes escolares, com o currículo oficial. Cumpríamos o que foi
determinado pela SEMED e explorávamos o que acreditávamos ser folclore, ou seja, a
concepção que aprendemos enquanto alunos/as nos cursos de formação de
professores/as e nas escolas por que passamos. Nossas experiências enquanto alunos/as
e profissionais retornam quando temos que elaborar o nosso trabalho. Assim,
reproduzimos mas também inovamos nossas vivências educacionais, seja como
profissional ou como aluno/a.
Nas reuniões, dividimos quem ficaria com as atividades danças, comidas,
ensaios, ornamentação e o festival de pipas. Dividimos responsabilidades entre nós,
componentes do grupo. Patrícia, a agente de leitura da escola na época, foi quem ficou à
frente do festival, organizando a atividade para o dia da festa do folclore junto aos
professores/as e alunos/as.
Para o festival, normas e regras foram traçadas pela equipe, dentre as quais a que
os participantes construiriam suas pipas em casa, o que representa o cotidiano dos/as
alunos/as da Nicanor. Isto abriu uma discussão que fazer as pipas na escola poderia
proporciona, além do resgate cultural e da ampliação da técnica, outras vivências, como
a colaboração, a troca a solidariedade. Esta oportunidade, infelizmente, naquele

sumário 909
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

momento, deixamos escapar, este poderia ter sido um dos espaços/tempos em que
saberes cotidianos e saberes escolares se trançariam.
Neste sentido, mesmo que nós da equipe não tivéssemos realizado discussões
direcionadas de quais conteúdos e atividades as crianças realizariam com o festival de
pipas, ficam claras as marcas trazidas de um currículo restrito. Cumpríamos uma
atividade que tinha como objetivo comemorar uma data do calendário escolar, "o dia do
folclore". Ao mesmo tempo em que cumpríamos este calendário, possibilitávamos,
ainda uma maior visibilidade na escola, dos pipeiros e da cultura das pipas.
O festival em si não foi novidade como atividade do folclore, pois podemos
encontrá-lo como parte das atividades folclóricas de outras escolas. Ele representou em
si a oportunidade de explorar conhecimentos que pouco são lembrados e legitimados no
universo da escola Nicanor ou no universo educacional, pois os festivais de pipas fazem
parte, pelo menos há dezenove anos, da cultura municipal. O evento mais conhecido de
pipas acontece no maior clube do município, o Clube Mauá, entre outros festivais, como
o Festival do Coroado, que tem apenas quatro anos.
O festival – como uma atividade cultural e extracurricular planejada pela equipe
durante as reuniões formais e as reuniões informais que aconteciam nos corredores e
salas de aula – foi acontecendo desde o retorno às aulas, em agosto, até o dia da festa. A
atividade foi sendo divulgada e conversada em todas as turmas, e as perguntas mais
frequentes dos alunos e das alunas que desejavam participar eram sobre como se
inscrever. Uma das meninas que participou perguntou à Patrícia: Meninas podem
participar? Como se somente meninos fizessem pipas.
A preparação do festival aconteceu por duas semanas, e não poderíamos saber
como estariam sendo produzidas as pipas, que nos chegavam prontas. Experiências e
fazeres foram sendo tecidos praticamente fora da escola.
No dia da festa, o festival teria seu ponto culminante com a avaliação das pipas
através de critérios e normas determinadas pela equipe e que já fazem parte dos festivais
do município. Os critérios são: a pipa mais bonita, a maior, a menor e a mais original. A
entrega das medalhas realizou-se no palanque montado para as apresentações da festa
do folclore.

TRABALHO COLETIVO / REUNIÕES: DIÁLOGOS TECIDOS


Em todo este processo de reuniões, organização e execução da festa, elaboro a
ideia sobre a forma como a equipe se colocou para discutir e tomar decisões. O festival

sumário 910
VII Seminário Vozes da Educação

passou a fazer parte do calendário escolar da Nicanor, pois voltaria a acontecer no ano
seguinte.
Chama-me a atenção, como orientadora educacional da escola, que o espaço de
reunião seja favorável a que todos/as apresentem suas ideias, ampliando e discutindo a
“pauta”, que apresenta, geralmente, o retorno do que foi discutido em outros encontros,
o trabalho a ser realizado durante o mês e informações gerais do município e da escola.
Poder falar, expondo suas ideias e ser ouvido, ainda é um processo difícil no
coletivo. Difícil por provocar medo, insegurança e outros sentimentos que pertencem ao
homem e à mulher. Sujeitos que, em uma sociedade excludente e desigual, são
educados a ouvir e se calar, haja vista a tradicional frase "Cala a boca menino/a" ou
ainda "Aqui eu falo e vocês obedecem". Pessoas que, quando necessitam brigar por seus
direitos, escutam: "Sabe com quem está falando?",fraseque expõe as relações de poder
que constituem as relações pessoais e sociais. Sujeitos que recebem uma educação –
seja ela escolar ou não (nas famílias, igrejas, reuniões de bairro) – que os leva a aceitar
escolhas prontas, que não podem ser discutidas e questionadas. Freire (1976, p. 49)
observa que

dizer a palavra, em um sentido verdadeiro, é o direito de expressar-se e


expressar o mundo, de criar e recriar, de decidir, de optar. Como tal, não é
privilégio de uns poucos com que silenciam as maiorias. É exatamente por
isso que numa sociedade de classes, seja fundamental a classe dominante
estimular o que vimos chamando cultura do silêncio, em que as classes
dominadas se acham semimudas ou mudas, proibidas de expressar-se
autenticamente, proibidas de ser.

Em princípio, a pauta fechada pode ter, e muitas vezes tem, a função de


silenciamento, ou seja, de não permitir ao outro “ter voz” ou “dizer sua palavra”; pode,
também, ser uma situação de falsa aceitação, em que se propõe um debate de questões
já resolvidas. Esta forma de participação, que se apresenta como coletiva, serve apenas
para dar “legitimidade” a decisões já tomadas, e não para, efetivamente, ser um
processo de decisões do grupo.
Mesmo correndo o risco de estarmos endossando decisões “aparentemente”
coletivas, os encontros também são espaços/tempos para a articulação de novas táticas.
Isto porque, nas reuniões, as relações não são lineares, tampouco os sujeitos
estabelecem apenas monólogos, o que possibilita questionamentos. Entendo que, nos
encontros, esses sujeitos criam espaços dialógicos em que, mesmo quando é trazida uma
pauta “fechada” pela direção/coordenação, há possibilidade de que os profissionais

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

usem seu direito de fala, acreditando em suas capacidades de mudar as decisões e


escolhas, para alterar o que havia previamente sido pensado.
Sobre o diálogo, Paulo Freire nos alerta que, ao estabelecermos conversas com
os grupos em que atuamos, pode-se estabelecer o monólogo ou o diálogo. No caso da
relação monológica, o sujeito fica impedido de explicitar suas próprias questões, o/a
homem/mulher se anulam para a relação, prejudicando a explicitação de sua
criatividade e criticidade. Sendo assim, tanto o sujeito que explicita suas idéias como o
que deixa de explicitá-las corroboram para o não conhecimento de suas potencialidades,
de suas possibilidades de autonomia. "O monólogo, enquanto isolamento, é a negação
do homem (da mulher), é o fechamento da consciência, uma vez que consciência é
abertura" (Freire, 1987, p. 16). Assim, o monólogo não permite aos sujeitos a reflexão
sobre suas questões, sendo a negação do ser sujeito. Negação, pois a presença não
garante a efetiva participação de todos; havendo o monólogo, não haverá diálogo, e
assim nem todos os que se encontram presentes às reuniões e aos grupos de discussão se
expressam, em falas, seus sentimentos e suas ideias.
O diálogo nos possibilita pronunciar o mundo, transformá-lo e criar soluções
para problemas cotidianos. O sujeito que dialoga com seu coletivo sobre sua condição
de vida se percebe e se vê como excluído que, ao mesmo tempo, exclui e vai
aprendendo que, enquanto não se perceber em sua humanidade, não se libertará, e
simultaneamente não poderá atuar para libertar aquele que o excluí de sua humanidade.
Ao tomar consciência da situação vivenciada, tem condições de buscar meios para
transformar a realidade em que vive, agindo no sentido de transformar também a
realidade de vida do seu opressor.
Paulo Freire apresenta o processo dialógico como um ato de amor, através do
qual se estabelecem relações de confiança coletiva, sendo a esperança um fator
importante nesta construção, que fortalece o sujeito dialógico para pronunciar e
transformar o mundo em que vive. O diálogo se estabelece como o exercício de trocas
nas relações entre os sujeitos, trocas que fortalecem a aceitação, a tolerância do outro
em suas diferenças e possibilidades enquanto humanidade. Este movimento influi para
que o trabalho coletivo possa ser mais bem compreendido e desenvolvido.
A reflexão sobre o trabalho coletivo como um processo dialógico permite que a
ação desenvolvida possa ser tratada como um ato de conhecimento. Sendo identificado
como ato de conhecimento, este fazer, segundo Freire, envolve um “movimento
dialético que vai da ação à reflexão sobre ela e desta uma nova ação” (1976. p. 51).

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VII Seminário Vozes da Educação

Sendo assim, a reunião pedagógica pode ser percebida como um espaço/tempo de


trocas, experiências, dúvidas, críticas e criações, possibilitando que o profissional venha
a reconhecer o que antes não reconhecia de seu trabalho coletivo, especificamente de
sua prática cotidiana educativa.
São esses movimentos, mesmo que ainda muito pouco amadurecidos, que Freire
(1976) aponta como exercitadores da capacidade de “perceber o condicionamento de
sua percepção pela estrutura em que se encontram”, a partir do que “sua percepção
começa a mudar, embora isto não signifique ainda a mudança de estrutura”. Mas é
preciso compreender que esses momentos são importantes para a tomada de consciência
de que “a realidade social é transformável; que, feita pelos homens, pelos homens pode
ser mudada; que não é algo intocável” (p. 39).
Por essa lógica, a festa do folclore poderia ter sido apenas um modelo
reproduzido, em que as atividades que normalmente a constituem já estão postas. A
pista que trago para uma possível transformação da concepção linear de currículo na
nossa escola foi a aceitação do festival de pipas como uma atividade diferenciada que,
naquele momento, representou a quebra dessa tendência à reprodução.
Freire ressalta ser importante os sujeitos compreenderem “que o fundamental no
aprendizado (...) é a construção da responsabilidade da liberdade que se assume”,
pautada no respeito mútuo entre os sujeitos, para “a reinvenção de ser humano no
aprendizado de sua autonomia” (1996, p. 105).
As reuniões que antecederam ao festival de pipas – e também durante e depois
dele – representaram, talvez, a busca da autonomia, como nos diz Freire. Reflito, então,
sobre a existência de práticas que representam caminhos nas relações entre
profissionais, caminhos que se podem apresentar sob forma de “arrogância farisaica,
malvada, com que julga os outros e a indulgência macia com que se julga os seus”, e ao
mesmo tempo sob “o clima de respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes,
generosas, em que a autoridade docente e as liberdades dos alunos se assumem
eticamente, autentica o caráter formador do espaço pedagógico” (id., p. 103).
Deste modo, dialogando com Freire, pude observar, através deste exercício, que
a autoridade é aprendida, e que, sendo assim, estamos em permanente processo de
formação profissional. Freire nos diz que a "segurança com que autoridade docente se
move" (1996, p. 102) não se dá necessariamente por uma base cientifica adquirida na
formação; quero deixar claro que o autor apresenta a importância do educador investir
em seus estudos, levando a sério sua formação.

sumário 913
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Freire afirma ainda que os estudos em si, ou seja, a base teórica necessária que
se adquire, não é suficiente para uma prática competente, segura, que favoreça o
exercício da autoridade. Resume que os profissionais podem ter uma excelente
formação teórica, "mas serem autoritários a toda prova” (1996, p. 103).
Neste sentido, as discussões realizadas puderam ir tecendo com maior segurança
o festival de pipas e, ao mesmo tempo as relações entre os profissionais da Nicanor.
Identificar no coletivo a atuação do outro – a firmeza ao apresentar as propostas,
respeitando decisões, não aceitando algumas como, por exemplo, o fazer das pipas na
escola, a falta de tempo para a orientação neste fazer, o não saber fazer pipas trazido
pela professora – me fez reconhecer que esse grupo busca trabalhar de forma coletiva e
que a autonomia de que nos fala Freire pode estar sendo tecida.
O próprio festival das pipas, que nasceu nos diálogos travados nas reuniões,
buscou modificar a forma como estávamos atuando nas atividades do folclore. Na
reflexão sobre a atividade, fui encontrando algumas faltas como, por exemplo, explorar,
junto aos sujeitos escolares, os diferentes conhecimentos que podíamos desenvolver no
espaço escolar.
O fazer das pipas em casa, as discussões que poderiam ser produzidas em sala de
aula e o próprio brincar com as pipas na escola são faltas que, além de apresentarem
omissões do que poderia ter sido esta atividade, me leva a refletir de que pode haver a
ampliação da atividade em outros momentos no próprio espaço escolar. A
potencialidade desta prática vai sendo desdobrada no momento em que assumo as faltas
não como impossibilidade, mas como possibilidades de ampliações e reflexão para
outros fazeres, outras práticas e de crescimento da autonomia do grupo.
O festival representou uma ação que fez nascer uma boa parte das reflexões
presentes neste texto, reflexões que foram sendo trocadas cotidianamente, nos últimos
oito meses, no grupo da Nicanor, em conversas que reconstroem e ampliam a prática
refletindo em mudanças na realização do II Festival de Pipas da Nicanor.
Assumindo as faltas, necessitei ampliar, na pesquisa, conhecimentos sobre como
aconteceu o festival de pipas; durante a escrita do texto, busco fontes diversas para
melhor explorar os conhecimentos não explicitados pelos "fazedores" das pipas do
festival da Nicanor. Nesta busca, fui descobrindo muito sobre o tema, desdobrei
conhecimentos que poderiam ter sido explorados com os/as alunos/as durante o mês,
tive acesso ao como fazer, aos macetes para esse fazer, às formas de soltar, ou ainda à
própria história das pipas.

sumário 914
VII Seminário Vozes da Educação

Ouvir sujeitos da escola e de fora da escola foi uma proposta de ampliação do


conhecimento produzido. As conversas foram utilizadas como um procedimento
metodológico de pesquisa. Curiosa e motivada, fui buscar, no cotidiano, as informações
da realidade sobre a cultura das pipas, ou seja:

num exercício investigativo vamos puxando os fios que originaram aquele


nó, aquela explicação, aquela concepção. Nossa curiosidade e nossa
insatisfação nos impulsionam até o limite de nossas certezas [...]. Pesquisar é
procurar, e só procura quem se acha insatisfeito, inquieto, curioso, quem se
sente desafiado pelo mundo, quem não se conforma com as explicações que
lhe são dadas (Azevedo, 2001, p. 56).

Escrevendo o texto, vou descobrindo, através da pesquisa realizada, vários


conhecimentos sobre o tema, acreditando que os conhecimentos dos participantes do
festival poderiam ter contribuído tanto para alunos/as como para que profissionais
ampliassem o que sabiam sobre o fazer e soltar pipas. O que foi discutido e produzido
entre os participantes fez parte do cotidiano criado e praticado.
Os movimentos que os sujeitos realizam para se tornarem agentes de mudança
de suas realidades permitem, também, acreditarem-se como seres humanos em sua
humanidade, em suas potencialidades, reconhecendo, então, que, para a conquista de
sua autonomia e de uma vida digna, é necessário aprender e ter o diálogo como base
para essa conquista. Acreditarem-se homens/mulheres que sintam pulsar o desejo de se
conhecerem e de conhecerem o outro, transformando-se mutuamente e transformando
as realidades existentes; acreditarem-se homens/mulheres que sintam e compreendam
que só haverá liberdade no momento em que eles/elas, sendo, ao mesmo tempo,
opressores e oprimidos, percebam o sentido da criação e recriação de ideias e ideais,
potencializando-se enquanto coletivo no trabalho em grupo, nas trocas e na aceitação
das diferenças. Essas crenças são fundamentais para que homens/mulheres encontrem,
em sua humanidade, uma possibilidade de "ser mais”.
Para que este “ser mais” venha a ser alcançado, Freire nos fala da importância da
conquista da liberdade e sobre a necessidade de se pensar e executar um projeto
educacional pautado no projeto de uma educação libertadora, que busque, junto às
classes populares, a reflexão sobre as situações a que são submetidos, sendo objetivo
desta pedagogia o fazer e refazer “com ele e não para ele, enquanto homens e mulheres
ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade" (1987, p. 32).

sumário 915
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Sendo assim, necessito lembrar que, ao realizarmos o exercício do diálogo, nas


reuniões formais e nas conversas de corredores, conhecimentos são elaborados
cotidianamente, sejam eles conhecimentos científicos ou do senso comum, mas que
estão presentes no currículo escolar.
Encontro, então, a dificuldade de enxergar que, mesmo trazendo e acreditando
na concepção do currículo ampliado, minha prática se desenvolve em uma visão
reduzida. Entendo melhor, agora, o que minha orientadora comentou numa reunião de
orientação:

– Se você diz que o currículo é a soma de todo o tipo de aprendizagem (...) o


festival pertence ao currículo. Mesmo que ele não se traduza em exercício,
porque o currículo não é somente exercício ou prova. O festival é uma
atividade curricular. Quando a escola não entende isso ela tem uma outra
concepção que deve ser explicitada.

“Nesta ótica, nada é meramente administrativo ou meramente pedagógico, nada


é pouco importante ou insignificante” (Garcia, 1984. p. 46). Portanto, saberes
explicitados nos currículos se trançam aos não-explicitados que, tecidos cotidianamente,
podem ser explorados quanto à riqueza de conhecimentos sem que sejam isolados e
pedagogizados pela escola, como tradicionalmente acontece com as atividades
chamadas de extracurriculares.
Tentando compreender o processo do festival e as concepções curriculares
desenvolvidas, questiono até que ponto nós, enquanto equipe de profissionais, deixamos
de considerar o processo de construção das pipas para valorizar a competição em si.
Competição em ser melhor, em ser mais do que o outro, em ganhar ou perder.
Neste sentido, a contradição existente entre o que discursamos e o que
praticamos é evidente. Digo isto na medida em que a escola Nicanor traz, em sua
proposta pedagógica, o trabalho das relações no coletivo, de modo que alunos/as
compreendam a essência humana da cooperação, do amor enquanto humanidade, do
diálogo como forma de compreender o outro, e, ao mesmo tempo, essa mesma escola
apresenta a proposta da competição através do festival.
Questões sobre os diferentes usos da pipa, que produzem reinvenções cotidianas
(Certeau, 1994), assim como podemos chamar de reinvenção o uso desta brincadeira
como recurso pedagógico. O trabalho de conceitos presentes em diversas disciplinas
escolares, como na física (equilíbrio, força...), na química (misturas, fórmulas...), na
matemática (ângulos, figuras geométricas, divisão...) – e poderíamos listar conteúdos

sumário 916
VII Seminário Vozes da Educação

também em história, geografia, português e outras áreas trabalhadas nos currículos


escolares – efetivamente não acontecem desta maneira na brincadeira pipa. O próprio
experimento de Benjamin Franklin para chegar ao para-raios pode ser visto como um
uso “científico” desta brincadeira.
Soltar pipas, como todas as demais brincadeiras de nossas infâncias e
juventudes, não tem na escola o seu lugar próprio, embora esta seja cotidianamente
invadida por elas. Reconhecer que delas podemos absorver muitos conhecimentos
presentes nos currículos escolares e usá-las para chegar a eles pode ser um recurso
interessante, mas também pode ser mortal para as brincadeiras.
Mortal, pois transformar um conhecimento popular em exercícios de sala de
aula, sem exploração dos muitos conhecimentos existentes, seria confrontar os
conhecimentos sem colocá-los em diálogo. Os exercícios produzidos nas aulas, nas
conversas, estariam explorando os saberes que alunos/as possuem, fazendo o diálogo
entre eles, o que seria enriquecedor para todos/as que participaram do processo.
Refletindo sobre as práticas escolares, crio a hipótese de que os sujeitos que
atuam na Nicanor vêm buscando, através de suas práticas cotidianas, o caminho que
possa estabelecer um diálogo entre os saberes existentes fora da escola e os saberes
escolares, incentivando os/as aluno/as a resgatarem conhecimentos como: soltar pipas,
jogar bola-de-gude, brincar de bonecas, casinha, entre outras. As reflexões advindas
desta pesquisa, após retornarem à escola, podem favorecer que a brincadeira tenha seu
espaço garantido, sem que necessariamente faça parte do currículo instituído, ou seja,
aconteça naturalmente como a bola-de-gude, os piques e as figurinhas.
O estudo das práticas não se deve resumir aos documentos curriculares oficiais,
pois as interações no espaço da escola são ampliadas com os conhecimentos trazidos
pelos participantes escolares. Sendo assim, práticas como o festival de pipas podem
contribuir para a articulação de novos saberes a serem tecidos, diminuindo o
preconceito de que são práticas menores.
O festival de pipas me permite algumas reflexões sobre o cotidiano da escola.
Reconhecer que o cotidiano é permeado por contradições, de modo que, na Nicanor,
ainda exercemos práticas autoritárias, mas que também temos o desejo de que as
práticas desenvolvidas possam significar o aprendizado autonomia, seria acreditar e ter
esperança de que as concepções de educação e de currículo que representam a visão
oficial ainda existentes neste espaço possam vir a ser acrescidas e ampliadas com

sumário 917
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

práticas que nos levem a desenvolver outras concepções que reconheçam o ser sujeito, o
“ser mais”.
Neste momento, me pego meio distante, como se estivesse voando ao refletir
sobre o texto. Detenho-me, então, em uma imagem que se fixa em meus olhos e que me
leva a dialogar com o mesmo: a janela do meu quarto. Olhando para fora, vejo pipas
presas aos fios em frente à minha casa. Hoje, 2 de janeiro de 2003, segundo dia do ano,
os fortes ventos confirmam a "estação das pipas". Tenho, em vários momentos do dia, a
gritaria dos meninos e uma menina, a Tainá, que solta pipa com seu pai, pedindo – Tia
me arruma a pipa que caiu no seu quintal! Volto aos dias de aula na escola e aos/às
alunos/as que, também de férias, podem estar soltando suas pipas, e penso: quantos
novos conhecimentos estarão sendo produzidos fora da escola.
Nos fios soltos do pensamento que teço a partir de minha janela, das pipas
presas aos fios, que se misturam às vozes das crianças e às reflexões da dissertação,
aumento o meu desejo de que, ao iniciar mais um ano letivo, e quando chegar agosto, as
pipas possam retornar à escola. E digo: voltem e voltem sempre de formas diferentes
das que já conhecemos, pois assim poderemos criar, sonhar e transformar, quem sabe,
nossas realidades.

Referências
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sumário 919
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

FONTES E METODOLOGIAS PARA O ESTUDO DE TRAJETÓRIAS


DOCENTES EM IGUAÇU (1933)

Amália Dias
FEBF-UERJ/EHELO/PPGECC
amaliadias@gmail.com

Sara Cristina Gomes Barbosa


FEBF-UERJ/EHELO/IC UERJ
saracristina201129@gmail.com

Os estudos de história da educação local


A pesquisa sobre a história da profissão docente em Iguaçu se soma aos
investimentos de pesquisa que se avolumaram, nos últimos anos, sobre a história da
educação na Baixada Fluminense, região metropolitana a cidade do Rio de Janeiro
(MIGNOT, 2002 MACEDO, 2001; DAVID, 2004; SANTOS, 2008; SILVA, 2008; DIAS, 2014;
GUEDES, 2012; OLIVEIRA, 2012; ALEXANDRE, 2015; LIMA, 2015; PAIVA, 2015; ESTEVES,
2016, RODRIGUES, 2016; SOARES, 2016; CABRAL, 2017; COSTA, 2017; JARA, 2017; PLESSIM,
2017).
As atividades econômicas de produção e exportação de produtos cítricos
realizadas no distrito-sede de Iguaçu, nas décadas de 1920 e 1930, repercutiram na
projeção do município no âmago dos projetos ruralistas que caracterizavam a politica
estadual fluminense naqueles tempos. Em estudo anterior, investigamos as relações
entre os projetos de sociedade iguaçuana e as campanhas e ações promovidas pela oferta
de instrução como um dos pilares do almejado “progresso” da região (DIAS, 2014).
Em continuidade aos estudos acerca dos projetos e processos de escolarização
em Iguaçu (1919-1950), investigamos atualmente a história das professoras, dos sujeitos
que, naquelas décadas, exerciam o magistério nas escolas públicas primárias, estaduais
e municipais de Iguaçu. Por essa posição de análise ancorada no território de Iguaçu,
investigamos também as normas das agências estaduais para o exercício do magistério
público.
Interrogamos sobre a história do magistério público estadual e municipal
fluminense, a partir de Iguaçu como unidade de análise. Assim, temos como objetivos

sumário 920
VII Seminário Vozes da Educação

do projeto de iniciação cientifica (DIAS,2017; BARBOSA, 2019): a) catalogar, pelo


exame dos mapas escolares, os nomes e situações funcionais das docentes que estavam
lotadas em escolas do município de Iguaçu em 1933 (ano das comemorações do
Centenário de fundação da Vila da Iguaçu); b) Catalogar, pelo cruzamento dos dados
dos mapas escolares, os nomes e situações funcionais das docentes que estavam lotadas
em escolas do 1º distrito de Iguaçu (1929-1935).

Entre retratos e registros: fontes e metodologias


Uma história do magistério público das escolas primárias fluminenses e também
de trajetórias individuais pode ser investigada a partir dos registros dos nomes e
situações funcionais de docentes que foram registrados nos mapas de frequência
escolar. Os mapas, organizados pelos nomes dos munícipios, podem ser consultados no
Fundo Departamento de Educação, depositado no Arquivo Público do Estado do Rio de
Janeiro (APERJ).
Os mapas de frequência escolar, produzidos entre 1929-1949, contêm
informações sobre a denominação das escolas, a localização, a organização dos alunos
em classes, séries, e turnos. É uma fonte produzida pelas agencias estaduais bastante
relevante, porque é mais difícil o acesso aos acervos de documentação dos munícipios.
Assim, pelo recorte dos munícipios, é possível mapear a existência das escolas públicas
de uma região e a composição do seu magistério.Informam os nomes completos dos
professores, suas datas de nomeação, posse, remoção, licenças, e sua condição de
carreira: catedrático, adjunto, mensalista, substituto, temporário. Foi constatado que os
registros de oscilações na organização dos turnos, das séries e classes, correspondiam a
mudanças nos registros nos “quadros de adjuntos”, que era o campo de registro das
informações sobre o magistério.
Em estudo sobre os quadros de professores públicos estaduais lotados no
munícipio de Iguaçu entre 1895 e 1925, Isabela BoloriniJara (2017) demonstrou que,
em função das normas sobre ingresso e permanência na carreira do magistério
públicoestadual, os docentes estavam sempre suscetíveis a grande mobilidade dentro do
quadro de escolas. Na condição de “tropeiro da instrução”, os docentes poderiam ser
lotados, ao longo da carreira,em escolas de diferentes munícipios, por demanda própria
ou das agências de governo. Diferentes nomenclaturas caracterizavam as condições de
ingresso e carreira dos docentes, assim como também foram constantes as expedições
de legislações que buscavam normatizar as condições de formação, ingresso e carreira

sumário 921
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

no magistério público, revelando o movimento de “Fazer-se Estado fazendo o


magistério”, como um pilar do processo de institucionalização da escolarização
primária. Constatamos uma continuidade deste cenário para as décadas de 1930 e 1940,
a partir da análise dos mapas de frequência escolar das escolas de Iguaçu, com ênfase
nos dados sobre as docentes.
O exame inicial dos mapas de uma mesma escola, ao longo do tempo (1929-
1949) e a comparação entre os mapas de distintas escolas, revela uma pluralidade de
condições de carreira docente, assim como uma grande movimentação de professoras
entre escolas. O exame de muitas séries de conjuntos de escolas permite flagrar, com
certa frequência, professoras catedráticas ou professoras municipais que atravessavam
anos lotadas no mesmo estabelecimento. Em contrapartida, também há nomes de
professoras que eram sempre transferidas entre escolas, ou outras, interinas não
diplomadas, que circulavam entre escolas do mesmo distrito, substituindo professoras
adjuntas ou catedráticas.
Além disso, essas lotações não aconteciam apenas no começo do ano, mas eram
constantes e, por vezes, mensais. No exame comparativo entre as escolas de Nova
Iguaçu, nas escolas públicas estaduais, principalmente, há sempre menção de docentes
concursadas que não compareceram para tomar posse e entrar em exercício, outras que
se apresentaram na escola um dia, mas não voltaram. E outras, muitas outras, que
começaram a trabalhar, mas que foram logo “transferida[s] para Niterói”, ou ficaram
sob a disponibilidade da Inspetoria, entraram em longas licenças. Tanto a intensa
movimentação dos docentes nas escolas públicas municipais e estaduais, as variações da
organização dos turnos e séries, quanto o ingresso mensal de novos alunos e professores
indicam o dinamismo dos processos de escolarização, dos esforços, das tentativas e das
dificuldades, respondidas conforme às demandas, da institucionalização da escola
primária fluminense.
Assim, observamos o movimento do “fazer-se Estado fazendo escolas” (DIAS,
2014).Controlar a movimentação dos docentes e assegurar a permanência em exercício
nas escolas guardava relação com a “contabilidade” da expansão do ensino. Nos
documentos produzidos para dar a ver as realizações do governo na oferta de escolas,
era comum, além da apresentação do crescimento do número de instituições, aumentar
este efeito pela comparação com o número de classes existentes (DIAS, 2014). Por isto,
“povoar” as escolas implicava não apenas na matrícula e frequência dos alunos, mas

sumário 922
VII Seminário Vozes da Educação

dependia da lotação e da frequência dos professores, pois a cada um deveria caber uma
classe, que era, por sua vez, o critério para aferição do número de escolas existentes.
Outro acervo documental importante para o estudo de sujeitos que exerceram o
magistério em Iguaçu são as fotografias da Coleção Arruda Negreiros.
As ações do prefeito Arruda Negreiros em prol das comemorações do centenário
(DIAS, 2019) incitou a produção de uma coleção de fotografias que ele encomendou.
Até o momento, sabe-se que esse acervo foi composto por fotografias das estradas e das
escolas do município. Os pesquisadores da região referem-se ao conjunto de fotografias
como “Coleção Arruda Negreiros”. Percorrendo os acervos do Instituto de Pesquisas
Históricas e Análises Sociais da Baixada Fluminense ( IPAHB), do Instituto Histórico e
Geográfico de Nova Iguaçu (IHGNI) e de particulares, foi possível reunir e digitalizar 76
fotografias de escolas.
Esse conjunto não é o acervo completo de fotografias de escolas. Não houve
acesso ao conteúdo do álbum na sua integridade. Em algum momento, o álbum foi
desfeito, as fotos foram distribuídas, pelo que se pode notar, conforme a área de atuação
desses pesquisadores e instituições. Assim, fotos de escolas do distrito-sede ficaram
com o Instituto Histórico e Geográfico de Nova Iguaçu, fotos de escolas de São João de
Meriti foram depositadas no Instituto de Pesquisas Históricas e Análises Sociais da
Baixada Fluminense (IPAHB).
Até agora, somente por ocasião de pesquisa de doutorado (DIAS, 2014)é que
parte dessas fotografias foi novamente reunida, sob a forma digitalizada. Não foi
recomposto o acervo de fotografias das estradas. Não foi descoberto se a prefeitura, ou
outro pesquisador, possui outra edição ou cópia da coleção.
Estamos atribuindo a datação das fotos ao ano de 1933. Nesse caso, elas foram
produzidas após os festejos do Centenário. De fato, no periódico local Correio da
Lavoura, não localizamos menção a iniciativa do prefeito na cobertura feita do grande
rol de iniciativas que ocorreram em prol do centenário, comemorado no mês de janeiro.
E há outros indícios, quando comparamos as fotos com os mapas de frequência escolar.
Por exemplo, há uma fotografia como legenda de Escola feminina Jeronimo de
Mesquita (FDE, APERJ, 02694), mas aparecem meninos na imagem. No dossiê de
mapas desta escola, ela passa a ser identificada como escola mista em outubro de 1932.
O cruzamento das legendas das fotos com os dossiês também permite a
comparação entre a quantidade de docentes que aparecem em determinadas fotos e a
composição do quadro docente que é registrado nos mapas do ano de 1933. Por isso, em

sumário 923
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

alguns casos, as oscilações de registro nos mapas confluem com o número de docentes
que aparecem em algumas fotos. Ainda pretendemos iniciar, na imprensa fluminense,
uma pesquisa sobre os preparativos para o centenário de Iguaçu, para ver se é
mencionada a iniciativa de fotografar escolas e estradas.
A fotografia, tal como qualquer registro instrumentalizado como fonte pelo
historiador, precisa ser problematizada e interrogada. Recompor a origem e trajetória do
acervo e as possíveis imbricações com outros documentos ou fotografias amplia as
possibilidades de uso para além de insuficientes, e por vezes, inadequados, recursos de
ilustração (Mauad, 2009, p.254).
O ato de fotografar serviu para documentar acontecimentos, sendo utilizado pela
imprensa e pelos governos. O empenho das administrações públicas em registrar através
de fotografias realizações como obras e construções esteve presente desde fins do
século XIX (Vidal, 1998, p.81). Em função do estatuto de credibilidade e de evidência da
narrativa imagética, utilizava-se o registro fotográfico para atestar e propagandear as
ações dos governantes em prol do progresso e da modernidade.
Essa finalidade deve ser considerada para situar o acervo fotográfico, no caso de
estradas e escolas fotografadas em Nova Iguaçu. É no rol das iniciativas pelo centenário
de fundação da Vila de Iguaçu que a Prefeitura encomenda as fotografias. Tanto as
escolas quanto as estradas eram concebidas como mediações para a construção da
modernidade e do progresso em Iguaçu: “O que está em jogo, atualmente, no estudo da
imagem é justamente sua situação na sociedade que a produziu e a recebeu como forma
de representação social, ou seja, como suporte de uma experiência social passada,
elaborada a partir de um conjunto de mediações culturais específicas” (MAUAD, 2009,
p.255).

Escolas e professoras do distrito-sede de Iguaçu (1933)


A partir das legendas originais foram localizados os dossiês das escolas no
acervo de Mapas de Frequência Escolar do Fundo Departamento de Educação do
APERJ (FDE-APERJ).
Na década de 1930 poucas escolas recebiam “denominações especiais”. Eram
caracterizadas por serem públicas, mistas, femininas ou masculinas, de 1º ou 2º grau, e
pela localidade onde estavam funcionando. Também possuíam uma numeração, que
indicava o pertencimento a uma rede de escolas estaduais ou municipais. Essa
numeração poderia sofrer alterações ao longo dos anos. Na foto a seguir, como não foi

sumário 924
VII Seminário Vozes da Educação

indicada o número da escola na legenda, não foi possível fazer a correspondência da


mesma com um dos dossiês de escolas mistas existentes em Nova Iguaçu, distrito-sede
do munícipio, em 1933.

Figura 8 Escola não identificada

Foto: Acervo Instituto Histórico e Geográfico de Nova Iguaçu (IHGNI)

Na mesma perspectiva, ressaltamosque a identificação entre fotos de escolas e os


dossiês de mapas de frequência escolar do APERJ nem sempre permite identificar
individualmente as docentes que aparecem nas imagens. A atribuição é mais segura
quando se trata de escolas com apenas uma docente.
No cruzamento dos dados dos mapas com a coleção de fotografias Arruda
Negreiros, identificamos os nomes de docentes que aparecem nas fotos, conforme
exemplos abaixo, de fotografia e mapa de frequência escolar. E com a investigação dos
nomes no site da Hemeroteca Nacional e da imprensa local, algumas trajetórias
docentes estão sendo reconstituídas.

sumário 925
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Figura 9Escola Mista Estadual n.1

Fontes: IHGNI; APERJ, 02710.

Figura 10 Mapa de Frequência Escolar da Escola


mista estadual n.1, 1933

Fonte: APERJ, 02710.Professora Catedrática Celina de Rezende Silva


Figueiredo

A identificação de quais escolas pertenciam ao distrito-sede ou aos outros


distritos foi iniciada a partir da legenda manuscrita em cada uma das 76 fotografias.
O cruzamento do acervo de mapas de frequência escolar com as 76 fotografias
da Coleção Arruda Negreiros permitiu correlacionar conjuntos de mapas para 74
fotografias.
Num primeiro cruzamento entre as 74 fotografias, podemos afirmar que
correspondem a 51 escolas com documentação no Fundo Departamento de Educação do
APERJ. Ademais, há no acervo, mapas do ano de 1933 para outras escolas, que não
constam no acervo atual de fotografias. No total, há no APERJ 76 notações para escolas

sumário 926
VII Seminário Vozes da Educação

existentes em Iguaçu no ano de comemoração do centenário, 1933 (incluindo as


notações de escolas fotografadas).
No cotejamento das setenta e quatro fotografias da Coleção Arruda Negreiros
com a documentação do APERJ, identificamos dezenove escolas públicas primárias
localizadas no distrito-sede, Nova Iguaçu. Nesse conjunto, quinze escolas públicas
primárias possuem apenas uma docente. As oito escolas primárias municipais possuem
registros de docentes concursadas e/ou diplomadas e registros de docentes não
diplomadas. Cada uma das sete escolas estaduais apresenta docentes efetivas
concursadas no ano de 1933. Apresentamos a seguir o resultado parcial da pesquisa
sobre escolas do distrito-sede, com a identificação das escolas e dos nomes das docentes
que aparecem nas fotografias e nos mapas:

Escolas municipais do distrito sede com 01 docente


Notação/ Nome da Docente Cargo/Titulação
Data do escola
MFE
02630 Escola mista Virginia Magalhães de Carvalho Diplomada
06/1933- de Andrade
11/1933 de Araújo

02633 Escola mista Hilda Pacheco da Rocha Professora com concurso


06/1933 Barão de
Mesquita
02657 Escola mista Celia Pacheco da Rocha Professora com concurso
06/1933 Coronel
França
Soares
02659 Escola mista Jurema Soares Guimarães Professora Municipal não
06/1933 Dr. França diplomada
Carvalho
02663 Escola mista Eloisa Sá Peixoto Professora Municipal com
06/1933 Dr. concurso
Guilherme
Guinle
02681 Escola mista Ayxha Faria Soares Professora Municipal
07/1933 Dr. Thibau
02730 Escola mista Maria Vespertina Mello Professora Municipal
03/1933 de Riachão
D. Maria de
Souza
02684 Escola Maria Amelia Kelly Marques Não informa categoria e
06/1933 noturna informa não ter adjuntos
masculina
nº. 1

sumário 927
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Escolas estaduais do distrito sede com 01 docente


Notação/ Nome da escola Docente Cargo/Titulação
Data do
MFE
02710 Escola mista de 2º Grau Celina de Rezende Silva Professora
03/1933 nº.1 Figueiredo Catedrática
02707 Escola noturna masculina Maria Paula de Azevedo Professora Efetiva
03/1933 de 1º Grau nº. 2
02714 Escola mista de 2 grau No ano de 1933,
03/1933 nº.5 devido licença da
efetiva Maria P. L.
de Mérocourt [sic],
a
Substituta Zuleika
Paula Fernandes
assina os mapas
entre 07 e 11/ 1933.

02694 Escola mista de 2º grau de No ano de 1933,


03/1933 Morro Agudo nº. 8 devido licença da
catedrática Maria
Candida, a interina
Maria Maciel
assina os mapas
entre 03 e 08/1933.
02763 Escola mista Jerônimo Camilla Leonidia Netto Professora
04/1933 Mesquita n.º 9 Catedrática

02674 Escola mista de 2º grau de Herminia de Aquino Professora


03/1933 Jeronymo Mesquita nº.10 Catedrática
02644 Escola mista de 1º grau de Nair Maciel Bastos Professora
03/1933 Nova Iguaçu nº. 34 Catedrática

Entre os tipos de escolas, havia escolas com uma docente funcionando em um


turno ou mais, escolas com mais de uma docente funcionando num mesmo turno,
escolas com mais de uma docente e funcionando em mais de um turno. Das quatro
escolas do distrito-sede com mais de uma docente no ano de 1933, identificamos um
grupo escolar estadual e outras três escolas estaduais.

sumário 928
VII Seminário Vozes da Educação

Escolas estaduais do distrito sede com mais de 1 docente


Notação/ Nome da escola Docente Cargo/Titulação
Data do
MFE
02715 Grupo Escolar Rangel Venina Corrêa Efetiva
06/1933 Pestana Diplomada
Maria Joana Maia de Almeida Efetiva
Diplomada
Marina de Assis Maia Efetiva
Diplomada
Brunehildes Leonor Cruz Efetiva
Diplomada
Maria Kelly Marques Interina não
diplomada
Alice Ribeiro Renne Efetiva
Diplomada
Dalila Mattos da Costa Efetiva
Diplomada
AidacyMinnuci Teixeira Efetiva
Diplomada
Silvia Lobo Simões Efetiva
Diplomada
Haydée Leite Costa Efetiva
Diplomada
Maria Augusta de A. Freitas Efetiva
Diplomada
Cilene Martins de Araújo Efetiva
Diplomada
Irene Balbi de Almeida Efetiva
Diplomada
02711 Escola mista da cidade Maria Paula de Azevedo Efetiva
07/1933 de 2º grau nº. 2 [Z]oé Judice de Mello Efetiva diplomada
Myrian Bastos de Carvalho Interina
Diplomada
Yvone Drummond Interina não
diplomada
02712 Escola mista de 2º grau Carmen Torres Maldonado Professora
05/1933 nº. 3 Catedrática
Nair Barbosa da Silva Interina não
diplomada
Martha Mery Machado Interina não
diplomada
02716 Escola mista de 2º grau Maria Almada Pinheiro Professora
03/1933 de Nova Iguaçu nº. 33 Catedrática
Jacy Ribeiro Efetiva diplomada

Entre as quatro escolas estaduais que possuem mais de uma docente é relevante
o registro de treze cargos no Grupo Escolar Rangel Pestana. No quadro docente do

sumário 929
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

grupo escolar, das treze professoras, apenas uma é “interina não diplomada”, Maria
Amelia Kelly Marques. Todas as outras são diplomadas e concursadas.
Interessante notar que em todas as escolas municipais só havia uma docente
lotada e todas funcionavam em apenas 01 turno. Entre as escolas estaduais, além do
expressivo número de docentes no grupo escolar, 03 outras escolas tinham registro de
mais de uma docente e, juntamente com o Grupo Escolas, pelo menos 04 escolas
estaduais funcionavam em mais de um turno em 1933.
Outro resultado importante desse cruzamento de informações entre legendas de
fotografias e mapas de frequência escolar foi a organização da exposição fotográfica
Retratos da escolarização em Iguaçu(1933). As imagens das escolas foram organizadas
entre escolas municipais e estaduais, e, além dos nomes das docentes, são informadas os
modos de organização de cada escola, entre turnos, classes e séries, ao longo do ano de
1933.
A diversidade de nomenclaturas de situações funcionais do magistério público
municipal e estadual e os deslocamentos das docentes entre escolas da região que são
observados fomentam a investigação de trajetórias individuais, mas demonstram
também as dinâmicas de um movimento mais amplo do que foi a experiência de
institucionalização das escolas. É da posição de análise da história de sujeitos no
território que se descortinam aspectos do “fazer-se magistério”. Assim, outra fonte
fundamental para a continuidade do projeto é a hemeroteca da Biblioteca Nacional. A
partir de buscas pelos nomes das docentes, principalmente das professoras concursadas
do Estado, é possível enveredar por trajetórias individuais e flagrar as docentes desde a
formação na Escola Normal de Niterói, lotação para Iguaçu e recebimento de
gratificações por tempo de magistério, como acontece quando são pesquisados os
nomes de Camilla Leonidia Netto e Venina Correa. As imagens dessas docentes e dos
alunos também colocam as questões de raça, gênero e classe como perguntas para o
campo da história da educação.

Referências
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imprensa e Intelectuais a partir da Arcádia Iguassuana de Letras (AIL) (Nova Iguaçu,
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sumário 930
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sumário 932
VII Seminário Vozes da Educação

PROVIMENTO DAS ESCOLAS PÚBLICAS PELOS EGRESSOS DA ESCOLA


NORMAL DA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO: UMA ANÁLISE A PARTIR
DOS RELATÓRIOS OFICIAIS E DOS CASOS DE MAGÉ E ESTRELA

Angélica Borges
UERJ
angelicaborgesrj@gmail.com

Beatriz Souza dos Santos


UERJ
beatrizsouzasantos3@gmail.com

Kimberly Araújo Gomes Pereira


UERJ
kimberlyaraujo.pereira@gmail.com

No processo de ampliação da malha escolar na Província do Rio de Janeiro,


destaca-se o aumento paulatino do número de escolas, mas também as políticas de
formação de professores para atuarem como agentes de um projeto de civilização da
população. A visibilidade da província, relacionada a sua posição privilegiada na
política brasileira e atrelada a sua proximidade geográfica com a Corte, propiciava
disputas acirradas entre os políticos fluminenses, bem como alianças com grupos
políticos locais, de modo a tornar o Rio de Janeiro uma base de apoio para consolidação
do Império (GOUVEIA, 2008). Tais disputas e alianças ainda que fluidas, tensas e
provisórias repercutiam na elaboração e implementação de políticas no campo
educacional, afetando, por exemplo, as decisões a respeito da criação ou do fechamento
de escolas em determinadas localidades.
Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo analisar a política de provimento
das escolas de instrução pública primária pelos alunos egressos da Escola Normal da
Província do Rio de Janeiro no período do Império. O Decreto n. 10 de 4 de abril de
1835 que criou a Escola Normal determinou a suspensão do provimento das cadeiras
públicas de instrução primária até que houvesse pessoas habilitadas pela Escola Normal
para ocupá-las. Igualmente estabeleceu a obrigação de professores sem habilitação em
exercício no ensino público a cursarem a Escola Normal para adquirirem o diploma, sob
pena de perderem as cadeiras. Nesse sentido, realizamos por meio desta pesquisa uma
investigação acerca do funcionamento e da eficiência dessa política, bem como seus

sumário 933
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

efeitos na difusão da escolarização na província. Primeiramente nos detemos na análise


dos discursos dos presidentes de província e do diretor da instrução registrados nos
relatórios oficiais. Em seguida, produzimos uma reflexão ancorada na história da
educação local, a partir da delimitação espacial dos municípios de Magé e Estrela, que
atualmente compõem as cidades de Magé e Duque de Caxias, na Baixada Fluminense
para se pensar os efeitos dessa política em âmbito regional. O conjunto de fontes usadas
engloba os relatórios dos presidentes da Província do Rio de Janeiro e dos diretores da
Instrução, leis, decretos e regulamentos, assim como periódicos da época.

Relatos de inquietações: discursos dos presidentes de província acerca do


provimento de escolas

É de esperar que em breve tenhamos professores habilitados, que possam ir


derramar os conhecimentos adquiridos na escola normal em tantos lugares,
que precisam de escolas de instrução primária. (MONTENEGRO, 1/03/1845)

Essa epígrafe foi retirada do relatório do Presidente da Província do Rio de


Janeiro, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, e sintetiza as preocupações das
autoridades em torno do provimento das escolas por professores habilitados nesse
período denominado por Heloisa Villela (2000, 2002) de primeira fase de
funcionamento da Escola Normal da Província. Segundo Villela, a Escola Normal foi
organizada por um grupo político com um projeto de sociedade conservador a ser
colocado em prática na Província do Rio de Janeiro, mas com intuito de ampliação para
todo o Império. Para esse grupo, chamado de Saquaremas, a instrução era a principal via
para difundir seus valores de ordem e civilização e a Escola Normal deveria “expandir e
consolidar a supremacia daquele segmento da classe senhorial que se encontrava no
poder” (VILLELA, 2000, p.106). Razão pela qual, de acordo com Villela, as exigências
de admissão se pautavam mais nos critérios de moralidade do que nos de formação
intelectual.
Nessa primeira fase de funcionamento, que se inicia com a criação da escola em
1835 e que se estende até 1851, ano da sua extinção, podemos perceber no conjunto de
relatórios produzidos pela presidência da província uma acentuada preocupação em
contabilizar alunos concluintes da Escola Normal. Os formandos estavam no cerne das
políticas de ampliação da escolarização na Província. A cada escola pública primária
criada ou vaga era necessário garantir seu provimento com um professor habilitado.

sumário 934
VII Seminário Vozes da Educação

Mas se não havia habilitados em número suficiente, como fazer a escola criada entrar
em exercício ou garantir o funcionamento da escola vaga? Essa era uma questão que
merecia considerável atenção das autoridades nos relatórios e que dava visibilidade ao
problema de viabilizar a ampliação da escolarização na província, que passaremos a
analisar a seguir.
Primeiramente importa destacar que a lei de criação da Escola Normal trata da
formação de professores, mas também regulou aspectos das escolas públicas primárias.
A lei de criação da Escola Normal de 10 de abril de 1835 estabeleceu no primeiro artigo
que a referida instituição tinha como objetivo habilitar as pessoas “que se destinarem ao
magistério de instrução primária, e os Professores atualmente existentes, que não
tiverem adquirido a necessária instrução nas Escolas de Ensino na conformidade da Lei
de quinze de Outubro de mil oitocentos e vinte sete, Artigo quinto”. 108 Portanto, os
professores que não haviam se habilitado no ensino mútuo nas “escolas das capitais”
tornavam-se por lei obrigados adquirirem a habilitação pela Escola Normal. O artigo 10
estabeleceu que os professores das escolas públicas aprovados nos exames da Escola
Normal estavam habilitados para continuarem a reger suas cadeiras, já os reprovados
perderiam o direito a elas. O mesmo artigo define que os alunos da escola normal,
denominados de “escolares”, que forem aprovados “serão mandados a substituir os
Professores que forem chamados a frequentar a Escola Normal.”
Os professores em exercício que descumprissem a norma estavam sujeitos a
penalidades previstas no artigo 12:

Os Professores que recusarem frequentar a Escola Normal, ou que sem justa


causa se não apresentarem no prazo marcado pelo Presidente, serão
aposentados com meio ordenado, se tiverem de dez a quinze anos de
magistério: com dois terços dele, tendo de quinze a vinte, e com todo o
ordenado, quando houverem servido vinte anos completos.

Portanto, segundo a norma, para o professor que não possuísse uma “justa
causa”, restava optar por cursar a Escola Normal ou se aposentar. No caso dos
pensionistas, alunos que recebiam abono de vinte mil réis mensais para cursarem a

108
Art. 5 Para as escolas do ensino mútuo se aplicarão os edifícios, que couberem com a suficiência nos
lugares delas, arranjando-se com os utensílios necessários à custa da Fazenda Pública e os Professores
que não tiverem a necessária instrução deste ensino, irão instruir-se em curto prazo e à custa dos seus
ordenados nas escolas das capitais (Lei Geral de Ensino de 15 de outubro de 1827).

sumário 935
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

escola normal, eram obrigados a assumir uma cadeira após se habilitarem. A recusa
incorria na devolução da quantia recebida aos cofres públicos109.
Observa-se uma tentativa de garantir tanto a habilitação quanto o
recrutamento de professores para o ensino público. O governo obriga os professores em
exercício a cursarem a Escola Normal e obriga o aluno pensionista a entrar em exercício
no magistério público. O mecanismo da obrigatoriedade só não funcionou com os
alunos que não eram nem professores públicos nem pensionistas, o que gerava certo
desapontamento das autoridades, como sugerem os relatórios de governo ao registrarem
a existência de alunos formandos que desistiram do ofício ou optaram por abrir escolas
particulares, deixando dessa forma de compor a estatística de normalistas aproveitados
no ensino público.
Conforme já assinalado, o decreto de criação da Escola Normal também
normatizou aspectos da escola pública primária, na medida em que os artigos 10, já
mencionado, e 15 impactam diretamente no funcionamento das escolas. O artigo 15
suspendeu “o provimento de Cadeiras de primeiras Letras vagas, ou que vagarem, até
que na Escola Normal se habilitem pessoas que as possam servir”110.
No entanto, ao mesmo tempo em que a norma impede o provimento de cadeiras
das escolas públicas primárias por pessoas sem habilitação, a Escola Normal parece não
conseguir formar um quantitativo suficiente e interessado em ocupar as mesmas
cadeiras. Nesse sentido, a previsão da existência de alunos pensionistas que recebiam
uma quantia para estudar na Escola Normal, segundo Villela (2000), visava atrair
indivíduos interessados em seguir a carreira do magistério.
Esse problema tornou-se motivo de grande preocupação de diferentes
presidentes de província que defendiam a formação pela Escola Normal e a exigência de
habilitação para lecionar, mas que se deparavam com a dificuldade de prover as escolas,
como relata o Presidente de Província Caldas Vianna, em 1844, ao tratar das escolas
criadas: “Destas cinco Escolas as duas primeiras acham-se providas; a terceira não teve
concorrentes e as duas últimas não foram postas a concurso por não haverem alunos da
Escola Normal aprovados, que as preencham” (Relatório do presidente João Caldas
Vianna, 01/03/1844, p.35).

109
O Regulamento de 1869 também estabelecerá a devolução dos valores pelo pensionista que “§ 4.° Se
recusar-se a exercer o magistério depois de habilitado, ou não quiser aceitar a cadeira que lhe for
designada pelo governo.”
110
Como nos alerta Faria Filho (1998), a lei entendida como prática social requer a distinção entre dois
momentos: o de produção e o momento de realização da lei.

sumário 936
VII Seminário Vozes da Educação

Nos relatórios do governo se observa o registro de dados a respeito da


quantidade de matrículas na Escola Normal, a quantidade de alunos examinados e
habilitados, e quantos foram encaminhados para provimento das cadeiras nos mais
diversos lugares da província.

Sete Municípios; a saber: os de Iguassú , Santo Antonio de Sá, S. João da


Barra, Nova Friburgo, Resende, S. João do Príncipe, e Barra Mansa, ainda
não tem Professores, porém como já se acham habilitados mais 2 Alunos da
Escola Normal, e o seu Diretor me assevere que até ao mês de Abril ou Maio
próximo futuro, estarão habilitados mais cinco, poderão para o mês de Junho,
se forem, como é de esperar, aprovados, ficar as Cadeiras das ditas Villas
providas (Relatório do presidente Paulino Soares de Souza, 1838, p.2).

Essas informações eram recorrentemente acompanhadas por um discurso de


lamentação pela quantidade insuficiente para atender a demanda da ampliação da
escolarização. Também apontam as estratégias para amenizar o problema como, por
exemplo, realizar o provimento das escolas com “professores interinos”, que contornava
a lei ao conferir um caráter de provisoriedade ao procedimento.

A falta de professores habilitados para preencher as Cadeiras, que estão ainda


vagas e a interinidade do provimento de algumas delas, levam-me a falar-vos
da Escola Normal, onde deveriam eles alcançar as necessárias habilitações.
Desde a data de sua criação tem-se nela matriculado oitenta Escolares, dos
quais só trinta e um têm saído aprovados: grande número deles deixa de
continuar a frequentar por falta de meios, pela dificuldades de ensino, e pela
reflexão acerca dos incômodos do Magistério, e pelo futuro pouco brilhante,
e seguro, que, os aguarda neste país, onde todas as carreiras estão abertas aos
seus filhos talentosos (Relatório do presidente João Caldas Vianna,
01/03/1844, p.35).

A persistência do problema e o rodízio dos sujeitos que ocupam cargos de poder,


como o de presidente de província111, menos afinados com a defesa de um curso para
formar professores, favoreceram o discurso de alguns políticos de que a escola normal é
uma instituição custosa e ineficiente. A nomeação de Luiz Pedreira do Couto Ferraz
para o cargo de presidente da Província, em 1848, foi decisiva nesse sentido, pois
mudou o curso da política de formação de professores. Assim, o Regulamento da
instrução da Província do Rio de Janeiro de 1849 instituído por Couto Ferraz,
estabeleceu a “formação pela prática”, um sistema misto entre o austríaco e holandês,
em que o aprendiz, chamado de professor adjunto, aprende o oficio com um professor

111
José Murilo de Carvalho afirma que o “império reviveu a velha prática portuguesa de fazer circular
seus administradores por vários postos e regiões” (2007, p.121) permitindo ao político ganhar experiência
e adquirir uma perspectiva menos provinciana.

sumário 937
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

mais experiente. Em 1851, a Escola Normal é extinta, decisão relacionada, segundo


Villela (2000), à considerável adesão ao modelo de formação pela prática.
O problema da falta de pessoal interessado em seguir o magistério,
mesmo com a mudança no modelo de formação, continuou a estar presente nos
relatórios. Presidentes da província e diretores da instrução reclamavam da dificuldade
de levar adiante o projeto de escolarização da província para “todas as classes da nossa
sociedade, inoculando-lhes, por uma acurada educação intelectual e religiosa, as ideias
de moralidade e amor ao trabalho.” (Relatório do presidente Silveira da Mota,
1/06/1860, p. 65).
Por lei de 4 de fevereiro de 1859, a Escola Normal é novamente criada, no
período da presidência de Antônio Nicolau Tolentino. Em 1858, Tolentino, ao defender
a Escola Normal como lugar ideal para formar professores, pois sem ela “nunca teremos
professores que mereçam esse título respeitável”, criticou sua extinção em 1851:

[...] entendeu-se, sem indagar e conhecer bem os obstáculos que


contrariavam seu fim, que era preferível destruir a melhorar; e por isso foi ele
extinto condenando-se uma ideia que em todos os países civilizados tem sido
acolhida como útil, indispensável, e de excelentes resultados (1/08/1858).

Apesar da recriação da escola, as autoridades levantavam o problema da


existência de professores não habilitados pela Escola Normal, considerados incapazes,
que compunham o corpo docente das escolas públicas da província. Propostas para
solucionar a questão eram relatadas e entre elas algumas soluções mais drásticas, como
a apresentada pelo Diretor da Instrução em 1861:

Em não poucas continua a ser o ensino imperfeito em todas as suas partes, e


truncado a respeito de outras. Já apontei a causa do mal; e em minha opinião
se lhe não pode dar outro remédio, além daquele que indiquei: jubilar os
professores vitalícios proporcionalmente ao tempo do seu serviço, e despedir
os que não tiverem cinco anos de exercício, quando for reconhecido que a
uns ou a outros falta zelo, ou proficiência (Relatório do Diretor Thomas
Gomes dos Santos, 14/08/1861, p.46).

O diretor também assevera que com o tempo talvez se “vá gradualmente


melhorando o magistério: eu porém estou convencido de que nunca o teremos digno de
sua missão, enquanto se não criarem escolas preparatórias” (Relatório de 14/08/1861,
p.46), se referindo às escolas normais, que dois anos depois da recriação ainda não
havia entrado em funcionamento no Rio de Janeiro.

sumário 938
VII Seminário Vozes da Educação

O presidente da província Luiz Alves Leite de Oliveira Bello que deu início ao
funcionamento da escola em 1862, defende que “Enquanto a escola normal nos não der
professores mais habilitados, do que aqueles, que atualmente se destinam ao magistério
público, julgo conveniente que haja a maior parcimônia na criação de novas escolas.”
(4/05/1862, p.113).
A solicitada “parcimônia” pode ter relação com o quantitativo de escolas criadas
e vagas a espera de professor, em 1862. No relatório do diretor da instrução, podemos
observar os dados acerca do estado do provimento das escolas naquele momento:

Foram criadas pelos decretos n. 1205, 1210, 1222, 4229 e 1253 mais 26
escolas: não se tendo, porém, consignado fundos para elas, deixaram de
ser providas [...]. Funcionam atualmente na província 112 escolas públicas
destinadas ao sexo masculino e 58 ao feminino, perfazendo todas o numero
de 170: juntando-se-lhes 21 em que não há ensino por falta de professores
efetivos ou interinos, e as 26 criadas pelos decretos supra citados, eleva-se o
número das escolas que tem de servir no ano de 1863 ao de 217 [...].
(Relatório do Diretor Thomas Gomes dos Santos, 8/09/1862, p.7, grifos
nossos).

No ano seguinte, no relatório de 1863, o diretor da instrução registra a decisão


da “assembleia provincial em sua sessão de 1862 a reduzir o número das escolas,
fazendo-as descer de 215 a 164” (p.15). O motivo era a escassez dos cofres públicos e
“muito principalmente a penúria de pessoas habilitadas para o ensino”. A medida teria
sido tomada pelo governo provincial tendo ouvido a diretoria e o conselho de instrução,
“com cujo parecer se conformou inteiramente”. O número só será recuperado em 1870,
de acordo com o relatório do diretor Thomas dos Santos, datado de 9/08/1870, em que
se registra a existência de 216 escolas.
Após a Escola Normal entrar em funcionamento, os relatórios passaram a
registrar novamente discursos mais esperançosos, como o do Diretor da instrução
Thomas Gomes dos Santos: “Haja, eu o repito, prudência e método nos professores da
escola normal, e muito brevemente terá a província do Rio de Janeiro excelentes
professores de instrução primaria” (Relatório de 1863, p. 22). Nesse mesmo ano, o
governo deliberou por meio de decreto de 31/01/1863, a supressão dos professores
adjuntos e, portanto, dispensou aqueles que ainda atuavam na função, sinalizando a
adesão ao modelo de formação pela Escola Normal.
As expectativas geradas em torno da Escola Normal podem ser observadas nas
estatísticas. Em 1865, os relatórios da Diretoria de Instrução voltam a registrar os

sumário 939
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

alunos habilitados e seu encaminhamento para o magistério público. O diretor da


instrução, ao destacar que o curso normal continua a triunfar, assinala:

No ano de 1863 para 1864 foi ele frequentado por 55 alunos, no de 1864 para
1865, por 63; dos alunos aprovados plenamente em todas as matérias do
curso, quatro tem sido elevados ao magistério público e o exercem muito
vantajosamente, as escolas de Guapymerim e do Sertão da Saudade cuja
frequência média, quando regidas por antigos professores seria apenas de 5 a
7 alunos, tem-na hoje de 18 a 20. (Thomas Gomes dos Santos, 14/09/1865,
p.12).

Dois anos depois, em 1867, o diretor Thomas Gomes dos Santos, apresenta um
balanço dos dados da Escola112 e apresenta um outro problema:

No decurso de cinco anos tem a escola normal dado prontos trinta e três
alunos-mestres, treze do sexo masculino e vinte do feminino; deles acham-se
dez empregados no magistério publico, e um no lugar de amanuense da
diretoria de fazenda, lugar conquistado em público concurso. Cinco exercem
o magistério particular, os mais esperam a idade regulamentar. No
corrente ano se habilitarão provavelmente oito, quatro de cada sexo. De
Junho de 1866 a Junho de 1867 foi a escola frequentada por sessenta e oito
alunos, trinta e sete do sexo masculino, e trinta e um do feminino; do total do
número de alunos trinta e nove são matriculados, e vinte e nove ouvintes
(Diretor Thomas Gomes dos Santos, 19/08/1867, p. 64, grifos nossos).

O problema da idade mínima para ser professor que era de 21 anos irá impedir
alguns alunos formados de entrarem imediatamente em exercício. Como a matrícula era
permitida aos que tinham 16 anos e o curso durava 3 anos, alguns alunos se formavam
com 19 e tinham que esperar dois anos para exercerem o ofício no magistério público.
Diante da urgência para prover as escolas públicas, o fato era considerado um “grave
inconveniente” pelo diretor da instrução Thomas dos Santos, em 1868, que ainda
alertava para os problemas causados pelos dois anos de espera com cessação dos
estudos.
A partir da década de 1870 há um crescimento significativo no número de
escolas, impulsionado pela Lei n. 2.040 de 28 de setembro de 1871, conhecida como
Lei do Ventre Livre, que coloca a educação dos ingênuos na pauta de discussões das
autoridades. Se, em 1870, o diretor da instrução registra a existência de 216 escolas, em

112
Em 1868, após a nomeação de José Carlos Alambary Luz para o cargo de diretor da escola Normal,
haverá relatórios relativos à instituição. Neles também podemos observar os dados levantados por
Alambary Luz, como os relacionados aos alunos: “Têm sido matriculados no primeiro ano do curso da
escola normal, desde sua abertura até o ano de 1867 inclusive, 39 alunos e 48 alunas; destes concluirão
seus estudos no ano de 1867 e foram aprovados plenamente 37, dos quais 13 do sexo masculino e 24 do
feminino entre eles contam-se 14 pensionistas, 8 do sexo feminino e6 do masculino: tiveram entrada no
magistério público 18, 10 do sexo masculino e 8 do feminino” (12/09/1868, p. 12).

sumário 940
VII Seminário Vozes da Educação

relatório de 8 de setembro de 1873, esse número vai aumentar consideravelmente. Nele


o diretor da instrução afirma que a província contará com 440 escolas (255 para
meninos e 185 para meninas), em razão da criação de 95 escolas nas sessões da
assembleia provincial de 1872 e 1873. Logo, o aumento da demanda por professores
também acompanha esses dados.
Mas quem eram esses normalistas contabilizados minuciosamente nas
estatísticas da Escola Normal? Para compreender um pouco dos sujeitos alvo das
políticas de difusão da escolarização, na condição de agentes promotores da “educação
intelectual e religiosa” e das “ideias de moralidade e amor ao trabalho”, como afirmou o
presidente Silveira da Mota, apresentamos um levantamento a respeito dos professores
das escolas dos municípios de Magé e Estrela, buscando identificar os professores
formados pela Escola Normal da Província.

Provimento das escolas: o caso do município de Magé


No século XIX, o município de Magé teve posição relevante para o processo de
ocupação territorial da Província por conta de seu território que dispunha de uma
diversidade de rios, portos e estradas que desempenhavam a função logística de
escoamento da produção do interior para os centros urbanos 113 . Em 1846, com a
elevação do arraial de Estrela a condição de Vila, houve um rearranjo territorial. Assim,
segundo dados do Almanak Laemmert, Magé passou a ser composto pelas freguesias de
Piedade, Suruí, Guapimirim e também pelas freguesias de Nossa Senhora da Conceição
Apparecida, Santo Antônio do Paquequer (Theresópolis) e o curato de Sapucaia.
Em Magé, a primeira escola masculina no município foi criada por meio da
deliberação de 03 de agosto de 1833 e segundo o Relatório do Presidente da Província,
a cadeira estava ocupada pelo professor Joaquim Maria Martins da Câmara. Na
educação feminina, a escola foi criada pela deliberação de 31 de agosto de 1839 e foi
ocupada pela professora e poetisa Luiza Augusta de Menezes. Ao longo dos anos,
criaram-se escolas nas demais freguesias mageenses e em outras localidades da
freguesia. É importante ressaltar que:

113
Em 1789, a então freguesia de Magé foi elevada à categoria de Vila. Segundo Alonso (2000, p. 54), o
território deste município contava com as freguesias de Nossa Senhora do Magepe, Nossa Senhora da
Guia de Pacobaíba, Nossa Senhora da Piedade de Inhomirim, Nossa Senhora d’Ajuda de Guapimirim e
São Nicolau do Suruí.

sumário 941
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Através da análise desses relatórios fizemos uma importante constatação: o


ato de se criar uma escola não garantia o seu funcionamento. Ou seja, em
muitos relatórios há referências sobre a criação de escolas, mas algumas não
funcionam de fato, na maioria dos casos por falta de professores. As
instituições eram criadas, mas não providas, segundo termo utilizado no
documento (CHAGAS, 2011. p. 15).

Gráfico 1: Escolas de ensino público primário criadas entre as décadas de 1830


e 1880 em Magé114

Fonte: Relatórios do Presidente da Província Freitas Travassos de 08 de setembro de 1874

Ao compilar dados dos Relatórios do Presidente da Província e do Almanak


Laemmert, encontramos a presença 100 professores que atuaram no magistério
mageense ao longo das décadas. Destes, encontramos a presença de 72 professores -
sendo 59 professores públicos, 12 professores particulares e um subvencionado - e de
28 professoras - sendo 22 professoras públicas, quatro particulares, uma provisória e
uma substituta -, que atuaram no município entre as décadas de 1830 e 1880.
Nos relatórios manifesta-se a preocupação com a falta de professores bem
qualificados e com formação adequada. Do conjunto de docentes que atuaram em
Magé, até o presente momento, identificamos que 20 deles frequentaram a Escola
Normal. Sendo 12 professores e oito professoras115. Porém, alguns destes não temos o
registro de conclusão do curso, apenas a informação de haviam frequentado.

114
A escola masculina localizada no Porto da Estrela foi inserida no quantitativo de escolas da década de
1840.
115
Professores que frequentaram a Escola Normal: José de Castro e Silva, Manoel José do Valle, Albino
Alves de Azevedo, José Raymundo de Vasconcellos, Manoel José da Silva Guanabara, Wencesláo José
de Siqueira Junior, Eliziário Marques de Freitas, Francisco Antonio Augusto da Costa Almeida Barreto,
Ricardo Cavalcanti de Albuquerque Lacerda, Narciso Pires de Siqueira, Alexandre Joaquim da Costa,
Antônio Bartholomeu da França. E as professoras: Claudina Custodia Ribeiro, Jacintha Tereza Soares

sumário 942
VII Seminário Vozes da Educação

Utilizando a ferramenta metodológica de seguir o “fio do nome” (GINZBURG,


PONI, 1991), podemos pesquisar o nome dos professores por meio da Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional, realizando o cruzamento com as outras fontes para
entender a atuação desses docentes. Com isso, podemos verificar os anos de atuação no
magistério de Magé, a rotatividade entre os municípios, além das relações que
constituíram no local onde atuavam como professores. Entre os professores formados na
Escola Normal e que atuaram no município, evidenciaremos os casos de José de Castro
e Silva e Claudina Custodia Ribeiro.
José de Castro e Silva foi nomeado professor em 19 de junho de 1850 e aparece
nos relatórios como professor regular e efetivo de 2ª classe, habilitado pela Escola
Normal. José foi professor de Suruí e, de acordo com o Almanak, também exercia a
função de padre. No jornal Correio Mercantil, e Instructivo, Político e Universal (RJ)
aparece que o mesmo era eleitor e candidato a vereador. Além disso, José é apontado
como tesoureiro da Associação de N.S. da Conceição criada na Fábrica de Pólvora da
Estrela. A primeira vez que seu nome aparece nos relatórios é referente ao ano de 1854,
como professor de Suruí, onde provavelmente atuou até ser jubilado em 1865.
Claudina Custodia Ribeiro foi admitida como aluna da Escola Normal em 1871.
Em 23 de outubro de 1873 foi nomeada professora pública efetiva de 1ª classe do lugar
denominado Santo Aleixo (Freguesia de N.S. da Piedade), em Magé. Como a cadeira de
instrução feminina desta localidade foi criada pelo decreto nº 1855 de 1873, é possível
inferir que Claudina foi a primeira professora pública da localidade. A mesma era irmã
do professor Antônio José Ribeiro Paraguassú que também atuou como docente na
freguesia de Suruí, Magé. No Almanak aparece que a professora atuou até 1875 em
Magé, mudando-se para a localidade de Queimados (Freguesia de N.S. da Conceição de
Marapicú), Iguaçu. Além desses locais, a professora também atuou em Maricá e Itaboraí
após a Proclamação da República. Tais dados demonstram que o professor formado pela
Escola Normal também apresentava rotatividade na ocupação das cadeiras.

Provimento das escolas: o caso do município de Estrela


Criado no dia 20 de maio de 1846 pela lei de n° 397 da Assembleia Provincial
do Rio de Janeiro, o município de Estrela, por sua localização às margens da Baía da
Guanabara, contribuiu significativamente para o desenvolvimento econômico da

Medella, Amelia Honorata da Matta, Joanna Rosa de Magalhães, Leopoldina Cordovil de Siqueira,
Anastácia Maria Desoudin, Virginia Maria da Silva Weingaster e Romana Augusta Barradas Muniz.

sumário 943
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Província do Rio de Janeiro. As freguesias que compuseram o município criado


pertenciam anteriormente a duas outras vilas, a de Magé criada no ano de 1789 e Iguaçu
criada no ano de 1833116.
Geograficamente o município de Estrela estava situado às margens de pequenos
rios que, no período do Império, eram navegáveis e permitiam o alcance da Baía da
Guanabara para deslocamento até a área portuária na Corte, servindo de rota para o
escoamento de produtos que vinham do Vale do Paraíba (RJ) e de Minas Gerais
(SOUZA, 2014). A hidrografia e os caminhos do município de Estrela o atribuíram a
condição de entreposto e movimentado local de passagem.
Durante o período de 1846 a 1889 foi possível mapear 83 professores atuando na
instrução do Município, sendo 70 públicos, 5 particulares, 4 subvencionados e 4
atuantes nas Colônias Orfanológicas. Nos relatórios dos Presidentes da província o
primeiro registro de professora pública do sexo feminino se refere à D. Carolina de
Oliveira Brito, no ano de 1847, e ao professor público masculino José Diogo da Cunha
Couto, no ano de 1848.

Gráfico 2: Escolas de Ensino Público primário criadas entre as décadas de 40 e 80 em Estrela

Fonte: Relatórios do Presidente da Província Freitas Travassos de 08 de setembro de 1874.

116
Segundo dados do Almanak Laemmert faziam parte do Município ou Vila de Estrela quatro
freguesias: Freguesia de Nossa Senhora da Piedade de Inhomirim (criada em 1868), Freguesia de Nossa
Senhora da Guia de Pacobaíba (criada em 1755), Freguesia de Nossa Senhora do Pilar (criada em 1696),
e o Curato de São Pedro de Alcântara (Petrópolis), fundado no dia 16 de março de 1843 pelo Imperador
Dom Pedro II. A partir do ano de 1857 o Curato de São Pedro de Alcântara emancipou - se, sendo
elevado à categoria de cidade tornando-se o que é hoje a Cidade de Petrópolis. Para essa análise e pelo
pouco tempo de permanência do Curato de São Pedro de Alcântara na configuração da Vila de Estrela, os
dados e as discussões aqui apresentadas não irão se debruçar sobre as informações referentes à
escolarização de Petrópolis, já que o mesmo veio a deixar de fazer parte do município em 1856.

sumário 944
VII Seminário Vozes da Educação

A partir do estabelecimento de regulamentos e leis da instrução na Província do


Rio de Janeiro - tal como o decreto n. 1.470 do ano de 1869 que previa a criação de
escolas públicas femininas em todas as freguesias da província e também a lei de 28 de
setembro de 1871 (Ventre Livre) - foi possível observar a criação de novas escolas na
região do Município de Estrela. Ao compararmos o quantitativo de escolas existentes
por décadas percebemos o impacto ocasionado a partir de 1869, conforme pode ser
visto no gráfico 2.
No levantamento de dados realizados no conjunto dos 83 professores mapeados,
verificamos que sete deles foram formados pela Escola Normal: Honorato Ignacio de
Carvalho (nomeado em 1850), Maria Augusta Jardim da Veiga (nomeada em 1871),
Gregório Christino da Silva (nomeado em 1867), Lucilia Maria da Conceição Alberto
(nomeada em 1873), Marianna da Conceição Lara (nomeada como professora no ano de
1874), Anna Josephina Nery do Valle e Ricardo Cavalcanti de Albuquerque (nomeado
em 1870).
Entre os professores que atuaram no Município e que fizeram parte do alunado
da Escola Normal, daremos destaque aMaria Augusta Jardim da Veiga. Foi possível
observar registros nos periódicos da época destacando seu zelo e inteligência e seu
desempenho nas disciplinas de doutrina cristã, aritmética, cosmografia, geografia e
história sagrada, nas quais foi aprovada plenamente. Habilitada pela Escola Normal no
ano de 1870, Maria Augusta Jardim da Veiga foi nomeada em 1870, segundo relatório
do diretor da instrução de 1870, para atuar como professora pública em Estrela, na
Freguesia de Nossa Senhora da Piedade. No entanto, foi removida para Niterói (Icaraí)
no ano de 1872.
A remoção rápida de Maria Augusta sugere a insatisfação com o local para onde
foi nomeada, Estrela. O mesmo pode ter ocorrido com Claudina Custodia Ribeiro que
havia sido nomeada para Magé e pouco tempo depois foi atuar em outra cidade. Ambas
as experiências de rotatividade podem caracterizar o que Dayana Lima (2014) denomina
de “sinais de desconforto” que levam os professores a usarem estratégias para obterem
melhores condições de vida e de trabalho. Depois de ser removida para Niterói
permaneceu na freguesia de São João Batista de Icaraí até se aposentar em 1905 (O
Fluminense, 29/11/1905, p.1), sinal de que conseguiu alcançar uma situação de maior
“conforto”.
Em 1877, Maria Augusta mudou o sobrenome, passando a se chamar Maria
Augusta Jardim Alberto, e permaneceu atuando em Niterói, mesmo depois da mudança

sumário 945
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

do regime político. Faleceu em 13 de julho de 1911, aos 71 anos de idade, segundo uma
nota de jornal que também informa que a professora exerceu o magistério público e
particular por 41 anos e que era titulada pela “primitiva Escola Normal desta cidade” (O
Fluminense, 14/07/1911, p.1).

Considerações finais
Podemos observar que a política de provimento das escolas públicas primárias
na Província do Rio de Janeiro com alunos egressos da Escola Normal apresentou uma
série de problemas como o baixo número de concluintes, desinteresse pela carreira do
magistério, o fechamento da Escola Normal e a adoção da política de formação pela
prática. As autoridades recorreram à estratégia de prover as escolas com professores
interinos para contornar a lei que obrigava o provimento com os habilitados normalistas,
de obrigar professores em exercício a cursarem a Escola Normal e os alunos
pensionistas a assumirem cadeiras públicas de primeiras letras.
A defesa da formação pela Escola Normal não era um consenso e isso se refletia
no perfil do corpo docente das escolas públicas da província diante das diferentes
decisões políticas e estratégias tomadas ao longo do tempo, sendo possível observar um
conjunto heterogêneo de professores com e sem formação específica. Essa
heterogeneidade gerava tensões entre as autoridades quando se tratava de discutir a
qualidade do ensino e as medidas a serem tomadas.
Apesar disso podemos observar também uma quantidade expressiva de
professores habilitados pela Escola Normal atuando nos municípios, como nos casos de
Magé e Estrela, e relatos do diretor da instrução acerca da melhora no “aproveitamento”
do ensino nas escolas da província em que atuavam os referidos professores. Embora os
discursos das autoridades governamentais presentes nos relatórios possuam a intenção
de dar visibilidade e valorizar os atos do governo, acompanhar trajetórias docentes e o
funcionamento das escolas no âmbito local permitem perceber com maior profundidade
os efeitos das políticas educacionais, conforme procuramos dar a ver enfocando os
municípios de Magé e Estrela.

Referências
ALONSO, José Inaldo.Notas para a história de Magé. Ed. do autor-Niterói, 2000.

CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das
sombras: a política imperial. 3ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007.

sumário 946
VII Seminário Vozes da Educação

CHAGAS, Renata Rodrigues.A expansão da oferta da instrução primária pública no


século XIX na província do Rio de Janeiro. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em Pedagogia). UFF, 2011.

GINZBURG, C.; PONI, C.O nome e o como. Troca desigual e mercado historiográfico.
In: GINZBURG, C.; CASTELNUOVO; PONI, C. (orgs.). A micro-história e outros
ensaios. Rio de Janeiro, RJ /Lisboa, Portugal: Bertrand Brasil /Difel, 1991. p.169-178.

GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Império das Províncias: Rio de Janeiro, 1822-
1889. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008.

FARIA FILHO, Luciano Mendes de. A legislação escolar como fonte para a história da
educação: uma tentativa de interpretação. In: ______. (Org.). Educação, modernidade e
civilização. Belo Horizonte: Autêntica, 1998, p. 89-125.

LIMA, Dayana Raquel Pereira de. Sinais do “desconforto” no exercício da docência


pública em Recife e Olinda (1860-1880). Dissertação (Mestrado em Educação) -
Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Recife, 2014.

VILLELA, Heloisa. O mestre-escola e a professora. In: LOPES, Eliane; VEIGA,


Cynthia; FARIA FILHO, Luciano M. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000, p. 95-134.

______. Da Palmatória a Lanterna Mágica: A Escola Normal da Província do Rio de


Janeiro entre o artesanato e a formação Profissional (1868-1876). Tese (Doutorado em
Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2002.

sumário 947
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

EXPERIENCIA EDUCATIVA DE LA ESCUELA CAMPESINA


ALTERNATIVA

María Isabel Gutiérrez Chávez


Escuela Campesina Alternativa/ Cajamarca, Perú
Isa.gutierrez.chavez@gmail.com

Contexto de la experiencia
La Escuela Campesina Alternativa (ECA) es una institución Educativa privada,
que tiene como base la Educación Popular Alternativa, planteada como un conjunto de
procesos mediante los cuales las comunidades de base recuperan sus saberes,
reivindican sus conocimientos y abonan su comprensión del mundo en interacción con
conocimientos foráneos, sin subyugar los propios, con participación efectiva y
encaminados a la protección y conservación saludable de la tierra y el ambiente, sin
injerencias coloniales de ninguna índole. La ECA, tiene su ámbito de acción en la
comunidad de Pomabamba, que pertenece al distrito de Jesús, departamento de
Cajamarca.
Marco el contexto de la experiencia narrando una pequeña historia de cómo
comenzó este viaje, que por cierto tuvo boleto de ida, pero no de retorno. Remoto hacia
el año 2005 en el que la ilusión de pensar mi país, con mejores oportunidades para
todos, me llevó a acompañar a un grupo de jóvenes voluntarios extranjeros que
desembarcaban en Cajamarca para hacer una experiencia de desarrollo personal y apoyo
solidario en un país del “tercer mundo”.
En la Escuela nos hablan de desarrollo, país de tercer mundo, primer mundo, los
de arriba y los de abajo, norte y sur; conceptos que nos hacen situarnos en una
denominación de país del tercermundo, conquistado, dominado y colonizado por afanes
políticos, económicos y religiosos. No hablo de quienes nos conquistaron, pero la
fractura fue honda, las generaciones vienen - van y el Perú se ha convertido en un país
que no logra comprender su identidad, su raíz, su esencia. Nos es difícil saber de dónde
venimos y menos aún a dónde vamos; a pesar que análisis internacionales hablan del
Perú como un país emergente, con grandes oportunidades de desarrollo desde la
inversión privada, transnacionales, políticas económicas, educativas y yacimientos
mineros explotados y por explotar, que aseguran una esperada industrialización y el

sumário 948
VII Seminário Vozes da Educação

desarrollo económico, “otro tipo de colonización” oficialmente justificada por el


sistema neoliberal opresivo y favorable al mercado. Aunque también somos un país
recordado por la corrupción de sus presidentes y autoridades políticas, lo que nos hacer
flaquear en esta vorágine de patria que queremos construir.
Refiero también al contexto, que durante mi formación como docente quise
comprender el lenguaje mítico, religioso de lo andino, moderno y cultural de José
María Arguedas en su obra póstuma “El zorro de arriba y el zorro de abajo” como una
posibilidad de comprender cómo la urbe representa la promesa feliz de modernización
y desarrollo; sin embargo no fue muy fácil desarrollar un nivel de reflexión sobre este
tema, la formación que recibí, sólo se encaminó a un proceso técnico e instrumental.
Pasaron 31 voluntarias y voluntarios en este tiempo. Comencé a sentirme
también voluntaria, porque me descubrí en esa “voluntad” de servir, desde mi ser
profesional, buscando construirme como ser humano para aprender a aprender, ser,
hacer convivir y transformar en esta sociedad plural e interconectada. Descubrí que una
maestra debe aprender a descubrirse en contacto con los demás, su espiritualidad
trasciende en la media en que camina de la mano y en los zapatos del otro, en ese
sentido no hay educación sin el otro.

Descripción de la problemática

La escuela no es buena ni mala, el punto es al servicio de quién está y no está


al servicio de las comunidades (Alfredo Mires Ortiz. Documental Escuela
Campesina Alternativa Cajamarca, 2016).

La escuela no desarrolla la creatividad en las niñas y niños, relegándola a un


proceso repetitivo de conocimientos que muy poco sirven para su desarrollo integral, en
una sociedad definida bajo los parámetros de desarrollo del sistema neoliberal e
invadida por el mercado, todo se compra, todo se copia, nada se crea. En este sentido se
uniformiza el aprendizaje a un currículo conceptualizado como flexible o diversificado,
que parcela el conocimiento y parametra un modelo de estudiante que reproduce un
nivel cognitivo, competitivo e individualista, desvirtuando el sentido comunitario,
donde para llegar primero hay que dejar al resto atrás. La evaluación cuantitativa define
la calidad del alumno, a pesar de los esfuerzos que se hace al hablar del desarrollo de
habilidades; más aún cuando al maestro formado tradicionalmente le cuesta pensar
creativamente en estrategias diversas de desarrollo de experiencias de aprendizaje.

sumário 949
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Imagen sobre algunos procesos escolares

Fuente: Archivo personal

La lectura se plantea como la destreza de leer, pero no se desarrolla como una


práctica de reflexión o construcción de conocimientos capaz de articular, integrar áreas
o construir nuevos aprendizajes, está ceñida a un Plan Lector impuesto, que muchas
veces los estudiantes poco o nada disfrutan, se lee por obligación para alcanzar el
ONCE y estar aprobado, camino que hace acercándose cada vez más a medios
tecnológicos, audiovisuales y distractores de un proceso de formación.

Imagen: cuestionamiento del modelo de educación capitalista

Fuente: Archivo personal

Se asume que la formación académica de la Escuela Peruana debe estar


encaminada a que los estudiantes puedan acceder a una formación superior y
profesional (tecnológica o universitaria) para su desarrollo personal y servicio del país,

sumário 950
VII Seminário Vozes da Educação

sin embargo, la brecha entre Escuela y Universidad es cada vez más grande. Los
estudiantes deben pasar un proceso de formación preuniversitaria privado para acceder a
la universidad, lo que difícilmente se logra por el bajo nivel cognitivo con el que
termina la formación educativa secundaria.
La respuesta a la pregunta ¿Al servicio de quién está la Escuela?, Claudio
Naranjo responde:..La misión inconfesada de la educación es mantener a la gente igual,
que no cambie, la educación, yo digo, es el socio invisible… la educación es para tener
trabajadores, no para tener desarrollo humano y el problema, yo creo, es que sin
desarrollo humano, no hay evolución social, la sociedad está muy mal y tendría que
evolucionar la sociedad, para que se resuelva la crisis social multifacética. La
conciencia es nuestra esperanza. Como nos dice Claudio Naranjo en una entrevista con
RT Play Español “la Educación es un sistema creado por un sistema económico para
crear una fuerza de trabajo apropiada y para que la gente obedeciera a mandatos y para
que no pensara mucho en sí misma.”
Un sistema educativo valorado en cantidad de cuadernos completados en un año,
aunque con dibujo de fotocopias, con recortes de revistas, con láminas o 180 ejercicios
de prácticas de matemática que se realizan sin comprender para qué sirven en la vida
diaria.

Una casa – propuesta de transformación


En el año 2008, el cuestionamiento de qué hacer y cómo continuar nos obligó a
pensar en un proyecto, con objetivos claros, sobre los que debíamos diseñar nuestras
acciones de trabajo. Pensar en la comunidad como punto de partida, sus recursos,
necesidades, cultura, familias ytener la humildad de aceptar nuestros errores y aprender
a escuchar al otro, fue el primer paso. Los detalles de La Casa evidencian las
posibilidades que proveen la fuerza y los materiales de la zona con criterios de:
Fortaleza, belleza, concordancia con el paisaje, cuidado del ambiente, economía,
participación, funcionalidad y replicabilidad. (ORTIZ, 2010). Paulo Freire en la cuarta
carta para mejorar el desempeño de maestras y maestros nos dice:

La humildad nos ayuda a reconocer esta sentencia obvia, nadie lo sabe todo,
nadie ignora todo. Todos sabemos algo, todos ignoramos algo. La humildad,
que de ningún modo significa falta de respeto hacia nosotros mismos, ánimo
acomodaticio o cobardía. Al contrario, la humildad exige valentía, confianza
en nosotros mismos, respeto hacia nosotros mismos y hacia los
demás(FREIRE, 1996, pág. 60).

sumário 951
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Un antropólogo nos acompañó en el diseñodel proyecto. La propuesta teórica iba


a la par de la construcción de la casa, en este sentido la construcción fueparte de la
propuesta pedagógica. Se construyó una casa con propuesta de política medioambiental.
Lospozos de cosecha de agua, recuperan tecnología andina y conocimientos ancestrales
que la escuela moderna olvida para procesos de aprendizaje y menos aún para procesos
de construcción de las escuelas, nos permite almacenar agua que sirve para mantener los
cultivos en época seca.

Escuela Campesina Alternativa

Fuente: Archivo Personal

La chacra experimental en la que las niñas, niños, adolescentes, adultos (mujeres


y hombres) logran desarrollar experiencias educativas en contacto con las tierra, con la
naturaleza, con la vida.

El Conocimiento que se genera de forma participativa (en grupo) y en


igualdad de condiciones va más allá de conocimiento técnico, neutro y
objetivo, ya que parte de la realidad histórica y social de quienes participan y
eso le da un sentido político, el de avanzar a una sociedad más justa, solidaria
y libre. (DESIDERIO DE PAZ, 2019)

Jardín Comunitario Escuela Campesina Alternativa

Fuente: Archivo Personal

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VII Seminário Vozes da Educação

El material de la casa construida es de adobe que se hace con tierra de la zona


mezclado con paja andina (ichu), la pintura de las paredes es de tierra mitosa que hay en
la zona. El objetivo fue transmitir, acercar los colores de la comunidad para un espacio
de convivencia y diálogo comunitario desde nuestra propuesta educativa, en contraste
con este sin número de posibilidades que el mercado y el sistema educativo ofrece. El
ichu, icho paja brava o paja ichu (Stipa ichu) es um pasto del antiplano andino
sudamericano, México y Guatemala empleado como forraje para el ganado,
principalmente de camélidos sudamericanos. Es endémica de Guatemala, México, Costa
Rica, El Salvador, Venezuela, Bolivia, Colombia, Ecuador, Perú, Chile Argentina.
Los árboles, jardines y espacios abiertos permiten desarrollar ese vínculo con la
naturaleza que hace recrear el aprendizaje desde experiencias vivenciales y de
construcción colectiva que permiten a cada uno de los que participamos en este
proyecto activar nuestros cinco sentidos y desarrollo de habilidades. La reflexión,
lectura de texto y contexto, comprensión de la lógica matemática en la vida y
visualización del cosmos se puede compartir con la magia de leer y escribir.
Una cocina para preparar los alimentos, comprendiendo cantidades, el sentido de
reciprocidad, el valor nutritivo de los alimentos, pero sobre todo sentir que educarnos es
aprender a “ser” sin ningunearnos. Todos somos, todos nos sentamos en la mesa, nos
llamamos por nuestro nombre, nos responsabilizamos de participar.

Cocina de la Escuela Campesina Alternativa

Fuente: Archivo Personal

Una sala para biblioteca, que en este sentido es espacio físico de referencia de
libro, encuentro con la naturaleza, comodidad para leer, libertad para escoger, belleza
para imaginar y reflexionar. La biblioteca está más allá de grandes ambientes, muebles
y cementerios de libros a veces olvidados. La Biblioteca es el espacio de animación a la
lectura y escritura, herramienta fundamental de todo proceso de aprendizaje. Lectura
crítica

sumário 953
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Dos salas grandes, una para el desarrollo de talleres, conferencias o exposiciones


y otra destinada para la exposición de nuestros trabajos, esta segunda sala es como un
libro, vivencial, que permite visualizar la historia que vamos construyendo a través de
los proyectos educativos entrelazados, unos con otros, para comprender que la
educación debe ser holística, capaz de integrar lo cognitivo hacia el desarrollo de las
habilidades no parceladora ni parametrada. En este sentido la teoría es el producto de la
experiencia significativa del dialogo entre los diferentes sujetos.

Escuela Campesina Alternativa

Fuente: Archivo Personal

La vista de la casa a la comunidad es un regalo, las reflexiones y aprendizajes se


van dado de cara a la comunidad visualizando la cultura, la realidad historia, el impacto
social de la ciudad y el mercado que nos convence fácilmente hacia el camino de un tan
ansiado desarrollo.

Una Escuela (se creó una propuesta curricular)


La construcción se dio a la par del diagnóstico de la comunidad, permitiendo
construir la propuesta pedagógica en respuesta a las necesidades de la comunidad. Una
propuesta que busca llenar los vacíosque la escuela moderna y sistema educativo va
dejando en su paso por la vida de niños, jóvenes y adultos. El objetivo general de la
propuesta es: Acompañar la formación integral, el desarrollo personal y colectivo;
mejorando la vida, protegiendo el ambiente y generando una alternativa educacional y
productiva comunitaria. Objetivo que a su vez genera objetivos específicos que se
enmarcan en el desarrollo de los programas de la ECA:

sumário 954
VII Seminário Vozes da Educação

Programa de la Escuela Campesina Alternativa


Programa Contenidos y acciones
Formación  Cursos permanentes (1 año de duración): contenidos del
currículo
 Talleres temáticos específicos
 Asistencia educativa (precisión de conocimientos regulares
complejos)
 Diálogos con los profesores de las escuelas
 Estudio, auto capacitación y reconocimiento de la comunidad
Producción y  Huerto de plantas medicinales
autosostenimiento  Chacra experimental
 Vivero
 Trabajo orgánico con mujeres para la producción “artesanal”
 Trabajo de limpieza y reciclaje
 Cosecha de agua de lluvia y reciclaje de agua
Proyección  Biblioteca y ludoteca (rescate de juegos tradicionales)
 Promoción de la lectura
 Eventos académicos y artísticos
 Infraestructura: La Casita como piloto y construcción
alternativa
 Acuerdos o convenios con entidades afines
Investigación  General: toda la comunidad o aspectos generales
 Específica: temático o geográfico de la comunidad
Voluntariado  Sensibilización y reconocimiento de contextos.
 Capacitación personal y colectiva
 Compromisos y reflexión crítica
Fuente. Proyecto educativo ECA

La propuesta temática es general y específica

Temática general Programa de la Escuela Campesina Alternativa


Áreas Contenidos
Ambiente
Estado del ambiente, ubicación y reconocimiento de la comunidad
y Geografía
Historia de Local y de Cajamarca en el Perú. Tradición oral. Patrimonio Cultural
la comunidad Comunitario.
Lenguaje y Habla propia y etno matemáticas (pe. Pesas y medidas propias).
matemáticas Literatura regional
Ética y Criterios normativos del comportamiento comunitario/contexto.
sociedad Filosofía y religiosidad andina.
Fuente. Proyecto educativo ECA

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Temática específica Programa de la Escuela Campesina Alternativa


Áreas Contenidos
Medicina natural + primeros auxilios; gastronomía de la comunidad;
Salud
industrias alternativas
Arte Arte, creatividad y auto sostenimiento, manualidades y formas de
y comunicación proyección. Música y danza
Patrimonio natural. Cosecha y reciclaje de agua; composteras y
Agua y tierra
abonos naturales; viveros y forestación; semillas nativas
Construcción Construcción con piedra y tierra; diseños alternativos; reciclaje;
y materiales alternativos [pe. leña de penca, tablas de penca, pintura
mantenimiento de tierra, etc.]
Fuente. Proyecto educativo ECA

Estrategia de trabajo

La imaginación es más importante que el conocimiento,


el conocimiento es limitado, en cambio la imaginación
abarca todo (Albert Einstein).

La estrategia de trabajo permite articular las diferentes áreas y se basa en el


desarrollo de proyectos, por ejemplo: el área de ambiente y geografía genera el
contenido temático: Estado del ambiente: La basura. Este contenido, se revisa desde el
área Historia de la comunidad, refiriendo cómo era antes la comunidad, cuanta basura
había. Para ello la presencia de personas antiguas, sabiduría ancestral y comunitaria son
la referencia, transfiriendo la historia y revalorando el sentido de cercanía con la
naturaleza, con la tierra, la cultura. La reflexión se da en la medida que es un contenido
real, vinculante a la vida cotidiana y cercana a la sociedad de consumo y mercado.
Concluido este proceso el área de ética y sociedad permite la reflexión desde nuestro
actuar, ¿Cómo producimos basura? Dónde la botamos, ¿la rehusamos?, en este sentido
la reflexión crítica permite tener una postura clara en función a una situación lo que
permite emanciparse de conocimientos impuestos hacia una reflexión personal y
liberadora.

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VII Seminário Vozes da Educação

Escuela Campesina Alternativa

Fuente: Archivo Personal

La estrategia también nos encamina a la realización de un proyecto concreto que


corresponde a afianzar el proceso de reflexión y desarrollo cognitivo de lo aprendido él
área Lenguaje y matemática articuladas ayudan a este proceso, donde la creatividad es
puerta abierta para generar conocimiento, pues están articulados diferentes. El proyecto
puede visualizarse como punto de partida para una reflexión personal y también
colectiva con el objetivo de la teorización del conocimiento, en este proceso la lectura y
escritura cobra el valor de leernos a nosotros mismos.

Escuela Campesina Alternativa

Fuente: Archivo Personal

Cada área considera contenidos temáticos, los mismos que están articulados en
integrados en el proceso de aprendizaje en el sentido de ser reflexionados través de la
lectura que constituye una herramienta dinamizadora del aprendizaje y desarrollo
integral. La lectura se recrea en la posibilidad de construcción creativa de textos y
contextos.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Escuela Campesina Alternativa

Ambiente y Lenguaje y
geografía matemática

Ética y Sociedad

Historia de la
comundiad

Fuente: Archivo Personal

Una comunidad

Ojalá podamos tener el coraje de estar solos y la


valentía de arriesgarnos a estar juntos ( José María
Arguedas).

Esta propuesta educativa refiere un construir comunidad desde los criterios


básicos de la misma en relación con la tierra, experiencia y sabiduría, compartires,
conversas, intercambios, conocimientos, enseñanzas y aprendizajes, respeto mutuo,
capacidad para convivir y educación alternativa al servicio de la comunidad.
Construir comunidad se va dando en el proceso de la práctica pedagógica, donde
todos enseñan y todos aprenden, se privilegiala comunidad sobre el individuo. Arguedas
(1994) menciona “el individuo solo tiene sentido en la comunidad”, a partir de ello nos
planteamos la pregunta: ¿Cómo podemos desarrollar valores éticos si, estos, no se dan
dentro de ella misma, solo será unafábrica de trabajadores que beneficien el sistema
económico.
La escuela sigue siendo un lugar privilegiado para suprimir y entremezclar las
diferencias; para promover una educación intercultural; para educar en la unidad de la
diversidad; para hacer significativo que no solo somos ciudadanos y ciudadanas de aquí

sumário 958
VII Seminário Vozes da Educação

y de europa, sino que también somos ciudadanos y ciudadanas de un solo mundo (de
una comunidad global)
Desde esta propuesta educativa, crear comunidad implica que la Escuela deja de
ser un espacio cerrado y centrado en conocimientos,para pasar a ser un espacio
dinámico donde se movilizan diferentes actores, para construirse como familia,
hermandad. El maestro deja de ser maestro para ser alumno, facilitando el aprendizaje
desde las diferencias.

Reflexión – Aplicación
Construir una escuela como un espacio físico de encuentro comunitario y
desarrollo de aprendizajes, desde de la socialización y colectivización de saberes, donde
todos enseñan y todos aprenden y en el que las flores, sol, tierra, plantas,piedras, luna y
estrellas se ponen en sintonía para ser compañeras y compañeros inspiradores
deemociones para la literatura, el lenguaje, el dibujo, la pintura, tamaño y formas
matemáticas. Nuestra propuesta es un camino compartido hacia la construcción del
individuo dentro de una comunidad, en ese sentido, construyendo escuela, construimos
comunidad.
La metodología de proyectos nos muestra que todas las áreas articuladas sirven
para el desarrollo del aprendizaje desde el disfrute del pensamiento creativo, la
recuperación del saber ancestral, reflexión, preguntas, respuestas y participación
colectiva. En el que la lectura se convierte en el motor y herramienta de reflexión de
nuestra vida individual y colectiva. Leer y escribir nos convierte en este binomio
cómplice de ser lector y escritor que viaja en el vaivén del tiempo y el espacio.
La casa fue construida para ser una escuela, donde la edad sólo es la referencia
de madurez y crecimiento, no solo en el aspecto físico también intelectual, donde
aprendemos a respetarnos, desarrollar vínculos para relacionarnos desde la reciprocidad,
más no para separarnos en un grado y otro. La escolarización no es la rigidez de aulas
de cemento frías, que impiden ver el sol, ni carpetas uniformemente ubicadas donde el
profesor sube a la palestra para dar un discurso, llamar lista o visualizar la totalidad del
grupo de trabajo poniendo las reglas establecidas.. La casa sirve de referencia para la
comunidad en la búsqueda y procura constante de mantener el paisaje andino, en
contraposición de modelos urbanísticos de vida.
Es importante traer a la memoria que la comunidad, la cultura, el medio
ambiente, reto personal y colectivo es el horizonte de esta propuesta educativa.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Queremos ser una propuesta educativa a un sistema a veces absurdo, donde le valor de
la nota determina el saber, aunque sólo sea de memoria y no de reflexión.
Me quedo con una pregunta que hago a muchas niñas, niños, jóvenes ¿Para qué
vas a la escuela?, para ser alguien en la vida, responden.Entonces, aparece otra
pregunta ¿Quién eres ahora?
Sabemos también que esta propuesta sobrepasa las paredes escolares, sin
embargo sabemos que lo cambios verdaderos van a darse desde el diálogo constante
entre alumnos, familia, maestros, comunidad y todos los agente involucrados en ello.

FUENTES DE CONSULTA
INTERMÓN. Oxfan, Pistas para cambiar la Escuela. Barcelona, 2009

DESIDERIO DE PAZ ABRIL. Escuela y Educación para la Ciudadanía Global. Una


Mirada Transformadora. Edit. Intermón Oxfam. Febrero 2009

ARGUEDAS. José María. Amor y fuego. Lima, 1995.

GALEANO. Eduardo, Fragmento del texto que escribió al recibir el premio Stig
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NARANJO, Claudio. Entrevista concedida ao canal RT Play en Español em 04 de


dezembro de 2018. Disponible en: https://actualidad.rt.com/rtplay/297843-claudio-
naranjo-educacion-creado-sistema Acceso em 15 Ago. 2019.

MIRES ORTIZ. Alfredo. Proyecto educativo ECA. Pomabamba 2010

FREIRE, Paulo. Cartas a quien pretende enseñar. Siglo XXI, 1994.


Descripción de Stipa ichu. Disponible en: https://es.wikipedia.org/wiki/Stipa_ichu
Acceso em 15 Ago. 2019

sumário 960
VII Seminário Vozes da Educação

AVANÇO CONSERVADOR X EMANCIPAÇÃO HUMANA

Marcos Luis Oliveira da Costa


UERJ-FEBF
lordpedagogiafebf@gmail.com

Introdução
Este trabalho é parte da pesquisa que vem sendo desenvolvida com intuito de
perceber as articulações dos movimentos conservadores e sua atuação no campo da
educação. Sendo assim, analisamos o avanço do conservadorismo nos tempos atuais e o
desafio que isso representa para a educação, sobretudo pública.
Para tal análise usamos autores e obras como Frigotto (2017), Marx (2010) e
Tonet (2005), mas para além dessas obras, outras complementares como Fernandes
(1981) e Shiroma, Moraes e Evangelista (2004). Tais autores nos auxiliam a
compreender tanto os movimentos da sociedade atual em torno da construção de temas
como Estado e Políticas Públicas e suas relações com as demandas da sociedade
capitalista, porém, ao se tratar do Brasil, leva-se em conta sua estrutura social e
econômica dependente, periférica e de submissão ao imperialismo, sobretudo,
estadunidense.
Faz-se necessário, diante do cenário que se desenha, compreender qual o papel
da educação na sociedade atual, porém sem desconsiderar o modelo de sociabilidade
vigente, o contexto histórico e político, bem como outros elementos que a ela se
agregam ou desagregam. Política, religião, família, entre outros, são temas
recorrentemente associados e em outros momentos desassociados da educação, o que
torna essencial uma avaliação das intencionalidades implícitas nesses processos.
Compreende-se aqui a política como um espaço de conflitos que se acirra,
principalmente, nos campos institucionalizados, tornando assim os espaços legislativos
- Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e, sobretudo, o Congresso Nacional -
um território onde se intensificam as disputas e se constrói o consenso (SHIROMA;
MORAES; EVANGELISTA, 2004, p. 8). Nesse território, movimentos como o Escola
sem Partido (ESP) e a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) têm atuado com efetivo
protagonismo na articulação de suas ideologias e na interferência, seja direta ou indireta

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

com vistas à construção de Políticas Pública, quando de seu interesse, mas ao mesmo
tempo no embargo ao avanço de pautas que são contrárias aos mesmos interesses.
No ano de 2013 manifestações populares tomaram as ruas das principais capitais
do Brasil demonstrando as mais diversas insatisfações. De reajustes de passagens à
corrupção. Melo e Vaz (2018) descrevem que inicialmente o Movimento Passe Livre
(MPL), movimento estudantil que mobilizou as primeiras manifestações, não acreditava
que este tomasse tamanha proporção e mobilizasse tantas pessoas e em tantas cidades.
Embora o cenário aparentasse uma organização desarticulada de uma política partidária,
o cenário eleitoral de 2014 demonstrou que movimentos conservadores se aproveitaram
da polarização construída nas ruas para se apropriarem do Congresso Nacional e de
espaços legislativos estaduais e municipais. O discurso conservador e antipolítico vêm
assim se consolidando e tomando a sociedade de assalto.
Dado o cenário político, econômico e social específico brasileiro, cabe-nos uma
avaliação de como vêm se construindo as articulações entre diferentes frações da
sociedade, porém é preciso pensar estratégias à imposição dos interesses da classe
dominante em detrimento da classe trabalhadora e que vem imprimindo na sociedade
seus projetos sem que haja uma mobilização de resistência efetiv. Que grupos compõem
e como se articulam estas frações de classe? Quais são seus projetos e como se
manifestam na sociedade?

Metodologia
Este trabalho desenvolveu-se a partir de análise bibliográfica e levantamento de
dados sobre o comportamento da Frente Parlamentar Evangélica como uma articuladora
do atual avanço conservador, aqui analisado a partir do movimento de articulação em
torno do processo de discussão, proposta e promulgação do Plano Nacional de
Educação (PNE) e dos Planos Municipais de Educação (PMEs).
Esta análise parte de uma articulação entre meu Trabalho de Conclusão de Curso
(TCC) apresentado na Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF)
(COSTA, 2018) e o artigo “A Frente Parlamentar Evangélica: Força política no estado
laico brasileiro” (TREVISAN, 2013). A análise levou em conta as considerações
trazidas em ambos os trabalhos, bem como a articulação destas aos conceitos e
reflexões propostos por outros autores apresentados neste trabalho e que nos ajudam a
compreender como os avanços e retrocessos desse conservadorismo interferem nos
processos educacionais e emancipatórios, não se restringindo ao ambiente escolar, mas

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VII Seminário Vozes da Educação

abrangendo toda a sociedade. Esta análise é feita a partir do materialismo histórico


dialético no interesse da compreensão dos movimentos históricos, políticos e sociais
que interferem diretamente na organização, principalmente da classe trabalhadora.

Resultados e discussão
Em minha monografia já apontava a necessidade de analisar o processo de
construção do Plano Nacional de Educação (PNE) e dos Planos Municipais de
Educação (PMEs), que no caso do trabalho citado se ateve a uma análise comparada
entre o processo legislativo ocorrido em Duque de Caxias, município da Baixada
Fluminense do Rio de Janeiro que fica na região sudeste e os municípios de Chapecó e
Paulo Lopes em Santa Catarina, região sul do país. Identificou-se nos três municípios
uma articulação de movimentos cristãos de vertente conservadora, percebidos a partir
das falas de vereadores e outros atores sociais (COSTA, 2018, p. 17). Tal fato aponta
que, embora aparentemente isolados os movimentos de discussão dos planos de
educação não o foram, em parte por atenderem à uma especificação do Ministério da
Educação (MEC), mas também pela articulação entre outros movimentos na discussão
de pontos específicos do projeto, como o caso do que foi nomeado à época como
ideologia de gênero.
Trevisan indica que a FPE nasce em 2003 já com o objetivo audacioso de
“influenciar mudanças mais efetivas, ampliando sua atuação para além das igrejas,
estendendo-se para o conjunto da sociedade” (2013, p. 35). Para tanto, segundo
Trevisan, existe uma estruturação organizativa com vistas a dar eficiência ao citado
projeto, que não fica apenas à cargo dos parlamentares, mas grande parte da tarefa é
desempenhada por um corpo de assessores. É significativa, ainda segundo a autora, a
mudança nos argumentos utilizados pelos integrantes da FPE na defesa de seus
posicionamentos e valores religiosos ao revesti-los de um discurso técnico-jurídico para
embasar sua avaliação de temas que consideram bíblica ou moralmente condenáveis.
A articulação intencional de grupos de interesse pode ser percebida ainda pela
organização de outros espaços de influência e pela construção de novas alianças, pois
embora a FPE agregue especificamente parlamentares evangélicos, em 2006 uma
articulação mais ampla cria a Frente Parlamentar da Família (FPF) congregando
evangélicos e católicos em torno de projetos comuns aos dois segmentos, dando mais
peso à luta por temas convergentes aos dois grupos (TREVISAN, 2013, p. 44).

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Entendendo que a sociedade em que vivemos está organizada sob um


modelo capitalista dependente e que isso tem reflexos não só sobre a organização
econômica, mas também sobre a estruturação social, inclusive das elites nacionais, é
preciso analisar a organização destes movimentos que consideram os interesses de uma
fração de classe em detrimento dos de outra, sem ignorar que isso tem interferência
também sobre a produção de políticas sociais (FERNANDES, 1981, p. 18).

O Estado, impossibilitado de superar contradições que são constitutivas da


sociedade - e dele próprio, portanto -, administra-as, suprindo-as no plano
formal, mantendo-as sob controle no plano real, como um poder que,
procedendo da sociedade, coloca-se acima dela, estranhando-se cada vez
mais em relação a ela. As políticas públicas emanadas do Estado anunciam-
se nessa correlação de forças, e nesse confronto abrem-se as possibilidades
para implementar sua face social, em um equilíbrio instável de
compromissos, empenhos e responsabilidades (SHIROMA; MORAES;
EVANGELISTA, 2004, p. 8).

Sendo assim, as Políticas Públicas são o resultado da correlação de forças dentro


do Estado, entre diferentes grupos sociais, o que manifesta o descompromisso real do
Estado em atender as necessidades de grupos marginalizados ou socialmente
desfavorecidos. Caracterizado assim o Estado capitalista nada mais é que um
legitimador de desigualdades. As contradições do Estado burguês se revelam então
quando os interesses da classe dominante se colocam em conflito com os da classe
trabalhadora, onde este Estado, quando impossibilitado de promover o consenso
pacífico o faz pela coerção, manifestando toda sua contradição.
Dessa forma é possível identificar que as Jornadas de Junho tomaram novo
formato. A partir da inserção de pautas como o combate à corrupção o movimento
tomou outros rumos (MELO; VAZ, 2018, p. 26) e passou a compor outro horizonte
ideológico, agora alinhado ao golpe contra a então presidenta Dilma Rousseff e
atendendo aos interesses conservadores, e consequentemente do grande capital.
Frigotto (2017, p. 30) descreve o cenário do golpe como um reflexo dos
movimentos do capitalismo em consonância com interesses egoístas da burguesia
brasileira e que se desenvolvem no “tecido social”.

Teria sido ingenuidade ou mera coincidência que a maioria absoluta de


deputados que aprovaram a abertura do processo de impeachment invocou,
invariavelmente, Deus e a família? Também não é mera coincidência nem
expressão meramente individual da advogada de acusação no processo de
impeachment, Janaína Paschoal, mas de grupos que se ampliam em nosso
país: “Deus que fez com que várias pessoas, ao mesmo tempo, cada uma na

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VII Seminário Vozes da Educação

sua competência, percebessem o que estava acontecendo com nosso país e


conferisse a essas pessoas coragem pra se levantarem e fazerem alguma coisa
a respeito”(FRIGOTTO, 2017, p. 31).

Nesse processo se desvelam articulações entre os interesses da FPE, da FPF e do


ESP, uma vez que não se restringem apenas aos espaços legislativos, mas deles emanam
para ecoar nas ruas e outros espaços.
Em se tratando do movimento Escola Sem Partido (ESP) é preciso ter em conta
que seu objetivo é mais específico e audacioso, ambicionando interferir na sociedade a
partir da imposição de um modelo educacional em que a função docente se restringe
apenas ao ato de transmitir conteúdos.

O que propugna o Escola sem Partido não liquida somente a função docente,
no que a define substantivamente e que não se reduz a ensinar o que está em
manuais ou apostilas, cujo propósito é de formar consumidores. A função
docente no ato de ensina tem implícito o ato de educar. Trata-se de, pelo
confronto de visões de mundo, de concepções científicas e de métodos
pedagógicos, desenvolver a capacidade de ler criticamente a realidade e
construírem-se sujeitos autônomos. A pedagogia da confiança e do diálogo
crítico é substituída pelo estabelecimento de uma nova função: estimular os
alunos e seus pais a se tornarem delatores (FRIGOTTO, 2017, p. 31).

Dessa forma o ESP se organiza e apresenta como um arauto da justiça, porém


sua intervenção se dá no campo da construção ideológica conservadora, embora se
arvore publicamente como anti-ideológico e apesar de seu discurso de não identificação
política e partidária, seus principais intelectuais possuem conexões diretas com
parlamentares. Sua ambição de que o programa ganhasse caráter legal por meio do
Projeto de Lei nº 867/2015 (PENNA, 2017, p. 36) demonstra não apenas alinhamento
com o projeto da FPE, mas anuncia seus objetivos. Este não foi o único Projeto de Lei
(PL), outros foram propostos em câmaras estaduais e municipais e sempre por
parlamentares ligados aos setores evangélicos (ESPINOSA; QUEIROZ, 2017, p. 59).
Uma importante observação é a cronologia como o movimento conservador vem
se articulando e à princípio me deterei apenas aos movimentos já mencionados aqui.
Iniciaremos pela criação do Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política,
criado em 2001 pelo bispo Robson Rodovalho e que tinha o objetivo de “organizar a
comunidade evangélica junto à sociedade civil para demandas políticas de seus
interesses e atuação nas Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas em todo o
país” (TREVISAN, 2013, p. 35); em 2003 é criada a FPE (IBIDEM, p. 34); em 2004
surge o ESP (PENNA, 2017, p. 35) e em 2006 a criação da FPF (TREVISAN, 2013, p.

sumário 965
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

49) fortalece as pautas conservadoras. Este quadro nos mostra uma possível articulação
sendo desenvolvida em torno de um projeto comum, a consolidação de grupos cristãos,
tanto na sociedade em geral como dentro do espaço legislativo, em torno de um projeto
conservador.
Segundo dados Organizados pelo Departamento Intersindical de Assessoria
Parlamentar, por meio de relatórios publicados em seu web site, desde 2003 a Bancada
Evangélica vem crescendo a cada legislatura tendo sofrido queda apenas no período de
2007-2011 por conta dos escândalos envolvendo parlamentares evangélicos que fizeram
parte do Mensalão, CPMI das Sanguessugas, da Máfia das Ambulâncias (DIAP, 2006,
p.33).

2003-2007
2007-2011
2011-2015
2015-2019
2019-2023

Fonte: Tabela organizada pelo autor com dados do site http://www.diap.org.br

Diferentemente de outras bancadas que vêm regredindo de tamanho


progressivamente, a Bancada Evangélica vem se consolidando no Congresso Nacional.
Parte disso pode ser atribuído à ações da FPE, como a iniciativa das “Joradas Nacionais
em defesa da vida e da família”

Segundo assessores e parlamentares, a ideia surgiu como estratégia para


aproximar a sociedade dos debates na Câmara dos Deputados e, na fala um
deles, para ajudar “a construir a legislação, interagindo, pressionando”. Então
em 2007, iniciaram essa incursão do Congresso em direção aos municípios
para apresentar seus argumentos e projetos e, através disso, tentar angariar
apoio da sociedade, na verdade, dos fiéis de suas igrejas (TREVISAN, 2013,
p. 44).

sumário 966
VII Seminário Vozes da Educação

Esse movimento de interiorização dos parlamentares da FPE coincide com o


período em que houve retração na quantidade de parlamentares e em seguida há uma
significativa recuperação do crescimento.
Analisar a configuração do Congresso Nacional nos ajuda a perceber como a
correlação de forças é desigual, uma vez que os grupos de interesse representados pelas
bancadas não manifestam demandas sociais das classes populares. No ano de 2016 o
site “Pública – Agência de Jornalismo Investigativo” publicou a matéria As bancadas
da Câmara, com o subtítulo Maiores grupos de parlamentares da Câmara são
pautados por interesses corporativos, conservadores ou por ambos; mapeamos quem
defende o quê(MEDEIROS; FONSECA, 2016), em que apresentava numericamente a
composição das principais bancadas existente na Câmara Federal e o número de
parlamentares que as compõem.

Fonte: https://apublica.org/2016/02/truc 1

sumário 967
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Das 11 bancadas existentes, as 5 maiores são a dos Parentes (238), Empreiteiras


e Construtoras (226), Empresarial (208) Agropecuária (207) e a Evangélica (196).
Destas bancadas a única que de alguma forma possui ligação com as classes populares
seria a evangélica, as demais possuem interesses mais diretamente ligados às elites.
Ainda podemos observar que as bancadas da Saúde (21), Direitos Humanos (24) e a
Sindical (43) que possuem interesse ideológico direto com as classes populares não
acumulam juntas a metade dos número de parlamentares da menor das bancadas do
grupo anterior.
Embora os próprios nomes das bancadas revelem as pautas econômico-
corporativas que elas representam, existe uma correlação de interesses, visto que muitos
parlamentares transitam em mais de uma bancada, havendo deputados que participam
simultaneamente de até 5 bancadas. Algumas dessas bancadas, em princípio,
representariam interesses conflitantes, como a Bancada da Segurança Pública,
comumente chamada de Bancada da Bala, que defende a liberação do porte de armas e a
Bancada Evangélica, que segundo o discurso cristão deveria defender o contrário. Dos
35 parlamentaes que compõem a Bancada da Bala, 15 participam simultaneamente da
Bancada Evangélica. Essa configuração demonstra que o conservadorismo possibilita
alianças por interesses comuns.
O conservadorismo, enquanto movimento articulado por diversas frações da
classe dominante, tem um projeto que precisa ser estudado e enfrentado, pois com diz
Penna

O discurso do Escola sem Partido não foi devidamente enfrentado, a meu ver,
desde o momento em que ele surgiu, em 2004, justamente por parecer
absurdo e em fundamentos legais para aqueles que conhecem o debate
educacional, e também porque ele se espalha com muita força, não em
debates acadêmicos, mas nas redes sociais. Esse discurso utiliza-se de uma
linguagem próxima a do senso comum, recorrendo a dicotomias simplistas
que reduzem questões complexas a falsas alternativas e valendo-se de
polarizações já existentes no campo político para introduzi-las e reforçá-las
no campo educacional (PENNA, 2017, p. 35).

O projeto era audacioso pois previa alterações na Lei de Diretrizes e Bases da


educação e se artivulava com ações cotidianas orientadas por um site que apresentava
desde formas de impor constrangimento aos professores até modelos de propostas de
leis a serem encaminhadas às câmaras municipais. Então, dados os objetivos, não se
pode ignorar que há intensão clara de imposição de um modelo educacional que não só
é conservador, como tira do educador a autonomia de seu trabalho e impõe a sociedade

sumário 968
VII Seminário Vozes da Educação

uma educação que em nada contribui para a emancipação do educando enquanto ser
humano e social. Marx ao discutir a emancipação à liga diretamente à liberdade e como
elemento político à cidadania, porém sem limita-la à isso, tornando-a um elemento
humanizador (2010, p. 3). Embora se reconheça que o indivíduo não se realiza em sua
totalidade social apenas pelo ato educativo, necessitanto de seu elemento fundante (o
trabalho) para realizar sua matriz economica, o que não elimina ou impede que outras
determinações contribuam para sua construção histórica e possível emancipação
(TONNET, 2005, p. 138).Embora a educação não seja trabalho, em seu sentido
ontológico, isso não diminui seu papel no processo social ou mesmo na transformação
da sociedade (IBIDEM, p. 140).

Considerações finais
Entende-se que as Jornadas de Junho (re)apresentaram velhas pautas à
sociedade e os desdobramentos que se deram a partir delas demonstram que o
conservadorismo vem se instalando no cenário nacional há longa data. A articulação de
grupos religiosos por dentro do legislativo vem agora reconfigurada em discursos
jurídicos e legais.
A classe dominante, sob o discurso anticorrupção, desvelou sua insatisfação e
incômodo com as políticas de redução das desigualdades desenvolvidas durante o
governo do Partido dos Trabalhadores (PT) (MELO; VAZ, 2018, p. 29) e deixaram
clara a impossibilidade da conciliação de classes. A divergência de interesses representa
uma nítida necessidade de organização da classe trabalhadora para o enfrentamento aos
interesses conservadores do capitalismo que se organiza para impor sobre os mais
pobres pautas que aprofundam as desigualdades.

O lugar de guerreiro da integridade permitiu à classe média acreditar que se


posicionava contra o governo do PT porque lutava pelo bem comum e não
porque estivesse incomodada com a perda de privilégios materiais e
simbólicos (MELO; VAZ, 2013, p. 29).

Mascaradas pelo discurso religioso moralizante tais pautas vêm sendo impostas
de forma acrítica às populações mais empobrecidas e que se tornam as principais
vítimas da perda de direitos pela expropriação privada do grande capital.
Sendo assim, a ferramenta hábil para enfrentar tais pautas e o espaço
privilegiado para discuti-las ainda é a escola, sobretudo a pública, uma vez que nela

sumário 969
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ainda se manifestam grupos de resistência, daí o interesse no esvaziamento ideológico


desse espaço por parte de grupos como o Escola sem Partido. Ao menos até que se faça
a verdadeira revolução da e pela classe trabalhadora.

Referências
COSTA, Marcos Luis Oliveira da. A mulher na sociedade capitalista e a abordagem
na luta de classes: primeiras aproximações. 2018. 60 f. TCC (Graduação) - Curso de
Licenciatura em Pedagogia, Centro de Humanidades, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Duque de Caxias, 2018.

DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar), Radiografia do Novo


Congresso: Legislatura 2019-2023 - Brasília, DF: DIAP, 2018. 164 p.: il.; (Estudos
Políticos do DIAP).

______. Radiografia do Novo Congresso: Legislatura 2007-2011 - Brasília, DF:


DIAP, 2006. 88 p.: il.; (Estudos Políticos do DIAP).

ESPINOSA, Betty R. Solano; QUEIROZ, Felipe B. Campanuci. Breve análise sobre as


redes do Escola sem Partido. In: FRIGOTTO, Gaudêncio. Escola "Sem"
Partido: Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro:
Lpp/uerj, 2017. Cap. 3. p. 49-62.

FERNANDES, Florestan. Capitalismo Dependente e classes sociais na América


Latina. Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores, 1981, 3ª ed.

FRIGOTTO, Gaudêncio, et al (Org.). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a


educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LLP, 2017. 144 p.

MARX, Karl. Sobre a questão Judaica. São Paulo, 2010

MEDEIROS, Étore; FONSECA, Bruno. As bancadas da Câmara: Maiores grupos de


parlamentares da Câmara são pautados por interesses corporativos, conservadores ou
por ambos; mapeamos quem defende o quê. 2016. Disponível em:
<https://apublica.org/2016/02/truco-as-bancadas-da-camara/>. Acesso em: 02 out. 2019.

MELO, Cristina Teixeira Vieira de; VAZ, Paulo Roberto Givaldi. E a corrupção coube
em 20 centavos. Galáxia (são Paulo), [s.l.], n. 39, p.23-38, dez. 2018. FapUNIFESP
(SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1982-255434843.

PENNA, Fernando de Araujo. O Escola sem Partido como chave de leitura do


fenômeno educacional. In: FRIGOTTO, Gaudêncio. Escola "Sem" Partido: Esfinge
que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Lpp/uerj, 2017. Cap. 2.
p. 35-48.

TONET, Ivo. Educação, cidadania e emancipação humana. Ijuí/RS. Editora Unijui,


2005.

sumário 970
VII Seminário Vozes da Educação

TREVISAN, Janine. A Frente Parlamentar Evangélica: Força política no estado laico


brasileiro. Numen 26: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 16, n. 1,
p.581-609, 16 dez. 2013. Semestral. Disponível em:
<https://periodicos.ufjf.br/index.php/numen/article/view/21884>. Acesso em: 02 out.
2019.

sumário 971
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

UM OLHAR PARA ALÉM DAS FRONTEIRAS: CRIANÇAS REFUGIADAS


EM ESCOLAS PÚBLICAS DE SÃO GONÇALO

Juliana de Oliveira Galvão


FFP UERJ/ ID/ Vozes da Educação
julianaolivergalvao@gmail.com

Thaís Alves de Souza


FFP UERJ/ PIBIC/ Vozes da Educação
tata.ads29@gmail.com

Contextualização
O presente trabalho é fruto de uma investigação inicial acerca do estudante
refugiado e docente na educação nas escolas públicas do município de São Gonçalo. Os
estudos sobre educação para refugiados no Brasil ainda é um tema muito recente, pouco
explorado que passa despercebido pelo estado.Após a constatação de pouco material
voltado para a educação desses sujeitos, se faz necessário despertar atenção de mais
pessoas para o tema dos refugiados na atualidade, conhecer as lutas, os desafios de estar
em um novo país e a importância da ação potencializadora da escola. Refletir, pesquisar
e por em prática as propostas pedagógicas com o intuito de incluir estudantes refugiados
é pensar em educação em âmbito global, não podemos deixar de incluir aqueles que
perderam o direito de permanecer em sua terra, seja por causas climáticas, religiosas ou
conflitos civis.
Neste sentido, como o primeiro movimento da pesquisa, foi realizada a pesquisa
no Portal da periódicos da CAPES/MEC utilizando as seguintes palavras-chave:
“refugiados” + “educação”, resultando em 361 periódicos. Refiz a pesquisa delimitando
pela área da educação e pelo idioma, aparecendo 4 artigos publicados entre 2014 a
2018: 3 apresentavam reflexões sobre o tema “refugiado” na abordagem disciplinar,
seus direitos e suas situações nos contextos nacionais e 1 sobre “educação”, mas
nenhum dos trabalhos abordava sobre a educação para pessoas em situação de refúgio.

sumário 972
VII Seminário Vozes da Educação

Tabela 1:Síntese das revisões de literatura


Palavras-Chave: “Refugiados + “Educação”
Autor Trabalhos encontrados Ano
Roberto Malighetti Antropologia pela educação.Notas por uma descolonização do 2014
pensamento
Thifani Carvalho; A escola como espaço de interdisciplinaridade e reflexão – 2017
um estudo sobre a primeira edição do fórum de humanidades
Nádia Portes;
promovido pelo colégio UNIVAP- unidade Aquarius, SJC -
Viviana Lima; SP
Jobair Rangel
Ricardo Barbosa; Pensar o outro; uma ponderação a respeito do imigrante nos 2015
contextos nacionais a partir da perspectiva habermasiana.
Marcelo Filho
Adilson Citelli Communication andeducation: 2018
themovementsofthemovementsofthependulum/ comunicacao
e educacao: os movimentos do pendulo.-mediação (texto em
português).
Fonte: Elaboração das autoras

As respostas para esta temáticanão serão encontradas nesse estudo, no entanto


faz-se necessário fazer o levantamentodos primeiros questionamentos. Assim, espera-se
que a pesquisa possa contribuir para a formação de profissionais que estejam dispostos
ao diálogo e à construção de posicionamentos que considerem contexto histórico e
social envolvido do outro. Contudo,é necessário que se tenha um olhar mais apurado
para os problemas que norteiam as pessoas que vem para a nossa terra a procura de uma
vida melhor. Sabe-se que a educação, como prática libertadora, é uma ferramenta que
contribui para que tais barreiras sejam aniquiladas.
Neste sentido, faz se necessário compreender os fatores que caracteriza pessoas
em condições de refúgio. Desta forma, a ONU (Organização das Nações Unidas)
considera um seja refugiado, pessoas que declararam e comprovam que são perseguidos
pelo Estado de sua nacionalidade. As razões que levam um emigrante pedir exilio em
outro país são devidas por questões de nacionalidade, religião, raça, opiniões políticas.
Caso a pessoa não se enquadrar nestes conflitos sociais não é visto como tal.
Sabe-se que a questão dos refugiados, a nível mundial, tem sido complicada não
somente em seu país de origem, mas também nos países em que eles escolhem se
resguardar. Ao adentrarem no país do outro, estes sujeitos enfrentam problemas como o

sumário 973
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

desemprego, pelo fato de seus diplomas não serem válidos, o que resulta na exploração
da mão de obra e, na precarização de trabalho. Desta forma, as pessoas em situação de
refúgio são obrigadas a trabalharem sem qualquer medida protetiva que os assegurem
legalmente. Este problema, infelizmente, causa a xenofobia (aversão a estrangeiro)
executadas pelas pessoas do local de destino. Isto ocorre, porque os xenófobos
entendem que o fato de a mão de obra estrangeira ser vista como mais barata, contribui
para que os refugiados sejam admitidos no mercado trabalho.
Atualmente os principais conflitos que elevam o número de refugiados estão na
Síria, Afeganistão, Sudão do Sul, Mianmar, Somália, Rep. Dem. Do Congo, Sudão,
Iraque, Eritreia, Rep. Centro Africana e Ucrâniatem saído de suas terras à procura de
uma condição melhor e de refúgio – em suma, países do continente da África, Oriente
Médio, Europa e Ásia. Segundo dados divulgados pelo Cômite Nacional para os
Refugiados (CONARE) na 4º edição do relatório “Refúgio em Números”,em 2018 o
Brasil reconheceu um total de 1.086 refugiados de múltiplas nacionalidades. Desta
forma, o país atinge a marca de 11.231 pessoas reconhecidas como refugiadas pelo
Estado brasileiro. Desse total, os sírios representam cerca 36% da população refugiada
com registro ativo no Brasil, seguidos dos congoleses, com 15%, e angolanos, com 9%.
Neste mesmo ano foi maior em número de solicitações de reconhecimento de
condição de refugiado. Isto ocorreu pelo fato de o deslocamento dos venezuelanos ter
um aumento significativo. No total, foram mais de 80 mil solicitações, sendo 61.681 de
venezuelanos. Além destes os haitianos também solicitaram 7 mil, os cubanos 2.749, os
chineses 1.450 e os bengaleses 947. No que tange os estados com mais solicitações em
2018 são estes: Roraima (50.770), Amazonas (10.500) e São Paulo (9.977).
Em âmbito nacional, o Brasil, apesar de não possuir uma ementa em documentos
oficiais para a educação de refugiados, de forma a pensar e praticar a educação para
esse público, no âmbito do acolhimento e matricula em escolas públicas o país é o
número 1 na América Latina em recepção de crianças refugiadas, acolhidas e inseridas,
sendo elogiado pela ONU por sua iniciativa.

A escolarização de crianças refugiadas: questões e desafios


Segundo o Ministério da Educação, em 2015, somente entre o público sírio,
tiveram a inserção 2 mil crianças em escolas públicas no país
Antes de chegar à sala de aula, as crianças e adolescentes refugiados passam por
todo um percurso incerto e com muitas dificuldades, até se inserirem na sociedade

sumário 974
VII Seminário Vozes da Educação

brasileira. Diferente das crianças brasileiras, que, ainda que em condições difíceis, já
são inseridas na língua falada e na sua própria cultura. Contudo, as crianças refugiadas
chegam ao Rio de Janeiro, em muitos casos, com torturadas (fisicamente e
psicologicamente), assim como seus pais, que não compreendem a dinâmica social em
um novo país, o idioma do local de destino, vivem muitas vezes em moradias precárias
e, até mesmos passam fome.
Em alguns casos, onde a escola não facilita a inserção da criança, faz-se
necessário a intervenção daCáritas, entidade que atua na sociedade, na defesa dos
direitos humanos seu olhar está voltado para os povos carentes e oprimidos e, sua luta é
pela busca de uma sociedade mais justa e igualitária. Sendo assim,aCáritas, que por sua
vezaciona a Defensoria Pública, para que a criança seja inserida na rede municipal de
ensino. Atualmente, segundo aCáritas- RJ, existem, aproximadamente,400
(quatrocentas) crianças refugiadas dentrodas salas de aulano Estado do Rio de Janeiro.
No ano de 2017, o Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de
Refúgio (PARES/ Cáritas-RJ), juntamente com a companhia de energia elétrica, Enel
Distribuição Rio, inauguraram na cidade de São Gonçalo-RJ, no bairro Santa Luzia, um
núcleo de atendimento. O projeto visa em amparas as pessoas em situação de refúgio,
oferecendo-lhes assistências socias, como integrando-os no mercado de trabalho,
realizando passeios culturais e, oferecem auxilio transporte. Vale ressaltar que neste
ano, mapeou-se 38 (trinta e oito) refugiados em São Gonçalo: congoleses (19),
angolanos (14) e venezuelano (05).
Neste município, encontra-se algumas escolas da rede pública, especialmente,
instituições municipais, que acolhem crianças em situação de refúgio. Como no caso da
escola Municipal Castelo Branco, situada no Centro, contém 1 venezuelano e, o CIEP
Brizolão 051 Municipalizado Anita Garibaldi, localizado no bairro de Jardim Catarina,
contendo,haitiano, congolese e angolano.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Figura 1:Visita dos bolsistas, do núcleo de pesquisa e extenção


Vozes da Educação, no CIEP Brizolão 051 Municipalizado
Anita Garibaldi/SG.

Fonte: Acervo Núcleo de Pesquisa e Extensão Vozes da Educação, 2019.

Esta realidade até a sala de aula é refletida nessas crianças, que passam pela
tortura em seu país, a viagem longa e incerta, que pode durar até 20 dias de barco, a
chegada ao Brasil e, em alguns casos, passarem fome e terem de dormir na rua nos
primeiros dias. Tudo isso somado ao fato de a criança não compreender a dinâmica
social no novo país.
A priori conclui-se que os refugiados, imigrantes e migrantes são invisíveis na
legislação brasileira voltada para a educação e quando notados são citados de forma
rápida, através de comentários em sala como “a aula de hoje será sobre a terra de
fulano” em uma aula de história. Suas dificuldades de aprendizagem nos conteúdos,
língua e sociabilização existem somente na escola através do currículo oculto, ou seja,
está presente no dia a dia dos alunos, mas para o currículo escolar e os documentos
oficiais estas dificuldades, e consequentemente esses estudantes, não existem.
Ao tratarmos esses estudantes como brasileiros, estamos negligenciando a sua
cultura e deixando suas dificuldades de aprendizagem, língua e sociabilização se
solucionarem sozinhas. No momento em que os documentos oficiais não oferecem
nenhum tipo de apoio para aprendizagem da língua portuguesa e acompanhamento
psicológico para essa criança e adolescente refugiado. Deixando esses estudantes à
própria sorte, torcendo para que se adaptem ao modelo brasileiro que possui altos
índices de reprovação e evasão de nativos, que tende muito mais a excluir do que incluir
aqueles que não se encaixam.Somente oferecer a vaga em uma escola não transforma

sumário 976
VII Seminário Vozes da Educação

um estudante estrangeiro em brasileiro, o processo de inclusão na escola envolve


compreender as dificuldades de aprendizagem deste estudante e pensar
pedagogicamente em como oferecer a melhor educação, conscientes de que este
estudante possui limitações, mesmo que provisórias, como o caso da dificuldade de
compreender a língua.
Faz-se necessário compreender que não são essas crianças e adolescentes que
têm que se adaptar a nós, como instituição escolar, é a escola que deve buscar formas de
se incluir esses estudantes. Se no Fórum Mundial de Educação de 2015, em Incheon, foi
mencionada no seu tópico 11 a preocupação global para a educação destes estudantes e
preconizou aos países que se inclinassem a criar espaços mais inclusivos para a
educação das crianças refugiadas, devemos problematizar e trabalhar esses documentos
oficiais, para que se atualizem e incluam essa nova demanda mundial, de estudantes que
virão de situações cada dia mais adversas e necessitam de refúgio e proteção em sala de
aula.
O tema desafia a conhecer novas práticas e novos investimentos na formação
continuada, pelas possibilidades de proporcionar reflexões sobre os saberes e os fazeres
docentes, sobre os diversos traumas que os refugiados possuem na sala de aula, com
suas histórias, experiências e que não pode passar despercebido pelo professor.
Pretendemos com essa pesquisa despertar atenção de mais pessoas para o tema
dos refugiados na atualidade e tentar motivá-las a conhecer melhor a questão, a entender
como escola tem ação potencializadora e vai além da sala de aula. Investigar como se dá
o acolhimento desses sujeitos nas instituições sociais, além disso, conhecer as lutas, os
desafios de estar em um novo país, aprender outra língua, cultura e concedendo espaços
para trocas de saberes. O papel do professor é extremamente importante nesse processo,
pois além de trabalhar as diferenças na sala de aula, é necessário fazer uma formação
continuada, ter novas estratégias de ensino e respeitar o espaço do outro.
O desafio maior ao adentrar a sala de aula brasileira é a barreira linguística. Não
compreender o que está no quadro, nas paredes da sala e o que os colegas de classe e
professora falam é o maior desafio. Sem compreender o que se fala em sala, o estudante
refugiado acaba isolado, sem possibilidades de interação, pois nada compreende sobre o
que dizem e nada sabe responder. Nessa perspectiva a língua é meio facilitador
fundamental que facilitará na inclusão destes alunos no nosso sistema educacional.
Segundo Bakhtin (1929, p. 4):

sumário 977
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão
sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o
caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias
esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma
língua.

Dessa forma, a interação para ser concluída depende que a linguagem dos
falantes seja única, logo essas pessoas deverão aprender o idioma do país escolhido para
residir, visto que a língua é considerada pelo autor supracitado uma prática social. Para
tanto, o ensino de Língua de Portuguesa abrange a todos nessa situação, porém o estudo
apontará as questões apresentadas pelos professores das instituições que oferecem o
ensino aos refugiados. Entretanto, quando o ensino de uma língua não ocorre de forma
aplausível, o silêncio torna-os invisíveis no processo de aprendizagem dentro da sala.
Uma vez que a escola é a extensão da sociedade, tal atuaçãosurge um efeito
negativamente no ambiente não-escolar.
Sem um mediador que ensine a língua e acompanhe seu trabalho em sala de
aula, o estudante refugiado é excluído do processo educativo. Como um refugiado com
necessidades linguísticas especiais, mas sendo tratado como um estudante brasileiro, o
educando existe na sala de forma figurativa, não de forma plena. A tudo assiste, nada
compreende.
Não houve relatos, nas entrevistas e análises documentais e bibliográficas de
salas de aula para a aprendizagem da língua portuguesa para esses estudantes, sejam nas
salas de aula especiais ou ensino de português no contra turno para os estudantes
refugiados. O desafio de compreender uma língua com uma variação verbal tão extensa
quanto o português aparentemente não é um desafio assumido nas escolas de São
Gonçalo
A escola assume o papel de compartilhar o conteúdo com o estudante refugiado.
Espera-se, por parte da escola, que ele se dedique e, se não estiver mais em fase de ir
para a classe de alfabetização, alfabetize-se sozinho. Sem acompanhamento para esses
estudantes, a escola delega aos estudantes refugiados o seu sucesso ou fracasso escolar.
A escola como espaço de exclusão estende-se para além dos estudantes brasileiros que
não se adaptam, ofertando notas baixas e reprovações também aos estudantes não falam
a língua portuguesa.
É importante que haja um aprofundamento nas salas de aula, em futuras
pesquisas, para compreender as motivações da exclusão por parte da turma e quais
alternativas aos professores vêm trabalhando (ou não) para combater.

sumário 978
VII Seminário Vozes da Educação

A reflexão que fazemos partindo da importância de uma sala de aula que busca a
inclusão é que faz-se necessário olhar para esse estudante refugiado adepto de um outro
idioma e que necessita aprender o novo idioma, além de se incluir socialmente em uma
nova cultura.

(...) a sociedade tem atribuído à escola o empoderamento para agir como um


dos mais importantes instrumentos de socialização. Exerce controle social
sobre os alunos, fortalecendo valores vigentes e ao mesmo tempo rechaçando
outros que não se coadunam com o código social aceito pela maioria. Isso
coloca o aluno estrangeiro oriundo de uma etnia minoritária, portanto, falante
de outra língua e membro de outra cultura, em posição de conflito. Os países
de modo geral tem assumido tradicionalmente a mesma linha de política
linguística com relação a grupos falantes de outras línguas, que não a da
comunidade, que é a erradicação da língua/cultura minoritária e a assimilação
por parte dos alunos de minorias da língua/cultura majoritária. Há ênfase na
assimilação lingüística onde a língua que deve ser veículo da educação é a
língua da maioria, de modo que os alunos devem esforçar-se para assimilar a
língua/cultura da comunidade (ANDRADE, 2017,p.10).

Este trabalho de inclusão não se faz de modo aleatório, somente com o professor
em sala. É preciso que toda a equipe pedagógica trabalhe junta para que esse estudante
refugiado se inclua da forma mais agradável e educativa possível, proporcionando uma
boa experiência, que lhe será refletida em seu rendimento escolar. O desafio escolar é
proporcionar um espaço inclusivo para que esse estudante não se sinta reprimido por
não conhecer o idioma, e que essa inclusão proporcione um aprendizado mais fluído e
sem discriminações.

O desafio para a escola, neste caso, consiste em atender as necessidades


educacionais que se lhe apresenta a chegada dos alunos estrangeiros sem o
conhecimento da língua portuguesa. Estes alunos encontram dificuldades
iniciais para se comunicar em sala de aula com seus professores e com os
demais colegas. Além disso, sentem-se encabulados por não entenderem o
que se fala e tem medo de se expressar em português. Em conseqüência,
sentem-se desmotivados, não se adaptam às regras da disciplina escolar e
acabam por ser discriminados. (ANDRADE, 2017, p.9).

Quando pensamos e praticamos educação na sala de aula, precisa-se ter a


sensibilidade de pensar uma educação para todos. Neste sentido a escola precisa ser
uma antagonista das práticas sociais excludentes, caminhando para práticas inclusivas
em um espaço que pode ser educativo em um sentido amplo, não somente educativo na
aprendizagem dos conteúdos, mas educativo na convivência e aprendizagem com a uma
nova cultura, que apresenta-se a nós através destes estudantes refugiados.

sumário 979
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Neste sentido, para o professor pensar, por exemplo, uma avaliação para o
estudante refugiado, que possui a barreira linguística, faz-se necessário uma
compreensão de sua realidade e suas dificuldades, caso contrário, a avaliação para esse
sujeito será uma ferramenta de exclusão.

A avaliação na perspectiva da inclusão deve considerar o contexto de


aprendizagem e participação do aluno, buscando ver, no processo, seus
avanços e também suas dificuldades. A intenção deve ser identificar barreiras
que estejam impedindo a aprendizagem e a participação do aluno, de modo a
superá-las. (SANTOS, 2013, p.23)

Acreditamos que a interação dialética entre o espaço vivido do aluno e as suas


experiências individuais e coletivas é, não somente desejável, mas de fato possível, no
cotidiano da escola formal e trará ,com certeza, benefícios à nossa prática de ensino,
motivando o aluno a aprender e levando-o à descoberta progressiva do seu espaço na
escola – o estudante como produtor de conhecimento.
Antes de tudo, é preciso recuperar a ideia defendida por Paulo Freire em relação
àhumanização no processo de (re)produção do conhecimento, pois como seres
inacabados,frutos da experiência imediata da vida, são capazes de reconhecer e
transformar a sociedadeem que vivem.
Para somar forças à luta pela transformação, Thompson (2002) traz a ideia
deconsciência de classe, que se dá por meio da participação, da luta social concreta, das
forçasque possam articular-se às conquistas do pretérito e as resistências e lutas do
presente.
Neste sentido, as experiências sociais de estudantes deveriam informar o direito
à educação. Osestudantes refugiados a partir dos contextos de sociabilidade ecotidiano
(re)inventam sua relação com a escola.

Conclusões finais (provisórias)


Refletir, pesquisar e por em prática propostas pedagógicas com o intuito de
incluir estudantes refugiados é pensar em educação em âmbito global. A pesquisa que
produzimos aqui no Brasil pode ser útil para outro país e vice-versa. Se o Brasil tinha
em 2014 o slogan de educação para todos, não podemos deixar de incluir aqueles que
perderam o direito de permanecer em sua terra, seja por causas climáticas, religiosas ou
conflitos civis.

sumário 980
VII Seminário Vozes da Educação

Mostrou-se necessário ao longo desta pesquisa a existência de um mediador


escolar para esse estudante refugiado, além de leis que amparem o estudante refugiado
na escola. Compreender se um mediador escolar seria possível no município estudado,
além de compreender formas de incluir esse estudante enquanto um mediador não é
possível são questões a serem refletidas e propostas no desenvolvimento desta pesquisa.
Como desenvolvimento em futuras pesquisas, pretendemos compreender como
estão sendo desenvolvidas políticas e práticas inclusivas em outros países que falem a
língua portuguesa, para nos ajudar a pensar em políticas e práticas inclusivas no Brasil.
Percebemos, além da ausência de pesquisa, a falta de espaços que possam prover
discussão acerca do assunto em questão e, em que pudéssemos colher material
bibliográfico para pesquisa/ sobre educação para refugiados. A dificuldade em produzir
esse material acadêmico, faz-se necessário mobilizar professores da rede básica, da
academia e demais profissionais no âmbito educativo para formar, além de frentes de
troca de experiências, frentes de produção bibliográfica.
Mediante o que foi exposto é de suma importância a continuidade da pesquisa, a
qual é essencial para compreender as dificuldades e construir políticas públicas em
diferentes escalas administrativas dos poderes públicos Em busca de gerar uma
instituição escolar eum ambiente mais acolhedor, desde o primeiro momento que os pais
chegam com suas crianças, em busca de vaga.A escola, como um dos principais
equipamentos do direito à educação,deve-se debruçar sobre as novas temáticas, por um
viés de acolhimento e, sobretudo, de assumir o direito à educação como um direito da
dignidade da vida.. Fica clara, com base nos estudos apresentados, que é fundamental a
atuação da escola como instituição potente em defesa do direito a educação como um
dos direitos fundamentais da dignidade humana.

Referências
ACNUR. Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Disponível em:
<http://www.acnur.org/refugiados/representam-atualmente-a-maioria/>. Acesso em: 19 fev 2018

ACNUR. Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Disponível em:
<http://www.acnur.org/portugues/noticias/relatorio-do-acnurretrata-crise-na-educacao-para-
refugiados/>. Acesso em: 20 mar 2019.

ACNNUR. Dados sobre refúgio no Brasil.


Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/dados-sobre-refugio-no-
brasil/>. Acesso em:02abr2019.

sumário 981
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ANDRADE, Julietti.Adaptação à universidade de estudantes internacionais: um


estudo com alunos de um programa de convênio. SP. 2017

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1929

BRASIL. Lei nº 11.741, de 16 de julho de 208 Altera dispositivos da Lei no 9.394, de


20 de dezembro de 1996.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11741.htm>.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São


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<https://nacoesunidas.org/secao/acao-humanitaria/>. Acesso em: 21 jan. 2018.

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SERRICELLA, Giuliana Silva. Globalização e Refúgio- os refugiados na cidade do


Rio De Janeiro. Tese de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica Do Rio De
Janeiro, 2016.

sumário 982
VII Seminário Vozes da Educação

PROGRAMA EDUCACIONAL NO COTIDIANO ESCOLAR: UMA PESQUISA


EXPLORATÓRIA

Tania de Assis Souza Granja


UERJ FFP
tasgranja@gmail.com

Sonia Maria Cerqueira de Brito


UNIGRANRIO
soniavioleta@oi.com.br

Introdução
Este texto é desdobramento da pesquisa em curso intitulada “Educação e
Currículo: práticas, políticas e programas no cotidiano da escola”, cujo objetivo é
compreender a natureza do processo de construção do currículo escolar a partir dos
impactos das políticas, programas e projetos educacionais que chegam às escolas
públicas de modo a contribuir, também, para a compreensão de como estes se
concretizam na prática, fornecendo elementos, tanto sobre a escola, quanto sobre os
programas educacionais e as práticas que perpassam a estrutura educacional da escola
contemporânea.
Neste trabalho focalizamos o Plano de Desenvolvimento da Escola – PDE
Escola, que, alinhado com o MEC, na direção da melhoria da qualidade do ensino e da
gestão, é um programa dirigido às escolas que apresentam baixo desempenho, também
chamadas de prioritárias, ou seja, para as escolas que apresentam baixo IDEB. O PDE
Escola tem como função “elevar a qualidade da escola e torná-la mais eficiente”
(RODRIGUES;SOLANO, 2016, p.10-11), segundo a ótica gerencialista que está no
cerne da proposta deste programa.
Desse modo, a pesquisa exploratória realizada vem proporcionar maior
familiaridade com o Plano de Desenvolvimento da Escola – PDE Escola, de forma a
explicitá-lo e a identificar sua natureza, características e alinhamento com o cotidiano
escolar.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O programa educacional e a escola


O Plano de Desenvolvimento da Escola - PDE Escola é um programa do MEC,
criado em 1998, no âmbito do Fundescola, fruto de um acordo de empréstimo entre o
governo brasileiro e o Banco Mundial, implementado e desenvolvido em forma de
parceria com as secretarias municipais e estaduais de educação dos estados envolvidos
(FONSECA;OLIVEIRA;TOSCHI, 2005). Na análise de Fonseca (2009, p.191), “O
Fundescola pode ser considerado como a ação internacional mais significativa, pelo fato
de ter sido planejada para o período de dez nos (1998-2010) e de incluir uma vasta parte
do território nacional”. É oportuno destacar que esta proposta vem no bojo da
reestruturação do Estado brasileiro, dentro das reformas do estado preconizadas pelo
ideário neoliberal.
A literatura (FONSECA, 2003, 2009; FONSECA;OLIVEIRA;TOSCHI, 2005;
OLIVEIRA, 2007; RODRIGUES;SOLANO, 2016) aponta que o Plano de
Desenvolvimento da Escola - PDE Escola vincula-se ao Plano de Desenvolvimento da
Educação (PDE), este que é composto de várias ações, visando a melhoria da qualidade
da educação, no que tange à metodologia de gestão estratégica proposta pelo MEC,
tendo no PDE Escola uma das ações. Este programa traz uma proposta de planejamento
estratégico (FONSECA, 2003, 2009), visando ajudar as escolas na identificação de seus
desafios e problemas, viabilizando através de um elenco de ações a superação destes,
melhorando seus resultados e, como meta, melhorar a gestão das escolas.
Nessa perspectiva, vários autores (FONSECA;OLIVEIRA, 2003;
FONSECA;OLIVEIRA;TOSCHI, 2005; TERTO;FRANÇA, 2007; TRINDADE, 2011;
TAQUES, 2011; BAYER, 2012; SCHIMONEK, 2012; OLIVEIRA, 2014;
CORDEIRO, 2015) ressaltam que o Plano de Desenvolvimento da Escola - PDE Escola
revela, de um lado, a lógica marcadamente gerencialista e, de outro, aponta, também,
que ele tem dado continuidade ao desenvolvimento das reformas do Estado iniciadas na
década de 1990, aprofundando os mecanismos gerenciais aí instituídos, principalmente
os relacionados à descentralização, à responsabilização e à regulação, com a ampliação
do raio de ação do programa para todas as escolas públicas com baixos índices de
desenvolvimento da educação-IDEB.
No processo de formulação e implementação do PDE Escola, este, desde sua
criação, já passou por vários ajustes, tanto conceituais como técnicos na metodologia,
resultando em novos arranjos. Na nova configuração, desde 2007, com o lançamento do

sumário 984
VII Seminário Vozes da Educação

Plano de Metas Todos pela Educação do Governo Federal, de acordo com Cordeiro
(2015, p.31), “[...], o PDE Escola passou a fazer parte de uma das metas a serem
implementadas por unidades escolares de todo o país que apresentassem baixo IDEB
como forma de dar condições para que melhorassem a qualidade do seu ensino [...] com
vistas à elevação do índice”. Assim sendo, o programa atende a todas as escolas com
baixo rendimento e os estados e municípios, que aderiram à proposta, assinam um
Termo de Adesão ao Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) Nacional,
vinculado ao “Compromisso Todos pela Educação” (CORDEIRO, 2015).
O programa PDE Escola, na sua constituição, pretende ser um apoio à gestão
escolar e de melhoria da qualidade da educação, utilizando-se do planejamento
estratégico para a realização de um diagnóstico, construído coletivamente, refletindo a
realidade escolar e, consequentemente, um plano com metas e um planejamento. A
partir desta ação, o MEC repassa recursos financeiros, que tem como base o número de
alunos matriculados na unidade escolar e o censo do ano anterior (CORDEIRO, 2015),
visando apoiar as ações da escola para a execução no todo ou em parte do seu
planejamento.
Nessa perspectiva, os recursos são repassados por dois anos consecutivos
visando auxiliar a escola na implementação das ações definidas por ela no seu plano,
que é, previamente, validado pelo MEC. Cabe destacar que, segundo Fonseca (2009,
p.192), “as propostas dirigidas ao planejamento escolar orientam-se pelas diretrizes
estabelecidas em documentos produzidos pelo BM [...]”, cuja ênfase está na liderança
do diretor, a partir de treinamento intensivo em planejamento estratégico, tornando-se,
assim, a mola mestra impulsionadora do programa na escola. Nas palavras de Fonseca
(2003, p.305), “[...] A liderança constitui o elemento básico para que a escola possa
construir seu projeto e que possa administrar suas carências financeiras com iniciativas
próprias ou com o suporte da comunidade em que se localiza a escola”, atribuindo, por
conseguinte, ao gestor, o papel de protagonista do programa PDE Escola e pontuando,
também, a natureza da propalada descentralização na lógica neoliberal.
Em 2011, o MEC criou uma ferramenta denominada PDE Interativo,
aperfeiçoando a metodologia e a funcionalidade do programa neste novo sistema. Neste
sentido, segundo Oliveira (2014), a introdução do PDE Escola no PDE/Plano de Metas
vem atender aos interesses do MEC de desenvolver um sistema mais amplo de apoio e
monitoramento das escolas com os piores indicadores educacionais. De todo modo, de
acordo com Oliveira (2014, p.52) “[...], a entrada do PDE Escola no conjunto de

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programas que compõe o PDE/Plano de Metas evidencia uma tentativa do governo


federal de responsabilizar as escolas, fazendo-as responder pela demanda de melhoria
dos serviços prestados [...]”, demonstrando uma preocupação com resultados e
cumprimento de metas.
Outro aspecto a ser destacado desse programa é, segundo a literatura (RIBEIRO;
RIBEIRO;GUSMÃO, 2005; ANDRADE, 2009), seu caráter de responsabilização, face
ao contexto de políticas educacionais do governo federal de feição neoliberal. Assim
sendo, na perspectiva de responsabilização da escola, as secretarias, os técnicos
envolvidos vivenciam este aspecto através de mecanismos explícitos como pressão
externa, cobranças, especialmente no que tange á implementação do programa, os
resultados, às verbas e prestação de contas (OLIVEIRA, 2014).

A pesquisa de campo em diferentes contextos


Trata-se de uma pesquisa exploratória, descritiva de abordagem qualitativa,
desenvolvida nas escolas das redes municipais de S. Gonçalo e do município de Duque
de Caxias, ambos no Rio de Janeiro. O objetivo deste estudo é o de conhecer como se
articulam e se desenvolvem as políticas e os programas educacionais no cotidiano da
escola, visando compreender os impactos destes sobre a gestão, a construção do
currículo e sobre as práticas escolares, de modo a contribuir para a compreensão de
como se concretizam, na prática, as políticas e programas que chegam às escolas
públicas. Assim, nesta fase, definimos como objetivos específicos deste estudo: a)
identificar os impactos das políticas e programas sobre o trabalho dos gestores e o
trabalho dos professores;b) compreender como se desenvolvem e se articulam nestes
contextos os programas, com ênfase no PDE Escola e as estratégias utilizadas para a sua
implementação, execução, operacionalização e efetivação na instituição de ensino. A
questão norteadora deste estudo é: Como se concretizam, na prática, as políticas e os
programas no interior das escolas públicas?
A pesquisa exploratória tem nos permitido conhecer um pouco sobre os
programas educacionais ora vigentes nas redes municipais e, sobretudo, o Plano de
Desenvolvimento da Escola - PDE Escola, que é o foco deste estudo, uma vez que
tínhamos poucas informações sobre o programa nas respectivas redes de ensino. Afora
isso, viabilizou, também, obter um conhecimento mais amplo e mais próximo da
realidade estudada.

sumário 986
VII Seminário Vozes da Educação

Nesta etapa, reunimos um total de 60 participantes/entrevistados, que estivessem


na gestão das unidades escolares há pelo menos 1 ano. Foram pesquisadas 25 escolas
em São Gonçalo e 35 escolas em Duque de Caxias. Vejamos:

Distribuição das escolas pesquisadas no município de São Gonçalo e Duque de


Caxias

Fonte: Adaptação - elaboração própria

A título de uma breve explicação sobre o mapa acima, é oportuno mencionar


que, no município de São Gonçalo, as escolas pesquisadas ficaram concentradas no
1º.Distrito e estão representadas pela logo da Uerj. Já no município de Duque de Caxias,
as escolas pesquisadas ficaram distribuídas no 1º., 2º., 3º. e 4º. Distritos e estão
representadas pela logo da Unigranrio.
Esta etapa da pesquisa compreendeu a coleta de informações diretas nas escolas
por meio de entrevistas e observação, uma vez que buscávamos obter maiores
informações sobre o programa. Para coleta de dados, a escolha foi aleatória de escolas
da rede municipal com o Ensino Fundamental em ambas as redes. Os alunos-
pesquisadores definiam as escolas a serem investigadas em razão da proximidade de sua

sumário 987
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

residência ou trabalho a fim de otimizar o tempo para dedicar-se mais tempo à pesquisa
de campo. Os sujeitos foram, inicialmente, os gestores das escolas públicas e, num
segundo momento serão realizadas entrevistas com integrantes da equipe pedagógica e
da prestação de contas das Secretarias de Educação, em ambos os municípios.
O procedimento adotado foi a entrevista semiestruturada, com base em um
roteiro guia para as perguntas que contemplavam os objetivos exploratórios da pesquisa.
As entrevistas foram previamente agendadas, tendo em vista o movimento e as
dinâmicas das escolas e a disponibilidade dos gestores.
A pesquisa de campo, no período de 2 anos, tem sido executada por alunos da
disciplina de Gestão I e da disciplina de Gestão Educacional da Faculdade de Formação
de Professores/UERJ e a Universidade do Grande Rio - Unigranrio, respectivamente, a
partir de um roteiro guia com pontos chave sobre a temática. Esta experiência visava o
enriquecimento do espaço formativo que é a sala de aula; objetivava a que os alunos
conhecessem o trabalho que é realizado pela Gestão Escolar, de modo a compreender
suas atribuições, suas responsabilidades e sua atuação no cotidiano da Instituição de
Ensino, bem como tinha como objetivo, também, a coleta de dados e a aproximação do
aluno com a prática da pesquisa e o conhecimento, tanto da realidade da gestão como no
tocante aos programas que as instituições de ensino recebem, na atualidade, no
cotidiano da escola como estratégia da descentralização financeira implementada sob a
égide da concepção economicista de viés neoliberal das políticas governamentais para a
educação. Para execução da tarefa, os alunos fizeram algumas leituras sobre o tema
gestão escolar no contexto neoliberal e o gerencialismo; sobre o programa PDE Escola e
fizeram, ainda, dois laboratórios de entrevistas, visando um breve treinamento,
antecedendo a entrada em campo.

Um breve relato sobre os resultados da pesquisa: a materialização do programa


Cabe destacar que, de acordo com pesquisas realizadas por Fonseca, (2004,
2009a), Oliveira (2007) e Rodrigues;Solano (2016), o que tem sido constatado é uma
grande racionalidade técnica e financeira, com foco na maximização de resultados
quantitativos e eficiência operacional, desconsiderando a educação enquanto ato
político, enquanto possibilidade para desenvolvimento do homem. Assim sendo, a
investigação da dinâmica que o Programa assume nas escolas na atualidade, bem como
sua materialização torna-se fundamental para a compreensão dos seus impactos sobre o

sumário 988
VII Seminário Vozes da Educação

currículo escolar, as práticas e nas múltiplas dimensões que este imprime ao cotidiano
das escolas públicas de ensino fundamental, foco deste estudo.
Nos municípios investigados, verificamos que a adesão das escolas das redes
estudadas não foi compulsória, ficando de fora do programa várias escolas com baixo
rendimento. Nesta perspectiva, os dados coletados revelam algumas lacunas na
materialização do programa nas redes pesquisadas: há falta de informações sobre o
programa por parte dos gestores das escolas e, em alguns casos, total desconhecimento;
alguns gestores não participaram, tanto pela preocupação com a complexidade da
prestação de contas que continha um cem número de formulários a serem preenchidos,
quanto pela preocupação com o volume de recursos públicos que seriam recebidos pela
escola; a ausência de orientação e acompanhamento sistemático do programa
desencorajou a adesão de alguns gestores; houve relatos com relação à interrupção do
recebimento da verba para a execução do plano de ação das escolas; relatos de que
planos de ação foram executados parcialmente contribuindo para que não houvesse
mudanças qualitativas no âmbito pedagógico nas escolas de baixo desempenho que
aderiram ao programa. Foram feitas críticas ao programa e às Secretarias de Educação
no tocante à ausência de formação continuada dos gestores.
Tomando de empréstimo a reflexão de Minayo (2004, p.90) sobre a
inatingibilidade do objeto em que ela explica que “as ideias que fazemos sobre os fatos
são sempre mais imprecisas, mais parciais, mais imperfeitas” que o próprio objeto,
levando o pesquisador, no processo de pesquisa, a um movimento de “definição e
redefinição do objeto”, de escolhas e tomada de decisão. Nesse sentido, os dados
coletados nesta primeira fase do estudo indicaram a necessidade de uma investigação,
junto à Secretaria de Educação dos municípios pesquisados, para conhecer como está a
gestão, o acompanhamento e o controle do Programa nas escolas e mapear os resultados
aferidos nas instituições de ensino.
Foi observado nesse caminho percorrido que a gestão da escola, no geral, está
envolvida em funções burocráticas e administrativas, em detrimento das atribuições
pedagógicas, colocando, portanto, a dimensão pedagógica do trabalho escolar num
segundo plano. Encontramos, também, uma gestão enfrentando vários desafios, entre
eles, problemas oriundos da ausência de recursos que comprometem, sobremaneira, a
qualidade do trabalho escolar e, por conseguinte, a tão propalada qualidade da
educação.

sumário 989
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 991
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

PELO BRASIL SÃO: EDUCAÇÃO SANITÁRIA PROMOVENDO A HIGIENE E


A PROFILAXIA DA POPULAÇÃO RURAL (1919)

Luiza Pinheiro da Silva


UERJ/ ProPEd
luizapisil27@gmail.com

Victoria Guilherme
UERJ PPGEdu/ Bolsista CAPES
victoriaguilherme.s@gmail.com

Introdução

No meio da natureza brasilica, tão rica de formas e cores, onde os ipês


floridos derramam feitiços no ambiente e a infolhescência dos cedros, às
primeiras chuvas de setembro, abre a dança dos tangarás; onde há abelhas de
sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em
escachoo permanente, o caboclo é o sombrio urupê de pau pobre, a modorrar
silencioso no recesso das grotas. Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.
Só ele, no meio de tanta vida, não vive... (LOBATO, 2019, p. 159).

O caboclo, Jeca Tatu, personagem de Monteiro Lobato, retratava o homem do


campo na sua versão mais miserável, bronca e primitiva. O Jeca não tinha educação,
não tinha saúde, era preguiçoso e por esses adjetivos ia na contramão do progresso. Era
preciso transformar esse Jeca triste, cabisbaixo, desvalido em um Jeca feliz e saudável,
através da educação e da higiene. Nesse sentido, médicos higienistas se empenharam
realizando campanhas, debates e ações em prol da educação sanitária da população
rural. Era necessário mudar os hábitos, introduzir uma concepção higiênica e profilática
com o intuito de prevenir e acabar com as "mazelas" que assolavam a população
naquele momento.
Nas cidades urbanas e na capital do país, as reformas sanitárias vinham
acontecendo de forma ostensiva e segundo Camara (2010, p. 94):

Esse movimento, como afirma Abreu, constituiu-se parte integrante do


processo de depuração, não somente das áreas nobres da cidade, mas também
dos usos e da própria população indesejada a esse projeto de cidade. Nessa
topografia urbanística da cidade, a população pobre foi sendo impelida para
os subúrbios e outros municípios do Estado [...]

sumário 992
VII Seminário Vozes da Educação

Dessa forma, a população mais pobre acabava excluída dos projetos das grandes
cidades e sendo forçada a irem para os subúrbios, onde as condições de vida eram
precárias, sem saneamento básico, sem escolas suficientes e com uma taxa de
mortalidade por verminoses, tuberculose e alcoolismo, entre outros fatores, muito alta.

Figura 1. Gráfico de comparação da mortalidade por


tuberculose no Rio de Janeiro e em Nova York.

Fonte: Directoria de Saneamento e Prophylaxia Rural do


Districto Federal. Fiocruz / Casa de Oswaldo Cruz. s.d.

O gráfico elaborado pela Directoria de Saneamento e Prophylaxia Rural do


Districto Federal (DSPR), que integrava o Departamento Nacional de Saúde Pública
(DNSP) criado em 1919, executou um levantamento de dados de morte por tuberculose,
fazendo um comparativo com Nova York, cidade norte-americana, que assim como a
Europa, servia como modelo para o Brasil nos aspectos relacionados ao progresso pela
ciência no combate às doenças. Nessa direção, torna-se possível perceber as redes que
se estabeleciam entre os “homens de ciência” e como os debates transitavam,
perpassando por palestras, exposições e congressos, fortalecendo assim a medicina.
A partir dos dados entre os anos de 1890 e 1920, um período de três décadas,
verificou-se a diferença exacerbada entre as duas cidades, onde Nova York foi

sumário 993
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

representada pela cor mais escura no gráfico. Sendo assim, a situação do Rio de Janeiro
tinha caráter de urgência na resolução das mortes e epidemias que se espalhavam entre
os sujeitos, principalmente entre a população rural.
No bojo dessas ações voltadas à higienização e sanitarismo da população, entre
as décadas de 1920 e 1960, a ideia de pensar a nacionalidade e do ser brasileiro, foi uma
questão que fez parte dos debates da intelectualidade. Desde Os Sertões (1901), de
Euclides da Cunha, Freitas (2001) constatou que o escritor demonstrava insatisfação
diante da falta de uma unidade racial e dos vários “brasis regionais” dentro de um
mesmo território, enfatizando principalmente as carências do interior (saúde e
educação). A cisão entre rural e urbano, salientava as diferenças, enquanto os centros
urbanos cresciam na busca do progresso, os sertões permaneciam estáticos, em uma
outra etapa histórica. O paradigma euclidiano passou a influenciar os intelectuais da
educação, como:

Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Vicente Licínio Cardoso, Lourenço


Filho, Paschoal Lemme, e a vários outros que, no âmbito universitário,
tornaram-se anos mais tarde, interlocutores desse grupo, tais como Florestan
Fernandes, Antonio Candido, Luiz Pereira etc. Nas formas das quais, tais
figuras públicas receberam imagens do Brasil dual e nas formas, pelas quais,
tais imagens foram reelaboradas, nos escritos de cada qual, pode-se observar
uma rica experiência intelectual, das mais expressivas do século (FREITAS,
2001, p. 15).

Entende-se a partir do paradigma euclidiano, que era preciso conhecer,


desvendar o Brasil, o interior. A polarização entre rural e urbano, civilização e
progresso, foi a maneira pela qual essa intelectualidade concebeu a nação, porém
pensando numa ideia de unidade, na busca de uma identidade. Quem eram os
brasileiros? Através das discussões em torno desse questionamento, vão encontrar na
Educação a solução para a civilização.
Com o pensamento voltado à nacionalidade, justificativas para o atraso
brasileiro foram concebidas e a noção de progresso ganhou força nos debates sobre
medidas de higienização e sanitarismo.
Interessa neste trabalho refletir acerca das ações sanitárias e higiênicas
implementadas na região rural do Rio de Janeiro, entendendo essas medidas como base
para uma educação sanitária que tinha como princípios o higienismo e o eugenismo.
Pensaremos essas ações utilizando como exemplo o Posto Sanitário do Distrito de
Merity. Fundado em 19 de agosto de 1919, tinha por objetivo prestar atendimento de

sumário 994
VII Seminário Vozes da Educação

higiene, profilaxia e socorros médicos a população pobre da região. Nesse sentido o


nosso recorte se dá entre os primeiros meses de funcionamento do referido Posto
Sanitário.
Para o desenvolvimento do trabalho analisamos o Relatório dos Trabalhos
Executados pelo Posto de Merity escrito pelo Dr. Renato Kehl, chefe do Posto
Sanitário, enviado ao Dr. Belisário Penna, chefe do Serviço de Profilaxia Rural em 1919
e periódicos da época, à exemplo do Correio da Manhã e O Paiz.

Higienismo e sanitarismo na capital federal

A cidade era foco endêmico de uma infinidade de moléstias: febre amarela,


febre tifóide, impaludismo, varíola, peste bubônica, tuberculose, entre outras.
Destas, a febre amarela e a varíola eram as que ceifavam o maior número de
vidas. A febre amarela, em particular, manifestava toda a sua violência para
com estrangeiros e migrantes de outros estados. Sua fama era internacional, e
tornava o Rio de Janeiro conhecido no exterior como “o túmulo dos
estrangeiros”. Por isso, as tripulações e passageiros nem se atreviam a descer
dos navios quando estes chegavam ao porto: permaneciam a uma distância
prudente, para evitar qualquer contágio (SEVCENKO, 2003, p.32).

No início do século XX, a reforma do Prefeito Pereira Passos (1903-1906) veio


com a intenção de dar uma roupagem nova para a cidade do Rio de Janeiro, a fim de
adequar a cidade com a nova realidade econômica e política " baseado na ascensão da
burguesia e a inserção da capital do Brasil na economia internacional através das
exportações" (ANDRADE, 2018, p. 93). Nesse sentido, a região portuária era a que
despertava maiores interesses na realização da reforma, era preciso que o porto fosse
um local atrativo, moderno e saneado para promover o interesse de transações
econômicas internacionais. Segundo Andrade (2018, p. 93) a reforma do Porto
pleiteava: "ao invés de cortiços, lojas finas, confeitarias e livrarias. Não o 'torvelinho
humano que pululava inquieto', e sim ordem, elegância e riqueza [Grifos da autora]".
Portanto, as populações que habitavam os cortiços próximos a essa região não faziam
parte desse projeto de modernidade e elegância.
Além da modernização e da reforma urbana, a reforma higiênica e sanitária era
também urgente. O fato do Rio de Janeiro ser um grande "foco" de epidemias não era
nem um pouco interessante para o capital estrangeiro ou atrativo para imigrantes.

sumário 995
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

De que adiantaria reformar o porto e replanejar a cidade, se ninguém


quisesse atracar no primeiro nem adentrar na segunda? Para que se pudesse
consagrar efetivamente a campanha de atração de capitais, imigrantes,
técnicos e equipamentos estrangeiros, seria igualmente indispensável
proceder ao saneamento da cidade (SEVCENKO, 2003, p.33).

Assim, também no bojo das ações reformadoras, o médico Oswaldo Cruz, como
Diretor Geral de Saúde Pública, a partir de 1903 (CAMARA, 2010) realizou uma
política sanitária de intervenção na cidade para tratar os problemas de saúde da
população e do meio. A questão higienista e sanitarista foi colocada em primeiro plano
para solucionar os problemas da cidade. Segundo Sevcenko (2003, p. 36) o médico
tinha "Plenos poderes amparados pelo domínio federal", poderes que fizeram emergir
ações que ficaram conhecidas popularmente como "ditadura sanitária".

A lei de regulamentação da vacina obrigatória, em novembro desse mesmo


ano, viria a ampliar e fortalecer essas prerrogativas, colocando toda a cidade
à mercê dos funcionários e policiais a serviço da Saúde Pública. Se alguém
escapara dos furores demolitórios de Lauro Müller e do prefeito Pereira
Passos, não teria mais como escapulir aos poderes inquisitoriais de Oswaldo
Cruz. A ameaça deu lugar ao gesto concreto e sensível da opressão. O
pesadelo tornou-se realidade. Nada mais natural, portanto, que a população
inerme reagisse, transformando a realidade em pesadelo. (SEVCENKO,
2003, p.38).

Toda essa opressão e invasão de casas e corpos repercutiram na "Revolta da


vacina" em 1904. Inconformados com as imposições do médico higienista Oswaldo
Cruz e com as demolições realizadas à revelia na reforma Pereira Passos, a revolta da
vacina teve como estopim a lei de vacina obrigatória.
Nessa direção, em nome da ordem e do progresso, o prefeito entre outros
intelectuais, realizaram medidas de embelezamento e higienização da cidade, na
tentativa de uma aproximação das civilizações europeias, pátrias consideradas
adiantadas, como a França, modelo de elegância e classe, tanto nas características
infraestruturais, como no comportamento, vestimentas e costumes. Para atingir esses
objetivos o primeiro passo era resolver o problema da insalubridade, questão que para
os intelectuais higienistas e uma parte da população mais abastada, estava estritamente
relacionada aos cortiços e ao modo de vida da população pobre e negra. Como afirma
Silva (2018):

A insalubridade carioca estava relacionada ao precário calçamento, a falta de


distribuição de água e coleta de esgoto, estando os cortiços constantemente
em discursos de sanitaristas como foco do problema. De certa forma, a classe

sumário 996
VII Seminário Vozes da Educação

dominante e também os higienistas, atribuíam a estas habitações a culpa, se


assim podemos dizer, da insalubridade urbana, tomando a população pobre,
em classe mais específica, os negros, como proliferadores de tais doenças (p.
50-51).

Desse modo, a população negra e pobre foi colocada como um problema que
precisava ser discutido. "Afinal, (para alguns intelectuais da época) as doenças teriam
vindo da África, assim como o nosso enfraquecimento biológico seriam resultado da
mistura racial [Grifos nossos]" (SCHWARCZ, 2001, p. 31). Nesse ínterim, as teses
eugenistas sobre o "branqueamento" da raça ganhavam força também, como afirma
Stepan (2005, p. 167):

O mito do branqueamento repousava claramente em uma idealização da


branquidade; ele representava a racionalização de um desejo de uma elite que
controlava uma sociedade multirracial dominada pelo racismo - uma ânsia
por um sentimento real de brasilidade em um país dividido por raça e classe.
Era a reafirmação de que a 'arianização' (para adotar uma palavra usada no
Brasil por Ferreira Vianna) poderia ser uma realidade no Brasil, e que o
histórico racial do país não seria impedimento a um sólido futuro. (Grifos da
autora)

O casamento eugênico foi uma das soluções pensadas para resolver o


"problema" da mestiçagem. Segundo Fonseca (1929, p. 299) "Para atender ao ponto de
vista eugenico, melhor será que o casamento se faça tendo em vista não só a perfeita
saúde como o completo desenvolvimento fízico dos noivos, especialmente no que toca
ao aparelho de reprodução [sic]". Nesse sentido, o casamento "ideal" e eugênico seria
uma forma de ir eliminando as raças vistas como mais "fracas".
Várias ações e campanhas foram empreendidas em prol das ideias eugênicas,
entre elas os concursos de robustez e de beleza eram muito divulgados. Segundo Freitas
(2001), de José Bonifácio a Joaquim Nabuco, um impeditivo a civilização do Brasil foi
o regime escravocrata, com 300 anos de duração. As diferenças raciais e os problemas
políticos ocorridos em tempos imperiais, deveriam ser solucionados em tempos
republicanos.

[...] a população negra da cidade, via de regra pobre e marginalizada, não era
considerada pelos detentores do poder, impregnados destas ideias higienistas
e eugênicas, como a população ideal da cidade. Não era a parcela da
população que deveria ser levada em conta num planejamento urbano com
vistas a modernizar e europeizar o Rio de Janeiro (ANDRADE, 2018, p. 99).

sumário 997
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Com o pensamento intelectual voltado à construção de um projeto de nação e


influenciado por muitas teorias, dentre elas a do movimento de eugenia, justificativas
para o atraso brasileiro foram concebidas também por essa ótica, sobre as bases do
higienismo e sanitarismo. A questão eugenista dividiu intelectuais entre os que
acreditavam na “eugenia positiva” e os que preferiam as ideias da “eugenia
negativa”117.

No Rio de Janeiro, por sua vez, as pesquisas insistiam na questão da higiene


pública e, sobretudo, na análise e combate das grandes epidemias que tanto
preocupavam as elites nacionais. O Brasil, nessa época, surgia representado
interna e externamente como o 'campeão da Tuberculose', o paraíso
dasdoenças contagiosas. Sobretudo a tuberculose assustava a população local
[...]. (SCHWARCZ, 2001, p. 30, Grifos da autora).

Assim, o saneamento das grandes cidades, sobretudo do Rio de Janeiro por ser
a Capital Federal, era visto como a solução para todos esses males que preocupavam
tanto intelectuais como a própria população. O higienismo veio com força, intervindo
na cidade e na família com autoritarismo. “[...] essa nova atitude dos profissionais
médicos visava sair dos espaços públicos de atuação e ganhar os locais privados,
impondo hábitos, costumes e mesmo atitudes. (SCHWARCZ, 2001, p. 30, Grifos da
autora) Era hora de investir em uma educação sanitária que impusesse à população
como agir higienicamente.

Sanear o Brasil é povoá-lo, é enriquecê-lo, é moralizá-lo: a educação sanitária na


zona rural

Com grande assistencia de pessoas gradas do logar e de doentes, realizou-se


hontem a inauguração official do posto de S. João do Merity, no Estado do
Rio.
O Dr. Belisario Penna, chegando ao posto pouco mais ou menos ás 10 horas,
deu início á uma palestra sobre verminoses e os meios praticos de evita-las.
Explicou de uma maneira concisa o desfihamento apresentado por muitos
moradores da zona rural, motivado pela falta de noções elementares de
hygiene. (CORREIO DA MANHÃ, 28/10/1919, p. 4).

O Correio da Manhã de outubro de 1919, noticiou a inauguração oficial do


Posto Sanitário em Merity, na área rural do Rio de Janeiro, embora já estivesse em
funcionamento desde o dia 19 de agosto, segundo o Relatório dos Trabalhos

117
Termo usado pela autora Nancy Leys Stepan em seu livro: A hora da eugenia: raça, gênero e nação na
América Latina (2005).

sumário 998
VII Seminário Vozes da Educação

Executados pelo Posto. Na ocasião, o chefe do Serviço de Prophylaxia Rural, Dr.


Belisario Penna realizou uma palestra sobre os cuidados que os moradores da zona rural
deveriam ter para evitar doenças, pois a taxa de mortalidade era alta na Baixada
Fluminense118.
O Posto de Merity, pode ser tomado como exemplo das ações empreendidas pela
Directoria de Saneamento e Prophylaxia Rural (DSPR) que realizou estudos e prestou
assistência às áreas rurais, através de atendimentos médicos, além da divulgação de
propagandas e folhetos educativos. A área rural precisava ter mais visibilidade, tomada
por moléstias como o impaludismo, a tuberculose e as verminoses, Dr. Kehl reconheceu
a pobreza, a miséria e o esquecimento do campo, levantando apenas como aspecto
positivo nessa conjuntura, a produção de frutas e hortaliças, produtos essenciais no
abastecimento das grandes cidades.
Para Belisário Penna, sanear os sertões também significava eugenizar. "Para
Penna, não era a raça que incapacitava os sertanejos e caboclos, mas as doenças
epidêmicas e endêmicas" (STEPAN, 2005, p.167). O médico, junto a Arthur Neiva
realizaram expedições aos sertões, o interior do Brasil para percorrer o desconhecido
(NUNES, 2018), sendo assim perceberam as carências rurais que embora houvesse a
existência de alguns males nas áreas mais urbanas, a especificidade das questões rurais,
diferenciavam-se das práticas de mesma ordem.

A partir das ações sanitaristas nos primeiros anos do século XX, dos médicos
Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Belisário Penna e Arthur Neiva descobriram
um Brasil demarcado pela ausência. A falta de investimento na educação, na
salubridade, na higiene e acesso escolar, hospitalar e cultural na zona rural,
revelava a existência de uma realidade nacional oposta ao que era
considerado civilizado. (NUNES, 2018, p. 27)

Nunes (2018) nos chama atenção para as urgências da zona rural e do território
nacional “demarcado pela falta”, por esse motivo, as ações dos médicos sanitaristas
tiveram como missão sanar os problemas da saúde que acometiam o campo. Além de

118
O termo Baixada, segundo Silva (2017), surgiu ao final do século XIX, era também nomeada como
Arrabalde ou Grande Iguassu, para especificar o lado oeste das terras ao redor da Baia de Guanabara. No
ano de 1833, a Freguesia de São João Batista de Merity se integrou ao povoado de Iguassu como seu 4º
distrito. Em 1875 iniciou-se a construção da Igreja Matriz de São João ampliando a população existente
naquela freguesia, banhada pelos rios Sarapuí, Miriti e Pavuna. (PREFEITURA DE SÃO JOÃO DE
MERITI, 2019).

sumário 999
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

descobrir o interior, os sertões brasileiros era o caminho para conhecer a “gente”


brasileira. Segundo Freitas (2001):

O saneamento do interior, dos sertões, ajudava a dar visibilidade ao


intelectual médico que atuava como uma espécie de antropólogo. Os debates
sobre a identidade do país naqueles anos foram fortemente influenciados
pelas discussões em torno às questões raciais da cultura brasileira (p. 16).

Era preciso pensar e solucionar as grandes “pragas nacionais”, entre essas


“pragas” a falta de uma consciência higienista entre a população estava presente. Nesse
sentido, levar educação, saneamento e higiene para a população do campo era
fundamental, além de diminuir o inchaço da migração para a cidade, ainda permitia
estudar o sertanejo, essência do povo brasileiro. Sendo assim, em fevereiro de 1918, por
iniciativa de Belisário Penna criou-se a “Liga Pró-Saneamento do Brasil”, cujo objetivo
era ampliar, estimular e implementar medidas que tivessem como base fundamental a
promoção da higiene, saúde e educação, em todo Brasil, não restringindo-se apenas à
capital (BRITO, 1995).
Segundo Britto (1995) três pontos caracterizaram o movimentos dos
sanistaristas, o primeiro estava associado a saúde como um fator consonante aos ideais
de progresso. O segundo, relacionava-se a comparação entre outros países considerados
“cultos” como Inglaterra, Itália, França, Alemanha, Japão, Estados Unidos, que
conseguiram sua ascensão e desenvolvimento a partir das medidas de implementação de
higiene e sanistarimo com Louis Pasteur e a medicina social do século XIX. Como
terceiro ponto, o reconhecimento da ausência de saúde e educação no Brasil pelos
médicos higienistas e sanitaristas, opondo-se ao determinismo de base climática e étnica
que tinha predomínio nos debates entre os intelectuais desde o século XIX.
Com o propósito de estabelecer diretrizes para a propagação de uma educação
sanitária, os médicos higienistas e sanitaristas, estabeleceram os “10 mandamentos da
prophylaxia rural”. Esses mandamentos fizeram parte do folheto educativo, cujo
objetivo era ensinar as pessoas sobre os cuidados higiênicos e sanitários, em seu verso
tinha a seguinte frase: “Em seu beneficio, no da propria familia e de todos nós: ponha
isto em logar bem visivel de sua casa. E faça a respectiva propaganda” [sic]
(FOLHETOS EDUCATIVOS, Fiocruz/ Casa de Oswaldo Cruz, 1920-1922).

1 - Tenha latrina em sua casa e exija que os visinhos tambem a tenham.


2 - Só beba agua filtrada, fervida ou tirada directamente do jacto da mina.

sumário 1000
VII Seminário Vozes da Educação

3 - Só coma carnes e legumes bem cozidos e fructos bem lavados


descascados.
4 - Use calçado e tenha tambem calçadas todos as pessoas de sua casa.
5 - Não tenha póços descobertos, nem aguas paradas ou pouco correntes, nem
a menos de cem metros, vegetação em volta de sua casa.
6 - Tenha todos os depositos d’agua hermeticamente fechados; não conserve
tinas, talhas, porrões, jarras, cocos ou outros quaesquer depositos sem que, ao
menos duas vezes por semana, sejam esvasiados, lavados e emborcados
durante uma meia hora.
7 - Tenha os alimentos bem resguardados contra os ratos, as baratas, as
moscas e outros animaculos; faça guerra sem treguas a esses e a quaesquer
outros-mosquitos ou murissócas, persevejos, pulgas piolhos, bichos de pé,
trazendo toda a casa, todos os moveis, os quintaes e o proprio corpo, sempre
rigorosamente limpos.
8 - Lave frequentemente o rosto e, principalmente, nada leve á bocca sem
amtes lavar as mãos.
9 - Não tenha animaes dentro de casa - aves, cães, gatos, coelhos, cabritos,
carneiro etc. e impeça que elles se avisinhem das hortas e pomares e das
aguas de beber e de réga.
10 - Não durma nem móre em cafúas ou casas toscas de tectos e paredes
irregulares, e use cortinados, sobretudo nas camas das creanças; não durma
em quarto sem janela para o exterior (FOLHETOS EDUCATIVOS, Fiocruz/
Casa de Oswaldo Cruz, 1920-1922).

A proliferação de doenças e a mortalidade precisavam ser sanadas, sendo assim


instruir os sujeitos em suas ações diárias ajudaria na manutenção da saúde, como a
orientação proposta nos mandamentos. Não existia em Merity nem farmácia, nem
médicos, a precariedade era grande, todos os que adoeciam procuravam o Posto
Sanitário. Desse modo, a sua existência naquela região representava para além do
cuidado com a saúde, um local de educação e aprendizado dos saberes essenciais à vida.

Figura 2. Pacientes na frente do Posto de Merity (RJ)

Fonte: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 1918 - 1923.

Ao ser recebido no Posto, o paciente era fichado com todos os seus dados de
identidade e antropométricos. No dia da matrícula era pesado, e verificava-se “a taxa de

sumário 1001
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

hemoglobina, a altura, o perimetro thoraxico, a capacidade respiratoria, por meio de


espirometro, a força dynanometrica; as fezes” (KEHL, 1919, p. 5) essas eram levadas
ao laboratório para exame. Segundo Kehl (1919), enquanto tais exames eram realizados
procurava-se dar conselhos higiênicos e médicos aos sujeitos, que acatavam aos pedidos
com facilidade e demonstravam docilidade, o que incentivava os médicos na
continuação do trabalho sanitário e de propaganda da higiene empreendidos na região.
Porém, apesar da fácil aceitação, muitos pacientes ao serem medicados uma vez não
voltavam ou simplesmente retornavam doentes porque não seguiam certos cuidados
higiênicos, como o uso de calçados, por exemplo.
Além do serviço interno executado nas humildes dependências do Posto,
as ações se ampliaram ao meio externo, com serviços de hidrografia “de vallas e
drenagem dos terrenos alagadiços” [sic] (KEHL, 1919, p. 7); cadastramento de casas
para recenseamento dos seus residentes; vacinação e tratamento em domicílio para
pacientes que por algum motivo não conseguiam ir ao Posto; e também preleções sobre
higiene, instruindo sobre o corpo e os cuidados com o meio que o cercava.
A figura do médico ganhou espaço de atuação nesse cenário, pelo qual a
Educação sanitária e higiênica tornou-se pilar, não somente para tratar as doenças dos
indivíduos, “mas para curar a própria sociedade” (SANTOS, 2011, p. 58). Nessa
direção, as práticas de intervenção sanitária denotaram controle e vigilância dos
sujeitos, para além da promoção da saúde e do bem-estar.

Considerações finais
Ao receber uma educação sanitária, Jeca-Tatu prosperou! Antes era abatido,
triste, doente, o novo Jeca era sinônimo da saúde e do progresso que deveriam ser
alcançados pela população pobre e rural. Longe das moléstias, dos vícios, dos maus
costumes que a falta de uma educação sanitária, higiênica e profilática poderia
proporcionar, o Jeca tinha chances de caminhar para o progresso.
O discurso eugenista, que muitas vezes associava a população pobre, negra e
rural ao atraso do país estava presente nas ações sanitárias. Rotular e erradicar o Jeca
Tatu doente, preguiçoso e ignorante era uma forma de eliminar aquele que era
considerado o mau e o atraso da raça brasileira. Essas ideias serviram como
justificativa para medidas efetivas na transformação social e no projeto de construção da
nacionalidade brasileira, sendo assim, o Posto de Merity foi apenas um recorte diante

sumário 1002
VII Seminário Vozes da Educação

das ações empreendidas por intelectuais no Rio de Janeiro e em outras partes do


território nacional ao longo do século XX.

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implicações sociais e raciais. Mosaico, v. 9, n. 15, 2018, p. 86-104. Disponível em:
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EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Conquista, 1957.

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sumário 1003
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 1004
VII Seminário Vozes da Educação

QUESTÕES HISTÓRICAS E POLÍTICAS ACERCA DA CONSTITUIÇÃO DA


CRIANÇA COMO CIDADÃ

Cintia Larangeira119
FFP UERJ

Da frequentação do mundo tira-se uma admirável clareza para o julgamento


dos homens. Estamos todos trancados e encolhidos em nós mesmos e temos a
visão limitada ao comprimento de nosso nariz. Perguntaram a Sócrates de
onde ele era. Ele não respondeu: “De Atenas”, e sim: “Do mundo”. (...) Este
grande mundo, que alguns ainda multiplicam como espécies sob um gênero,
é o espelho em que devemos olhar para nos conhecermos da perspectiva certa
(MONTAIGNE, 2005).

A relação entre Estado e Sociedade esteve presente em diversas formações


sociais ao longo da história, ainda que estas organizações nem sempre tivessem essa
nomenclatura específica, bem como em cada temporalidade e espacialidade fossem
diferentes também em suas formas organizativas. Contudo, é possível perceber nas
complexas relações sociais a ideia de divisão social - mesmo que assim não fosse
denominada - dual e antagônica que tem como base oprimidos x opressores, dominantes
x dominados; proprietários x trabalhadores (MARX, 2013; MAQUIAVEL, 2011;
BOÉTIE, 1986).
Nos meandros dessas relações é intrínseco também pensar o par educação x
cidadania, tomando o Estado como mediador nessa análise, através de percurso
sóciohistórico, uma vez que seja compreensível que todo projeto de educação está
inserido num projeto político de sociedade.
Para corroborar a relação entre educação e sociedade, trago uma passagem
histórico-cultural que remonta ao final da Idade Média e a formação do Estado
moderno, na qual está o personagem Pinóquio, do jornalista e escritor Carlo Collodi
(2002), universalmente conhecido nos contos de fada. A história do boneco de madeira
foi escrita em 1881 e muitas foram suas análises nas ciências sociais, especialmente no
campo da Educação. Isso porque para se transformar em humano, a marionete entalhada
por Gepeto, precisaria ser conduzida, inclusive no sentido etimológico, para a escola,
uma vez que já demonstrava sua insolência e teimosia mesmo quando era um toco de

119
Mestranda FFP-UERJ/Bolsista Capes.

sumário 1005
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

madeira e não se furtava em debochar do “Polentinha” – apelido que desagradava muito


ao velhinho.
As relações, tensões e enfrentamentos que permeiam a interação de Pinóquio
com os demais personagens, também estão datadas a partir da segunda metade do
século XIX, na qual o “sentimento de infância” (ARIÈS, 1986) estava se consolidando
no interior do processo de industrialização e urbanização da sociedade europeia. Nesse
sentido, pode-se dizer que Pinóquio está imerso numa sociedade que vem rompendo
com a cosmovisão aristocrática e se cunhando ao projeto político-social da
modernidade.
Dessa forma, a marionete frequenta o mundo, ajuizando seus valores muito além
do comprimento de seu nariz, e que nariz! Suas experiências, que não são poucas, vão
ressignificando suas relações com ele próprio, com os demais personagens e com a
esfera pública, em busca de se tornar “um menino de verdade” (COLLODI, 2002) – um
cidadão. Porém, esse conjunto de experiências apenas será legitimado através da escola
e do trabalho. Isto é, os valores como certo e errado, mau e bom, ócio (no sentido de
“vadiagem”) e trabalho, são de responsabilidade da escola ensinar, nessa nova formação
social que tinha como norma o ideal de nação liberal-político - com liberdade,
igualdade, fraternidade - e liberal-econômico - com a defesa da propriedade privada. A
criança, nesse contexto, era pensada como projeto de futuro.
As travessuras incontestes de Pinóquio, então, eram motivo de sobra para a
preocupação e ação pedagógica de Gepeto, do Grilo Falante e da Fada dos cabelos
azuis, que sempre o indicavam o caminho da escola para ser um menino bom e
obediente, influência ainda muito significativa da Igreja. Contudo, não é possível deixar
de observar também duas questões de ordem política que se impõe: que sujeito formar
para aquela sociedade; e, se há uma relação política, há uma relação de poder implicada
(BOBBIO, 2007).
Assim, a escola do Estado moderno incipiente passou a ser apontada como o
único caminho para aprender os valores da vida, do trabalho, da sociedade, da
cidadania, embora essa fosse permeada por um conjunto de critérios que pareciam
inatingíveis para a maioria da população, observáveis tanto naquele momento histórico,
como também na contemporaneidade. Consequentemente, um dispositivo que
distingue-se da comunidade primitiva sob a égide do nascimento do direito à
propriedade privada, da divisão do trabalho, consequentemente de uma sociedade
dividida em classes. Mas, outra relação educativa vivida pelo boneco na história é com

sumário 1006
VII Seminário Vozes da Educação

a cidade. Pinóquio, antes mesmo de chegar à escola, vive com o território citadino
relações de “educabilidade” (FREIRE, 1996), que o constituem como sujeito e
atravessam as suas experiências afetivas, espaciais e com saberes que não são
exclusivos da escolarização.
Em diálogo com as aventuras desse boneco tão emblemático e as ciências
sociais, esse trabalho buscará refletir sobre as relações Estado e Sociedade, cidadania e
educação, pensando questões políticas que delas derivam na disputa e manutenção das
relações de poder. Ainda, pensar a constituição de crianças como cidadãs na sociedade
brasileira contemporânea, considerando que seu direito de participação, apesar de
legislado, ainda é efetivamente pouco praticado. Nesse sentido, pensar como a
complexidade dessas relações podem afetar as infâncias ao mesmo tempo em que por
elas são afetadas nas múltiplas interações socioespaciais vividas nas metrópoles
contemporâneas.

Contextos histórico-políticos de Estado e Sociedade e suas relações de poder


Contextualizar a relação entre educação e cidadania nos diferentes momentos
históricos pode evidenciar a formação e transformações do conceito de cidadão,
considerando o Estado como mediador dessa análise. Tomando como ponto de partida a
Grécia Antiga, os cidadãos eram assumidos como os condutores políticos e, para isso,
deveriam ser do sexo masculino e pertencentes à classe economicamente dominante.
Aos demais habitantes da polis (mulheres, crianças, pobres, escravos) não era concedido
o direito à cidadania. A educação servia diretamente ao propósito de formar o cidadão,
mais ainda, lhe era um direito exclusivo, enquanto preparação para a vida política, para
a condução da cidade. Eram os cidadãos os responsáveis por organizar a vida da polis,
portanto, a sua relação com o sistema político (Estado) era identitária.

A rigor, a polis não é a cidade-estado em sua localização física; é a


organização da comunidade que resulta do agir e falar em conjunto, e o seu
verdadeiro espaço situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal
propósito, não importa onde estejam. <<Onde quer que vás, serás uma
polis>>: estas famosas palavras não só vieram a ser a senha da colonização
grega, mas exprimiam a convicção de que a ação e o discurso criam entre as
partes um espaço capaz de situar-se adequadamente em qualquer tempo e
lugar. (ARENDT, 1997, p. 211).

No período medieval, no contexto das relações feudais, é possível situar a


nobreza como cidadãos, percebendo a sua estreita relação com o Estado. Apesar de sua

sumário 1007
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

educação ser de ocupação da Igreja e ter uma característica mais diletante do que
instrumental para a vida pública, a relação estabelecida entre Estado, cidadania e
educação é observável pela intermediação eclesiástica. Contudo, no final da Idade
Média, no início do processo em que se consolidará um novo meio de produção, outro
sentido começa a ser atribuído ao conceito de cidadão.
Assim, na base da formação do Estado moderno as relações entre cidadania e
educação se ressignificam atravessadas pelas transformações econômicas, jurídico-
políticas e culturais. Isto é, a transformação dos meios de produção com excedentes, a
formação de força de trabalho assalariada, o processo de acumulação de capital e a
concentração de meios de produção por uma classe, além do advento da ciência
positivista, conduz a um processo acentuado de reordenamento político.
Nesse contexto, com o nascimento da propriedade privada, a reorganização do
trabalho e a transformação das relações com o conhecimento, emerge a teoria dos três
poderes, que tem no Estado a função reguladora da sociedade, na qual a formação,
distribuição e exercício do poder se definem como seu processo político. Na
consolidação do Estado moderno, o alicerce ideológico que deu sustentação à relação
entre o liberalismo-econômico e o liberalismo-político, foi a tríade liberdade, igualdade
e fraternidade, como fundamentação ética e jurídica, bem como o direito à propriedade
privada (BOBBIO, 2007).
Tais pressupostos, de acordo com o ideário liberal, circunscreveram o direito à
cidadania como individual, consubstanciados em direitos e deveres fundamentados em
normas jurídicas. Assim, todo o cidadão tem seu direito à liberdade, igualdade e
fraternidade, desde que se preserve o direito inalienável da propriedade privada, do qual
o Estado será o garantidor, se preciso, com o uso da força.
É inegável a importância revolucionária da burguesia na ruptura com a servidão
aristocrática, mas também é inegável que o processo de acumulação capitalista foi
desumanizando os sujeitos à medida em que estes foram obliterando-se nas relações de
troca, nas quais inclusive as relações religiosas se tornaram mercadoria, quando se
buscava “comprar um lugar no céu”, para garantir a vida eterna. Dessa forma, a
necessidade é inventada pela via do capitalismo, que tem no Estado a norma jurídica
como ordenação, portanto também é inventada a distinção entre Estado e Sociedade.

Com a emancipação da sociedade civil-burguesa (...) do Estado, inverte-se a


relação entre instituições políticas e sociedade. Pouco a pouco a sociedade
nas suas várias articulações torna-se o todo, do qual o Estado, considerado

sumário 1008
VII Seminário Vozes da Educação

restritivamente como o aparato coativo com o qual um setor da sociedade


exerce o poder sobre o outro, é degradado à parte. Se o curso da humanidade
desenrolou-se até então das sociedades menores (como a família) ao Estado,
agora finalmente — de um lado com a descoberta das leis econômicas que
permitem ao homem uma convivência harmoniosa com uma necessidade
mínima de aparato coativo e portanto de poder político, de outro com o
desenvolvimento da organização industrial mantida pelos cientistas e pelos
próprios industriais que de agora em diante renunciarão à espada de César —
passará a se desenrolar através de um processo inverso que vai do Estado
opressivo à sociedade libertada (BOBBIO, 2007, p.61-62).

Partindo da premissa que todo projeto de educação está inserido num projeto
político de sociedade, o surgimento da educação pública gratuita, universal e obrigatória
nas sociedades modernas, tem como objetivo favorecer um contexto social à
acumulação capitalista - à integração dos indivíduos nas novas relações sociais e de
produção, além da preparação técnica para o trabalho com uma perspectiva disciplinar e
hierárquica com vistas a aquisição de hábitos e condutas próprios do mundo produtivo.
A escola passa a ser instrumento de inculcação e consolidação dos valores da classe
proprietária dos meios de produção, na construção de sua hegemonia.
A cidadania no Estado liberal-burguês, então, passa pela conotação jurídico-
legal na qual se deve ser cumpridor de seus deveres, resguardando-se os direitos perante
o Estado e a Sociedade. Em Marx, o Estado “não é senão um comitê para gerir os
negócios comuns de toda a classe burguesa” (MARX e ENGELS, 1999), o que tensiona
a concepção política de igualdade, que na prática tinha como arquétipo de cidadão o
homem, branco e detentor de propriedade (fossem os meios de produção ou o
comércio). Fora desse escopo, pobres, estrangeiros, mulheres e crianças não tinham
direito ao exercício político, ao exercício da cidadania. Assim, na instalada
estratificação social, a relação com o Estado (construção de normas, reinvindicação de
direitos) era praticada, de forma representativa, por uma fração muito pequena da
sociedade. Nesse sentido, a escola acaba sendo reprodutora das práticas sociais e
conformando a desigualdade na medida em que distingue a formação dos indivíduos
para o trabalho ou para atuação na esfera pública. Essas relações entre Estado,
Sociedade e Educação serão fortes ainda até meados do século XX, mesmo que
atravessadas por muitas mudanças como a separação relativa do Estado e da economia,
a separação do Estado e da sociedade civil e a associação contratual de sujeitos jurídicos
individualizados que se denotam nas relações mercantis.
O aparelho do Estado moderno burguês, assim, apresenta o que Nico Poulantzas
(2000) vai chamar de “materialidade institucional do Estado”, cujas características são a

sumário 1009
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

centralização, a natureza política, funções anônimas, impessoais e formalmente distintas


do poder econômico, legitimidade baseada no conceito de povo-nação e a separação
relativa entre o político e o econômico. Nessa conjuntura capitalista, a separação “entre
o trabalho manual e intelectual é apenas um aspecto da divisão social do trabalho mais
geral, [mas] é decisiva no caso do Estado” (POULANTZAS, 2000, p. 53), uma vez que
está encarnada em seus aparelhos (família, escola, redes diversas de formação
profissional).
Dessa forma, a relação entre ideologia-saber-ciência ocasionou a transformação
da ideologia jurídico-política em ideologia tecnocrática, na qual a ciência (relação
saber-poder) é incorporada pelo Estado em suas mais diversas funções, produzindo a
ideologia dominante e assumindo mais fortemente um papel regulador das relações de
classes, pendendo, em geral, para a classe dominante através de um discurso de ação
segmentário e fragmentado conforme as relações de poder que se desenvolvem
intrinsecamente e sob determinados interesses.
A legitimação e cristalização da hierarquia do trabalho intelectual sobre o
manual vai produzir um corpo político atomizado e fracionado, pelo qual a burguesia
universaliza, interna e externamente, a ideia de igualdade pertencente à essa classe, cuja
liberdade já foi conquistada; organizando o Estado, então, com essas ideias de
acumulação, expropriação, que são seus valores, mas contraditórios à ideia de igualdade
em si, como projeto de perpetuação da dominação.
Na reflexão das formulações sobre o Estado, em suas diversas faces de análise,
observa-se com vários autores (MARX, 2013; MAQUIAVEL, 2011; BOBBIO, 2007;
POULANTZAS, 2000; BOÉTIE, 1986) a relação domínio x dominação x poder e suas
derivações dominantes x dominados. Nesse sentido, é possível perceber a produção das
contradições nas relações sociais de que deriva a luta de classes. Contudo, o Estado
como relação social não é exclusivo da burguesia, motivo pelo qual há luta pela sua
superação. Para a burguesia bastava ser proprietário para ser cidadão; mas para o povo,
a cidadania só poderia ser alcançada através da educação.

A condição cidadã das infâncias e seu direito de participação da cidade


Retomando o diálogo com “As aventuras de Pinóquio” e as lições de Collodi
(2002), compreendo que este livro pode ilustrar bem a relação entre educação e
cidadania e a função social da escola na sociedade moderna incipiente e, ainda, em
nossa conjuntura atual. Quando Gepeto entalha sua marionete de madeira e se depara

sumário 1010
VII Seminário Vozes da Educação

com sua personalidade petulante, grosseira e teimosa, conduz, na mais pura acepção
pedagógica, Pinóquio para a escola com o intuito de que ele venha aprender os bons
valores e costumes sociais, assentados na moral e no trabalho. Seus esforços contam
ainda com a ajuda de outros personagens como o Grilo Falante, a Fada dos cabelos
azuis, entre outros, na medida em que o boneco se desvia do propósito de se tornar um
“bom menino”. Isto é, para alcançar a sua humanidade, Pinóquio passa por muitos
percalços, travessuras, arrependimentos que o desviam e retomam ao caminho “certo”,
o que indica uma grande complexidade do personagem e algumas reflexões possíveis
em várias perspectivas. Contudo, buscarei aqui um recorte a partir da perspectiva sócio-
política em diálogo com o conflituoso e antagônico processo de mudanças que vimos
assistindo em nossa sociedade brasileira contemporânea, na tentativa de aproximar a
marionete de nossas infâncias.
Em linhas gerais, após longo período de ditadura militar, pela emergência de
lutas trabalhistas e sociais, o Brasil entra em processo de redemocratização, e no final
dos anos 1980 é promulgada a nossa Constituição (CF/1988) vigente, que inspirada nos
Movimentos Sociais produziu, em termos de participação, elementos para ação (ex.
Conselhos Municipais). Porém, nos trinta anos completos da Constituição brasileira
(idem), precisamos refletir criticamente sobre o direito à educação, compreendendo que
o campo da Educação é atravessado, de forma inseparável, pela relação de suas
características estruturais e conjunturais (FRIGOTTO, 2011). Assim, na medida em que
o Estado é relacional, a Educação reside na indissociabilidade do exercício do poder,
porque nasce da política. Nesse sentido, a Educação no Brasil é um campo de forças
atuantes, que revelam em suas concepções contradições epistemológicas, frutos da
perspectiva histórica, ideológica, política e cultural do país, cujas relações tem no
próprio Estado também elementos para reprodução e manutenção do poder, agravada
ainda, pela interdependência internacional que vem, historicamente, consolidando tal
influência.
Disso decorre que a despeito dos avanços nas políticas públicas educacionais
brasileiras, ainda encontramos na escola uma reprodução das desigualdades sociais, que
vêm se acentuando com ajustes estratégicos que caminham a passos largos para
diretrizes de políticas neoliberalistas. As atuais políticas públicas educacionais que vêm
sendo desenvolvidas nos últimos anos coadunam com perspectivas pragmáticas para a
educação e tendo forte tendência à manutenção de uma sociedade classista,

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

preconceituosa e patrimonialista que não consegue se libertar de concepções


colonialistas naturalizadas.
Não à toa voltou a crescer a ideia de educação como capital humano, o que
justifica equivocadamente a inversão das concepções de “fins” e “meios” do ato
educativo. O ser humano não pode se desenvolver como um recurso humano que
produza mais valor agregado à sociedade (SANDER, 2009). Na medida em que
hegemonicamente a educação serve como dispositivo de produção de recursos
humanos, seja ele “braçal” ou “intelectual”, a escola passa a ser “fábrica” de força de
trabalho, isso é, mercadoria, produzindo (e reproduzindo) as relações sociais conforme
as demandas econômicas e políticas de cada sociedade. Assim, a educação das infâncias
cumpre um papel de devir, enquanto tem como concepções prioritárias a relação com o
trabalho, numa perspectiva econômica; e a manutenção de poder, na perspectiva sócio-
política.
É possível perceber na história de Pinóquio uma reflexão sobre as diferentes
lógicas da educação das crianças com aspecto uniformizante que conforma a reprodução
das desigualdades não apenas nos aspectos curriculares e pedagógicos, mas inclusive
nos humanos, uma escola da qual o boneco tenta se evadir, mesmo com consequências
desastrosas, experienciadas inclusive no corpo – o crescimento de seu nariz, a
transformação em burro, etc. Ou seja, ao mesmo tempo em que a universalização da
Educação passa a ser um espaço democrático e de direito de aquisição da cultura como
construção da humanidade; também é espaço de distinção, quando desconsidera a
pluralidade cultural e social, uns saberes em detrimento de outros, revelada na
familiarização das classes dominantes e na estranheza das classes dominadas pelos
valores eleitos como legítimos.
Dessa forma, a hierarquização produtora e mantenedora da estrutura de classes
em nossa sociedade, sobre a qual não só a aquisição da cultura, mas a relação com que
se tem com essa cultura, tem a escola, consciente ou inconscientemente, como
dispositivo de seleção. Há aí uma desumanização sob o aspecto socioeconômico,
quando se estabelece uma classificação cultural, na medida que a “cultura legítima”
passa a ser a cultura da classe dominante. Pinóquio pertencia à classe dominada, o
acesso a bens materiais para a própria manutenção da vida como comida, roupas se
coloca escasso na história de Collodi. Gepeto busca dentro de suas limitações atender às
necessidades mínimas de sobrevivência do boneco e acredita que a escola é uma delas
quando sacrifica, literalmente, a roupa do corpo para que ele possa ter uma cartilha para

sumário 1012
VII Seminário Vozes da Educação

frequentar a escola. Na contemporaneidade, inúmeras famílias de classe popular


encontram-se com tais experiências, acreditando na escola como o único lócus de
transformação social, sacrificando-se durante dias em longas filas, para conseguir vaga
nas boas escolas para seus filhos e suas filhas.
Em nossos contextos contemporâneos, pelos quais a cultura de mercado é
fortemente empregada, o valor do pertencimento vem também passando pela questão do
consumo e pelas relações espaciais. Especialmente em periferias urbanas, podemos
perceber muitas crianças e jovens que não tem acesso aos bens materiais das classes
dominantes, contudo são esses os seus objetos de desejo, porque supostamente
legitimam uma dignidade, um pertencimento social. Vimos deixando de ser cidadãos
para ser consumidores (SANTOS, 2014), o que vem transformando de forma cruel as
relações sociais, culturais, territoriais e políticas. Nas sociedades capitalistas de
mercado, o/a cidadão/ã é aquele/a que tem condições de consumo.
Trazendo essas questões para o processo acelerado de urbanização brasileira, a
cidade, em sua urbanização, vem apresentando elementos que também nos apontam
para a produção de desigualdades. Nas periferias os elementos do Estado vêm se
mostrando pouco presentes em sua materialidade – escolas, postos de saúde,
saneamento – e produzem cada vez mais o sentimento de não pertencimento. As regiões
mais centrais das grandes metrópoles possuem uma estrutura em que se é possível uma
fruição do território, porque é lá que se concentram as elites. O acesso aos aparelhos do
Estado, bem como os estabelecimentos de aquisição de cultura, como teatros, cinemas,
bibliotecas estão localizados nos centros urbanos. A cidade, mesmo que ainda pouco
pensada para as pessoas, e menos ainda com espaços que sejam pensados para as
crianças, acabam sendo excludentes quando suas dinâmicas estejam mais voltadas para
o consumo.
Em um momento na história de Collodi, podemos perceber a complexa exclusão
experienciada por Pinóquio, em mais uma vez que se desvia do caminho de sua
cidadania, seguindo pelo caminho que o leva ao teatro de marionetes. Duas situações
imbricadas ocorrem na experiência de usos da cidade: é reafirmada sua não-cidadania,
quando um rapazinho sem demora o desumaniza comparando-o a uma bela besta, no
instante em que Pinóquio assume não saber ler o cartaz do teatro; e a falta de dinheiro,
que não se torna impeditiva em relação à sua curiosidade, já que como solução ele logo
vende a cartilha em troca do ingresso para assistir ao espetáculo. Contudo, mesmo que
tenha ali conquistado seu momento de fruição, sob o aspecto econômico, o sentimento

sumário 1013
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de pertença, de acolhimento aconteceu apenas quando as demais marionetes o


reconheceram como igual, o que lhe conferiu outros problemas que afetaram sua própria
segurança.
Na ocasião em que atrapalhou o espetáculo e causou prejuízos ao Tragafogo,
proprietário da companhia, o boneco quase virou lenha. E, quando ajuizada essa
questão, pelo próprio titereteiro que o perdoou e ainda lhe deu algumas moedas de ouro
para que não se encontrasse mais em situação vulnerável; se vê novamente envolvido
com o perigo, já que Pinóquio, em confiança, vira alvo da maldade da Raposa e do
Gato, em um negócio sujo que quase lhe custou a vida para roubarem-lhe o dinheiro.
Na relação com o mundo adulto, de maneira geral, e muitas vezes com a própria
escola, não há o acolhimento dos saberes e da potência das infâncias, de onde é possível
perceber outra hierarquização da sociedade moderna ocidental, que se dá nas relações
intergeracionais. A educação das crianças nesse projeto político-social de Modernidade,
se desenhava a partir do “sentimento de infância” (ARIÈS, 1986) que se vinha
construindo, no qual a perspectiva apontava para um devir, não a criança concreta. A
infância inventada na Modernidade pelo discurso científico ainda se faz fortemente
presente nas relações institucionais (família, escola, Estado) com as infâncias 120
contemporâneas. Nesse sentindo, a criança acaba sendo destituída de sua autoria, na
medida em que há um modelo previamente construído. Além disso, outra reflexão se
coloca: se por um lado as crianças e a infância começam a ganhar visibilidade social, o
que garante a elas maiores cuidados, maior proteção e mesmo a garantia legal de sua
cidadania; por outro, ao recolher as crianças da esfera pública para a esfera privada,
separada do mundo dos adultos, elas começam a ficar a encargo das instituições,
revelando relações de poder que precisam ser tensionadas na formação para sua a
cidadania.
Diante das questões apresentadas, é fundamental indagar que sujeitos queremos
formar, para que sociedade? Essa questão política vem sendo considerada
sistematicamente pelas ciências sociais. A escola, sem dúvida, é a instituição para qual
se foi delegada essa tarefa política. Nos últimos trinta anos as ciências sociais, em geral,
e também a Educação vêm refletindo sobre o conceito de infância e criança,
reconhecendo-as como sujeitos de direitos, capazes de agir no mundo e introduzindo-as

120
Utilizo o termo infâncias no plural aqui como reconhecimento que os inúmeros contextos históricos,
sociais, econômicos, políticos, espaciais nos quais as crianças estão inseridas produzem infâncias plurais
em suas singularidades.

sumário 1014
VII Seminário Vozes da Educação

a ele. Arendt (1997) busca no conceito de “recém-chegado” outra forma de experienciar


uma relação mais solidária e humanizadora com os pequenos e as pequenas, em que as
singularidades possam desnaturalizar o olhar das relações já estabelecidas, “transver o
mundo” (BARROS, 2013), em que para a autora, pertencemos porque somos no plural e
permanecemos estrangeiros também pela nossa singularidade, estabelecida na
pluralidade, que está presente nas ações de homens, mulheres e crianças. O que a autora
vai chamar de amor mundi.
Dessa forma, pensar a criança como “recém-chegada” (ARENDT, 1997, p. 191),
aquela que é vista como a estrangeira, a imigrante, que chega a um mundo que a
precede e que pelo nascimento tem a potencialidade de agir no mundo; é também pensar
a autoridade do/a adulto/a nessa relação educativa: aquele/a que acolhe, introduz,
assumindo a responsabilidade de apresentar esse mundo em um convite, para que a
criança possa desenvolver um sentimento de pertença e posteriormente possa assumi-lo
na compreensão de sua continuidade e consequente renovação, para sua ação política.
A criança pequena, na sociedade contemporânea, tem direitos declarados de
importância inegável, embora que ainda sejam sistematicamente violados na educação
contemporânea, na qual o atrelamento às políticas públicas, a torna muito suscetível e
mais visível à regulação.
Nesse sentido, pensar a relação das infâncias e a cidade, refletindo sobre o
direito à cidade (LEFEBVRE, 2001), torna-se uma experiência dialógica pela qual as
crianças se percebem e participam desses territórios, enquanto se constituem nele ao
mesmo tempo que o transformam, em um processo de conhecimento e apropriação.
Pensar caminhos outros de aproximação com os saberes das infâncias, pode ser uma
experiência de reconhecimento e fruição de diferentes sentidos produzidos na/da cidade,
buscando compreender como crianças se constituem como sujeitos de direitos em sua
relação com o território citadino.
Nas diferentes potências semióticas e multidisciplinares dos contextos urbanos,
facilitaria pensar em um fluxo de compromissos construídos entre crianças e adultos de
acordo com as possibilidades de contribuição e cooperação entre os grupos,
promovendo entre eles maior aproximação e observando suas formas de compartilhar
projetos, corresponsabilidades e solidariedades, que demande de atores diferentes, mas
horizontais, quando se entende, legitimamente, que as crianças podem exercer e praticar
com liberdade sua conquistada condição de sujeito e seu direito de participação. Apesar
de esbarrarmos ainda na concepção hegemônica de incompletude e incapacidade dos/as

sumário 1015
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pequenos/as, precisamos de resistência na desconstrução dessas naturalizações, para que


outras relações, com a participação das infâncias, se torne uma realidade social e
política.

(In)conclusões provisórias
Retomando a epígrafe do texto, qual seria a perspectiva certa para qual
Montaigne (2005) nos convida a lançar o nosso olhar sobre o mundo? Será que a
revolução burguesa foi capaz de promover a ruptura com a servidão, quando falamos de
classes populares ou do coletivo infantil? Afinal, o mundo contemporâneo ao qual
pertencemos é o mesmo para todos/as?
Nas relações que se estabeleceram entre Estado e Sociedade na modernidade, é
possível observar também as tensões e conflitos que atravessaram as transformações
desde o final da Idade Média até os dias atuais, mediadas por questões políticas e pela
disputa de poder. O mundo que historicamente vem sendo disputado, para Arendt
(1997) é o domínio público, no conjunto de obras e conhecimentos produzidos pela
humanidade. Para autora esse mundo também é político, que se traduz para ela em
mundo comum, espaço tangível onde os homens se relacionam no discurso e na ação,
em sua pluralidade, forma pela qual viveriam sua liberdade.
A radicalização da hierarquia em nossa sociedade (ocidental, capitalista,
globalizada, neoliberal), vem afetando as relações sociais, produzindo cada vez mais
marginalizados e destituindo-os em sua cidadania, em sua humanização. Homens,
mulheres e crianças, negros/as, homoafetivos, pessoas refugiadas não conseguem
estabelecer relações de pertencimento, na medida em que o capitalismo produz a
fragmentação, a exclusão, o preconceito. Se são marginais, como podem agir
politicamente? A crescente atomização dos indivíduos produzida pela sociedade de
mercado desumaniza cada vez mais.
Por outro lado, Pinóquio em suas peripécias citadinas, acaba ressignificando
suas relações de “educabilidade” (FREIRE, 1996), quando experiencia na cidade, com
suas ações, sua corporeidade, formas outras de ser e estar no mundo que o modificam e
produzem outros sentidos para o território. Se educa na cidade compreendendo
condições de construção de pertencimento que lhe outorgam certa autonomia e
solidariedade no encontro com o outro, mesmo antes de chegar à escola.
No contexto político, econômico e social no qual nos encontramos atualmente
no Brasil, faz-se necessário refletir à luz da constituição do Estado brasileiro para

sumário 1016
VII Seminário Vozes da Educação

buscar outras formas de ser e estar no mundo que não estejam condenadas ao
obscurantismo das notícias prontas, da velocidade das informações e da simplificação e
naturalização de nossas desigualdades. Nesse sentido, é importante nos questionarmos
sobre a educação passar de um direito social e subjetivo para tornar-se uma mercadoria,
um serviço a ser adquirido por aqueles que podem comprar. Como é possível inverter
tal lógica da ação educativa na atual conjuntura, enquanto vem crescendo o desinteresse
do capital pelos direitos sociais em favor da acumulação, resgate e manutenção dos
aparelhos de hegemonia, na contrapartida do aumento da descrença e desesperança
popular no Estado em geral (poderes Judiciário, Legislativo e Executivo),
desarticulando as mobilizações de resistência e conscientização das classes populares?
Com base nesse cenário que articula alguns eventos estruturais e conjunturais da
educação brasileira, é possível retornar à Freire (1967), considerando a inseparabilidade
entre educação e política, percebendo que entrelaçado a qualquer ato educativo há
valores, ideais e intenções que podem estar a serviço da humanização ou da
desumanização, da acomodação ou da participação. Se a educação está voltada para a
desumanização e acomodação o “homem rebaixa-se a puro objeto. Coisifica-se”
(FREIRE, idem). Assim, promover práticas educativas que impliquem a participação
ativa dos atores educativos, será propício no sentido de sua humanização, tornando-os
sujeitos críticos, atuantes, livres de fórmulas gerais ou prescrição, corrompendo a lógica
massificadora a que eram e mesmo hoje continuam sendo submetidos.
Defendemos que na cidade contemporânea ainda é possível buscar a
compreensão da multiplicidade de relações com o território vivido, nas especificidades
comunicativas que o abarcam e atravessam. Investigar sobre a relação de crianças,
“recém-chegados” (ARENDT, 1997), na/com a cidade, procurando complexificar seu
acolhimento nesse espaço relacional e formativo, que é o urbano, auxilia a refletir sobre
as relações tecidas no/com/sobre o território citadino e sua potência na constituição de
cidadãos/ãs mais conscientes, evidenciando formas de interação e construção de
pertencimento, pelas quais a cidade revela seus efeitos na (trans)formação de sujeitos
mais humanizados. Na aproximação com o “outro”, procurando conhecer as diferentes
lógicas das infâncias, vem se tornando possível aprender com as crianças a potência de
relacionar-se com o território (a rua, o bairro, a escola, a cidade) em que vivem de
forma mais autônoma e ativa, propiciando às crianças conhecer mais de seu passado,
participar mais de seu presente e ter a confiança de assumir a responsabilidade sobre seu
futuro na (e da) cidade.

sumário 1017
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Em uma perspectiva mais radical de democracia, o direito à educação passa a ser


o direito à experiência humana produzida na formação de sujeitos de direitos,
compreendendo homens, mulheres e crianças e respeitando todas as diferenças que as
relações humanas podem abarcar, isto é, buscar no direito à cidade um modo de
encontro com iguais.

Referências
ARENDT, H. A condição humana. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

BARROS, M. D. Poesia completa Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2013.

BOBBIO, N. Estado, governo e sociedade: por uma teoria geral da política. Tradução
de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.

BOÉTIE, E. D. L. O discurso da servidão voluntária. Tradução de Laymert Garcia


dos Santos. São Paulo: Parisiense, 1986.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília: [s.n.], 1988.

COLLODI, C. As aventuras de Pinóquio: história de uma marionete. Tradução de


Marina Colasanti. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1967.

______. Pedagogia da Autonomia. [S.l.]: Paz e Terra, 1996. Disponivel em:


<www.sabotagem.revolt.org>. Acesso em: 22 jun. 2017.

FRIGOTTO, G. Os circuitos da história e o balanço da educação no Brasil na primeira


década do século XXI. Revista Brasileira de Educação, v. 16, p. 235-274, jan-abr
2011. ISSN 46.

LEFEBVRE, H. O direiro à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

MAQUIAVEL, N. O príncipe. Tradução de Dominique Makins. São Paulo: Hunter


Books, 2011.

MARX, K. O capital [recurso eletrônico]: crítica da economia política: Livro 1: o


processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo,
2013.

______; ENGELS, F. O manifesto comunista. [S.l.]: Ridendo Castigat Mores, 1999.


Disponivel em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf>.
Acesso em: 02 maio 2019.

sumário 1018
VII Seminário Vozes da Educação

POULANTZAS, N. A materialidade institucional do Estado. In: POULANTZAS, N. O


Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

SANDER, B. Gestão educacional, concepções em disputa. Retratos da Escola,


Brasília, v. 3, p. 69-80, jan./jun. 2009. ISSN 4.

SANTOS, M. O espaço do cidadão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,


2014.

sumário 1019
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

CURRÍCULO NACIONAL DE EDUCACIÓN BÁSICA DE PERÚ


APROXIMACIONES SOCIO CRÍTICAS

Manuel Gonzalo Angulo León


mangulo@unc.edu.pe

María Elizabeth Zavaleta Chang


UNC
zavachang28@hotmail.com

Introducción
El Currículo Nacional -CN- es un instrumento de política educativa que orienta
la educación básica -EB- en Perú, con una duración de cinco años aproximadamente
desde su puesta en práctica. Expresa el perfil de egreso del estudiante de EBR y articula
todas las áreas curriculares, las competencias con sus estándares de aprendizaje, los
enfoques transversales en relación con la cotidianidad de la vida de los estudiantes y de
la comunidad educativa, a partir de enfocar necesidades y demandas sociales.
El Currículo Nacional de la Educación Básica -CNEB- surge como un
documento que permita articular los tres niveles de la educación básica regular, y lo que
también se espera de la educación básica alternativa y de la educación básica especial
atendiendo las necesidades de estudiantes.
El CNEB, es también una herramienta pedagógica valiosa para maestros, en
cuanto le da sentido común al conjunto de esfuerzos para la mejora de los aprendizajes,
del desarrollo docente, mismo que tiene que equiparse con todo un arsenal pedagógico:
saberes, estrategias, metodologías, transposición didáctica, instrumentos de evaluación,
enfoques pedagógicos, dominio conceptual, y sobre todo con una profunda formación
ética y dominio socio emocional para promueve las habilidades blandas y formación
integral. Como herramienta de gestión promueve la mejora de procesos, el abordaje del
contexto, la pertinencia entre lo que la escuela enseña, lo que el estudiante aprende y la
sociedad demanda.

sumário 1020
VII Seminário Vozes da Educação

Cuadro 1. Estructura del CNEB


• Perfil de egreso de Educación Básica
• Enfoques transversales
• Competencias nacionales y sus capacidades
• Progresión del inicio al final del aprendizaje (estándares de aprendizaje)
• Organización de la Educación básica y planes de estudio
• Orientaciones pedagógicas para el desarrollo de competencias
• Orientaciones para evaluación formativa por competencias
• Orientaciones para diversificación curricular
Fuente: Elaboración propia a partir de la información del CNEB

Especificando a cada uno de estos componentes del Currículo Nacional:


El perfil de egreso como visión común e integral de los aprendizajes que
deben lograr los estudiantes al término de la Educación Básica. Esta visión permite
unificar criterios y establecer una ruta hacia resultados comunes que respeten la
diversidad social, cultural, biológica y geográfica. Promueve que el niño desde que
inicia la escolaridad hasta que culmina el quinto grado de educación secundaria lo
pueda lograr de manera progresiva y se pueda evidenciar en su formación y desarrollo
personal.

sumário 1021
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Esquema 1. Perfil de egreso como visión común de los estudiantes de la educación


básica

El estudiante comprende y El estudiante se reconoce El estudiante propicia la vida en


aprecia la dimensión espiritual y como persona valiosa y se democracia a partir del reconocimiento
religiosa en la vida de las identifica con su cultura en de sus derechos y responsabilidades y
personas y de la sociedad. diferentes contextos de la comprensión de nuestro país y
del mundo
El estudiante desarrolla
procesos autónomos de .. El estudiante practica una vida activa y
aprendizaje en forma saludable para su bienestar, cuida su
permanente para la mejora cuerpo e interactúa respetuosamente en la
continua de su proceso de práctica de distintas actividades físicas,
aprendizaje y de sus cotidianas o deportivas
resultados.
El estudiante aprecia manifestaciones
El estudiante aprovecha artístico-culturales para comprender
responsablemente las el aporte del arte a la cultura y a la
tecnologías de la información y sociedad, y crea proyectos artísticos
de la comunicación (TIC) para utilizando los diversos lenguajes del
interactuar con la información, arte para comunicar sus ideas a otros.
gestionar su comunicación y
aprendizaje. . El estudiante se comunica en su
lengua materna, en castellano como
El estudiante gestiona proyectos de segunda lengua y en inglés como lengua
emprendimiento económico o social de extranjera de manera asertiva y responsable
manera, ética, que le permiten articularse para interactuar con otras personas en
con el mundo del trabajo y con el desarrollo diversos contextos y con distintos propósitos
social, económico y ambiental del entorno.
El estudiante indaga y comprende el mundo natural
El estudiante interpreta la realidad y toma y artificial utilizando conocimientos científicos en
decisiones a partir de conocimientos matemáticos diálogo con saberes locales para mejorar la calidad
que aporten a su contexto. de vida y cuidando la naturaleza.

Fuente: Adaptado del CNEB.

El perfil de egreso está enfocado al desarrollo integral de las personas en cuatro


ámbitos: (Ley General de Educación N° 28044) social, de conocimientos, personal y
laboral.
En el ámbito Social:
• Que propicie la vida en democracia a partir del reconocimiento de sus derechos
y responsabilidades y de la comprensión de nuestro país y del mundo.
• Que se comunique en su lengua materna, en castellano como segunda lengua y
en inglés como lengua extranjera de manera asertiva y responsable para
interactuar con otras personas en diversos contextos y con distintos propósitos.

sumário 1022
VII Seminário Vozes da Educação

• Que aprecie manifestaciones artístico-culturales para comprender el aporte del


arte a la cultura y a la sociedad, y cree proyectos artísticos utilizando los
diversos lenguajes del arte para comunicar sus ideas a otros.

En el ámbito de Conocimiento:
• Que pueda indagar y comprender el mundo natural y artificial utilizando
conocimientos científicos en diálogo con saberes locales para mejorar la calidad
de vida y cuidando la naturaleza.
• Que interprete la realidad y tome decisiones a partir de conocimientos
matemáticos que aporten a su contexto.
• Que desarrolle procesos autónomos de aprendizaje en forma permanente para la
mejora continua de su proceso de aprendizaje y de sus resultados.

En el ámbito Personal:
• Que se conozca como persona valiosa y se identifique con su cultura en
diferentes contextos.
• Que comprenda y aprecie la dimensión espiritual y religiosa en la vida de las
personas y de la sociedad.
• Que practique una vida activa y saludable para su bienestar, cuide su cuerpo e
interactúe respetuosamente en la práctica de distintas actividades físicas,
cotidianas o deportivas.

En el ámbito Laboral:
• Que gestione proyectos de emprendimiento económico o social de manera,
ética, que le permitan articularse con el mundo del trabajo y con el desarrollo
social, económico y ambiental del entorno.
• Que aproveche responsablemente las tecnologías de la información y de la
comunicación (TIC) para interactuar con la información, gestionar su
comunicación y aprendizaje.

Para lograr este perfil se tiene que unificar los criterios y establecer una ruta para
alinear las 31 competencias con sus capacidades y mirando en todo momento los

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

estándares de aprendizaje articulándolo con los enfoques transversales en el marco de la


evaluación formativa.
El CNEB está estructurado en base acuatro definiciones curriculares claves, que
permiten concretar en la práctica educativa las intenciones que se expresan en el perfil
de egreso. Los cuatro conceptos corresponden a competencias, capacidades, estándares
de aprendizaje y desempeños.
Competencia se comprende como la facultad que tiene la persona de combinar
un conjunto de capacidades a fin de lograr un propósito específico en una situación
determinada, actuando de manera pertinente y con sentido ético. La capacidad, como
los recursos para actuar de manera competente. Estos recursos son conocimientos,
habilidades y actitudes que los estudiantes utilizan para afrontar una situación
determinada. Estas capacidades suponen operaciones menores implicadas en las
competencias, que son operaciones más complejas; los estándares de aprendizaje,
como descripciones del desarrollo de la competencia en niveles de creciente
complejidad, desde el inicio hasta el fin de la educación básica, de acuerdo a la
secuencia que sigue la mayoría de las estudiantes que progresan en una competencia
determinada. Asimismo, defina el nivel que se espera puedan alcanzar todos los
estudiantes al finalizar los ciclos de la educación básica y por último los desempeños,
como descripciones específicas de lo que hacen los estudiantes respecto a los niveles de
desarrollo de las competencias (estándares de aprendizaje). Además, ilustran algunas
actuaciones que los estudiantes demuestran cuando están en proceso de alcanzar el nivel
esperado de la competencia o cuando han logrado este nivel.

Los enfoques transversales


Los enfoques transversales aportan concepciones importantes sobre el ser
humano, su relación con los demás, con el entorno y con el espacio común y se traducen
en formas específicas de actuar, que constituyen valores y actitudes que tanto
estudiantes, maestros y autoridades, deben esforzarse por demostrar en la dinámica
diaria de la escuela. Formas de actuar como empatía, solidaridad, respeto, honestidad y
otras se deben traducir en actitudes y en comportamientos observables. Los enfoques
transversales son los que aportan las perspectivas, concepciones del mundo y de las
personas en determinados ámbitos de la vida social y cultural.
Según el CNEB, los enfoques transversales se impregnan en las competencias
permitiendo que los estudiantes puedan desarrollar la formación y vivencia de valores y

sumário 1024
VII Seminário Vozes da Educação

en el caso de los maestros orienta en todo momento el trabajo pedagógico en aula


durante todos los procesos educativos.

Esquema 2. Los enfoques transversales del CNEB

De derechos Inclusión o
Búsqueda de de atención
la excelencia a la
diversidad

Enfoques
Orientación transversales
al bien Intercultural
común

Igualdad de
Ambiental género

Fuente: Elaboración propia a partir de la información del CNEB

Los enfoques transversales generan un compromiso en todos los agentes de la


educación como: dar testimonio de equidad y justicia en todos los ámbitos de la vida
escolar. Teniendo siempre presente que el aprendizaje de valores no es producto de un
adoctrinamiento ni de condicionamiento alguno, sino de la modelación de los
comportamientos y la oportunidad de reflexión, diálogo y discusión sobre situaciones
cotidianas, en el aula, la escuela y el mundo social.

Competencias y sus capacidades


Las competencias promueven ser competente al combinar las capacidades y
también determinadas características personales, con habilidades socioemocionales que
hagan más eficaz su interacción con otros. Recordemos que el desarrollo de las
competencias de los estudiantes es una construcción constante, deliberada y consciente,
propiciada por los docentes y las instituciones y programas educativos. Este desarrollo
se da a lo largo de la vida y tiene niveles esperados en cada ciclo de la escolaridad.
El desarrollo de las competencias del Currículo Nacional permite el logro del
perfil de egreso. Estas competencias se desarrollan en forma vinculada, simultánea y

sumário 1025
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

sostenidas durante la experiencia educativa. Además, que se prolongarán y de


combinarán con otras a lo largo de la vida.

Cuadro 2. Competencias con sus respectivas capacidades

N° COMPETENCIA CAPACIDADES
1 Construye su • Se valora a sí mismo
identidad • Autorregula sus emociones
• Reflexiona y argumenta éticamente
• Vive su sexualidad de manera integral y responsable de acuerdo con
su etapa de desarrollo y madurez.
2 Se desenvuelve de • Comprende su cuerpo
manera autónoma a • Se expresa corporalmente
través de su
motricidad
3 Asume una vida • Comprende las relaciones entre la actividad física, alimentación,
saludable postura e higiene y la salud
• Incorpora prácticas que mejoran su calidad de vida
4 Interactúa a través de • Se relaciona utilizando sus habilidades sociomotrices
sus habilidades • Crea y aplica estrategias y tácticas de juego
sociomotrices
5 Aprecia de manera • Percibe manifestaciones artístico-culturales
crítica manifestaciones • Contextualiza las manifestaciones artístico-culturales
artístico-culturales • Reflexiona creativa y críticamente sobre las manifestaciones
artístico-culturales
6 Crea proyectos desde • Explora y experimenta los lenguajes de las artes
los lenguajes artísticos • Aplica procesos de creación
• Evalúa y comunica sus procesos y proyectos
7 Se comunica • Obtiene información de textos orales
oralmente en su • Infiere e interpreta información de textos orales
lengua materna • Adecua, organiza y desarrolla las ideas de forma coherente y
cohesionada
• Utiliza recursos no verbales y paraverbales de forma estratégica
• Interactúa estratégicamente con distintos interlocutores
• Reflexiona y evalúa la forma, el contenido y el contexto del texto
oral
8 Lee diversos tipos de • Obtiene información del texto escrito
textos escritos en su • Infiere e interpreta información del texto
lengua materna • Reflexiona y evalúa la forma, el contenido y el contexto del texto
escrito
9 Escribe diversos tipos • Adecúa el texto a la situación comunicativa
de textos en lengua • Organiza y desarrolla las ideas de forma coherente y cohesionada
materna • Utiliza convenciones del lenguaje escrito de forma pertinente
• Reflexiona y evalúa
10 Se comunica • Obtiene información de textos orales
oralmente en • Infiere e interpreta información de textos orales
castellano como • Adecúa, organiza y desarrolla las ideas de forma coherente y
segunda lengua cohesionada
• Utiliza recursos no verbales y paraverbales de forma estratégica
• Interactúa estratégicamente con distintos interlocutores
• Reflexiona y evalúa la forma, el contenido y el contexto del texto
oral
16 Convive y participa • Interactúa con todas las personas
democráticamente en • Construye y asume acuerdos y normas
la búsqueda del bien • Maneja conflictos de manera constructiva
común • Delibera sobre asuntos públicos
• Participa en acciones que promueven el bienestar común

sumário 1026
VII Seminário Vozes da Educação

N° COMPETENCIA CAPACIDADES
17 Construye • Interpreta críticamente fuentes diversas
interpretaciones • Comprende el tiempo histórico
históricas • Explica y argumenta procesos históricos
18 Gestiona • Comprende las relaciones entre los elementos naturales y sociales
responsablemente el • Maneja fuentes de información para comprender el espacio
espacio y el ambiente geográfico y el ambiente
• Genera acciones para preservar el ambiente local y global
19 Gestiona • Comprende las relaciones entre los elementos del sistema económico
responsablemente los y financiero
recursos económicos • Toma decisiones económicas y financieras
20 Indaga mediante • Problematiza situaciones
métodos científicos • Diseña estrategias para hacer indagación
para construir • Genera y registra datos e información
conocimientos • Analiza datos e información
• Evalúa y comunica el proceso y los resultados de su indagación
21 Explica el mundo • Comprende y usa conocimientos sobre los seres vivos; materia y
físico basándose en energía; biodiversidad, Tierra y universo
conocimientos sobre • Evalúa las implicancias del saber y del quehacer científico y
los seres vivos; tecnológico
materia y energía;
biodiversidad, Tierra y
universo
22 Diseña y construye • Determina una alternativa de solución tecnológica
soluciones • Diseña la alternativa de solución tecnológica
tecnológicas para • Implementa y valida alternativa de solución tecnológica
resolver problemas de • Evalúa y comunica el funcionamiento y los impactos de su
su entorno alternativa de solución tecnológica
23 Resuelve problemas • Traduce cantidades a expresiones numéricas
de cantidad • Comunica su comprensión sobre los números y las operaciones
• Usa estrategias y procedimientos de estimación y cálculo
• Argumenta afirmaciones sobre las relaciones numéricas y las
operaciones
24 Resuelve problemas • Traduce datos y condiciones a expresiones algebraicas
de regularidad, • Comunica su comprensión sobre las relaciones algebraicas
equivalencia y cambio • Usa estrategias y procedimientos para encontrar reglas generales
• Argumenta afirmaciones sobre relaciones de cambio y equivalencia
27 Gestiona proyectos de • Crea propuestas de valor
emprendimiento • Trabaja cooperativamente para lograr objetivos y metas
económico o social • Aplica habilidades técnicas
• Evalúa los resultados del proyecto de emprendimiento
28 Se desenvuelve en • Personaliza entornos virtuales
entornos virtuales • Gestiona información del entorno virtual
generados por las TIC • Interactúa en entornos virtuales
• Crea objetos virtuales en diversos formatos
29 Gestiona su • Define metas de aprendizaje
aprendizaje de manera • Organiza acciones estratégicas para alcanzar sus metas de
autónoma aprendizaje
• Monitorea y ajusta su desempeño durante el proceso de aprendizaje
Fuente: CNEB.

Estándares de aprendizaje por competencia


Los estándares de aprendizaje son importantes porque nos muestra lo que se
intenta lograr de la competencia en función a cada ciclo de estudios, se evidencia un
nivel de complejidad en función del desarrollo bio-psico-social del estudiante, tengamos

sumário 1027
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

en cuenta que estos niveles de complejidad del logro de la competencia no quiere decir
que se tiene que uniformizar a los estudiantes, sino que se encontrará una variedad de
niveles de logro de la misma, pero nos permitirá a los docentes tener un parámetro de
referencia para poder elaborar la programación curricular.

Cuadro 1: Niveles de complejidad del estándar de evaluación referente a la


competencia
Nivel Descripción de los niveles del desarrollo de la competencia
Escribe diversos tipos de textos de forma reflexiva. Adecúa su texto al destinatario, propósito, el
registro y el estilo a partir de su experiencia previa, de fuentes de información complementarias y
divergentes, y de su conocimiento del contexto histórico y sociocultural. Organiza y desarrolla
lógicamente las ideas en torno a un tema, y las estructura en párrafos, capítulos y apartados de
acuerdo con distintos géneros discursivos. Establece relaciones entre ideas a través del uso
D preciso de diversos recursos cohesivos. Emplea vocabulario variado, especializado y preciso, así
como una variedad de recursos ortográficos y textuales para darle claridad y sentido a su texto.
Reflexiona y evalúa de manera permanente la validez de la información, el uso de estructuras
sintácticas con fines comunicativos y el estilo en el texto que escribe; controla el lenguaje para
analizar críticamente diversas posturas, posicionar ideas, contraargumentar, reforzar, matizar o
sugerir sentidos y producir diversos efectos en el lector según la situación comunicativa.
Escribe diversos tipos de textos de forma reflexiva. Adecúa su texto al destinatario, propósito y el
registro a partir de su experiencia previa, de fuentes de información complementarias y
divergentes, y de su conocimiento del contexto histórico y sociocultural. Organiza y desarrolla
lógicamente las ideas en torno a un tema, y las estructura en párrafos, capítulos o apartados de
acuerdo con distintos géneros discursivos. Establece relaciones entre ideas a través del uso
7
preciso de diversos recursos cohesivos. Emplea vocabulario variado, especializado y preciso, así
como una variedad de recursos ortográficos y textuales para darle claridad y sentido a su texto.
Reflexiona y evalúa de manera permanente la validez de la información, la coherencia y cohesión
de las ideas en el texto que escribe; controla el lenguaje para contraargumentar, reforzar o sugerir
sentidos y producir diversos efectos en el lector según la situación comunicativa.
Escribe diversos tipos de textos de forma reflexiva. Adecúa su texto al destinatario, propósito y el
registro a partir de su experiencia previa y de fuentes de información complementarias. Organiza
y desarrolla lógicamente las ideas en torno a un tema, y las estructura en párrafos y subtítulos de
acuerdo a algunos géneros discursivos. Establece relaciones entre ideas a través del uso adecuado
de varios tipos de conectores, referentes y emplea vocabulario variado. Utiliza recursos
6
ortográficos y textuales para separar y aclarar expresiones e ideas, así como diferenciar el
significado de las palabras con la intención de darle claridad y sentido a su texto. Reflexiona y
evalúa de manera permanente la coherencia y cohesión de las ideas en el texto que escribe, así
como el uso del lenguaje para argumentar, reforzar o sugerir sentidos y producir diversos efectos
en el lector según la situación comunicativa.
Escribe diversos tipos de textos de forma reflexiva. Adecúa su texto al destinatario, propósito y el
registro, a partir de su experiencia previa y de algunas fuentes de información complementarias.
Organiza y desarrolla lógicamente las ideas en torno a un tema y las estructura en párrafos.
Establece relaciones entre ideas a través del uso adecuado de algunos tipos de conectores y de
5 referentes; emplea vocabulario variado. Utiliza recursos ortográficos para separar expresiones,
ideas y párrafos con la intención de darle claridad y sentido a su texto. Reflexiona y evalúa de
manera permanente la coherencia y cohesión de las ideas en el texto que escribe, así como el uso
del lenguaje para argumentar o reforzar sentidos y producir efectos en el lector según la situación
comunicativa.
Escribe diversos tipos de textos de forma reflexiva. Adecúa su texto al destinatario, propósito y el
registro a partir de su experiencia previa y de alguna fuente de información. Organiza y desarrolla
lógicamente las ideas en torno a un tema. Establece relaciones entre ideas a través del uso
4
adecuado de algunos tipos de conectores y de referentes; emplea vocabulario variado. Utiliza
recursos ortográficos básicos para darle claridad y sentido a su texto. Reflexiona sobre la
coherencia y cohesión de las ideas en el texto que escribe, y explica el uso de algunos recursos

sumário 1028
VII Seminário Vozes da Educação

textuales para reforzar sentidos y producir efectos en el lector según la situación comunicativa.
Escribe a partir de sus hipótesis de escritura diversos tipos de textos sobre temas variados
considerando el propósito y el destinatario a partir de su experiencia previa. Desarrolla sus ideas
2
en torno a un tema con la intención de transmitir ideas o emociones. Sigue la linealidad y
direccionalidad de la escritura.
Este nivel tiene como base principalmente el nivel 1 de la competencia “Se comunica oralmente
1
en su lengua materna”.
Fuente: CNEB.

Orientaciones pedagógicas para el desarrollo de competencias


Se presenta siete procesos a ser considerados durante la planificación, ejecución
y evaluación de los procesos de enseñanza y aprendizaje en los espacios educativos, que
orientan el desarrollo de las competencias.

Esquema 3. Procesos pedagógicos para el desarrollo de competencias

Generar interés y
Partir de
disposición como Aprender Partir de los
situaciones
condición de haciendo saberes previos
significativas
aprendizaje

Mediar el progreso
Construir el Aprender del Generar el de los estudiantes
nuevo error o el error conflicto de un nivel de
conocimiento constructivo cognitivo aprendizaje a otro
superior

Promover el Promover el
trabajo pensamiento
cooperativo complejo

Fuente: Elaboración propia a partir de la información del CNEB

Orientaciones para la evaluación formativa


En las tendencias pedagógicas contemporáneas, la idea de evaluación ha
evolucionado significativamente. Entendida como una práctica centrada en el
aprendizaje del estudiante, que lo retroalimenta oportunamente con respecto a sus
progresos durante todo el proceso de enseñanza y aprendizaje. La evaluación, entonces,
diagnostica, retroalimenta y posibilita acciones para el progreso del aprendizaje de los
estudiantes.
La evaluación como un proceso permanente de comunicación y reflexión sobre
los resultados de los aprendizajes de los estudiantes. Este proceso se considera

sumário 1029
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

formativo, integral y continuo, y busca identificar los avances, dificultades y logros de


los estudiantes con el fin de brindarles el apoyo pedagógico que necesiten para mejorar.
El objeto de evaluación son las competencias del CNEB, que se evalúan
mediante criterios, niveles de logro, así como técnicas e instrumentos que recogen
información para tomar decisiones que retroalimenten al estudiante y a los propios
procesos pedagógicos. Así, la evaluación cumple un papel no solo para certificar qué
sabe un estudiante, sino también para impulsar la mejora de los resultados educativos y
de la práctica docente. Este enfoque es válido para todas las modalidades y niveles de la
Educación Básica.
El enfoque que sustenta la evaluación de los aprendizajes es el enfoque
formativo. Desde este enfoque, la evaluación es un proceso sistemático en el que se
recoge y valora información relevante acerca del nivel de desarrollo de las
competencias en cada estudiante, con el fin de contribuir oportunamente a mejorar su
aprendizaje y a valorar el desempeño de los estudiantes al resolver situaciones o
problemas que signifiquen retos genuinos para ellos y que les permitan poner en juego,
integrar y combinar diversas capacidades.
A nivel de docente, la evaluación formativa permite atender a la diversidad de
necesidades de aprendizaje, brindando oportunidades diferenciadas en función de los
niveles alcanzados por cada uno, a fin de acortar brechas y evitar el rezago, la deserción
o la exclusión. Además, permite al docente seleccionar o diseñar situaciones
significativas.
Entendemos por situación significativa un problema o un desafío diseñado por
los docentes con una intención pedagógica. Esta se caracteriza por despertar inquietud,
curiosidad e interés por parte de los estudiantes, lo que requiere que esté directamente
relacionada con sus contextos, intereses y necesidades. Solo así podría representar un
desafío y motivarlos a poner en juego todas sus capacidades. Se les llama
“significativas” no porque posean un significado importante en sí mismas para el
docente, sino porque a los estudiantes logran hacerles sentido, generar conocimiento
explicativo de un fenómeno, discutir o retar a mejorar algo existente, crear un nuevo
objeto, comprender o resolver una contradicción u oposición entre dos o más
conclusiones, teorías, enfoques, perspectivas o metodologías. Para que sean
significativas, las situaciones deben despertar el interés de los estudiantes, articularse
con sus saberes previos para construir nuevos aprendizajes y ser desafiantes pero
alcanzables de resolver por los estudiantes.

sumário 1030
VII Seminário Vozes da Educação

Como parte del enfoque de la evaluación formativa, la retroalimentación


consiste en devolver al estudiante información que describa sus logros o progresos en
relación con los niveles esperados para cada competencia. Esta información le permite
comparar lo que debió hacer y lo que intentó lograr con lo que efectivamente hizo.
Además, debe basarse en criterios claros y compartidos, ofrecer modelos de trabajo o
procedimientos para que el estudiante revise o corrija.
Una retroalimentación es eficaz cuando el docente observa el trabajo del
estudiante, identifica sus errores recurrentes y los aspectos que más atención requieren.
Es necesario concentrarse en preguntas como ¿Cuál es el error principal? ¿Cuál es la
razón probable para cometer ese error? ¿Qué necesita saber para no volver a cometer
ese error? ¿Cómo puedo guiar al estudiante para que evite el error en un futuro? ¿Cómo
pueden aprender los estudiantes de este error? La retroalimentación, sea oral o escrita,
tiene que ofrecerse con serenidad y respeto, debe entregarse en el momento oportuno,
contener comentarios específicos y reflexiones, e incluir sugerencias que le ayuden al
estudiante a comprender el error y tener claro cómo superarlo para poder mejorar su
desempeño. El error se asume como un error constructivo, cuando el docente lo
aprovecha como una oportunidad para hacer reflexionar al estudiante y permitirle
aprender sobre el mismo.

Orientaciones para la diversificación curricular


En el mundo de hoy, el desarrollo curricular transcurre alrededor de la necesidad
de establecer un horizonte educativo común para todos los estudiantes, con el propósito
de resguardar el derecho a una educación de calidad. Desde esta perspectiva, el
currículo aspira a reconocer las diferencias individuales en todas sus dimensiones, así
como la riqueza cultural, étnica y lingüística de una nación.
Perú es también un país diverso, por lo que requiere, además, una educación que
considere todas las diferencias y sea pertinente a ellas. Que los estudiantes de todas las
regiones en el Perú tengan acceso a oportunidades para lograr aprendizajes comunes y,
también, aprendizajes diferenciados en función de sus propias realidades.
Según las normas vigentes del Perú, el currículo nacional tiene las siguientes
características:
• Flexible, porque ofrece un margen de libertad que permita la adaptación a la
diversidad de estudiantes y a las necesidades y demandas de cada región.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

• Abierto, ya que en él pueden incorporarse competencias de acuerdo al


diagnóstico de las potencialidades naturales, culturales y económico-productivas
de cada región, así como a sus demandas sociales y a las características
específicas de los estudiantes.
• Diversificado, pues es en él cada región ofrece a las instancias locales los
lineamientos de diversificación, los cuales orientan a las instituciones educativas
en la adecuación del currículo a las características y demandas socioeconómicas,
lingüísticas, geográficas y culturales de cada región mediante un trabajo
colegiado.
• Integrador, porque el Perfil de egreso, competencias, capacidades, estándares de
aprendizaje y áreas curriculares conforman un sistema que promueve su
implementación en las escuelas.
• Valorativo, en tanto responde al desarrollo armonioso e integral del estudiante y
promueve actitudes positivas de convivencia social, democratización de la
sociedad y ejercicio responsable de la ciudadanía.
• Significativo, ya que toma en cuenta las experiencias, conocimientos previos y
necesidades de los estudiantes.
• Participativo, porque lo elabora la comunidad educativa junto a otros actores de
la sociedad; por tanto, está abierto a enriquecerse permanentemente y respeta la
pluralidad metodológica.

El Perfil de egreso, entendido como la visión común e integral de lo que deben


lograr todos los estudiantes del país al término de la Educación Básica, que orienta al
sistema educativo a desarrollar su potencial humano en esa dirección, tanto en el nivel
personal, social y cultural como laboral, dotándolos de las competencias necesarias para
desempeñar un papel activo y ético en la sociedad y seguir aprendiendo a lo largo de la
vida.

Referencias
MINISTERIO DE EDUCACIÓN DEL PERÚ. Currículo Nacional de la Educación
Básica: Perú: 2016.

MINISTERIO DE EDUCACIÓN DEL PERÚ. Ley General de Educación No 28044:


Perú: 2003.

sumário 1032
VII Seminário Vozes da Educação

MINISTERIO DE EDUCACIÓN DEL PERÚ. Marco del Buen Desempeño Docente:


Perú: 2014.

OECD. Evaluación formativa: mejora del aprendizaje en las aulas de secundaria.


Recuperado el 16 de marzo del 2016, de http://www.oecd.org/edu/ceri/35661078.

UNESCO. Replantear la educación ¿Hacia un bien común mundial? Recuperado el 16


de marzo del 2016, de http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002326/232697s.pdf.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ORGANIZAÇÃO POPULAR E A LUTA POR CRECHES PÚBLICAS NO


MUNICÍPIO DE NOVA IGUAÇU – RJ

Lidiane Barros Lobo


UERJ/FEBF
lidlobo@gmail.com

O trabalho que se apresenta é parte da pesquisa intitulada “Quem manda na


escola pública? Marcos para análise das políticas educacionais de Nova Iguaçu”
realizada durante o Mestrado em Educação, Cultura e Comunicação, da Faculdade de
Educação da Baixada Fluminense (UERJ/FEBF), entre os anos de 2017 e 2019, onde
estabeleceu-se como objetivo a análise das políticas educacionais implementadas pela
Ditadura Civil-Militar, e seus reflexos no campo educacional do município de Nova
Iguaçu, Rio de Janeiro, até o ano de 1988, quando um novo marco regulatório é
instituído no país: a Constituição Federal.
A partir do estudo desenvolvido, onde se adotou a perspectiva materialista
histórico-dialética, buscou-se identificar a totalidade das ações que constituem o objeto
apontado: o campo educacional do município de Nova Iguaçu entre os anos de 1964 e
1988. Neste sentido, definimos como metodologia para obtenção dos dados: 1.
entrevista com atores com participação relevante no período abordado em relação ao
campo educacional. 2. Pesquisa nos principais periódicos em circulação à época, a partir
de consulta à página da Hemeroteca Digital.
Diante destas informações, o recorte que agora apresentaremos trata da criação
das primeiras creches públicas do município de Nova Iguaçu, em 1988, a partir da luta
dos movimentos de bairros, em um período de ascenso das organizações populares e de
classe. Destaca-se que o momento político vivido no Brasil, a partir da transição política
e dos debates em torno da Constituinte, reverberou nas ações organizadas no local,
gerou mudanças na concepção do atendimento de crianças da primeira infância,
possibilitando o surgimento das primeiras unidades sob responsabilidade do Poder
Público Municipal.

sumário 1034
VII Seminário Vozes da Educação

Conjuntura Nacional
O processo de reorganização da economia capitalista no mundo, que ensejou
mudanças nos rumos internos da economia brasileira, afetaria de maneira incisiva o
cenário nacional, projetando ações no campo educacional inspiradas nas orientações de
organismos internacionais dos grandes centros do capitalismo. Nesta geopolítica, a
relação de dependência do Brasil neste contexto determinaria o caráter destas ações. A
pretexto de crescimento da economia nacional e da modernização do país, o pensamento
que se constituiu como princípio operador na construção de legislações, projetos e
medidas na área visou posicionar as políticas educacionais no contexto de sua posição
no mapa da ordem econômica capitalista, como aponta Romanelli (1989):

É nesse sentido que se coloca a modernização como expressão, tanto de


integração centro-periferia, quanto de dominação em âmbito interno e
externo. Internamente, ela aciona mecanismos mais eficientes de controle,
quer no setor da administração pública, quer no setor da administração
privada, enquanto compartimentaliza a produção e o trabalho em qualquer
âmbito, eliminando ou diminuindo os perigos da integração social dos
trabalhadores e a visão crítica do conjunto do sistema produtivo (p. 195).

Neste sentido, é possível entender as razões que levariam a Ditadura Militar a


aprofundar¹ as relações com os setores privatistas ligados ao setor da educação, fazendo
crescer o lucro destes em detrimento do aumento do investimento nas unidades
mantidas pelo setor público. A educação, vista como um grande negócio, possibilitaria
não apenas a formação de mão de obra especializada e conformada, mas também um
nicho de acumulação para determinados grupos, como nos afirma Cunha (2002):

Vitorioso o golpe de 1964, subiram ao poder os defensores do privatismo na


educação, aqueles que defendiam a desmontagem ou, pelo menos, a
desaceleração do crescimento da rede pública de ensino. Em compensação,
as verbas públicas destinadas ao ensino deveriam ser transferidas às escolas
particulares que, então, se encarregariam da escolarização das crianças e dos
jovens. Só onde a iniciativa particular não tivesse interesse em abrir escolas é
que a escola pública seria bem-vinda. (p. 41)

Assim, apesar da crescente demanda, impulsionada pelo aumento populacional e


o aumento da escolaridade obrigatória, que a partir da Lei de Diretrizes e Bases 5692/71
passou de 4 para 8 anos, o número de escolas públicas não corresponderia a estes
anseios.

sumário 1035
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Internamente, a conjuntura da década de 1980 também viria refletir a crise do


regime, em busca de saídas seguras para a manutenção do domínio das frações
dominantes. O crescente número de denúncias da violência do Estado contra seus
opositores e o ascenso dos movimentos populares e de classe, que se colocavam não
apenas contra o autoritarismo, mas sobretudo em busca da melhoria de vida para a
população, dariam o tom destes últimos anos da Ditadura Civil-Militar no Brasil. Era
necessário construir a transição política.

O atendimento de crianças da primeira infância


Já tratamos, em linhas acima, dos princípios que norteariam a educação nacional
no período em tela. Neste sentido, a Reforma do Ensino implementada em 1971 (Lei de
Diretrizes e Bases 5692/71) preconizaria ações para a educação de 1º e 2º graus. O
atendimento das crianças entre 0 e 6 anos ainda estaria relegada às ações vinculadas ao
campo da assistência social, ainda muito identificadas às ideias do cuidado e do
amparo. Os programas para atendimento desta demanda específica implementados pelo
Governo Federal a partir da Ditadura Civil-Militar, conforme orientações de organismos
internacionais, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e a
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO),
conforme nos aponta Rosemberg:

Durante os governos militares, o Estado formulou uma política de intensa


expansão da oferta de vagas, configurando à educação infantil um perfil de
atendimento de massa, principalmente por meio de programas implantados
pelos extintos Movimento Brasileiro de Alfabetização - MOBRAL e Legião
Brasileira de Assistência – LBA. Apoiado numa concepção de educação
compensatória, preparando crianças consideradas carentes para o ingresso no
ensino fundamental (...) O modelo foi nitidamente influenciado, no início,
por propostas elaboradas e divulgadas pelas organizações
intergovernamentais, em especial a UNICEF e a UNESCO (ROSEMBERG,
1999. s/p).

Neste contexto, as ações implementadas pelo Departamento Nacional da


Criança² tem similaridades com as proposições apresentadas no documento elaborado
em 1965 pela Conferência Latinoamericana sobre a Infância e a Juventude no
Desenvolvimento Nacional, organizada pelo UNICEF, e “trazendo a ideia de simplificar
as exigências básicas para instituições educacionais e implantar modelo de baixo custo,
ancorado nas ideias de desenvolvimento da comunidade” (FERNANDES, 2016. p. 48).

sumário 1036
VII Seminário Vozes da Educação

Entre suas principais ações, destacam-se aquelas vinculadas à “alimentação


infantil e ao escolar” (VIEIRA, 1988. p.06) “quando se tornou executor nacional dos
programas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) nessa área. (IDEM).
Kuhlmann (2000) destaca, na criação do Plano de Assistência ao Pré-Escolar, em 1967,
a indicação de “igrejas de diferentes denominações para a implantação dos Centros de
Recreação, propostos como programas de emergência para atender crianças de 2 a 6
anos. (p. 14), favorecendo assim a organização de ações comunitárias vinculadas ou
apoiadas pela Igreja Católica, como veremos agora.

A atuação da Diocese de Nova Iguaçu junto aos movimentos populares


Um elemento importante para a compreensão da totalidade deste cenário é a
análise da atuação da Diocese de Nova Iguaçu, fundamentalmente durante o bispado de
Dom Adriano Hipólito (entre 1966 e 1994), que passaria a desenvolver ações de viés
progressista, assumindo uma estreita identificação com os movimentos populares. O
papel desempenhado por este bispo demarcaria o posicionamento da igreja no local,
assumindo características que iriam além da ação pastoral, ensejando a conscientização
política, abrigando militantes perseguidos pela Ditadura, fomentando e apoiando
iniciativas populares, como a criação do Movimento de Amigos de Bairros (MAB).

A influência da Igreja católica, notadamente aqueles setores que


estiveram vinculados e influenciados pelas propostas “progressistas” do
Concílio Vaticano II e da Conferência Episcopal de Medellín, na Colômbia,
também aparece na base de formação do movimento de Amigos de Bairros
de Nova Iguaçu. (SÓTENOS, 2016. p. 59) (Aspas do autor)

Sobre a atuação desta Diocese nos anos iniciais da Ditadura Civil-Militar,


Mainwaring (2004) aponta que:

Coincidindo com o fechamento da sociedade civil, a Igreja começou a criar


grupos comunitários, - círculos operários, clubes de mães, grupos de jovens,
clubes de catecismo – que discutiam a fé e a realidade social. Durante os anos
de maior repressão, as CEBS eram praticamente as únicas organizações
populares a promover perspectivas críticas (p. 212).

Com matéria intitulada “Terror seqüestra bispo e explode carro” a imprensa


destacaria a perseguição, o sequestro e as ameaças sofridas Dom Adriano em 1976
(JORNAL DO BRASIL, 1976). A Catedral de Santo Antonio da Jacutinga, sede da

sumário 1037
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Diocese de Nova Iguaçu, também sofreria um atentado à bomba. Ainda sim, a Igreja
manteria o perfil de sua atuação.
O quadro político do município de Nova Iguaçu nos anos finais da Ditadura
Civil-Militar mostrava, de um lado, o seguinte cenário: entre 1977e 1983 governou a
cidade o Sr. Ruy de Queiroz (1934-1997), quadro orgânico arenista, ex-interventor
municipal indicado pelo Presidente Emílio Garrastazu Médici, cuja família seria
proprietária de escola no município de Nilópolis e Nova Iguaçu. Seria sucedido pelo Sr.
Paulo Leone, eleito na esteira do Brizolismo para o período 1983-1988, mas que após
intensas denúncias de corrupção viria a sofrer impeachment no último ano de seu
mandato. Em seu lugar, como Interventor estadual, é nomeado o Sr. Francisco Amaral,
vice-governador do estado no mandato de Moreira Franco.

A década de 1980, a efervescência do debate educacional brasileiro e seus reflexos


no município.
O fim da década de 1970 e o início da década de 1980 representou a
efervescência do debate educacional no país, fundamentalmente mobilizados por
entidades de classe, pesquisadores e movimentos sociais, que (re)surgiriam no cenário
político com a advento da transição do regime. Em 1979 acontece, no Rio de Janeiro, a
primeira greve docente durante a Ditadura, organizada pelo Centro Estadual de
Professores (CEP), embrião do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação
(SEPE). Para Cunha (1991), “a existência de um campo educacional definido pelos
conflitos entre as forças políticas e ideológicas que disputam a hegemonia sobre o
ensino nunca foi tão evidente, na história do Brasil, como no regime político instituído
pelo golpe militar de 1964” (p. 58).
Saviani (2013) destaca a criação

da Associação Nacional de Educação (ANDE), Associação Nacional de Pós


Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e Centro de Estudos Educação
e Sociedade (CEDES), surgidos, respectivamente em 1979, 1977 e 1978.
Mas, além destas entidades, destinadas a congregar educadores independente
de sua vinculação profissional, a década de 1980 também se inicia com a
constituição de associações, depois transformadas em sindicatos,
aglutinando, em âmbito nacional, os professores de diferentes níveis de
ensino e os especialistas nas diversas habilitações pedagógicas (p. 403).

Em fevereiro de 1987, o Congresso Nacional recém eleito instala a Assembleia


Nacional Constituinte, com o objetivo de formular uma nova Constituição para o país,

sumário 1038
VII Seminário Vozes da Educação

após 21 anos de Ditadura. Em meio às disputas de concepções de projetos, ficaria


latente os principais interesses no cenário educacional brasileiro. A luta de classes se
evidenciaria em cada uma das proposições apresentadas.
Este movimento reverberaria no local; as associações de moradores, articuladas
no Movimento de Bairros definiriam em reunião da direção desta entidade a instalação
do Comitê Constituinte de Nova Iguaçu, assim como a promoção de debates,
“encontros, seminários, panfletagens e coleta de assinaturas para as emendas populares”
(SILVA, 1993. p. 191).
Em 1984 a MAB organiza uma atividade para discutir a questão das creches no
município, cuja “principal reivindicação do encontro é um programa de Creches
Públicas em Nova Iguaçu.” (IDEM, 1993. p. 206). Em 1985, novamente o Movimento
de Bairros, junto com outras entidades, realiza um encontro para discutir os problemas
da educação do município.

Organização popular, a luta pelo direito à educação pública e a construção das


primeiras creches
A oferta de atendimento para a primeira infância, no local, seria feita em
instituições particulares, comunitárias ou mantidas por igrejas. Outra opção era o
atendimento realizado, de maneira muito precária, no que se convencionou chamar de
“escolinhas de fundo de quintal”, aquele onde uma vizinha organizava um espaço em
sua própria residência para receber as crianças do bairro, por um módico pagamento.
Fazemos esta caracterização baseada nos depoimentos recolhidos pelas lideranças de
associações de moradores do município de Nova Iguaçu entrevistadas para a pesquisa
que apresentamos, como podemos ver:Creche nem se falava nessa época, isso era coisa
de rico da Zona Sul. A Baixada não tinha isso. A gente lutava para ter escola primária,
essas eram as lutas prioritárias da Baixada: escola e saneamento (MILITANTE DO
MAB 2, 2019. In: LOBO. No prelo).

Sobre a ausência de creches, as crianças ficavam com os vizinhos, isso era


uma tradição das áreas populares. Ficavam na varanda da casa, no quintal...
eu lembro de uma moradora do Xavantes, a Marina, que era presidente da
Associação de Moradores, e que atendia na varandinha dela várias crianças.
Não tinha essa coisa burocrática, de separação por faixa etária. Se fazia o que
era possível. A Lúcia, de Comendador Soares, também (MILITANTE DO
MAB 1. In: LOBO, 2019. No prelo).

sumário 1039
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Se o diagnóstico da realidade educacional do país já não era tão animador, pelo


menos para a parcela da população que dependia da escola pública de 1º e 2º graus, o
que poderíamos dizer para o atendimento de uma demanda que sequer era vista como
processo educacional? Com isso, multiplicavam-se as iniciativas populares, precárias
em sua forma, mas necessárias frente a cada vez mais crescente entrada das mulheres no
mercado de trabalho. Os debates que se dariam a partir do Constituinte também
influenciariam a compreensão de que as creches e pré-escolas também deveriam ser
espaços educativos, tirando-as do campo da assistência e vinculando-as à pasta que
trataria dos demais segmentos. O Movimento pela Constituinte institui-se em um espaço
de debates fundamental para as novas diretrizes educacionais que o Estado brasileiro
deveria apresentar. Estas discussões reverberariam nos movimentos locais e a demanda
por creches públicas começa a ganhar corpo na segunda metade da década de 1980.
Neste sentido, “identificada a falta de um projeto político de atendimento desta
demanda pelo Executivo Municipal, uma solução encontrada pelas associações de
moradores foi buscar convênios com o Governo Federal, através da Fundação Nacional
de Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e da Legião Brasileira de Assistência (LBA)”
(MILITANTE DO MAB 2. In: LOBO, 2019, p. 104. No prelo).
Após a assinatura destes convênios, as associações de moradores organizariam-
se, com o apoio da Diocese de Nova Iguaçu, para a instalação de creches comunitárias.
A Igreja Católica também seria responsável administração de algumas destas unidades.
Em alguns locais, onde movimento popular não estivesse suficientemente estabelecido,
a igreja assumiria a tarefa. Estimando-se um número de 8 mil crianças dentro da faixa
etária para o atendimento de creches, o movimento popular daria os primeiros passos no
sentido de viabilizar esta oferta, ainda que de maneira precária: “Pessoas sem a menor
condição, improvisando, e a gente resolveu pleitear junto à FUNABEM e à LBA que
trabalhassem uma rede de atenção à criança, que eram mais de 8 mil!” (MILITANTE
DO MAB 1. In: LOBO, 2019. p. 104. No prelo).
Então a partir de 1986, na efervescência dos debates em nível nacional,
surgiriam no município as primeiras creches comunitárias. Construídas com recursos
oriundos da FUNABEM e da LBA, em terrenos públicos sinalizados pelas AM’s,
dentro de suas áreas de atuação. O cuidado das crianças era feito por mães voluntárias, e
a alimentação, mantida por estas mesmas fundações.
Como já afirmamos, o cenário nacional impulsionava o debate em torno dos
temas correlatos à educação pública no país. Desta forma, é possível afirmar que seus

sumário 1040
VII Seminário Vozes da Educação

reflexos no local incidiram em ações dos movimentos populares em busca da ampliação


do número de escolas e creches públicas no município. Se a política educacional
adotada no governo de Leonel Brizola, eleito governador do estado do Rio de Janeiro
em 1982, favoreceria a construção dos Centros Integrados de Educação Pública
(CIEP’s) para atendimento das crianças nos primeiros anos do Ensino Fundamental
(antigo primário), aumentando assim a oferta para este segmento, os movimentos
cobrariam do município a criação de creches públicas. Avançava-se no entendimento
acerca destes espaços: as creches e pré-escolas passam a ser consideradas parte dos
sistemas educacionais, reconhecendo seu caráter educativo.
Estas ações culminariam na construção das primeiras creches públicas no
município de Nova Iguaçu, no governo de intervenção de Francisco Amaral, em 1988.
Passados mais de 30 anos, e apesar da crescente demanda, o município não foi capaz de
dobrar este número, mostrando que as décadas seguintes não repetiriam o nível de
organização popular e capacidade de mobilização. Os ataques à educação pública
refletem nesses dados, a despeito de um contingente populacional cada vez maior. O
direito à escola, mesmo na primeira infância, ficou só na garantia da letra.

Referências
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Editora, 2002.

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Niterói, RJ, 1991.

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escola no Brasil: da liberdade de escolha à obrigatoriedade de freqüência. Textura, v.18,
nº 36, jan/abril 2016. Disponível em

JORNAL DO BRASIL. Terror seqüestra bispo e explode carro. Edição 00168 de 23 de


setembro de 1976.

KUHLMANN, Moysés Jr. Histórias da Educação Infantil Brasileira. In: Revista


Brasileira de Educação, nº 14. ANPED: São Paulo, Autores Associados, 2000.

LOBO, Lidiane Barros. Quem manda na escola pública? Universidade do Estado do Rio
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No prelo.

MAINWARING, S. Igreja católica e política no Brasil (1916-1985). São Paulo:


Braziliense, 2004

sumário 1041
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

MILITANTE DO MAB 1 (Entrevista, 2018). In: LOBO, Lidiane Barros. “Quem


manda na escola pública?” Marcos para análise das políticas educacionais em Nova
Iguaçu. Dissertação de Mestrado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Faculdade
de Educação da Baixada Fluminense, 2019. No prelo.

MILITANTE DO MAB 2 (Entrevista, 2018). In: LOBO, Lidiane Barros. “Quem


manda na escola pública?” Marcos para análise das políticas educacionais em Nova
Iguaçu. Dissertação de Mestrado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Faculdade
de Educação da Baixada Fluminense, 2019. No prelo.

ROMANELLI, Otaíza. História da educação no Brasil (1930/1973). 11.Ed. Petrópolis:


Vozes, 1989.

ROSEMBERG, Fulvia. Expansão da educação infantil e processos de exclusão.


Cadernos de Pesquisa, nº 107, São Paulo, Julho de 1999. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15741999000200001.
Acesso: 21/09/2019.

SAVIANI, Dermeval. História das Ideias Pedagógicas no Brasil. – 4ª ed. – Campinas,


SP: Autores Associados, 2013.

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Nova Iguaçu (MAB 1974/1992). Fundação Getúlio Vargas. Instituto de Estudos
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SÓTENOS, Abner. Sob o olhar e o julgamento da repressão: eu os declaro culpados. In:


A Baixada Fluminense e a Ditadura Militar. SALES, Jean e FORTES, Alexandre (orgs)
- 1ª ed – Curitiba: Editora Prismas, 2016.

VIEIRA, Lívia Maria Fraga. Mal necessário: Creches no Departamento Nacional da


Criança. Cadernos de Pesquisa. Fundação Carlos Chagas: Nº 67, novembro, 1988

Notas
¹ Ao afirmamos que as relações entre os setores privatistas e o Estado são “aprofundadas”, queremos
enfatizar que as disputas no campo educacional, especificamente em relação ao financiamento, não
seriam novidade no período da Ditadura.
² O Departamento Nacional da Criança - DNCr (a partir de 1940), do Ministério da Educação e Saúde, e
a Legião Brasileira de Assistência - LBA (fundada em 1942), órgão de colaboração do Governo. O
Departamento Nacional da Criança foi uma instituição de múltiplos objetivos e finalidades, que
centralizou, durante 30 anos, a política de assistência à mãe e à criança no Brasil. Tudo que houve nesta
área partiu desse Departamento ou teve sua influência. A Legião Brasileira de Assistência, uma
instituição híbrida, surgiu da iniciativa privada, da iniciativa do Governo Federal e da influência de uma
primeira-dama (Darcy Vargas). (VIEIRA, Lívia Maria Fraga. Mal necessário: Creches no Departamento
Nacional da Criança. Cadernos de Pesquisa. Fundação Carlos Chagas: Nº 67, novembro, 1988. p. 04).

sumário 1042
VII Seminário Vozes da Educação

PERSPECTIVAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS NAS PESQUISAS SOBRE


EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS, PUBLICADAS NA REVISTA
BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS (RBEP) DE 1980 ATÉ 2016:
DESTACANDO O DESCRITOR ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Marcia Araújo Ribeiro Lima


UERJ/ Bolsista Faperj
marciaarlima@uol.com.br

O termo Educação de Jovens e Adultos


Após movimento de pesquisa em periódicos e em acervo diversificado da área,
identificou-se que o conceito de Educação de Jovens e Adultos se configura um termo
em transição, principalmente, porque é um termo histórico e, por ser histórico, sofre
mudanças ao longo da história. Nesse sentido, de 1940 até 1980 aparece registrado nas
fontes documentais estudadas como Educação de Adultos (EDA) acompanhado da
visão compensatória de Suplência da deficiência escolar, da visão profissional para
reajuste do homem às condições de trabalho, da visão física e moral para ajustar/adaptar
os imigrantes e migrantes adolescentes adultos ao novo país em seus direitos cívicos, da
visão libertadora, em 1960, idealizada por Paulo Freire até 1964, finalizada pela
Ditadura Militar, da visão de educar para o mercado na lógica do ensino tecnicista
profissionalizante da Lei 5.602/71 finalizada a partir dos anos 80 com as discussões
acerca da redemocratização da sociedade brasileira e da visão de direito de todos na
consolidação da Constituição Federal de 1988.
Portanto, mediante esse movimento de transição da EJA no período de 1980 até
2016, identifica-se que o referido conceito muda a partir de embates políticos
ideológicos e de discussões da sociedade em torno das legislações anteriores à Lei
9.394/96 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e de manifestações de
diversos movimentos sociais em debates acerca da redemocratização da sociedade
brasileira, que se concretizou após 1985. Dentro desse conceito, destaca-se a EJA como
Alfabetização de Jovens e Adultos.

sumário 1043
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A metodologia da pesquisa e o estudo bibliográfico-documental


A pesquisa empreendida neste trabalho seguiu uma prática de pesquisa
qualitativa e de estudo bibliográfico-documental, que teve como problema de partida a
seguinte questão: Quais perspectivas teórico-metodológicas aparecem nas pesquisas
sobre EJA publicadas no periódico RBEP, no período de 1980 até 2016? Partindo dessa
questão, o objetivo deste estudo foi mapear e analisar pesquisas sobre EJA,
identificando, nos artigos selecionados, lidos, mapeados e resumidos, as perspectivas
teórico-metodológicas que aparecem nas pesquisas sobre EJA publicadas no periódico
RBEP no período 1980 -2016. Para os registros neste texto, destaca-se, desse apanhado
de 43 artigos selecionados, doze artigos que foram identificados, mapeados, lidos,
resumidos e analisados a partir do descritor Alfabetização de Jovens e Adultos.
Fazendo referência aos primórdios da pesquisa qualitativa, Arilda Schmidt
Godoy (1995) ressalta que o que hoje denominamos estudos qualitativos começaram a
aparecer no cenário da investigação social a partir da segunda metade do século XIX. O
estudo sociológico de Frédéric Le Play (1806-1882) Les ouvriers européens, publicado
em 1855, sobre as famílias das classes trabalhadoras da Europa, pode ser citado como
uma das primeiras pesquisas a usar a observação direta da realidade.
A respeito da prática de pesquisa bibliográfica, Torzoni-Reis (2010) enfatiza que
a pesquisa bibliográfica tem como principal característica o fato de que a sua fonte dos
dados é a bibliografia especializada. Para a autora, todas as modalidades de pesquisa
exigem uma revisão bibliográfica, uma busca de conhecimentos sobre os fenômenos
investigados na bibliografia especializada, mas só a pesquisa bibliográfica tem como
campo de coleta de dados, a bibliografia.
Nessa fundamentação teórica, entendemos que pesquisar a EJA num enfoque
qualitativo acompanhado de estudo bibliográfico-documental é interessar-se por
identificar as formas como essa prática educativa vem sendo pesquisada, compreender
as concepções dos autores nas perspectivas e nos aportes teóricos-metodológicos
utilizados nas pesquisas publicadas, nos registros e nos artigos selecionados no
periódico RBEP, interpretar seus conteúdos e aprofundar o estudo de conceitos e
significados.
Dessa forma, ressalta-se que a prática qualitativa não é a banalização da ciência,
é a possibilidade de se surpreender com o resultado que nos desafia e desafia o
patrimônio teórico preexistente. Portanto, fundamentados nos estudos de Triviños
(1987), Chizzotti (1991), Godoy (1995) e Minayo (2002) sobre os conceitos de pesquisa

sumário 1044
VII Seminário Vozes da Educação

qualitativa e a respeito da importância dos estudos bibliográficos-documentais nas


pesquisas em Ciências Sociais nas proposições de Severino (2000), Torzoni-Reis (2010)
e outros autores, este trabalho foi desenvolvido.
Procedendo essa prática metodológica, consideramos pertinente buscar o
descritor Educação de Jovens e Adultos somente nos números disponíveis online do
periódico RBEP de 1980 até 2016 a fim de fazer um estudo mais detalhado das
concepções, argumentos e aportes teórico-metodológicos registrados pelos
pesquisadores da EJA veiculados nos artigos publicados no periódico RBEP, a partir
desse descritor.
Dando andamento à pesquisa, iniciamos uma outra busca consultando o arquivo
do GP Episteme que elaborou um catálogo que enumera artigos do periódico publicados
na sessão sobre resultados de pesquisa chamada “Ideias e Debates” posteriormente
chamada “Estudos e Debates” e, por fim, apenas “Estudos” nomenclatura que ainda
permanece. O referido catálogo tem índice de 1.351 artigos publicados nos números
disponíveis do periódico Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP) de 1944
até agosto de 2014, onde fizemos, inicialmente, um mapeamento dos volumes e
números que tinham, em seus sumários, os descritores: Educação de Adultos, Educação
de Jovens eAdultos,Alfabetização de Jovens e Adultos, Suplência, Supletivo e Mobral,
Educação Popular, Aprender Por Toda Vida, ou Aprender ao Longo da Vida,
Educação Permanente e Direito à Educação.
Depois desse mapeamento, foram lidos e resumidos todos os artigos disponíveis
online. Assim, todos os artigos que, em seus títulos ou subtítulos, continham os
descritores listados, foram selecionados para análise. Do acervo completo, 36 foram
identificados, mapeados, lidos e resumidos juntamente com mais 07 artigos impressos
que foram encontrados no acervo do periódico RBEP, da biblioteca do décimo segundo
andar da UERJ.
Diante do exposto, vale pontuar que, para este trabalho, serão registradas
somente as análises dos doze artigos que foram identificados, selecionados, lidos e
resumidos a partir do descritor Alfabetização de Jovens e Adultos.

O periódico Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP) como fonte de


pesquisa
Em apontamentos a respeito da temática “Disseminação dos resultados das
pesquisas em periódicos da área de educação; o papel e o lugar do Em Aberto”, Osmar

sumário 1045
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Fávero (2012) enfatiza que, no contexto da informação educacional no início dos anos
de 1980, contava-se com a presença histórica da Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos (RBEP) criada em 1944 e mantida ao longo desses anos, mesmo na crise
sofrida pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(Inep) na década de 1970.
Os dados históricos apresentados por Fávero (2012), as análises de Rothen
(2005) e de outros autores, registram a resistência e a potencialidade do periódico RBEP
ao longo dos anos, bem como nos ajuda a justificar sua escolha como fonte de pesquisa
neste estudo. Nessa justificativa, é oportuno registrar que o periódico RBEP encontra-se
classificado, pelo Sistema Qualis da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes), com o conceito A1 nacional e que vem alcançando, desde sua
criação, o objetivo proposto de divulgação das pesquisas do Inep bem como a
consolidação de sua dimensão política no serviço do governo brasileiro via Ministério
da Educação e Cultura (MEC).
A escolha do periódico RBEP como fonte de pesquisa para este estudo deu-se
por se tratar de um periódico que já vem sendo disponibilizado em formato impresso e
eletrônico desde julho de 1944, veiculado pelo Inep, que vinha, até o término deste
trabalho de pesquisa, assessorando o MEC em proximidade e intimidade com a
comunidade acadêmica, discutindo e encaminhando os destinos da educação no Brasil.

Resultados da pesquisa: quadro de análises de 12 (doze) artigos que foram


identificados, a partir do descritor Alfabetização de jovens e Adultos
Para desenvolver a análise, a descrição, a compreensão e melhor visualização os
registros dos 12 artigos selecionados, optou-se pela construção de um quadro
demonstrativo que permite uma compreensão mais aprofundada das perspectivas
teórico-metodológicas que têm sido empregadas pelos pesquisadores nas investigações
em EJA no periódico RBEP, bem como identificar com maior clareza, como, no
descritor Alfabetização de Jovens e Adultos, se dão as pesquisas sobre a EJA, as
perspectivas teórico-metodológicas dominantes e suas potenciais tensões e desafios a
fim de refletir a respeito de possíveis estratégias para o contínuo fortalecimento das
pesquisas em Educação de Jovens e Adultos.

sumário 1046
VII Seminário Vozes da Educação

DESCRITORES NUMERO DE PERÍODO DE ASSINALANDO AS


ARTIGOS PUBLICAÇÃO PERSPECTIVAS TEÓRICO-
METODOLÓGICAS -
DOMINANTES NAS PESQUISAS
EM ALFABETIZAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS

Alfabetização de 12 1973-2008 Pesquisas qualitativas com


Jovens e Adultos abordagens etnográficas; estudos de
caso; análise comparativa dos erros
ortográficos e gramaticais
apresentados nas atividades escritas
dos estudantes, com aporte teórico de
Furter (1956;1969); de Gray (1956);
Soria (1968) e Martins Lindoso
(1967); e nos estudos de Ezpeletta e
Rockwell (1984, 1986). Nas teorias
de Piaget e de Freire e nos estudos de
Emilia Ferreiro.

Nos artigos incluídos no descritor Alfabetização de Jovens e Adultos, foram


identificadas pesquisas qualitativas com as seguintes características: estudos de caso
(02); relatos de experiência (02); análises etnográficas (02); pesquisa participante (01);
análise documental (02); relatório de pesquisa associado à experiência (01); pesquisa
qualitativa com relato por amostragem (01) e relatório/notas de pesquisa (01).
Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero (1973) inicia o texto, explicando o
subtema Alfabetização e Desenvolvimento e indica que o trabalho apresentado diz
respeito a um estudo de caso que teve como objetivo analisar o posicionamento da
Educação de Adultos dentro doprojetoIguatemi implantado pelo Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA), no Município do mesmo nome, que fica
situado no extremo sul de Mato Grosso, na fronteira do Brasil com o Paraguai. Dando
sequência ao registro, a autora detalha o contexto da Educação de Adultos no referido
projeto e o emprego da metodologia de alfabetização a partir da análise de dados
obtidos com os chefes de família que trabalhavam na área estudada. Nessa direção, a
autora detalha cada momento da pesquisa, desde a identificação dos cadastros e dos
chefes das 785 famílias estudadas a partir da análise da documentação existente no
INCRA sobre o projeto, ou seja, decretos, portarias, programas, relatórios e outros, até
finalizar com a tabulação dos dados de uma amostra extraída de sorteio que abrangeu
25% dos chefes de família cadastrados no Projeto. Para discutir os dados levantados, a
autora recorre a publicações de Furter (1956;1969); de Gray (1956); Soria (1968) e
Martins Lindoso (1967) entre outros.

sumário 1047
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Também em trabalho considerado estudo de caso associado à análise


documental, a pesquisadoraBetty Oliveira (1985) apresenta no texto um relato de
resultados da primeira fase de uma pesquisa maior, que fazia parte do Programa de
Educação de Adultos da Universidade Federal de São Carlos que funcionava na época,
realizando projetos de pesquisa e experiências de ensino necessárias a esses projetos.
Apresentado o referido relato, a autora indica que o trabalho de pesquisa pretendeu
fazer da elaboração de um livro de leitura, o próprio processo de alfabetizar-se para o
alfabetizando e de formar-se educador para o alfabetizador. A respeito dos
procedimentos para a realização do projeto, a pesquisadora registra que foram
delimitados três problemas vivenciados na experiência, relacionados aos seguintes
momentos: desenvolver os temas das palavras geradoras, formar frases e escolher frases
para o livro de leitura. Justificando a realização do programa na instituição, a autora
detalha que, após a realização de levantamento do universo vocabular dos funcionários
da instituição, foi identificado, segundo solicitação dos mesmos, que fosse realizado um
“curso para aprender a fazer conta e atividades que os auxiliassem pegar direito no
lápis”. A respeito da metodologia utilizada no trabalho, a autora indica que, após
realização de 04 fases para o levantamento das palavras geradoras, que iriam favorecer
o trabalho de alfabetização e construção do livro de leitura. Após detalhar cada etapa da
metodologia trabalhada com a inclusão dos impasses enfrentados no decorrer da
pesquisa e no processo de alfabetização, a autora apresenta os resultados do trabalho,
concluindo que, como as análises realizadas ainda estavam em andamento, optou-se por
elaborar um livro com o objetivo de apresentar não só os procedimentos da proposta
metodológica, mas também seus pressupostos e implicações sociais no contexto de
algumas questões que demandaram um estudo mais específico, ou seja, questões acerca
das relações pensamento e linguagem, entre a compreensão da palavra e notação da
palavra, entre a formação de automatismos e a compreensão do processo de
comunicação pela escrita.
O artigo de Newton Duarte (1985) apresenta um relato de experiência de
trabalho com o ensino de adição e subtração para alfabetizandos adultos, desenvolvido
pelo autor durante o segundo Projeto de Alfabetização de Funcionários da UFSCar
(PAF-2). Justificando a temática, o autor introduz seus registros, indicando que o
objetivo do artigo foi divulgar os resultados parciais e provisórios do trabalho que vem
desenvolvendo na área de ensino de Matemática por considerar um campo pouco
explorado e debatido entre os professores. Como fundamentação teórica dos

sumário 1048
VII Seminário Vozes da Educação

pressupostos pedagógico-matemáticos, o autor recorreu aos estudos de Hogben (1946)


Nicolai (1984) e Lamparelli (1984). Finalizando o trabalho de análises, o autor tece a
consideração de que o educando adulto precisa aprender a técnica operatória mais
utilizada na sociedade em que ele vive por ser essa uma questão de comunicação.
Na pesquisa coordenada por Neusa Junqueira Amellini (1992), em que os
autores se valeram da metodologia de pesquisa etnográfica,identifica-se, no descritor
Alfabetização de Jovens e Adultos, que, durante as pesquisas, os autores fazem relatos
de observações nas escolas campo de pesquisa sobre a colaboração entre pesquisadores,
professores e outros. A partir desses registros, identificou-se que, nesse tipo de
pesquisa, a coleta de dados sempre é feita por meio da observação participante, pela
discussão da prática, em grupos de pesquisadores e pesquisados em reuniões de grupo
focal, em entrevistas, em análise de documentos e em aplicação de testes para avaliar o
nível de compreensão dos envolvidos no contexto das pesquisas.
Na publicação de Euzi Rodrigues Moraes (1992) a autora apresenta uma
explicação de como funcionavam os métodos utilizados na alfabetização, indicando
que, até os anos 1980, a alfabetização era vista como um ato de ensinar a codificar sons
em letras e decodificar letras em sons. Após essa explicação, a autora justifica a
pesquisa registrada no artigo, destacando as mudanças que a história da alfabetização
começou a apresentar na década de 1980 iniciadas por uma crítica chamada “Polêmica
dos Métodos” e que, a partir dessa polêmica, foi iniciada nas pesquisas, a busca por
respostas para os problemas teóricos e práticos do aprendizado da leitura e da escrita.
No decorrer do relato, a autora cita os estudos de Ferreiro (1992), Gramsci (1981),
Demo (1991), Oslon (1990) e o aporte teórico da psicolinguística como perspectiva
teórico-metodológica na pesquisa.
No trabalho de Maria Isabel R. Infante (1992) a autora analisa e discute dados
do analfabetismo funcional nos quatro países onde a pesquisa foi realizada. São eles:
Chile, Argentina, Peru e El Salvador. Detalhando que a pesquisa teve foco no estudo de
três áreas específicas: leitura e escrita, operações matemáticas básicas, competências
sociais e profissionais, a pesquisadora indica que o citado estudo foi destinado a 300
pessoas adultas com escolaridade incompleta oriundas de algumas comunidades
marginalizadas da capital de cada país e de algumas comunidades especialmente
atingidas pela modernização. Nessa trajetória, a pesquisadora indica que, em El
Salvador, foram incluídas, além da capital, localidades onde foram assentados os
repatriados e deslocados da guerra civil. No Chile, foram incluídas comunidades rurais

sumário 1049
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

que sofreram o impacto da agroindústria. Na Argentina e no Peru, foram incluídas áreas


tumultuadas pela modernização acelerada. A autora pontua no texto que, para a coleta
de dados, foram usados vários instrumentos como: teste de leitura e escrita, teste de
operações matemáticas básicas, teste de competências sociais e profissionais e um
questionário de dados pessoais. Seguindo com a citada apresentação, a pesquisadora
detalha que, após a citada etapa, os dados coletados foram discutidos e analisados, e
segue apresentando, no desenvolvimento do artigo, o conceito de analfabetismo
funcional para iniciar o debate da temática na América Latina, indicando que, como
todos os conceitos evoluem com o tempo, a funcionalidade da alfabetização ou a
funcionalidade relacionada com o analfabetismo também evoluiu nos últimos anos.
Mediante a leitura do artigo completo, identificamos que a pesquisadora Celma
Borges (1992) não registra perspectivas teórico-metodológicas de pesquisa, mas, faz
opção por apresentar reflexões, compreensões e análises, acerca da temática. Pontuando
a citada opção, a autora indica que o referido estudo surgiu após realização de uma
pesquisa qualitativa que estudou políticas de alfabetização na Bahia e no Brasil.
Portanto, inicia o texto indicando que o objetivo do estudo foi compreender a
especificidade das políticas baianas de alfabetização de adultos num contexto onde as
condições socioeconômicas da maioria da população e as condições do próprio sistema
regular e supletivo de ensino, aliadas às ingerências políticas, não permitiam evitar a
ocorrência e expansão do fenômeno do analfabetismo. A autora apresenta resultados
parciais da pesquisa, afirmando que, nos estudos realizados, o que mais sobressaiu foi a
pobreza político-social e cultural da população baiana associada a baixos níveis de
instrução. Em dados apresentados no corpo do artigo, a autora indica ainda que, entre
1950 e 1980, tinha acesso à escola um quinto da população de 5 anos (1950) e de 7 anos
(1960/1970/1980) e que a população do meio rural e a do sexo feminino se
configuravam como as mais atingidas.
No artigo publicado por MariaCristina Hennes Sampaio e Rosilda Arruda
Ferreira (1992), as autoras abordam a maneira como a prática pedagógica de ensino-
aprendizagem da língua materna vem sendo conduzida na escola pública, considerando-
se a diversidade sociolinguística de sua clientela. As autoras estudaram uma amostra de
75 professores de 1ª série do 1º grau da rede de escolas públicas do Recife,
estabelecendo uma tipologia envolvendo padrões conceituais e ações de ensino-
aprendizagem de língua materna correlacionadas a diversas variáveis sociais. Indicam
ainda, que, o citado processo de ensino-aprendizagem foi também investigado mediante

sumário 1050
VII Seminário Vozes da Educação

um estudo de redes adaptado de Milroy (1980). Utilizando esse aporte teórico-


metodológico, as pesquisadoras observaram cinco categorias conceituais, que
apresentaram diferenças e que se inseriram em apenas uma única categoria de ação
pedagógica.
Na introdução do texto, Ruth da Cunha Pereira (1995) afirma que o
analfabetismo é um fenômeno social profundamente instalado em diversos países e vem
representando a negação do direito fundamental do cidadão de aprender, conhecer e
comunicar-se. Para defender esse argumento, a pesquisadora faz referência a dados
publicados pela UNESCO (1994), divulgando que, na época, podia se verificar no
mundo cerca de um bilhão de adultos que não sabiam ler nem escrever um simples texto
sobre a vida cotidiana. Após o registro de pequenos parágrafos no texto de introdução
acerca da problemática do analfabetismo no Brasil, a autora desenvolve o texto,
acrescentando considerações acerca da necessidade de um processo contínuo de
alfabetização de jovens eadultos e aproveita para citar, como exemplo dessa iniciativa,
a proposição da Universidade Estácio de Sá (Unesa) na implementação e no
desenvolvimento de um curso de extensão para atender ao público jovem e adulto
analfabeto da comunidade: "Alfabetização para a prática da cidadania”. Após os
registros dessas considerações, a autora pontua que o surgimento da pesquisa
etnográfica apresentada na temática do artigo, emergiu dessa nova experiência na
Universidade Estácio de Sá a partir de inúmeras questões que surgiram na procura de
alternativas que atendessem às necessidades dos alunos, tais como: 1) Que relação
existe entre as habilidades de leitura e escrita identificadas nos alunos que frequentavam
o curso de alfabetização e o nível de escolaridade declarada por esses? 2) Qual a
expectativa dos alunos em relação ao curso em termos de aprendizagem? 3) Que
aspectos podem ser identificados nas atividades dos alunos que se mostram como
indicadores de seu desenvolvimento no processo de alfabetização para a cidadania?
Mediante essas indagações e de uma lista maior de questionamentos, a autora indica que
a pesquisa se encontrava, na época da publicação do artigo, em andamento e tinha como
objetivo analisar os fatores facilitadores ou não do processo de alfabetização de jovens e
adultos num curso de extensão, bem como discutir as relações entre pensamento,
linguagem e alfabetização para apontar caminhos que ajudassem numa proposta de
alfabetização de jovens e adultos. Nesse percurso indicativo, a autora reforça que a
referida pesquisa tinha abordagem de pesquisa qualitativa educacional fundamentada
nos estudos de Ezpeletta e Rockwell (1984, 1986), procurando integrar a informação

sumário 1051
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

histórica local, documental e oral, com a análise etnográfica. A partir desses registros, a
pesquisadora explica que a coleta de dados foi feita por meio da observação
participante, discussão da prática das monitoras em reuniões de orientação pedagógica,
entrevistas, análise de documentos e aplicação de testes para avaliar o nível de
linguagem dos alunos.
A publicação coordenada por Candido Alberto Gomes (1995)se configura notas
de pesquisa onde os autores apresentam o artigo a partir do texto introdutório e
explicam que a pesquisa foi realizada como treino no curso de Economia e Finanças da
Educação, oferecido no primeiro semestre de 1995 pelo Mestrado de Educação da
Universidade Católica de Brasília. Na citada pesquisa, o grupo de autores registra que
objetivo do citado estudo foi atender a uma das tônicas do projeto do referido mestrado,
que previa o envolvimento de docentes e discentes na pesquisa, e também oferecer
subsídios para os que conduzem o Programa de Alfabetização de Adultos da citada
universidade, procurando evitar que em “casa de ferreiro se use espeto de pau”. Partindo
para a descrição do referido contexto, os autores detalham que, a partir do primeiro
semestre de 1995, período da coleta de dados da pesquisa, foram habilitados 651 dos
926 alunos iniciantes, correspondendo a evasão a 29,7% e que, durante o período letivo,
atuaram no trabalho 87 universitários, sendo três alunos do Centro Educacional da
Católica de Brasília, três alunos do Colégio D. Bosco e 35 voluntários das comunidades,
atingindo um total de 128 monitores, relação de 7,2 alunos por monitor.
O texto de autoria dos pesquisadores Candido Alberto Gomes e Marcia Paoliello
de Andarde. (1997), se configura uma análise acerca das características
socioeducacionais, dos planos e das percepções sobre a educação, o trabalho e a renda
de um grupo de alfabetizandos jovens e adultos de São Bernardo do Campo, São Paulo.
Objetivando traçar o perfil socioeducacional do citado grupo de jovens e adultos que
não teve oportunidade de frequentar a escola no tempo próprio e se matriculou no
Programa Municipal de Alfabetização e Cidadania oferecido pela Universidade
Bandeirante. Os pesquisadores indicam no artigo que a perspectiva teórica para o estudo
foi fundamentada em publicações de pesquisadores acerca de educação e trabalho com
foco nas percepções dos respondentes como um dos ângulos de análise que, nas
concepções dos autores, é caracterizado por maior "subjetividade", mas que é capaz de
descerrar outros aspectos da realidade. Destacando os estudos de Weber (1976), Ferretti
(1988), Turner (1960), Hum (1977), Mills (1973), Davis e Moore (1945) como quadro
teórico estudado para compreensão e análise da problemática, os autores apresentam, no

sumário 1052
VII Seminário Vozes da Educação

texto, suas concepções acerca das aspirações educacionais dos jovens e adultos
entrevistados, fazendo referência aos autores e teorias a respeito do processo de
estratificação social, indicando que esse amplo arco teórico enfoca as relações entre
educação, estratificação social e renda e sua pluralidade de posições teóricas.
As autoras Susana Gakyia Caliatto e Selma de Cássia Martinelli (2008)
descrevem, no artigo, um trabalho que teve como objetivo analisar a escrita ortográfica
em atividade de ditado e de reescrita de uma lenda por parte dos estudantes jovens e
adultos. Os registros das autoras indicam que participaram da pesquisa 57 alunos da
modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA) da rede municipal de uma cidade do
interior de São Paulo, sendo que 27 (47,37%) cursavam a 3ª série do ensino
fundamental e 30 (52,63%) cursavam a 4ª série. No percurso metodológico, as
pesquisadores pontuam que a análise dos resultados foi possível a partir da
categorização e da análise comparativa dos erros apresentados nas atividades escritas,
construídas pelos estudantes em processo de aprendizagem da leitura e da escrita e que,
após análise das produções dos estudantes, os resultados indicaram que as principais
dificuldades de escrita apresentadas por eles se relacionam ao apoio na oralidade, mais
especificamente, quando se trata de palavras que empregam sílabas compostas, dígrafos
e letras que representam vários sons. A esse respeito, as pesquisadoras acrescentam,
ainda, que, no que se refere à prática de escrita de frases e de textos, foi destacada a
dificuldade dos estudantes em segmentarem as palavras. Para as autoras, a ocorrência de
erros considerados como escritas particulares que não propiciam a leitura e a
compreensão das palavras escritas pode indicar que a alfabetização não se realizou
principalmente porque erros desse tipo foram encontrados de maneira expressiva na
amostra selecionada e se apresentaram como indicadores de que os participantes do
estudo não adquiriram o que se esperava deles em termos de conhecimentos sobre a
ortografia, fato que possibilitou que as pesquisadoras apontassem para algumas
implicações educacionais e sociais nesse contexto. No que diz respeito às citadas
implicações educacionais, as pesquisadoras destacam que os erros encontrados
demonstram falhas na alfabetização, e, levando-se em conta que esses alunos se
encontram nas séries finais do primeiro ciclo do ensino fundamental, o erro
automatizado pode dificultar a correção dessas falhas. O argumento mais pontuado
pelas pesquisadoras é fundamentado em Sisto (2001) quando defende que “os erros que
persistem durante vários níveis de ensino podem formar um hábito ou automatismo, que

sumário 1053
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

se tornam quase inconscientes, e, mesmo que mais tarde o estudante venha a conhecer a
regra que rege a ortografia, tenderá a escrever errado”.
A respeito dos quadros teóricos ou das fundamentações teóricas acessadas por
esses pesquisadores, a análise dos artigos nos encaminhou à seguinte compreensão: por
conta do contexto histórico do período de publicação dos artigos, as pesquisas
desenvolvidas nos programas de mestrado e doutorado da época, centralizavam seus
estudos de alfabetização na EJA, com base fundamental nas teorias construtivistas de
Piaget e Ferreiro (1982) sociointeracionistas de Vygotsky (1979, 1984), Luria (1990) e
em estudos interculturais como os de Tulviste (1988) e Saxe e Posner (1983) e outros,
principalmente, porque a preocupação da política educacional em alfabetização de
crianças, e de sujeitos jovens e adultos nas décadas de 80/90, do século XX, era resolver
o problema do analfabetismo pela via das práticas alfabetizadoras fundamentadas nas
concepções construtivista e sociointeracionistas formuladas por esses autores.
Esses estudos se configuravam, naquele contexto histórico, como práticas
progressistas porque o confronto entre a alfabetização tradicionalmente praticada nas
escolas e os resultados da pesquisa educacional deflagrados nas duas últimas décadas,
teve início no ano de 1983, década em que vigorava no Brasil o debate sobre o
aprendizado da escrita e da leitura a partir das questões sobre os métodos e a partir da
preocupação com a forma como os professores deveriam alfabetizar os estudantes: de
acordo com o método tradicional do ensino formal das partes que constituem as
palavras ou centrando o ensino em letras e sílabas por meio da leitura de textos
portadores de significados para os aprendizes.
Nesse contexto, as pesquisas desenvolvidas na área da alfabetização
apresentavam as justificativas das temáticas, destacando as mudanças que a história da
alfabetização começou a apresentar na década de 1980, iniciadas por uma crítica
chamada “Polêmica dos Métodos” e que, a partir dessa polêmica, foi provocada nas
pesquisas, a busca por respostas para os problemas teóricos e práticos do aprendizado
da leitura, da escrita e da alfabetização de adultos. Portanto, as pesquisas naquelas
décadas, eram realizadas, objetivando resolver problemas das práticas educacionais.
Sobre os artigos que foram identificados como relato de experiência no descritor
Alfabetização de Jovens e Adultos, destaca-se, em um deles, que a autora indica a
pretensão de transformar o processo de elaboração de um livro de leitura, no próprio
processo de alfabetizar-se para o alfabetizando adulto e no processo de formar-se
educador para o alfabetizador dos sujeitos jovens e adultos. A respeito dos

sumário 1054
VII Seminário Vozes da Educação

procedimentos para a realização do projeto, a pesquisadora registra que foram


delimitadas várias etapas de vivências e de experiências de alfabetização com os
estudantes adultos a fim de que esses conseguissem desenvolver os temas das palavras
geradoras, para formar frases, e para, finalmente, escolher frases para compor o livro de
leitura.
Também nesse descritor Alfabetização de Jovens e Adultos, encontra-se um
artigo de pesquisa qualitativa por amostragem, em que as autoras abordam em amostras
não, probabilísticas (intencionais), a partir de suas experiências no campo de pesquisa
com 75 professores da 1ª série, a maneira como a prática pedagógica de ensino-
aprendizagem da língua materna vem sendo conduzida na escola pública, considerando-
se a diversidade sociolinguística de sua clientela. Destaca-se aqui que do total de 12
artigos, registrados nesse descritor, somente duas pesquisas foram realizadas na região
Nordeste do Brasil.
As autoras estudaram uma amostra de 75 professores da 1ª série do 1º grau da
rede de escolas públicas do Recife, estabelecendo uma tipologia que envolvia padrões
conceituais e ações de ensino-aprendizagem de língua materna correlacionadas a
diversas variáveis sociais. Registrando o andamento da pesquisa no corpo do artigo, as
autoras indicam que o citado processo de ensino-aprendizagem foi também investigado
mediante um estudo de redes adaptado de Milroy (1980). Recorrendo a esse aporte
teórico metodológico, as pesquisadoras observaram cinco categorias conceituais, que
apresentaram diferenças para indicar que se inseriram em apenas uma única categoria, a
de ação pedagógica.
A análise dos 12 artigos do quadro acima, nos possibilitou concluir, mediante
quadro teórico da pesquisa, que os 12 artigos selecionados no descritor Alfabetização de
Jovens e Adultos se configuram pesquisas classificadas como pesquisas qualitativas, de
abordagens e trabalhos empíricos, porque apresentam dados bibliográficos ou dados de
pesquisa já realizadas por outros pesquisadores, mas com pouca análise, ou pouca ou
nenhuma teorização. Esses artigos têm características de textos descritivos no que se
refere ao nível de abordagem e de abstração do pesquisador porque registram somente a
compreensão do autor em suas práticas de estudos e debates e em relatos de suas
próprias experiências em trabalhos de sala de aula e de concepções formuladas por
estudantes/sujeitos da EJA. São trabalhos em que os autores se ocupam em apresentar
resultados de estudos e debates sobre a temática, de vivências e experiências com

sumário 1055
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

estudantes, bem como resultados de análise documental e de algumas revisões de


literatura.
Assim, mesmo apresentando tais formatos, esses artigos foram selecionados,
principalmente, por considerarmos que a pesquisa, nos formatos de estudos e debates,
relatos de experiência, bem como outras práticas de coleta de dados, são artigos de
comentários ou de críticas, necessários e relevantes na área da Educação de Jovens e
Adultos. Dessa forma, partindo da crítica de Cardoso (1976) no sentido de que esses
artigos não apresentam o que a autora entende por pesquisas científicas, consideramos
adequado incluí-los na listagem do descritor Alfabetização de Jovens e Adultos para
análises, principalmente, porque após terem sido lidos fichados e mapeados por
completo, identificamos em seus conteúdos, contribuições reflexivas, analíticas,
conceituais, documentais e bibliográficas para a área da pesquisa e da Alfabetização em
EJA.
Nessa análise, reflete-se que, diante de fragilidades e vulnerabilidades de
algumas pesquisas, consideramos a teorização um esforço do pesquisador em articular
metodologias, teorias ou conceitos, com o objetivo de compor um quadro teórico
consistente para fundamentar uma determinada análise. Nessa prática, tal esforço
demanda fazer escolhas teóricas e justificá-las, o que implica, segundo Bourdieu,
Chamboredon e Passeron (2010), um exercício de reflexividade e de vigilância
epistemológica.
Por fim, entendendo a teoria como uma ferramenta analítica na prática da
pesquisa que desafia ortodoxias conservadoras e fechadas, parcimônia e simplicidade,
reflete-se que Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2010) reforçam que o papel da teoria
na pesquisa é imprimir uma retenção de algum senso de obstinação e complexidade do
social e crítica nas interpretações e compreensões do pesquisador.
Conclui-se que a fundamentação teórica de Bourdieu, Chamboredon e Passeron
(2010) e outros autores, nos possibilitou constatar, mediante exercício de análise dos
doze artigos citados acima, que poucos trabalhos apresentam evidências de explicitação
de uma determinadaepistemologia. A maioria das pesquisas se ocupam em aprofundar a
exposição de conceitos, apresentam uma breve exposição do referencial teórico, sem a
devida associação à metodologia da pesquisa, bem como sem a preocupação em
justificar as escolhas ou ainda em problematizar as teorias a partir dos dados e da
análise realizada na pesquisa. Assim, foi possível identificar com maior clareza, como,
no descritor Alfabetização de Jovens e Adultos, se dão as pesquisas sobre a EJA, as

sumário 1056
VII Seminário Vozes da Educação

perspectivas teórico-metodológicas dominantes e suas potenciais tensões e desafios bem


como refletir a respeito de possíveis estratégias para o contínuo fortalecimento das
pesquisas em Educação de Jovens e Adultos.

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sumário 1058
VII Seminário Vozes da Educação

O PRÉ-VESTIBULAR POPULAR PEDRO POMAR E A LUTA PELO DIREITO


AO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL

Adrielle Lisboa
UERJ FFP
driellelisboa@gmail.com

Introdução

A educação só pode ser libertadora quando todos


tomam posse do conhecimento como se este fosse uma
plantação em que todos temos de trabalhar (HOOKS,
2017, p. 26).

Este artigo intenciona compreender como se manifesta os embates políticos,


econômicos e sociais na luta dos movimentos sociais pelo direito a educação superior,
em especial, o Pré-vestibular Popular Pedro Pomar (PVPPP). Considerado, como um
movimento social que tem a sua experiência forjada no enfrentamento político, com
intuito de romper com as barreiras sociais e estruturais que delimitam aos estudantes das
classes populares, em sua maioria negros/as, o acesso às universidades públicas no
Brasil.
A desigualdade presente na vida da população negra em escala econômica e
cultural tem resquícios incontestáveis dos quase 400 anos em que o país viveu um
regime escravocrata. O nosso país foi o último da América do Sul a abolir formalmente
a escravidão, que tinha uma organização econômica baseada na exploração da força do
trabalho de pessoas negras, característica estrutural que permanece marcante no
panorama que essa população, ainda (sobre) vive.
Assim, a ideia de raça é um dos pensamentos que tendem a legitimar as relações
de dominação. Durante o processo de escravidão os negros eram considerados
racialmente inferiores, portanto indignos de serem renumerados, de terem seu trabalho
reconhecido e valorizado monetariamente. No entanto, ao refletimos sobre a divisão
social do trabalho, constatamos que negros e negras ainda permanecem em
desvantagem em relação aos brancos na disputa por mobilidade social.

sumário 1059
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O conceito de racialização opera nas relações de trabalho, definido através do


poder mundial eurocentrado, ou seja, quem é a mão de obra que deve ser explorada,
logo a divisão por raça foi determinante para a divisão social do trabalho.
Para Quijano a ideia de raça em seu sentido moderno, não tem história
conhecida antes da América.

Os colonizadores codificaram como cor os traços fenotípicos dos colonizados


e assumiram como a característica, emblemática da categoria racial [...] Os
negros eram ali não apenas os explorados mais importantes, já que a parte
principal da economia dependia de seu trabalho. Eram, sobretudo a raça
colonizada mais importante, já que os índios não formavam parte dessa
sociedade colonial.Em consequências os dominantes chamaram a sí mesmos
de brancos (QUIJANO, 2005, p. 117-118).

Quijano (2005), analisa a questão da colonialidade como um padrão de poder


que opera por meio da naturalização da inferioridade de povos, culturas, raças e
conhecimentos, mantendo a reprodução das relações de dominação. Ou seja, uma
perspectiva de conhecimento excludente que marginaliza e inferioriza como primitivo o
não-europeu, o colonizado, enquanto reconhece o colonizador como produtor
competente da modernidade, de cultura e racionalidade.
A colonialidade do poder teve encadeamentos que marcaram a existência da
população negra, a diáspora desapropriou milhares de sujeitos das suas identidades
históricas. No Brasil, por exemplo, desembarcaram cerca de cinco milhões dos povos
escravizados trazidos para serem vendidos como mercadoria, diante disso os povos
negros lutam até hoje, pela restituição de sua identidade, nós não sabemos de que África
somos, o direito de saber a nossa linhagem, nos foi negado historicamente. A nossa
identidade étnica foi apagada da história.
A partir de pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE, 2017), nota-se que a proporção de negros é maior nas faixas mais
pobres da população brasileira. Os dados indicam que pessoas que moram em lares com
rendimento médio mensal per capita inferior a R$387 reais, 18,5 por cento são famílias
constituídas por homens pretos e 19,6 por cento são lares liderados por mulheres negras.
Nessa perspectiva, como aponta Florestan Fernandes (1997), a luta de classe é
inerente em países capitalistas. Uma luta que se atualiza reforçando e mantendo os altos
índices de pobreza da população em periferias das grandes capitais e nas regiões do
interior do norte e nordeste do país. As classes sociais aparecem onde o capitalismo
progride consideravelmente, inclusive, o sociólogo brasileiro acreditava que as

sumário 1060
VII Seminário Vozes da Educação

mudanças que ocorrem no sistema de produção capitalista mantem o poder nas mãos de
determinados grupos e que por fim, excluem os demais, cultivando desta forma as
relações de poder.

[...] "sociedade de classes" possui uma estratificação típica, na qual a situação


econômica regula o privilegiamento positivo ou negativo dos diferentes
estratos' sociais, condicionando assim, direta ou indiretamente, tanto os
processos de concentração social da riqueza, do prestígio social e do poder
(inclusive do poder político institucionalizado e, portanto, do poder de
monopolizar o controle do Estado e de suas funções), quanto os mecanismos
societários de mobilidade, estabilidade e mudança sociais. (FERNANDES,
1997, p. 34)

No Brasil, apenas 11% IBGE (2017) da população negra ingressa no ensino


superior. Em 2000, antes da adoção do sistema de cotas nas universidades, a
porcentagem de diplomados era de 2,2%. Diante dos dados, apenas uma parcela ínfima
de negros que criam as suas próprias táticas de sobrevivência, aliados, por vezes a
algum movimento social que conseguem ultrapassar as barreiras e ingressar no ensino
superior. Não obstante, lidamos com as histórias de exceções de negros/as que
conseguem ascensão social, e que tem as suas histórias, consideradas histórias de
sucesso. Percursos que são utilizados, frequentemente a fim de simplificar as questões
sociais, trazendo a simples e rasa falácia de que “quem quer, consegue”. Todavia, “as
histórias de exceções precisam ser vistas criticamente para pensarmos as dinâmicas
sociais, culturais e econômicas. Precisamos questionar as regras que torna tudo mais
difícil para as pessoas negras”121. (BBC Brasil, 2018)
A partir disso, muitos jovens negros das classes populares pensam e consideram
o ensino superior como algo utópico. Esses sujeitos idealizam a Universidade Pública
como um espaço inalcançável. O movimento do PVPPP tem construído suas ações e
demandas sociais pela entrada e permanência dos jovens no ensino superior público,
buscando junto a esses estudantes mobilizações que possibilite os inéditos
viáveis(FREIRE, 2014). Que seja uma educação libertadora diante das situações limites,
tornando possível a superação frente a um processo de escolarização marcado por
vivências consideradas, por vezes, negativa, pois, como nos diz Bernard Lahire (2008,
p. 68) “a escola lugar por excelência do controle das pulsões e do uso regulamentado
dos corpos e da palavra”. A partir de experiências que se assemelham estes sujeitos se

121121
Entrevista da escritora Conceição Evaristo, concedida ao jornal BBC em 09/03/2018.

sumário 1061
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

unem coletivamente e criam seus repertórios de ação, para tornar provável uma
educação emancipatória durante a trajetória dos distintos estudantes no PVPPP.
Nesse contexto social e territorial, a desigualdade de classe está intrinsicamente
ligada à raça e gênero, sendo necessária uma análise com teor interseccional. Isto é,
considerando as nuances sobre como o racismo, o capitalismo e o sexismo são
condições estruturantes das relações humanas e como o encontro dos determinados
fatores se confluem como formas combinadas de opressão (DAVIS, 2016).
Assim, seguindo o raciocínio estabelecido é necessário partimos das
especificidades dos sujeitos que atualizam anualmente a luta do Pré-vestibular Popular
Pedro Pomar, em maioria negros/as das periferias urbanas e do norte e nordeste. Todas
essas pessoas compartilham processos de resistências em busca do seu reconhecimento
como sujeito histórico político de direito. Almejam através da educação melhores
condições de vida.
Importante ressaltar que esse embate preserva como característica preponderante
o fortalecimento da luta no coletivo, em prol do enfrentamento das desigualdades
sociais e educacionais, seguimos na contramão na formação de pessoas para fortalecer
os movimentos necessários à transformação social. Como explicita bell
hooks 122 (2017)“Um ensino que permita as transgressões, um movimento contra as
fronteiras e para além delas. É esse movimento que transforma a educação na prática de
liberdade” (HOOKS, 2017, p. 25)

A potência dos pré-vestibulares populares: o PVPPP e sua luta


Em linhas gerais, problematizar algumas questões que perpetuam na relação do
Estado e os movimentos sociais é uma das intenções do texto, a partir disso é
importante a apresentação de alguns conceitos que fazem parte da construção teórico
metodológica do trabalho, por exemplo, o conceito de “movimentos sociais”.
O termo movimentos sociais foi cunhado em 1960 para identificar multidões que
reivindicavam por mudanças pacíficas (“faça amor, não faça guerra”) inicialmente
desinteressadas do poder do Estado (ALONSO, 2009). São grupos que estabelecem
diálogos em defesa de objetivos comuns e tem como escopo a solidariedade e
identidade. Elaboram seus repertórios de ação em prol de recursos, para saúde e

122
A autora feminista e ativista estadunidense Gloria Jean Watkins, justifica a assinatura de suas obras
com o seu pseudônimo “bell hooks” grifado com letras minúsculas, pois pretende dar enfoque as suas
ideias representadas em suas escrita, não a sua pessoa.

sumário 1062
VII Seminário Vozes da Educação

educação, por exemplo. Esses coletivos nascem historicamente em meio a conflitos e


tensões, nesse caso, na luta pelo direito á educação superior.
Para fins de compreensão das lutas do PVPPP e do cenário que esse movimento
está espacialmente inserido, Carlos Bernardo Vainer (2001) nos propõe algumas
constatações, em torno do conceito de poder local, compreendido como um exercício de
poder que vai além da esfera do Estado. Isto é, a cidade além de ser constituída em uma
estrutura social desigual, aprofunda essas desigualdades. “Há, pois, toda uma ampla luta
contra a desigualdade que é estritamente urbana e que deve ser travada na esfera local”.
(VAINER, 2001, p. 27)
O conceito de poder local se articula ao pensamento gramsciano que visa se
apoiar em ideais que delineiam um Estado democrático ou para atacar todo e qualquer
Estado (NOGUEIRA, 2003).
Tendo em vista tais imposições teóricas, busco através dos embates do poder
local, indícios que me auxiliem a compreensão de: Como esse movimento vem se
mantendo por 23 anos com subsídios mínimos, situado em uma das cidades mais caras
do país? Como os(as) estudantes, professores(as) e diretores(as) do Curso de
Enfermagem, curso de horário integral formado majoritariamente por pessoas brancas
da classe média se relaciona com os estudantes negros das periferias que frequentam o
PVPPP?
Buscarei pistas epistêmicas e metodológicas sobre essa questão dialogando com
por Tavares(2017)

[...] nas entranhas do poder local a fim de encontrar pistas fecundas sobre o
longo e difícil processo de democratização do direito à educação, sobretudo
do ensino superior de jovens homens e mulheres negros e pobres do
município de Niterói e São Gonçalo (TAVARES, 2017, p. 276).

Durante esse trabalho utilizarei o termo Pré-vestibular popular, tendo em vista o


seu espaço de atuação que são as periferias urbanas, além da reafirmação de sua
identidade classista e o seu embasamento pedagógico engajado em uma educação
popular (VASCONCELOS, 2015).
Do ponto de vista deste estudo os pré-vestibulares populares, concebidos como
uma critica á elitização das universidades, trazendo como debate as desigualdades
educacionais e raciais, com foco no ensino superior. São considerados um dos
movimentos de lutas populares mais importantes do país, tem como pauta a luta por

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

uma universidade pública menos excludente, e o compromisso com uma pedagogia


revolucionária de resistência, isto é, uma pedagogia profundamente anticolonial
(HOOKS, 2017).
Na década de 1970, já existiam no Rio de Janeiro, registros de cursos Pré-
vestibulares para grupos socialmente marginalizados, porém este movimento se
fortaleceu nos anos 1990 por todo o país. Nesse momento, os debates eclodiram sobre
questões raciais e as desigualdades latentes ao processo de escolarização, que ficam
mais evidentes durante a seleção para o ingresso nas universidades públicas,
denominado como o vestibular.
Um dos cursos mais significativos na época foi o Pré-Vestibular para Negros e
carentes (PVNC), movimento ligado a Igreja Católica com vertentes do movimento
negro. O primeiro núcleo foi criado em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, em
1993, formado com uma equipe de quatro coordenadores e dez professores, ligados a
militância católica de corte racial, tendo como figura emblemática nessa empreitada o
frei David Raimundo dos Santos, que mais tarde criou Educação para Afrodescendentes
e carentes (EDUCAFRO).
A partir disso, houve uma forte difusão dos pré-vestibulares populares pelo
estado e pelo país. Hoje em dia, são centenas de cursos populares, ligados ao
movimento negro, às igrejas ou as universidades (VASCONCELOS, 2015).
Em 1999, iniciou-se um declínio nos núcleos do PVNC, mesmo com a
diminuição, não se tratava do fim do movimento, mas sim de uma reorganização.
Houve o surgimento de outros cursos autônomos, como o EDUCAFRO (Educação e
Cidadania para Afros descendentes e Carentes), o MSU (Movimento dos Sem
Universidade) fazendo um movimento cada vez mais plural.
A partir dessa conjuntura, houve uma enorme diversificação e surgimento de
cursos de várias origens e tipos. Diante disso, se intensificaram as demandas em torno
de políticas públicas que pudessem facilitar o ingresso, permanência e o sucesso dos
estudantes das classes populares em universidades públicas.
O Pré-Vestibular Popular Pedro Pomar (PVPPP) funciona desde 1996, nas
dependências da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa, na Universidade
Federal Fluminense (UFF) ele foi criado durante a gestão do diretor Carlos Alberto
Mendes. A escola de enfermagem fica localizada no centro de Niterói, região
metropolitana do estado do Rio de Janeiro, situada próximo ao complexo de favelas do
Morro do Estado, que foi denominado como bairro pela Lei 4.895 em 1986. É

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VII Seminário Vozes da Educação

considerada uma das maiores favelas da cidade em número de habitantes e em


densidade demográfica. A chácara, como é chamada por moradores, e o morro do arroz
fazem parte do complexo de favelas que compõem o morro do estado, todavia a chácara
é a favela que fica espacialmente mais próxima da Escola de Enfermagem Aurora de
Afonso Costa. Vale ressaltar que traficantes de drogas do complexo do Morro do Estado
costumam se confrontar permanentemente entre si pela disputa de pontos de drogas.
O fato de o PVPPP situar-se territorialmente no centro da cidade possibilita que
estudantes, professores e coordenadores que moram em São Gonçalo (sendo estes a
maioria no Projeto) façam parte do movimento, considerando a facilidade financeira de
se mobilizar, ponderando que a passagem dos coletivos em Niterói é uma das mais caras
do Brasil.
Inicialmente, o PVPPP era vinculado ao PVNC, movimento pautado fortemente
em promover a inclusão da população negra nas universidades públicas. De acordo com
relatos de coordenadores/as antigos o PVPPP foi criado por militantes estudantes da
UFF, que eram filiados ao Partido dos trabalhadores (PT) e ligados ao movimento
negro. Nessa época a coordenação pouco funcionava de maneira coletiva, as decisões
eram concentradas na maioria das vezes em uma figura central de um coordenador.
Em 1999, houve alguns embates políticos internos sobre os caminhos que o até,
então núcleo do PVNC, seguiria. Um grupo defendia que o movimento precisaria
avançar na luta com uma concepção mais classista, norteada para a transformação
radical do sistema, enquanto outro grupo desejava permanecer vinculado ao Pré-
vestibular para negros e carentes, pois compreendia que a luta seria por meio da
inserção de pessoas negras e consequentemente pobres em espaços negados. É inegável
que ao desejar evidenciar a luta de classe, não desconsiderava a luta de raça, perspectiva
latente no movimento, desde o princípio.
Posteriormente, após a decisão de romper com o PVNC nos anos 2000 o nome
do projeto mudou para Malcon-X, que foi um dos maiores defensores e ativista dos
direitos negros nos Estados Unidos, sendo assassinado em 1965. Entretanto, perceberam
que as concepções trazidas a partir disso, ainda não deixava nítido o caráter classista
que o projeto desejava evidenciar. De acordo com isso, os envolvidos nesse movimento
se debruçaram em torno de compreender a teoria marxista e se identificaram com alguns
documentos escritos por Pedro Pomar, sobre a guerrilha do Araguaia. Portanto, o
projeto foi renomeado como Pedro Pomar, militante na época da ditadura Militar e que
ajudou a fundar o partido comunista no Brasil, sendo morto pelo regime da época.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

As mudanças de nome em prol de uma recomposição de sua identidade reforça o


caráter social e inclusivo do projeto, sobretudo o seu caráter militante e comprometido
com a inclusão e a democratização do conhecimento junto à população subalternizada
do Estado do Rio de Janeiro. Leia-se jovens, pobres e negros e oriundos da escola
pública, prioritariamente. E ainda hoje, o Projeto continua com essa concepção e
intencionalidade.
As intenções políticas e pedagógicas do PVPPP não se resumem apenas na
aprovação no vestibular, por mais que essa intencionalidade atravesse todo o trabalho
desenvolvido no PVPPP. Porém o principal objetivo é a formação humana e politica
ampliada dos estudantes e professores (as) que participam do projeto anualmente. Esse
objetivo eminentemente político implica em discutir com docentes e discentes as
desigualdades sociais, raciais e de gênero que permeiam a sociedade brasileira, e que se
revelam no interior das escolas e da universidade pública. De modo geral, acreditamos
na Educação Popular como mecanismo de luta fundamental nas transformações das
desigualdades educacionais, principalmente quando pensada como prática de liberdade,
como nos ensina Paulo Freire (2014).
Do ponto de vista da composição dos sujeitos e da representação de sua
identidade coletiva, em linhas gerais, o Pré-Vestibular Popular Pedro Pomar é
constituído por mulheres e homens na faixa etária de 17 a 50 anos. A maioria dos
sujeitos que participam do projeto são mulheres e homens trabalhadores/a que conciliam
a sua jornada de trabalho com a atuação no projeto, seja como estudantes,
coordenadores/a ou professores/a. O maior número dos estudantes presentes nesse
espaço é a primeira pessoa da sua família a tentar o ingresso em uma universidade
pública, sendo a grande maioria, do ponto de vista étnico-racial, negra, nascida e criada
nos bairros pobres e populares da periferia de Niterói e São Gonçalo ou, migrantes dos
estados do norte e/ou do nordeste brasileiro, oriundas dos fluxos migratórios produzidos
pelo capitalismo desenvolvimentista ao longo das últimas décadas.
Atualmente, o projeto tem a sua coordenação composta majoritariamente por
pessoas negras, em maior parte mulheres e ex-estudantes do projeto. A sua organização
é intrinsecamente pautada no coletivo, portanto toda e qualquer decisão precisa ser
decidida e compartilhada com o grupo. O corpo docente é composto por estudantes dos
cursos de licenciatura, a maioria é da Faculdade de Formação de Professores da UERJ,
campus São Gonçalo. Muitos graduandos vivenciam no PVPPP a primeira experiência

sumário 1066
VII Seminário Vozes da Educação

de sala de aula, ou seja, o PVPPP tem um papel fundamental na formação dos


professores em formação, que lecionam no projeto.
Denominado oficialmente como um projeto de extensão da UFF em 2014,
porém sem financiamento, o PVPPP se mantém da solidariedade de professores,
coordenadores e de subsídios mínimos que são arrecadados das mensalidades pagas no
valor de R$35 por estudantes que fazem parte do projeto anualmente. Entretanto,
normalmente, em meados do mês de julho acontece uma redução drástica na turma,
atrelada a alguns fatores, como os altos índices de violência urbana na cidade de São
Gonçalo e Niterói, desemprego, conflitos familiares e empregatícios. Com a redução da
turma, que inicia em fevereiro com cerca de 60 estudantes, no segundo semestre esse
número restringe, por vezes a menos de 50% do total de ingressantes iniciais.
Devido à evasão do grupo, bem como a ausência de recursos financeiros de
recursos mínimos para passagens de coordenadores e professores e um lanche coletivo
oferecido aos estudantes, o funcionamento integral das aulas internas e externas fica
comprometido. É Fundamental destacar que a inadimplência dos estudantes
trabalhadores que fatalmente perdem seus empregos, ou de familiares que não
conseguem arcar com a mensalidade e passagens dos filhos/as, a falta do pagamento
mensal não impossibilita que esses sujeitos frequentem as aulas diariamente, entretanto,
por falta de recursos que os impedem de se locomoverem, cerceados do direito de ir e
vir, são excluídos pelo sistema financeiro capitalista de frequentarem o projeto.

O que nos ensinam as mulheres negras que compõem a luta do pré-vestibular


popular Pedro Pomar

“A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias


para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los
em seus sonos injustos” (EVARISTO, 2007, p. 21).

Do ponto de vista de sua estrutura organizativa e diretoria, o grupo da


coordenação do PVPPP passou por diversas mudanças, entretanto nos últimos 15 anos
os personagens que tem configurado essa luta são mulheres periféricas, ex-estudantes
do projeto e negras. Quando iniciei como estudante, a coordenação era composta
preeminentemente por mulheres negras que permaneceram no projeto por cerca de 10
anos. De acordo com relatos, após esse grupo de mulheres ex-estudantes assumirem a

sumário 1067
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

coordenação, foi possível se estabelecer propriamente um coletivo de decisões, sem um


poder central.

O acesso das camadas populares ao Ensino Superior tem sido uma discussão
atual no cenário político e acadêmico. As classes populares estão historicamente ligadas
às lutas pelo direito à educação, que tem se apresentando como um dos principais
fatores que contribuem na manutenção e aprofundamento das desigualdades sociais no
Brasil.
Essas trajetórias desiguais contribuem de forma atenuada, principalmente no
caso das muitas mulheres negras das classes populares que, por vezes consideram a
faculdade como um espaço inatingível, sobretudo pelas condições concretas nas quais
estruturam a sua vida cotidiana.
Historicamente, por muitas décadas, as mulheres foram interditas do espaço
público, como quando eram excluídas da política, impedidas de votar. Na maioria das
vezes o argumento central era que os seus interesses políticos eram protegidos pelo
esposo ou pelo pai (MIGUEL, 2014). De modo histórico, a mulher é vista como uma
extensão do outro, nessa sociedade patriarcal a qual estamos inseridos, por
consequência da tardia extensão do direito ao voto a baixa proporção das mulheres nas
esferas do poder político, ainda é uma realidade. Podemos destacar, que na divisão
sexual do trabalho as tarefas e os cuidados, principalmente com crianças e idosos
consomem muito o tempo das mulheres e as liberam pouco para a vida pública, espaços
tradicionalmente ocupado por homens.
Em diálogo com essa perspectiva, entendemos hoje que a questão de gênero
constitui um dos eixos centrais que organizam nossas experiências no mundo social
mais amplo. Isso significa afirmar que, onde existem desigualdades estruturais e
conjunturais que atendem a padrões de gênero, também são definidos posicionamentos
relativos ao papel de mulheres e homens, ainda que a questão de gênero não possa ser
compreendida de maneira isolada, mas em profunda vinculação com as questões de
classe, de raça e sexualidade.
No Brasil, por sua inserção histórica e social, a mulher negra e pobre, de modo
geral, é mais vulnerável, sendo a desigualdade de gênero enraizada na sociedade
patriarcal, na qual estão inseridas, devido ao passado marcado pela escravidão brasileira
e pela estrutura desigual deste país. De modo geral, a mulher negra ainda convive com o

sumário 1068
VII Seminário Vozes da Educação

preconceito racial e de gênero, pois ser mulher e negra é um desafio na sociedade


patrimonialista e racista que vivemos.
Portanto, atualizar a luta de Mulheres por educação, em especial das mulheres
negras que constituem o Pré-Vestibular Popular Pedro Pomar é primordial para
pensarmos novas formas de organização desse projeto pautada em uma educação que
além de lutar contra o racismo, considere também a luta das mulheres por igualdade de
gênero.
A rede de apoio formada nesse movimento e as partilhas necessárias para que a
população negra possa de fato permanecer nas universidades, em especifico as mulheres
negras tem sido crucial no projeto. É incontestável a importância do projeto na vida das
mulheres que puderam vivenciar uma educação consolidada na luta de um coletivo que
a solidariedade é fundamental.
Eu, por exemplo, constituí minha identidade coletiva na luta junto a este
movimento, os fatos que pude viver na pele foram combustíveis para despertar em mim,
algumas provocações que são viscerais na constituição deste trabalho. O PVPPP foi um
divisor de águas na minha vida, a sua rede de apoio, por vezes foi essencial antes,
durante e após o meu ingresso na Faculdade de Formação de Professores. Que juntas
possamos construir coletivamente essa luta, através da encruzilhada das nossas
“escrevivências” (EVARISTO, 2017), considerada uma narrativa carregada de
subjetividade, justamente porque ela nasce num lugar socialmente distinto, que perpassa
por vezes a vida das mulheres que contribuem fortemente com o projeto.
Por entendermos o papel estratégico (ideológico, geracional, racial, cultural,
sexual, educacional e político) do pré-vestibular popular Pedro Pomar na formação
integral e humana de estudantes das classes populares, defendemos a luta com teor
interseccional, colocando em pauta as reivindicações peculiares das mulheres negras. O
que o trabalho de campo junto ao Pré-Vestibular Popular Pedro Pomar tem nos
apresentado com dados contundentes, que falam e nos obrigam a uma compreensão
mais complexa das dificuldades de fissurar essa representação negativa dos movimentos
sociais, e o caráter de classe, de gênero e de raça do movimento, ou seja, a sua
interseccionalidade (AKOTIRENE, 2019), sendo fundamental a construção de uma
análise mais complexa sobre a presença maciça de mulheres negras e, sobretudo, pobres
na luta pelo direito à educação.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

À guisa de (In) conclusões


O Pré-vestibular Popular Pedro Pomar traz uma perspectiva de uma educação
que segue tentando compreender e investir nas lacunas deixadas durante todo o
processo escolar formal, levando em consideração a experiência aprendida em casa, na
igreja, nas comunidades, com a família, etc. Ter estado presente nesse espaço como
estudante em processo de desconstrução e posteriormente estar intervindo
pedagogicamente e politicamente nesse espaço, durante a graduação, possibilitou-me
compreender de maneira mais ampla o espaço educativo e político que possibilitou que
inúmeros jovens negros e brancos pobres das classes populares ingressassem no ensino
superior. Entretanto, anualmente, os desafios para manter este espaço vivo se
intensificam por conta das dificuldades de manutenção financeira e de recursos
humanos disponíveis para atuar nesses espaços.
No entanto, considera-se mesmo diante de diversos avanços, ainda temos a
necessidade de esses espaços existirem a fim de que as classes populares ocupem o seu
direito a cursar um ensino superior de qualidade. Esse projeto nasce e permanece em
defesa do direito à educação, à entrada e permanecia na universidade pública, buscando
garantir o patrimônio educacional para os jovens negros e negras pobres. Um
movimento que se reinventa diante do sucateamento das Universidades públicas
brasileiras, dos retrocessos nos direitos adquiridos e da marginalização das
universidades públicas e dos movimentos sociais.
Do ponto de vista do funcionamento do Pré-Vestibular Pedro Pomar, por
exemplo, há muitos anos que vimos travando lutas por salas de aulas para não perdemos
os nossos espaços no prédio da UFF, na Faculdade de Enfermagem, no qual o PVPPP
sempre funcionou, temos uma enorme dificuldade em conseguir professores das áreas
exatas, tais como matemática e física, recebemos estudantes com diversos transtornos e
síndromes, mas infelizmente, não temos profissionais especializados para tais
competências limitando o nosso trabalho com essas questões.
Assim, os Pré-vestibulares populares ainda necessitam lutar e de muito apoio
social e político para manter o seu compromisso com uma educação não formal
conscientizadora que possibilite aos jovens das periferias urbanas, os que saem de sua
terra natal para tentar uma nova vida no Rio de Janeiro, aos estudantes da EJA, aos que
achavam que a idade não permitira tal audácia, enfim, a todos esses jovens e adultos das
classes populares, o poder de construir sua própria história de forma coletiva e solidaria.

sumário 1070
VII Seminário Vozes da Educação

Referências
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sumário 1071
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sumário 1072
VII Seminário Vozes da Educação

AS EXPRESSÕES DE GESTÃO DEMOCRÁTICA PRESENTES NA LEI DE


DIRETORES DO MUNICÍPIO DE MACAÉ

Alessandra da Silva Rezende Souza Martins


FFP – UERJ
alessandrasrsmartins@hotmail.com

Charge de Miguel Paiva

Jornal da República 1979 em http://tvmemory.blogspot.com/2014/08

A charge do cartunista brasileiro Miguel Paiva foi escolhida para abrir nossas
reflexões acerca das aspirações em torno da Democracia. Palavra que utilizamos
atualmente para designar uma forma de governo, um sistema político, uma ideologia
que visa estruturar e organizar a sociedade em políticas agregadoras, de garantia e
permanência à proteção das minorias, para romper com marcas históricas, que em nosso
país, nos desafia desde o período colonial: os privilégios em detrimento das elites
econômicas. De uma formação social baseada na desigualdade, na construção
processual de um regime econômico com efeitos político-culturais que sustenta o

sumário 1073
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

capitalismo com barreiras de cor, sexo e idade. Processo denominado por Bocayuva e
Veiga (2002) como Apartação Social.
No contexto brasileiro, a década de 30 inaugura um novo padrão de vida, de
relações. O padrão capitalista de acumulação industrial que se efetivou e alargou os
ideais em torno do desenvolvimento de uma sociedade moderna. As legislações
passaram a reger o início, o ritmo e a abrangência desse sistema social que não se
limitou ao campo econômico, mas que atravessou as relações sociais em sua forma de
organização política, organização territorial, sociedade civil, emprego de valores e
significados em suas produções e visão de mundo. O Estado Novo tomou o perfil de
regulador das tensões sociais, apropriando-se dos pactos pelo alto como meio para
chegar à modernização. Uma modernização conservadora legitimada por uma direita
autoritária que compreendia essa transformação pelo alto como um projeto de
constituição da nação brasileira. Era a perpetuação de um modelo político embebido de
contradições e conflitos. Uma cidadania regulada, uma cidadania em recesso. Uma
conciliação entre as frações modernas e atrasadas das classes dominantes para excluir as
classes populares do processo. Movimento que Coutinho (2008) elucida ao citar uma
“revolução passiva”, conceito aplicado por Gramsci. É nesse mesmo período, onde
nossas experiências governamentais possuíam muito mais traços oligárquicos do que
democráticos, que a educação brasileira passou a se reconfigurar.
O conceito de democracia mais difundido é o de um sistema político em que os
cidadãos elegem, por meio de voto, os seus representantes ou dirigentes. A democracia
precisa ser entendida como um processo em permanente construção como afirma
Coutinho (2002). Entretanto é necessário reconceituar o termo Democracia, como nos
sugere Morin (2016) definindo-a como um ideal e um anseio, um conceito político, um
respeito à complexidade humana em suas múltiplas expressões.
Com o intuito de problematizar a epistemologia da palavra, Bobbio (2014),
defensor do Estado Democrático de Direito, pluraliza a democracia como um dos
diversos modos de exercer o poder político, de forma que sua relação com outras formas
de governo marcam o seu caráter específico de manifestação. Em um Estado
Democrático de Direitos a organização política prevê soberania do povo em suas
tomadas de decisões, incorporando participação ativa nas deliberações que preconizam
o bem comum, o respeito à coletividade, às variadas formas de expressão e exercício da
cidadania.

sumário 1074
VII Seminário Vozes da Educação

Considerando o recorte histórico da educação em nosso país, especificamente a


partir da década de 70, a luta pelos direitos trabalhistas dos profissionais da educação,
muito influenciada pelos movimentos estudantis de 1968, decorre da organização de
ações que até o presente tempo busca afirmar seu poder de influência e transformação
social. A escola, erradamente, por muitos anos interpretada como a redentora da
sociedade ganha novos contornos que vão desde a manipulação dos indivíduos à
reprodução das desigualdades de forma sistêmica.
Com a Constituição de 1988 a Democracia passa a ser entendida para além do
indivíduo e seu direito ao voto. Ela passa a demarcar uma ampliação do papel desse
indivíduo junto à vida pública, um exercício ampliado da cidadania expressa em direitos
e obrigações, nos quais se estabelece uma relação de poder entre indivíduos e Estados,
composta de pressões e contrapressões a fim de produzir auto reconhecimento de
grupos sociais e seus projetos de acordo com Silva (1990).
O processo democrático nas unidades escolares nasce junto com o ideal
democrático de uma sociedade castigada por uma ditadura que por pelo menos 30 anos
desconsiderou os direitos civis e, consequentemente, educacionais.
Um dos grandes desafios atualmente é compreender os sentidos da gestão
democrática e superar a centralização do poder de decisão e gerenciamento na figura do
gestor, muitas vezes intitulado um ordenador de despesas, o que é um grande equívoco.
A grande questão está em transformar individualidade em coletividade e
consequentemente em exercício de cidadania, seja em qual espaço institucionalizado for
necessário. No que se refere à gestão, não é possível desconsiderar o poder da
coletividade a fim de viabilizar mecanismos de legitimação da autonomia em amplos
aspectos do cotidiano das escolas.
À medida que a gestão democrática vai sendo afirmada nas escolas, o
reconhecimento e a valorização das especificidades que nela se destacam passam a
constituir um espaço de relação subjetiva e intersubjetiva, a tecer uma comunidade de
aprendizagem baseada em sentidos de pertencimento.
Nossa reflexão avançará na busca por compreender o processo de transição entre
gestões escolares forjadas por indicação política e gestões escolares essencialmente
advindas da escolha do povo macaense. Analisaremos pontos centrais da Lei de
Diretores no município, sua aplicabilidade e colaboração para a formação de um senso
crítico e ético no trato com a administração do que é público. Quando menciono

sumário 1075
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

administração refiro-me ao zelo daquilo que pertence ao povo, sem pactuação com a
administração especificamente capitalista criticada por Paro (2016).
Macaé, nacionalmente conhecida como “A Princesinha do Atlântico”, por anos
intitulada a “Capital Nacional do Petróleo”, atraiu brasileiros de diferentes localidades
desde a década de 70 em busca de oportunidade no mercado de trabalho e estabilidade
profissional com a instalação de bases da Petrobrás. Entretanto, originalmente sua
produção era alicerçada nas atividades agrícolas e práticas comerciais urbanas
potencializadas por uma rede férrea responsável por ligar a cidade aos progressos
econômicos presentes na capital do Rio de Janeiro. Estudos elaborados por Rocha
(2019) revelam que os novos contornos a forjar uma capital nacional do petróleo não
respeitaram a identidade local em Macaé. O regime militar da época encerrou as
atividades das oficinas ferroviárias no bairro Imbetiba, para atender aos avanços da
exploração petrolífera.
A cidade fica no norte fluminense, cerca de 180 quilômetros da capital do
Estado e já viveu anos de muito progresso chegando a comportar sede de importantes
empresas multinacionais do petróleo. O município, segundo fontes do IBGE, possui
244.139 pessoas em 2017, contra 67 mil habitantes na década de 1970. Estabelecendo
assim, um desafio aos governantes de corresponder com as expectativas de quem chega
à cidade com o anseio de encontrar não somente oportunidade de emprego, mas
estrutura em seus serviços básicos como saúde e educação. O crescimento populacional
sem planejamento habitacional e a falta de políticas públicas em áreas como a segurança
geraram uma combinação que inevitavelmente fez surgir zonas periféricas de grande
carência e vulnerabilidade semelhantes às grandes capitais.
A crise financeira de 2013 e os escândalos de corrupção envolvendo grandes
diretores das empresas ligadas à Petrobras acarretaram numa demissão em massa de
trabalhadores, que no caso macaense, muitos eram vinculados aos serviços do ramo
petróleo e gás. Empresas de pequeno porte foram fechadas e comerciantes locais foram
atingidos com um esvaziamento da cidade, acentuado pelo perfil de uma população
flutuante formada a partir dos vínculos empregatícios firmados.
O modo de habitar a cidade macaense e as relações sociais foi alterado. O
impacto de uma crise econômica provoca mudanças para além das quantificações
financeiras. Ela mexe com estruturas de organização dos espaços, emprego de valores e
ideais para determinado local. As certezas foram substituídas por dúvidas emergentes

sumário 1076
VII Seminário Vozes da Educação

provocando um movimento de busca por uma reinvenção no cenário nacional e


internacional.
Macaé é o polo de suporte das atividades offshore da Bacia de Campos, segundo
o site oficial da prefeitura. Em 2019 a previsão é de um repasse em torno de 28%
relativos aos royalties para custear as obras públicas de infraestrutura do município. No
ano anterior, até o mês de junho a arrecadação chegou a R$ 258.283.504,04. O que
viabilizaria maiores investimentos na cidade, sobretudo na educação se considerarmos a
lei 12.852/2013, que estabelece o repasse de 75% dos royalties para a educação básica.
No tocante à educação, este trabalho se debruçará no marco entre os anos de
2009 a 2019. Uma década de transformações profundas na estrutura organizacional das
escolas municipais, frente a uma crise econômica e identitária de abrangência nacional,
no qual ideais como autonomia, liberdade e democracia são postos em evidência.
Em 2009 um expressivo concurso público para profissionais da educação foi
aberto com 255 vagas iniciais. Em diferentes áreas de atuação os novos concursados,
muitos advindos de outros municípios, substituíram no ano seguinte parte dos
contratados e oficineiros que possuíam exigência mínima para atuação nos cargos. Uma
intenção de reforma na educação macaense parecia estar em curso.
Novas regras foram implantadas para ocupação das funções de direção das
escolas municipais no ano de 2011 e provas para certificação foram aplicadas criando
um critério básico: todos os diretores necessariamente deveriam possuir nível superior.
No mesmo ano houve eleições diretas nas escolas e, em muitas, a substituição de
diretores sem nível superior e dos que atendiam ao critério básico, mas não haviam
passado na prova objetiva foi realizada pela chefia imediata do executivo. Novas
gestões passaram a compor o quadro administrativo e pedagógico. Os anos posteriores
foram de continuidade às ideias de maior participação da comunidade escolar no
processo de escolha dos seus representantes na gestão. A renovação ou continuidade
desses representantes se daria por meio de eleições de três em três anos.
O ano de 2012 foi marcado por mais um grande concurso público. Podemos
perceber o projeto que se firmava para romper os vínculos de mandatos políticos e
contratados, especialmente na educação, formados durante muitos anos.
Nesta década demarcada aqui, três mandatos já foram vivenciados através da
experiência em eleições. Macaé se destaca por ser o único município a implantar uma
lei que valoriza a voz das comunidades escolares, entre as cidades que compõem a

sumário 1077
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

mesorregião do norte fluminense – código 4 (Macaé, Carapebus, Conceição de Macabu


e Quissamã).
A Lei Complementar do Município de Macaé – 269/2017, que foi uma
atualização da Lei Complementar 234/2014, dispõe sobre a gestão democrática na rede
municipal de ensino e apresenta quinze capítulos que estabelecem normas que
abrangem aspectos da seleção, formação e avaliação do gestor por exemplo. Limitarei
minha análise e reflexão ao Capítulo Primeiro que trata da Gestão Democrática na Rede
Municipal de Ensino de Macaé, observando seus dois artigos.
O capítulo 1 em seu art. 1º apresenta a gestão democrática como um princípio
previsto em cinco documentos oficiais: a Constituição de 1988, na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (9394/96), no Plano Nacional de Educação, na Lei Orgânica do
Município de Macaé e no Estatuto do Magistério Público Municipal.
A complexidade em torno da sociedade atual revela a necessidade de explorar as
manifestações de democracia em diferentes espaços institucionais. Neste cenário a
escola passa a ser identificada como um lócus capaz de exercitar uma proposta de
gestão democrática e participativa, porém muitas vezes centrada na figura do diretor
escolar.
O termo Gestão Democrática aparece muito recentemente na história da
educação brasileira, especificamente em cinco importantes documentos oficiais citados
na lei 269/2017: a Constituição de 1988 no artigo 206, que estabelece a Gestão
Democrática como um princípio no ensino a ser ministrado, a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação em seus artigos 14 e 15 que evidencia a gestão democrática por meio da
integração e participação dos profissionais, da comunidade escolar e local no que tange
à autonomia pedagógica, administrativa e financeira, o Plano Nacional de Educação em
sua meta 19, que visava assegurar, no âmbito das escolas públicas, a efetivação da
gestão democrática da educação, num prazo de dois anos, a Lei Orgânica do Município
de Macaé que prevê diretrizes que fortalecem a participação popular na formulação, no
acompanhamento e na organização de políticas educacionais, assim como na prestação
de contas dos recursos destinados à educação e na formação e consolidação dos
colegiados escolares e o Estatuto do Magistério Público Municipal que orienta sobre as
atribuições do Diretor e Diretor Adjunto das Unidades Escolares.
O capítulo 1, art. 1º da lei 269/2017 faz a observância de três preceitos
intimamente ligados ao processo eleitoral, a favorecer maior transparência no processo
seletivo de professores para ocupação da função de diretor, progressiva autonomia na

sumário 1078
VII Seminário Vozes da Educação

gestão administrativa, financeira e pedagógica da unidade escolar e efetiva participação


da comunidade no processo educacional.
No que tange à transparência no processo seletivo de professores para a função
de diretor, a interpretação que podemos fazer inicialmente está ligada a garantia de um
processo livre de interferências político-partidária, mas podemos aprofundar essa zona
aparente e versar sobre a ideia de essa transparência corresponder aos desejos de
liberdade expressos numa democracia ao que corresponde à impessoalidade prevista na
Constituição Federal de 1988 em seu artigo 37.
A escola pública sempre foi campo de disputa na história do nosso país e sua
defesa e universalização remonta o tempo dos Pioneiros da Educação. Intelectuais como
Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro denunciavam desde o Manifesto Mais Uma Vez
Convocados, em 1959, em Gondra e Magaldi (2003), a necessidade de ter profissionais
melhor preparados, com avaliação dos seus conhecimentos a fim de não tolerar leigos,
dilentistas, amadores nas esferas educacionais. A crítica era expandida ao excesso de
centralização das políticas públicas, ao mandonismo que promovia um abandono da
educação.
A transparência requerida na lei 269/2017 nos remete à liberdade disciplinada
defendida pela nova geração de intelectuais que assinaram o Manifesto acima citado. É
reconhecer um dos legados de Anísio Teixeira: o entendimento de que educação não é
um privilégio, mas um direito, pois políticas meritocráticas configuram políticas de
distinção, de exclusão social como contribuem as reflexões de Bourdieu (2014).
A progressiva autonomia na gestão administrativa, financeira e pedagógica da
unidade escolar foi alvo de estudos de Sousa (2006), concebidas de forma integrada e
interdependente. A primeira compete à capacidade de gerir planos, programas, pessoas.
As situações cotidianas envolvidas de imprevistos e desafios. A segunda trata da
autonomia em fazer uso de recursos financeiros segundo as necessidades de cada escola.
E por último, a habilidade em mediar as concepções e metodologias de ensino,
respeitando a pluralidade dos componentes curriculares. As três dimensões de
autonomia possuem certa fragilidade se considerarmos que a escola não é um
organismo separado das questões governamentais. Ou ainda, de forma mais ampliada, a
escola não está fora do Estado. Bourdieu (2014) ressalta as implicações entre a
autonomia da escola e as funções de classe em seu interior, reflexo de uma sociedade
dividida em classes.

sumário 1079
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Paro (2016) discorre sobre as contradições em torno dessas dimensões da


autonomia na gestão escolar. O autor defende a ideia de que autonomia é uma conquista
das camadas trabalhadoras e que jamais será concessão espontânea de grupos que estão
no poder. Há ainda por parte do autor relativa preocupação com a função atual do
diretor, que por vezes, assumindo tantas tarefas, esbarra nas burocracias do Estado que
quando convém dilui sua responsabilidade junto ao suporte à gestão escolar.
Sousa ao citar Cury (2012) atenta para a dificuldade de imaginar por onde
começar uma gestão democrática sem autonomia. O que implica em dizer que
autonomia e democracia necessariamente devem caminhar juntas, uma dando sentido a
outra. Daí a importância de destacar essas dimensões da autonomia na direção da
escola pública como mais uma conquista dos tempos modernos da nossa história, uma
vez que ainda não nos distanciamos dos resquícios de uma ditadura.
Completando o art.1º do capítulo 1 da lei 269/2017, destaca-se a efetiva
participação da comunidade no processo educacional. Pressuposto fundamental na
manutenção de uma gestão democrática. A participação da comunidade nas tomadas de
decisão estreitam relações e diminuem os riscos de exercício de uma gestão autoritária.
Os conselhos escolares, as associações de pais e mestres, o grêmio estudantil funcionam
como uma extensão da autoridade conferida ao diretor escolar e necessariamente
precisam ser preservados como mecanismos de suporte à gestão. Através da
institucionalização desses mecanismos a qualidade da educação, nossa busca constante,
passa a ser algo projetado, alvo a ser alcançado com ações previstas por uma
coletividade num processo crítico e reflexivo e não meramente um ideal verbalizado,
mas vivenciado no cotidiano.
Finalizando o capítulo 1º da referida lei aqui analisada, em seu art.2º, pode ser
observado que as dimensões da autonomia na gestão escolar serão asseguradas por dois
grupos distintos, porém interdependentes: a equipe gestora, composta por diretor e
diretor adjunto ( que não possuem funções distintas), integrada às Associações de Apoio
às Escolas e Conselho Escolar, amparados pela Supervisão de ensino, Orientação
Pedagógica e Educacional. E o Conselho Escolar, que integra todos da comunidade
escolar (funcionários da escola, pais de alunos, alunos) numa efetiva participação no
processo de gestão.
A proposta de uma atuação integrada caminha em direção ao sucesso da gestão
quando cada um dos integrantes acima mencionados compreende seu papel na dinâmica

sumário 1080
VII Seminário Vozes da Educação

de cuidado e responsabilidade, frente a uma instituição social própria do povo


fundamental na trajetória de transformação social. A escola pública.
Nessa perspectiva, A eleição para diretores de escola é mais um passo em nossa
trajetória de legitimação da democracia em nossas instituições de ensino. Entretanto, os
sentidos e expressões da democracia não se limitam à eleição. Ela por si só não é capaz
de garantir que o cotidiano das relações não seja pautado em uma gestão autoritária e
centralizadora. O caminho até a efetiva democracia se faz com quebra de paradigmas,
com olhar crítico e reflexivo para o nosso passado, em um processo formativo
permanente de ensinar-aprender sobre democracia sem naturalizar as relações humanas
verticais, como lembra Tiriba (2018) ao citar Paulo Freire.
Enquanto gestora de uma unidade escolar, marcada pelas tensões próprias de
uma comunidade de periferia, parto da ideia de que precisamos explorar mais o
cotidiano escolar com pautas relacionadas à autonomia, liberdade, cidadania. A justiça
social deixará de ser um anseio e ganhará formas à medida que esses princípios sejam
vividos nas dimensões mais amplas possíveis, considerando a voz dos integrantes da
comunidade escolar em assuntos que permeiam tempo/espaço, currículo/planejamento.
Transformando a estrutura interior das escolas, que ainda revelam práticas excludentes.

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sumário 1081
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 1082
VII Seminário Vozes da Educação

ARTE E PESQUISA-DEVIR-CONVERSA COM A EDUCAÇÃO DE JOVENS E


ADULTOS

Fernanda Cavalcanti de Mello


FFP/UERJ
diart.fernanda@gmail.com

Mesmo quando partimos com um mapa, os ventos, as


marés e a própria viagem vão nos transformando e
transformando nossos caminhos. É preciso deixar-se
levar...(Andrea Serpa).

Retomo, neste texto, a análise dos resultados da pesquisa “Intervenções


Artísticas” que teve seu campo inicial os jardins do Museu da República (Rio de
Janeiro), para o trabalho final do um curso de pós-graduação em Patrimônio Artístico e
Cultural-UNB que cursei em 2018. Na ocasião, propus uma intervenção artística no
jardim do referido museu por estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e
respectivos professores. Para tanto, selecionei na internet obras de intervenções
artísticas ocorridas naquele espaço museológico buscando inspirar os estudantes para
também intervirem no espaço-jardim. A ideia da intervenção foi experimentar uma
forma de conhecer, reconhecer e apropriar-se de um espaço público. A (re) leitura da
pesquisa que realizo agora busca reconhecer mudanças metodológicas ao longo do
caminho da mesma, na medida em que a pesquisa ia se desenvolvendo e retomada, em
novas oportunidades de experimentar intervenções em espaços públicos com a EJA. A
metodologia pensada inicialmente era o diálogo multirreferencial, mediada pela
elaboração de um mapa afetivo, onde foram registradas as memórias da pesquisa, ou
melhor, das experiências da pesquisa.Todavia, percorrendo o caminho da pesquisa
praticada, encontrei muitas pegadas, em diferentes direções, de diferentes tamanhos, em
tempos diferenciados de registro. Estas iam e vinham em diferentes direções, pois nem
todos os participantes iniciaram a pesquisa ou entraram nas conversações ao mesmo
tempo. A própria pesquisa foi sendo desenvolvida em momentos distintos; finalizada...
e retomada em outras paisagens, mesmo finda a especialização. Pois o principal

sumário 1083
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

resultado da pesquisa vem a ser, justamente, a continuidade das intervenções feitas com
aqueles e outros participantes, somando novas intervenções artísticas, com o referido
público, e com outros públicos. Reconheço a pesquisa, olhando para o mapa afetivo,
como um acervo vivo, que pode ser listado em um livro tombo de novos afetos,
patrimônio imaterial dos mais relevantes, sempre colecionando novas experiências, em
um movimento rizomático (Deleuze, 1996), sempre que ‘damos voltas com’ o outro.
Nesse caso com a EJA e com os estudantes, professores, artistas, educadores e usuários
de museus, quando com eles, conversamos. Sobre a noção de conversa retomamos com
Alves e Ferraço (2018, p. 42) a etimologia do verbo “conversar” apresentada por
Maturana (1997, p. 167) que diz (...) a palavra conversar vem da união de duas raízes
latinas: cum, que quer dizer ‘com’, e versare que quer dizer ‘dar voltas com’.
No caso da pesquisa aqui retratada, conversa-se com a EJA e demais
participantes, mas também com o outro-eu, visto que a “[...] interlocução, tanto com os
sujeitos da pesquisa quanto com os autores e colegas, serve de bússola, de combustível
e alimento à pesquisa. Na leitura do outro me ressignifico, me compreendo, me desafio,
[...]” (SERPA, 2018, p. 97).
O entendimento da dimensão do eu com o outro me serviram de guia, por
exemplo, para decidir os critérios para a seleção dos artistas e respectivas obras que
seriam usadas para inspirar os estudantes a criarem suas próprias intervenções. Nesse
momento da pesquisa, conversei prolongada e seriamente comigo mesma. Se as
intervenções deveriam ser realizadas nos jardins do Museu da República, poderiam ser,
ou não, apoiadas pela instituição. Deveriam ser patrocinadas pela instituição ou à
revelia do Museu da República? Se as obras de intervenção artística seriam selecionadas
independentemente do investimento na produção da mesma, e descartaria os critérios
canônicos sobre a definição de arte? A escolha seria somente minha ou participativa?
A curadoria pedagógica, nessa perspectiva coletiva e colaborativa, em
conversas com os estudantes, com os praticantes das intervenções artísticas, e até com o
público que as recepcionam, permite-nos pensar a potência dessas conversas, para
colocar sob suspeitas os clichês-opiniões-verdades na escolha dos objetos de arte com
os quais experimentaríamos a fruição das obras de intervenção artística, de modo a que
elas mediassem também, os “fluxos, acasos, experiências, encontros, devir,
multiplicidade e permanentes aberturas para os acontecimentos” (ALVES; FERRAÇO,
2018, p. 57).

sumário 1084
VII Seminário Vozes da Educação

Definido os demais critérios, sempre coletivamente, a seleção das obras que


iriam inspirar os estudantes priorizaria: obras que utilizassem a linguagem do
audiovisual; pois, o vídeo é bastante presente no cotidiano da escola, mas nenhuma
linguagem artística estaria descartada. Por enquanto, creio ser importante ressaltar que a
intervenção assim como a conversa, são acontecimentos. Mesmo que a conversa seja
retomada, sempre haverá um novo acontecer. Como em um jardim histórico, tombado
pelo patrimônio público que, por mais que o preservemos, ocorrem mudanças e
transformações. Então me inspirei em Freyre (1994), em sua convocatória aos
professores e estudantes ‘rumo a Museus!”“, sobre a importância de cultivar o
pensamento crítico. Nessa releitura, inspiro-me em Alves e Ferraço (2018), Deleuze
(1996) e Certeau (1994; 1996), pois salta-me coincidências/evidências sobre a
metodologia da conversa como intervenção. Realizada, antes de modo bastante
empírico, porém intenso.
Após essas considerações, contarei brevemente como foram às conversas em
outros campos, como as oficinas na escola, as entrevistas-conversas com artistas,
presencial e virtualmente, as ferramentas utilizadas e as intervenções artísticas
realizadas pelos participantes. Na terceira parte, detalho algumas conversas animadas
entre mim e os participantes- mediadas pela elaboração de um mapa afetivo.
Disponível na internet, esse o mapa afetivo é um acervo pedagógico com os
registros da intervenção: textos, poemas, letras de música, narrativas biográficas, relatos
de memória, fotos, vídeos sobre o tema jardim, praça, tempo, entre outros, que surgem a
cada encontro/evento/acontecimento. Trato dos desdobramentos da pesquisa e uma
retomada da mesma, inspirada também pelos estudos do cotidiano, uma paisagem nova
para mim, pensando e praticando a pesquisa, doravante assumindo o registro
pensarpraticar de modo a renovar as tentativas de reaproximações e de mobilização
vividas pelos sujeitos na escola e outros espaços formativos, assumindo uma atitude
política defendida por Alves e Ferraço (2018) e pela pesquisa no âmbito do cotidiano.

Conversas que inventamos com os cotidianos


As conversas com os participantes da pesquisa (composto por estudantes,
educadores do museu, professores, e artistas), incialmente, demonstraram unanimidade
sobre a necessidade de ampliar a freqüência do público da EJA nesses espaços. A
constatação desse sentimento lacunar, sentido por todos, em relação ao atendimento da
EJA em espaços de memória e cultura, intrigou-me. Se o Museu da República é um

sumário 1085
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

espaço orientado pela museologia social (CHAGAS, 2017), que realiza muitas ações
artísticas, algumas de iniciativa da própria comunidade, não teria havido nenhuma
frequência dos estudantes desta modalidade? Haja vista que a instituição programa
ações cineclubistas; cede espaço para serestas organizadas pela própria comunidade;
promove eventos de música popular nos jardins, entre tantas outras atividades ofertadas
também no horário noturno, inclusive, visita mediada no horário estendido, toda última
terça-feira do mês, para agendamento pelas escolas.
Há de fato uma lacuna? E o que impede as instituições museu e escola de
conversarem sobre como preencher os espaçostempos museal também com esse
público? Talvez fosse uma questão de visibilidade ou a invisibilidade sublinhe a lacuna.
Todavia, o Museu da República realizou entre 2007-2018, várias ações para estabelecer
encontros do museu com a escola, e vice-versa para o público da EJA, em projetos de
mediação do acervo do Palácio, conforme pode ser constatada nas pesquisas de Vianna
(2015), Santos (2014), Mello (2018). Esse museu é composto pelo Palácio do Catete,
construído com “pedra e cal”, no tempo do Império entre 1858 e 1867 e do seu
respectivo Jardim. Ambos tombados pelo patrimônio público em 1938, durante o
Estado Novo, pelo então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – atual
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Sendo o jardim, um
local privativo por muitos anos, pois só foi aberto ao público a partir de 1960, quando a
propriedade residência da nobreza imperial e posteriormente dos presidentes da
república, tornou-se museu por decreto presidencial, inaugurando novos usos. Assim,
indago-me sobre os usos do jardim, igualmente monumento histórico, vivo, tombado
pelo patrimônio público, tal qual o Palácio e as frequências da EJA. Nesse espaço que
também é um espaço de Direito, a plena circulação.
Não há registros no Museu da República sobre essa frequência. Evidências
possivelmente transformadas, deterioradas na memória dos proponentes, caso tenham
sido descartados, nos mecanismos de preservação dos registros em acervo da
instituição. De certo, sobrevivente nas memórias de quem viveu experiências marcantes
no jardim.
Sem informações oficiais incialmente, busquei na internet alguns indícios sobre
a frequência dos estudantes da EJA no jardim, uma vez que a instituição informou não
haver uma estimativa oficial à época que iniciei a pesquisa. Encontrei notícias sobre
intervenções artísticas no museu, vídeos sobre o MR-RJ e respectivo jardim, feito por
visitantes, turistas, pesquisadores e também vídeos institucionais. Encontrei outras

sumário 1086
VII Seminário Vozes da Educação

intervenções patrocinadas/apoiadas pela instituição, mas algumas não dialogavam com


a discussão sobre usos do jardim histórico, sobre o tempo nos jardins e sobre uma
pesquisa caminhante, ou seja, uma pesquisa-devir-conversa.
Encontrei um projeto sobre intervenção artística subsidiada pela instituição
relacionada com a freqüência do Jardim do Museu. Essa intervenção teve financiamento
e curadoria do setor de cultura do MR-RJ e teve a intenção de incentivar frequentadores
a acessar a Galeria de Arte que fica instalada no jardim do museu. O projeto artístico
das artistas visuais Isabel Löfgren e Patrícia Gouvêa, se constitui em pesquisa
caminhante. Elas consideraram entrevistas com frequentadores à realização de
intervenções artísticas no jardim, entre essas conversas um registro de frases nos 100
bancos do parque, ditas pelos usuários do museu, além da produção de vídeos que
relacionava tempo e espaço de vivência dos frequentadores nesse espaço. As
intervenções resultaram no projeto ‘Banco de Tempo’ que ainda hoje pode ser visitado
na internet. Projeto com muitas ações interventivas, muitas acasos, encontros, conversas
e produção de muitos artefatos culturais, outras obras de arte.
Balizada pelo critério de escolha das obras, não patrocinada e à revelia da
instituição, encontrei uma intervenção artística desenvolvida no MR-RJ que não teve
patrocínio institucional, mas apoio à pesquisa para sua elaboração. Trata-se de obra
audiovisual realizada a partir de material de arquivo, por meio de uma pesquisa
documental e imagética, acerca da história do MR-RJ, desde os tempos da edificação do
Palácio em tempos do Império, final do século XIX até a atualidade. O setor de pesquisa
do museu apoiou, na medida em que, disponibilizou o seu acervo para a consulta, e, em
alguns casos, franqueou cópia de algumas imagens de arquivo.
O filme de Monica Klemz apresenta cenas dos tempos festivos da República, faz
referência a Getúlio Vargas e à sua morte; e, ainda, sobre Juscelino Kubitschek, seu
último residente, com a transferência da capital para Brasília. Algumas cenas do filme
remetem à ditadura e também ao longo período em que o museu passou por uma
restauração, a partir dos anos 90. O filme também trata do espaço jardim, dos tempos do
jardim e das pessoas que passam pelos seus diferentes tempos, no espaço e nos seus
contornos. É possível perceber diferentes motivos pelos quais as pessoas frequentam os
jardins, desde as personalidades políticas que usavam aquele espaço, até então fechado
ao público à atualidade, aberto de terça a domingo, entre 10 e 20 horas. Enfim, um
documentário não verbal, muito contundente sobre a magnitude do espaçotempo jardim.

sumário 1087
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Essa obra fílmica foi produzida a partir de um edital público e tem se destacado nos
festivais nacionais e internacionais de cinema.
Encontrei, ainda, um vídeo que me fascinou e estou chamando de Selfiepoema.
Um vídeo simples de 45 segundos, tendo o cenário o próprio jardim e depositado em
uma conta pessoal e pública no Youtube em nome do poeta George Patiño. Seria uma
intervenção artística? Seria uma intervenção com autonomia? Seria considerada uma
obra para inspirar os alunos da EJA a também produzirem seus próprios vídeos? Creio
que sim, às perguntas do parágrafo anterior.
Os estudantes e demais participantes, se assim quisessem, também poderiam se
encantar/encantar-se nesse mesmo espaço jardim. Sentir ventos, experimentar rotas de
fuga, suspender tempos, expressar desejos de criação no jardim e usufruírem também de
festas nesse ambiente, naquele que era e continua sendo “um jardim singular”. Lembro
que havia mais um critério para a seleção dos projetos artísticos. As obras deveriam
estar disponíveis na internet de modo que pudessem ser acessadas pelos estudantes.
Os três projetos selecionados levam as experiências dos jardins rede afora, assim
como os trabalhos dos estudantes. As experiências-conversas entre mim e os demais
participantes, professores e educadores do museu, artistas, estava iniciada e a
possibilidade de uma pesquisa a ser retomada, quando será possível assumir com mais
envergadura a metodologia da conversa,também.

[...] Uma metodologia que se produz com os sujeitos e suas vozes em um


movimento dinâmico, imprevisível. A cada nova palavra acrescentada, a cada
novo acontecimento vivenciado, a cada nova experiência ressignificada na
palavra do outro, a pesquisa se abre a uma nova trilha. Caminhos abertos pela
conversa (SERPA, 2018. p.95).

Assim, a intervenção artística objetiva inserir os alunos da EJA, no ser e estar,


contemporaneamente, nos mesmos tempos e nos mesmos espaços, juntos
protagonizando com outros públicos a apropriação dessa realidade e também recriando,
outras realidades como sujeitos históricos e de direitos.

Dando voltas, de mãos dadas com a EJA


A pesquisa contou com entrevistas-conversas com os artistas que selecionei;
rodas de conversa e oficinas com estudantes de Educação de Jovens e Adultos e a
intervenção artística, no jardim do Museu da República-RJ, para elaboração de um
mapa afetivo. Assim, apesar de termos empreendido uma curadoria pedagógica, a

sumário 1088
VII Seminário Vozes da Educação

mesma teve a colaboração dos estudantes e professores, principalmente na elaboração


do mapa afetivo, pois cada participante estava livre para escolher o local de captação
das imagens, intervindo no espaço jardim, fazendo um recorte pelas narrativas
autobiográficas dos espaçostempos vivenciados, a partir da relação com o lugar
preferido, para cada qual, nos instantes das respectivas intervenções. Nesse gesto, a
pesquisa ampliou possibilidades de conversas com outras redes, formando diferentes
acervos de memória desses afetos, dos/nos lugares de memória afetiva apontadas, tanto
pelos artistas, quanto pelos estudantes e educadores. O significado dos topônimos-
palavras que dava nome às obras, aos locais, e às memórias de todos os participantes
integraram o mapa afetivo, posteriormente transposto para o meio virtual, constituindo-
se em acervos pedagógicos, atualizável a cada nova intervenção artística. Um acervo a
ser reutilizado, ou aprimorado, ou ampliado, como um objeto de mediação também. É
possível fazer diferentes manuseios do mapa afetivo e descobrir novos usos para o
mesmo. Do meu ponto de vista é uma rede a ser conectada a outras redes, sempre que
possibilitar à EJA experiências afetivas com espaços de cultura e memória.
A proposição para que alunos da EJA frequentem equipamentos de memória,
cultura e educação, para além do espaço escolar, tão importante como fatores
educativos em respeito aos saberes desses trabalhadores, perpassa uma necessidade de
intervenção por parte da escola, uma vez que os trabalhadores que estudam, (PAIVA,
2013) precisam de incentivos do ponto de vista político-pedagógico para a frequência
aos museus, centros culturais, parques, jardins, etc.
O CE Amaro Cavalcanti fica no mesmo bairro do MR-RJ e seus Jardins. Apesar
dessa proximidade, os estudantes participantes da pesquisa, não frequentavam esses
espaços. Já os alunos do CIEP Inocêncio Filho que residem em Acarí, bairro da zona
norte, visitaram o Palácio do Catete em outras ocasiões e se inseriram na pesquisa
também. Os professores do CE Amaro Cavalcanti que fizeram parte da pesquisa
informaram que não costumavam passar pelo museu e não fizeram nenhuma atividade
pedagógica nas dependências da instituição. Enquanto que o professores da escola
localizada na Zona Norte costumam realizar atividades culturais, com certa
regularidade, tendo, inclusive, visitado o Palácio do MR-RJ naquele ano.
A variação de sequências didáticas aplicadas diferentemente com estudantes de
duas escolas, nessa curadoria pedagógica proposta para a pesquisa, não chegou a ser
prejudicial às vivências advindas a partir dos encontros possíveis. Primeiro, porque não
pretendíamos comparar não frequentadores, e níveis de frequência. A intenção era

sumário 1089
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

possibilitar a frequências aos museus, conforme conviesse aos estudantes. Como um


convite à conversa. Nesse movimento, a participação não era obrigatória e nem estava
relacionada a uma disciplina específica. Participaram professores de História, Língua
Portuguesa e Biologia. Apesar de a proposta ser de intervenção artística, não tive a
possibilidade de conversar também com os professores da disciplina Arte, todavia a
conversa abordava conteúdos sobre arte contemporânea.
As conversas nos encontros, nos acontecimentos das intervenções, no fluir das
obras performadas nos jardins têm, em comum, o tema do devir. As obras trazem uma
dimensão estendida no tempo e espaço. Aconteceram, mas podem ser revisitadas, ao
menos em parte, pois seus vestígios podem ser acessados virtualmente. Assim, como no
cosmos dos jardins:

O mundo do Jardim como o da arte e da cultura, não tem fronteiras e neles


têm vivido irmanadas desde mundos antigos civilizações muito diferentes,
em mutuo enriquecimento. A beleza e o conhecimento estão certos é o ponto
de encontro entre os homens de boa vontade. O Jardim reflexo da história e
de um povo é uma das mais belas formas de aproximação desde o patrimônio
vivo do nosso passado e de nossa consciência humana (IPHAN, 2015, p. 10).

Para educadores, como lembra Oliveira (2010), o Jardim pode ser definido, de
acordo com a abordagem freiriana: “o que faz um jardim é o pensamento do jardineiro”.
(OLIVEIRA, 2010, p.48). Assim é também o mapa afetivo, elaborado, em tempos
diferenciados, a cerca do jardim do MR-RJ.
O jardim pode ter muitos significados e motivações diferenciadas para cada
frequentador. Contudo, um jardim histórico, além de um lindo cenário, pode ser
também um personagem, sobre o qual uma história é narrada. Eis um desafio: como
conversar com sujeitos e com as memórias dos sujeitos em espaçostempos, diferentes
dos acontecimentos das intervenções artísticas? Para realizar a intervenção com os
alunos, de modo a dialogar com as intervenções realizadas anteriormente, em outros
momentos, com os artistas selecionados, tendo o jardim como lugar para ser/estar? Foi
necessário criar outro espaço, ou uma nova rede. Era preciso também que a EJA, ao
menos naqueles que participaram da pesquisa, inaugurasse a frequência ao jardim, a fim
de conhecer e se familiarizar com o espaço jardim.
Por isso, idealizei um mapa afetivo como um lugar de encontro presencial e
virtual. Presencialmente, a partir da planta do jardim, cada participante registrava seu
lugar preferido de observação e de interação com o jardim. Além de sinalizar no mapa

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VII Seminário Vozes da Educação

os diferentes lugares, era solicitadas que descrevessem a razão pela preferência,


lembranças e ou descobertas sobre o espaço jardim e de outros lugares de deleite e
contemplação. Por isso, não importava tanto a intimidade do participante com o jardim,
mas o registro de alguma memória passada ou inaugurada a ser atualizadas como
lugares de afetação e fruição no seu fazer artístico.
O mapa afetivo analógico, posteriormente foi transposto para o meio digital,
contendo as intervenções artísticas, os registros das conversas, entrelaçamentos de
memórias e significados para ser acessado e lido por todos os participantes,
independentemente de quando e onde fosse acessado. E ainda pudesse ser lido por
outros leitores, com possibilidades de interação, uma vez que o acervo aceita novas
postagens e novas releituras, como as que faço, ainda, sobre ‘conversas como
possibilidade de pesquisa com o cotidiano’ que de acordo com Serpa (2018), nos ajuda
a não temer incertezas, limites da nossa compreensão, possibilidade de tradução, de
encontros que não acontecem no mesmo tempo para os diferentes interlocutores.
Apensar dos tempos diferenciados, não se encerra quando se despedem. Uma conversa
que existirá quando as pessoas que conversam se afetem mutuamente. A importância de
narrar uma experiência é abrir-se ao encontro. Conforme SERPA (2018),

[...] ao compartilharmos uma experiência, retiramo-la do seu lugar fixo para


entregá-los ao mundo, não sendo mais apenas nossa, ela ganha milhares de
outras narrativas possíveis milhares de tons, milhares de possibilidades. Uma
pesquisa a sua leitura por outros sujeitos será uma porta aberta para o infinito
(SERPA, 2018, p.106).

O mapa afetivo elaborado registra os lugares selecionados para as intervenções


artísticas no Museu da República; os registros das entrevistas-conversas, das atividades
realizadas na escola; as intervenções feitas pelos artistas, estudantes e professore; de
memórias narradas sobre outras vivências e afetos entrelaçadas àquelas, e também em
outros instantes interventivos, em outros movimentos da pesquisa.

Sentidos das intervenções mapeadas e os afetos locais: conversas confessionais


O local escolhido pelas artistas Isabel Löfgren e Patrícia Gouvêa é a ilha.
A ilha artificial fica embaixo de uma árvore frondosa, em uma clareira, próximo ao
portão central do parque, quase beirando à pista de acesso da Praia do Flamengo. Elas
escolheram esse local porque, segundo as mesmas, lá é possível olhar a paisagem de
todo o parque. Segundo as artistas, tem também uma configuração romântica que

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

remete a história da pintura. As artistas lembram que o trabalho no Jardim do MR-RJ


proporcionou uma germinação de amizades frutífera e muito duradoura. As duas artistas
ficaram grávidas no mesmo período, durante as pesquisas e intervenções artísticas
realizadas nos jardins do MR-RJ, entraram em trabalho de parto no mesmo dia e os
filhos nasceram em questões de horas de diferença. Isso fez com que ficassem ainda
mais ligadas e realizassem mais trabalhos conjuntamente. No acervo virtual, realizamos
com os alunos pesquisas sobre o significado da palavra ilha, diferentes ilhas nomeadas
no planeta terra e também fizemos referências àquelas ilhas referenciadas no velho
testamento e também as engendradas nos espaços e cenários literários, fílmicos, etc.
Para a cineasta Mônica Klemz, as pontes no Museu da República têm o brilho
da água e também o registro uma imagem que muito a impressionou. Uma edificação do
período da república, quando remodelada para receber os presidentes-residentes do
Palácio. A ponte tremete a ela a uma imagem de arquivo constante no acervo da
instituição. “Uma fotografia que mostra um presidente na ponte, com os seus ministros
todos brancos, de um lado, e, do outro lado, negros, com roupas bem simples, olhares
abatidos, olhando para um lugar que não se vê”. (Klemz, 2018). Para a artista, é a foto
mais icônica do jardim e que fez questão de filmar para composição do seu filme.
Conversando um pouco mais com a cineasta, ela mesma traz memórias de outras pontes
e jardins, que frequentava com seu pai, quando criança e sobre a vontade de contestar o
fato de que, as cidades metrópoles são todas iguais e se parecem com um shopping
Center, como apontam alguns teóricos. Por isso, a ponte está entrelaçada também pelas
memórias de infância e juventude e vida adulta.
Segundo a professora Joana Campos estar próximo água é algo que lhe dá
tranqüilidade e permite apreciar os sons, os cheiros, a movimentação das folhas. O título
do seu vídeo é “O Parque, Os Pássaros e As Crianças”. O interessante nesse título,
para além do filme que captou revelando uma bela vista do jardim, é fato de não ter sido
captado nele nenhuma imagem de pássaros, nem de crianças. É como se o parque os
englobasse. Questionada sobre o título, ela respondeu que, embora, crianças e pássaros
não tivessem aparecido nas imagens, era possível reconhecê-las estando naquele lugar,
pois se escuta, ao fundo, os sons deles, das crianças e dos pássaros. Não foi fácil para
ela se desapegar das imagens que capitou. Ela queria fazer novas imagens, desta vez
com seus filhos, no momento de um passeio futuro que ela planejava fazer no jardim.
Ela também frequentou o Museu da República em outras épocas anteriores aquele
momento. Trabalhava em uma empresa privada próximo ao Museu, nem atuava como

sumário 1092
VII Seminário Vozes da Educação

professora. Segundo a professora, no momento da intervenção artística, estava voltada a


passar mais tempo com a família e proporcionar mais instantes de lazer em família.
Talvez olhar outras famílias que estavam no parque, como a famílias de gansos e patos,
babás e mães com suas respectivas crianças, tivesse despertado a captar esses sons no
bosque.
Mateus Fontes preferiu registrar o prédio que passa por restauração e fica
próximo a Casa das Máquinas e ao departamento de reserva técnica do Museu. Ele não
só registrou as imagens caminhando por entre folhagens até chegar a frente ao edifico
histórico, como narrou a importância de preservação dos prédios tombados pelo
patrimônio. Nada ensaiado, sem roteiro. Mas algo que parece ter surgido na relação com
o espaço naquele momento. Embora ele nunca tivesse ido ao jardim, sua mãe era
freqüentadora assídua, pois trabalhava em uma casa em frente ao MR-RJ. O sentido da
preservação do espaço em detrimento dos espaços lúdicos do uso imediato dos jardins
são pistas interessantes para perceber o pensamento/sentimento que o estudante
acalentava sobre o jardim. De alguma maneira, talvez, a freqüência da mãe, pode ter
ecoado uma experiência que apontasse para a preservação.
Ana Terra, Beatriz Rosa e Carlos Carvalho também captaram imagens como a
explorar o jardim. A câmera não ficou parada, conforme indicado na oficina. Pelo
contrário, buscava caminhos dos ventos nas folhagens, nas estátuas, na gruta, sempre
caminhando. São interessantes também os títulos. Carlos que buscou a gruta como seu
personagem principal intitulou seu trabalho da seguinte forma. “Jardim para passear e a
gruta para descansar”. Ou, o título enunciado Ana, “Beleza da Natureza e o Poder das
Máquinas”, em relação à máquina de fazer luz, a primeira casa com iluminação do Rio
de Janeiro.
Os exemplos são muitos, principalmente se explorarmos o acervo virtual do
mapa afetivo na versão digital. Nesse mapa, pela ferramenta padlet vão sendo inseridas,
a cada encontro/intervenção, novas experiências.

Reativando conversações
Três novas atividades foram realizadas no MR_RJ posteriormente o
término da pesquisa, com outras escolas e alunos, mantendo a proposta de intervenção
artística em espaços públicos. A primeira atividade de desdobramento da pesquisa foi
uma Roda de Conversa em que, cada participante, era convidado a contar sua
experiência sobre a primeira vez que visitou um jardim. A conversa aconteceu durante

sumário 1093
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

um evento intitulado Virada Política, em outubro de 2018, com a ação “Museu e Escola,
É Direito!”.
Ainda o ano passado, após convite a realizar uma ação interventiva durante a
Semana do Patrimônio Fluminense, realizamos (eu, alunos e professores) uma
intervenção artística um Ensaio Fotográfico, novamente nos Jardins do MR-RJ.
Este ano, participei de um desafio educativo cultural lançado no faceboock para
apresentação de painel a ser exposto, na UFRJ-RJ, junto à campanha #Profsou. O mapa
afetivo, com o nome dos participantes e a inscrição dos lugares de afeto escolhido por
cada um deles, foi bordado para o projeto a Docência e os fios da Memória, onde relatei
artisticamente, aquela experiência no MR-RJ. A EJA esteve presente nessa nova rede
formada.
Recentemente, em outubro de 2019, realizei outras intervenções, desta vez nos
Jardins Passeio Pública e na Praça Paris, Centro e Glória, no Rio de Janeiro,
respectivamente. Desta vez, em lugar de vídeo, os alunos realizaram um ensaio
fotográfico, com uma câmera instantânea de modo a registrar aquele momento, sem
preocupação com pose, buscando apenas uma boa incidência de luz.
Agora, nesse artigo, retomo algumas dessas falas por considero que a EJA se faz
presente também nessa rede de vozes, retomando conversas inacabadas, porque sempre
necessárias à potencia dos processos formativos em resistências às desigualdades
sociais.

Referências
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cotidianos. A Força das multiplicidades, acasos, encontros, experiências e amizades. In:
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Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf.

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sumário 1094
VII Seminário Vozes da Educação

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DELEUZE, G; GUATATARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de


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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

UNIVERSALIZAÇÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL NO BRASIL:


ACESSO E PERMANÊNCIA DA POPULAÇÃO NEGRA NA ESCOLA.

Maria Martinha Barbosa Mendonça


UERJ - FFP
friduxa13@gmail.com

Introdução
A universalização do ensino fundamental, ainda que inconclusa, é um processo
que representa mudança de qualidade na dinâmica das contradições educacionais no
Brasil. O sentido democratizador, por meio do qual parcelas da população
historicamente progrediram dentro do sistema de ensino, levou o direcionamento do
foco para o campo da permanência e qualidade como componentes essenciais do direito
à educação. De acordo com Oliveira:

A universalização do ensino fundamental gerou duas novas


demandas populares por acesso à educação. Uma materializada na
matrícula no ensino médio e mesmo no ensino superior,
implodindo, ironicamente, a vertente de economia de recursos que
originou parte das políticas de correção de fluxo. A vertente que
prosperou foi a democratizadora, por mais educação, para maior
número de pessoas, por mais tempo (OLIVEIRA, 2007, p. 686).

Ainda que as políticas que tiveram como foco a universalização do acesso não
tenham sido acompanhadas de uma série de outras políticas que ajudariam a manter esse
ingressantes nas escolas, desencadeando evasão escolar, repetência que gerou a
defasagem idade-série, a universalização permitiu um processo de democratização da
escola.
Entende-se que as políticas setoriais são de extrema importância, pois, ainda que
não resolva completamente o problema do acesso, da qualidade e da permanência, vão
ampliando os debates e temas do campo educacional de forma abrangente.
Para a superação da totalidade dos problemas educacionais que estão
intrinsecamente ligados ao sistema social e econômico, precisaríamos de um novo
sistema com outros mecanismos de funcionamento na sociedade. Portanto, nos
permitiremos aqui o debate em torno das políticas de universalização, considerando as
contradições sociais e econômicas no seio da sociedade brasileira.

sumário 1096
VII Seminário Vozes da Educação

Neste sentido, pretendo neste trabalho apontar alguns dos achados que minha
pesquisa de mestrado tem me possibilitado.

Reflexões sobre educação e o povo negro no Brasil


Início com a história do povo negro na formação do Brasil, sua luta por
cidadania e direitos, com ênfase no acesso à educação, onde focaremos no processo de
universalização e suas consequências na educação da população negra brasileira.
O Brasil é um país que teve sua construção pautada sob o pilar da escravidão,
desenvolvendo-se com caráter, ideias e práticas racistas. (SANTOS, 2015). Ideias e
práticas que ainda se mantêm no cotidiano das práticas e do imaginário social na
atualidade e que têm consequências objetivas na vida de negros e não negros na
sociedade brasileira.
De toda forma, é preciso apontar que parte da manutenção desse ideário se deve
à construção da ideia raça, amplamente difundida no contexto de formação do Brasil
que partiu de uma perspectiva biológica, social e religiosa e que serviu para justificar a
escravidão e todo o tipo de atrocidade cometido contra os povos africanos que aqui
estavam, ao mesmo tempo que orientou a naturalização da opressão e exploração
pautadas nas diferenças raciais.
O racismo científico e religioso serviu, portanto, como base da atuação das elites
brasileiras e tornou-se determinante para um comportamento segregacionista por parte
dos brancos contra negros, levando ao desenvolvimento de uma subjetividade de
autonegação da identidade das pessoas negras com o objetivo de subjugação para o
lucro. Neste sentido:

A imagem do negro tinha de ser descartada de sua dimensão humana. De um


lado havia necessidade de mecanismos poderosos de repressão para que ele
permanecesse naqueles espaços sociais permitidos e, de outro a sua dinâmica
de rebeldia que a isso se opunha. Daí a necessidade de ser ele colocado como
irracional, as suas atividades de rebeldia como patologia social e mesmo
biológica (MOURA, 1988 apud SANTOS, 2015, p. 198).

Os ideais elitistas vislumbravam que um país desenvolvido necessitava ser


repensado e reorganizado para ser inserido na nova ordem mundial capitalista. Assim,
os setores dominantes viam negativamente o fato de o país estar marcado
majoritariamente por uma população negra e/ou mestiça e temia o risco de
desestabilidade ocasionada por possíveis conflitos raciais. (SANTOS, 2015). A solução

sumário 1097
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

encontrada foi a política de branqueamento, combinada com a propagação da


democracia racial, amplamente utilizada pela elite brasileira para mascarar as diferenças
raciais (MUNANGA; GOMES, 2016; BENTO, 2012; GOMES, 2005).
A solução proposta pela elite estava pautada num ideário eugenista. Esta
almejava um branqueamento biológico, através da miscigenação, mas também
branqueamento cultural, a ideia de cultura hegemonizada com os padrões europeus, em
que se garantisse a médio e longo prazo uma hegemonia da raça branca sobre todas as
outras encontradas no Brasil.
A ideia de convivência sem conflitos, onde negros e brancos convivem
harmoniosamente, com igualdade de oportunidades, atuaria como mantenedor do status
quo, através do qual a população negra se manteria em posições sociais inferiores à
população branca e o “mito da democracia racial” serviria para mascarar a formação
histórica de desigualdades entre negros e brancos no Brasil. Sendo assim:

Esse mito pretende, de um lado, negar a discriminação racial contra os negros


no Brasil, e, de outro lado, perpetuar estereótipos, preconceitos e
discriminações construídos sobre esse grupo racial. Se seguirmos a lógica
desse mito, ou seja, de que todas as raças e/ou etnias existentes no Brasil
estão em pé de igualdade sócio racial e que tiveram as mesmas oportunidades
desde o início da formação do Brasil, poderemos ser levados a pensar que as
desiguais posições hierárquicas existentes entre elas devem-se a uma
incapacidade inerente aos grupos raciais que estão em desvantagem, como os
negros e os indígenas. Dessa forma, o mito da democracia racial atua como
um campo fértil para a perpetuação de estereótipos sobre os negros, negando
o racismo no Brasil, mas, simultaneamente, reforçando as discriminações e
desigualdades raciais (GOMES, 2005, p. 57).

Ainda que essa desigualdade nas relações raciais brasileira tenha servido como
mecanismos de reprodução do racismo nas instituições, contraditoriamente, serviu como
baluarte da luta por reparação histórica à população negra.
A transição das relações de trabalho na República exigia uma formação
educacional para garantia da mão de obra livre. A luta pelas garantias de direitos civis e
cidadania, encampada por organizações negras que emergiram nesse processo, tinham a
educação como ponto fundamental na conquista por igualdade de direitos.

A educação era concebida por aquelas associações como uma maneira de o


negro ganhar respeitabilidade e reconhecimento, de habilitá-lo para a vida
profissional, de permitir-lhe conhecer melhor os seus problemas e, até
mesmo, como uma maneira de combater o preconceito (PINTO,1993, p.238
apud DOMINGUES, 2016 p. 331).

sumário 1098
VII Seminário Vozes da Educação

As associações que surgiram na primeira década do século XX, nas quais setores
da população negra, na busca por respeitabilidade e condições iguais de vida,
reivindicavam o direito à educação. A história do povo negro e da sua educação tem um
longo caminho de negligência. As abordagens da historiografia brasileira e o processo
de questionamento dessas abordagens têm sido determinantes para ressignificar as
representações, inclusive subjetivas, sobre as ações do povo negro para sua inserção na
sociedade brasileira. (FONSECA, 2016).
A luta pela educação, por parte desses movimentos que reivindicavam a
educação formal nas instituições, combinada com garantia de projetos de autoeducação
no seio das suas entidades e associações negras, objetivava garantia de direitos iguais e
inserção social.
Por isso, é compreensível que as políticas públicas de caráter universalista na
educação básica, apesar da sua importância, não dão conta de efetivamente garantir
justiça social para indivíduos que foram marcados, historicamente, pela exclusão,
desigualdade e privação de direitos básicos, como escola, saúde, moradia, emprego etc.
De qualquer forma, a população negra consegue acessar minimamente alguns
direitos básicos, a partir da universalização desses direitos. Os dados oficiais mais
recentes mostram que avançamos, mas, é necessário expandir as políticas de ações
afirmativas. Sabendo que:

As políticas setoriais são realizadas dentro das possibilidades e da lógica


geral do status quo. A implantação de uma outra lógica requer outro Estado.
Nesses termos, se nos colocamos apenas na perspectiva desse outro Estado,
de maneira rígida, toda política setorial é equivocada, por ser insuficiente
(OLIVEIRA, 2007, p.663).

Oliveira chama atenção para os novos desafios da educação pública. Entende


que é necessário compreender as mudanças que aconteceram na educação brasileira e
como a expansão do ensino fundamental e médio, bem como as políticas públicas,
atingiram tais mudanças.
Para Oliveira é notório que é preciso mais verbas para a educação e, por isso, as
agências internacionais, como o Banco Mundial, não são, sozinhos, determinantes dos
resultados das políticas efetivamente implementadas na educação. Por isso compreende
que:

sumário 1099
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Tal tensão entre um sistema educativo em franca ampliação, por vagas e


qualidade, e uma agenda política e econômica conservadora gera um conflito
sem precedentes em nossa história educacional. Além do atendimento à
demanda por mais educação, debatemo-nos com a tensão entre o direito à
educação de qualidade para amplos contingentes da população ou sua
negação, o que pode tornar inócua a democratização do acesso, quer seja por
sua distribuição diferenciada, quer seja por, e também, relegar a qualidade a
nichos de privilégio no interior do sistema educacional (OLIVEIRA, 2007,
p.666).

Apesar de expandirem-se significativamente as oportunidades de acesso e


permanência no sistema escolar para amplas camadas da população, que evidencia a
democratização do ensino, há confrontos na perspectiva política quando há redução do
investimento público em educação, gerando assim uma tensão entre o direito à educação
de qualidade para amplos contingentes da população, ou até mesmo a sua negação, por
consequência reproduzindo a desigualdade social. Oliveira aponta que:

Ao se ampliar o acesso, visibiliza-se outra exclusão, a que se produz no


interior do sistema escolar. Passávamos da exclusão da escola para a
exclusão na escola. Os alunos chegavam ao sistema de ensino, lá
permanecendo alguns anos, mas não concluíam qualquer etapa do seu
processo de formação, em virtude de múltiplas reprovações seguidas de
abandono (OLIVEIRA, 2007, p.671).

Identifica-se, portanto, que há ao menos duas contradições presentes nesse


processo de inclusão das camadas sociais, excluídas historicamente. O processo
democratizador de expansão das matrículas no ensino fundamental e a abertura de um
novo campo de desigualdades: a própria escola. (OLIVEIRA, 2007).
As questões relativas ao ciclo de expansão das ofertas de ensino entre a maior
parte da população, que antes não tinha acesso à escola, levou a problemas na escola.
Os caminhos percorridos pelas políticas públicas em promover o acesso e a
permanência das camadas populares na escola e os entraves causados por políticas
governamentais, não subsidiaram um processo de entrada = saída com sucesso.
Um embate no qual o paradoxo entre a democratização do ensino e as
concepções no interior desse sistema revela um caminhar antagônico, com nichos de
privilégios e reprodução dos interesses dominantes, evidenciados também numa relação
meritocrática de acesso às séries finais do ensino fundamental, o antigo ginásio, por
meio de exames de admissão, como ainda ocorre em escolas de educação básica
federais, a exemplo dos colégios de aplicação ligados às universidades e o Colégio
Pedro II.

sumário 1100
VII Seminário Vozes da Educação

A temática da exclusão social passa a ganhar um novo lócus, a própria escola,


que reforça essa diferenciação social por meio de mecanismos de exclusão manifestados
na retenção, na distorção idade-série e consequentemente na evasão escolar. Essas
barreiras criadas para o progresso do aluno culminaram numa “pedagogia da
repetência”.
Essa produção do fracasso escolar atravessou os anos 80 e 90, de forma
estrutural. O sistema de ensino brasileiro não devolvia à sociedade concluintes das
etapas de formação do ensino fundamental, o que acentuava ainda mais as
desigualdades no interior da escola. Os impeditivos do sucesso escolar acima
mencionados provocaram o surgimento de políticas sistêmicas de redução dos impactos
negativos em torno da universalização do ensino fundamental. A reprovação em alguns
casos foi proibida e a política de ciclos implantada na tentativa de “regularizar o fluxo”.
Um projeto de longo prazo nos convida a refletir sobre a qualidade do ensino
ofertado. É importante ressaltar que, ainda que a universalização do ensino médio esteja
distante, nos aproximamos da possibilidade de atender a toda a população nessa faixa
etária. Um fator que permite isso é que a exclusão no ensino fundamental começou a
diminuir nos últimos anos, mantendo certo equilíbrio que permite se chegar ao ensino
médio.
Nesse sentido, em especial, nos primeiros anos da década de 2000, é que as
políticas para educação básica e superior começam a responder as demandas dos
direitos sociais, na busca por garantir a equidade etnicorracial de acesso e permanência
à educação. Porém, no campo da educação, essas diferenças ainda são discrepantes
entre a população negra e não negra no Brasil.
Segundo dados do IBGE e análise feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada – IPEA, a chance de uma pessoa negra ser analfabeta ainda é cinco vezes
maior que a de um branco. Somente uma a cada quatro pessoas negras tem acesso à
universidade, sendo que esta proporção também se reproduz nos primeiros anos de vida
de uma criança, ou seja, também na educação infantil, que compreende da creche à pré-
escola, crianças de 0 a 5 anos, que a escolarização líquida de negros é
significativamente inferior à dos brancos.
Para o acesso a bens e serviços essenciais e a conquista da representatividade
política, o acesso à educação de qualidade é basilar para que a população negra possa
superar as desigualdades sociais a que foi relegada. Em nossa sociedade, depois da
família, a escola é a instituição em que a criança passa o maior tempo de sua vida, tendo

sumário 1101
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

responsabilidade sobre os processos de socialização, transmissão de conhecimentos


construídos, visão de mundo e até determinando comportamentos.
Por isso, reivindico aqui o papel sine que non que a Escola possui na
manutenção ou na superação das desigualdades sociais e raciais.

Evidentemente, a desigualdade e a exclusão permanecem. Não é por isso que


sequer o ensino fundamental tenha deixado de ser etapa produtora de
desigualdade educativa. Além disso, os discriminados de ontem continuam a
ser os discriminados de hoje. Mas a desigualdade existente hoje não é mais a
mesma e nem ocorre nos mesmos termos da que ocorria no passado
(OLIVEIRA, 2007, p.682).

Como instrumento de sociabilidade e sociabilização dos seres humanos, a Escola


possibilita a construção de valores diversos e principalmente de negação ou afirmação
de identidades.

Ninguém nasce com preconceitos: eles são apreendidos socialmente no


convívio com outras pessoas. Todos nós cumprimos uma longa trajetória de
socialização que se inicia na família, vizinhança, Escola, igreja, círculo de
amizades e até em instituições enquanto profissionais ou atuando em
comunidades e movimentos sociais e políticos. Sendo assim, podemos
afirmar que os primeiros julgamentos raciais apresentados pelas crianças são
frutos do seu contato com o mundo adulto. As atitudes raciais de caráter
negativo podem, ainda, ganhar mais força na medida em que se convive em
um mundo que coloca as pessoas diante do trato negativo do negro, do índio
da mulher, do homossexual, do velho e do pobre (MUNANGA e GOMES,
2016, p. 182).

É no espaço escolar que somos confrontados com a diversidade, reproduzindo


ações e/ou negando outras. No campo das relações raciais, a escola historicamente
reproduziu as ideias da elite dominante, mas, na atuação sobre ela, em vários aspectos,
incluindo sobre seu currículo e material didático temos alcançado modificações
importantes no combate aos diversos preconceitos.
Assim, apesar das contradições, a escola pode ser instrumento de
reinvindicações e lutas da mesma forma que serve como reprodutora das ideias da
classe dominante. No entanto, podemos transformá-la em um dos mecanismos de
atuação consciente no mundo principalmente no combate ao Racismo.
Ainda que não seja a solução para todos os problemas da população negra, a
escola é primordial na formação de intelectuais que pensem e atuem na defesa da causa
negra, pela garantia de direitos civis para a inserção social desde o mercado de trabalho
até a representatividade política.

sumário 1102
VII Seminário Vozes da Educação

Por isso, gradativamente, os silenciamentos e reproduções históricas no âmbito


da escola sobre as relações raciais vêm se quebrando através das lutas dos movimentos
negros e intelectuais negros independentes, e têm, nas últimas décadas, ganhado espaço
na política nacional através das pressões ao Ministério da Educação – MEC.
Uma das conquistas mais importantes foi a aprovação da Lei
10.639/03(BRASIL, 2003), que estabelece "as diretrizes e bases da educação nacional
para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História
e Cultura Afro-brasileira e dá outras providências”, alterando dessa forma o artigo 26 da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, de nº 9394/1996 (BRASIL, 1996).
Antes da lei 10.639/03, a LDB não especificava a obrigatoriedade de apontar a
contribuição social, econômica e política da população negra na formação do Brasil. A
forma original da lei apontava que “Os currículos do ensino[...] devem ter uma base
nacional comum, a ser complementada [...] por uma parte diversificada, exigida pelas
características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela”
(BRASIL, 1996).
Um dos desdobramentos, o parágrafo 4º, determina que “O ensino da História do
Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação
do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia” (BRASIL,
1996).Como podemos ver, na forma original da LDB no artigo 26 não garantia, ou
poderia ser compreendido como facultativo o ensino sobre a formação do povo negro
brasileiro. Desta forma, a lei de 2003, além de deixar clara a obrigatoriedade, especifica
no parágrafo 1º, do artigo 26-A, a seguinte determinação:

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o


estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil (BRASIL, 2003).

A inserção da obrigatoriedade do ensino de história da África e afrodescendentes


com orientações objetivas é resultado dos processos de luta dos movimentos negros
brasileiros em busca de cidadania através da educação.
A entrada das questões raciais nas pautas da política nacional se consolidou no
governo Lula, eleito em 2002. A aprovação da Lei nº 10.639 alterando a Lei nº 9.394/96
e em maio de 2003 a criação da SEPPIR, Secretaria Especial de Promoção da Igualdade

sumário 1103
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Racial, foram duas ações de extrema importância, especialmente no campo educacional,


que permitiram o início de mudanças qualitativas nas relações raciais no Brasil.
Outro fruto importante desse período é a Lei 12.711/2012 (BRASIL, 2012), a
chamada “lei de cotas”, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas
instituições federais de ensino técnico de nível médio, com reserva vagas para negros
(pretos e pardos) e indígenas nas Instituições Federais de Ensino Superior e da
Educação Básica, Técnica e Tecnológica.
Neste sentido, considero que estudar e pesquisar sobre o processo de
universalização do acesso e a dinâmica dos debates em torno da educação de qualidade
é de suma importância para reconhecimento do direito à educação para todos em nossa
sociedade.

Considerações Finais
Este texto está articulado à minha pesquisa de mestrado, onde pretendo
aprofundar os estudos sobre os processos gerais das políticas públicas, no que se trata da
população negra com acesso, permanência e conclusão da escolarização, ocorre no
Colégio Pedro II, considerando os ingressantes através do sorteio.
Considero que as mudanças na educação brasileira, no que tange os setores da
população mais pobre, em especial a população negra, de acordo com os dados oficiais,
se mantém com dificuldades para a permanência até a conclusão do processo de
escolarização.
Tenho buscado não somente compreender como a demanda de acesso à
educação básica numa escola federal, bem como, subsidiar os elementos que a fazem,
no ideário do senso comum, representar uma escola pública de qualidade.
Neste sentido, pretendo na pesquisa que venho construindo, ter como referência,
não só ampliar os registros sobre a relevância da universalização do Ensino
Fundamental no Brasil, mas também trazer aspectos que representam os desafios que
acompanham este processo (OLIVEIRA, 2007), tais como, pensar em como o acesso à
educação em Colégios Federais é possibilitado para toda a população e como ocorre a
permanência de estudantes negros nestas instituições.

Referências
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CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida da Silva (Orgs.). Psicologia Social do

sumário 1104
VII Seminário Vozes da Educação

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Nacional para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Brasília:
Planalto, 2003. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/
L10.639.htm>.

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universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e
dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>

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sumário 1105
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O MODELO DO ENSINO SUPLETIVO EM TEMPOS DE CONTROLE E


CENSURA NO REGIME MILITAR (1964-1985)

Rosa Monaco

Introdução
Em plena segunda metade do século XX, os países latino americanos ocupavam
um lugar desconfortável frente às críticas que lhes eram tecidas pelo cenário
internacional acerca das elevadas taxas de analfabetismo ainda percebidas. Isso pode ser
compreendido nas discussões da II e III Conferências Mundiais de Educação de Adultos
(CONFINTEAs123), as quais ocorreram nas cidades de Montreal (Canadá) no ano de
1960, e em Tóquio (Japão) no ano de 1972, de modo respectivo. Em amplo debate
houve o reconhecimento do analfabetismo como uma consequência do
subdesenvolvimento e, por causa disso, surgiriam expectativas e estratégias apoiadas
em políticas públicas que eliminassem permanentemente o analfabetismo nesses países.
O olhar estava justamente sobre os países subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento, como era o caso do Brasil, que se sentiu pressionado à buscar
soluções para a educação em território nacional, uma vez que outros países já haviam
saído dessa condição. Além do mais, o Brasil suscitava ser um país potência, de acordo
com os discursos e das ações realizadas pelos generais presidenciáveis e sua equipe de
colaboradores, no governo militar. Visando esta mudança de status, o regime
autoritário, que via nos projetos educativos uma forma de implementar as suas ideias,
investiu em “Sucessivas operações (categoria do vocabulário profissional militar)”
[grifos do autor] que “foram lançadas com o objetivo de ampliar e melhorar a escola de
1º grau”, analisou Cunha (1991, p. 55).
Fato era que no contexto dos anos 1970, a crise do ensino já havia se instaurado
pela total incapacidade dos sistemas de ensino suportarem a crescente demanda de
escolarização. Ademais, pelas novas exigências de formação profissional impostas com
a introdução da informática, o modo de produção industrial sofrera transformações.
Nesse interim, surgia com mais força o modelo de ensino a distância, principalmente

123
As CONFINTEAs são promovidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO) e acontecem uma vez à cada década. Para maiores detalhes c.f.:
IRELAND, Timothy Denis; SPEZIA, Carlos Humberto. Educação de Adultos em retrospectiva: 60 anos
de CONFINTEA. Brasília: UNESCO, MEC, 2014, p. 119-148.

sumário 1106
VII Seminário Vozes da Educação

após a homologação da Lei de Reforma Educacional nº 5.692/1971124, na qual alargava


os meios e as estratégias metodológicas de aplicação do ensino para o público adulto.
Este propósito visava o aumento do número de adultos concluintes do ensino de 1º e 2º
Graus, o que acarretou ao ensino supletivo, grande repercussão durante o período dos
governantes militares no poder. Haja vista a normatização que expandia as opções do
ensino supletivo nos quesitos estrutura, duração e regime escolar: “Os cursos supletivos
serão ministrados em classes ou mediante a utilização de rádios, televisão,
correspondência e outros meios de comunicação que permitam alcançar o maior número
de alunos” (LEI nº 5.692/71, Cap. IV, Art. 25).
O capítulo IV da Lei 5.692/71 tratou, exclusivamente, acerca do ensino de
adolescentes e adultos, tendo dado origem à promulgação do Parecer nº 699/72, do
Conselho Federal de Educação (CFE), o qual esmiuçou o ensino à ser aplicado sob
quatro funções: suplência, suprimento, aprendizagem e qualificação. O ensino de
suplência fora considerado aquele que tinha como ação suprir a escolarização de 1º e 2º
Graus aos jovens e adultos, inicialmente, acima de dezoito anos. A Lei de Reforma
Educacional de 1971, viria ao encontro do que interessava ao país que era a mão de obra
qualificada, devido à demanda que se formara nas indústrias e fábricas com o
oferecimento de vagas de empregos, após a entrada de capital estrangeiro no Brasil. Era
um tempo marcado por cassações, lutas e perseguições inerentes ao regime militar, além
de serem os anos conhecidos como o “Milagre Brasileiro125” (1969-1973).
Com a intenção da oferta de mão de obra qualificada alcançar a demanda que
havia se instaurado pelo promissor mercado de trabalho, foi que o regime autoritário
alargou o leque de opções diferenciadas de programas e projetos educativos ao público
dos adultos. Essa criação ficou a cargo do Ministério da Educação e Cultura (MEC),
desde o ano de 1971. Em especial, a partir de 1973, a criação dos mesmos ficou à
critério do Departamento de Ensino Supletivo (DESU), órgão subordinado ao MEC, até
a sua extinção em 1979, “quando o órgão foi transformado em Subsecretaria de Ensino

124
A Lei nº 5.692/71, do Ministério da Educação e Cultura (MEC), que fixou as Diretrizes e Bases para o
ensino de 1° e 2º Graus, além de providências para a educação de jovens e adultos.
125
Nesse processo, ocorreram incentivos às exportações de produtos industriais e agrícolas. Como
exemplo, citamos os investimentos realizados pelas grandes empresas automobilísticas como: General
Motors, Ford e Chrysler (FAUSTO, 1994, p. 485). Segundo Góes (1991), a demanda do mercado externo
impulsionou para que o mercado interno crescesse. C.f.: FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo:
Edusp, 1994. C.f.: GÓES, Moacyr de. Voz Ativa. In: CUNHA, Luiz Antônio Cunha e ________, Moacyr
de(orgs.).OGolpe na Educação. Série: Brasil os anos de Autoritarismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1991, 7ª ed. p. 7-34.

sumário 1107
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Supletivo (SESU) e subordinado à Secretaria de Ensino de 1º e 2º Graus (SEPS)”


(HADDAD et al, 2000).
Algumas dessas iniciativas educacionais foram: Projeto Acesso, Projeto Logos I,
Projeto Producere, Projeto Andrós, Projeto Assistência Técnica (FERREIRA, 1974, p.
53); Projeto Auxilia, Projeto Logos II (FÁVERO, 1980); Centro de Estudos Supletivos,
Projeto Minerva (VARGAS, 1984); entre outros. Pela diversidade de programas e
projetos educativos das décadas de 1970 e 1980, pode-se observar a falta de
continuidade dos mesmos ao longo dos anos. Sob este efeito, surgiu o interesse da
presente pesquisa que teve como objetivo compreender o modelo educativo
característico do ensino supletivo aplicado no período do regime militar (1964-1985).
Para isso, elegemos dois desses programas educativos como fontes de observação, ou
seja, o Projeto Minerva (1970) e o Centro de Estudos Supletivos (1974). Tratava-se da
análise do modelo aplicado nessas opções educativas que ofertaram o ensino de
suplência de 1º Grau – 2ª fase, aos jovens e adultos.
Nossa justificativa para a construção da presente comunicação pautou-se no
grande desafio que representa sempre, compor o escopo documental baseado nas
publicações oficiais do MEC acerca dos cursos supletivos nas décadas do governo
militar, uma vez que, segundo Fávero (2009), essas sofreram dispersão após a extinção
do DESU. Nesse esforço, queremos contribuir com o campo da História da Educação,
na área da educação de jovens e adultos, para seguir adiante na reflexão quanto à
composição da educação brasileira. Para a costura metodológica, nos embasamos em
Revel (1998; 2010) e Burke (2002). Este último nos auxiliou à análise dos
acontecimentos à partir da alternância do olhar a ser empregado entre o micro e a macro
visão.

Alternativamente, os micro-historiadores podem concentrar-se, a exemplo de


Giovanni Levi (1985, 1991), em um indivíduo, um incidente ou uma pequena
comunidade como lugar privilegiado para se observarem as incoerências de
grandes sistemas sociais e culturais, as brechas, as fendas na estrutura que
propiciam a um indivíduo um pouco de espaço livre, como uma planta que
cresce entre duas rochas [sic] (BURKE, 2002, p. 65).

Mediante o entendimento do autor, focaremos no Projeto Minerva, com


transmissão obrigatória pelas emissoras radiofônicas, públicas ou comerciais, e no
Centro de Estudos Supletivos (CES), sob o regime do ensino semipresencial, com sua
primeira implantação no ano de 1974 na cidade de Natal, Rio Grande do Norte, seguida

sumário 1108
VII Seminário Vozes da Educação

de Goiânia, Goiás. Por meio desses programas foi possível supor a visão do ensino
supletivo no período do regime militar. O Projeto Minerva e o CES estiveram como
partes vislumbradas de menor escala (micro); contudo, expressando propriedades do
todo da educação de adultos no país; este último tendo sido observado pela escala maior
(macro).

A abordagem micro-histórica é profundamente diferente em suas intenções,


assim como em procedimentos. Ela afirma em princípio que a escolha de
uma escala particular de observação produz efeitos de conhecimento e pode
ser posta a serviço de estratégias de conhecimentos. Variar a objetiva não
significa apenas aumentar (ou diminuir) o tamanho do objeto no visor,
significa modificar sua forma e sua trama [sic] [grifos do autor] (REVEL,
1998, p.20).

Em se tratando do Projeto Minerva, os militares anunciavam que o modelo


educativo, via rádio, apresentar-se-ia com a missão de levar a escola aonde ela não teria
como chegar. Segundo Horta (1973, p. 458), o Projeto Minerva tinha como objetivo:
“’Contribuir para a renovação e o desenvolvimento do sistema educacional e para
difusão cultural através da utilização do rádio, em combinação com outros meios”’
[grifos do autor]. Já em relação ao Centro de Estudos Supletivos, este buscava abarcar
alunos que normalmente não teriam horários fixos disponíveis em suas rotinas para
frequentar as classes noturnas: “Dentro deste universo encontravam-se trabalhadores
plantonistas ou sob o regime de escalas, militares, embarcados, mães e donas de casa
que não tinham com quem deixar seus filhos, por exemplo, que poderiam ser
beneficiados” (MONACO, 2017, p. 30). Seguindo adiante na investigação perseguida
nesta pesquisa, utilizamos a compreensão de Burke (2002) acerca da concepção de
“modelo”.

Provavelmente, entretanto, é mais útil empregar o termo ‘modelo’ de forma


mais restrita. Vamos acrescentar outro elemento a esse "modelo de modelo" e
dizer que é uma construção intelectual simplificadora da realidade para
salientar o recorrente, o geral e o típico, apresentados na forma de conjuntos
de características ou atributos. Modelos e ‘tipos’ tornam-se, portanto,
sinônimos, o que talvez seja apropriado, uma vez que typos é o termo grego
para molde ou ‘modelo’ [sic] [grifos do autor] (BURKE, 2002, p. 47).

Burke nos dá pistas sobre o modelo do qual iremos encontrar pela frente: este foi
caracterizado por uma forma mais restrita de educação para o público jovem e adulto,
fruto de uma construção intelectual que decodificou, para uma forma simples, o que a
realidade já apontara como sendo corriqueiro, tanto o genérico, quanto o típico. A

sumário 1109
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

concepção da educação supletiva para o 1º Grau durante o regime militar esteve


diretamente comprometida com o aumento dos cursos via rádio e televisão, além da
aplicação do regime semipresencial. Isso tudo sem ter havido o crescimento do número
de escolas que pudessem abarcar os alunos jovens e adultos carentes do ensino básico.
O que prevaleceu foi um tipo de educação individualista, sem incentivo às aulas
coletivas que pudessem propiciar os debates e reflexões entre os alunos adultos. Além
do que, a concepção do ensino supletivo fora aplicada através de inúmeros programas e
projetos que por muitas vezes tinham seu tempo de vida muito curto.

Aplicação do Projeto Minerva (1970) e do Centro de Estudos Supletivos (1974)


Ambos os programas pertenciam ao que chamamos atualmente de “educação a
distância” (EAD 126 ), entretanto, no passado, o tipo de ensino que se distinguia do
considerado ensino regular formal fora o chamado ensino “não-formal”, conforme a
compreensão de Boaventura (1984). O autor considerou que a “educação de adultos,
ensino supletivo”, além da “educação extra-escolar” [sic] e a “educação paralela”
faziam parte do universo diverso da educação não-formal. Em nome da diversidade da
educação não-formal, os muitos projetos e programas foram concebidos pelo MEC;
mesmo órgão que usou como alegação para não investir em escolas regulares, a
existência de um elevado quantitativo de pessoas adultas fora do sistema escolar, o qual
o órgão não conseguiria dar conta. Para o MEC havia falta de orçamento que
justificasse tal investimento.
Mafra (1979/1980, p. 10), como representante do MEC, analisou que eram
21.000.000 (vinte e um milhões) de pessoas entre 15 e 39 anos passíveis de ingresso nas
escolas e cursos supletivos, com necessidade de 1.050.000 (um milhão e cinquenta mil)
professores e de 525.000 (quinhentos e vinte e cinco mil) salas de aulas, segundo dados
do Censo de 1970, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Fávero
(1980) se referiu ao cálculo realizado pelo Censo de 1970 e apresentado por Mafra
(1979/1980) como “’bizarro’”. O autor discordou a partir da arbitrariedade da seleção
da faixa etária “’(por que o limite superior de 40 anos?)’”; do absurdo de “atender a
uma população quase tão grande quanto a atendida pelo Ensino Regular nos três graus

126
Conceito oficial de educação a distância (EAD) no Brasil segundo o Decreto nº 5.622/2005, art. 1º:
“Para os fins deste Decreto, caracteriza-se a Educação a Distância como modalidade educacional na qual
a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de
meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo
atividades educativas em lugares ou tempos diversos”.

sumário 1110
VII Seminário Vozes da Educação

(19,5 milhões, segundo a mesma fonte e nos mesmos anos)” [todos grifos do autor] e
ainda criticou, dado que “O Brasil se converteria numa imensa escola, regular ou
supletiva, na qual toda a população de 7 a 39 anos deveria passar um bom número de
anos” (FÁVERO, 1980).
Conforme Fávero (1980) atentou para a faixa etária facultativa que serviu para a
contagem, também é sujeito à atenção, a ausência de estudos, levando-se em conta as
variações regionais, ou mesmo pesquisas de gênero e/ou de raça, por exemplo. Os
resultados ficaram vulneráveis, sem sofrerem maiores análises. Ficou claro que o Estado
não procurava solucionar o problema da falta de escolarização do 1º Grau, nem tão
pouco intentava investir no sistema regular de ensino para a faixa etária/série adequadas
e/ou dos jovens e adultos, mesmo que a longo prazo. Monaco (2017, p. 29) analisou que
“mais pareceu uma inibição ao interesse voluntário do aluno em frequentar a escola
noturna do que, propriamente, uma escolha abrangente para a solução”. A autora
entendeu que “as escolas de adultos para a conclusão do ensino de 1º Grau eram em
número insuficiente e, por conseguinte, os candidatos interessados teriam que,
necessariamente, ingressar em outro tipo de escola”.
Trazendo para a cena a especificidade de cada um dos dois projetos
selecionados, o Projeto Minerva que esteve nas ondas do rádio por dezenove anos
(1970-1989), não possuía avaliação no processo pedagógico, uma vez que o Projeto
preparava os seus participantes à prestarem os exames supletivos oferecidos pelos
estados federativos, em média duas vezes por ano. Dentre os seus participantes que
prestaram os exames supletivos, “somente 33% deles foram aprovados” (ALONSO 127,
2006 apud CASTRO, 2007, p. 57). Além disso, o programa não conquistou a população
“que o chamava de ‘Projeto Me Enerva’” [grifos do autor] (PAVAN 128 , 2006 apud
CASTRO, 2007, p. 50). Outra crítica surgira quanto à falta de renovação nos
personagens e do curso como um todo, prejudicando, assim, a aceitação do mesmo pelo
público (ANDRELO et al, 2009, p. 86).
O Projeto Minerva mantinha um monitor, que muitas vezes era um dos alunos
com um pouco mais de desenvoltura, para estar junto à grupos de 30 a 50 participantes
nos rádio postos, onde as aulas irradiadas eram disponibilizadas aos alunos. Esta forma

127
ALONSO, Katia Morosov. Educação a distância no Brasil: A busca de identidade. In: Preti, O. (Org.),
Educação a distância: Inícios e indícios de um percurso. Nead/IE – UFMT. Cuiabá: UFMT, 1996, p. 57-
74.
128
PAVAN, Alexandre. Em busca de sintonia. Revista Educação, São Paulo, Editora Segmento, edição n.
246, outubro de 2001.

sumário 1111
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de recepção se chamava “organizada”. Além dessa forma de participar do Projeto


Minerva existiam mais duas formas, segundo Maroto (1974, p. 53): isolada ou
controlada. Os participantes acompanhavam as aulas livremente de suas casas; os
participantes frequentavam os rádio postos esporadicamente; nessa ordem. Segundo
Niskier (1996, p. 451) o curso fora dividido em três partes diversificadas: o período
preparatório com 5 aulas de 30 minutos de duração; o curso propriamente dito com 100
aulas de 15 minutos de Língua Portuguesa, 100 aulas de Matemática, 110 aulas de
Estudos Sociais, 110 aulas de Ciências, 46 aulas de Moral e Cívica, 43 aulas de
Informação Ocupacional e 42 aulas de 12 minutos de Educação Artística e Educação
Física; ainda tendo o plano reforço com aulas de Língua Portuguesa e Matemática.
Em se tratando do Centro de Estudos Supletivos (CES), funcionava em prédios e
apresentava-se sem turno ou classe fixos para a frequência dos alunos, caracterizando-se
pela flexibilidade de dias e horários durante todo o funcionamento do CES, em geral das
8 às 22 horas. O aluno levava para casa o módulo seriado por disciplina para que
pudesse estudar. Essa ação caracterizava a parte a distância do método. Além disso, a
avaliação era realizada dentro do processo pedagógico, como pode-se entender pela
normatização.

A avaliação da aprendizagem é realizada ao longo do processo, por


eliminação sequenciada dos módulos de ensino, sem caráter de série (curso
não seriado), uma vez que a conclusão é sempre global em termos de cada
disciplina, que contêm um número determinado de módulos. Cada módulo é
precedido de um pré-teste. O aluno que no pré-teste de um módulo alcançar
80% dos objetivos propostos, estará isento das atividades dele constantes,
podendo passar diretamente ao módulo seguinte. Após o estudo de cada
módulo, quando se sentir apto, deverá apresentar-se ao Centro e submeter-se
a uma verificação de conteúdo do módulo estudado. O aluno será
considerado aprovado quando alcançar no mínimo 80% dos objetivos
propostos neste módulo. Tal aprovação constitui pré-requisito para o estudo
do módulo subsequente. Caso não alcance o padrão de desempenho mínimo
exigido terá mais duas oportunidades, sendo que estas avaliações deverão
medir os mesmos objetivos. Entre uma avaliação e outra, o aluno recebe um
reforço conhecido como “atividades para sanar deficiências” (PARECER Nº
254/80129).

Conforme esclarecido pelo Parecer nº 254/80, que respondia especificamente


pela normatização dos Centros de Estudos Supletivos do Estado do Rio de Janeiro, o
aluno ao voltar ao CES com o módulo estudado, se assim quisesse sanava suas dúvidas

129
O Parecer nº 254/80 foi o responsável por aprovar o Plano de Estrutura e Funcionamento dos mesmos,
autorizado pelo Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro (CEDERJ), com votação favorável por
unanimidade.

sumário 1112
VII Seminário Vozes da Educação

junto ao professor chamado particularmente nos CES de orientador de aprendizagem.


Para que o aluno prestasse o teste de aprendizagem para o módulo estudado, era preciso
receber a autorização pelo professor da disciplina. Os testes eram elaborados em três
modelos (A, B e C). Não conseguindo a aprovação ao realizar o teste modelo (A), o
aluno refazia a avaliação para o mesmo módulo, porém, dessa vez pelos modelos de
prova (B) e/ou (C). Em algum momento a aprovação aconteceria, à não ser que o aluno
desistisse ou mesmo abandonasse o Centro de Estudos Supletivos.
No Quadro (1) vemos a comparação entre os dois projetos da década de 1970
aqui analisados, no qual notamos aproximações e afastamentos, mas que corroboram
com o modelo do ensino supletivo pesquisado:

Quadro 1: Comparativo entre o Projeto Minerva e o Centros de Estudos Supletivos


Especificidades para o 1º Projeto Minerva Centros de Estudos Supletivos
Grau – 2ª fase
Ano de início 1970 1974
Regime de ensino EAD = rádio + rádio postos + EAD semipresencial = parte na
domicílio instituição + domicílio
Mídia tecnológica Fascículos + rádio Fascículos (módulos) + áudio,
vídeo, livros, revistas.
Tipo de avaliação Fora do processo pedagógico Dentro do processo pedagógico
(exames supletivos) (na sala de testes do CES)
Atendimento Pelo monitor nos rádio postos Pelo orientador de aprendizagem
(in lócus)
Idade Mínima 17 anos 18 anos (após algum tempo,
passou para 15 anos)
Horário das aulas Fixo = (20-20:30min) de segunda a De acordo com a grade escolar (o
sexta horário do professor era fixo)
Tempo do aluno in lócus (Nos rádio postos) durante a aula Variável, flexibilidade para a
transmitida “e mais um pouco” entrada e saída dos alunos
Caráter das ministrações Compulsoriamente, transmitida por À escolha do aluno
todas as emissoras
Tempo para conclusão Dependia dos estados: em geral eram Dependia do aluno
oferecidos aos alunos duas
provas/ano
Difusão Mais propagado por causa do caráter Menos propagado
compulsório
Concentração de grupo Nos rádio postos, porém, sem Nas aulas socializantes com os
liderança pedagógica orientadores de aprendizagem,
porém, sem obrigatoriedade
Fonte: produzido por nós

O que se pode ver na tabela apresentada são duas concepções distintas, porém,
com características próximas que nos fez identificar um modelo de educação supletiva.
Esses programas com suas metodologias puderam ser contemplados, visto que, a
normatização permitira as múltiplas variações. Sobre isso, Monaco (2017) analisou

sumário 1113
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

acerca das adaptações que os cursos supletivos estiveram dispostos a sofrer, conforme
as novas diretrizes promulgadas para o ensino supletivo pela Lei 5692/1971:

[...] tudo poderia ser adaptado, desde o método até a duração, passando pela
estrutura, mídias, material, e assim por diante. Enfim, como seria o controle e
a inspeção, prática fidelizada na época da ditadura, com uma gama tão
grande de variáveis para montar e implementar um curso? Até mesmo para
treinar os profissionais dos órgãos públicos que fariam o acompanhamento
dos cursos: quando estes estivessem aptos a um tipo de avaliação para um
tipo de modelo de curso, o próximo tipo já teria surgido. Em um período
marcado por controles e coerções, como explicar variantes tão diversas na
educação supletiva? Suscita-nos a pergunta se tal variedade seria estratégica
para os governantes, ao invés de ser somente opção para os jovens e adultos
(MONACO, 2017, p. 45).

O modelo dos cursos supletivos, com a exposição das muitas variáveis, não
parecia estar contradizendo aos ideais dos militares e de seus colaboradores? Afinal, o
regime militar teria como peculiaridade a centralização do poder acrescido à censura.
Nesse sentido, a gama de programas e projetos educacionais poderia tornar dificultoso
exatamente o controle desses. Monaco (2017) continuou em sua análise destacando, a
partir de Niskier (1996), quanto à falta de clareza na qual a educação supletiva fora
vítima: “O autor constatou ter sido a flexibilidade dos currículos a geradora de grande
confusão, tornando-os sem objetividade (NISKIER, 1996, p. 425 apud MONACO,
2017, p. 45). Sem contar que a aplicação dos projetos e programas foram “através de
abundante e confusa legislação educacional” (GHIRALDELLI JUNIOR, 1990, p.163).
Horta (1973, p. 465) também corroborou com a análise de Niskier (1996) quando, em
seus estudos sobre o Projeto Minerva, apontou que não havia ocorrido até aquele
momento, por nenhuma das entidades de direito, pesquisas mais amplas de avaliação,
incluindo o acompanhamento dos alunos concluintes.

Considerações finais
Particularmente sobre a justificativa para a criação do Centro de Estudos
Supletivos, sob o ensino semipresencial, Monaco (2017) compreendeu que este fora
pensado com a finalidade de mediar os dois extremos das categorias metodológicas: de
um lado as escolas noturnas regulares e do outro o ensino totalmente a distância. As
escolas noturnas para a conclusão do ensino de 1º Grau eram em número insuficientes e
os cursos totalmente à distância, como os transmitidos por rádio ou TV, não tinham o
professor in lócus para a compreensão das dúvidas dos estudantes.

sumário 1114
VII Seminário Vozes da Educação

Além do mais, a subjetividade da legislação causava confusão no momento da


sua interpretação e aplicação, segundo Ghiraldelli Junior (1990), propiciando falta de
transparência junto aos órgãos de controle e de censura. Indo além, a visão a partir dos
técnicos do MEC, ou seja, daqueles que davam vida aos projetos federais, enfatizavam
os aspectos tecnológicos do ensino via rádio e do regime semipresencial.

A visão constituinte enfatizava os aspectos técnicos da radiodifusão,


preocupado em somente fornecer ferramentas aos indivíduos para o trabalho
e desprovida de uma reflexão consciente e crítica de um sujeito emancipado.
Os militares também, com esta medida, tentavam centralizar em suas mãos a
coordenação deste importante instrumento, reduzindo com isso os possíveis
focos de tensão no interior da sociedade e ganhar adeptos por todo o território
nacional (PATRIZZI JUNIOR, 2006, p. 44-45).

A intenção era tirar do foco a perseguição à uma educação baseada em reflexão


crítica e consciente, conforme analisou Patrizzi Junior (2006, p. 44-45), posto que isso
não tinha oportunidade de ser empregado, por falta de aulas coletivas ministradas nessas
opções supletivas. O autor compreendeu que os governantes somente se preocupavam
em fornecer ferramentas aos indivíduos para o trabalho, sem compromisso com a visão
crítica e reflexiva. Por essas e outras particularidades demonstradas, entende-se que o
modelo perseguido era compatível ao regime militar. Contudo, será preciso continuar
investindo em relação ao levantamento de fontes na área do ensino supletivo, com a
finalidade de contribuir para a pesquisa da educação brasileira, na perspectiva histórica.

Referências
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VII Seminário Vozes da Educação

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sumário 1117
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O DIREITO À EDUCAÇÃO E A BNCC DESAFIOS PARA ESCOLAS


UNIVERSIDADE PÚBLICA NA FORMAÇÃO DOCENTE

Sueli de Lima Moreira


UERJ FFP
limamoreirasueli@gmail.com

Carla Gonçalves
UERJ FFP
cmarcellesg1@gmail.com

Ruth Bandeira Ramiro


UERJ FFP
ruthramiro@gmail.com

Apresentação
Aproximar escolas de universidades nas ações de formação docente corresponde
a questionar a centralidade dos processos de formação de professores. Os desafios são
muitos se queremos transformar escolas em locais de práticas reflexivas e
universidades, em espaços abertos à sociedade, através da construção de um campo
ampliado de formação docente formulado a partir do diálogo com comunidades
epistêmicas amplas.
Através de um Projeto de Extensão, um grupo de 28 professores e estudantes de
19 escolas e 1 universidade públicas, autointitulado Coletivo Investigador, desenvolveu
oFórum de relações entre escolas e universidade, com o objetivo de, a partir da
implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), investigar as condições
de que dispunham as escolas para responder democraticamente à nova politica.
A revisão das condições epistêmicas nas quais se apoiam as práticas de
formação de professores tem relações diretas com as interações entre escolas e
universidades, o que implica uma revisão das relações de saberes entre ambas. No
entanto, é necessário nos perguntarmos: Como se efetiva a parceria entre escola e
universidade, se a perspectiva de construção de conhecimento sempre foi de
responsabilidade exclusiva da universidade? Enquanto isso, as escolas são
compreendidas como espaço de práticas do conhecimento produzidas na universidade.
Nóvoa (2011) e Silva Jr. (1990) destacam a dimensão coletiva da prática
docente como sendo uma ação que se realiza inclusive através da colaboração. Afirmam

sumário 1118
VII Seminário Vozes da Educação

que a complexidade do trabalho pedagógico exige que possamos desenvolver equipes


pedagógicas com competência coletiva, mais do que equipes que somem competências
individuais, que possam se enriquecer mutuamente como um “tecido profissional
enriquecido” para o enfrentamento dos desafios comuns. Essa condição coletiva e
colaborativa da prática docente exige investimento da universidade na formação
articulada à escola, ampliando a capacidade de comunicação entre professores e
estudantes através da conquista de um espaço de trabalho institucional que possa reunir
sistemas distintos como é o caso da Educação Superior e da Escola Básica.
Para fundamentar nossa pesquisa, inspiramo-nos na perspectiva da “justiça
curricular” (PONCE, 2018, p. 13), termo que, para a autora, adquire sentido através de
construções coletivas baseadas em debates sobre conhecimentos,como a produção de
condições de vida digna; o cuidadoa todos os sujeitos do currículo e a
convivênciademocrática para que se consolidem valores democráticos e solidários. A
“justiça curricular” toma por currículo todo o processo de ensino-aprendizagem-cuidado
na construção do conhecimento significativo para a vida.
Para a autora, a justiça curricular é formulada coletivamente em respostas às
políticas públicas para as salas de aula e seus processos de ensino-aprendizagem. Além
de uma ação formadora para o campo docente, é também uma ação de resistência aos
movimentos que insistem em elaborar currículos fora da escola. Inspirados na autora e
procurando nos contrapor aos processos que retiram da educação pública sua
autonomia, foi preciso confiarmos na potência do estudo coletivo, ir em busca de
práticas democráticas, que para nós seriam pistas para a emancipação que defendemos.
Em trabalho recente sobre a BNCC, Alves (2018) afirma que os sistemas
educacionais são muitas vezes concebidos como se fossem um sistema alheio às
dimensões humanas que os constituem, como se professores e estudantes fossem
facilmente submetíveis a processos de “apostilamentos” sem que a seus cotidianos, suas
práticas e suas formulações pedagógicas não fossem capazes de, se não inverter, ao
menos ameaçar os sucessos desses projetos artificiais para a educação, como a BNCC
propõe.
Para a autora, não é possível pensar em mudanças nos processos curriculares
sem a participação propositiva e criativa de docentes e discentes, pois estes operam as
relações e os contextos que fazem a escola viva. Afirma ainda que os currículos são
dinâmicos, não se subordinam a repetições e provocam o novo, pois a educação se dá
através de processos insubordináveis.

sumário 1119
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Com base em Alves (2018), investigamos nosso cotidiano e encontramos muitas


ressignificações à BNCC em curso nas escolas no município onde atuamos, uma vez
que, como afirma a autora, é “impossível de estancar” a autonomia docente. Podemos,
de certa forma, concordar que, apesar da fúria autoritária que toma o país, é impossível
cortar completamente tudo o que foi criado aqui e ali – nas milhares de salas de aulas
deste país – por seus docentes e discentes nesses últimos anos. “Nem é possível, quebrar
os sonhos de milhares de docentes e de milhões de estudantes por escolas melhores dos
quais eles são muito bons conhecedores” (ALVES, 2018, p. 53) Esta pesquisa traz
resultados que confirmam o que diz a autora.
Foi preciso inventar espaços democráticos dentro dos sistemas de trabalho onde
atuamos, provocando nas instituições a promoção de espaços participativos onde
pudéssemos experimentar outras formas de diálogo e enfrentamento de nossos desafios.
Nos reunimos, inicialmente, através de um curso de extensão, no entanto, como,
metodologicamente, nossos princípios não suportavam que a universidade coordenasse
o trabalho, assumimos em seguida o formato de um grupo de pesquisa. Queríamos a
democratização de nossas condições de trabalho entre escolas e universidades, pois
pensamos que, na medida em que a cultura democrática fosse sendo conquistada nas
ações cotidianas, seria mais fácil resistir ao contexto que não cessou de agravar-se no
Brasil desde de 2016.
Acreditamos que, através de nossa formação, conjunta, não hierarquizada entre
escolas e universidade, teríamos mais chances de nos capacitar para o raciocínio crítico,
construído em processo colaborativo, experienciado através de negociações e muita
argumentação sobre nosso mundo socioeducacional. Nessa perspectiva, não só
ampliamos as chances de nos ouvir como de exercer nosso poder diante do contexto que
precisávamos enfrentar.

Objetivo
Fundamentados na ideia de que currículos são campos de disputas, afirmamos a
urgência na valorização da escola pública frente aos violentos ataques que vêm
sofrendo. Através da instauração de um espaço de pesquisa coletiva, reagimos frente as
forças que insistem em gestar a escola pública sempre de fora para dentro e tomamos o
cotidiano escolar como campo de pesquisa apoiados nos conhecimentos científicos
atualizados da Educação. Nesse contexto, a pesquisa teve como objetivo

sumário 1120
VII Seminário Vozes da Educação

geralinvestigar as condições para a cultura democrática nas escolas no ambiente da


implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Metodologia: a pesquisa-ação pedagógica como opção epistemológica para a


formação
A pesquisa-ação pode ser utilizada de diferentes maneiras, sob diversas
intencionalidades, constituindo-se num vasto leque de abordagens teórico-
metodológicas. No entanto, essa opção metodológica decerto investe no interesse de que
a pesquisa e a ação devem caminhar juntas. Ao elaborar esta experiência, tínhamos
como objetivo desenvolver uma investigação científica a partir de fontes que são
historicamente construídas, como as relações de professores e estudantes com escolas e
universidade, o que exigiu a reunião de condições epistemológicas capazes de auxiliar a
formulação de um campo de investigação solidária, plural, criativa e aberta ao diálogo
universitário e comunitário, mas principalmente capaz de transformá-las (BRANDÃO,
2003)
Com base em Kincheloe (2007), entendemos que a pesquisa-ação crítica rejeita
as noções positivas de racionalidade, objetividade e verdade para pressupor a
explicitação dos valores dos grupos envolvidos. A metodologia não pretende apenas
compreender ou descrever o mundo, mas transformá-lo. Para isto, investe na práxis do
grupo, nas suas perspectivas explícitas e ocultas para, a partir delas, negociar as
mudanças. Nesse sentido, enquanto práticas colaborativas, assumem o caráter crítico.
Barbier (2002) é ainda mais enfático quando se refere à natureza da pesquisa-
ação. Para ele, a metodologia não quer separar os fatos e os valores, estrutura-se por
dentro deles, através dos pensamentos e das ações dos integrantes, pressupondo uma
integração dialética entre sujeito e sua existência, fatos e valores, pensamento e ação,
pesquisador e pesquisado. A pesquisa-ação, além de questionar a epistemologia
positivista, pressupõe a necessidade de avançarmos sobre formas e modelos
colaborativos no desenvolvimento de pesquisas sociais voltadas para a transformação
social. Para o autor, a pesquisa-ação possui compromissos políticos e éticos, com vista à
emancipação dos sujeitos e das condições que obstruem seus processos.
Neste trabalho, apoiamo-nos na Pesquisa-Ação Pedagógica de Franco (2016),
que nasce nesta tradição teórica, e em especial, na dimensão emancipatória formulada
por Freire (1982) na Pedagogia do oprimido.

sumário 1121
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Foi através das ideias de Freire (2006) para os Círculos de Cultura, que Franco
(2016) elaborou os dispositivos para a Pesquisa-Ação Pedagógica, destacando três
momentos: a) a investigação temática, quando os componentes do Círculo buscam nas
experiências dos participantes os temas para seus processos educativos; b) a
tematização, quando o grupo decodifica estes temas; e c) a problematização ou o meio
pelo qual as experiências são perspectivadas através da visão crítica em diálogo com
outras referências. Nosso percurso metodológico foi construído sobre estas bases:
partimos de nossos saberes comuns na direção da práxis, experienciando, num processo
contínuo de autoconscientização, reflexões sobre nossas circunstâncias e perspectivas.
A autora afirma que a pesquisa em educação tem uma perspectiva
eminentemente pedagógica, pois estuda as práticas educacionais por meio da
participação dos próprios sujeitos, agindo também no campo da formação dos
envolvidos, transformando-os. Essa opção pressupõe a integração dialética entre o
sujeito e sua existência, entre fatos e valores, entre pensamento e ação e entre
pesquisador e pesquisado (FRANCO, 2012). A pesquisa-ação voltada para a formação
contínua de professores foi denominada por Franco (2016) de pesquisa-ação-
pedagógica, pois tem a formação como objetivo principal.
A dinâmica de um processo formativo centrado na escola, como propomos,
vincula o ensino à pesquisa e a pesquisa à extensão, objetivando formar o professor,
como profissional, capaz de compreender e atuar na realidade educacional
contemporânea; da mesma forma que cria condições para a universidade expandir seu
papel social. A pesquisa configura-se espaço de formação articulado à extensão
universitária, como “braços” da universidade que, através do diálogo e de
compromissos pactuados, ampliam a ação universitária para estar em algumas escolas
do município. Por outro lado, busca, também, trazer para dentro da universidade o que
Sousa Santos (2010) propõe como “extensão às avessas”, quando se constrói condições
de outros saberes e atores atuarem no interior da universidade, convidando os
professores das escolas a refletirem juntos com os estudantes universitários em espaços
de formação continuada.

As fases da pesquisa
Refletindo juntos, nosso pensamento foi adquirindo diferentes “formas” durante
o processo, todas complementares. Baseados em Franco (2016), podemos destacar

sumário 1122
VII Seminário Vozes da Educação

quatro princípios da Pesquisa-Ação Pedagógica estruturantes nos processos


participativos que estiveram presentes em todas as etapas:
1.A constituição coletiva entre pesquisadores e participantes
Em todas as fases da pesquisa, buscar constituir-se enquanto coletivo
investigador, identificando as trajetórias individuais e integrando-as através de
interesses comuns e complementares, continuamente.
2.Mobilização para a partilha de conhecimentos
Trabalhar a partir das relações de sentidos, experiências, conceitos, autores de
referência expressos nas diferentes abordagens, buscando a convergência para a
elaboração do trabalho conjunto.
3.Consideração da complexidade do processo
Considerar a imprevisibilidade que os processos coletivos, fundamentados na
práxis, mobilizam na investigação coletiva.
4. A perspectiva de produção de rupturas na direção de outras dinâmicas para a
formação universitária

Através destes princípios, a organização dos dados, a tarefa de sistematizar, de


construir sínteses, articulá-las em novas formulações a ser apropriadas pela comunidade
científica, aquilo que Franco (2016) chama de “produção de rupturas cognitivas”, são os
momentos em que o pesquisador/professor/estudante muda suas concepções de
profissionalidade através do trabalho coletivo.
Para investigar as condições de que dispunham as escolas para responder às
demandas referentes à implementação da BNCC, desenvolvemos um formulário que
buscou identificar as condições de que dispunham as escolas diante do Artigo 205 da
Constituição Federal, que trata dos objetivos da educação como voltados para o pleno
desenvolvimento da pessoa, da cidadania e para o trabalho.
Os dados reunidos no Primeiro Formulário de pesquisa tratam de 18 de Escolas
da Escola Básica com IDEBs variando entre 2,8 e 4,5.
No Artigo 205 da Constituição Federal, encontramos:
“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”
(BRASIL, 1988).

sumário 1123
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Com base neste artigo, estruturamos um formulário que identifica a escola; o(s)
pesquisador(s); data; as propostas pedagógicas desenvolvidas para o pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a cidadania e para qualificá-la para o
trabalho; a equipe da escola responsável pela proposta identificada e as condições
encontradas pelo pesquisador para realizar a pesquisa nas escolas.
Para as pesquisas nas escolas, professores (em alguns casos, reunidos a
estudantes da universidade) constituíram pequenos grupos (houve também professor
que trabalhou individualmente) e saíram a campo nas suas próprias escolas, buscando
levantar as informações que constavam no formulário. Para isto, utilizaram ferramentas
distintas: rodas de conversas, entrevistas semiestruturadas e análises de documentos das
escolas.
Nos dados reunidos, identificamos propostas variadas como ações voltadas para
famílias e comunidades (17%), ações articuladas com o sistema de saúde (7%), ações
desenvolvidas pelo Programa Mais Educação do MEC (5%), ações articuladas à cultura
local de escolas (3%), ações em diálogo com as linguagens artísticas (5%), ações
voltadas para ampliar a participação de estudantes nas escolas (23%), ações de combate
a preconceitos sociais (20%) e 20% de ações genéricas não identificáveis aos objetivos.
Em relação às condições para a pesquisa encontradas nas escolas: 45%
indicaram que havia boas ou satisfatórias condições para as relações de investigação
pedagógica. Por outro lado, para 55% dos professores, há nas escolas muita resistência
às demandas voltadas para investigações pedagógicas nas escolas. Um dos desafios
nesta rede é o de promover mais espaço para a pesquisa e o debate pedagógico no
cotidiano escolar.

Considerações e Perspectivas
A pesquisa buscou contribuir para a construção de conhecimentos através de
relações partilhadas entre a universidade e escolas numa cidade do Rio de Janeiro.
Nessa perspectiva, a investigação é um espaço partilhado interdisciplinar, de
convergência entre professores/pesquisadores, estudantes, lideranças sociais e
profissionais de distintas áreas de pesquisa e atuação. A pesquisabuscou um trabalho
articulado entre a Educação Superior e a Escola Básica, colaborando para a formulação
de conhecimentos socialmente referenciados para ambos os sistemas educacionais.
Podemos afirmar também que iniciamos um trabalho de desterritorialização da
formação docente. Porque questionamos a centralidade da universidade neste processo.

sumário 1124
VII Seminário Vozes da Educação

Nos aventuramos na direção de construirmos uma dimensão pública para formação


docente, construindo conexões democráticas entre escolas e universidade, teoria e
prática. No entanto, manter este processo vivo é mais do que um desafio acadêmico é
político. Para nós, a escola precisa da articulação com a universidade. Inclusive para
compreender-se como campo de pesquisa, como campo de aventura do conhecimento
para a educação. Precisa da universidade para enfrentar os ataques que sofre e se
legitimar. O mesmo vale para as licenciaturas das universidades públicas, estas
precisam da escola para responder aos problemas que possuem na formação para o
trabalho.
Problemas complexos, como os que conhecemos no Brasil, requerem equipes
que se complementem, que saibam ser atravessadas pela diversidade, pela aventura da
pesquisa, pela cooperação na pesquisa e lutas docentes, para que possam estar à altura
dos desafios que possuem – é nesta aventura que nos encontramos.
Em coletivo, aprendemos a manter nossa práxis viva através de formas solidárias
de existência e aos poucos mantemos o imponderável e o devir histórico como
possibilidades de nos reinventar tanto como sujeitos como socialmente.
Ao comparar os dados reunidos na pesquisa e as exigências da BNCC,
questionamo-nos: uma prática plural pode ser engessada pela obrigatoriedade e
adequação a um modelo hegemônico de currículo?
Interculturalidade é um conceito que tem desafiado a educação, principalmente
na reflexão quanto à hegemonia de saberes, que tem marcado os currículos e as práticas
pedagógicas e, sob muitos aspectos, impedido que a educação tome impulso através da
diversa realidade brasileira. Ainda nos desafia a constituição de uma escola que trabalhe
na perspectiva democrática e intercultural, que promova uma educação para o
reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre diferentes grupos sociais e culturais.
A perpetuação da cultura autoritária se expressa em diversas vivências sociais
que imprimem relações distintas entre homem/mulher; adulto/criança;
empregador/empregado e também professor/aluno. Todas condicionadas por hábitos
hierárquicos que caracterizam também nossa visão de escola, de saberes e,
consequentemente, as estratégias didático-pedagógicas que desenvolvemos. É assim que
Paro (2003) faz a aproximação dessa cultura com o que se passa na escola: “Poder-se-ia
dizer que a oposição à promoção escolar não é uma conduta original adstrita ao ensino,
mas derivada de atributo mais abrangente e arraigado na personalidade das pessoas, que
se refere à maneira como encaram o outro na condição de sujeito” (PARO, 2003, p.73).

sumário 1125
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

No mundo capitalista marcado por relações de exploração econômica e social, a


dominação se apresenta como necessária a este modo de produção da vida social. Na
forma mais extrema, é compreendida como parte intrínseca à vida social e,
consequentemente, as práticas autoritárias são facilmente naturalizadas, dificultando
que caminhos alternativos possam ser desenvolvidos. Culturalmente aceitamos as
relações autoritárias, legitimando a dominação, inclusive em nossas relações escolares.
Na escola predomina a ideologia do mérito, disputa-se a melhor nota, produto de
um esforço e da competição pela vida, comparam-se os alunos entre si, reprovam-se os
diferentes, os “acomodados”, difundido o “cada um por si” em oposição às práticas
solidárias pouco comuns em nossas práticas pedagógicas. Toda a importância é dada às
promoções de séries, aos diplomas; estuda-se para passar nas provas e o fracasso é
vergonha que deve ser evitada a qualquer preço. Toda esta cultura autoritária e
dominadora tem se constituído parte intrínseca dos processos formativos; compreendê-
los a partir de outros critérios é desafio para os formadores de professores (PARO,
2003).
Sabemos que a guerra está posta e torna-se necessário tomar, para cada um de
nós e coletivamente, a responsabilidade enquanto educadores comprometidos com a
educação democrática. Assumir nossa responsabilidade frente aos desafios e impasses
que vivemos na educação e na sociedade.
Na prática, o sistema educacional brasileiro é desigual tanto nos aspectos
ideológicos e políticos como na geografia global. Hill (2003) afirma que a ofensiva
estratégica do campo neoliberal é dirigida para desestabilizar governos que resistem.
Investem na criação de mercados competitivos para serviços públicos indiferentes às
desigualdades que avançam no campo social decorrentes de corte dos gastos públicos e
crises financeiras globais.
O projeto atual do capitalismo neoliberal global concebe a Educação como uma
mercadoria e o professor é transformado num “perigoso trabalhador”, pois é
responsável pela formação da força do trabalho na qual se apoia todo o mundo
capitalista. Por isto, é importante controlá-lo, observá-lo, monitorando seus resultados.
O que assistimos nas políticas de educação no Brasil, em especial desde 2015, evidencia
que as teses de Hill (2003) afirmam: a necessidade de políticas para o controle de
currículos e processos de ensino-aprendizagem.
No entanto, interessa-nos prestar atenção ao que afirma sobre a
incompatibilidade entre as demandas do capital e da Educação. Na visão neoliberal, é

sumário 1126
VII Seminário Vozes da Educação

preciso um Estado forte no campo da educação básica e da formação docente, onde são
produzidas as forças de trabalho ideologicamente submissas para o capitalismo atual. A
Educação é compreendida subordinada às metas do mercado internacional e é nessa
perspectiva que as políticas curriculares e os processos de ensino-aprendizagem serão
concebidos dentro de regimes de “gestão de qualidade”, que são instaurados em toda a
vida social a partir de uma agenda empresarial e não como políticas de garantias de
direitos cidadãos. A agenda se constitui de duas metas principais que estamos assistindo
também no Brasil: a primeira é assegurar que o ensino esteja vinculado aos princípios
de reprodução ideológica e econômica que marcam o neoliberalismo; a segunda e
favorecer que as empresas privadas possam fazer dinheiro e lucrar com a Educação.
Hill (2003), porém, destaca que a Educação não é uma mercadoria, e por mais
que se possa comprar os meios para a educação não é possível comprar o aprendizado
em si. Se as mercadorias geram lucros privados à Educação, é um bem que trabalha com
outro paradigma, precisa ser repartida, foge à posse do indivíduo, circula, é livre. Por
esta razão, o aprendizado pode prosperar apesar das medidas impostas pelo lucro. A
educação é movida por motivações que vão além da conquista de um bem, deseja
transformar, é imprevisível. Mesmo que tentem limitá-la a mercadoria, o ato de
aprender, de questionar é maior do que tudo o que o mercado exige para se autogerir.
É nesse sentido que compreendemos nosso papel como trabalhadores da
educação, como intelectuais capacitados para avaliarem criticamente uma gama de
perspectivas nas quais estamos inseridos e, ao mesmo tempo, desafiados a agirem de
forma emancipada. Como professores e estudantes em trabalho coletivo, estamos
exercendo formas de práticas intelectuais e políticas que deve sem compreendidas como
campo de lutas pelas relações de poder/saber.
Comprometidos com a resistência emancipatória, compreendemos o político
como pedagógico e o pedagógico como político. Ação e reflexão aproximam-se e
tornam a práxis um exercício que nos salvaguarda. No entanto, somos cautelosos em
relação aos potenciais por mudanças que possuímos. Há restrições crescentes nos
nossos espaços de trabalhos para o desenvolvimento de democráticas e emancipatórias.
Contra isso é necessário agir não importando a escala de nosso alcance e seus impactos.
A luta de professores estudantes pela educação pública é uma gramática da qual não
podemos nos afastar mesmo que devamos reconhecer que este é um momento crítico
para nosso país e para o mundo. Se somos perigosos para os capitalistas, como a

sumário 1127
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

veracidade com que somos atacados comprova, só nos resta exercer nosso poder e falar
cada vez mais alto e em conjunto.

Referências
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escolas: relações possíveis? In: AGUIAR, Márcia Angela da S. e DOURADO, Luiz
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democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2010.

sumário 1128
VII Seminário Vozes da Educação

MOVIMENTOS DE EDUCAÇÃO PELO RÁDIO: O SERVIÇO DE


RADIODIFUSÃO EDUCATIVA (1943) E O PROJETO MINERVA (1970)

Cinthya Nunes
FFP UERJ
cinthya.nunes14@gmail.com

Rosa Monaco
PROPED UERJ
rosa-monaco@hotmail.com

Introdução
O ensino de adultos no Brasil sempre foi marcado por alternativas que pudessem
suprir os altos índices de alfabetização e de desescolarizados no território nacional. Haja
vista que os dados no ano de 1940 indicavam que 56% da população adulta brasileira
eram formados por analfabetos (MOBRAL, 1973, p. 9); em 1960 a taxa era de 39,6%; e
em 1970 esteve na ordem de 33,6% (IBGE, Centro Demográfico de 1970). O histórico
do país denotara a incapacidade dos sistemas de ensino em suportarem a crescente
demanda de escolarização que se formava ao longo dos anos, principalmente no século
XX. Mediante este cenário educacional nacional, o Estado tratou de traçar estratégias
para alcançar o público adulto. Para esse fim, investiu-se no ensino a distância, e entre
este, o ensino via rádio. Houve, com isso, a intenção de promover o acesso ao ensino
para diferentes públicos por meio de projetos e/ou programas educativos sob a esfera
nacional.
Entre as inúmeras alternativas citamos algumas que tornaram-se expressivas nas
estações de rádio como: o Serviço de Radiodifusão Educativa (1943-1951), que
funcionava como órgão subordinado do Ministério da Educação que tinha como
objetivo organizar a radiodifusão educativa do Brasil e dirigir a Rádio Ministério da
Educação a PRA-2, antiga Rádio Sociedade; a Universidade do Ar (1941-1945),
transmitida pela Rádio Nacional com a proposta de formar os professores do ensino
secundário; o Movimento de Educação de Base (MEB) (1961-1966), coordenado por
bispos da igreja católica e pelo Ministério de Educação e Cultura (MEC), estruturado
através de uma rede de escolas radiofônicas; o Projeto Minerva (1970-1989), destinado

sumário 1129
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

à educação de jovens e adultos acima de 17 anos que contou com o apoio do material
didático para o acompanhamento.
Em especial, dois desses programas, que tiveram suas aplicações durante
períodos dominados pelo regime militar, nos saltaram aos olhos tornando-se alvo desta
investigação. Sendo assim, este trabalho tem o objetivo de compreender as concepções
de educação via rádio do Serviço de Radiodifusão Educativa (1943-1951) e do Projeto
Minerva (1970-1989). Nosso interesse se justifica pela inexistência de trabalhos, na
perspectiva da História da Educação, que abordem os dois programas. Para isso,
utilizaremos como fontes teóricas e metodológicas: Salgado (1946); Horta (1973);
Ferreira (1974); Velho (1981); Rangel (1997); Pimentel (1999); Calabre (2004);
Capelato (2012); entre outros. Este trabalho está dividido em cinco partes: Introdução;
O princípio de tudo; O Serviço de Radiodifusão Educativa (1943-1951); O ensino
supletivo pelo Projeto Minerva (1970); e as Considerações iniciais; uma vez que a
pesquisa está em construção permanente.

O princípio de tudo
O rádio constituiu-se como recurso tecnológico inovador, possibilitando maior
integração entre os povos. De acordo com Salgado (1946), o rádio surgiu no século
XIX, aproximadamente na década de 1860, a partir da descoberta da existência de ondas
eletromagnéticas, por Maxwell (1839-1879). Este fato possibilitou o desenvolvimento
de pesquisas que levaram à descoberta de ondulações elétricas. Essas poderiam ser
transmitidas a distância, por meio de um aparelho que ficou reconhecido como
ressoador Hertz. No Brasil, a comemoração do Centenário da Independência em 1922
foi o marco da transmissão radiofônica. Nesta ocasião, o Presidente Epitácio Pessoa, no
dia 7 de setembro de 1922, propagou seu discurso na inauguração da Exposição
Internacional do Centenário da Independência. Foi uma grande novidade, revelando à
sociedade a nova tecnologia de comunicação. A partir desse evento surgiram outras
iniciativas de radiodifusão.
No Brasil a década de 1920 foi expressiva para desenvolvimento do país. Havia
um movimento de progresso que circulava em diversas áreas como: educação, saúde,
direito, urbanismo e entre outras. O ano de 1922 foi significativo nas artes, com a
Semana da Arte Moderna; na política, com o Centenário da Independência; e na
tecnologia, com o investimento em recursos para a transmissão via rádio (RANGEL,
2010). A partir desta comemoração foram criadas estações de rádio como: a Rádio

sumário 1130
VII Seminário Vozes da Educação

Sociedade, Rádio Clube de Pernambuco, Rádio Maranhão, todas no ano de 1923. A


RádioSociedade foi a primeira rádio educativa do Brasil. Nasceu na Academia
Brasileira de Ciências, no Rio de Janeiro, com Edgar Roquette-Pinto, Henrique Morize
e outros pesquisadores que defendiam a ideia de se criar um instrumento capaz de
transmitir educação e cultura à sociedade. A Rádio Sociedade funcionou até o ano de
1936, quando foi doada pelos seus sócios ao Ministério da Educação e Saúde. No
mesmo ano foi criado o Serviço de Radiodifusão Educativa pelo ministro da Educação
Gustavo Capanema durante a vigência do Estado Novo (1937-1945) (NUNES, 2018).

O Serviço de Radiodifusão Educativa (1943-1951)


A Rádio Ministério da Educação foi criada em 1936, após a doação da Rádio
Sociedade de Roquette-Pinto ao Ministério da Educação e Saúde, com o ministro
Gustavo Capanema. Na ocasião, a Rádio Sociedade passava por dificuldades financeiras
e para manter seu propósito educativo e não aceitar propaganda comercial na sua rádio,
Roquette-Pinto a doou para o Ministério da Educação e Saúde com uma única
exigência: que a rádio continuasse a servir somente à educação, sem fins lucrativos.
Afirma Nunes (2018), “Conforme Salgado (1946), a partir de 1936, o Ministério da
Educação e Saúde aceitou a doação da Rádio Sociedade realizada por Roquette-Pinto,
instituindo no ano seguinte o Serviço de Radiodifusão Educativa”. Acordando com a
autora:

A proposta de Gustavo Capanema foi aceita em 1937, com a criação do


Serviço de Radiodifusão Educativa e com a determinação do caráter
educativo do cinema no Instituto Nacional de Cinema (1936). No entanto,
com a nomeação de Francisco Campos para ministro da justiça em 1937, a
regulamentação dessas atividades educativas passava por divergências quanto
à sua compreensão. Segundo Oliveira (2001, p. 37), o governo Vargas operou
fortemente na divulgação política por meio da propaganda, “[...] ao criar, em
1931, o Departamento Oficial de Propaganda; em 1934, o Departamento
Nacional de Propaganda e Difusão Cultural; e, por fim, em 1939, o
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)” (NUNES, p. 94, 2018).

A criação desses departamentos colocaram o rádio como instrumento de


propagação dos feitos do Estado Novo (1937-1945), durante a presidência de Getúlio
Vargas. Nesse sentido, a Rádio Ministério da Educação ficou em disputa para ser
organizada pelo Serviço de Radiodifusão Educativa ou pelo Departamento de Imprensa
e Propaganda (DIP). Vale ressaltar que esta rádio só efetivou o seu projeto educativo

sumário 1131
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

quando Gustavo Capanema conseguiu definir que a Rádio Ministério da Educação seria
gerida pelo Serviço de Radiodifusão Educativa. Como afirma Nunes (2018):

O diretor do Instituto Nacional de Cinema Educativo Roquette-Pinto junto ao


ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, recorreram ao presidente
da República Getúlio Vargas por meio de cartas, a organização dos serviços
de rádio e cinema educativos pelo Ministério da Educação e Saúde. Enquanto
as estações comerciais ficariam a cargo do Departamento de Imprensa e
Propaganda. As pesquisas de Schwartzman (2000) demonstram que a partir
dessa arguição do Ministério da Educação e Saúde, foi concedido ao Serviço
de Radiodifusão Educativa, o início das duas atividades pela jurisdição desse
ministério (p.103).

Assim, em 1943, Gustavo Capanema nomeou para diretor do Serviço o baiano


Fernando Tude de Souza, sob a indicação de Roquette-Pinto. Fernando Tude de Souza
foi médico, jornalista e educador que dedicou-se aos estudos sobre o rádio e sobretudo à
organização e funcionamento da Rádio Sociedade. Conforme Rangel (2002):

O projeto de educação pelo rádio a que Edgard Roquette-Pinto tinha como


intenção procurar reconhecer no valor da ciência, da literatura e da arte as
chaves interpretativas das adversidades culturais, políticas e sociais do país.
Nesse sentido, o projeto roquettiano de educação pelo rádio repousava na
missão de recuperar as vozes perdidas do homem do sertão e do agreste,
promovendo não só um trabalho de conversão de almas e espíritos em favor
da idéia do progresso civilizatório, como também e, sobretudo, a defesa do
território nacional [sic] (p. 6).

A nomeação de Fernando Tude de Souza para a direção do Serviço de


Radiodifusão Educativa foi expressiva para colocar em prática o projeto idealizado por
Roquette-Pinto, ou seja, o rádio como um instrumento educativo, a fim de irradiar as
ciências, as artes, a higiene e a moral, integrando os diferentes povos pela educação. O
ano de 1943 foi fundamental para o desenvolvimento do Serviço de Radiodifusão
Educativa. Foi ampliado a sua estrutura e organização com aumento de orçamento, mais
servidores, investimento em técnica radiofônica e mais de mil discos para promover
mais programações científicas e culturais que tinham como função educar, e civilizar o
povo através do rádio. De acordo com Souza (1946), o desenvolvimento do Serviço de
Radiodifusão Educativa no ano de (1943-1944) foi de grande notoriedade (SALGADO,
1946).
A Rádio Ministério da Educação, estação PRA-2, gerida pelo Serviço de
Radiodifusão Educativa na direção de Fernando Tude de Souza (1943-1951) foi uma
emissora que pertencia ao Estado, porém, não estava a serviço do Estado para fins

sumário 1132
VII Seminário Vozes da Educação

comerciais, partidários, uma vez que esteve voltada à causa educacional na formação do
Brasil. O Serviço de Radiodifusão Educativa atuava como órgão do Estado que era
responsável pela Rádio Ministério da Educação. Ofertava conhecimento de forma geral
e específica aos conhecimentos destinados às zonas rurais, bem como assuntos para
mulheres, crianças e, também, para jovens e adultos. Com objetivo de assumir um papel
importante na formação do povo, as transmissões davam oportunidade de integrar o
país, oportunizando o acesso à educação as populações marcadas pelo abandono. De
acordo com Nunes (2018):

A programação da Rádio Ministério da Educação PRA-2 foi dividida em três


blocos. O primeiro com as disciplinas escolares Português, Matemática,
Ciências, Literatura e Geografia e História. O segundo, para a zona rural,
com aulas sobre trabalho agrícola, conselho doméstico, puericultura e
literatura. E o terceiro para debates, conferências e musicais. Pode-se
constatar o conceito de currículo na própria rádio voltado para as ciências em
geral e a ciência aplicada, sobretudo a prática. Com transmissão diária dos
cursos, atividades culturais e artísticas atendiam ao público de forma geral
(p. 111).

A programação era escolhida estrategicamente para atender a diversidade dos


ouvintes. O primeiro bloco considerava-se geral, com as disciplinas escolares
Português, Matemática, Ciências História, Geografia e Literatura. O segundo, contava
com aulas especificas com o objetivo de atender as necessidades da zona rural. O ensino
de trabalho agrícola, conhecimento doméstico, puericultura e Literatura, era ofertada de
forma proposital para educar a população rural quanto aos seus hábitos considerados no
trabalho, em casa e sobretudo de higiene. Interessante perceber que a literatura circulava
entre os dois primeiros blocos: de conhecimento geral e específico. O terceiro bloco
teve caráter cultural, com conferências e debates de caráter científico e concertos
artísticos.

O ensino supletivo pelo Projeto Minerva (1970-1989)


O país que antes do período de 1964 apostara no Movimento de Educação de
Base (MEB) entre os anos 1961-1966, não demorou muito para colocá-lo de lado, após
o domínio militar pelo golpe de 1964, e lançar o Projeto Minerva em 1970. “A ação de
Emilio Garrastazu Médici invalida o projeto anterior apoiado por Juscelino Kubistchek
de Oliveira e desenvolvido pela Igreja Católica, criando em seu lugar, um novo projeto”
(SANTOS, 2016, p. 17). O Projeto que recebeu o nome de Minerva por causa da deusa
grega da sabedoria, foi originado do Decreto nº 25.239, de 26 de dezembro de 1969.

sumário 1133
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

“Criou a estrutura técnica e administrativa para a elaboração de um Sistema Avançado


de Tecnologias Educacionais”, além de “fixar as diretrizes gerais de uma política
integrada de aplicação de novas tecnologias educacionais no País” (DECRETO Nº
25.239/1969 apud NISKIER, 1996, p. 451).
A Portaria Interministerial nº 408 de 1970, que compreendia os Ministérios da
Educação, da Indústria e Comércio e das Comunicações, determinou a obrigatoriedade
da utilização de horário das empresas comerciais de rádio e televisão, à serviço da
educação no país. Ao Conselho Federal de Educação (CFE) coube a aprovação final do
projeto, das matérias e do curso em geral. O Projeto Minerva (1970-1989) foi o
programa radiofônico educativo com a maior abrangência nacional para o ensino do 1º
Grau – segunda fase (5ª à 8ª série), que por mais tempo se manteve em operação. Os
participantes do ensino supletivo, em geral, tinham os programas e projetos educativos
como alternativas para superarem a falta de escolaridade e, com isso, avançarem em
suas conquistas para a formação e profissão.
O Projeto Minerva tinha como objetivo, segundo Horta (1973, p. 458),
“’Contribuir para a renovação e o desenvolvimento do sistema educacional e para
difusão cultural através da utilização do rádio, em combinação com outros meios”’
[grifos do autor]. Sua aplicação era de segunda à sexta-feira, onde as aulas eram
transmitidas das 20h às 20h:30min, aos sábados das 13h às 14h:15min e aos domingos
das 8h:30min às 9h:45min. O curso era dividido em três etapas distintas: Período
Preparatório com 5 aulas de 30 minutos de duração; o Curso propriamente dito com 100
aulas de 15 minutos de Língua Portuguesa, 100 de Matemática, 110 de Estudos Sociais,
110 de Ciências, 46 de Moral e Cívica, 43 de Informação Ocupacional e 42 de 12
minutos de Educação Artística e Educação Física; Plano Reforço com aulas de Língua
Portuguesa e Matemática. (NISKIER, 1996, p. 451). O material didático era
disponibilizado em formato de fascículos coloridos.
O público do Projeto Minerva poderia participar sob três tipos de recepção,
segundo Maroto (1974, p. 53): isolada, controlada ou organizada. Os participantes
acompanhavam as aulas livremente de suas casas; os participantes não frequentavam os
rádio postos todos os dias, mas compareciam de tempos em tempos; os participantes
acompanhavam diariamente as aulas em grupo nos rádio postos, na companhia dos
monitores, respectivamente. Dependendo do tipo de recepção selecionada pelo
participante, o processo contínuo de socialização o qual analisou Velho (1981) sofreria
variações, uma vez que o convívio entre os colegas de Projeto, ou não, poderia

sumário 1134
VII Seminário Vozes da Educação

apresentar diferentes resultados finais de interação e até mesmo de apreensão do


conteúdo.
A Figura (1) apresenta o aparelho de rádio que era utilizado nos rádio postos.

Figura 1: Aparelho de transmissão de rádio posto do Projeto Minerva

Fonte: Acervo pessoal do Sr. Amilcar Landiosi Junior

Em se tratando do acompanhamento do participante no rádio posto, a


competência do Projeto supletivo foi colocado em dúvida, quando Almeida (1974, p.
147) criticou a ausência do acompanhamento efetivo daquelas pessoas que seguiam as
aulas e o material didático. Segundo o autor, os monitores, quando existiam, eram
escolhidos muitas vezes entre os próprios participantes da sala do rádio posto, formada
por grupos de 30 a 50 pessoas. Conjuntamente, o programa dispunha de uma parte
cultural que era ministrada matinalmente, aos finais de semana. Por anos, o responsável
musical do programa fora o radialista mineiro José da Silva Vidal, sob o título Brasil de
Todos os Cantos. Segundo Pimentel (1999, p. 73), mais de mil programas foram
realizados em todo o Brasil, “por diversas rádios em parceria com a Rádio MEC”.
Andrelo (2012) aponta que a programação era gerada via Embratel pela Rádio
MEC, do Rio de Janeiro, para todo o país; com “exceção apenas das áreas não cobertas
pela rede de telecomunicações. Nesses locais, as emissoras recebiam os programas
gravados em fitas” (p. 147). Houve uma renovação do programa: iniciando o curso em
agosto de 1973, sua conclusão seria em dezembro de 1974. Neste ano eram em torno de
80.534 alunos e em 1975 contou aproximadamente com 150.000 alunos (NISKIER,
1996, p. 451).

sumário 1135
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O ensino supletivo via radiodifusão na década de 1970 por meio do Projeto


Minerva tomou proporções tão grandes quanto a dimensão do país. De acordo com
Ferreira (1974, p. 53-54), o Projeto Minerva foi “preparado para ser desenvolvido
inicialmente em onze Estados e sessenta e quatro municípios, deveria ter mil emissoras
de rádio para cobrir o tempo destinado à sua programação”. Em sua análise, o autor
aponta uma nova fase do programa: “Iniciado em 27 de agosto de 1973, apresentava,
em junho de 1974, uma clientela total de 80.534 alunos, sendo os Estados de Minas
Gerais, Pará e Rio e Janeiro aqueles que mostraram maior número de radiopostos [sic] e
de alunos”. Percebe-se, com isso, uma grande área de cobertura do Projeto no território
nacional.

Considerações iniciais
Apesar dos distanciamentos percebidos nos contextos históricos que estão
inseridos, tanto no Serviço de Radiodifusão Educativa (1943-1951), quanto no Projeto
Minerva (1970), ambos os programas se aproximaram no seu ideal fundador: levar a
educação para cada canto do país, ofertando o conhecimento para além da escola. Em
comum, foram aplicados em momentos políticos de poder legítimo coercitivo, tendo os
governantes no poder, a educação como meio para a propagação dos seus ideais. Em
contrapartida, houve favorecimento por meio dos mesmos programas para que a
educação fosse levada além dos prédios escolares.
O Serviço de Radiodifusão Educativa foi dividido em dois momentos: o
primeiro (1937-1943) regulamentação e o segundo (1943-1951) de implementação. O
período de 1937 a 1943 marcou as disputas políticas para a sua regulamentação. Neste,
a Rádio Ministério da Educação funcionou de forma precária, apenas com o material
doado pela antiga Rádio Sociedade. O segundo período de 1943 a 1951 foi iniciado com
o ingresso de Fernando Tude de Souza para a direção do Serviço e da Rádio Sociedade.
Na sua gestão, a rádio foi aprimorada com novos materiais e estruturas, além disso,
também pode expandir os ideais roquettianos de levar a educação para aonde a escola
não chegava.
Com este propósito, Fernando Tude de Souza dedicou-se a transmitir programas
educativos, promover o problema da alfabetização, da educação de jovens e adultos,
com aulas extracurriculares, cursos para professores conferidos pela Associação
Brasileira de Educação (ABE), e conferências por meio da rádio Ministério da
Educação. Pode-se constatar que a presença de Fernando Tude de Souza na direção do

sumário 1136
VII Seminário Vozes da Educação

Serviço de Radiodifusão Educativa foi fundamental para o desenvolvimento da rádio


Ministério da Educação. Após a saída do seu diretor (1951), ele retornou em 1956 mas,
ficou poucos meses.
Em relação ao Projeto Minerva, este perdurou por dezenove anos, significando
um record de permanência na categoria de programa radiofônico educativo. Horta,
(1973, p. 459) argumentou que a produção de programas rádio educativos no Brasil, nos
anos de 1970-1972, esteve voltada quase que, exclusivamente, para a área do ensino
supletivo, o que corrobora com a criação do Projeto. Contudo, Horta (1973, p. 465)
apontou em seus estudos sobre o Projeto Minerva que não havia ocorrido até aquele
momento, pesquisas mais amplas de avaliação, por nenhuma das entidades, inclusive
incluindo o acompanhamento dos alunos concluintes.
Apesar de todo o incentivo que o Projeto Minerva recebeu dos governantes, de
acordo com a análise de alguns autores, houve críticas em relação à baixa produtividade
nos exames supletivos realizados pelos participantes do Projeto (ALONSO 130 , 2006
apud CASTRO, 2007, p. 57). Também foram apontadas opiniões contrárias ao que dizia
a respeito à programação e à aceitação do público (PAVAN131, 2006 apud CASTRO,
2007, p. 50). Outro quesito negativo assinalado por Andrelo et al (2009, p. 86) fora a
falta de renovação dos personagens e do curso como um todo. Entretanto, as
considerações são “iniciais”, e não, necessariamente, “finais”, uma vez que outros
esforços estarão sendo realizados na direção do levantamento de fontes de pesquisa, à
serem utilizadas para a construção dos próximos estudos, no que concerne à educação
radiofônica para adultos.

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sumário 1137
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sumário 1139
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O DIREITO À CIDADE E A PESQUISA COM CRIANÇAS NA PERSPECTIVA


DA CIDADANIA DA INFÂNCIA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Elisanete Alves de Oliveira


FFP UERJ - iC
elisanete.alves@hotmail.com

"Extra! Extra! Extra!


Mais um jovem é morto
pela polícia na favela
Em plena manhã,
rua principal, viela estreita
boinas, fardas
Características de quem tem
opiniões próprias distorcidas,
sobre atitudes suspeitas
Vem com a ideia de paz
através de guerra, visão de direita
Nos olhos da população
jogam terra
e agem na espreita
Helicópteros, armamento pesado,
meu povo assustado
nem peito aliviado,
Vítima do gueto
Mais um preto assassinado
Mais uma vez acontece
Na periferia..."
(Poeta Everson Anderson – SLAM)

Na intenção de começar este diálogo, trago esta poesia declamada pelo poeta
Everson Anderson durante o SLAM, uma batalha de poesias realizada nos espaços
públicos da cidade. Jovens e adolescentes se reúnem para através da poesia relatarem a
realidade de grande parcela da população brasileira, que vive na pobreza; depende dos
serviços precários de saúde, segurança, educação e que vivem diariamente a violência
sistêmica, o machismo e o racismo.
Para realizar esta conversa a qual me proponho, busco trazer dados que
concretizam essa realidade na cidade do Rio de Janeiro e São Gonçalo, território no qual
se localiza a Faculdade de Formação de Professores (FFP – UERJ) em que venho
transitando nos últimos quatro anos como estudante do curso de Licenciatura em
Geografia. Na qualidade de estudante e bolsista de Iniciação Científica(CNPq/UERJ),
venho participando da pesquisa “A infância, a escola e a cidade: investigando

sumário 1140
VII Seminário Vozes da Educação

componentes territoriais de processos educativos na cidade de São Gonçalo” do qual


faço parte como bolsista de Iniciação Científica, coordenado pela minha orientadora a
Profª Drª Maria Tereza Goudard Tavares, do GIFORDIC (Grupos de Estudos e
Pesquisa(s) da(s) Infância(s), Formação de Professores e Diversidade Cultural).
Parto de uma perspectiva mais ampla sobre o contexto histórico e geográfico de
formação da cidade do Rio de Janeiro para então diminuir a escala de observação,
buscando compreender os impactos produzidos por este processo de formação territorial
que produziu/produz desigualdades e segregação espacial no tecido urbano, bem como a
histórica negação do direito à cidade das camadas mais pobres, sendo os jovens e
crianças pobres e quase sempre negros(as) os mais afetados por essa exclusão do direito
de ser um cidadão nos territórios da cidade.
O poeta Everson Anderson, assim como tantos outros poetas do SLAM, traz em
sua poesia a realidade em que vivem 11,4 milhões de brasileiros, moradores de favelas,
segundo o Censo do IBGE realizado em 2010. Em sua poesia, o jovem poeta trouxe o
dia a dia dos moradores de favelas/periferias, onde cada vez mais ações como essas se
repetem, resultando na morte de jovens e crianças.
Segundo pesquisa feita pelo Instituto de Segurança Pública, que trabalha com
dados desde 1998, nota-se que o número de mortes decorrentes de intervenção por
agentes do Estado, sempre foi elevado. Entre 1998 e 2003, os números de mortes
subiram, houve uma queda em 2004, seguida do aumento de casos até 2007.
De 2007 até 2013, as ocorrências diminuíram, mas a partir de 2013 até 2018, as
vítimas fatais aumentaram novamente, culminando nos maiores números de ocorrências
em 2018, chegando a 1.534 vítimas, o maior registro desde 1998. No município do Rio
de Janeiro foram registradas 558 mortes em 2018.

sumário 1141
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Mortes por intervenção de Agentes do Estado

Sendo que 555 eram homens. Desse número total, 273 vítimas eram pardas, 145
eram pretos e 98 eram brancos. A política de segurança executada na região
metropolitana do Rio de Janeiro tem cor.
Dados deste mesmo instituto mostram que entre 2014 e 2018, na cidade do Rio
de Janeiro, Niterói e São Gonçalo foram mortas ao todo 2.191 pessoas pardas/pretas,
enquanto que 428 pessoas brancas morreram. A faixa etária mais atingida por ações
policiais é entre 14 a 24 anos, ou seja, adolescente e jovens, majoritariamente pardos e
pretos. Veja os gráficos a seguir:

sumário 1142
VII Seminário Vozes da Educação

sumário 1143
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Conforme as políticas públicas de segurança vem assumindo um caráter mais


combativo, de enfrentamento nas periferias das cidades, o número de vítimas dessas
ações policiais cada vez mais vem aumenta. De janeiro a agosto deste ano o número de
mortes na região metropolitana do Rio de Janeiro chegou a 1.444 vítimas em
comparação ao ano de 2018, em que foram registradas 967 mortes, uma variação de
18,3%.
Esses dados dão visibilidade a um panorama acerca das vítimas decorrentes das
ações policiais realizadas nas cidades. Essas ações, é claro, não são realizadas nas áreas
onde reside a população rica. Elas são diariamente realizadas nas áreas de periferia e de
favelas. As mortes decorrentes dessas ações têm um perfil bem definido de vítimas:
pardo/negro, pobre, homem jovem entre 14 e 24 anos.
É comum na história de nosso país o surgimento de ações que visaram e ainda
visam a aniquilação da população negra brasileira via estratégias de branqueamento, de
envio para execução em guerras e execuções diárias como tem ocorrido nas últimas
décadas. O Estado pretende resolver o problema da violência urbana, da pobreza, da
miséria historicamente e socialmente construída por séculos através de ações que visam
o extermínio, ao invés de construir políticas que foquem na educação, na oferta de
empregos, nas políticas afirmativas de reparo social. Para entendermos tal situação é
necessário que realizemos, inicialmente, uma abordagem histórico-geográfica sobre o
desenvolvimento das cidades e os problemas socioeconômicos decorrente desse
processo.
O processo de surgimento das primeiras protofavelas (uso este termo para
designar as primeiras ocupações precárias no centro da cidade – o cortiço – para
elucidar que foi a partir desta época que os espaços periféricos presentes na cidade
começaram a se formar) teve início no século XIX, onde estava concentrada a
população negra ainda escrava ou recém liberta, que não tendo onde morar e sem
trabalho, ocupou cortiços no centro da cidade. Assim ressalta Abreu

Sede agora de modernidades urbanísticas, o centro, contraditoriamente,


mantinha também a sua condição de local de residência das populações mais
miseráveis da cidade. Estas, sem nenhum poder de mobilidade, dependiam
de uma localização central, ou periférica ao centro, para sobreviver. Com
efeito, para muitos, livres ou escravos, a procura de trabalho era diária, e este
era apenas encontrado na área central. A solução era então o cortiço,
habitação coletiva e insalubre e palco de atuação preferencial das epidemias
de febre amarela” (ABREU, 1988, p. 35)

sumário 1144
VII Seminário Vozes da Educação

Já no século XX, com o início do processo de industrialização e urbanização a


Reforma Pereira Passos utilizou dos discursos higienistas e estéticos para demolir os
cortiços presentes no espaço central da cidade, empurrando a população pobre que não
tinha onde morar e que precisava ficar perto da área central - onde as ofertas de
emprego eram disponíveis - para os morros dando origem as primeiras favelas.

E a partir daí que os morros situados no centro da cidade (Providência São


Carlos, Santo Antônio e outros), até então pouco habitados, passam a ser
rapidamente ocupados, dando origem a uma forma de habitação popular que
marcaria profundamente a feição da cidade neste século - a favela (ABREU,
1988, pág. 61).

As favelas, produto do início do processo de industrialização e urbanização da


cidade do Rio de Janeiro, concentra a população mais pobre da cidade, excluída
historicamente por políticas urbanas de desenvolvimento que visavam alcançar modelos
de cidades europeias, culminando no aprofundamento das desigualdades sociais
agravado agora pela segregação espacial.
A cidadania não alcança toda a população em nosso país, pois para ser cidadão,
este, primeiro, deve conhecer os seus direitos conquistados através das lutas pelos
direitos políticos individuais e coletivos que permite o direito à participação na
construção de uma cidade que acolha os acolha.
O geógrafo Milton Santos (2007) diz que no Brasil há os que são mais cidadãos,
há os que são menos cidadãos e há os que sequer são cidadãos ainda, ou seja, a
população negra, que tem sua causa em segundo plano, talvez, por fazer parte da
produção e não da ‘natureza’ brasileira, assim como é considerada a população
indígena, que só tem seus direitos assegurados por causa de pressões internacionais.
Mas não pense que essas pressões internacionais se compadecem da causa
indígena. Na realidade, o que se verifica são interesses de multinacionais nas riquezas
dos recursos minerais, hídricos e biológicos. Estas financiam pesquisas realizadas de
forma ilegal nas florestas brasileiras, apropriando-se dos recursos naturais, utilizando do
conhecimento medicinal de povos tradicionais, patenteando fórmulas e até mesmo
conhecimentos desses povos e lucrando bilhões, sem devolver parte dos lucros obtidos
através dessa apropriação do conhecimento.
Para SANTOS (2007) o fato de que no Brasil tenha ocorrido concomitantemente
os processos de desruralização, migrações, urbanização acelerada, concentração da
população nas regiões onde a industrialização se condensava, o crescimento do

sumário 1145
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

consumo de massa, a degradação das escolas e a condensação da mídia, colaboraram


para formar um consumidor e não um cidadão.
Essa urbanização fundada no consumo estratificou camadas no espaço e
aumentou a pobreza. Além disso, a competividade presente nas cidades impede a união
da massa popular em busca de direitos iguais para todos, tornando-os alienados. “Na
cidade, sobretudo na grande, os cimentos se dissolvem e mínguam as solidariedades
ancestrais. Ali onde o dinheiro se torna a medida de tudo, a economização da vida social
impõe uma competitividade e um selvagerismo crescentes” (SANTOS, 2007, p. 29).
Ainda seguindo o raciocínio de Milton Santos (ano), no Brasil existem as
cidadanias mutiladas (SANTOS, 1997) a cada dia, através das oportunidades de
emprego ou na promoção de cargo negada; na diferença de salários que para uns são
extremamente exorbitantes e para outros, extremamente humilhante; no direito de ir e
vir devido as tarifas cada vez mais caras do transporte público bloqueando a circulação,
nas moradias precárias; na saúde, cada vez mais sucateada e na educação, quando
escolas são fechadas ou quando professores não recebem seus salários por direito.
No que tange a esfera da educação, o discurso de que é necessário medidas para
a recuperação fiscal atinge em cheio a oferta de escolas nas áreas mais afastadas dos
centros urbanos, dificultando o acesso à escola.
No Estado do Rio de Janeiro, mais de 230 escolas foram fechadas entre os anos
de 2010 e 2018, segundo o SEPE RJ– Sindicato Estadual dos Profissionais de
Educação do Rio de Janeiro. No início deste ano verificou-se que vinte mil estudantes
estavam em lista de espera para vagas na rede pública de ensino.
Essas ausências de políticas, ou melhor dizendo as despolíticas (uso este termo
para me referir às políticas que vem sendo desfeitas) contribuem para o aumento do
número de crianças e adolescentes que estão fora da escola. Segundo levantamento
realizado pela UNESCO (2018), mundialmente, cerca de 263 milhões de crianças e
adolescentes estão fora da escola. Nos países subdesenvolvidos, a taxa de evasão
escolar chega a 59% de estudantes entre 15 e 17 anos, enquanto que nos países ricos
essa taxa é de 6%.
No Brasil, segundo dados do site “Fora da Escola não pode!” baseado no censo
do IBGE realizado em 2010 (ressalta-se a necessidade de atualização desses dados para
uma traçar um panorama que reflita nossa realidade atual!), cerca de 1,1 milhão de
crianças entre 4 e 5 anos e cerca de 2,7 milhão de adolescentes entre 15 e 17 anos

sumário 1146
VII Seminário Vozes da Educação

estavam fora da escola. O principal motivo para que adolescentes nesta faixa etária
evadam da escola se deve ao fato da necessidade de trabalho.
No Estado do Rio de Janeiro estima-se que 70 mil crianças e adolescentes
estejam em situação de trabalho infantil, isso significa que o estado tem a maior
proporção de trabalho infantil urbano do país. Em reportagem realizada pelo G1,
crianças e adolescentes que trabalham no centro da cidade do Rio de Janeiro relataram
que o dinheiro de suas vendas ajuda a comprar o essencial para a alimentação de sua
família: o arroz e o feijão.
Dados do IBGE (2010) e da Secretaria Municipal de Educação de São Gonçalo
mostram que não está ocorrendo ampliação de vagas nas redes públicas de educação
infantil afetando principalmente os moradores de bairros periféricos. A pobreza, o
desemprego e a precariedade urbana se ampliam, principalmente nos bairros e
loteamentos irregulares como nos bairros do Salgueiro, Jardim Catarina e Itaoca
(TAVARES; LARANJEIRA; OLIVEIRA, 2019, p. 175).
São crianças, adolescentes, pobres, negros, moradores de favelas inseridos na
perpetuação da lógica do corpo destinado à produção.
Sendo assim, é imprescindível para os detentores dos meios de produção que
essa condição econômica e social se perpetue, para que a mão de obra continue barata e
a consciência alienada, sendo assim, moderada a ameaça de mobilizações, estas sim,
devem ser de toda forma contida, pois estagnam o funcionamento das atividades
realizadas na cidade, e param a produção, causando desta forma prejuízo. Por isso, a
alienação do sujeito sobre a sua própria condição é tão importante para a elite, uma vez
que impede a noção de coletividade entre os trabalhadores.
Entretanto, a questão do direito à cidade (LEFEBVRE, 1991), vem se
tensionando nas últimas décadas, culminando frequentemente na organização de
parcelas da sociedade civil para reivindicar o direito de viver a cidade plenamente de
forma que possam exercer sua condição de ser cidadão.
Em junho de 2013, a sociedade civil se mobilizou para reclamar seus direitos. A
inicial proposta de manifestação, organizada pelo MPL - SP (Movimento Passe Livre –
São Paulo) começou tímida com quatro mil estudantes indo às ruas, na região
metropolitana de São Paulo, para protestar contra o aumento de 20 centavos no valor da
tarifa dos ônibus. Em poucos dias se tornou uma manifestação que ocorria em muitas
cidades, culminando “em protestos amplos e generalizados no país, que não ocorriam

sumário 1147
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

desde 1992” (SECCO, 2013, p.71) com adesão de cerca de 3 milhões de pessoas em
escala regional.
Segundo o Movimento Passe Livre - São Paulo, ao formular a questão da
organização da manifestação contra o aumento da tarifa como forma de luta pelo direito
à cidade, disse

O acesso do trabalhador à riqueza do espaço urbano, que é produto de seu


próprio trabalho, está invariavelmente condicionado ao uso do transporte
coletivo. As catracas do transporte são uma barreira física que discrimina,
segundo o critério da concentração de renda, aqueles que podem circular pela
cidade daqueles condenados à exclusão urbana (MPL – SP, 2013, pág. 15).

Para o Movimento Passe Livre – SP, as catracas sendo uma barreira física, são a
materialização da barreira construída historicamente ao pobre, produzindo espaços de
exclusões. Além das catracas, outras barreiras se fazem presentes no acesso aos
shoppings, nas entrevistas de empregos, nas escolas, nos espaços de lazer, como as
praias. Em 2015, as obras na “cidade linda” estavam a todo o vapor. A cidade
maravilhosa daqui a um ano seria sede dos Jogos Olímpicos, logo era necessário que a
imagem dessa cidade fosse veiculada nos canais de comunicação de vários países, de
forma que atraísse possíveis turistas ao país.
Mas por trás de todo esse esplendor, existia uma forte política de segregação,
uma vez que jovens moradores da zona norte e oeste que aos finais de semana seguiam
para as praias da zona sul eram frequentemente retirados (sem motivo) dos ônibus e
levados para o Centro de Atendimento à Criança, onde ficavam retidos aguardando a
chegada dos pais. Além disso, no mesmo ano foram extintos itinerários de 22 linhas
dificultando o acesso dos moradores de favelas/periferias como a Maré, Jacaré, Ramos e
Olaria às praias. Esses são só alguns da enorme lista de situações que podemos citar
neste artigo para exemplificar as questões do direito à cidade, tão negado a grande de
nossa sociedade.
Ser cidadão nessa estrutura societária já é algo desafiador (e desafiante! No
sentido de que os que lutam pela sua condição de cidadão desafiam as camadas
superiores dessa estratificação classificatória) para os adultos, que dirá para as crianças
que equivocadamente são entendidas como sujeitos “vir-a-ser”, ou seja, que estão em
formação”( CATRO et al, 2008, p.182). Mas não estão os adultos também sempre em
formação no sentido biológico, psiquíco e profissional? As crianças são consideradas

sumário 1148
VII Seminário Vozes da Educação

pela atual lógica capitalista como àqueles que trarão as mudanças e a inserção
tecnológica no futuro, quando a ‘atualização do sistema operacional’ estiver concluída.
Entretanto, como esse objetivo pode ser alcançado com a oferta de uma
educação precária, um serviço de saúde insatisfatório, a deficitária oferta de
equipamentos culturais e baixo investimento em tecnologia? Como sair da condição
icônica de país agrário - industrial - exportador que remonta desde a colonização? São
perguntas para provocar a reflexão para quem sabe, uma próxima conversa.
As crianças assim como os adultos estão na cidade, seja dentro dos carros, nas
ruas, nas escolas, nas praças, em casa, nos diferentes equipamentos urbanos. É
importante ressaltar que na cidade temos a presença de crianças que vivem os espaços
da cidade só de passagem, outras tem condições de acessar espaços culturais e
destinados ao lazer e outras estão na cidade, mas em condições subumanas de vida.
Mesmo estando em condições sociais distintas, o comum entre essas crianças, é
que elas são tratadas como se (ainda) fossem seres sem capacidade intelectual, sendo
assim não capazes de decidir o que é melhor para si. Mas na verdade devem ter o seu
direito à participação social garantido através de políticas econômicas e sociais, como
nos convida a pensar o Estatuto da criança e do adolescente (ECA,1990).
Concordo com Aquino e Gonçalves (2018, p.33) quando dizem “A problemática
aqui trazida procura questionar (grifo meu) justamente o fato de que, sob o manto da
proteção, a criança para ser feliz deve ser alienada dos dolorosos processos de luta
gerados em uma sociedade profundamente desigual”.
É urgente que os adultos deixem de falar pelas crianças acerca de assuntos que
dizem respeito a elas, dando vez a voz e ao lugar de fala dessas crianças, mesmo que
seja sobre assuntos que convencionalmente os adultos respondem por elas. Denoto ser
importante a o estabelecimento de redes de solidariedade entre crianças e adultos,
estabelecendo assim uma relação dialógica onde ambos buscam se compreender como
sujeitos que vivem lado a lado no espaço e são influenciados pela questão urbana de
modos distintos.
Defendendo essa relação dialógica, ressalto que as crianças demonstram
interesse em estabelecer este vínculo relacional e democrático. Mas percebo maior
resistência por parte dos adultos, muitas vezes de forma subconsciente de suas ações,
talvez por não reconhecer as crianças como sujeitos competentes (CASTRO, 2013),
capazes de formularem questões tão complexas quanto a que os nós (os adultos)
fazemos.

sumário 1149
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Elas têm as suas próprias formas de questionar, assim como Lopes (2018)
compartilha conosco a experiência que teve ao ser questionado por uma criança sobre
para onde era que o sol ia depois que ele se escondia. Obviamente, a curiosa criança não
sabia (ainda) sobre o movimento de rotação do planeta Terra e que na verdade o sol
permanece estático. Mas sua pergunta não deixa de ser válida, assim como não se
apresenta de forma incorreta, se mesmo os adultos dizem que o sol se “põe” e “nasce”
todos os dias. O significado do verbo pôr é sinônimo de colocar em algum lugar. Então
os adultos assim como as crianças dizem que o sol se coloca em algum lugar e nesse
movimento de ir para algum outro lugar, ele se esconde para nós.
As perguntas das crianças são repletas de lógicas, as lógicas infantis (LOPES,
2018) e o modo como perguntam não deve ser desqualificado por nós, adultos,
tampouco repreendidas, pois basta pensarmos que até Isaac Newton um dia deitado
debaixo de um pé de maçã buscando entender por que a lua não se afastava da terra,
observou uma maçã caindo e construiu a hipótese de que a lua era influenciada por uma
força assim como a maçã também era influenciada. Isso não lhe provocou o
entendimento, mas lhe provocou o início de uma pesquisa e a realização de
experimentos que mais tarde resultaram nas Leis de Newton. Daí a importância de
escutar o que as crianças têm a (nos) dizer e compreendê-las em suas linguagens.
As crianças, ao contrário do que pensamos, expressam pensamentos críticos
acerca de diversos assuntos, pois com frequência surpreendem nós adultos com
perguntas que nem mesmo havíamos parado pra pensar ou que mesmo não sabemos as
respostas. Apresento a seguinte citação:

As crianças têm consciência crítica, do que querem e do que fazem, elas


sabem colocar seus pontos de vista quando os tem em mente; quando não,
levam na brincadeira, mudam de assunto, desconversam como fazem muitos
de nós, adultos, em situações que não temos tanta certeza das coisas (SILVA
e MELRO, 2018, p.138).

É bem verdade que adultos também muitas vezes deixam de manifestar sua
opinião ou de fazer alguma pergunta por receio de ser rechaçado. Mas as crianças
geralmente, demonstram seus pensamentos de forma tão natural e descontraída,
demonstrando toda a sua curiosidade, sem medo de ‘respostas erradas’, pois na sua
criatividade, na sua lógica de pensamento, respostas erradas são relativas. Elas
produzem histórias, culturas, novas formas de ver o mundo, criam soluções originais e
inventivas para as questões que as afligem. Assim como nos diz Perez e Borges (2018),

sumário 1150
VII Seminário Vozes da Educação

elas criam os seus biografemas, ou seja, invenções de novas línguas, novas formas de
narrar as suas “Artes de Fazer” (CERTAU, 1996) a partir do seu cotidiano, trilhando
novos caminhos e fazendo descobertas.
Através da pesquisa de inspiração etnográfica, venho buscando compreender a
criança como sujeito ativo, participantes e construtores de saber, bem como cidadão de
direito. Barbosa (2014) vai nos dizer que as crianças são produtoras de conhecimento e
é importante que as pesquisas sejam conduzidas de forma ética e que o/a pesquisador/a
saiba escutar e compreender as crianças na pesquisa, dando a devida importância e
visibilidade aos seus projetos, produzindo transformações no modo de ver a infância,
não somente como vulnerável, mas como agente ativo da mudança social.
Portanto, pesquisar com as crianças exige do pesquisador, uma postura ética e
reflexiva acerca das ações, de modo que o protagonismo da criança não seja descartado,
mas sim reconhecido. A pesquisa com os pequenos exige que o/a pesquisador/a
desenvolva a escuta sensível (BARBIER, 1993) de modo que possa compreender o
outro na sua singularidade, na sua alteridade. A escuta sensível não pressupõe somente
um bom ouvido, mas o desenvolvimento de uma escuta que envolva todos os quatro
sentidos, sem a imposição de um juízo de valor. Logo a escuta sensível exige que o
pesquisador questione e possa ter uma compreensão ativa sobre os pré-conceitos
adquiridos ao longo da vida, para que assim possa escutar o outro na sua singularidade e
modo de ser e estar no mundo.
Tavares (2018) em seus estudos sobre as infâncias e a cidade de São Gonçalo,
defende a concepção de “alfabetização cidadã”, que implica em mais do que aprender
a ler e escrever, é necessário aprender a ler o mundo, seu contexto, localizar-se no
espaço. É ler o espaço e pensá-lo como construção social e histórica da ação humana. O
geógrafo Milton Santos (2006, p.63) também concorda que o espaço é uma construção
humana. Ele vai dizer que o espaço é “formado por um conjunto indissociável, solidário
e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados
isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá.” Ou seja, o homem a
partir da técnica domina a natureza transformando-a em objetos através de sua ação e
intencionalidade. Nesse processo, o homem transforma a natureza e a si mesmo,
construindo a sua história: a história da humanidade.

sumário 1151
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Considerações Finais, embora provisórias


Este trabalho vem chegando ao seu término, sempre provisório e disposto a se
abrir para novas considerações. Porém, nossa conversa continua através das pesquisas
que buscam ter com as crianças diálogos sobre a cidade em que habitam, as questões
que atravessam suas vidas na metrópole, e quais são as suas observações sobre seu
bairro, sua cidade. Compreendemos que a linguagem e a realidade se constroem
mutuamente, daí a necessidade de uma alfabetização cidadã (TAVARES, 2003), na
qual as crianças possam desenvolver a percepção das relações que ocorrem no espaço
da cidade, que produz tantos textos a serem lidos, decifrados, e tantos contextos que
necessitam ser interpretados, construindo assim os seus espaços a partir de suas ações
cheias de intencionalidades travessas.
“Ser cidadão é participar da vida pública e política da cidade” (Pérez et al, 2008,
p.183). Sendo assim, a participação das crianças podem apresentar novas formas de ver
o mundo, pode fazer com que elas(as crianças) através da interação com o espaço, a
partir de suas vivências, sua relação umas com as outras aprendam a ler a cidade com
toda a sua complexidade, seus fluxos, suas redes, seus problemas, sua beleza e
proponham mudanças, resolução para os problemas.
Finalizo com o pensamento de David Harvey (2013, p.28) que nos diz “A
liberdade da cidade é, portanto, muito mais que um direito ao acesso àquilo que já
existe: é o direito de mudar a cidade de acordo com o desejo de nossos corações”. Dessa
forma, me proponho a pesquisar a cidade junto com as crianças intencionando a
perspectiva do o direito à cidade de forma que elas/as crianças, sujeitos de nossa
pesquisa, possam exercer esse direito de ir e vir usufruindo espaços da cidade que foi
feita através do/para o povo que a construiu.

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sumário 1152
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sumário 1153
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 1154
VII Seminário Vozes da Educação

ESTADO, GOVERNO E SOCIEDADE: UM BREVE EXAME SOBRE SUAS


REPERCUSSÕES NA CONSOLIDAÇÃO DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E
ADULTOS COMO MODALIDADE DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Alcedino Alves de Oliveira


FFP UERJ
alcedino@globomail.com

Introdução
Analisando a Educação de Jovens e Adultos no Brasil, observamos que esta
modalidade da Educação Básica reverbera uma trama imbricada de relações tensas entre
Estado e Sociedade Civil, envolvendo instituições não governamentais e ainda os
movimentos sociais. Diante desta situação, observa-se implementações recorrentes de
políticas neoliberais, onde a educação é tratada mais como um negócio do que um
direito fundamental propriamente dito.
Ao disponibilizar a escolarização de jovens e adultos, o Estado na verdade busca
ofertar a educação para o trabalhador em uma perspectiva ressignificada, objetivando
uma formação voltada para o mercado de trabalho, desconsiderando a complexidade do
problema de educar sujeitos que durante muito tempo estiveram ausentes do processo
educacional escolar, ou sequer nele chegaram a ingressar. Nesta formação serôdia
vemos jovens e adultos, em sua maioria trabalhadores (assalariados ou não), alguns
casados, outros já com filhos, buscando meios de melhorar sua vida profissional ou
pessoal. Essa busca pode ser imposta por exigência do mercado de trabalho ou pelo
desejo de entender o mundo em que vivem, conhecer seus direitos e deveres para assim
estarem aptos a exercer sua cidadania plena.
Por outro lado, uma das responsabilidades sociais mais destacadas do Estado
contemporâneo é a garantia do direito à educação elementar dos seus cidadãos, não
importa a idade, e de oportunidades de alfabetização, letramento e educação continuada
ao longo da vida. Contudo, é nítido que isto nunca foi prioridade para os governos, pois
toda ação educacional sempre esteve voltada para o benefício das elites, o que fez com
que uma imensa população adulta analfabeta ou pouco escolarizada entrasse no
mercado de trabalho, tanto nas áreas rurais como nas urbanas, produzindo desigualdades
num sistema que se retroalimenta.

sumário 1155
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Políticas Públicas: frutos de uma relação complexa e tensa entre Estado, Governo,
Sociedade e Educação de Jovens e Adultos
Um importante fator a ser levado em consideração na análise das desigualdades
sociais é o acesso ao conhecimento. Para entender o fenômeno da exclusão social de
grande parte da população brasileira, antes de tudo precisamos entender o nosso
processo histórico.
Desde o início de nossa história, nega-se às camadas populares o direito social
básico de educar-se. As políticas públicas sociais surgiram como forma de resposta do
Estado ou Sociedade (neste caso, a sociedade civil) através de leis que asseguram o
direito e levam ao exercício da cidadania (direito que emana do povo) em questões
como saúde, educação, esporte, lazer, etc. Por outro lado, as políticas públicas dão
respostas às demandas existentes na sociedade, por consequência da questão social.
De acordo com Höfling (2001), as políticas públicas podem ser compreendidas
como projeto de ações do Estado que vão atender setores específicos da sociedade
através de programas implementados pelo projeto do “Estado em ação”.

Torna-se importante aqui ressaltar a diferenciação entre Estado e governo.


Para se adotar uma compreensão sintética compatível com os objetivos deste
texto, é possível se considerar Estado como o conjunto de instituições
permanentes – como órgãos legislativos, tribunais, exército e outras que não
formam um bloco monolítico necessariamente – que possibilitam a ação do
governo; e Governo, como o conjunto de programas e projetos que parte da
sociedade (políticos, técnicos, organismos da sociedade civil e outros) propõe
para a sociedade como um todo, configurando-se a orientação política de um
determinado governo que assume e desempenha as funções de Estado por um
determinado período. (HÖFLING, 2001, p. 31).

Assim, enquanto o Estado tem caráter permanente, o governo se caracteriza por


sua constante transitoriedade. Desta forma, as políticas públicas têm o intuito de
garantir direitos que foram anunciados pela Constituição Federal de 1988, como forma
de proteção social executada pelo Estado.

Contudo, as manifestações populares tiveram grande relevância para a conquista


de diversos direitos sociais e para maior participação nas decisões políticas. A luta por
valores democráticos teve como consequência a retomada das eleições direitas e a
promulgação da Constituição Federal de 1988. A partir de 1990, as políticas sociais
foram implementadas através de programas de descentralização que se concretizaram de

sumário 1156
VII Seminário Vozes da Educação

forma insuficiente e caótica. Na mesma época, o governo iniciou o processo de


desestatização e transferência de poder aos municípios.
Ainda segundo a autora, a educação aponta claramente a maneira que se
constitui e conduz uma política social dentro do sistema econômico capitalista. Neste
sentido, a educação, como política social, interfere diretamente na relação de trabalho
ao tentar resolver o problema de ingresso de trabalhadores não assalariados no mercado,
para que assim possam ser assalariados e ter uma qualificação que os garantam no
mercado de forma perene. Por conta disso,

O Estado capitalista moderno cuidaria não só de qualificar permanentemente


a mão-de-obra para o mercado, como também, através de tal política e
programas sociais, procuraria manter sob controle parcelas da população não
inseridas no processo produtivo. (HÖFLING, 2001, p.33).

O Estado servirá de instrumento de controle em seus aspectos políticos para que


possa influenciar a Sociedade nas decisões políticas, educacionais, culturais entre
outras, sem que percebam a forma de alienação. Assim, toda ação desenvolvida pelo
Estado pode gerar contradições referentes às expectativas dos resultados. Pois, entende
que, quando o Estado capitalista implementa uma política, há um feito de diferentes
interesses por trás da relação sociais de poder, os interesses partem das necessidades dos
trabalhadores assalariados e do processo de produção capitalista. Percebe-se, pela fala
da autora, que as políticas públicas sociais são utilizadas pelo Estado como mediador de
relações de interesses e conflitos advindas do setor econômico.
Sob a ótica neoliberal, gastar com programas e projetos sociais gera
desequilíbrio na economia do Estado. Por meio desse pensamento neoliberal sobre o
clientelismo, é necessário entender como atuam as políticas públicas destinadas à
Educação de Jovens e Adultos. Em se tratando desta modalidade da Educação Básica,
ainda há muitos questionamentos. Algumas respostas já evoluíram e surgiram por meio
das leis e pareceres.
Todavia, quando se fala da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no contexto das
políticas públicas sociais, percebe-se que pairam dúvidas a respeito dessa ação
governamental. Por que a EJA é uma Política Pública? Quais são as dificuldades de se
firmar como tal?
Machado (2016) analisa os vinte anos desde promulgação da Lei n.º 9.394, de 20
de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (LDBEN),

sumário 1157
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

considerando os feitos concretizados e os feitos não alcançados pela EJA com a


pretensão de se tornar uma política pública. Segunda a autora, a EJA precisa ser
pensada como escola emancipatória, que considere o conhecimento como uma das
bases para formação do pensamento crítico.
Mesmo com a evolução dos projetos de Lei para a EJA, a autora destaca as
contradições estabelecidas aos artigos da LDBEN comparada ao projeto que lhe deu
origem (Projeto de Lei n.º 101 de 1993). A partir do comparativo, ela percebe mudanças
nas implantações colocadas à EJA:

Analisando o texto aprovado em 1996 e suas alterações até o presente, pode-


se considerar uma dupla derrota para o campo da EJA. Primeiro, a clara
perda de identidade de uma modalidade para trabalhadores, que deveria ser
assumida por eles e pela sociedade como um todo, envolvendo o Estado
como propositor da política educacional e o comprometimento dos
segmentos de empregadores, sindicatos e instituições formadoras de
educadores numa ação coordenada. Isto nos leva a segunda derrota, de um
passado que não passou: a Lei nº 9.394, de 1996 é a reafirmação da
perspectiva de suplência, expressa nos artigos 37 e 38, que poderia ter sido
superada se a redação pudesse se concentrar em garantir as ofertas
diferenciadas de educação básica para a modalidade. (MACHADO, 2016, p.
439).

Dessa forma, a autora destaca mudanças que não foram significativas e deixaram
a desejar na transformação histórica indispensável para a modalidade e seu respectivo
público-alvo. Os trabalhadores não enxergaram na modalidade a identidade precisa para
dar continuidade ao seu conhecimento. Por esse motivo, não assumiram à EJA como
parte integrante da educação básica, consequência de uma redação malfadada da lei que
não buscou romper com os paradigmas históricos destinados à esta modalidade.
Assim, faz-se necessário analisar, além do contexto histórico desta modalidade
em nosso país, alguns dos programas executados e o seu financiamento.

O financiamento estatal para a Educação de Jovens e Adultos de acordo com a


legislação brasileira
De acordo com Machado (2009), percebe-se que esse campo passou por
reconfigurações tanto em seus aspectos legais como operacionais. Tendo maior
destaque com a garantia de direitos após a Constituição Federal de 1988, sendo
considerada Constituição Cidadã, pois trazia em seu bojo uma nova concepção de
cidadania, direito e dever.

sumário 1158
VII Seminário Vozes da Educação

Com a criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, que


reforçava a Constituição Federal de 1988 sobre o dever do Estado, foi consolidada a
garantia da gratuidade à educação. Porém, houve debates a respeito se a EJA deveria ser
incluída na concepção da Educação Básica. Neste sentido:

Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado


mediante a garantia de:
VII - oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com
características e modalidades adequadas às suas necessidades e
disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de
acesso e permanência na escola. (BRASIL, 1996).

Segundo Machado (2009), pela LDBEN de 1996 a EJA se incluía como


modalidade da Educação Básica. Mas as ações políticas foram contraditórias à lei que a
garantia, e a autora continua a ressaltar que houve uma contrariedade por parte do
governo que sancionou a referida lei.
Ao criar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
de Valorização do Magistério (Fundef), Lei n.º 9.424 de 20 de dezembro de 1996, o
mesmo governo contradisse o inteiro artigo 4 da LDBEN de 1996, uma vez que não foi
permitido que as matrículas da EJA fossem redistribuídas pelos recursos do fundo. Essa
decisão do governo sobre o financiamento à educação fez com que não houvesse
interesse dos municípios, uma vez que não recebiam repasses financeiros dos
investimentos e gastos com esta modalidade.
Com isso, o governo destinou a responsabilidade da EJA às empresas que
tinham interesse nesses jovens e adultos trabalhadores, cuja participação era ativa na
economia. Esse processo fez com as responsabilidades da modalidade fossem divididas
entre o Ministério da Educação e o do Trabalho e Emprego, e a modalidade foi
sustentada pelos repasses do recurso do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
A EJA começou a ser ofertada como educação profissional ao nível básico e, em
específico, aos cursos instrumentais de curta duração. O Ministério do Trabalho e
Emprego ficou responsável pelo financiamento de cursos educacionais
profissionalizantes que atendiam as solicitações da população adulta com baixa
escolaridade. Já a efetivação do curso ficou incumbida às organizações civis tais como
ONGs, entidades sindicais, etc.
À vista disso, os marcos legais e operacionais foram se distanciando na garantia
de oferta de ensino fundamental para educação de jovens e adultos como política

sumário 1159
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pública. E alguns programas, tomando o PAS 132 (Programa Alfabetização Solidária)


como exemplo, foram destinados a interesses econômicos capitalistas: “uma das
estratégias do PAS, na época que gozava do status de programa oficial do governo pelas
mãos de uma organização não governamental.” (ALVARENGA, 2010, p.174).
Ainda de acordo com a autora, o PAS considerava as parcerias como a principal
e inovadora estratégia cujo objetivo estava no combate ao analfabetismo e ao
enfretamento da pobreza e da exclusão social. Entretanto, o sistema de parcerias,
forjado no modelo caritativo, desenvolveu a facilitação ao clientelismo e fez com que os
projetos neoliberais avançassem contra as políticas sociais ao instituírem novos
conceitos para substituírem termos clássicos (assistência, caridade, filantropia, doação e
tutela).
O PAS representou a mudança dos novos termos na visão neoliberal, que
preconizava que cidadania se constituía a partir da mera alfabetização. Este programa
passou por avaliações de universidades parceiras que chegaram a considerações, através
dos professores, que o programa não atendia os requisitos necessários para a
continuidade da escolarização.
Através dos conflitos existentes nas relações de legalidade e práticas da EJA,
houve um entendimento da parte das mobilizações que essa modalidade precisava ser
reconhecida como Educação Básica e não como um complemento da educação.
Estas mobilizações resultaram em Conselhos Estaduais de Educação (CEE),
fóruns e no Conselho Nacional da Educação (CNE) tudo para que ocorresse uma
discussão do tema “EJA como educação básica” e o resultado das audiências públicas
levaram a realização do Parecer CNE/CEB n.º 11/2000.
A Lei n.º 10.172, de 9 de janeiro de 2001, reforça em seus objetivos através de
metas as ampliações de programas, os quais foram discutidos em conselhos anteriores,
como os itens:

1. Estabelecer, a partir da aprovação do PNE, programas visando a


alfabetizar 10 milhões de jovens e adultos, em cinco anos e, até o final da
década, erradicar o analfabetismo.
2. Assegurar, em cinco anos, a oferta de educação de jovens e adultos
equivalente às quatro séries iniciais do ensino fundamental para 50% da
população de 15 anos e mais que não tenha atingido este nível de
escolaridade.

132
O PAS constituiu-se, na condição de programa oficial, como uma das ações desenvolvidas pelo
Conselho da Comunidade Solidária, órgão criado pelo governo federal, desde 1995, tendo como papel a
mediação entre parceiros públicos e privados para ações que visassem reduzir os índices de desigualdades
e as “condições subumanas do povo” (BRASIL. CCS, 1997, p. 9 apud Machado, 2009, p.20)

sumário 1160
VII Seminário Vozes da Educação

3. Assegurar, até o final da década, a oferta de cursos equivalentes às quatro


séries finais do ensino fundamental para toda a população de 15 anos e mais
que concluiu as quatro séries iniciais.
15. Sempre que possível, associar ao ensino fundamental para jovens e
adultos a oferta de cursos básicos de formação profissional.
16. Dobrar em cinco anos e quadruplicar em dez anos a capacidade de
atendimento nos cursos de nível médio para jovens e adultos. (BRASIL,
2001).

O que parecia evoluir para fundamentação coerente de política pública sofreu influência
de um governo neoliberal. Vetado o orçamento que implicaria na ação das metas, o
presidente Fernando Henrique Cardoso não aprovou a lei de financiamento das metas,
que em tese garantiria a ampliação dos recursos advindos do orçamento da União para o
investimento na educação, segundo Machado (2009). E o que era para ser realizado em
um ano (conforme estabelecia a Lei n.º 10.172/2001 para que os estados que a
executassem) levou em torno de nove anos, e mesmo assim, pouco estados colocaram
em prática. O veto dado às metas prosseguiu e permaneceu no governo seguinte do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E a lei acabou sendo de pouca relevância para a
educação.
Alguns Estados do Nordeste procuraram reverter o efeito do veto do Presidente
Fernando Henrique Cardoso quanto a participação da EJA no Fundef e buscaram criar
outro programa intitulado como “Programa Recomeço”, que mais tarde ficou conhecido
como “Programa Supletivo”. A Bahia foi um dos Estados que procurou reverter à falta
de financiamento e passou a contar as turmas de alunos da EJA como classes de
aceleração.
Segundo Rummert e Ventura (2007), com a exclusão da EJA de receber o
financiamento do Fundef a modalidade ficou praticamente sem nenhum recurso até
2001, quando foi criado o Programa Recomeço133.
O programa foi financiado pelo Fundo de Amparo à Pobreza, criado no ano
2000 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Esse Fundo tinha como objetivo
financiar projetos de assistência social. A finalidade do programa estava no
enfrentamento da diminuição do analfabetismo de jovens a partir de 15 anos e da baixa
escolaridade.

133
“Também cabe considerar que o Recomeço integrou o Projeto Alvorada14, responsável por articular
programas sociais, de infraestrutura e desenvolvimento focados na redução das desigualdades regionais e
melhoria das condições de vida nos locais mais pobres do Brasil, identificados a partir do seu IDH”.
(RUMMERT; VENTURA, 2007, p.38).

sumário 1161
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O Recomeço continuou recebendo recursos no governo do presidente Luiz


Inácio Lula da Silva, mas em 2003 passou a ser intitulado Programa Fazendo Escola
que por meio da Resolução CD/FNDE nº 25, de 16 de junho de 2005, estabelece:

Art. 2º O programa de que trata esta Resolução consiste na transferência, em


caráter suplementar, de recursos financeiros em favor dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, destinados a ampliar a oferta de vagas no
ensino fundamental público de jovens e adultos e propiciar o atendimento
educacional, com qualidade e aproveitamento, aos alunos matriculados nessa
modalidade de ensino.
Parágrafo Único. São beneficiários do Fazendo Escola os alunos de escolas
públicas do ensino fundamental, matriculados nos cursos da modalidade
educação de jovens e adultos presencial com avaliação no processo, que
pertençam aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios que, em 2004,
apresentaram matrículas no Censo Escolar INEP/MEC, inclusive aqueles
oriundos do Programa Brasil Alfabetizado (BRASIL, 2005).

Percebe-se pela Resolução o complemento de dois Programas na busca da escolarização


e alfabetização desses jovens a partir de 15 anos: O Programa Fazendo Escola e o
Programa Brasil Alfabetizado (PBA134).
O Programa Fazendo Escola assim que criado não fez com que os municípios
recebessem recursos significativos na melhoria da escolarização do ensino fundamental
para jovens e adultos.
Esse processo foi transformado com a criação de um novo repasse que se
estendia aos municípios cujas escolas efetivavam o Programa Brasil Alfabetizado, que
servia de estimulo para as secretarias de educação darem continuidade ao Programa
Fazendo Escola, o qual atendia jovens e adultos do ensino fundamental através da
modalidade EJA.
Com o governo de Inácio Lula da Silva as metas para educação de jovens e
adultos ganharam mais visibilidade. “Tais metas seriam efetivadas por meio das ações
de alfabetização que deveriam envolver estados, municípios, instituições de ensino
superior e organizações sem fins lucrativos.” (ALVARENGA, 2010, p.184).
Para que houvesse apoio de investimentos da União, as instituições que
aderissem o programa deveriam elaborar um Plano Plurianual de Alfabetização. A
apresentação do Plano e dos requisitos necessários era direcionada ao MEC, através da
Secad (Secretaria de Educação a Distância, Alfabetização e Diversidade), e toda

134
“O PBA foi criado pelo Ministério da Educação e coordenado pela Secretária Extraordinária de
Erradicação do Analfabetismo (SEEA) em janeiro de 2003, mas somente oficializado pela Lei 10.880, de
9 de julho de 2004.” (ALVARENGA, 2010, p.183).

sumário 1162
VII Seminário Vozes da Educação

transferência financeira fica sob a responsabilidade e o controle do Fundo Nacional de


Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Com a mudança da nomenclatura para o FUNDEB 135 a modalidade passou a
receber recursos diretos. Entretanto, ainda existia uma diferença na proporcionalidade
dos recursos referente à EJA em comparação à educação básica. Portanto, é necessário
compreender a importância que o Parecer CNE/CEB 11/2000 teve para educação de
jovens e adultos, pois reafirmou a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases de
1996 e evidenciou a importância de se colocar a modalidade como educação básica
através das políticas públicas.

O cenário atual: uma modalidade da Educação Básica que defende o direito à


educação de jovens e adultos das classes populares
Os que abandonam a escola fazem isso por diversos fatores de ordem social e
econômica, mas também por se sentirem excluídos dentro da própria realidade de
ensino e aprendizagem na instituição. Nesse processo de exclusão, o insucesso na
aprendizagem tem tido papel destacado e determina a frequente atitude de
distanciamento.
Por outro lado, há entraves causados por políticas governamentais que não
subsidiam de forma satisfatória a escolarização destes desafortunados. Observamos que
existe um embate no qual o paradoxo entre a democratização do ensino e as concepções
no interior desse sistema revelam um caminhar antagônico, com nichos de privilégios e
reprodução dos interesses dominantes.
No final do mandato de Fernando Henrique Cardoso, o Parecer CNE/CEB n.°
11/2000 trouxe uma nova perspectiva a EJA, pois procurou restabelecer a estrutura
organizacional a essa modalidade.
Mesmo com o avanço da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a EJA
precisou ser repensada na sua oportunidade de inclusão de jovens e adultos analfabetos
ou com escolarização defasada.

135
O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação – Fundeb é um fundo especial, de natureza contábil e de âmbito estadual (um fundo por estado
e Distrito Federal, num total de vinte e sete fundos), formado, na quase totalidade, por recursos
provenientes dos impostos e transferências dos estados, Distrito Federal e municípios, vinculados à
educação por força do disposto no art. 212 da Constituição Federal. Disponível em
<http://www.fnde.gov.br/financiamento/fundeb/sobre-o-plano-ou-programa/sobre-o-fundeb>. Acesso em:
31 de jul.de 2019.

sumário 1163
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Por conta desse motivo, o texto sobre o Parecer, que teve como relator Carlos
Roberto Jamil Cury, auxiliado por outros autores, procurou ressaltar as funções da EJA
para evoluir com a obrigatoriedade da oferta desta modalidade:

A EJA, de acordo com a Lei 9.394/96, passando a ser uma modalidade da


educação básica nas etapas do ensino fundamental e médio, usufrui de uma
especificidade própria que, como tal deveria receber um tratamento
consequente. Ao mesmo tempo, muitas dúvidas assolavam os muitos
interessados no assunto. Os sistemas, por exemplo, que sempre se houveram
com o antigo ensino supletivo, passaram a solicitar esclarecimentos
específicos junto ao Conselho Nacional de Educação. Do mesmo modo,
associações, organizações e entidades o fizeram (BRASIL, 2000).

Antes de o Parecer ser consolidado como documento oficial da EJA, foram realizadas
reuniões que tinham como representantes organizações e líderes importantes (a
Universidade de Brasília – UnB e o Serviço Social da Indústria – SESI, com o apoio da
UNESCO) para a construção desta modalidade de ensino, que trabalhava com a ideia de
profissionalizar os estudantes da EJA.
Deste modo, o Parecer foi discutido em cada tópico até a sua formação
organizacional, sempre tendo a supervisão do MEC. “As sugestões, as críticas e as
propostas foram abundantes e cobriram desde aspectos pontuais até os de
fundamentação teórica.” (BRASIL, 2000).
O relator do Parecer deixa explicito a função reparadora da EJA, que é de
compensar uma dívida história social, que Brasil tem com essa população. E qual
população seria essa? Os analfabetos e iletrados? Sim, mas existe todo um contexto por
trás dessas pessoas comprovado por estática e pesquisas, contexto de pobreza,
desemprego, evasão entre outros motivos.
Segundo o autor do Parecer, em 1996, mesmo após a Constituição Federal de
1988 e a LDBEN, havia um número elevado de evadidos entre os jovens e adultos e isso
ocasionou o mau rendimento da escolarização. Esse índice atingia em maior proporção
famílias pobres, que moravam em locais afastados do centro da cidade e também os
afrodescendentes. Por meio desses fatores, há uma compreensão que o problema da
evasão não está associado apenas à educação (um fator importante para igualdade de
direitos), porém está associado aos problemas históricos sociais do Brasil.
Portanto, quando um jovem ou adulto não consegue iniciar ou dar continuidade
a sua trajetória escolar por causa dos problemas sociais, automaticamente ele é privado
de viver uma democracia participativa que inclui conhecimentos, reflexões e

sumário 1164
VII Seminário Vozes da Educação

questionamentos a respeito de vários assuntos pertinentes a sociedade e aos problemas


sociais.
Contudo, o Parecer 11/2000 procurou dar uma base aos jovens e adultos da EJA
para que se tornassem participantes ativos nas tomadas de decisões socioculturais com
as suas experiências e particularidades. Todo esse cuidado interpretativo dado pelo
parecerista tinha como o objetivo atingir o direito social e cidadão aos excluídos
socialmente pela falta de escolarização. Nesse sentido se atribui a função equalizadora,
a qual ofertasse oportunidade no exercício dos direitos sociais, ao fazer com que os
jovens/adultos alcancem seus direitos e espaço de luta. “É por isso que a EJA necessita
ser pensada como um modelo pedagógico próprio a fim de criar situações pedagógicas e
satisfazer necessidades de aprendizagem de jovens e adultos.” (BRASIL, 2000).
A Educação Básica não restringe apenas a obrigatoriedade aos indivíduos entre
quatro e dezessete anos, mas aos jovens e adultos que não tiveram acesso ao ensino em
suas respectivas idades de acompanhamento esperado ao ensino fundamental. Tanto é
assim que a Resolução das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação e Jovens
e Adultos irá ressaltar em seu artigo 7.º, que “os cursos de Educação de Jovens e
Adultos de nível médio deverão ser voltados especificamente para alunos de faixa etária
superior a própria para a conclusão deste nível de ensino ou seja, 17 anos completos.
(BRASIL, 2000).
Contudo, mesmo com as leis vigentes o sistema é descentralizado e, portanto,
cada município tem sua Lei Orgânica que dá autonomia no processo educacional de
ensino. Logo, em cada cidade a EJA será estabelecida na instituição conforme o projeto
educacional da secretaria de educação daquele local, tendo como base as leis federais e
estaduais para condução da modalidade, o qual deve ter como meta à equalização do
ensino em oferta de vagas gratuitas com qualidade a todos aqueles que, de certa forma,
foram excluídos pela falta de escolarização (trabalhadores, pessoas em busca de
trabalho, donas de casa, empregadas domésticas, idosos, entre outros).
Nesse sentido, os jovens que se encontram fora da série de sua faixa etária na
escola e que precisam trabalhar ou já trabalham, estão respaldados pelas Leis de
Trabalho através da Lei n.º 10.097, de 19 de dezembro de 2000, a prioridade no
convívio escolar:

sumário 1165
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Art. 403. É proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade,


salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos. (NR)

Parágrafo único. O trabalho do menor não poderá ser realizado em locais


prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e
social e em horários e locais que não permitam a frequência à escola. (NR).
(BRASIL, 2000).

O Parecer cita esse artigo como algo fundamental no avanço da escolarização


desse jovem que precisa trabalhar, e que, ao integrá-lo no mercado de trabalho,
possibilita, de certa forma, a dar continuidade aos estudos, pois legitimou mecanismos
importantes para seu acesso e permanência.
Assim, a EJA traz em sua proposição a função qualificadora que conta com o
dever do Estado, tendo como resposta as políticas púbicas e quando violado pelo
mesmo, observa-se a intervenção da sociedade civil e do setor privado.

Considerações finais
O dualismo escolar constitui historicamente uma característica da organização
educacional brasileira: um tipo de escola de ensino profissional, destinada,
principalmente, para as classes subalternas; e outro tipo de escola, de caráter acadêmico,
destinado a preparar pessoas para formar a elite dominante.
Essa configuração dualista da escola é característica presente na maioria dos
países capitalistas. E este modelo estimula a seleção dos aptos e não aptos, de acordo
com um padrão pré-estabelecido pela tradição que ignora a cultura que o aluno possui,
bem como desconsidera o fato de que ele é coconstrutor do conhecimento.
Segundo Brandão (1981), a realidade da educação brasileira não segue o que é
prescrito pela legislação, ou seja, o sistema educacional legitima o ensino elitista
difundido no Brasil. O autor explica isso ao afirmar que esse sistema desigual é
garantido graças aos interesses políticos e econômicos de pessoas que se beneficiam
pela manutenção desse sistema, ao afirmar que a expansão do ensino privado no país
desobrigou o Estado de custear a educação, de modo que se configura o caráter elitista
da educação brasileira.
Assim, o descaso pelo ensino público tem sido uma constante desde o início de
nossa colonização. Desde o início, toda ação educacional estava voltada para o
benefício da aristocracia rural e da burguesia emergente. Não havia qualquer ação
consistente em prol da escolarização dos não ou pouco escolarizados. Uma imensa
população adulta analfabeta assumiu os postos de trabalho, tanto no campo como nas

sumário 1166
VII Seminário Vozes da Educação

manufaturas, e o ensino profissional ficou restrito às camadas mais pobres da


população. A educação primária objetivava apenas escrita, leitura e cálculos
elementares, ocasionando a regressão de conhecimentos dos que não prosseguiam os
estudos.
Com o objetivo de reverter este quadro, políticas públicas têm sido elaboradas
para promover a inclusão social de jovens e adultos das camadas populares que, de um
modo ou de outro, foram excluídos do sistema educacional. Considerando o previsto na
legislação, observamos um abismo entre as letras frias da lei e a realidade educacional
que nos encontramos.
É necessário repensar as políticas públicas que priorizem de fato a qualidade e
efetividade desta modalidade de ensino. Que garantam a contratação de profissionais
qualificados, formados especificamente para este fim. Estas políticas públicas precisam
estar articuladas com o compromisso do acesso e permanência do aluno na escola e que
todos tenham uma aprendizagem realmente significativa durante e ao concluir seus
estudos.
Precisamos ainda que o Estado, governo e sociedade civil abandonem a
passividade diante dos fatores econômicos e sejam promotores da cidadania. Desta
forma, estaremos dando passos significativos para o fim da reprodução das
desigualdades sociais.

Referências
ALVARENGA, Marcia Soares de. Sentidos da Cidadania: Políticas de Educação de
Jovens e Adultos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Que é Educação. São Paulo: Editora Brasiliense,


1981.

BRASIL. Lei n.º 10.172, de 9 de janeiro de 2001.Aprova o Plano Nacional de


Educação e dá outras providências. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.htm>. Acesso: 31 de
jul.2019.

______. Lei n.o 10.097, de 19 de dezembro de 2000.Consolidação das Leis do


Trabalho – CLT. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L10097.htm>. Acesso: 31 de jul. de
2019.

______. Parecer CNE/CEB n° 11/2000. Diretrizes Curriculares Nacionais para a


Educação de Jovens e Adultos. Disponível em:

sumário 1167
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

<http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/PCB11_2000.pdf> Acesso em: 25 de jul. de


2019.

______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.Estabelece as diretrizes e bases da


educação nacional.Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm> Acesso em: 31 de jul. de 2019.

______. Resolução/CD/FNDE nº 25, de 16 de junho de 2005.Estabelece os critérios e


as normas de transferência de recursos financeiros ao Programa de Apoio aos Sistemas
de Ensino para Atendimento à Educação de Jovens e Adultos – Fazendo Escola.
Disponível em: <https://www.fnde.gov.br/index.php/acesso-a-
informacao/institucional/legislacao/item/4194-resolu%C3%A7%C3%A3o-cd-fnde-
n%C2%BA-25,-de-16-de-junho-de-2005>. Acesso em: 31 de jul. de 2019.

HÖFLING, Eloisa de Mattos. Estado e Políticas (Públicas) sociais. Cadernos Cedes,


ano XXI, n.º 55, novembro de 2011.

MACHADO, Maria Margarida. A educação de jovens e adultos no Brasil pós-Lei nº


9.394/96: a possibilidade de constituir-se como política pública. Em Aberto, Brasília, v.
22, n. 82, p. 17-39, nov. 2009. Disponível em:
<http://emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/viewFile/2240/2207> Acesso
em: 25 de jul. de 2019.

______. A Educação de Jovens e Adultos após 20 anos da Lei nº 9394/96. Revista


Retratos da Escola.v.10, n. 19, 2016. Disponível
em:<http://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/viewFile/687/706> Acesso em:
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VENTURA, J.; LESSA, L. L.; SOUZA, S.C.V. O Pronatec e a (Con)Formação do


Trabalhador: a privatização da educação profissional e o rebaixamento da formação
humana. In: BONFIM, M. I. et. al. Educação de Jovens e Adultos da Classe
Trabalhadora Brasileira: “Novos” projetos e antigas disputas / Maria Inês Bonfim,
Sonia Maria Rummert (Orgs.). – 1 ed. – Curitiba, PR: CRV, 2017. cap. 5, p.115 – 150.

sumário 1168
VII Seminário Vozes da Educação

AVALIAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO ESPECIAL:


AMEAÇA AO RETROCESSO NO ATENDIMENTO DE ALUNOS COM
NECESSIDADES ESPECIAIS

Ielva Maria Costa de Lima Ribeiro


UNIVERSO
ielvamariacostadelimaribeiro@gmail.com

Márcia Lucas de Oliveira


FFP UERJ
marcia.marciocuesta@gmail.com

Introdução
No Brasil o acesso à educação formal é reconhecido como direito humano e
social e por este motivo não pode ser negado a nenhum cidadão. No contexto brasileiro,
trata-se de um direito construído progressivamente. A história da educação nos mostra
que nosso país frequentemente adotou políticas que excluíam parcela significativa da
sociedade. Podemos falar da exclusão dos negros, mulheres, indígenas e pessoas com
deficiência, transtorno do espectro autista, ciganos, quilombolas, dentre outros. Esta
exclusão retrava (a) as formas sociais pelas quais o Brasil se organizava (a).
No que se refere a pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista (TEA)
e pessoas com altas habilidades /superdotação esta realidade se asseverou muito mais e
persiste até os dias atuais, visto que sua presença nos ambientes escolares
frequentemente é questionado, o que não acontece com as outras parcelas da população
acima citadas.
No entanto, segundo Mantoan e Santos (2012), a partir da Constituição Federal
de 1988, o Brasil em consonância com os movimentos sociais fortalecidos na década de
80, e com os movimentos internacionais de direitos das pessoas com deficiência, ao
definir a educação como direito de todos e como primeiro princípio do ensino a
igualdade de condições de acesso e permanência na escola, reafirmou o compromisso
com a inclusão plena de todas as crianças, jovens e adultos no sistema regular de ensino.
Para as autoras, a carta magna não deixa dúvidas quanto ao direito de todos

sumário 1169
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

frequentarem as escolas regulares, pois o termo preferencialmente apenas se aplica


nesta Constituição ao atendimento educacional especializado (AEE).
No ano de 2008 o Ministério da Educação (MEC) publicou a Política Nacional
de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEI/2008),
promovendo rompimento com a política integracionista até então em vigência,
realinhando as políticas educacionais ao princípio constitucional do direito de todos à
educação.
Entretanto, nos últimos anos, o Brasil tem sido palco de retrocessos históricos
que não poderiam deixar de afetar também as políticas inclusivas, e neste sentido o
Ministério da Educação questionando a PNEEI/2008, propõe sua revisão que, se
aprovada, resultará em retrocessos significativos no que se refere ao direito de acesso e
permanência dos alunos público alvo da educação especial na escola.
Este texto objetiva uma análise comparativa entre o documento da PNEEI/2008
e a proposta de sua modificação, com vistas a perceber como tais mudanças atingirão os
direitos das pessoas já citadas.

Políticas de Educação Especial no Brasil


No decorrer da história da educação, políticas diferentes foram implantadas para
normatizar a educação especial no Brasil. Em períodos anteriores a 2008, a política
propiciava que esta modalidade possibilitasse que os alunos com deficiência, TEA e
com altas habilidades/superdotação fossem educados em sistemas paralelos de ensino.
Neste sentido, em 1994 foi instituída da Política Nacional de Educação Especial,
assim definida em seu documento orientador:

Entenda-se por Política Nacional de Educação Especial a ciência e a arte de


estabelecer objetivos gerais e específicos, decorrentes da interpretação dos
interesses, necessidades e aspirações de pessoas portadoras de deficiências,
condutas típicas (problemas de conduta) e de altas habilidades
(superdotadas), assim como de bem orientar todas as atividades que garantam
a conquista e a manutenção de tais objetivos (BRASIL, 1994 p.7).
A Política Nacional de Educação Especial deverá inspirar a elaboração de
planos de ação que definam responsabilidades dos órgãos públicos e das
entidades não-governamentais, cujo êxito dependerá da soma de esforços e
recursos das três esferas de Governo e da sociedade civil (BRASIL, 1994,
p.8).

A definição acima transcrita, da Política de 1994, nos faz perceber que a mesma
apresentava orientações gerais para implementação de práticas com o objetivo de

sumário 1170
VII Seminário Vozes da Educação

inspirar no âmbito dos sistemas públicos, ações voltadas a promover gradativamente o


direito à educação dos alunos público alvo da Educação Especial.
Segundo Góes (2009), esta política representa uma proposição clara de uma
política de Educação Especial feita pelo Estado brasileiro, mesmo depois de passados
12 anos do período da abertura da política do país.
A política ao apresentar o conceito de educação especial, também definia como
público alvo da Educação Especial, os alunos com deficiência, com condutas típicas
(problemas de conduta) e com altas habilidades (superdotados). Nela, a Educação
Especial era oferecida por modalidades de atendimento, muitas vezes substitutivas do
ensino regular.
Desta forma eram modalidades da Educação Especial: o atendimento domiciliar,
que referia-se ao atendimento ao aluno com necessidades especiais em casa
considerando que o mesmo tenha impossibilidade de frequentar a escola; a classe
comum, reconhecida como ambiente regular de ensino aprendizagem, com frequência
tanto de crianças sem deficiência quanto de crianças com deficiência, desde que estas
últimas possuíssem “condições de acompanhar e desenvolver as atividades curriculares
programadas do ensino comum, no mesmo ritmo que os alunos ditos normais”
(BRASIL, 1994, p.22). Ainda consideravam como modalidade de atendimento a classe
especial, a classe hospitalar e o Centro integrado de Educação Especial, caracterizado
como espaço composto por equipe multidisciplinar responsável pela avaliação,
escolarização e de preparação para o trabalho; o ensino por professor itinerante, a escola
especial, a oficina pedagógica destinada à aprendizagem de atividades laborativas; e a
sala de recursos reconhecida como:

Local com equipamentos, materiais e recursos pedagógicos específicos à


natureza das necessidades especiais do alunado, onde se oferece a
complementação do atendimento educacional realizado em classes do
ensino comum. O aluno deve ser atendido individualmente ou em pequenos
grupos, por professor especializado, e em horário diferente do que frequenta
no ensino regular (BRASIL, 1994 p.20 grifo dos autores).

Ao apresentar a sala de recursos como uma modalidade de atendimento da


Educação Especial, a política de 1994 o define como espaço apenas de complementação
do atendimento realizado nas classes regulares, o que supõe que o atendimento aos
superdotados não necessariamente deveria ser feito neste espaço.

sumário 1171
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

É importante destacar ainda que em 2001 o Conselho Nacional de Educação


publicou a resolução de n° 2/2001/CNE (ainda em vigor), que institui diretrizes
nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, com objetivo de orientar os
sistemas de ensino na oferta da Educação Especial em consonância com os princípios da
política de 1994. Nesta resolução a Educação Especial, é apresentada como uma
modalidade da educação, assumindo um caráter complementar, suplementar e se
necessário substitutivo do ensino comum conforme podemos verificar a seguir:

Art. 3º - Por educação especial, modalidade da educação escolar, entende-se


um processo educacional definido por uma proposta pedagógica que assegure
recursos e serviços educacionais especiais, organizados institucionalmente
para apoiar, complementar, suplementar e, em alguns casos, substituir os
serviços educacionais comuns, de modo a garantir a educação escolar e
promover o desenvolvimento das potencialidades dos educandos que
apresentam necessidades educacionais especiais, em todas as etapas e
modalidades da educação básica (BRASIL, 2001 Grifo dos autores).

Assim, os pressupostos da Educação Especial anteriormente expostos na política


integracionista foram mantidos, mas em alguns aspectos ampliados pela resolução em
questão. Dessa maneira, nesta resolução, as possibilidades de práticas de exclusão das
escolas comuns ficaram muito claras, o que evidentemente contrariava os princípios
Constitucionais de que todas as pessoas têm o direito de conviver em espaços
educativos comuns a todos, sem qualquer forma de segregação conforme nos afirma
Fávero, 2011.
Outro fator que merecia destaque era a definição do público alvo da Educação
Especial, resolução nº 2/2001:

Art. 5º - Consideram-se educandos com necessidades educacionais especiais


os que, durante o processo educacional, apresentarem:
I - dificuldades acentuadas de aprendizagem ou limitações no processo de
desenvolvimento que dificultem o acompanhamento das atividades
curriculares, compreendidas em dois grupos: a)Aquelas não vinculadas a uma
causa orgânica específica; b)aquelas relacionadas a condições, disfunções,
limitações ou deficiências; II - dificuldades de comunicação e sinalização
diferenciadas dos demais alunos, demandando a utilização de linguagens e
códigos aplicáveis; III - altas habilidades/superdotação, grande facilidade de
aprendizagem que os leve a dominar rapidamente conceitos, procedimentos e
atitudes (BRASIL, 2001).

Ao incluir entre os alunos com necessidades educativas especiais os alunos com


dificuldades acentuadas de aprendizagem sem vinculação com causa orgânica
específica, esta resolução provavelmente colaborou ainda mais para a segregação de
grande número de alunos, contribuindo com a superlotação das classes e escolas

sumário 1172
VII Seminário Vozes da Educação

especiais, e não provocando nas escolas discussões sobre as práticas educacionais que
poderiam ser as origens de tais dificuldades.
Além disso, o termo Atendimento Educacional Especializado não aparece na
resolução no 2/2001 do CNE conforme é concebido atualmente. Certificou-se que a
presença do termo “apoio pedagógico” deveria ser realizada nos espaços denominados
salas de recursos, para complementação ou suplementação ao currículo, conforme
podemos verificar a seguir:

Art. 8º - As escolas da rede regular de ensino devem prever e prover na


organização de suas classes comuns: V - serviços de apoio pedagógico
especializado em salas de recursos, nas quais o professor especializado em
educação especial realize a complementação ou suplementação curricular,
utilizando procedimentos, equipamentos e materiais específicos (BRASIL,
2001).

Cabe destacar que a resolução de nº 2/2001 do CNE que instituiu diretrizes


nacionais para a Educação Especial na Educação Básica ainda não foi totalmente
substituída após a publicação da PNEEI/2008, visto que a resolução no 4/2009 dispõe
apenas sobre o Atendimento Educacional Especializado. Este fato tem colaborado para
que coexistam práticas ainda ancoradas nos princípios integracionistas no presente
momento da educação brasileira.

A Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva: a PNEEI/2008


A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva
por meio de seus princípios é um importante instrumento para a superação da visão
excludente em que tradicionalmente tem se ancorado a Educação Especial no Brasil
(MANTOAN & SANTOS, 2012).
A PNEEI/ 2008 tem como objetivo:

(...) assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência, transtornos


globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, orientando os
sistemas de ensino para garantir: acesso ao ensino regular, com participação,
aprendizagem e continuidade nos níveis mais elevados do ensino;
transversalidade da modalidade de educação especial desde a educação
infantil até a educação superior; oferta do atendimento educacional
especializado; formação de professores para o atendimento educacional
especializado e demais profissionais da educação para a inclusão;
participação da família e da comunidade; acessibilidade arquitetônica, nos
transportes, nos mobiliários, nas comunicações e informação; e articulação
intersetorial na implementação das políticas pública (BRASIL, 2008).

sumário 1173
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Logo, possível perceber um progresso muito grande no que se refere ao direito à


escolarização dos alunos com deficiências, com transtornos globais do desenvolvimento
e dos alunos com altas habilidades/superdotação, visto que não se verifica possibilidade
de práticas substitutivas dos níveis e etapas de ensino previstos para os demais
educandos.
Nas diretrizes desta política, a Educação Especial é definida como uma
modalidade transversal a todas as demais etapas, níveis e modalidades da educação
nacional e, portanto, não substitutiva do ensino regular. É neste sentido que podemos
afirmar que a PNEEI/2008 veio para ratificar a Educação Especial como modalidade
não substitutiva da escolarização que acontece nas escolas comuns do ensino regular,
conforme já definido pelo decreto no 3.298/99 (BRASIL, 2008).
É nesta política que o termo Atendimento Educacional Especializado ganha
definição própria. Nela o AEE é definido como um serviço da Educação Especial, de
caráter complementar ou suplementar à escolarização dos alunos, e enfatiza que o
mesmo “identifica, elabora e organiza recursos pedagógicos e de acessibilidade que
eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando as suas
necessidades específicas” (BRASIL, 2008, p.16).
Mesmo considerando a importância deste enfoque dado ao AEE, é preciso
considerar as ponderações de Macedo, Carvalho & Pletsch (2011) que o mesmo não
poderá garantir a inclusão plena dos alunos público alvo da educação especial na rede
regular de ensino porque não foram instituídas anteriormente mudanças estruturais na
escola, principalmente no que se refere às formas rígidas sobre as quais os currículos
estão instituídos. Ademais, as autoras consideram que a formação de professores para
atuar neste serviço ainda são deficitárias o que não garantiria sua qualidade.
A respeito da educação de surdos, a PNEEI/2008 prevê a garantia de educação
bilíngue, Português/Libras, considerando libras como primeira sua língua.
A política define também que sejam disponibilizados aos alunos surdos que já
fizerem uso das libras o tradutor/intérprete de libras e Língua Portuguesa bem como e a
oferta do ensino da Língua brasileira de sinais para os demais alunos da escola. No que
se refere à alocação de alunos surdos nas classes regulares, sempre que possível o aluno
surdo deverá ser alocado em turma onde exista outro aluno surdo, para que o mesmo
possa conviver com seus pares.
A Política orienta ainda que sejam disponibilizados profissionais para o
atendimento aos alunos que ainda não são autônomos nas atividades de higiene,

sumário 1174
VII Seminário Vozes da Educação

alimentação e locomoção, ou quaisquer outras atividades que lhe impeçam de agir


autonomamente.
No que tange à formação necessária para atuar na educação especial, a Política
esclarece que este profissional tenha formação inicial que o habilite para a docência, e
conhecimentos específicos na área de Educação Especial, bem como conhecimentos de
gestão de sistema educacional inclusivo (BRASIL, 2008).

Orientações para o AEE posteriores à PNEEI/2008


Conforme dito anteriormente a Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva rompe com a lógica da exclusão presente na Política
anterior. A educação Especial neste contexto é considerada uma modalidade de
educação transversal a todos os demais níveis e modalidades de ensino não havendo,
portanto, nenhuma possibilidade da mesma ser substitutiva do ensino comum como
anteriormente se possibilitava na política de 1994. Em 2008, a nova PNEEI redefine que
o público alvo da Educação Especial seria composto por pessoas com deficiência,
transtornos Globais do Desenvolvimento, altas habilidades /superdotação, e transtornos
específicos. Estes últimos, segundo Pletsch (2011) apenas foram sugeridos como
componentes do referido público alvo em documento oficial emanado do MEC no ano
de 2010, mas não se fizeram presentes nas demais orientações a respeito do público alvo
da Educação Especial.
Quanto às orientações para implementação do AEE, podemos perceber que tanto
no decreto no 6.571/2008 ( revogado pelo decreto no 7.611/2011)quanto na resolução no
4/2009, bem como no decreto no 7.611/2011, o mesmo é apresentado como um serviço
da educação especial de caráter complementar ou suplementar à escolarização dos
alunos público alvo da educação especial, sendo parte integrante de uma proposta
pedagógica definida pelas instituições de ensino.
Ao nos referirmos ao AEE em Sala de Recursos Multifuncionais nas escolas, é
de extrema importância apresentar os pressupostos presentes na resolução nº 4/2009,
que instituiu as diretrizes operacionais para o AEE. Esta resolução define como
competência das escolas:

a) Contemplar, no Projeto Político Pedagógico - PPP da escola, a oferta do.


atendimento educacional especializado, com professor para o AEE, recursos
e equipamentos específicos e condições de acessibilidade; b) Construir o PPP
considerando a flexibilidade da organização do AEE, realizado
individualmente ou em pequenos grupos, conforme o Plano de AEE de cada

sumário 1175
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

aluno; c) Matricular, no AEE realizado em sala de recursos multifuncionais,


os alunos público alvo da educação especial matriculados em classes comuns
da própria escola e os alunos de outra (s) escola (s) de ensino regular,
conforme demanda da rede de ensino; d) Registrar, no Censo Escolar
MEC/INEP, a matrícula de alunos público alvo da educação especial nas
classes comuns; e as matriculas no AEE realizado na sala de recursos
multifuncionais da escola; e) Efetivar a articulação pedagógica entre os
professores que atuam na sala de recursos multifuncionais e os professores
das salas de aula comuns, a fim de promover as condições de participação e
aprendizagem dos alunos; f) Estabelecer redes de apoio e colaboração com as
demais escolas da rede, as instituições de educação superior, os centros de
AEE e outros, para promover a formação dos professores, o acesso a serviços
e recursos de acessibilidade, a inclusão profissional dos alunos, a produção
de materiais didáticos acessíveis e o desenvolvimento de estratégias
pedagógicas; g) Promover a participação dos alunos nas ações intersetoriais
articuladas junto aos demais serviços públicos de saúde, assistência social,
trabalho, direitos humanos, entre outros (BRASIL, 2009).

Quanto à formação dos profissionais que atuam no AEE, a resolução nº 4/2009


especifica que os mesmos devem ter formação inicial que o habilite para o exercício da
docência e formação específica em Educação Especial. As atribuições dos profissionais
que atuam neste serviço foram assim estabelecidas:

1. Elaborar, executar e avaliar o Plano de AEE do aluno, contemplando: a


identificação das habilidades e necessidades educacionais específicas dos
alunos; a definição e a organização das estratégias, serviços e recursos
pedagógicos e de acessibilidade; o tipo de atendimento conforme as
necessidades educacionais específicas dos alunos; o cronograma do
atendimento e a carga horária, individual ou em pequenos grupos;
2. Programar, acompanhar e avaliar a funcionalidade e a aplicabilidade dos
recursos pedagógicos e de acessibilidade no AEE, na sala de aula comum e
nos demais ambientes da escola;
3. Produzir materiais didáticos e pedagógicos acessíveis, considerando as
necessidades educacionais específicas dos alunos e os desafios que este
vivenciando ensino comum, a partir dos objetivos e das atividades propostas
no currículo;
4. Estabelecer a articulação com os professores da sala de aula comum e com
demais profissionais da escola, visando a disponibilização dos serviços e
recursos e o desenvolvimento de atividades para a participação e
aprendizagem dos alunos nas atividades escolares; bem como as parcerias
com as áreas intersetoriais;
5. Orientar os demais professores e as famílias sobre os recursos pedagógicos
e de acessibilidade utilizados pelo aluno de forma a ampliar suas habilidades,
promovendo sua autonomia e participação;
6. Desenvolver atividades próprias do AEE, de acordo com as necessidades
educacionais específicas dos alunos: ensino da Língua Brasileira de Sinais –
Libras para alunos com surdez; ensino da Língua Portuguesa escrita para
alunos com surdez; ensino da Comunicação Aumentativa e Alternativa –
CAA; ensino do sistema Braille, do uso do soroban e das técnicas para a
orientação e mobilidade para alunos cegos; ensino da informática acessível e
do uso dos recursos de Tecnologia Assistiva – TA; ensino de atividades de
vida autônoma e social; orientação de atividades de enriquecimento
curricular para as altas habilidades/superdotação; e promoção de atividades
para o desenvolvimento das funções mentais superiores (BRASIL, 2009).

sumário 1176
VII Seminário Vozes da Educação

A respeito da institucionalização do AEE, há de se destacar ainda a nota técnica


nº 11/2010 que dispõe sobre as orientações a respeito da Institucionalização na Escola,
da oferta do AEE em Salas de RecursosMultifuncionais.
Entretanto, mesmo considerando a importância do AEE esta nota técnica
esclarece que a oferta deste serviço é obrigatória pelos sistemas de ensino, mas a
frequência do aluno é um objetivo a ser alcançado em diálogo com os mesmos ou com
seus familiares na medida em que a estes for apresentada a importância deste
atendimento. Conforme a nota técnica citada:

Esse atendimento constitui oferta obrigatória pelos sistemas de ensino para


apoiar o desenvolvimento dos alunos público alvo da educação especial, em
todas as etapas, níveis e modalidades, ao longo de todo o processo de
escolarização. O acesso ao AEE constitui direito do aluno público alvo do
AEE, cabendo à escola orientar a família e o aluno quanto à importância da
participação nesse atendimento (BRASIL, 2010).

Assim sendo, cabe aos profissionais da educação de cada unidade de ensino,


promover o diálogo necessário com a família afim de que esta perceba a necessidade de
frequência dos alunos ao AEE, a fim de que possam usufruir dos seus benefícios.
Provavelmente, fosse necessário ofertar um serviço de tamanha qualidade, para que
todos os alunos que nele sejam inseridos, nele permaneçam pela sua percepção e de seus
familiares dos resultados positivos do mesmo na vida do seu usuário.
Diante do exposto, podemos verificar orientações claras a respeito do
Atendimento Educacional Especializado a fim de que o mesmo possa dar sua
colaboração para a transformação da escola que temos foram sendo apresentadas muito
recentemente. Entretanto, a clareza com que tais orientações foram feitas nos levam a
perceber que há grande possibilidade de o AEE colaborar para a construção de novas
práticas escolares, no que se refere ao direito de todos à educação.

Política Nacional de Educação Especial Equitativa, Inclusiva e ao Longo da Vida:


Proposta de revisão 2018
Segundo Kassar, Rebelo e Oliveira (2019) a formulação de políticas públicas no
campo da Educação Especial tem sido resultado de disputas entre grupos e instituições
com objetivos bem distintos, e isto pouco tem colaborado para que de fato possam-se
implantar ações que visem à garantia de direitos das pessoas público alvo das mesmas.
Fruto destas disputas históricas, a educação especial no Brasil, ao ter publicada a atual
proposta do MEC, sofrerá profundas mudanças, nos levando a retrocessos por meio dos

sumário 1177
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

quais voltaremos aos períodos integracionistas, com práticas muito próximas da política
de 1994.
A proposta mesmo apresentando como referencial as mesmas legislações que
implementam o princípio da inclusão plena no Brasil, e utilizando um discurso
inclusivo, se distancia destes, quando apresenta em suas propostas modificações que
causarão imensurável retrocesso no direito de inclusão nas classes regulares dos alunos
público alvo da educação especial (LEPED/UNICAMP apud KASSAR, REBELO e
OLIVEIRA, 2018).
Ao apresentar dados estatísticos referentes ao aumento da matrícula na educação
especial, este documento apresenta dados referentes ao fluxo escolar, evasão e
retenção, específicos dos alunos públicos nas escolas regulares, como se tais percentuais
não fossem muito próximos aos percentuais dos alunos com desenvolvimento típico,
visto que uma análise detalhada destes mesmos aspectos, bem como dos resultados das
avaliações externas evidenciaria que os problemas apontados da inclusão escolar não
são privilégio apenas dos alunos desta modalidade, o que indica a necessidade de rever
a política educacional brasileira e suas formas internas de colaborar para a produção das
desigualdades sociais e não apenas propor modificações na PNEEI/2008.
Destaca-se dentre as mudanças propostas a nova definição do público alvo da
educação especial, pela política denominada por ela como “estudantes apoiados pela
educação especial”, que agora se dividem em apenas dois grupos: estudantes com
deficiência e estudantes com altas habilidades/superdotação. O documento utiliza o
conceito de deficiência a seguir:

...pessoas com deficiências são aquelas que têm impedimentos de longo


prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em
interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas
(ONU, 2006).

Entretanto, esclarece que caracteriza os alunos a partir de critérios de


impedimentos apresentados na definição de deficiência acima disposta, trazendo os
alunos com TEA, para esta classificação, enquadrando-os dentro daqueles que tem
impedimentos comportamentais, comunicacionais e interativos.
Além disto, foram incluídos os estudantes com transtornos mentais entre os
estudantes atendidos pela educação especial, mas segundo o próprio documento esta
inclusão deve ser justificada, o que sugere a necessidade de se buscar perceber se os

sumário 1178
VII Seminário Vozes da Educação

serviços ofertados pela educação especial poderão colaborar para o processo de inclusão
dos mesmos e que os sistemas de ensino devem agir de forma intersetorial
principalmente com o sistema de saúde. De acordo com o código internacional de
doenças (CID 10) são os transtornos mentais: a esquizofrenia, o transtorno
esquizotípico, os transtornos delirantes persistentes, entre outros.
Entretanto, o retorno das escolas especiais e classes especiais é a alteração
proposta mais inconstitucional, visto que a CF de 1988 define claramente a educação
como um direito de todos sem nenhum tipo de condicionante para que os cidadãos
possam exercê-lo (MANTOAN, 2015; FÁVERO, 2011; LEPED/UNICAMP, 2018).
Em tempos de tantos retrocessos é preciso considerar que o princípio do direito
de acesso a uma educação formal com condições de pleno acesso, com condições para
permanência e aprendizagem na escola, foi um princípio defendido e construído pelos
diversos grupos da sociedade civil, que de forma organizada, por meio do movimento
de direito das pessoas com deficiência se fizeram presente no Brasil de forma muito
visível no período de redemocratização, que antecedeu a promulgação da CF de 1988
(BRASIL, 2010).
De igual forma é preciso considerar que a escolarização dos alunos em classes
comuns é reconhecida como um grande instrumento de desenvolvimento das pessoas
com deficiência. Esta afirmativa encontra-se fundamentada nos estudos da neurociência,
da psicologia, da pedagogia e tantas outras áreas do conhecimento que enfatizam a
importância de ambientes estimuladores, onde a demandas deste ambiente provocam
nos alunos formas elaboradas de pensamento (FERNANDES & CORREA, 2008).
Quanto ao Atendimento educacional especializado (AEE), a nova política
proposta, se tornada oficial, traz profundas modificações em dois aspectos: o primeiro
deles é que o AEE está pouco definido, pois suas funções são complementares e
suplementares a escolarização dos estudantes, previstas inclusive em dispositivos legais
brasileiros, não aparece de forma clara. Ao invés disto, o texto o define como “ações
pedagógicas realizadas pelo professor especializado para apoiar o desenvolvimento
curricular, bem como o planejamento de atividades pedagógicas realizadas na escola
pelo professor da classe comum” (BRASIL, 2019 p.25). Estas funções ora definidas
mais aproximam o professor do AEE de um orientador pedagógico ou de um professor
de reforço escolar do que de sua função antes estabelecida na PNEEI/2008. Além disto
a sala de recursos multifuncionais, que antes era espaço específico para o AEE, poderá

sumário 1179
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ainda ser utilizada para realização de “outros serviços e uso de recursos da educação
especial” (BRASIL, 2018 p.27).
Diante de tantos retrocessos propostos, inúmeros pesquisadores e instituições se
colocaram contrários ao disposto na proposta de revisão da PNEEI/2008. Assim,
publicaram manifestos e notas de repúdio às propostas, dentre outros: O LEPED
/Unicamp; a UFRN, e a UFRGS segundo o qual uma consulta pública “visando
melhorias nas políticas de educação especial” naquele contexto político pós-
impeachment constituía-se “uma ação politicamente ambígua e refém de diferentes
agenciamentos” (KASSAR, REBELO & OLIVEIRA, 2019 p. 12)
Para além das dificuldades impostas ao processo de inclusão escolar a proposta
apresentada retrata um posicionamento muito oposto ao que até aqui tem sido
construído no campo do direito à educação e dos direitos humanos, e coaduna-se
claramente com outras medidas neoliberais imposta neste momento histórico brasileiro,
tais como corte de verbas em universidades públicas, militarização das escolas e
quaisquer outras formas de desmonte dos direitos sociais e humanos até então
garantidos ao povo brasileiro.

Considerações Finais
A educação no Brasil sempre foi um bem considerado como direito de poucos.
No campo da educação especial, esta situação é ainda mais alarmante. Vivenciamos na
história da educação brasileira, retrocessos muito representativos das variadas formas de
organização social e interesses antagônicos marcados pela valorização do capital em
detrimento da valorização humana, para aqueles cujas diferenças são muito fortes,
diferenças estas, oriundas de deficiência, TEA, ou mesmo por ter altas
habilidades/superdotação, estes retrocessos são ainda mais marcantes.
Enquanto para os que tem desenvolvimento típico, as formas de retrocesso
indicam para a desvalorização de seus professores, diminuição do número de vagas,
corte de financiamento universitário, dentre outros, para os alunos público alvo da
educação especial, denominados pela proposta como estudantes atendidos pela
Educação Especial, este retrocesso denota a retirada do seu direito de ter acesso à
educação formal, e seu retorno para espaços segregados denominados classes ou escolas
especiais.

sumário 1180
VII Seminário Vozes da Educação

A análise feita por este estudo, demonstra que a “nova/velha” proposta, traz de
volta práticas integracionistas previstas na política de 1994, fazendo da educação
especial um conjunto desarticulado e incoerente de ações.
A proposta da volta das classes ou escolas especiais, remonta o período
integracionista, segrega e impede o acesso ao currículo escolar em ambientes
heterogêneos. Em tempos de valorização da diversidade, separar alunos por suas
“igualdades” é minimamente contraditório.
Além disto, a proposta governamental no que se refere ao AEE e as salas de
recursos multifuncionais, descaracteriza tal serviço e leva à possibilidade de que o
mesmo se reorganize conforme definia a política de 1994 e se constitua em espaço de
reforço escolar. Ademais, as salas de recursos multifuncionais ao serem utilizadas para
“realização de outros serviços e uso de recursos da Educação Especial, quando
necessário” (BRASIL, 2018 p.27) pode perder sua função principal que é a oferta do
próprio AEE.
Enfatizamos ainda que a nova proposta apresenta uma lacuna em seus dados
estatísticos, pois não traz dados relativos à acesso, permanência, evasão e
aproveitamento de alunos matriculados em classes e escolas especiais, em períodos que
eram realidade no Brasil, de forma a demonstrar tecnicamente e com evidências que
estas sejam de fato uma boa alternativa para a escolarização dos alunos público alvo da
educação especial.
Trata-se de um momento importante de reflexão, vista disso, ou defendemos o
direito de todos aprenderem juntos nos mesmos espaços, para garantir o
desenvolvimento integral por meio do acesso aos saberes proporcionado pelo currículo
escolar, currículo este, repleto de importantes conteúdos, sejam eles atitudinais,
conceituais ou procedimentais, entendendo o direito à educação como um direito
humano, ou assumimos que no Brasil, há pessoas cuja condição específica, não os torna
detentores de direitos humanos e cuja educação formal não fará falta.

Referências
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2001. Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Brasília, DF:
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sumário 1181
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência,
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regulamenta o parágrafo único do art. 60 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e
acrescenta dispositivo ao Decreto no 6.253, de 13 de novembro de 2007.

______. Decreto no 7.611/2011. Dispõe sobre a educação especial, o atendimento


educacional especializado e dá outras providências.

______. História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil /


compilado por Mário Cléber Martins Lanna Júnior. - Brasília: Secretaria de Direitos
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sumário 1182
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sumário 1183
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

IDEOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO NA ABORDAGEM DAS


CONCEPÇÕES E NOÇÕES EDUCACIONAIS

Michelle Pinto Paranhos


PMNI
michelle.paranhos@gmail.com

O presente trabalho constitui um recorte da pesquisa realizada durante o


Mestrado em Políticas Públicas e Formação Humana, que resultou na dissertação
“Teoria e ideologia do desenvolvimento capitalista na abordagem das concepções
educacionais e das políticas públicas de formação dos trabalhadores no Brasil”
(PARANHOS, 2010).
Partimos da compreensão que a dimensão pedagógica e ideológica do projeto
educacional para a formação de trabalhadores no Brasil, nas últimas décadas, tem sido
subsidiada pela “teoria” do capital humano, pela pedagogia das competências e pela
ideologia do capital social, concepções gestadas nos centros hegemônicos do
capitalismo como especificidade da ideologia do desenvolvimento no campo
educacional, que ganham radicalidade nas relações entre capital e trabalho sob a lógica
do capitalismo dependente (FERNANDES, 2009). A tese apresentada acima orientou o
estudo realizado no Mestrado (2008/2010) e ganha novos desdobramentos, em meio à
(contra)reforma da Educação Básica, cuja ênfase recai sobre a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) aprovada em 2017/2018 e que, atualmente, encontra-se em fase de
implementação nas redes de ensino. A BNCC propõe a padronização dos conteúdos,
métodos e avaliações da educação escolar em todo território nacional, tendo como
principais preceitos para a formação das crianças e jovens, competência,
empregabilidade e avaliação de desempenho, retomando concepções e noções que
fundamentam o projeto educacional das burguesias nacionais desde a década de 1990.
Sendo assim, este trabalho busca situar o debate em torno das concepções e
noções que alicerçam as (contra)reformas da educação brasileira a partir dos anos 1990,
no intuito de captar a contradição entre as demandas sociais, políticas e econômicas da
ampliação da escolaridade e da função da escola e as tendências da (des)qualificação do
trabalho e dos trabalhadores diante da ampliação do desemprego estrutural e da
precarização do trabalho.

sumário 1184
VII Seminário Vozes da Educação

Num primeiro momento, retomaremos os pressupostos da ideologia do


desenvolvimento e da teoria do capital humano, que ganharam força no bojo dos
mecanismos de recomposição do capitalismo após a Segunda Guerra Mundial. Em
seguida, abordaremos as mudanças nas concepções educacionais engendradas pelo
processo de reestruturação produtiva e pela ascensão da estratégia de desenvolvimento
neoliberal, após a crise dos anos 1970.

A ideologia do desenvolvimento e a teoria do capital humano: a perspectiva de


sociedade integradora
A ideologia do desenvolvimento ganhou força no bojo dos mecanismos de
recomposição da economia capitalista, após a Segunda Guerra Mundial, quando uma
nova configuração hegemônica se desenvolveu. Após 1945, derrotado o fascismo,
desfez-se a aliança capitalista-comunista entre EUA e URSS e a Guerra Fria dominou o
cenário internacional. A preocupação com a expansão da influência socialista fez com
que todos os esforços da diplomacia ocidental, tendo à frente os Estados Unidos, fossem
voltados inicialmente para a recuperação das áreas devastadas pela guerra e,
posteriormente, para o fortalecimento das economias consideradas atrasadas. A
estratégia adotada visava a defender o sistema (capitalista) como um todo, instituindo
uma nova forma de entender a segurança nacional, concebida como a segurança do
modo de viver ocidental, tendo como principal questão a defesa da democracia, da
propriedade privada e do livre mercado.
As longas jornadas de trabalho rotinizado e as políticas de gerência e controle
compatíveis com a base técnica taylorista-fordista, que até então haviam encontrado
dificuldades de consolidação em decorrência das fortes resistências da classe
trabalhadora, aliaram-se aos pressupostos keynesianos a fim de favorecer as condições
de estabilidade do sistema capitalista. No intuito de conciliar os interesses de classe, a
noção de Estado tomou novas proporções e os governos capitalistas adotaram
abertamente o intervencionismo econômico como forma de arcar com os custos
humanos da corrida pelo lucro, assumindo uma série de obrigações voltadas para a
integração entre produção de massa e consumo de massa.
A ampliação dos direitos sociais e trabalhistas, mesmo com profundas
desigualdades entre as nações, foi convertida em estratégia da burguesia para obter a
adesão espontânea da classe trabalhadora ao seu projeto de sociedade. Para assegurar o
poder político, as frações burguesas dominantes fizeram concessões de ordem

sumário 1185
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

econômico-corporativa, transformando os direitos decorrentes da luta dos trabalhadores


em estratégias para controlar a força de trabalho e aumentar a sua produtividade136.
Produzidas nos EUA, em órgãos governamentais ou instancias a eles associadas,
as chamadas “teorias” da modernização ou do desenvolvimento difundiram-se nas
universidades e centros de pesquisa, chegando às agencias internacionais do capitalismo
como um esforço intelectual de compreensão dos fatores que teriam levado países
“atrasados” e pré-capitalistas a alcançarem o status de economias industriais
capitalistas. Tendo como principal teórico, o cientista social Talcott Parsons, o discurso
de modernização e desenvolvimento tinha como objetivo conformar o “Terceiro
Mundo” à nova ordem internacional que emergia após 1945, permitindo o
fortalecimento e expansão do capital.
O desenvolvimento apresentou-se como ideologia e como prescrição de política
estatal para o mundo “subdesenvolvido”, propondo-se através da roupagem científica e
de formulações teóricas fundadas em pesquisa empírica e trabalho de campo para
justificar as ações ideológicas e as políticas prescritas que se inscreviam na construção
do projeto de hegemonia estadunidense. O subdesenvolvimento, identificado à situação
de pobreza, sob esta ideologia é compreendido como uma crise de transição, um estado
instável de equilíbrio do qual as nações deveriam sair através da adoção de
procedimentos corretos voltados para o crescimento rápido, contínuo e harmonioso.
O crescimento econômico, tendo como via de acesso a industrialização, seria
assim o meio de acesso à riqueza e a melhores condições de vida para as populações dos
países pobres. Nessa perspectiva, o aspecto central das fórmulas para o
desenvolvimento concentrava-se na relação direta entre trabalho e crescimento
econômico. De acordo com a ideologia do desenvolvimento, as diferenças existentes
entre países de capitalismo avançado e países pobres, no que tange aos processos de
acumulação e à qualidade de vida, bem como as diferenças de renda e salário entre
indivíduos, poderiam ser facilmente superadas através do trabalho e do esforço
coletivos. Nessa concepção, o desenvolvimento era entendido, portanto, como resultado
de uma opção. A imagem difundida era a da sociedade aberta, que aceitaria em seus
níveis mais elevados nações e indivíduos que se destacassem e se mostrassem capazes
de aproveitar as oportunidades que ela oferecesse.

136
Segundo Gramsci (2007), tais sacrifícios econômicos das classes dominantes têm como objetivo
restringir a consciência e a organização da classe trabalhadora ao momento econômico-corporativo da
correlação de forças.

sumário 1186
VII Seminário Vozes da Educação

É como se estivéssemos diante de um sistema de estratificação internacional


construído analogicamente aos sistemas de estratificação social. O
desenvolvimento nacional de certa forma equivaleria à mobilidade vertical
ascendente de um indivíduo que, começando nas posições sociais mais
baixas, conseguisse afirmar-se nos estratos médios ou até mais altos da
sociedade [...] a imagem da possibilidade de progredir basicamente pelo
trabalho fica bem clara (CARDOSO, 1978, p. 112-113).

A política econômica desenvolvimentista tinha como objetivo permitir a


obtenção e a mobilização dos recursos necessários para a eliminação da pobreza e,
consequentemente, para a superação do estado de atraso a partir de mecanismos como o
aumento e a diversificação da produção e da pauta de exportação, o fortalecimento do
mercado interno, o investimento em infraestrutura (energia elétrica, petróleo,
transportes e comunicação) e nos setores industriais de base.
A ajuda econômica prestada aos países de capitalismo dependente por meio de
financiamentos, empréstimos ou investimentos diretos traria inúmeros benefícios: no
plano econômico, destacava-se a abertura de novos mercados e as possibilidades de
rentabilidade do capital investido pelas grandes potências ocidentais; no plano político-
ideológico representaria a contenção das ideologias opostas ao capitalismo e
contribuiria para a estratégia de segurança coletiva. Partindo desta perspectiva, a não
intervenção no sentido de proporcionar desenvolvimento e eliminar as fontes de
insatisfação contra a ordem significaria ampliação das condições negativas do Ocidente.
Todos deveriam, assim, colaborar para que a segurança não fosse ameaçada
(CARDOSO, 1978).
Um aspecto central para a análise do desenvolvimento como ideologia reside no
fato de que a circulação das ideias ligadas ao desenvolvimento capitalista e ao progresso
não se deteve apenas aos meios científicos e políticos, mas, fundamentalmente, passou a
fazer parte da prática social, levando a incorporação desse discurso ao senso comum.
Como ideologia dominante, o desenvolvimento não ficou restrito apenas a sua própria
classe, seu poder e seu peso simbólico e cultural ganharam materialidade na
mentalidade, no comportamento e nas motivações da classe trabalhadora.
No Brasil, o desenvolvimentismo tornou-se ideologia dominante durante o
Governo Juscelino Kubitschek, exercendo influência durante a consolidação do
processo de industrialização, e mantendo-se, desde então, como ideologia dominante no
cenário político, como um horizonte a ser perseguido.

sumário 1187
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Na década de 1960, os vínculos entre trabalho e educação foram


sistematicamente elaborados, afirmando a noção de capital humano como
especificidade da ideologia do desenvolvimento no campo educacional. Com a
generalização da organização científica do trabalho e a disseminação de valores e
práticas característicos da vida urbano-industrial, a escola assumiu cada vez mais as
funções de formação técnica e conformação ético-política da classe trabalhadora,
tornando-se local específico de formação para o trabalho. A partir da constatação
empírica de que os investimentos em capital físico e infraestrutura não eram suficientes
por si sós para promover o desenvolvimento, o conceito de capital humano surgiu para
complementar os fatores explicativos dos diferentes níveis de crescimento econômico
entre países desenvolvidos e não desenvolvidos e os diferenciais de renda entre os
indivíduos.

O conceito de capital humano – ou, mais extensivamente, de recursos


humanos – busca traduzir o montante de investimento que uma nação faz ou
os indivíduos fazem, na expectativa de retornos adicionais futuros. Do ponto
de vista macroeconômico, o investimento no “fator humano” passa a
significar um dos determinantes básicos para o aumento da produtividade e
elemento de superação do atraso econômico. Do ponto de vista
microeconômico, constitui-se no fator explicativo das diferenças individuais
de produtividade e de renda, e, consequentemente, de mobilidade social
(FRIGOTTO, 2006, p. 41).

Com o surgimento da disciplina Economia da Educação, nos Estados Unidos,


Theodore W. Schultz, professor do departamento de economia da Universidade de
Chicago à época, tornou-se o principal formulador dessa disciplina e da ideia de capital
humano. O fator H (capital humano), introduzido da equação neoclássica137, passou a
explicar os diferenciais de desenvolvimento dos países e dos indivíduos, transformando
o investimento em educação na chave para a ascensão social de nações e indivíduos.
O investimento em capital humano ganhou centralidade na agenda dos
organismos internacionais e dos governos, adquirindo a mesma importância do capital
físico como fator capaz de aumentar a produtividade do trabalho e promover o
desenvolvimento de maneira equânime. Estes investimentos compreendem uma função
de saúde, conhecimentos, treinamento, comportamentos, hábitos, disciplina, etc.,

137
A função neoclássica de produção mais utilizada, sob a fórmula de Cobb-Douglas, explica o
crescimento econômico pela equação X = AKaL1-s, onde: X = volume de produtos; A = nível de
tecnologia; K = insumos de capital; L = insumos de mão de obra; a = uma constante; e 1- s = unidade
para dar rendimentos constantes de escala (FRIGOTTO, 2006).

sumário 1188
VII Seminário Vozes da Educação

aspectos que segundo os pressupostos da teoria econômica neoclássica potencializariam


o trabalho.
Por fundamentar-se sobre um método de análise da realidade de viés positivista
e empirista, a teoria do capital humano busca comprovação nas relações
microeconômicas, assimilando-se ao senso comum e construindo a imagem da educação
como elemento capaz de promover a igualdade dentro dos marcos do capitalismo.
Quanto maior o investimento econômico efetuado em educação, maior a produtividade
do trabalhador, que estará apto a inserir-se no mercado de trabalho de forma
competitiva, vislumbrando a possibilidade de ocupar melhores colocações na escala
salarial.
Nesta acepção, a posse do conhecimento é equivalente à propriedade privada dos
meios e instrumentos de produção e estabelece a igualdade de oportunidades: através
dos próprios méritos, talentos, preferências, esforços e sorte os indivíduos acreditam
produzir um aumento da sua capacidade de trabalho, recompensada através da ascensão
social e pelo acesso aos bens.

O mérito é definido em termos de talentos individuais e motivações para


suportar as privações iniciais, como longos anos de escolaridade, antes de
galgar os postos de elite. O modelo de concorrência perfeita não admite
direitos adquiridos, dominação, pois se supõe que o somatório das decisões
feitas, fruto das aspirações pessoais, resultará num equitativo equilíbrio do
poder. (FRIGOTTO, 2006, p. 61).

A noção de capital humano reitera, portanto, o deslocamento dos problemas de


inserção social, emprego e desempenho profissional para o âmbito individual,
afirmando a educação como “valor econômico”, numa equação que iguala capital e
trabalho como se fossem ambos igualmente meros “fatores de produção”. Voltada para
as práticas e concepções educacionais, a ideia de capital humano gerou uma visão
tecnicista sobre o ensino e a organização da educação, o que acabou por mistificar seus
reais objetivos. Sob a predominância desta visão tecnicista, passou-se a disseminar a
ideia de que ao educar-se o indivíduo estaria “valorizando” a si próprio, na mesma
lógica em que se valoriza o capital.
Os sistemas educacionais direcionaram-se para a formação dos recursos
humanos necessários ao desenvolvimento. As transformações educacionais daquela
época decorreram, portanto, das exigências da modernização, realizando-se em todos os
níveis de escolaridade. A finalidade de preparação para o mercado de trabalho passou a

sumário 1189
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ser elemento básico de referência para a formação escolar, fosse nos níveis mais
elementares da escolarização, responsáveis pela formação dos indivíduos de aptidões
comuns destinados à execução das tarefas simples, fosse na educação superior. A
generalização da escolarização cumpriu o duplo objetivo de elevar a qualificação da
força de trabalho e atender às demandas da população.
As exigências educacionais impostas pelas inovações tecnológicas mediadas
pelo poder dos capitalistas e pelas necessidades de ampliação da produtividade são
elevadas ao plano da consciência individual a partir de um método de análise da
realidade que produz a ideia de que os interesses da classe proprietária e os interesses da
classe trabalhadora caminham juntos. A sinergia entre os interesses das grandes
potências industriais e dos países de capitalismo dependente demonstra a perspectiva
altamente integradora da ideologia do desenvolvimento e da teoria do capital humano.
Nos rumos nitidamente fixados pelo capital, a mobilização política fundamentava-se na
afirmação da possibilidade de integração dos indivíduos aos benefícios produzidos pela
civilização contemporânea através da elevação da qualidade de vida e dos padrões de
consumo. Tais ideias vinculavam projetos de vida individuais, projetos de nação
(desenvolvidas e não desenvolvidas) e o projeto de sociabilidade do grande capital sob a
mesma bandeira: a promessa de prosperidade e melhorias futuras para toda a sociedade
trazidas por meio do advento industrial.

O ideário educacional e tendências de (des)qualificação do trabalho


Após a crise dos anos 1970, a reconstrução econômica, ideológica e política do
capitalismo engendrou mudanças tanto na esfera da materialidade objetiva quanto na
subjetividade e nos valores constitutivos da classe trabalhadora. Após um longo período
de acumulação e expansão do capitalismo estruturado sobre o binômio taylorismo-
fordismo e sobre o keynesianismo, evidenciou-se um quadro crítico cujos elementos
mais visíveis estavam associados aos claros sinais de esgotamento do padrão de
acumulação e ao colapso dos mecanismos de financiamento público da reprodução da
força de trabalho e do capital privado. Embora a crise dos anos 1970 tenha
determinações mais profundas e complexas por não se tratar de uma crise meramente
conjuntural e contingente, mas da expressão de uma crise estrutural cujas raízes são
bem mais remotas (MÉSZÁROS, 2004; FRIGOTTO, 2003), as respostas capitalistas
procuraram enfrentá-la apenas na sua superfície, na sua manifestação fenomênica
aparente, iniciando modificações no interior do próprio padrão de acumulação, a fim de

sumário 1190
VII Seminário Vozes da Educação

recuperar a produtividade e as taxas de lucro que haviam prevalecido nos chamados


“anos de ouro” do capitalismo e, assim, retomar o ritmo do processo de acumulação.
No cerne do discurso liberal que se consolidou como explicação hegemônica, a
crise foi atribuída à demasiada interferência do Estado no mercado e aos gastos estatais
com proteção e seguridade social, estruturas de regulação e controle social que
forneceram as bases políticas e econômicas para o “compromisso” instaurado entre
capital e trabalho que permitiu a hegemonia capitalista após a Segunda Guerra.
Mesmo que limitado aos centros hegemônicos do capitalismo, como resultado
das lutas da classe trabalhadora, tal “compromisso” tinha como sustentação a
superexploração do trabalho nos países de capitalismo dependente, que seguiam os
receituários desenvolvimentistas e propagavam um ideário a partir do qual a superação
do estágio de “subdesenvolvimento” tenderia a permitir melhorias no padrão de vida da
população.
Como nos mostra Francisco de Oliveira (2001), o Estado de Bem-Estar Social e
a política econômica desenvolvimentista permitiram um forte impulso de crescimento
econômico e investimento pesado em tecnologia que se deveu, em parte, à utilização do
fundo público para o financiamento do processo de acumulação e para a reprodução da
força de trabalho. As transformações tecnológicas proporcionaram um impulso
qualitativamente novo do capital, instaurando e recriando novas e antigas contradições.

A criação de novos materiais, instrumentos e fontes de energia, a partir do


desenvolvimento da microeletrônica e da informática, conduziu à
substituição da tecnologia rígida, típica do modelo de produção taylorista-
fordista, por tecnologias flexíveis, acarretando mudanças em relação ao
conteúdo, à forma, à organização e à divisão do trabalho e,
consequentemente, em relação à qualificação e à educação dos trabalhadores.
Tais mudanças intensificaram a incorporação do capital morto e a diminuição
da participação do capital vivo no processo produtivo, o que permitiu que as
empresas pudessem manter ou elevar a produtividade e os lucros reduzindo
os custos relativos à força de trabalho (PARANHOS, 2010, p. 38).

Com a finalidade de recuperação do ciclo reprodutivo do capital, desenvolveu-se a


transição do padrão de acumulação taylorista-fordista para novas formas de acumulação
flexível, que exigiam uma ideologia e uma concepção de desenvolvimento que
disputasse hegemonia com o keynesianismo e com a ideologia do desenvolvimento.
Assim, o neoliberalismo se consolidou como uma nova institucionalidade econômico-

sumário 1191
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

financeira 138 e um novo projeto de sociabilidade associado à redução dos custos


salariais, ao desmonte dos direitos sociais, à desregulamentação, à flexibilização dos
mercados e à reestruturação produtiva proporcionada pela nova base técnica e científica
flexível.

A ideia-força balizadora do ideário neoliberal é a de que o setor público (o


Estado) é responsável pela crise, pela ineficiência, pelo privilégio, e que o
mercado e o privado são sinônimo de eficiência, qualidade e equidade. Desta
ideia-chave advém a tese do Estado mínimo e da necessidade de zerar todas
as conquistas sociais, como o direito a estabilidade de emprego, o direito à
saúde, educação, transportes públicos, etc. Tudo isso passa a ser regido pela
férrea lógica das leis de mercado. Na realidade, a ideia de Estado mínimo
significa o Estado suficiente e necessário unicamente para os interesses da
reprodução do capital (FRIGOTTO, 1997, p. 83).

A reestruturação produtiva e a estratégia de desenvolvimento neoliberal


evoluíram lado a lado com a desestruturação do mercado de trabalho. O desemprego
deixou de ser um fenômeno característico dos períodos de crise e, mesmo após os
períodos de recomposição econômica, não houve recuperação dos mercados de trabalho
(CARCANHOLO, 2011). Ao contrário, a racionalização e a modernização dos
processos produtivos e o desmonte dos direitos, implicam justamente tornar o trabalho
flexível, permitindo que as empresas possam desfazer-se dos trabalhadores de acordo
com as oportunidades de lucratividade e competitividade.
O crescente processo de extinção dos direitos e dos vínculos entre trabalhador e
empresa, levam à proliferação de diversas formas de contratação (terceirização,
informalidade, contrato por tempo parcial, subcontratos, trabalho voluntário, etc.) que
simbolizam a liberdade de escolha irrestrita do capital e a subsunção da classe
trabalhadora aos objetivos de valorização. O trabalho precário tornou-se a forma
predominante da atual etapa do capitalismo.
No plano educacional, o ajuste neoliberal manifesta-se pelo “rejuvenescimento
da teoria do capital humano” (FRIGOTTO, 2003), que adquire uma feição mais
“humanizada” ao enfatizar as competências individuais dos trabalhadores e incorporar
elementos da ideologia do capital social. A partir dos anos 1990, noções como

138
Segundo Carcanholo e Baruco (2011), o neoliberalismo pode ser interpretado como uma estratégia de
desenvolvimento capitalista que busca responder a própria crise a partir da recuperação do padrão de
acumulação do período anterior, por meio de três componentes: 1) estabilização macroeconômica
(controle da inflação e dos gastos públicos; 2) reformas estruturais pró-mercado voltadas para a promoção
da livre iniciativa e dos investimentos privados, com a liberalização, desregulamentação e abertura dos
mercados; 3) retomada dos investimentos privados com a finalidade de viabilizar o crescimento
econômico.

sumário 1192
VII Seminário Vozes da Educação

competência, empregabilidade, empreendedorismo, qualidade, equidade, capital


humano, capital social, flexibilidade, apreender a aprender passam a reordenar as
relações entre trabalho e educação, assumindo centralidade nas orientações dos
organismos internacionais para a política educacional. Novas noções são criadas e, ao
mesmo tempo, antigos conceitos são ressignificados com a finalidade de traduzir para
os trabalhadores e trabalhadoras os impactos das mudanças no mundo do trabalho.
Tomando como premissa a defesa da valorização do indivíduo, busca-se, dessa forma,
amortecer as contradições geradas pela crise do emprego e dissimular a regressão das
condições de vida e o sentido precário das políticas públicas de formação, educação e
renda, assegurando a “colaboração” dos mais afetados direta e negativamente pela
ofensiva neoliberal.
Os ajustes elaborados na “teoria” do capital humano têm como finalidade
ampliar o seu alcance aos trabalhadores considerados “excluídos” do mercado de
trabalho, mas que, no entanto, ainda apresentam condições produtivas, por meio do
desenvolvimento do espírito empreendedor, da autoconfiança, da iniciativa da cidadania
participativa e da autoestima cultural, capacidades que os tornam aptos a aproveitar as
oportunidades econômicas e melhorar seus meios de sustento.

Percebe-se, então, que a noção de capital humano não desaparece do ideário


econômico, político e pedagógico, mas é redefinida e ressignificada [...] Na
verdade, uma promessa que encobre o agravamento das desigualdades no
capitalismo contemporâneo, deslocando a produção dessa desigualdade da
forma que assumem as relações sociais de produção para o plano do fracasso
do indivíduo (FRIGOTTO, 2009, p. 71).

A associação direta entre escolarização (confundida com qualificação),


produtividade, eficiência, desenvolvimento e riqueza e o investimento econômico em
educação como meio de superar o subdesenvolvimento ou obter retornos ou posição
mais elevada na escala salarial, elemento fundante da ideologia do desenvolvimento e
da teoria do capital humano, tornou-se frágil. Sob os pressupostos da ideologia
neoliberal, os indivíduos devem reconhecer, assim como afirma Hayek (1981, p. 58):

que a ordem de mercado não resulta numa correspondência estreita entre o


mérito subjetivo e as necessidades individuais de um lado e as recompensas
no outro lado. Ela funciona segundo o princípio de um jogo misto de
habilidade e sorte, no qual os resultados para cada indivíduo tanto poderão
ser determinados por circunstâncias inteiramente fora de seu controle quanto
por sua habilidade ou esforço.

sumário 1193
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A preparação para um mercado de trabalho (em constante decadência) deixa de


ter apelo ideológico, gerando a necessidade de um discurso que tenha o indivíduo como
categoria central. Nesse sentido, a reconfiguração do ideário e das práticas educacionais
apoia-se num conjunto de importantes estratégias retóricas, cujos objetivos voltam-se
para a restrição da consciência política e da luta dos trabalhadores aos marcos da ordem
capitalista. A primeira estratégia consiste na transposição do eixo de análise das causas
da pobreza e da desigualdade das relações sociais de classe para o âmbito individual e
para a ineficiência da gestão dos recursos. A pobreza e a miséria aparecem como
resultado de escolhas e decisões equivocadas, da falta de talento e esforço por parte dos
pobres. A segunda estratégia remete à naturalização das condições sociais e à sua
inevitabilidade, como se a realidade existente fosse a única possível, reprimindo as
raízes históricas das lutas e das conquistas dos trabalhadores. A terceira estratégia está
relacionada à demonização do público e à santificação do privado, tomando o mercado
e o privado como modelos de eficiência e eficácia e justificando o esvaziamento das
funções sociais do Estado. Por último, a refuncionalização dos espaços de luta e dos
ideais das classes trabalhadoras e a ressignificação do vocabulário presente nas suas
reivindicações.
O conceito de qualificação em torno do qual, até então, haviam se organizado os
padrões de formação, emprego, carreira e remuneração é tensionado pela noção de
competência que representa “uma nova mediação” ou “uma mediação renovada pela
acumulação flexível do capital” (RAMOS, 2006, p. 24).
Sob os propósitos de institucionalizar novas formas de educação/formação que
atendam à demanda das empresas e desviar o foco dos empregos, ocupações e tarefas
para o trabalhador, a competência destaca os atributos individuais dos trabalhadores e a
sua relação subjetiva com o trabalho, sob a forma de capacidades cognitivas, sócio-
afetivas e psicomotoras.
Nesse sentido, ao passo que a qualificação se constitui por códigos consolidados,
duradouros e rígidos e constitui um atributo dos postos de trabalho, a competência
torna-se um código privilegiado, já que se funda nos conteúdos reais do trabalho,
dinâmicos, flexíveis e mutáveis. Os saberes formais ligados aos postos de trabalho, cuja
posse era geralmente atestada pelos diplomas, perdem relevância diante do
reconhecimento do saber prático, ou seja, diretamente ligados às experiências pessoais
do trabalhador.

sumário 1194
VII Seminário Vozes da Educação

A competência é realmente a competência de um indivíduo (e não a


qualificação de um emprego) e se manifesta e é avaliada quando de sua
utilização em situação profissional (a relação prática do indivíduo, logo, a
maneira como ele enfrenta essa situação está no âmago da competência) [...]
que só se revela nas ações em que ela tem o comando destas últimas [...] Em
outras palavras, a competência só se manifesta na atividade prática, é dessa
atividade que poderá decorrer a avaliação das competências nela utilizadas
(ZARIFIAN apud BATISTA, 2006, p. 96).

Para Ramos (2006), à medida que o conceito de qualificação vem se


desgastando enquanto ordenador da relação trabalho-educação a competência não o
supera nem o substitui, mas o desloca num movimento simultâneo de negação e
afirmação de suas dimensões. Enquanto as dimensões social e conceitual da
qualificação são enfraquecidas, a dimensão experimental assume maior relevância.
O caráter individual da competência faz com que os elementos que atuam na
configuração da divisão social do trabalho, relacionados às relações sociais
estabelecidas entre trabalhadores e capital ou representantes do capital, sejam
desvalorizados pela individualização das reivindicações e negociações, levando a um
movimento de despolitização dessas relações que cada vez menos se pautam por
critérios coletivos e políticos. As questões relacionadas às oportunidades educativas, ao
emprego, à precarização das relações de trabalho, às perdas salariais assumem caráter
técico.
A ênfase nas aquisições cognitivas e sociais, habilidades, valores e traços de
personalidade dos indivíduos adquiridos através da educação formal ou de outras
experiências (empregos, estágios, atividades lúdicas, atividades familiares, etc.) libera a
classificação e a progressão dos indivíduos da classificação dos empregos centrada no
domínio de uma profissão e desliga, até certo ponto, a evolução e as trajetórias
profissionais dos saberes formais, dos certificados escolares e diplomas.
Profundamente ligadas à pedagogia das competências, as noções de
empregabilidade e empreendedorismo justificam e legitimam a desresponsabilização do
capital e do Estado pela desvalorização e precarização dos postos de trabalho, infligindo
aos indivíduos a responsabilidade de empreender estratégias eficientes e criativas para
manter suas competências em dia, assegurando sua própria inserção e permanência no
mercado de trabalho.
Enquanto o capital humano, a empregabilidade e as competências mantêm o
foco na capacitação profissional e na preparação do indivíduo para a vida e/ou para o
emprego, a ideologia do capital social engloba também a ideia de coletividade e

sumário 1195
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

comunidade, ou seja, diz respeito à estrutura de relações entre as pessoas e nas pessoas.
O capital social pode ser entendido como “a capacidade que pessoas e grupos sociais
têm de pautar-se por normas coletivas, construir e preservar redes e laços de confiança,
reforçar a ação coletiva e assentar bases de reciprocidade no tratamento que se estendem
progressivamente ao conjunto da sociedade” (CEPAL, 2007, p. 24).
O termo capital social ressurgiu mais intensamente nos anos 1990, em várias
áreas do conhecimento, com diferentes abordagens teóricas, resultando em múltiplos
significados e direcionamentos, impossibilitando uma definição objetiva. No entanto,
passou a figurar nas orientações dos organismos internacionais para a aplicação no
âmbito educacional nos anos 2000, a partir das concepções de James Coleman e Robert
Putnan sendo empregado para designar o desenvolvimento do espírito empreendedor, da
autoconfiança e da capacidade das pessoas em administrar os riscos e as incertezas,
investindo não na constituição e reprodução de “laços sociais duráveis” capazes de
proporcionar proveitos materiais e simbólicos (MOTTA, 2012).
Embora a ideologia do capital social mantenha o estigma do capital e seja um
termo cunhado e disseminado como orientador de políticas públicas pelas frações
burguesas dominantes, ancora-se em categorias como solidariedade, respeito, relações
sociais duráveis, participação política, cidadania e igualdade que, aliadas aos interesses
de estabilidade política e reconstrução do Estado, buscam a criação um cenário livre de
conflitos para o funcionamento do mercado, no intuito de educar o consenso e obter a
participação da maioria da população no projeto de sociabilidade neoliberal, garantindo
os propósitos de acumulação e expansão do capital através do consentimento ativo dos
trabalhadores e trabalhadoras, em face da regressão dos direitos sociais, do
aprofundamento do desemprego estrutural e do subemprego.

Considerações finais:
A expansão do desemprego estrutural e do emprego precário, principal estratégia
do capital para subordinação da classe trabalhadora, o aumento da desigualdade e da
pobreza não apenas nos países de capitalismo dependente, além do agravamento dos
problemas relacionados aos recursos naturais e ao meio ambiente, obrigam o capital a
redefinir constantemente suas estratégias de hegemonia econômica, política e cultural.
Em meio às incertezas decorrentes das constantes mudanças proporcionadas pela
adoção dos sistemas de produção flexíveis e automatizados e do desmonte da sociedade
salarial, as relações de trabalho e as relações educativas foram reordenadas a partir da

sumário 1196
VII Seminário Vozes da Educação

suposta complexificação dos postos de trabalho e da centralidade do conhecimento e da


educação como “fatores” constitutivos de um novo paradigma, de uma sociedade do
conhecimento, pós-industrial, pós-capitalista, pós-classista, etc. Sob a ótica da perda da
centralidade do trabalho e da crise do emprego, a escola deixou de ter como função
principal a preparação para a integração dos indivíduos ao mercado produtivo e a
educação assume a função de prepará-los para a vida, através da difusão de hábitos e
comportamentos que os tornem capazes de adaptar-se às incertezas e transformações do
mundo contemporâneo, administrar riscos e assumir a responsabilidade pelo seu próprio
futuro.
Sob o discurso hegemônico, o trabalhador parcelar, desqualificado ou
semiqualificado característico do paradigma de produção taylorista-fordista teria sido
substituído pelo trabalhador polivalente altamente qualificado, com alta capacidade de
abstração, responsável por diversos pontos do processo de produção e capaz de
incorporar ao mesmo tempo tarefas de fabricação, manutenção, controle de qualidade e
gestão da produção.
Embora estes requisitos profissionais representem as exigências de um núcleo de
ocupações superiores e estáveis que decai progressivamente, o avanço tecnológico não
implica necessariamente a maior complexidade dos postos de trabalho, pelo contrário,
para a imensa maioria dos empregos criados nas últimas décadas a qualificação não se
coloca como problema. Contudo, as empresas elevam cada vez mais os critérios de
seleção para a contratação mesmo para o desempenho de atividades simples e rotineiras,
tornando o padrão de acumulação flexível a base da demanda pela elevação da
escolaridade e da qualificação dos trabalhadores. Deste ponto de vista, a carência de
mão de obra qualificada para o trabalho complexo aparece muito mais como uma
construção social e ideológica, como estratégia de conformação e adaptação dos
indivíduos à sociabilidade neoliberal do que como uma necessidade real da produção.
O objetivo é fazer com que todos os membros da sociedade se sintam parte ativa
dela, como colaboradores e beneficiários (CEPAL, 2007), mesmo aqueles que estejam
permanentemente às suas margens. O desemprego estrutural e a predominância do
emprego precário produzem não mais um exército industrial de reserva de mão-de-
obra, ou seja, trabalhadores temporariamente sem emprego por motivos de saúde,
enfermidade ou dificuldades econômicas aptos a serem reintegrados ao mercado de
trabalho em qualquer momento. O risco atual é a constituição de populações
desnecessárias, até mesmo para a regulação do capitalismo.

sumário 1197
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

No entanto, ainda que não absorvidas plenamente pelo assalariamento, essas


populações encontram-se capturadas pelas relações sociais capitalistas, já que
dependem do mercado para o acesso aos meios de subsistência e reprodução social. A
base material da ideologia capitalista encontra-se (hoje, talvez mais do que em qualquer
outro momento histórico) na primazia do consumo de bens e serviços mercantilizados.
Diferentemente da dimensão integradora prefigurada pelo Estado de Bem-Estar Social e
pelo keynesianismo nos anos dourados do capitalismo, as recentes políticas de “inclusão
social” distanciam-se do plano dos direitos sociais à educação, à saúde, à moradia, ao
transporte e do direito ao trabalho assegurado pelo Estado, voltando-se essencialmente
para a construção de redes de proteção social sustentadas pela parceria Estado-mercado-
sociedade civil em níveis local, nacional, regional e global, tendo como base o
assistencialismo e o voluntariado.

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neoliberal de desenvolvimento capitalista: caráter e contradições. Revista Praia
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promessas que obscurecem a realidade. In: CANÁRIO, Ruy; RUMMERT, Sonia.
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______. A produtividade da escola improdutiva: um (re)exame das relações entre


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HAYEK, Friedrich August. Os princípios de uma ordem social liberal. In:


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MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. Revista Outubro, n. 4, 2004.

MOTTA, Vânia Cardoso. A ideologia do capital social: atribuindo uma face mais
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PARANHOS, Michelle Pinto. Teoria e ideologia do desenvolvimento capitalista: na


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RAMOS, Marise Nogueira. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação.


São Paulo: Cortez, 2006.

sumário 1199
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

PERCURSOS E PERCALÇOS DA EJA EM SÃO GONÇALO

Paulo Felipe Passos139


FFP UERJ
paulpasso@outlook.com

Eliane Bastos Salomão140


FFP/UERJ

Adriana de Almeida141
FFP UERJ
adryanaalmeida@gmail.com

1 História, memória e a EJA


A utilização da memória como recurso para a construção da historiografia
educativa é de suma importância para entendermos o estudo da memória como uma das
fontes de expressão das relações sociais que possibilitam o entendimento da educação e
é dentro dessa perspectiva que passamos a estudar a memória como uma das instâncias
para a apreensão da história, no caso da história da educação, como explica Lívia Diana
(2014) em seu artigo sobre História, memória e a educação: relações consensuais e
contraditórias. Assim, a valorização da historiografia surgida a partir do século XX, se
deu sob uma analise da história dos debaixo, vinda dos de baixo de Carlo Ginzburg, no
qual valoriza a história e a memória de pessoas comuns como homens e mulheres
concretos e reais, trabalhadores sejam homens ou mulheres. Apesar do contexto teórico
diferenciado, a nossa intencionalidade de pesquisa pela apreensão da totalidade do
contexto da EJA, se aproxima dos fundamentos do materialismo histórico dialético.
Para Marx é a realidade que demanda as categorias de análise para a pesquisa e,
consequentemente, transformação do status quo. Sendo assim, a utilização da corrente
historiográfica surgida no século XX é de suma importância no contexto educacional,
pois através de uma escala reduzida dos contextos, desenvolve-se técnicas e didáticas
ligadas ao cotidiano de comunidades especificas e a biografias ligadas a reconstituição
de micro-contextos que são destinados ao EJA.

139
Graduando em História UERJ FFP, Bolsista IC-FFP UERJ.
140
Bolsista IC-FFP UERJ.
141
Prof. Adjunta do Departamento de Educação da FFP UERJ.

sumário 1200
VII Seminário Vozes da Educação

Por isso, a educação, segundo Álvaro Vieira Pinto é a formação do homem pela
sociedade em que está inserida, ou seja, é o processo onde a sociedade integra o
individuo em seu modo de ser social, sendo assim a educação é o processo pelo qual a
sociedade forma seus membros a sua imagem e em função dos seus interesses. O autor
cita também a educação no seu sentido mais amplo, no qual o individuo vive um
processo contínuo de educação onde a transferência de saberes e a construção do
conhecimento. Por isso, é importante perceber como esses indivíduos se colocam e se
identificam na construção do conhecimento, como suas historias influenciam na didática
dos educadores da EJA, como essa formação insere esse individuo em um lugar social
“superior”, quais as condições de estudos desses indivíduos e como o meio que estão
inseridos necessitam de uma demanda maior de investimento público.
Além disso é necessário entender como a ampliação dessas oportunidades
educacionais para aqueles que não tiveram oportunidades na idade própria e se
articulam com as politicas publicas de inclusão e valorização dos sujeitos. Assim,
percebe-se que as transformações econômicas, as desigualdades sociais alarmantes e
como consequência disso a realidade dos sujeitos que frequentam a educação de jovens
e adultos deve ser diversificada e não desvalorizada, além de perceber o papel formador
da escola de conhecimentos, capacidades e desenvolver a qualidade individual como um
papel autônomo. Infelizmente, o que encontramos é uma perspectiva no modelo
pedagógico taylorista ou fordista que se fundamenta em atender as demandas das
transformações do mundo do trabalho:

Na perspectiva das classes dominantes, historicamente, a educação dos


diferentes grupos sociais de trabalhadores deve dar-se a fim de habilitá-los
técnica, social e ideologicamente para o trabalho. Trata-se de subordinar a
função social da educação de forma controlada para responder às demandas
do capital. (FRIGOTTO, 1999, p.26).

É nesse sentido que percebemos a educação, como formadora de trabalhadoras e


como uma educação dos sentidos e da valorização dos saberes de experiências
individuais. É a partir disso, que se percebe a distorção entre os verdadeiros sentidos
que são dados a educação e a realidade implícita nas escolas de EJA no Brasil como
resultado o elevado número de pessoas que não terminam os estudos em idade mínima e
a elevada evasão de pessoas da EJA com justificativas plausíveis a sua realidade social
e econômica. Portanto, a história e a memória se realizam não de forma descritiva, mas

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

em seu movimento e dinâmica, em um constante processo de continuidades, rupturas e


transformações.

2 Breve histórico da EJA e as lutas pelos direitos educacionais


Desde o início da escolarização no Brasil, a educação de jovens e adultos nunca
foi prioridade e, infelizmente, não podemos dizer que esse cenário foi mudado, mesmo
com todas as políticas de educação.
Com a chegada dos Jesuítas, no século XVI, ano de 1549, a educação popular
visava o ensino de leitura, escrita e catequização das crianças nativas, isso mostra que o
adulto já não era considerado como um ser em possível aprendizagem. Somente no ano
de 1924, a primeira constituição brasileira garante a instrução primária para todos os
cidadãos, mas ainda não tivemos grandes avanços, já que só era considerado cidadão
aquele sujeito que soubesse ler e escrever, dessa forma, a garantia de educação é
legitimada para continuar atendendo às elites econômicas, e não as demais classes
populares, as quais ainda não foram beneficiadas com a nova lei.
A constituição de 1934 fixa um plano nacional de Ensino primário, presencial e
gratuito para crianças e Adultos. De acordo com seu Art. 150, compete a União:

a) fixar o plano nacional de educação, comprehensivo do ensino de todos os


graus e ramos, communs e especializados; e coordenar e fiscalizar a sua
execução, em todo o território do paiz;
b) determinar as condições de reconhecimento official dos
estabelecimentos de ensino secundario e complementar deste e dos
institutos de ensino superior, exercendo sobre elles a necessaria
fiscalização;
c) organizar e manter, nos Territorios, systemas educativos
apropriados aos mesmos;
d) manter no Districto Federal ensino secundario e complementar
deste, superior e universitario;
e) exercer acção supletiva, onde se faça necessaria, por deficiencia de
iniciativa ou de recursos e estimular a obra educativa em todo o paiz,
por meio de estudos, inqueritos, demonstrações e subvenções.
Paragrapho unico. O plano nacional de educação constante de lei
federal, nos termos dos arts. 5º, n. XIV, e 39, n. 8, letras a e e , só se
poderá renovar em prazos determinados, e obedecerá ás seguintes
normas:
a) ensino primario integral gratuito e de freqüencia obrigatoria
extensivo aos adultos.

Somente a partir dos anos 1940, com o encaminhamento da reconstrução da


sociedade Brasileira, constituída com base industrial, a Educação de Jovens e Adultos
começa a ser considerada uma necessidade, pois a nova configuração de sociedade

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VII Seminário Vozes da Educação

capitalista industrial exige qualificação de mão de obra e da ampliação das bases


eleitorais.
No Ano de 1942 é instituído um fundo nacional do Ensino primário, ensino
supletivo para jovens e adultos. O analfabetismo passa a ser considerado um problema
nacional e social, e assim um empecilho para o plano de modernização e
redemocratização do país. A partir desse contexto, inúmeras campanhas e planos são
lançados para mudar a configuração da sociedade: a) 1942 - Criação do sistema
Nacional de aprendiz industrial (SENAI) Qualificação profissional industrial de.criação
do fundo nacional do ensino primário. b) 1947 - CEAA (Campanha de Educação de
Adolescentes e Adultos) , Governo Federal (Ministério da educação e saúde). c) 1952 -
CNER , campanha nacional de Educação Rural. d) Campanhas profiláticas, pois viam o
analfabetismo como doença. As campanhas duraram de 1947 a 1953. CEAA -
campanha de educação de adolescentes e adultos . 1ª Politica pública. e) 1952 CNER
campanha nacional de educação rural f) Em 1958 , no Rio de janeiro, foi feito o 2º
Congresso Nacional de Educação de Adultos , onde foi feito a análise das campanhas
anteriores , o analfabetismo é visto como problema social e não educacional. O Tema de
Paulo Freire: A educação de adultos e as populações marginais: o problema dos
mocambos. A eliminação do analfabetismo se daria com o desenvolvimento da
sociedade. g) 1958 - CNEA (campanha nacional de erradicação do analfabetismo), o
desenvolvimento educacional é pré condição para o desenvolvimento econômico.
Almeida e Corso (2015) salientam que nesse período com o fim do Estado Novo
e a intensificação do capitalismo industrial no Brasil, as exigências educacionais eram
outras, ou seja, principalmente, aumentar o contingente eleitoral e preparar mão de obra
para o mercado industrial em expansão. Sendo assim, o estado brasileiro, viu-se
obrigado a implantar políticas de âmbito nacional para atender a educação de adultos.
Restava, portanto, para os excluídos do sistema regular de ensino e do sistema
educacional paralelo de ensino profissionalizante, as campanhas de alfabetização em
massa, que ocorreram entre o final dos anos 1940 e o inicio dos anos 1960.
Nos Anos 1960 surgem novas ideias pedagógicas, estudantes, professores e
movimentos de esquerda, tais como as iniciativas dos Movimentos expressivos de
educação e cultura popular (MCP) em Recife; “ De pé no chão também se aprende a
ler” em Natal (1961); Movimento de Educação de base (MEB), Conferência nacional
dos bispos no Brasil, Centro de Educação popular da Paraíba – CEPLAR

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

No entanto, é só com a primeira Lei de bases e diretrizes da educação, Lei n.


4024/61 que é decretada a Educação como direito de todos. Essa discussão que
começou a ser tema na Constituição de 1934 e foi interrompida em 1937, ainda assim a
educação direcionada ao público jovem e adulto tem um aspecto reducionista e
economicista, pois lança-se o exame de certificação, neste, visa certificar esse público
através de uma prova, deixando claro o pouco ou nenhum compromisso com a
construção cidadã e a continuidade de estudos.
Autores como Celso Beisegel, Vanilda Paiva, Sergio Haddad, Maria Di Pierro, e
Jaqueline Ventura retratam que outras conjunturas foram importantes na história da EJA
sob o ponto de vista de seu amparo legal. Entretanto, essas propostas nem sempre
vieram acompanhadas do legítimo direito à educação, apesar de estar no bojo de seus
discursos. Destacam-se:
• Em 1963, O plano Nacional de alfabetização que visava alfabetizar 5
milhões de brasileiros.
• Em 1964, o Golpe Militar suspendeu todas as iniciativas.
• Nos anos de 1970, empresas estrangeiras se fixam no país. A Educação
técnica é proposta como necessidade de alfabetização rápida para desenvolver o
país. Educação como investimento voltada para a produtividade.
• Mobral (Movimento brasileiro de alfabetização e supletivo) voluntários
para ensinar a ler e escrever, o programa previa o ensino de 1 e 2 graus em 60
dias.
• Lei 5692/71, é criado oficialmente o ensino supletivo, sob a perspectiva de
compensar o período, complementação do inacabado e aprendizagem de leitura
e escrita e qualificação para o mercado de trabalho.
• Parecer n. 699/72 sob a perspectiva de compensação, assistencialista:
supletivo: suplência, suprimento, aprendizagem, qualificação.

Nos anos de 1980 e 1990, houve uma estagnação da economia brasileira,


desaceleração da indústria e estagnação de investimento externo. Momento de falência
do modelo autoritário do governo sobre o controle de militares no Brasil e transição
gradual para democracia. O sistema Mobral é substituído pela Fundação Educar.
Com a Constituição da República Brasileira de 1988, a legalização da Educação
de jovens e Adultos é expressa no art.208 como dever do Estado, garantia do ensino

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VII Seminário Vozes da Educação

fundamental obrigatório e gratuito, assegurando inclusive a sua oferta para todos que
não tiveram acesso na idade própria. A criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação Básica (FUNDEB), passou a destinar verbas para a Educação de jovens e
Adultos.
Tal processo caracteriza um duplo movimento para a história da EJA ao longo
da década de 1990; a reiteração da histórica descontinuidade e falta de efetivo
compromisso com a modalidade, e a pulverização da oferta e a baixa complexidade do
que era oferecido, negando a apropriação das novas tecnologias e das novas formas do
processo de trabalho aos estudantes jovens e adultos.
A inclusão da EJA na legislação configura-se como uma opção política que
precisa ser legitimada pela prática pedagógica. Vale lembrar que a legislação prevê
como forma de oferta da EJA os cursos e exames. Portanto, na base da organização e da
orientação do trabalho pedagógico na EJA, está o desafio de desenvolver processos de
formação humana, articulados a contextos sócio-históricos, a fim de que se reverta à
exclusão e se garanta aos jovens e adultos, o acesso, a permanência e o sucesso no
início ou no retorno desses sujeitos à escolarização básica como direito fundamental.

3 A EJA no município de São Gonçalo


Em 2018, os últimos dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e
pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP-MEC) revelam que dos 5.721 mil
estudantes matriculados no Ensino Fundamental no Município de São Gonçalo, há um
percentual de 29,6% (aproximadamente 1.693 estudantes) no que se refere à distorção
idade-série, enquanto no Ensino Médio esse percentual é ainda maior, chega a 37,2%
das 6.146 mil matrículas efetuadas (aproximadamente 2.286 estudantes). No ano
anterior (2017), ainda como base o Instituto Anísio Teixeira, verificamos que dos 4.644
alunos do Ensino Fundamental no Município de São Gonçalo, 1.365 (29,4%) estão
matriculados em séries disformes em relação a idade e no Ensino Médio são 2.108
(34,4%) alunos das 6.128 matrículas. No ano de 2016 , foram 1906 (36,6%) alunos das
5.209 no Ensino fundamental e no Ensino Médio 2.310 (35,3%) alunos dos 6.545
matriculados.
Ressaltamos ainda que, a Educação profissional não aparece nos anos de 2018 e
2017 em nenhuma das cidades pesquisadas, mas no Ano de 2016, a Educação
profissional apresenta 44 matrículas no município de São Gonçalo, porém dados
correspondentes a distorção idade-série não foram localizados. Os índices

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

disponibilizados pelo Ministério da Educação, Instituto Anísio Teixeira (INEP),


apontam que das 11.867 matrículas efetuadas em 2018 na Educação básica do
Município de São Gonçalo, 593 alunos (5%) não concluíram a série, enquanto (27,6%)
foram reprovados. Em 2017 (4%) dos 10.772 alunos, sendo 430, evadiram e 28,7% (
3.091) reprovaram. No ano de 2016 das 11.798 matrículas 1.050 ( 8,9%) alunos
abandonaram os estudos e (28,9%) 3.409 reprovaram.
O município apresentou uma queda de quase 50% do ano de 2016 para o ano de
2017, mas voltou a subir no último ano. Em relação às reprovações manteve uma
proporção de ⅓ dos alunos. Pelos indicativos constatamos que o Município de Niterói
teve uma diminuição no número de desistência na Educação Básica, mas as retenções
continuam com números muito expressivos. Percebemos pelos índices analisados que
na EJA, o tema da evasão é recorrente e em muitos estudos e defesas teórica e parte do
pressuposto de que as políticas educacionais para esse público sempre estiveram
ancoradas, historicamente, a iniciativas polarizadas e descontínuas. Nesse sentido,
compreendemos que os números revelam um contexto alarmante que precisa ser
investigado com maior amplitude sobre as condições reais de vida e de permanência
desses sujeitos com a escola e a como a cultura escolar tem trabalhado para que essa
educação para jovens e adultos trabalhadores tenham um sentido e um significado para
além da certificação. Freire (1995, p.46), afirma que o problema crucial da educação
brasileira é tratado de forma incorreta com o termo evasão, pois para ele o que acontece
é uma expulsão escolar, política e ideológica. Desse modo, uma das sugestões para esse
entrave educacional é a formação do educador ancorada em uma compreensão política e
ideológica da linguagem para que este percebe o caráter de classe da fala.
Através de uma pesquisa e entrevista com a coordenação da rede pública de
educação do município de São Gonçalo - SEMED/SG -, podemos identificar algumas
características da EJA no município.
O município é composto por 96 (nove e seis) bairros conhecidos popularmente e
91 (nove e um) bairros oficiais divulgados pelo Censo. No ano de 2011, segundo o
Censo Escolar, 31 unidades escolares ofertavam a EJA no município; já no ano de 2015,
houve uma redução, sendo, portanto, 19 unidades escolares.
Atualmente, em 2018 e 2019, a oferta do ensino fundamental 1 e 2 segmentos
em 18 (dezoito) escolares distribuídas nos bairros, sendo que 5 (cinco) dessas
instituições também ofertam a EJA na modalidade da Educação Profissional. A
rotatividade de professores, bem como da coordenação do município é continua e

sumário 1206
VII Seminário Vozes da Educação

demonstra as dificuldades de formação de professores e da composição de um currículo


que atenda as especificidades dos jovens e adultos.
O levantamento realizado apresenta uma diminuição do quantitativo de escolas
como também a mudança na distribuição territorial destas. Isso traz mudanças no
cotidiano de muitos jovens e adultos gonçalenses pelo fato de que, caso o bairro em que
residam não oferte a EJA, o mesmo terá de se deslocar para outra unidade escolar que
na maioria dos casos está fora do seu percurso rotineiro. Esses jovens e adultos, em sua
grande maioria, são homens e mulheres trabalhadores(as) que se descolam casa-trabalho
e escola (quando lhe é possível).
Mas, e se a escola que oferta a EJA estiver fora do percurso deslocado
diariamente por esse (essa) jovem ou adulto(a) trabalhador(a)? Esses sujeitos
conseguiriam dar continuidade em seus estudos? Ou eles deixariam de procurar a EJA
por conta desses percalços enfrentados? A procura pela EJA nas escolas tenderia a
diminuir, não por que exista uma carência de alunos que desejariam estar matriculados
na EJA mas, sim, por conta da distribuição territorial da oferta ser desigual e cada vez
mais reduzida.
Na entrevista com a coordenação da SEMED/SG, destacamos que a entrevistada
enfatizou sempre o número de escolas que possuem o município e a quantidade de
alunos matriculados, mas também fala sobre a procura e os investimentos para o
aumento dessa modalidade:

"É preciso haver um trabalho mais efetivo em relação a evasão, atualmente a


evasão vem se dando em maior proporção por conta da violência, pois o
aluno não consegue sair da sua região para ir a escola, porém para ajudar com
essa questão é preciso haver um trabalho de parceria com a secretaria de
segurança. É preciso também se pensar na escolha dos professores para
trabalhar com EJA, escolher professores que tenham o perfil para esse
público. Mesmo que internamente, poderia se pensar em uma seleção para os
professores que irão trabalhar com a EJA, pois na maioria das vezes o
professor escolhe a EJA não por gostar, mas por necessidade pois trabalha
em outros lugares na parte da manhã.”

Outra questão importante apontada na entrevista é que a rede pública não conta
com um planejamento de formação de professores e, apenas em 2019, foi realizada uma
primeira jornada que envolveu os professores, coordenadores e diretores da EJA, mas
com pouca aderência.
A SEMED, em 2018, contava com aproximadamente 4010 alunos matriculados
no 1 e 2 segmento respectivamente. Segundo a coordenação não há um quantitativo

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

exato de professores que a rede possui, mas afirmou que estavam em funcionamento
132 turmas.
No município, a EJA tem um programa único de funcionamento, que é um
projeto que foi construído em 2004, coletivamente junto com as escolas, atualmente,
segundo a SEMED está em processo de revisão e ainda não foi implementado. O
projeto trabalha questões como: Valorização do aluno, experiências do aluno e projetos.
Na proposta pedagógica também está descrito o conteúdo mínimo que cada disciplina
precisa estar atendendo.
A Secretaria aponta como desafios um trabalho mais efetivo em relação a
evasão, atualmente a evasão vem se dando em maior proporção por conta da violência,
pois o aluno não consegue sair da sua região para ir à escola "porém para ajudar com
essa questão é preciso haver um trabalho de parceria com a secretaria de segurança”
(coordenação/SEMED/SG). Afirma que:

"É preciso também se pensar na escolha dos professores para trabalhar com
EJA, escolher professores que tenham o perfil para esse público. Mesmo que
internamente, poderia se pensar em uma seleção para os professores que irão
trabalhar com a EJA, pois na maioria das vezes o professor escolhe a EJA
não por gostar, mas por necessidade pois trabalha em outros lugares na parte
da manhã".

Marques (2016) aponta que o cenário da EJA na rede pública municipal de São
Gonçalo, representa a a dinâmica da realidade social e a lógica neoliberal pela qual a
política educacional vem sendo gerenciada. Para a autora, historicamente, o direito à
educação para as pessoas jovens e adultas trabalhadores que tiveram o acesso negado ou
interrompido foi pensado, porém esses sujeitos sempre estiveram à margem dessas
políticas públicas.

Considerações preliminares
As proposições cada vez mais ramificadas de ações educativas para os
trabalhadores representam uma oferta desigual do conhecimento científico e do
conhecimento do mundo do trabalho. Essas propostas para a EJA, conforme pode-se
perceber na pesquisa realizada, colaboram para a melhoria de autoestima, certificação
de escolaridade e algumas mudanças parciais nas relações educativas. O processo de
emancipação e do efetivo direito à educação é uma conquista na área da educaçãoO

sumário 1208
VII Seminário Vozes da Educação

desafio é descobrir as migalhas de luta, da experiência social da classe trabalhadora que


insiste em permanecer ocultas sob as vigentes realidades.
No rastro das proposições para a EJA, intensificam-se as ações direcionadas a
profissionalizar os jovens e adultos. Essa ação corresponde a um projeto societário
mundial que propaga uma “aprendizagem ao longo da vida” e que, nos países
subalternos, reside na certificação e validação de atividades voltadas exclusivamente
para o exercício do trabalho simples. Ou seja, manter as formas de exploração e
expropriação do conhecimento dos trabalhadores. Fortalece-se, dessa maneira, o capital-
imperialismo142 com questões contraditórias relativas à educação e à formação humana,
subsumidas ao capital.

Referências
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BRAGA, F.M; FERNANDES, J.R. Educação de jovens e adultos: contribuições de


artigos em periódicos brasileiros indexados na base Scielo (2010-2014). Cad. Cedes,
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Brasília, DF, Senado, 1988.

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INEP. Relatório técnico do Sistema Nacional de Avaliação Básica - SAEB, 2018.


Brasília: INEP/Ministério da Educação, 2018.

142
Rummert, Algebaile e Ventura (2012, p.4) afirmam que o capital-imperialismo, sob o escudo do
capital-monetário, coloca-se sobre dois mitos fundamentais: “o primeiro refere-se ao fato de que é na
atividade de gestão intelectual que se constrói o lucro, do qual deriva, por exemplo, o fetiche da sociedade
do conhecimento; o segundo mito, que decorre do anterior, propaga a tese de que o trabalho vivo não
assume mais nenhuma função relevante na vida social”.

sumário 1209
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

FRIGOTTO, G. Educação e a crise do capitalismo real. 3 ed. São Paulo: Cortez,


1999.

MAGALHÃES, L. D. R. História, memória e geração: remissão inicial a uma discussão


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PINTO, A. V. Sete lições sobre educação de adultos. 16 ed. São Paulo: Corteza, 2010.

RUMMERT, S.M.; ALGEBAILE, E.; VENTURA, J. Educação, formação humana


no cenário de integração subalterna no capital-imperialismo. Anped, 2012.

sumário 1210
VII Seminário Vozes da Educação

COMBATENDO “AS TREVAS DA IGNORÂNCIA” 143:


CAMINHOS DO ENSINO PRIMÁRIO MARICAENSE (1889-1926)

Renata Toledo Pereira144


Secretaria de Ciência, Tecnologia e Comunicações de Maricá / RJ
retpereira@yahoo.com.br

A oferta do ensino primário esteve em consonância com a manutenção dos


interesses dos setores agrários e o projeto republicano, mas foi insuficiente para atender
a população em idade escolar existente. No entanto, o período em questão ampliou a
ideia de sistema escolar ao construir e abrir escolas, testar reformas e práticas
educativas.
No início da República, o presidente do estado Manuel Martins Torres145 atestou
que a instrução primária possuía condições deploráveis para funcionamento: ausência
de método de ensino, de casas específicas para escolas, de professores competentes para
exercer suas funções, havendo a necessidade do empreendimento de outras ações para a
melhoria desse nível de ensino. Percebo que o presidente interino ignorou todas as
práticas educativas e os avanços conquistados no período imperial, considerando a
República como marco zero. De um modo geral, observa-se nas mensagens de estado a
preocupação com a instrução pública, sua melhoria e difusão pelo território fluminense.
Na cidade de Maricá, a instrução primária foi ministrada em diversos tipos de
escolas: rurais, urbanas, subvencionadas, cursos noturnos e grupo escolar, que se
diferenciavam pela sua organização pedagógica, títulos dos professores, localização,
duração do curso, quantitativo de classes e grupos sociais atendidos.
Este nível de ensino tinha o papel de formar o trabalhador rural, municiá-lo de
saberes elementares para aprender novas técnicas de manejo da terra e, assim, elevar a
produtividade agrícola, tendo em vista o cumprimento da “vocação agrária” do local e
do estado. Neste sentido, o caráter civilizatório fazia parte do cotidiano escolar com o
143
Expressão utilizada pelo presidente do estado do Rio de Janeiro Quintino Bocayuva (1902 p. 17), na
Mensagem do Presidente do Estado à Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro. Cabe ressaltar
que este trabalho de pesquisa é parte integrante da dissertação da autora, intitulada: Nos trilhos do
progresso: a expansão do ensino primário em Maricá na primeira república (1889-1926), Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2015.
144
Mestre em Educação / UFF.
145
RIO DE JANEIRO (ESTADO). Mensagem do presidente Manuel Martins Torres à Assembleia
Legislativa do estado do Rio de Janeiro, de 1 de agosto de 1893. p. 6-7.

sumário 1211
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

intuito de ensinar valores morais e hábitos ligados à higiene. Nota-se um processo de


interiorização de escolas nas zonas rurais, atrelado às relações políticas e influenciado
pela proximidade à Estrada de Ferro Maricá (EFM).
As instituições em funcionamento nesse período tinham suas vias de acesso
localizadas próximas à estrada de ferro. Mesmo assim, alunos e funcionários
necessitavam andar longas distâncias e passar por trechos de difícil acesso, mas os
trajetos foram diminuídos. O embarque de professores no meio de transporte era
custeado pelo governo estadual 146 . Já os alunos dependiam da boa vontade de
funcionários da ferrovia, que poderiam permitir a entrada daqueles que possuíssem
dificuldades financeiras.
Durante as reformas de instrução pública realizadas pelo estado do Rio de
Janeiro, podemos perceber clara influência do movimento ruralista, defensor de que a
mudança do homem rural via escola era crucial para viabilizar o desenvolvimento de
suas capacidades físicas e cognitivas baseadas nas novas técnicas e pesquisas modernas
relacionadas à agricultura.
O movimento ruralista foi fruto da organização dos proprietários rurais no pós-
abolição. Seus membros, pertencentes aos estados de segunda grandeza, estavam
envolvidos “no combate à monocultura na campanha pela diversificação dos produtos, o
fomento à produção em propriedades parceladas, a adoção da mão-de-obra nacional e a
modernização dos modos de cultivo.” (DIAS, 2012, p. 49)
Sônia Mendonça (2006) descortina as múltiplas facetas do ruralismo, um
movimento formado pela elite agrária e caracterizado por um conjunto de ideias com
posições diferenciadas e conflitantes entre si sobre os meios na busca pela superação da
crise / do atraso e modernização agrícola.
Em suma, o ruralismo é “o conjunto de representações e práticas acerca do
mundo rural brasileiro no período da Primeira República, (...) [sendo] um movimento
político de organização e institucionalização de interesses de determinadas frações dos
setores agrários”, recusando a hegemonia da produção cafeeira dos estados de primeira
grandeza (MATOS, 1999, p. 292). Foi uma ação derivada do avanço da industrialização

146
Para mais informações: Relatório apresentado ao Presidente do estado do Rio de Janeiro Dr. Alberto
de Seixas Martins Torres pelo Secretário das Finanças João Rodrigues da Costa. Rio de Janeiro:
Tipografia da Papelaria Jeronymo Silva, 1900. Anexos ao Relatório do Diretor das Finanças n. 1. Tabela
n. 35: despesas diversas. p. 8.

sumário 1212
VII Seminário Vozes da Educação

e da urbanização, surgida ao final do século XIX, mas que avançou no sentido de


produção de discursos e de ações no campo social e da política partidária.
Os agrônomos alinhados ao movimento ruralista criticavam o formato de
produção monocultora, ao defenderem o soerguimento do campo por meio da
diversificação agrícola, do povoamento e da colonização, da educação do trabalhador
rural, da modernização, da racionalização produtiva e da difusão de crédito.
Maricá possuía grandes latifúndios monocultores, como café, cana-de-açúcar e
laranja. Todavia, os princípios do referido movimento refletiram-se na cidade que, no
período de 1896-1898, teve um surto de criação de escolas de instrução primária,
localizadas na área central e, principalmente, nos lugares onde estavam situadas as
principais fazendas.

Tabela 1: Situação do ensino primário maricaense nos anos iniciais da


Primeira República (1896-1898)
Ano N° de escolas Escolas em Matrícula Frequência
Funcionamento
1896 19 18 672 449
1897 17 17 678 448
1898 18 16 730 359
Fontes: Relatórios dos diretores de instrução pública (1896, 1897, 1898). Organização da autora.

Por outro lado, um denunciante anônimo publicou uma carta sobre a situação do
ensino primário em Maricá, nas páginas do jornal O Paiz, destinada ao Conselho
Superior de Instrução. Ele relatou o precário funcionamento da escola de ensino
primário, com frequência superior a 120 alunos, sem a quantidade de livros suficientes e
com um professor, cujo comportamento foi questionado. Dias depois, o diretor da
instrução pública do estado, Alberto de Oliveira, respondeu aos questionamentos,
alegando a distribuição irregular das escolas feita anteriormente, atribuindo à solução
através da reforma realizada. Justificou que a falta de livros foi ocasionada pelo
professor, por não ter comunicado a necessidade ao inspetor. O número de alunos não
correspondia com o mapa escolar enviado pelo docente à diretoria, em que havia a
matrícula de 73 alunos e a frequência de 48 crianças. Em relação ao professor, narrou a
dificuldade de manter os docentes em escolas do interior, culpabilizando-os por todos os
problemas.

sumário 1213
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Essas cartas147 evidenciam o desconhecimento da situação do ensino primário


por parte da autoridade sobre a cidade e a falta de documentos que atestem a mesma,
uma vez que utilizou exemplos da capital do estado para elucidar as ações públicas,
além de culpabilizar outros profissionais pelos problemas da educação pública
fluminense. Vale ressaltar que os dados mencionados acerca do período nos indicam a
existência de outras escolas na localidade, contrariando o denunciante, que alegou a
existência de uma única escola masculina no município.
Na maior parte das escolas seria “ministrado o ensino elementar, não
ultrapassando de dois anos a frequência de grande número de alunos que nesse tempo
adquirem apenas as noções rudimentares proporcionais à sua condição e futuro destino
social”148, devendo o ensino adaptar-se à localidade.
Mendonça (2006, p. 88) afirma que “as sociedades de classes têm seu sistema de
ensino marcado pela dualidade enquanto expressão assimétrica das relações sociais e de
poder”. Logo, o ensino voltado para a prática agrícola foi fruto dessa dualidade gerada
pelo sistema capitalista, que estimula a polarização entre trabalho manual e intelectual.
Nas listagens das escolas da cidade, verificamos a distribuição das mesmas pelo
vasto território, nos locais de maior concentração populacional, com grandes latifúndios
e detentores de força política, já que esses fatores influenciavam na criação e na
manutenção das instituições educacionais.

Tabela 2: Escolas públicas estaduais em Maricá (1896)


Número Escola
1 Escola Masculina da Cidade
2 Escola Feminina da Cidade
3 Escola Masculina da Cidade
4 Escola Feminina da Cidade
5 Escola Masculina de Inoã
6 Escola Masculina de Inoã
7 Escola Feminina de Inoã
8 Escola Feminina de Cassorotiba
9 Escola Feminina de São José de Imbassaí
10 Escola Masculina de Pindobas
11 Escola Masculina do Caju
12 Escola Masculina da Saúde
13 Escola Masculina do Silvado
14 Escola Masculina de Ponta Negra
15 Escola Feminina de Ponta Negra

147
A carta do denunciante consta em: O Paiz, Rio de Janeiro, p. 2, ano IX, n. 4.043, 2 jun. 1893. Já a
resposta do diretor da instrução pública foi publicada em: O Paiz, Rio de Janeiro, p. 2, ano IX, n. 4.045, 4
jun. 1893.
148
RIO DE JANEIRO (ESTADO). Mensagem enviada à Assembleia Legislativa do estado do Rio de
Janeiro pelo presidente Dr. Joaquim Maurício de Abreu em 15 de setembro de 1896. p. 10.

sumário 1214
VII Seminário Vozes da Educação

16 Escola Masculina do Espraiado


17 Escola Masculina de Ponta Grossa
18 Escola Masculina de Matta Cavallos
19* Escola Feminina de Camburi

*A escola nº 19 estava sem casa. Fonte: Relatório do


Diretor de Instrução Pública (1896). Organização da autora.

A sequência de escolas era estabelecida por números, considerando a


proximidade de localização e pelo conjunto de escolas existentes, podendo ser
modificada no decorrer do tempo, com o fechamento e extinção das mesmas, além de
auxiliar na identificação das instituições da rede que ia sendo constituída pelo estado do
Rio de Janeiro. Cabe dizer que, de acordo com a pesquisa realizada no Fundo da
Presidência da Província do Rio de Janeiro, do Arquivo Público do Estado do Rio de
Janeiro (APERJ), já existiam em Maricá as seguintes escolas no período imperial: Matta
Cavallos, São José de Imbassaí, Espraiado, Ponta Negra, Saúde e Ponta Grossa. As
fontes documentais encontradas foram nomeações de professores para a regência nas
citadas localidades, expedidas durante os meses que antecederam a Proclamação da
República.
Em 1897, havia 868 escolas públicas primárias no estado, mas 29 instituições
foram fechadas por baixa frequência dos alunos matriculados. No município de Maricá,
nota-se o movimento de interiorização do ensino primário, mediante a existência de 19
escolas em funcionamento e apenas 1 se encontrava vaga. No entanto, outras regiões
ainda não eram beneficiadas com o acesso a instrução oficial, como Itapeba, Bananal,
Retiro, Barra de Maricá e Caxito. Nesse mesmo ano, nova reforma educacional no
estado foi empreendida por meio da lei n. 376, de 23 de dezembro, que instituiu a oferta
escolar nos grupos escolares ou nas escolas unidocente ou isoladas, nas respectivas
modalidades: superior, elementar (escolas rurais) e médio (escolas urbanas).

Tabela 3: Escolas públicas estaduais em Maricá (1898)


Número Escola
1 Escola Masculina da Cidade
2 Escola Feminina da Cidade
3 Escola Masculina da Cidade
4 Escola Feminina da Cidade
5 Escola Masculina de Inoã
6 Escola Masculina de Inoã
8 Escola Feminina de Cassorotiba
9 Escola Feminina de São José de Imbassaí
10* Escola Masculina de Pindobas
11 Escola Masculina do Caju

sumário 1215
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

13 Escola Masculina do Silvado


14 Escola Masculina de Ponta Negra
16 Escola Masculina do Espraiado
17 Escola Masculina de Ponta Grossa
18 Escola Masculina de Matta Cavallos
19* Escola Feminina de Camburi

*As escolas nº 10 e 19 se encontravam vagas. Fonte:


Relatório do Diretor de Instrução Pública (1898).
Organização da autora.

Maricá conseguiu manter seu quadro de escolas praticamente inalterado, cujo


total era de 19 escolas unidocentes, com 2 vagas, ou seja, sem professores.
Considerando o momento, era um número elevado de instituições de educação primária,
visto que nos anos posteriores o quantitativo diminuiu drasticamente, devido à
frequência irregular dos alunos por causa do trabalho na lavoura, da dificuldade de
superar as longas distâncias percorridas diariamente até a escola, da possível queda dos
recursos investidos em educação no município e da localização esparsa das escolas no
território.
A população em idade escolar em Maricá era de 3.192 pessoas nos anos de 1896
e 1897, sendo composta por 1.819 homens e 1.373 mulheres. Comparando esses dados
aos índices de matrícula já apontados anteriormente, conclui-se que poucos tinham
acesso à educação escolarizada nos anos iniciais do regime republicano, pois em 1896,
das 3.192 crianças, somente 678 estavam matriculadas e 448 frequentando as atividades
escolares, sendo as meninas as mais prejudicadas, com um total de 192 matrículas e
frequência de 126 alunas. No ano seguinte, a população em idade escolar se manteve
inalterada, mas o número de matrículas se elevou para 730 e a frequência diminuiu para
359. A diferença de gêneros persistia, já que 522 meninos estavam matriculados, contra
208 meninas. Em relação à frequência, o quadro se agravou ao compararmos os índices:
277 meninos e 82 meninas. Ao final da Primeira República, a diferença diminuiu no que
diz respeito aos índices, onde 562 homens estavam matriculados e 404 mulheres,
totalizando 966 indivíduos149.
Na década de 1910, algumas medidas normativas foram instituídas no campo
educacional fluminense, como a classificação das escolas em rurais e urbanas, a
remuneração da inspeção escolar, a reforma do ensino primário, a renovação do
mobiliário escolar, a construção de prédios escolares, a aquisição de livros didáticos e
de outros materiais pedagógicos, a criação da inspetoria e melhor distribuição das

149
Relatórios dos Diretores de Instrução Pública (1896, 1897, 1898, 1929).

sumário 1216
VII Seminário Vozes da Educação

escolas, considerando a densidade populacional. Existiam 389 escolas primárias, das


quais 104 eram regidas por professores de 2ª classe, 280 por professores de 1ª classe e 5
por professores interinos 150 . Os relatórios dos diretores de instrução pública não
revelaram maiores detalhes acerca de tais classificações. No entanto, algumas pistas
indicaram que eram feitas a partir do tempo de serviço e do cargo para qual os docentes
que eram contratados (professores adjuntos, interinos, provisórios ou efetivos).
No município de Maricá, os resultados obtidos em relação ao quantitativo de
estabelecimentos de ensino foram: 6 escolas (1911); 8 escolas (1912), sendo 6 escolas
elementares e 2 escolas subvencionadas; 12 escolas (1913), onde eram 7 elementares e
5 subvencionadas; o mesmo número foi mantido em 1914, mas era composto por 8
escolas elementares e 4 subvencionadas. Com a maior oferta de escolas, a população
passou a ter mais acesso, condição que influenciou na frequência escolar:

Tabela 4: Número de alunos frequentes no estado e em Maricá (1911-1914)


1911 1912 1913 1914
Rio de Janeiro 15.401 16.480 18.845 20.426
Maricá - 222 290 370

Fontes: Mensagens dos presidentes de estado do Rio de Janeiro (1911-1914) e


Relatório do Secretário Geral do estado do Rio de Janeiro (1914). Organização
da autora.

A escola subvencionada151 era um instrumento de combate ao analfabetismo, a


baixo custo, no meio rural e com auxílio da iniciativa particular, sendo criadas em 1911,
extintas em 1915 e reativadas em 1925. Elas tinham a finalidade de oferecer um ensino
rudimentar por professores que atestassem moralidade, boa saúde e habitação,
associando iniciativa privada e financiamento público (BOYNARD, 2006, p. 34, 44).
Depois da reativação, em Maricá, havia quatro escolas subvencionadas, em um universo
de quinze escolas, de acordo com os mapas escolares (APERJ). No entanto, o índice
oficial não incluiu as escolas subvencionadas responsáveis pela instrução primária:

150
RIO DE JANEIRO (ESTADO). Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa do estado do Rio de
Janeiro em 1 de agosto de 1910 pelo presidente Dr. Alfredo Backer. p. 48.
151
O decreto n. 1.200, de 7 de fevereiro de 1911, criou o ensino subvencionado, destinado a localidades
onde não houvesse escolas para atender até 30 crianças; ou a escolas do quadro que não fossem
requisitadas por professores efetivos.

sumário 1217
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Tabela 5: Escolas primárias subvencionadas em Maricá (1926)


Escola Grau
Escola Subvencionada de Cambori 1º grau
Escola Subvencionada do Bananal 1º grau
Escola Elementar Mista Subvencionada 1º grau
de Maricá
Escola Mista Diurna da Fazenda de 1º grau
Itaocaia

Fonte: Fundo Departamento de Educação/ Arquivo Público


do Estado do Rio de Janeiro. Organização da autora152.

Esse tipo de escola foi tratado como uma alternativa eficaz para a difusão do
ensino primário, considerando a regularidade do funcionamento. Por outro lado, os
governantes apostavam nele porque gerava “economia” ao estado com a diminuição no
orçamento do pagamento de aluguéis e de benefícios aos servidores, além de se
apresentarem como um aparelho político com fins eleitorais. Diante disso, nota-se a
preferência pela promoção de um ensino a baixo custo, com prédios adaptados e
professores com formação aligeirada. A expansão da educação primária fluminense
enfrentava crise econômica e a dificuldade em conseguir professores formados pela
escola normal, principalmente para atuar nas escolas rurais.
O decreto estadual n. 1.723, de 29 de dezembro de 1919, reformou a instrução
pública primária e profissional. Estabeleceu a fiscalização remunerada das instituições
de ensino primário; criou a inspetoria escolar com cinco funcionários; tornou
obrigatória a função de delegado escolar confiada à promotoria pública. A inspeção
escolar foi considerada de suma importância para manter as instituições de ensino
primário, uma vez que as mesmas eram responsáveis pela formação da nacionalidade.
Os programas de ensino primário foram revisados, considerando os debates
pedagógicos da época e a necessidade de aquisição de materiais pedagógicos.
As escolas noturnas eram destinadas àqueles que não puderam frequentar o
ensino primário antes dos 13 anos, devendo ter matriculados 50 alunos, com a
frequência mínima de 25 alunos153.

152
Os mapas escolares das escolas subvencionadas apontaram as denominações das instituições existentes
no ano de 1926 (Fundo Departamento de Educação/ Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro). Cabe
ressaltar que a existência das mesmas não foi sinalizada no relatório do diretor de instrução pública
(1927). Organização da autora.

sumário 1218
VII Seminário Vozes da Educação

No censo de 1920154, constatou-se que apenas 24% da população sabia ler e


escrever, compreendendo 30 milhões de brasileiros. O aumento do número de escolas
no Rio de Janeiro se deu pela própria visão do governador Feliciano Sodré 155 , que
acreditava que a abertura de escolas era necessária, mesmo que insalubres e
inadequadas, porque o povo não poderia ficar sem instrução. Tal ideal se refletiu em
Maricá, ao longo do período, com a existência de 16 escolas em 1926.
A evasão escolar se apresentava como um sério problema para a concretização
do ideário educacional, provocando o fechamento de escolas em determinadas
localidades que, por sua vez, também poderia ocorrer por causa de represálias políticas
a professores que resistissem às ordens impostas pelos coronéis. Influenciava na tiragem
dos livros didáticos, cuja concentração da produção era voltada para a 1ª série do curso
primário, onde se iniciava a alfabetização dos alunos, diminuindo a quantidade de obras
das séries seguintes devido à redução do número de matrículas.
A oferta do ensino não atendia a uma significativa parcela do povo, apesar de tê-
lo como fim em si e, por isso, a escola primária era excludente e hierarquizada por
causa da seletividade e de seus exames classificatórios. Contraditoriamente, essa etapa
era responsável pelo ensino da leitura, da escrita e da cidadania (SOUZA, 2008, p. 50,
56). Biccas e Freitas (2009, p. 41, 64) concordam com o caráter seletivo da escola, pois
essa instituição não diminuía as desigualdades sociais por meio de suas práticas, só
contribuía “com os intermináveis rituais de avaliação, aprovação e reprovação”.
Essa “cultura de seleção” da escola primária estava arraigada socialmente diante
da naturalização da rigidez dos exames, das dificuldades enfrentadas pelos alunos das
classes populares, pelos elevados índices de reprovação e pela exclusão social. Tal fato
era permitido devido à conferência de status social aos alunos aprovados para a série
seguinte que, consequentemente, desfrutavam de maior prestígio perante os outros
membros da sociedade. (SOUZA, 2006, p. 18-19)
No ano de 1922, a instrução primária na cidade de Maricá era oferecida em um
grupo escolar e em nove escolas isoladas que, pelas áreas de concentração populacional
no período, suponho que se localizavam nos bairros de Inoã, São José de Imbassaí,

153
RIO DE JANEIRO (ESTADO). Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa do estado do Rio de
Janeiro em 1 de agosto de 1920 pelo presidente do estado Raul de Moraes Veiga. p. 9-10.
154
Informação extraída de: CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a
República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 70.
155
RIO DE JANEIRO (ESTADO). Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa do estado do Rio de
Janeiro em 1 de agosto de 1927 pelo presidente Feliciano Pires de Abreu Sodré. p. 99.

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Camburi, Pindobas, Ponta Negra, Barra, Caju, Flamengo e Ubatiba. (RIO DE


JANEIRO - ESTADO, 1922, p. 180)
O papel das escolas primárias fluminenses era a promoção da alfabetização para
livrar a população do “cancro do analfabetismo”, um “mal” que trazia “infelicidade” a
quem dele padecia 156 . Para tal, aplicar-se-ia a obrigatoriedade da matrícula e da
frequência, a criação de uma escola em cada povoado e, caso o estado não pudesse
financiar, recorreria à iniciativa privada. O foco era levar a alfabetização,
principalmente às zonas rurais, vistas como “centros de civilização mais rudimentar (...)
para melhorar as condições sociais de vida de nossa gente”157.
No município de Maricá, na década de 1920, a situação da instrução primária era
expressa assim:

Tabela 6: Índices do ensino público primário maricaense nos anos finais da


Primeira República

Ano N° de escolas Escolas em Matrícula Frequência


Funcionamento
1922 10 - - -
1926 11 - - -
1927 - - - -
1928 - - 934 -
1929* 12 12 966 -

*Apesar do marco temporal dessa pesquisa (1889-1926), a ausência de dados relacionados à educação
primária em Maricá nos anos anteriores gerou a necessidade de apontar as informações obtidas,
intentando auxiliar na compreensão da expansão do ensino. Fontes: Mensagens dos presidentes de estado
do Rio de Janeiro (1920-1930), relatórios dos diretores de instrução pública (1927, 1928 e 1929), álbum
do centenário da independência do Brasil (1922) e mapas escolares das escolas públicas estaduais (Fundo
Departamento de Educação / Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro). Organização da autora.

Diante desse quadro, a Liga Fluminense atuava no combate contra o


analfabetismo desde a segunda metade da década de 1910, lutando pela construção de
escolas, a obrigatoriedade do ensino primário e a proibição do trabalho de menores nas
fábricas. Em uma de suas sessões semanais, o membro Eripedes Ribeiro relatou a

156
RIO DE JANEIRO (ESTADO). Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa do estado do Rio de
Janeiro em 1 de agosto de 1921 pelo presidente do estado Raul de Moraes Veiga. p. 51.
157
RIO DE JANEIRO (ESTADO). Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa do estado do Rio de
Janeiro em 1 de agosto de 1927 pelo presidente Feliciano Pires de Abreu Sodré. p. 87.

sumário 1220
VII Seminário Vozes da Educação

inexistência de escolas em lugares populosos de Maricá, como Espraiado, Itaocara,


Retiro, Silvado e Cassorotiba158.
A responsabilidade pela oferta escolar era atribuída ao estado, ao gerir o sistema,
criar estabelecimentos de ensino, comprar móveis e materiais didáticos, custear o
deslocamento dos inspetores, nomear e pagar professores, assumindo o controle total
dos recursos econômicos e do plano político, visto que a contratação de pessoal estava
associada às alianças locais e regionais.
Aos municípios, cabia a construção e a manutenção de prédios escolares
(SCHUELER, 2010, p. 21, 29-30), admitindo-se a manutenção de escolas. Essa não foi
uma realidade de Maricá no início da República, exceto para as cidades de Bom Jardim,
Duas Barras, Iguassú, Nova Friburgo, Petrópolis, Resende e Santa Teresa. Conforme
pesquisa realizada, constatei a criação de 3 escolas municipais em Maricá no ano de
1914159 e, a partir da década de 1930160, as seguintes instituições municipais de ensino
primário: Barra, Caju, Silvado e Ponta Negra, com frequência média de 152 alunos
diariamente. Em 1944 161 , existiam as seguintes instituições: a Escola Municipal do
Silvado de 1° grau do ensino primário, anteriormente denominada de Escola Mista do
Silvado, e a Escola Mista do Cordeirinho.
A oferta do ensino primário, do curso normal e do ensino profissional ficava a
cargo dos estados, enquanto a União era responsável pelo ensino secundário e o ensino
superior. A possibilidade de expansão dos sistemas escolares para atuar em outros
níveis dependia da autorização do governo federal e deveria seguir seus padrões de
funcionamento. Entretanto, não havia articulação entre os níveis e as modalidades de
ensino do sistema educacional brasileiro, dificultada pela inexistência de um órgão na
administração pública responsável por essa tarefa centralizadora no contexto do regime
federativo adotado em nosso país e da existência das oligarquias. (NAGLE, 2009, p.
143).

158
Sessão da Liga Fluminense publicada em: O Paiz, Rio de Janeiro, p. 6, ano XXXIII, n. 11.856, 25 mar.
1917.
159
RIO DE JANEIRO (ESTADO). Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado do Rio de
Janeiro Dr. Francisco Chaves de Oliveira Botelho pelo Secretário Geral Dr. Horacio Magalhães Gomes,
de 31 de agosto de 1914. p. 86.
160
Aponto a necessidade de realização de pesquisas no que concerne à municipalização do ensino em
Maricá. Para ver mais: RIO DE JANEIRO (ESTADO). Exposição feita ao Chefe do Governo Provisório
da República Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, pelo Interventor Federal, Capitão de Corveta Ary Parreiras.
Niterói, RJ: 1934. p. 310-311.
161
Fundo Departamento de Educação (APERJ).

sumário 1221
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A transferência da oferta do ensino primário para as municipalidades foi


discutida como uma alternativa para diminuir os gastos e enfrentar a crise financeira
vivida pelo estado do Rio de Janeiro 162 . No entanto, um acordo entre as esferas
municipais e estadual firmava que as municipalidades que pudessem arcar com os
gastos da instrução também se responsabilizariam pela sua oferta.
Nos anos 1920, novas medidas foram realizadas na área da administração
escolar, tendo em vista o alcance dos objetivos pensados para a escola primária, como a
divisão dos estados em microrregiões para facilitar a atuação; a inspeção escolar voltada
para assistência técnica, mudando seu sentido de fiscalização; a promoção de concursos
para o preenchimento de cargos no magistério. Nesse período, o combate ao
analfabetismo, a reestruturação da administração escolar e a difusão do ensino primário
integral à população em idade escolar foram as principais preocupações do campo
educacional.
Pode-se verificar que a expansão dessa etapa do ensino se deu,
predominantemente, pelas escolas isoladas. Nesse sentido, percebe-se que os grupos
escolares163 não foram construídos em grande número por causa dos elevados gastos
para a sua edificação e para o seu funcionamento. No município de Maricá, esse quadro
não foi diferente ao analisarmos os dados abaixo:

Tabela 7: Número de Escolas no município de Maricá (1926)


Tipos de Escolas Total
Escolas de 1° grau 10
Escolas de 2° grau 01
Escolas subvencionadas diurnas 04
Grupo escolar e curso noturno 01
Total em funcionamento 16

Fontes: Relatório do Diretor de Instrução Pública (1927); Arquivo


Público do Estado do Rio de Janeiro: Fundo Departamento de
Educação, 2014. Organização da autora.

A partir da década de 1920, a luta contra o analfabetismo e a comemoração do


centenário da Independência do Brasil impulsionaram a abertura e a construção de
escolas no estado e, consequentemente, em Maricá, uma vez que acreditava-se que o

162
RIO DE JANEIRO (ESTADO). Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa do estado do Rio de
Janeiro em 10 de agosto de 1903 pelo presidente Quintino Bocayuva. p. 10-11.
163
Esse modelo escolar permaneceu no cenário nacional até o ano de 1970, conforme estudos de Schueler
e Magaldi (2009, p. 57).

sumário 1222
VII Seminário Vozes da Educação

progresso somente seria alcançado com a superação da “chaga do analfabetismo”. Em


1926, o município contava com 16 escolas de instrução primária, incluindo 4
instituições subvencionadas.
O projeto de escolarização de Maricá refletiu a concepção econômica do país em
relação à sua “vocação agrária”, tendo em vista o combate ao atraso agrícola por meio
da instrução, cujos ensinamentos se voltaram para o desenvolvimento de habilidades e
capacidades do educando.
A instrução da população rural permitiria a aquisição de saberes ligados à
produção agrícola (condições da terra e do clima, manuseio de instrumentos, métodos
de plantio e colheita), almejando a obtenção de melhores resultados.
As funções da escola primária nas zonas rurais consistiam na fixação de mão-de-
obra, na educação da população e na ruralização do ensino para a agricultura
desenvolver-se em bases sólidas. Logo, a criação de instituições viabilizava a
concretização desses objetivos. (DIAS, 2012, p. 71-72)
É importante considerar os significados atribuídos aos termos rural e urbano,
atentando para a desqualificação do modo de vida e dos valores da população do campo,
considerada arcaica e improdutiva, ao contrário dos residentes das cidades, que eram
caracterizados como modernos e civilizados.
A instrução pública era um serviço dispendioso e, por essa razão, os recursos
destinados pelas províncias eram insuficientes para efetivar a expansão do ensino
primário no Império. Vale ressaltar que a falta de continuidade das políticas públicas e o
curto período que os presidentes provinciais ficavam à frente de seus cargos
possibilitavam a emergência de inúmeros atos legais, que originavam diversas formas
de oferta da instrução. Entretanto, a descentralização do processo de escolarização
primária não foi impeditiva para o desenvolvimento de redes de escolas públicas,
privadas ou domésticas em várias províncias. Cabe destacar que, após a proclamação da
República, houve a persistência de práticas e continuidades de iniciativas provenientes
do Império, evidenciando que marcos temporais não significam rupturas ou mudanças
profundas na sociedade e no sistema escolar brasileiro.
Os programas das escolas rurais se diferenciavam das escolas urbanas devido à
concepção dos governantes de que as pessoas possuíam necessidades culturais e
econômicas distintas, refletindo-se na duração do curso e no tempo de duração das
aulas. Jorge Nagle (2009, p. 258) afirma que as diferenciações existentes entre as
escolas urbanas e rurais – horário, programa curricular, titulação exigida do professor –

sumário 1223
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

contribuíram para a manutenção da ordem social vigente, impedindo que os alunos


tivessem uma formação com maior qualidade, revelando discriminações com a
população rural e, indiretamente, um aspecto ruralista.
As diversas modalidades escolares implicaram em experiências e práticas de
escolarização distintas nas áreas urbanas e rurais, visto que os programas eram voltados
para os interesses da comunidade e do papel desempenhado na economia. Sendo assim,
para a população do campo eram ensinados saberes rudimentares para uso cotidiano. Já
para os moradores do centro urbano, o curso primário tinha seus conteúdos
aprofundados, possibilitando a atuação no comércio e nas escolas, o ingresso no ensino
secundário164 nas escolas de Niterói, àqueles pertencentes aos grupos privilegiados do
município.
A difusão do ensino primário esteve em consonância com a manutenção dos
interesses dos setores agrários e o projeto republicano, mas foi insuficiente para atender
a população em idade escolar existente. No entanto, o período em questão ampliou a
ideia de sistema escolar ao construir e abrir escolas, testar reformas e práticas
educativas.
As diversas legislações educacionais produzidas no período, nas esferas federal
e estadual, refletem as tentativas em expandir o ensino primário a toda a população em
meio às dificuldades financeiras, regionais e sociais, como parte de efetivação do
projeto republicano.
A finalidade do regime republicano era incutir no imaginário popular valores,
símbolos e mitos, influenciando a construção identitária, a criação de visões de mundo e
a padronização da conduta, fortalecendo a aceitação da nova organização política. Havia
diversas correntes em disputa na definição dos rumos do país (CARVALHO, 2014, p.
9-11). Neste contexto, a escola se apresentava como um instrumento para o alcance
destes objetivos.
Na revisão da literatura de História da Educação e na análise das fontes,
podemos observar diversas questões, como: o escasso número de vagas, a evasão, as
péssimas condições materiais das instituições, a falta de preparo dos professores, os
parcos investimentos, a exclusão, a hierarquização, a seletividade e os rituais
classificatórios. Contudo, essa pesquisa pretende compreender a “República que foi”,
descortinando as experiências em prol da educação primária maricaense.

164
O ensino secundário formal em Maricá inexistia durante a Primeira República.

sumário 1224
VII Seminário Vozes da Educação

Referências
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sumário 1225
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

SENSO COMUM E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS ESCOLAS

Ana Valéria Dias Pereira


UNIRIO/PMSG
anadiaspereira01@gmail.com

O presente texto é um ensaio sobre as reflexões que estamos realizando em


âmbito de tese de doutoramento em educação, no Programa de Pós-Graduação em
Educação do Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO). Neste ensaio nos dedicamos no esforço em analisar a “produção do
espaço” da cidade de São Gonçalo, que é lócus do desenvolvimento da referida
pesquisa. Pesquisa que se dedica na investigação sobre as disputas pelo “controle” do
currículo no terreno da escola organizada em ciclos, cuja prática pedagógica tem como
um dos instrumentos principais os livros distribuídos pelo Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD).
Para o exercício dessas reflexões realizamos um esforço em seguir os
procedimentos do método do materialismo histórico dialético, tomando por base nosso
entendimento sobre o “passo a passo” desenvolvido por Lefebvre (1991 e 2006) em seu
método nomeadamente de “regressivo/progressivo”. Seguindo esses procedimentos a
análise perpassa por três momentos: o percebido, o concebido e o vivido.
Dito isso, é importante destacar que as reflexões elaboradas nesse ensaio
limitaram-se na dedicação em contribuir com o delineamento do espaço do município
em questão (São Gonçalo), nos orientando da seguinte forma: 1) pela lógica da
“produção do espaço”, em Lefebvre (1991 e 2006); 2) pelos fundamentos da
organização da escola em ciclos, em Krug (2000); 3) pela máxima sobre a “ideologia
subjacente nos livros didáticos”, em Deiró (1979); 4) pelo entendimento sobre a
necessidade de contribuir com a desmistificação das estratégias impetradas pela classe
economicamente e politicamente dominante, para permanência da classe popular no
senso comum, tal como nos orienta Gramsci (2011), Frigotto (2005) e Torres Santomé
(2003).
Lefebvre (1991 e 2006) desenvolve uma longa teoria sobre a produção do
espaço em sua célebre obra com o título “A produção do espaço”. Nesse trabalho o

sumário 1226
VII Seminário Vozes da Educação

autor produz uma análise sobre a criação e desenvolvimento das cidades, por meio do
método regressivo/progressivo, também explicado em seu livro sobre a lógica formal e
a lógica dialética.
Deiró (1979), que realiza um profundo estudo sobre a presença da ideologia
dominante nos textos de livros didáticos de Português, desvenda como os conteúdos
dos livros pesquisados se orientam por formar um tipo de “habitus” nas crianças que
têm acesso aos mesmos. Para tanto, realiza suas análises a partir do conceito de
ideologia desenvolvido por, pelo menos, três autores: 1) o de Poulantzas (1971 e 1977),
separando-o em dois: a ideologia em geral e a ideologia da classe dominante na
sociedade capitalista (p, 21-26); 2) o de Althusser (1974), quando realiza uma análise
da escola como aparelho ideológico de estado; 3) e o de Bourdie e Passeron (1975),
quando explica a ação pedagógica como instrumento de inculcação da ideologia
dominante para formar um habitus na classe popular.

A ação pedagógica desenvolvida na escola obriga os alunos a interiorizarem


ensinamentos e princípios, de maneira contínua e metódica, formando neles
um habitus165, que permanece, mesmo quando cessa a ação pedagógica. Tais
ensinamentos e princípios, determinando esse habitus, geram práticas e
atitudes que favorecem o modelo econômico – político pela classe
dominante. (DEIRÓ, 1979, p, 27-28).

Enfim, nesse ensaio elaboramos reflexões da pesquisa em referência que possui


o objetivo maior de contribuir, pelo menos minimamente, com a formação política dos
professores e professoras da rede pública de educação do município em questão.

O “percebido”: cenário atual


Como mencionado nas primeiras linhas deste texto, tomamos por base o método
regressivo/progressivo (LEFEBVRE, 1991 e 2006) e prosseguimos com nossas
reflexões nos dedicando na descrição do “percebido” em relação ao cenário educacional
em âmbito nacional e, consequentemente, em âmbito local. Mas sem deixar de
mencionar as influências e orientações do modelo educacional desenhado por
organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, a
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, dentre outros (SHIROMA, et.al.,

165
O conceito de “habitus” utilizado pela autora é de Bourdieu e Passeron na obra “A Reprodução”. Os
grifos nas duas vezes em que a palavra aparece foram feitos por Deiró.

sumário 1227
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

2003) e, recentemente, as organizações internacionais por trás da Declaração de


Manhattan (Jornal GGN, 2019).
Para “início de conversa”, podemos dizer que, grosso modo, o Brasil de hoje se
encontra em um período conturbado, com aparência desorientada no que tange às
decisões em relação às estratégias tomadas, mas com objetivos bem definidos de
impedir o funcionamento da escola pública crítica e de qualidade para a classe popular
brasileira. A título de exemplificação dessas afirmações temos a criação de projetos
como o “Futura-se” para o Ensino Superior, e o apoio do governo federal para um
projeto criado em 2004 166 , conhecido como “escola sem partido” 167 . Ambos com
intenções declaradas de cerceamento da criação e autonomia da educação pública (e
privadas não destinadas à elite econômica e política) nos níveis Superior e Básico,
respectivamente.
Em relação aos colégios, universidades e institutos federais, o cenário ainda é
mais impactante quando testemunhamos, por exemplo, o bloqueio de verbas para o
ensino, a pesquisa e a extensão no chamado “contingenciamento” financeiro.
“Contingenciamento” esse que, com a resistência popular, aos poucos, tem sido
revogado e o dinheiro tem sido devolvido, ou anunciado que será devolvido, como
informado no último pronunciamento do Ministro da Educação, Abraham Weintraub,
em 18 de outubro do corrente ano de 2019, sobre a devolução de mais de 1 (um) bilhão
de reais para a educação pública168.
Diante desses fatos, que descrevem brevemente o cenário educacional nacional
contemporâneo, nos importa, no presente trabalho, o recorte sobre um programa que
pode ser uma das principais políticas públicas de educação que visam a tentativa de
controle do currículo e do trabalho docente na educação básica: o Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD), por meio de seus conteúdos manifestados e/ou ocultos.

166
Criado por um advogado olavista (“Olavista” é uma expressão dada aos seguidores de Olavo de
Carvalho. Um pseudofilósofo brasileiro, que vive nos Estados Unidos da América e que acredita que a
Terra seja plana. Para saber mais, clique em: https://www.uol.com.br/tilt/ultimas-
noticias/redacao/2019/01/09/o-que-a-ciencia-diz-sobre-a-terra-ser-o-centro-do-universo.htm - Acesso em
16/Out/2019.), Miguel Francisco Urbano Nagib.
167
Aqui o projeto é escrito em letras minúsculas porque corroboramos com o Professor Fernando Penna,
da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, quando nos fala sobre as distorções da
realidade e o alto grau de desinformação e preconceito, presentes nesse amontoado de escritos que forma
o referido projeto. Sobre esse assunto, ver Frigotto (org), 2017.
168
Ministro da Educação imita meme da internet após anúncio de desbloqueio de verba para
universidades. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/ministro-da-educacao-imita-meme-da-
internet-apos-anuncio-de-desbloqueio-de-verba-para-universidades-1-24027629 - Acesso em
19/Out/2019.

sumário 1228
VII Seminário Vozes da Educação

Controle esse que, em âmbito de Brasil, foi apresentado no trabalho magistral de


Deiró (1979), quando desenvolveu sua pesquisa sobre a “ideologia subjacente aos textos
didáticos” e, em âmbito internacional, nossa referência são as valorosíssimas obras
magistrais de Torres Santomé (2003, 2012 e 2017), que nos ajudam a compreender a
organização e interferências de projetos neoliberais em políticas públicas que disputam
o currículo escolar, por meio da organização dos conteúdos nos livros didáticos. Obras
que demonstram a existência de aspectos importantes da Teoria do Capital Humano
(TCH) e seus “fundamentos” teóricos, necessários para o projeto de manutenção da
educação popular na esfera do senso comum (FRIGOTTO, 2005).

A teoria do capital humano, fundada nos supostos neoclássicos – apologia da


sociedade burguesa – para manter-se terá de ser circular; ou seja, em vez de
ser a teoria instrumento de elevação do senso comum à coerência crítica, será
uma forma de preservar aquilo que é mistificador deste senso comum.
(FRIGOTTO, 2005, p.65)

O PNLD – Programa Nacional do Livro Didático - é um programa do governo


federal que, hoje, funciona regido pelo Decreto 9.099 de 18 de julho de 2017, mas que
existe, por meio de outros formatos, desde o ano de 1937169.
O referido programa abarca uma série de ações (como a avaliação dos conteúdos
de livros didáticos produzidos no país) que possuem o objetivo final, oficial, de
distribuir livros para todos os estudantes de todas as escolas públicas nacionais, além de
escolas que não possuem fins lucrativos170.

O Programa Nacional do Livro e do Material Didático - PNLD, executado no


âmbito do Ministério da Educação, será destinado a avaliar e a disponibilizar
obras didáticas, pedagógicas e literárias, entre outros materiais de apoio à
prática educativa, de forma sistemática, regular e gratuita, às escolas públicas
de educação básica das redes federal, estaduais, municipais e distrital e às
instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e
conveniadas com o Poder Público (BRASIL, 2017, Art. 1º).

Em São Gonçalo, uma das 92 (noventa e duas) cidades do Estado do Rio de


Janeiro, existe uma rede pública de educação municipal que, de acordo com o mapa
estatístico da Secretaria Municipal de Educação de julho de 2019, contava, entre a
Educação Infantil e o Ensino Fundamental (incluindo a modalidade de Educação de
169
Sobre o histórico oficial do Programa Nacional do Livro Didático ver:
http://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/legislacao/item/518-hist%C3%B3rico –
Acesso em 20/Jan/2019.
170
Para maiores informações sobre a estrutura do PNLD acessar:
https://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro – Acesso em 10/Out/2019.

sumário 1229
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Jovens e Adultos), com o número total de 44.039 (quarenta e quatro mil e trinta e nove)
alunos, distribuídos em 110 (cento e dez) Unidades Educacionais. Onde o Ensino
Fundamental é oferecido em 88 (oitenta e oito) unidades, fazendo jus, dessa maneira, de
“escolher e receber” os livros didáticos do PNLD.
São Gonçalo se caracteriza, majoritariamente, como um município de residência
de pessoas que pertencem à classe economicamente desfavorecida pela lógica do
sistema capitalista, sob a perspectiva neoliberal. Dito de outra forma, de acordo com
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2016, a
cidade possuía uma população de 1.049.826 (um milhão, quarenta e nove mil e
oitocentos e vinte e seis) pessoas. Sendo que, dessa população, apenas 129.689 (cento e
vinte nove mil seiscentos e oitenta e nove) pessoas encontravam-se ocupadas em termos
de trabalho. Isto é, apenas 12% do povo gonçalense.
Desses 12%, o instituto nos traz a informação de que os trabalhadores com
ocupações formais recebiam o salário médio mensal de pouco mais de dois salários
mínimos (2,1). Contudo, uma curiosidade é a de que, apesar desses dados o índice de
desenvolvimento humano do município foi considerado acima da média. Ou seja,
alto171. Consideração essa justificada pela longevidade da população gonçalense e pelo
número de escolas que, apesar de ser insuficiente, atende a população em um número
acima da média estipulada pelo índice.
Hoje, o município possui um governo vinculado ao Partido Cidadania, que é o
novo nome do Partido Popular Socialista (PPS), cuja mudança aprovada pelo Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) aconteceu recentemente. Mais precisamente no último dia 19
de setembro de 2019.
Sobre o partido do executivo municipal é importante destacar que, apesar do
nome que carregou até recentemente, os posicionamentos oficiais são regidos pela
agenda neoliberal e todos os 8 (oito) deputados federais votaram a favor da Reforma da
Previdência, que é um projeto antigo da direita brasileira 172 , junto com valores
relacionados à família tradicional, a vida dos cidadãos de bem e a liberdade individual.

171
“O Índice de Desenvolvimento Humano (IDHM) - São Gonçalo é 0,739, em 2010, o que situa esse
município na faixa de Desenvolvimento Humano Alto (IDHM entre 0,700 e 0,799). A dimensão que mais
contribui para o IDHM do município é Longevidade, com índice de 0,833, seguida de Renda, com índice
de 0,711, e de Educação, com índice de 0,681”. São Gonçalo. IN: Atlas do Desenvolvimento humano no
Brasil. Disponível em: http://atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/sao-goncalo_rj - Acesso em 23/Set/2019.
172
Para saber detalhes sobre essa votação, clique em https://exame.abril.com.br/economia/veja-como-os-
deputados-votaram-em-1o-turno-a-reforma-da-previdencia/ - Acesso em 11/Set/2019.

sumário 1230
VII Seminário Vozes da Educação

Valores apregoados na Declaração de Manhattan, investigada pelo site estadunidense


“OpenDemocracy” e recentemente divulgada no Brasil pelo Jornal GGN (2019):

Essa tríade de “vida, família e liberdade” foi consagrada na Declaração de


Manhattan, um manifesto escrito há quase uma década por ativistas
americanos da direita religiosa. Signatários incluindo líderes ortodoxos,
evangélicos e católicos comprometeram-se a agir em uníssono e
determinaram que “nenhum poder na Terra, seja cultural ou político, nos
intimidará para o silêncio ou a aquiescência” (JGGN, 2019, online).

O governo local possui propostas e agendas que compartilham com esses valores
e interesses, que também são os valores e interesses do atual governo federal, vinculado
ao PSL (Partido Social Liberal), declaradamente neoliberal, conservador e religioso.
Que defende a “religiosidade do Estado”, por meio da valorização das religiões cristãs,
destacando ramos da igreja evangélica neopentecostal.

O “concebido”: um pouco de história


Para o exercício de compor essa parte do “concebido” no método regressivo/
progressivo de Lefebvre (1991 e 2006), seguimos com algumas tarefas que compõem o
esforço em realizar uma breve historicização do que foi, sinteticamente, “percebido”
sobre o “Cenário atual” e, assim, termos alguma condição objetiva de realizar breves
reflexões sobre a estrutura que tem delineado a realidade educacional contemporânea no
“chão da escola” do país, mas, particularmente, das escolas da rede pública do
município de São Gonçalo.
Para início desse tópico é necessário destacar que os objetivos percebidos em
projetos como os mencionados “Futura-se” e “escola sem partido”, como os de
perturbar e impedir o funcionamento da escola pública crítica e de qualidade para a
classe popular brasileira (por meio do controle do currículo e da prática docente), são
objetivos antigos da elite brasileira e que se encontram presentes em toda história da
educação do país.
Contudo, a configuração desses objetivos na escola contemporânea é desenhado,
de forma mais incisiva, a partir da década de 1990 com a chamada “Reforma
Educacional”.
O ano de 1990 é emblemático por vários acontecimentos internacionais que
influenciaram a organização escolar ao redor do mundo. Um acontecimento que
antecedeu ao acirramento da força do capital sobre a organização mundial e,

sumário 1231
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

consequentemente, sobre organização da escola, foi a queda do muro de Berlim,


ocorrida em 1989, quando o mundo “deixou” de ser dividido em dois blocos
antagônicos (o comunismo e o capitalismo).
Esse evento mundial desencadeou uma série de ações dos capitalistas como, por
exemplo, a assinatura do “Consenso de Whashington”, na sede do FMI (Fundo
Monetário Internacional) e do Banco Mundial, em janeiro de 1990. Esse documento,
que estipulou medidas neoliberais a serem seguidas por países como o Brasil, foi
também o motivo principal para ações que visavam a adequação da escola às demandas
dos novos tempos.
Dentre as diferentes ações, como conferências e instalações de comissões
educativas, destacam-se as que culminaram em documentos conhecidos como a “Carta
de Jomtien” e o “Relatório Delors”. Ambos provenientes de eventos convocados por
organismos internacionais como o próprio FMI, o Banco Mundial, a OCDE
(Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), assim como a
UNESCO, dentre outros.
A “Carta”, fruto de uma “Conferência Mundial de Educação para Todos”,
ocorrida ainda no ano de 1990, na cidade da Tailândia que deu origem ao nome do
documento, descreve as primeiras diretrizes a serem observadas pelos países
signatários. E o “Relatório”, fruto de encontros da “Comissão Internacional para a
Educação do Século XXI”, coordenada pelo francês que deu nome ao documento
(Jacques Delors), durante os anos de 1993 e 1996, delineou de forma mais detalhada
como as políticas educacionais deveriam ser seguidas pelos países signatários, cujo
Brasil se encontrava como sendo um deles. (SHIROMA, et all, 2003).
Nas referidas diretrizes observamos orientações como a privatização do Ensino
Superior e a destinação da educação pública para atender às necessidades básicas do
educando. As chamadas NEBAS (Necessidades Básicas) que poderiam ser resumidas
nas chamadas necessidades de ler, escrever, interpretar o que o autor diz e realizar as
quatro operações matemáticas.
Diretrizes bem diferentes das que fundamentam a escola organizada em ciclos,
que possui como objetivo central de proposta curricular o respeito aos interesses do
educando e às necessidades da comunidade em que vive (KRUG, 2000), e não as
“necessidades básicas” (NEBAS) prescritas no referido Relatório Delors.
Entretanto, foram as NEBAS que vimos serem privilegiadas nas configurações
de políticas de avaliação externa, implementadas no país a partir dos anos de 1990, e

sumário 1232
VII Seminário Vozes da Educação

em políticas de reestruturação do Programa de distribuição de livros didáticos (PNLD)


que passa por um processo de avaliação, com a participação da UNESCO e com o
privilégio dado aos livros das disciplinas consideradas importantes para o Relatório
Delors (e outros documentos). A saber: Letras, Matemática e, posteriormente, um pouco
de Ciências.

[em 1993 e 1994] São definidos critérios para avaliação dos livros didáticos,
com a publicação “Definição de Critérios para Avaliação dos Livros
Didáticos” MEC/FAE/UNESCO. [e em 1995] de forma gradativa, volta a
universalização da distribuição do livro didático no ensino fundamental. Em
1995, são contempladas as disciplinas de matemática e língua portuguesa.
Em 1996, a de ciências e, em 1997, as de geografia e história (BRASIL,
2017).

É certo que em Paiva (2003) vimos que, historicamente, a classe


economicamente, e politicamente, dominante de uma determinada época, tende a se
preocupar mais em regular o trabalho docente e a organização escolar, com fins de
direcionar a educação popular para o âmbito do senso comum, somente em tempos de
crise do capital. Porém, também vimos que isso não inviabiliza o planejamento de
projetos que permanecem fora da crise e, tampouco, de suas práticas.
A título de exemplificação, destacamos uma publicação esclarecedora desse
modelo de medidas, que se encontrada na Revista Nº 56 da CEPAL (Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe), de 1994, onde numa entrevista fornecida
pelo italiano Guilhermo Labarca, encontramos, em breves palavras, sua preocupação
com o fato dos “professores não serem profissionais confiáveis para o projeto
neoliberal” e com sua afirmação de que era preciso “quebrar o monopólio do saber”
dos mesmos.
Com essa afirmação (e explicações posteriores) Labarca trouxe “à tona” a
discussão sobre um projeto de proletarização do trabalho docente, tirando dos
trabalhadores da educação o ato de planejar e de avaliar. Ou seja, transformando-os em
executores de tarefas, tal como o processo de industrialização proletarizou o trabalho
dos artesãos.
Em São Gonçalo, grosso modo, vimos a implementação de políticas de
avaliação externa seguindo, pelo menos desde os anos 2000, os parâmetros nacional e
estadual. Como foi o caso da adesão às provas do Saerj (Sistema de Avaliação do Rio
de Janeiro) e a inclusão de metas de criação de um Sistema de Avalição no Plano

sumário 1233
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Municipal de Educação (Lei Nº 056/2006, de 24 de agosto de 2006). Além da adesão ao


Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

Considerações para o futuro momento do “vivido”


Nessa etapa destinada às reflexões que conseguimos elaborar até aqui e que
farão parte do terceiro momento do método regressivo/ progressivo de Lefebvre (1991 e
2006): “o vivido”, destacamos que esse trabalho está em fase de produção e as
passagens registradas nele fazem parte de um ensaio, um exercício dos pensamentos que
elaboramos e colocamos à disposição para o debate e contribuições acadêmicas que
poderão surgir.
Também salientamos que foi realizado um levantamento bibliográfico e de teses
produzidas sobre a relação entre a organização da escola em ciclos escolares e os livros
didáticos, que são produzidos e avaliados por equipes que podem estar em consonância
com o ideário burguês de manter a educação popular no âmbito do senso comum e,
assim, dificultar o desenvolvimento de consciência de classe dessa camada da
população.
Outro ponto que também julgamos destaque é o de que estamos nos dedicando
na compreensão da realidade atual da organização da escola no munícipio de São
Gonçalo, assim como a sua história. E, dessa forma, pensamos em lograr êxito no
objetivo de alcançarmos condições objetivas para compreender a realidade educacional
vivida e contribuir, mesmo que minimamente, com a referida formação da consciência
de classe, por meio de contribuições com o projeto de formação política dos professores
da rede pública de educação, que tem sido organizado, dentro outros, por membros do
Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro.
Como se trata de um ensaio sobre reflexões que estão sendo realizadas, as
conclusões ainda não foram finalizadas, mas destacamos que: 1) nossas reflexões sobre
o conceito de senso comum são baseadas em Gramsci (2011), cujas abordagens estão
registradas tanto em seus “Cadernos do Cárcere” (11 e 13), como nas interpretações de
Crehan (2018); 2) que destacamos a obra de Frigotto (2005), porque traz reflexões
sobre a força da Teoria do Capital Humano (TCH) e sobre a importância de buscarmos
estratégias de superação do conhecimento pertencente ao estágio do senso comum, que
essa teoria busca sedimentar junto a classe popular.

sumário 1234
VII Seminário Vozes da Educação

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sumário 1235
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A EDUCAÇÃO INFANTIL EM TEMPO INTEGRAL: DIÁLOGOS COM


FAMÍLIAS DAS CAMADAS POPULARES EM UMA ESCOLA PÚBLICA NA
REGIÃO METROPOLITANA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Fabiana Nery de Lima Pessanha


UERJ FFP
pessanhafabi@gmail.com

Considerações Iniciais: As famílias como grupo social de direito à Educação


Infantil
Este artigo tem por objetivo apresentar e colocar em diálogo uma pesquisa
realizada no curso de mestrado em educação, que buscou, como objetivo principal,
investigar sentidos sobre o direito à Educação Infantil a partir de diálogos com famílias
das camadas populares. Particularmente, destacaremos o debate sobre a garantia do
direito à Educação Infantil em tempo integral como uma demanda que emergiu, dentre
outras, nos diálogos com as mães participantes da pesquisa.
Propomos uma reflexão sobre as famílias como grupo social de direito à
Educação Infantil como um princípio fundamental, inerente à própria evolução e
legitimação da infância e de suas famílias como sujeitos de direitos. Esse
reconhecimento possibilita fortalecer o planejamento e a implementação de políticas
públicas democráticas de Educação Infantil, preocupadas em atender às demandas dos
diferentes sujeitos a quem se destinam: as crianças, as famílias, a sociedade.
A Constituição Federal (CF) de 1988 prevê a educação como direito de todos e
dever do Estado e da família (art. 205), devendo, a família, a sociedade e o Estado,
oferecê-la com absoluta prioridade (art. 227). O Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), no parágrafo único do artigo 53, expressa que "é direito dos pais ou
responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das
propostas educacionais". Define também, no artigo 55, que "os pais ou responsáveis têm
a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino".
Na sequência, a LDB n. 9394/96, atualizada pela Lei n. 12.796/13, estabelece,
em seu artigo 6º, que é "dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças
na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade". No artigo 12, inciso VI,
define que "os estabelecimentos de ensino têm a incumbência de [...] articular-se com as

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VII Seminário Vozes da Educação

famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola",


assim como, de acordo com o inciso VII, de "informar pai e mãe, conviventes ou não
com seus filhos, e/ou, os responsáveis legais, sobre a frequência e rendimento dos
alunos, bem como, sobre a execução da proposta pedagógica da escola".
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), fixadas
pela Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE)/Câmara de Educação Básica
(CEB), n. 05/2009, asseguram, do ponto de vista pedagógico, a participação das
crianças e de suas famílias na elaboração de propostas pedagógicas que reafirmem a
condição cidadã da infância, corroborando com a atuação das famílias na construção da
identidade/proposta pedagógica das instituições, compreendendo a relação família-
criança-instituição como fundamental para o processo educativo.
Entretanto, apesar dos avanços legais apresentados, a relação entre família e
instituição, historicamente, parece permanecer em um contexto de conflitos e tensões.
Alguns estudiosos, como Varela e Alvarez-Uria (1992), Patto (1990), Rosemberg
(1995), dentre outros, se debruçaram sobre a compreensão das relações entre a escola e
as famílias, atribuindo a essas relações uma série de (des)encontros, desde as origens
históricas do surgimento da escola enquanto instituição burguesa, em princípios do
século XX (VARELA; ALVAREZ-URIA, 1992), até as transformações econômicas e
sociais ocorridas na década de 90, do mesmo século, no contexto do capitalismo e
acirradas pelo neoliberalismo (PATTO, 1990), (ROSEMBERG, 1995).
Varela e Alvarez-Uria (1992) afirmam que a escola, enquanto "maquinaria de
governo da infância" cumpre papeis sociais distintos de acordo com as diferentes
classes sociais a que serve. Historicamente, para as crianças das camadas populares, a
escolarização se tornou lugar de passagem obrigatória, onde a infância pobre passa a ser
submetida a tutelas caritativas, tendo de ser modelada e corrigida. Afirmam os autores
que "a infância necessitada foi, em seus princípios o resultado de um programa de
intervenção direta do governo; [onde] o poder político arrog[ou]-se todo o direito,
insertando a infância pobre no terreno do público (Idem, p. 75).
Os estudiosos apontam as origens da recém estreada família burguesa em
marcha entre as classes sociais elevadas que, atrelada aos valores da igreja, entra em
cena, juntamente com às origens da escola (VARELA; ALVAREZ-URIA, 1992, p. 72).
Historicamente, a família burguesa está assentada na definição de papéis sociais
atrelados, principalmente, aos valores econômicos e da moral cristã. Em paralelo, são
erigidas as ideias da promiscuidade, da desordem e da periculosidade atribuídas às

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

diferentes formas de organização e existência construídas pelas famílias das camadas


populares.
Patto (1990) nos fala sobre os desencontros entre as escolas, altamente
hierarquizadas, e as famílias pobres. A autora nos mostra os preconceitos expressos nas
teorias das diferenças individuais e da carência cultural, gestadas a partir dos anos 30,
até meados dos anos 70 (mas, em parte, ainda predominantes nos dias atuais), que
buscam justificar a ideologia sobre a incapacidade dos pobres de se ajustarem ao
sistema escolar. Na contramão dessa tendência, a pesquisadora se empenha em dar
visibilidade ao ponto de vista das famílias sobre a escolarização de seus filhos,
evidenciando uma certa "incapacidade crônica" (PATTO, 1990) do sistema escolar para
garantir o direito à educação às populações mais pobres.
Rosemberg (1995) nos fala sobre uma espécie de curva ascendente que tem
configurado a atuação compartilhada entre a família e os espaços públicos formais nos
modos de criação e educação dos filhos pequenos. Segundo a pesquisadora, a partir da
segunda metade do século XX, principalmente após a II Guerra Mundial, temos o
advento de um novo capítulo nas concepções epistêmicas e nas políticas públicas para a
educação da pequena infância que podemos chamar de "publicização da vida infantil"
(ROSEMBERG, 1995, p. 168), marcado por crescente universalização da educação da
criança pequena em contextos institucionais extradomésticos.
No Brasil, não muito diferente, essas mudanças emergem a partir das
modificações sociais nas relações de gênero, nas concepções sobre criança pequena, no
crescente número de famílias monoparentais e, principalmente, nos movimentos de
liberação da mulher - entre os anos 60 e 70 - com incentivo à participação destas no
mercado de trabalho. De acordo com a autora, as tendências e ambiguidades brasileiras
na história da educação das crianças pequenas se encontram

acrescidas pelas peculiaridades dos países pobres: a educação da criança


pequena fora de casa pode significar, também, uma forma de combate à
pobreza, na perspectiva do Estado; de salário complementar, na perspectiva
da família (idem, p. 176).

Contudo, a educação da criança de modo compartilhado entre a esfera privada -


a família -, e a esfera pública - os espaços institucionais -, tem sido "um modo de
'criação do filho' cada vez mais usual no Brasil", seja entre as famílias ricas, ou entre as
pobres, vivendo em regiões mais ou menos favorecidas (idem, p. 177).

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VII Seminário Vozes da Educação

Ressalvadas as questões trazidas até então, nossa proposta é apresentar as


contribuições de uma pesquisa realizada em diálogo com famílias das camadas
populares, pesquisa essa que nos apontou alguns (possíveis) sentidos sobre o direito à
Educação Infantil em um contexto educacional público de um município da região
metropolitana do estado do Rio de Janeiro. A pesquisa dialoga na busca por concepções
sobre direito à educação da infância na perspectiva de escuta às famílias das camadas
populares, com destaque para o atendimento à Educação Infantil em tempo integral.

A Educação Infantil em tempo integral: breves considerações


Dos últimos 30 anos pra cá, podemos destacar alguns instrumentos legais que
vêm consolidando os princípios da CF/88 no sentido de fortalecer a ampliação da oferta
do tempo educacional escolar. Depois de promulgada a Constituição de 1988, que
acena, ainda que não diretamente, para a educação em tempo integral, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) n. 9394/96, em seus art. 34 e 87,
reforça o princípio da ampliação do tempo escolar diário. O atual Plano Nacional de
Educação (PNE 2014 - 2024), em sua meta 6, apresenta a meta de oferecer educação em
tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo
menos, 25% dos(as) alunos(as) da Educação Básica do Brasil até o final da vigência do
plano.
Desde então, não somente a ascensão de dispositivos legais mas, também, o
aumento no número de publicações e pesquisas acadêmicas têm configurado a discussão
sobre a ampliação da jornada escolar, tema que vem sendo inserido, com cada vez mais
frequência, nas pautas das políticas para a educação, em abrangência nacional
(MAURÍCIO, 2015).
Como destaque, Maurício (2015) vêm alertando sobre o viés de "concepções
assistencialistas, sob formatos diversos, voltadas mais para a proteção social,
priorizando população e territórios em situação de vulnerabilidade social" (p. 98), que
insiste em rondar as políticas para a ampliação do tempo escolar, especialmente, na
Educação Infantil. Isso explicaria a utilização do Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) e do levantamento das famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família, por
exemplo, como critérios basilares das políticas públicas educacionais atuais para a
implementação da Educação Infantil em tempo integral.
No contexto da discussão sobre o direito ao ingresso e permanência das crianças
à Educação Infantil em tempo integral, fazemos lembrar alguns "paradoxos", conforme

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

afirma Aquino (2015, p.174), à compreensão da Educação Infantil como direito,


especialmente quando as políticas para o tempo integral necessitam superar um papel
compreendido, historicamente, como redutoras das desigualdades sociais.
Outro aspecto que tem sido evidenciado por pesquisadores, como Maurício
(2015) e Araújo (2015), é a questão dos recursos financeiros como um entrave para a
universalização da oferta do tempo integral, devido ao seu custo maior em relação ao
tempo parcial. Neste caso, a infraestrutura, os espaços físicos, a alimentação e o
quantitativo de profissionais que incide no aumento destes na relação adulto-criança,
são alguns dos principais fatores apresentados, sobretudo pelas Secretarias e Gestores
da Educação, como obstáculos para a ampliação da oferta do tempo integral na
Educação Infantil, como afirma Araújo (2015).
No que se refere aos dilemas e complexidades da Educação Infantil em tempo
integral, Aquino (2015) afirma que

[seus] princípios têm sido cada vez mais desprezados nas políticas [...] de
Educação Infantil; seja pela redução da jornada como estratégia de ampliação
de vagas (instituições de horário integral passam a funcionar em dois turnos,
duplicando as matrículas), seja pela redução de vagas paras as turmas de
creche, uma vez que estas demandam uma razão adulto/criança maior do que
as turmas de pré-escola (AQUINO, 2015, p. 163-164).

Contudo, na contramão das questões até aqui, brevemente apresentadas, o


sentido que desejamos enfatizar para a discussão sobre a oferta de Educação Infantil em
tempo integral é o de atendimento aos direitos das crianças e de suas famílias, bem
como, de uma política pública educacional de qualidade e como política social.

Assim, a Educação Infantil avança na consolidação de sua identidade como


primeira etapa da Educação Básica, preenchendo o tempo que se amplia com
proposta pedagógica integral, trazendo para a ampliação do tempo escolar um
caráter inovador (MAURÍCIO, 2015, p. 114).

Para que o atendimento à Educação Infantil em tempo integral se constitua,


efetivamente, como uma política pública, atrelada às necessidades não apenas das
crianças mas, de suas famílias, é necessário que essa demanda seja assumida e
reconhecida como uma demanda pública e social. Dada a realidade de desigualdade e
exclusão social, política e econômica, especialmente das famílias pertencentes aos
extratos mais pobres da população, se faz necessário que sejam identificadas e
assumidas as motivações para a legitimação do tempo integral na Educação Infantil

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VII Seminário Vozes da Educação

como direito civil, político e social, como forma de combate ao fantasma histórico do
assistencialismo.
Dentre as motivações para a oferta de Educação Infantil em tempo integral
elencadas na pesquisa que convidamos como referência para o presente artigo,
destacamos: a necessidade das mulheres por inserção no mercado de trabalho e de
proteção às crianças dos perigos das ruas - especialmente nas periferias das grandes
metrópoles. O reconhecimento dessas demandas potencializa uma expectativa
educacional e emancipatória para as políticas de Educação Infantil em tempo integral e
para seu reconhecimento legítimo como uma demanda de toda a sociedade com caráter,
efetivamente, democrático.
A fundamental compreensão de que a ampliação da jornada escolar deva ser
uma política pública de qualidade reforça a análise de que a mesma deve ser repensada
quanto as suas lógicas, formas de acolhimento e, mesmo, sua função social, podendo
incorporar, até mesmo, a compreensão da proteção social e da função da Educação
Infantil como um braço importante para uma educação pública de qualidade para a
pequena infância.
Mediante o exposto, optamos, no presente artigo, por dialogar com pesquisa
realizada recentemente, conforme veremos a seguir, com o objetivo de reforçarmos a
necessidade de planejamento e implementação de políticas democráticas de Educação
Infantil em tempo integral em interlocução, ou seja, em relação dialógica com as
demandas das famílias das camadas populares.

Movimentos da pesquisa
Nesta seção, trazemos as experiências da pesquisa realizada - de escuta às vozes
das famílias -, consideradas fundamentais na tentativa de compreender o que significa,
para elas, o direito à educação de seus filhos pequenos. Vale ressaltar que a temática
sobre a garantia da oferta de Educação Infantil em tempo integral, ora colocada em
debate, emergiu no contexto de diálogos com as mães sobre o que elas pensam e quais
são suas expectativas a partir do acesso dos filhos à Educação Infantil oferecida pelo
poder público municipal.
Sendo assim, se faz importante esclarecer que o tema sobre a Educação Infantil
em tempo integral, eleito como destaque neste artigo, emerge em meio a outros sentidos
compartilhados nos diálogos com as mães, como: reconhecimento da importância da
bidocência no trabalho com as crianças pequenas; o acesso à Educação Infantil como

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etapa importante para o início de uma trajetória escolar para as crianças das classes
populares; as lutas cotidianas das famílias classes populares pelo direito à educação,
dentre outros.
A pesquisa realizada teve, como um de seus principais objetivos, investigar
sentidos construídos por familiares de crianças das camadas populares sobre o direito à
educação de seus filhos, a partir de uma perspectiva dialógica tendo, na alteridade entre
os sujeitos em diálogo, seu principal elemento constitutivo.
A discussão do tema se colocou na perspectiva de escuta aos familiares das
crianças, cujo referencial teórico-metodológico se ancorou nas concepções de
metodologia qualitativa de investigação, apoiado na perspectiva dialógica da linguagem
proposta pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin (2014), para quem as relações de
linguagem estão inscritas nos modos pelos quais os sujeitos se organizam em sociedade.
Nesse contexto, ao tomar o direito à Educação Infantil como objeto de sentido, temos o
desafio de buscarmos compreendê-lo em uma perspectiva dialógica, ou seja, de modo
necessariamente relacionado aos diferentes lugares que os sujeitos ocupam na realidade
social.
A pesquisa foi realizada em um município localizado no leste metropolitano do
estado do Rio de Janeiro, tendo sido escolhida uma de suas escolas municipais que
atende a um grupo de crianças na Educação Infantil em tempo parcial. A turma do Pré II
- com crianças de 4 anos -, escolhida para a realização da pesquisa, apresentou um total
de 17 crianças matriculadas no ano de 2016, das quais, foi possível acesso a 12 de seus
familiares, dentre eles, 10 mães, um pai e uma avó.
Nesta seção dedicada à descrição da metodologia da pesquisa, após descritos
alguns elementos sobre a escola e sua inserção socioeconômica, apresentamos, a seguir,
informações sobre os sujeitos com os quais a pesquisa se lançou em diálogo.
A maioria dos familiares (74%), eram nascidos em municípios de várias regiões
do estado do Rio de Janeiro (norte, noroeste, serrana, região dos lagos e demais
municípios vizinhos da região metropolitana). Apenas (26%) era natural do município
onde foi realizada a pesquisa. Foi constatado também, que nenhuma das 17 crianças da
turma pesquisada era de naturalidade maricaense, sendo 92% nascidas nos municípios
vizinhos e, as demais, em outras regiões do estado.
Em relação à escolaridade, ao tempo da pesquisa, a maior parte dos familiares
possuía o Ensino Fundamental incompleto, sendo 55% dos pais e 42% das mães,
totalizando 97%. Pouco mais da metade dos pais das crianças, em torno de 56%,

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VII Seminário Vozes da Educação

encontrava-se na faixa etária entre 20 e 29 anos de idade. Em relação às mães, esse


quantitativo aumenta para 64%.
Farenzena e Luce (2014) afirmam que "as desigualdades na escolaridade e nas
condições de escolarização da população brasileira são uma das faces da desigualdade
social" (p. 201). As pesquisadoras recorrem aos estudos de Corbucci et al. (2009), sobre
os recortes da desigualdade na escolaridade dos brasileiros – os quais abrangem renda,
raça/etnia, sexo, pertencimento territorial (urbano/rural e região) –, e afirmam que

há segmentos da população cujos índices de escolaridade ou escolarização


são piores: aqueles que vivem em famílias com renda per capita mais baixa;
os pretos e pardos; os mais velhos; aqueles que vivem no meio rural; e
aqueles que vivem nas regiões norte e nordeste no Brasil (FARENZENA;
LUCE, 2014, p. 201).

A grande maioria dos familiares das crianças trabalhava na informalidade.


Apenas 1 mãe, 1 pai e 1 avô trabalhavam em emprego formal. Das 10 mães
entrevistadas, 09 se identificaram como "do lar", embora algumas tenham relatado
realizar variadas atividades para colaborar no orçamento financeiro de suas famílias.
92% da renda familiar girava em torno de 1 a 2 salários mínimos no valor, em 2016, de
R$ 880,00. As famílias possuíam, em média, 5 a 6 pessoas.
Em relação ao benefício do Programa Bolsa Família, política do governo
federal, das famílias participantes da pesquisa, 4 se apresentaram como beneficiárias e 7
não. O benefício foi citado com variação de R$ 65,00 a R$ 273,00 reais, pelas 4 mães
que se identificaram como cadastradas no programa. Dados disponíveis no site da Caixa
Econômica Federal173 indicam que, dentre as 13,9 milhões de famílias beneficiárias do
Programa, as mulheres administram 92% dos benefícios que são cadastrados,
preferencialmente, no nome das mães.
De acordo com essa estatística, na pesquisa realizada existem alguns relatos que
vão ao encontro das informações de que os gastos são realizados pelas mães de família,
em atendimento às necessidades de todos da casa, colaborando com o apertado orçamento
familiar. "E o que me ajuda também é o Bolsa Família que eu recebo. Aí, já tira um
pouco do sufoco." (Jessica Baessa, 2016, 24 anos). No caso de Jessica, mãe de uma
criança de 4 anos, o complemento do programa ajuda no pagamento das contas domésticas
mensais.

173
Fonte: http://www20.caixa.gov.br/.

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O Tempo Integral nas falas das mães174


No que se refere à Educação Infantil em tempo integral, identificamos algumas
questões nodais para a ampliação do tempo de atendimento ao direito à educação das
crianças pequenas e suas famílias. Nas falas das mães participantes da pesquisa, foi
possível perceber demandas que, nem sempre, são reconhecidas como legítimas pelos
agentes responsáveis pela promoção de políticas públicas educacionais. Dentre as
demandas identificadas, a necessidade de ingresso no mercado de trabalho foi a de
maior expressividade.
A seguir, trazemos partes dos diálogos com algumas mães, cuja identificação e
uso dos nomes deu-se em diálogo e acordo com as mesmas.
No que concerne à demanda por inserção no mercado de trabalho, o horário
escolar parcial é lamentado por algumas mães, que declaram necessidade do horário
integral. Terezinha, mãe de uma criança de 4 anos, fala sobre sua vida corrida e sobre
seus desafios para poder trabalhar,

Eu queria que fosse integral. É mesmo pela nossa vida que é corrida, né?
Trabalho, essas coisas pra gente que é difícil, entendeu? [...] pra eu trabalhar,
eu não tenho ninguém quase pra ficar com ela [com a filha]. Aí, quer dizer,
pra mim o horário integral seria ótimo! [...] Já dava tempo (Terezinha Lúcia
Vale, 2016, 39 anos).

Danieli se apresenta como uma mulher que realiza uma atividade com um
retorno financeiro para complementar a renda familiar, em paralelo aos afazeres
domésticos e à tarefa do cuidado dos filhos.

Sobra um tempo pra eu poder ajeitar as coisas em casa mais rápido, né?
Porque aí, ela [a filha] "tando" na escola [no turno da manhã] eu tô
despreocupada, que eu sei que ela tá na escola. Dá tempo de arrumar a casa,
limpar o quintal. Porque também eu fico em casa, mas eu "marco" pra fora.
Eu faço "ponto-cruz". Aí... cedo eu arrumo tudo pra, à tarde, eu ficar
desocupada, fazendo meus trabalhos. (Danieli Campos, 2016, 28 anos, grifo
nosso).

No relato seguinte, Alexandra fala sobre os benefícios da matrícula escolar de


seu filho, apesar de se tratar de uma escola de tempo parcial, para conciliar sua rotina de
trabalho como funcionária de uma confecção.

174
A fim de dirimir quaisquer dúvidas quanto às questões éticas no que se refere à identificação das
mães, cabe informar que a pesquisa foi desenvolvida mediante a autorização das mesmas para serem
citadas, incluindo autorizações assinadas por elas através de termos de livre consentimento esclarecido.

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VII Seminário Vozes da Educação

Ah, ficou bem pra mim. Mais fácil, né? A vida ficou mais fácil pra mim,
porque eu passo, deixo ele [o filho] aqui e vou pro serviço. Se não, eu ia ter
que ir lá em Inoã, deixar ele lá e ia ficar contra-mão pra mim (Alexandra de
Carvalho, 2016, 34 anos).

A partir das narrativas trazidas, é possível inferir que o acesso à Educação


Infantil, seja em tempo parcial, seja em tempo integral, colabora para o complemento da
renda familiar e para a emancipação econômica dessas mulheres. A necessidade de
trabalhar para suplementar a renda familiar é uma realidade vivenciada por elas o que
nos mostra que, em tempos atuais, tem sido bastante significativa a parcela de mulheres
que assumem, sozinhas, a criação dos filhos, assim como, tem sido cada vez mais
comum que as mulheres participem do orçamento financeiro de suas famílias.
De acordo com o jornal Folha de São Paulo 175 , algumas estatísticas já
confirmam que o número de lares providos por mulheres, inclusive aposentadas, é
maior do que por homens. Dados do IBGE de 2014 nos mostram que quase 40% dos
lares brasileiros possuem a mulher como referência da chefia da família. Na década
entre 2004 a 2014, segundo a mesma fonte, o número de lares providos por mulheres
aumentou em 67%. Esses dados nos dão indícios da movimentação do acesso e das
condições diferenciadas entre homens e mulheres no mercado de trabalho, nesse
período. Segundo a matéria, apesar do aumento do acesso e da formalização
profissional das mulheres, estas, ainda permanecem com rendimentos inferiores em
relação aos homens, com carga maior de trabalho nos afazeres domésticos, além de
maior número de afazeres relacionados aos filhos.
Sobre a necessidade das mulheres de ingresso no mercado de trabalho,
Farenzena e Luce (2014) afirmam que,

O movimento demográfico, embora não homogêneo – nem na perspectiva


territorial, nem na sua incidência entre diferentes grupos de renda –, afeta os
setores de política social, seja a participação relativa de cada setor, seja a
configuração de cada setor em função dos diferentes públicos que atendem.
[...] No setor da educação, entre outras influencias possíveis, a construção de
alternativas de políticas depara-se com pautas de atendimento de direitos e de
expectativas geradas por novos modos de sociabilidade e de trabalho, o que
pode ser ilustrado pela inserção da mulher na sociedade e no mercado de
trabalho, incidindo fortemente na demanda por creches ou por educação de
turno integral (p. 198-199).

Sandra inaugura o diálogo referindo-se à escola como um lugar seguro para


deixar sua filha, enquanto vai trabalhar:

175
Reportagem disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/. Acessado em: 23 de janeiro de 2017.

sumário 1245
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Olha, eu acho, primeiro que é um espaço seguro pra ela ficar nesse período.
Eu acho que deveria ser integral mas, como não é... Porque principalmente
pra gente que trabalha fora o horário integral é muito bom, né, pra criança
ficar. Porque a gente sabe que o período que a gente vai tá fora de casa,
trabalhando, a criança vai estar em um espaço seguro que é a escola. [...]
Entendeu? (Sandra Moraes, 2016, 35 anos).

Também associou a segurança da escola à presença de bons profissionais que


garantem a qualidade desse espaço, "[...] primeiro a gente pensa assim: Vou deixar meu
filho em um lugar que tem bons profissionais, né? Que são pessoas de confiança que a
gente pode deixar" (Sandra Moraes, 2016, 35 anos).
É possível reconhecer o esforço que Sandra, como uma mulher que "trabalha
fora", precisa fazer para poder trabalhar, uma vez que a escola atende sua filha em
horário parcial. Ela fala sobre duas experiências escolares distintas com sua filha, sendo
uma anterior, de horário integral, e a atual, de horário parcial:

[...] quando ela era mais novinha, ela estudava em outra escola[...]. Ela entrou
lá com 3(três) anos e lá era horário integral. Aí, depois que ela passou de
4(quatro) anos pra frente, passou a ser meio período. E isso até que me
dificultou um pouco, em matéria de ter que pagar uma pessoa e ter mais uma
despesa [...] pra poder ficar com ela o restante do horário. Era bom quando
era de de manhã, até "5" (cinco) horas, né? (Sandra Moraes, 2016, 35 anos).

E relata as manobras que precisava fazer, quando trabalhava em outro emprego:

Aí, eu pagava uma moça pra pegar minha filha lá na escola e ela ficava lá
pertinho, na casa dela. É uma moça que toma conta de criança já, há muito
tempo. [...] Essa rotina é um pouco desgastante. A gente tem que se virar.
Tem que trabalhar, tem que pagar alguém pra ficar depois do horário porque,
senão, não consegue trabalhar (Sandra Moraes, 2016, 35 anos).

Continuou o diálogo falando sobre o direito à Educação Infantil pública e sobre


o dever do Estado em garanti-la:

Porque... tem mães que têm dificuldade. Eu, por exemplo, eu vim pra cá, eu
tive dificuldade de botar minha filha em uma escola pública, até porque eu
vim em maio... Aí eu tive que "ralar" pra pagar uma escola de quatrocentos e
poucos reais. Eu pagava trezentos e pouco, porque eu chorei muito. Assim
mesmo, tinha que levar tudo, mais transporte escolar. Tive um pouco de
dificuldade porque minha remuneração não era o bastante ( Sandra Moraes,
2016, 35 anos).

sumário 1246
VII Seminário Vozes da Educação

Araújo (2015) nos ajuda a pensar alguns paradoxos que rondam o atendimento
ao direito à Educação Infantil, em tempo integral,

A ampliação do tempo de permanência das crianças nas instituições tem


inaugurado cenários ora contrastantes ao reconhecimento da educação
infantil como primeira etapa da educação básica, [...], ora como uma
alternativa, ainda que controversa, aos problemas que afetam não só as
crianças como sujeitos de direitos demandantes de políticas públicas
articuladas mas também as novas condições das famílias na sociedade
(ARAÚJO, 2015, p. 22).

A pesquisadora afirma que a ampliação do tempo integral, apesar de representar


uma via garantidora de acesso e consolidação do direito à Educação Infantil, também se
apresenta como um descompasso ao próprio reconhecimento desta como direito e como
primeira etapa da Educação Básica. Ao nos alertar sobre esses aspectos, Araújo (2015)
interroga algumas questões desconcertantes dessa realidade, principalmente, quando se
atribuem ao tempo integral na Educação Infantil "práticas clientelistas e uma
institucionalidade desconexa com as formas mais duradouras e sistêmicas de Educação
Infantil" (p. 23).
Do ponto de vista histórico, a pesquisadora afirma que os efeitos da tradição de
um modelo de "educação assistencialista" (KUHLMANN JUNIOR, 1998) na Educação
Infantil ainda insiste em se fazer presente nas concepções que embasam algumas
políticas e práticas atuais para esse segmento, nos colocando diante de um grande
desafio, o de fortalecer o reconhecimento das crianças e suas famílias como sujeitos de
direitos.
Contudo, em um quadro onde o atendimento à Educação Infantil em tempo
integral parece coadunar com "uma espécie de conforto social e uma significação
positiva à dinâmica societária" (ARAÚJO, 2015, p. 24), é possível ver avanços, haja
vista uma crescente inclusão desse tema nas agendas das políticas públicas atuais sobre
a garantia dos direitos das crianças pequenas e das demandas das famílias.

Considerações Finais
Dados os impasses e paradoxos presentes nas discussões sobre o direito à
educação da infância e de suas famílias, especialmente quando consideradas as famílias
das camadas populares e o tempo de educação integral, vimos nos propondo fortalecer o
reconhecimento das famílias, para além das crianças, como grupo de direito à Educação
Infantil.

sumário 1247
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Para tanto, provocamos a reflexão a partir de uma questão bastante viva,


presente nas falas das mães, que é a necessidade de inserção no mercado de trabalho.
Este fato nos coloca diante de uma realidade em que as políticas públicas para a oferta
de Educação Infantil precisam ser formuladas de modo a atender as demandas das
crianças e suas famílias.
Para além de garantir uma educação de qualidade em todos os seus aspectos -
espaço físico adequado, oferta de materiais apropriados e específicos, formação e
valorização profissional, estudos sobre concepções de infância e propostas pedagógicas,
etc - as políticas para o atendimento à Educação Infantil, em sua oferta, concepções e
práticas, devem ser pensadas de maneira democrática, em articulação com a(s)
comunidade(s) a ser(em) atendida(s).
Acrescentamos a importante consideração de que, garantir o direito das crianças
e de suas famílias a uma Educação Infantil de qualidade, nos desafia a pensar em nossa
realidade de desigualdade e exclusão social, característica do modo capitalista e
contemporâneo de organização social. Ainda, é preciso lembrar que o tempo integral
responde, com efeito, à demanda, sobretudo, das mulheres, para a sua inserção no
mercado de trabalho. E garante um lugar que se pretenda, além de educativo, também
seguro para as crianças.
Em síntese, cabe sublinhar nossa busca pelo reconhecimento de direitos e da
necessidade de políticas públicas específicas para a população mais pobre, tendo em
vista nossa realidade brasileira, muito comum, de profundas desigualdades sociais. Em
virtude disso, apresentamos demandas de políticas educacionais como um desafio
público que precisa, efetivamente, entrar para a agenda das políticas públicas,
sobretudo, no atual cenário econômico e político brasileiro de aumento estrutural do
desemprego e pauperização crescente das famílias que vivem nas periferias urbanas e
favelas do estado do Rio de janeiro.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 1250
VII Seminário Vozes da Educação

VOZES DO POVO: A IMPRENSA POPULAR E OS SENTIDOS ATRIBUÍDOS


A EDUCAÇÃO PARA OS TRABALHADORES NAS PRIMEIRAS DÉCADAS
DO SÉCULO XX NO RIO DE JANEIRO

Renata Rodrigues Chagas Pessoa


UERJ FFP
renata_rodrigues_chagas@hotmail.com

Introdução
O presente artigo é fruto de um trabalho de pesquisa iniciado há alguns anos
com o interesse voltado para a instrução popular e que ganha novo ânimo com o
ingresso no doutorado176.
Diante de uma sociedade em que os “Donos do Rio” (Barbosa, 2000),
constituídos por representantes dos grupos de camadas mais abastadas, procuravam
ditar normas, difundir opiniões e manipular frente aos interesses de grupos específicos
de poder, encontramos a publicação de vários jornais por trabalhadores que representam
outras expressões, interesses e reivindicações. Desta forma, percebemos experiências
populares que desafiaram as grandes máquinas estatais e deixaram marcas de suas
multiplicidades, partilhando do desejo em comum, o aspecto de expressar suas vozes,
lugares de fala que demonstraram concepções, aspirações e interesses, constituidoras de
memórias. Atuaram na composição de pautas que refletiram suas demandas e
constituíram agendas que expressaram uma série de lutas por direitos, dentre eles,
iniciativas educacionais. Participaram de processos históricos, com enfrentamentos,
forte resistência, no espaço de entraves e tensões sociais que foram observadas muitas
vezes, evidenciando tentativas de sufocamento, opressão e asfixia por parte de uma
burocracia oficial que objetivava manter o domínio das relações de poder. Numa
sociedade em que os valores democráticos de fato possuíam pouca expressividade,
frente a modelos que tentavam se legitimar, baseado na acentuação das desigualdades,
travaram debates e elaboraram propostas por uma educação de perspectiva mais ampla e
integral nos jornais analisados.

176
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação - Processos Formativos e
Desigualdades Sociais – UERJ/FFP. Professora de Educação Infantil da Prefeitura do Rio de Janeiro.

sumário 1251
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Na contramão de narrativas que desvalorizam ou diminuem as produções dos


trabalhadores no campo da construção de suas histórias, a história social da imprensa
não só confere legitimidade, como amplia caminhos ao possibilitar observar as
elaborações desses atores sociais, bem como suas redes de sociabilidade e ações
coletivas que ressignificam arcaicos e equivocados modos de interpretações. Deste
modo, percebemos trabalhadores desenvolverem suas estratégias de lutas,
reivindicações por direitos associados às condições de trabalho, e às condições ao
acesso a uma instrução capaz de promover a libertação de pensamento,
problematizadora de situações de explorações por eles vividas, a fim de transformar
essa realidade e traçar novos rumos e possibilidades aos seus filhos. Não são raros os
discursos que clamaram pela necessidade da instrução como instrumento para
problematizar as condições de trabalho em que estavam submetidos. Assim como
também não é exceção, a menção em relação à perspectiva de romper com ciclos
viciosos, estes por sua vez para atender aos interesses de grupos proprietários, de logo
encaminhar para as fábricas crianças em tenra idade. Despertou a atenção o cuidado e
debates combativos as situações vivenciadas por crianças, que logo cedo eram
destinadas a acompanhar os adultos no trabalho e a privação de toda uma vida que isso
causava. Todas essas questões saltam aos olhos na imprensa produzida por
trabalhadores, no sentido de nos mostrar como, não apenas elaboravam as múltiplas
experiências, mas como também questionavam, a fim de pensar e gerar estratégias em
prol de efetivas transformações.

Caminhos
O trabalho propõe percorrer caminhos em prol da educação realizados por
trabalhadores, no sentido de tocar em temáticas que nos mostram a pluralidade, nuances
e matizes existentes no processo histórico que faz parte da história da educação no
Brasil, nos quais os diferentes agentes históricos assumem funções que fogem de
rotulações e visões que muitas vezes os enquadram a personagens meramente
ilustrativos na história. Acreditamos que estes percursos possam contribuir no sentido
de ampliar as visões a respeito das agências dos múltiplos atores sociais e nos permitirá
perceber melhor a complexidade dos projetos e lutas sociais e políticas em disputa em
torno da educação popular (Martinez, 1997).
As questões que orientam o presente artigo tomam como base uma linha
historiográfica que contempla os diversos projetos, tensões, e a pluralidade e

sumário 1252
VII Seminário Vozes da Educação

multiplicidade dos agentes históricos que nos revelam a diversidade de formas de


educação no processo histórico. Sob esta perspectiva, ressaltamos a agência dos
múltiplos atores sociais nos processos educativos, bem como seus interesses na
dinâmica em discutir e promover o ensino para os filhos de trabalhadores e para si
mesmos, adultos pertencentes às camadas populares que não tiveram acesso ao ensino
na infância e juventude. Ainda que não sejamos capazes de conhecer a totalidade dessas
experiências, sabemos que podemos trilhar caminhos que permitem observar os rumos
tomados, as intencionalidades pensadas e as práticas promovidas por diferentes
trabalhadores em prol da instrução. Cabe recuperar algumas experiências
implementadas por parte dessa camada da população, mantendo o olhar voltado para as
práticas educativas por eles fomentadas.
Ao buscar como estes trabalhadores se organizavam, observamos em geral a
defesa de uma concepção de educação e seus anseios, por meio de fontes produzidas
pelos próprios trabalhadores como jornais produzidos por diferentes categorias de
operários e por suas associações. Outra justificativa para a escolha desses títulos é o fato
de eles estarem disponíveis para consulta online na Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional. A hemeroteca digital possibilitou o desenvolvimento da pesquisa, não só
porque permite o acesso remoto –instrumento fundamental considerando a necessidade
de conciliar a pesquisa com o trabalho como docente – mas, também, porque permitiu
cruzar títulos diferentes e ampliar o recorte cronológico. Temos na hemeroteca digital
um importante instrumento de pesquisa, aliado e associado a outros arquivos, na medida
em que dispomos de consulta e leitura da integra dos documentos por meio do acesso
digital no site da biblioteca. A pesquisa no acervo digital conta com recursos de busca
através de palavras-chave a respeito do tema estudado.
O jornal foi utilizado nesta pesquisa não apenas como fonte de informações
sobre como trabalhadores entendiam a educação, mas também como um instrumento de
ação e coesão dos mesmos ao considerarmos as especificidades do jornalismo
desenvolvido pelos trabalhadores, os pensamentos e os anseios contidos nos conteúdos
construídos por trabalhadores. Os jornais nos possibilitam analisar o modo como
aqueles trabalhadores viam a sociedade na qual atuavam e as aspirações que orientavam
tanto suas ideias quanto as suas práticas.
O trabalho em desenvolvimento consiste em analisar iniciativas de trabalhadores
no campo educacional, na cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século
XX, acompanhando a atuação destes grupos sociais por meio de periódicos. É

sumário 1253
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

importante ressaltar que estes movimentos em prol da instrução popular não se


restringiam a criação de aulas, escolas e bibliotecas. O debate incluía outras pautas,
ideias, práticas educativas vinculadas, muitas vezes, às associações pelas quais diversos
trabalhadores circulavam. Assim, procura-se identificar e analisar algumas iniciativas
por parte dos trabalhadores em prol da educação, com base no conceito de experiência
desenvolvido pelo historiador inglês Edward Palmer Thompson. Para tal, buscamos
avaliar se e como trabalhadores elaboraram novas significações a partir das ações
coletivas voltadas para a instrução, de acordo com as experiências vividas e construídas
pelos agentes históricos no Rio de Janeiro no início do século XX.

As múltiplas vozes dos trabalhadores


Os apontamentos iniciais e as primeiras investigações buscam ajudar acerca do
entendimento das múltiplas iniciativas de trabalhadores, no sentido de refletir sobre as
respectivas dinâmicas nos mundos do trabalho e a articulação com a cultura letrada.
As primeiras décadas do século XX trouxeram à tona uma série de movimentos
inspirados e influenciados numa concepção de trabalho e educação, calcados em valores
que desejavam construir caminhos mais igualitários e justos, frente aos diferentes
grupos sociais que constituíam a sociedade. Diante da multiplicidade observada,
podemos ver grupos sociais diversos debatendo e agindo sobre a criação de escolas e
bibliotecas no Rio de Janeiro em um cenário de profundas transformações. A pesquisa
também nos leva a refletir sobre o cuidado de nos precaver contra a tentação de
considerar que havia apenas uma única concepção de educação. Ao contrário, o contato
com os pequenos jornais publicados no Rio de Janeiro nos permite analisar que havia
nas primeiras décadas do século XX debates e discussões, em diferentes periódicos,
realizados por múltiplos atores sociais, voltados para a problematização e
questionamento da instrução aos moldes do sistema tradicional que vinha se
constituindo. Para além de severas críticas ao modelo que era visto como desarticulado
com a vida propriamente dita, distante da experiência e da prática existente no
cotidiano, vemos análises e apontamentos que levantaram outras possibilidades para
uma formação integral e crítica.
Diante de vários projetos em disputa no processo da República, podemos
perceber diversos movimentos, interesses e agências. Para tal, observamos também uma
expressiva mobilização e organização coletiva de classe desde final do século XIX,
dinâmica esta que se estende por toda a Primeira República (Batalha, 2000). Tendo em

sumário 1254
VII Seminário Vozes da Educação

vista os projetos em disputa, diversos grupos sociais com interesses específicos sobre a
educação, num contexto de formação de Estado e Nação (Gondra e Schueler, 2008), o
presente trabalho volta-se para as vozes, interesses e pautas dos trabalhadores
envolvidos em movimentos e ações diversas em prol da instrução popular.
Ainda que tenhamos em mente que ganhava relevância o modelo de instrução
pública difundido pelo estado, com interesses bem específicos voltados para a ordem e
progresso, para organização e controle social, assim como era forte a iniciativa privada
na manutenção de escolas e definição das políticas educacionais, temos a pretensão de
partir dos movimentos por parte dos trabalhadores e para tal, observar os anseios,
concepções e iniciativas movidas por eles referente à instrução.
Ao percorrer os periódicos, podemos observar redes de sociabilidade em que
personagens como Fabio Luz, Octavio Brandão – intelectuais e lideranças entre
trabalhadores que se destacaram na imprensa popular – mas também outros professores
e pensadores, concernentes a grupos com formação intelectual e grau de instrução
formal variado e nem sempre elevado, ajudaram a compor os cenários plurais nos quais
nos debruçamos, argumentando em prol de escolas com uma concepção de educação
que visou abalar as estruturas da concepção de ensino tradicional que se constituía:

União dos Alfaiates


Assemblea realizada em 15 do corrente
(...)
O expediente constava de um officio do Syndicato dos T. Graphicos, que foi
tomado em consideração. Em seguida o companheiro thezoureiro procedeu á
leitura do balancete de deixou bôa impressão.
Em ordem do dia foi dada a palavra aos delegados junto a Federação que nos
informaram do andamento da mesma.
A seguir o secretario faz ver a assemblea que alguns camaradas pretendem
organisar uma escola para instruir ostrabalhadores, e por esse motivo pede a
todos os que são analphabetos e que se queiram instruir, para virem na
secretaria dar os seusnomes, afim de se saber o numero que dezejam
matricular-se. Em assumptos geraes falaram diversos camaradas sendo
encerrada a sessão ás 10 e 12 horas. – O Secretario. (União dos Alfaiates. Voz
do Povo, Rio de Janeiro, Ano I, Edição 282, 17 de novembro de 1920, p. 2.)

A publicação acima exemplifica uma série de notas e relatos publicados no


jornal Voz do Povo, com caráter de descrever a pauta de inúmeros assuntos debatidos
em assembleias e reuniões de associações diversas. A nota assinada pelo secretário da
União dos Alfaiates, ainda que não destaque o nome, informa aos “camaradas” a
pretensão de organizar uma escola para alfabetização dos trabalhadores que não tiveram
acesso a este direito. Para isso, convidou os “analfabetos e que se queiram instruir” a se

sumário 1255
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

identificarem na secretaria. O conteúdo ainda sugere um diálogo entre estas


organizações de diferentes ofícios com a informação de que um “camarada da
panificação marítima que veio relatar a nossa classe, as violências de que foi vítima
durante os dias em que esteve prezo”.
No texto podemos perceber os registros a esses “camaradas”, comumente
citados nos periódicos, corroborando com a noção de que trabalhadores de diferentes
especialidades, não só colocavam a instrução em seus discursos, como também se
mobilizavam para a execução das mesmas. Mobilizações semelhantes podem ser vistas
em inúmeras edições de periódicos como o jornal Voz do Povo, em diferentes colunas e
notícias, que trazem com frequência notas sobre a necessidade de criação de escolas.
Podemos observar, ao acompanhar o cenário do Rio de Janeiro neste contexto,
como se delineava um espaço composto por lutas sociais, num tempo em que também
passava por profundas transformações. A pesquisadora Lúcia Silva (1999) analisa as
intensas transformações no espaço urbano e a multiplicidade dos processos sociais em
curso, e salienta as diferentes experiências na cidade. É interessante acompanhar o
olhar, ao se debruçar sobre o cenário carioca e a multiplicidade das tramas sociais ali
engendradas, referentes aos agentes históricos que se articulavam envolvendo diferentes
dinâmicas. Pensar que em meio a toda aquela agitação, as movimentações pelas ruas, as
diferenças e contradições que envolviam exclusões espaciais e sociais, por um lado
profundas, por outro, rasas, encontramos nessas relações as reivindicações de
trabalhadores para a instrução. É fundamental pensar como neste espaço e tempo
mutáveis, os atores sociais estavam articulando formas de resistência, sobrevivência,
negociações, rearranjos e valores culturais. Deste modo, aliado a essas profundas
situações que marcaram este início do século XX, pensamos nas experiências por parte
desses trabalhadores no sentido de pensar e promover a instrução e quais concepções de
educação levantavam.
A pesquisadora Ana Luiza Costa (2012) contribui de forma significativa ao se
debruçar sobre estas questões a partir de um mapeamento a respeito de iniciativas de
trabalhadores para criar suas próprias aulas noturnas, evidenciando a agência das classes
populares no processo da instrução.Ela nos mostra os movimentos educacionais por
meio das aulas noturnas para trabalhadores no Rio de Janeiro durante o século XIX,
evidenciando a importância das lutas das camadas populares no Império. A autora nos
elucida acerca das experiências educacionais pensadas e praticadas por estes grupos
sociais, nos permite refletir sobre o movimento feito por eles próprios no processo de

sumário 1256
VII Seminário Vozes da Educação

instrução, um dinamismo que mostra a atuação e envolvimento não somente no fato de


receber a instrução, mas no processo de luta e busca por uma educação que considerasse
suas múltiplas experiências. Seja pelas associações educacionais, e pela imprensa,
dentre outras fontes, é possível perceber como as demandas pela educação são
discutidas e pleiteadas. Vemos representações de educação e, esta, por sua vez, não
apenas é reivindicada, mas também reconhecida como direito por distintos movimentos
populares nos mais diversos espaços. Ainda que seja perceptível a grande preocupação
de um modelo de educação destinado às camadas populares, com objetivos de controle
e ordem da sociedade que se desejava constituir, temos a possibilidade de ampliação da
discussão das representações, apropriações e ressignificações da instrução popular,
diante das experiências dos trabalhadores e grupos sociais pertencentes às camadas
populares.
A obra de Ana Luiza Costa analisou estatutos de associações, imprensa operária
e abaixo-assinados que reivindicavam aberturas ou reaberturas de escolas. O trabalho da
autora, que conta como uma importante base ao compor análises a respeito de práticas
das classes trabalhadoras em prol da instrução, é um instrumento fundamental para
lançar mão a outras questões referentes a estas atuações desses grupos sociais.
A complexidade dos trabalhadores se mostra na diversidade de suas
especificações e representa a multiplicidade dos agentes históricos. Imigrantes,
trabalhadores agrícolas e do centro urbano nos mostram um cenário plural e com
práticas sociais diversas. Múltiplos ofícios e, consequentemente, movimentos e
dinâmicas se fizeram presentes no contexto de redefinição e reconfigurações no mundo
do trabalho:

Heterogêneos em termos étnicos, culturais e nas suas formas de inserção no


mundo do trabalho, os trabalhadores cariocas viviam às voltas com um
mercado de trabalho competitivo e disputado, que mantinha desempregados
ou subempregados 50% da população economicamente ativa no final dos
anos 1880,enfrentavam longas jornadas e baixos salários, além de terem que
lidar com a rigidez de normas e regulamentos no trabalho em oficinas e
fábricas que visavam cercear sua liberdade de ação e organização (MACIEL,
2012, 417-418).

Este cenário, que vai se delineando no último quartel do século XIX, pode ser
visto inclusive na virada do século e anos iniciais do século XX, fomentando na
pluralidade dos trabalhadores o anseio por maior organização, a fim de que suas causas

sumário 1257
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pudessem ganhar corpo e forma por meio de conquistas de seus direitos para suas
respectivas classes.
Agendas articuladas pela luta por direitos compõem uma série de formação de
grupos de trabalhadores. Sob esta perspectiva, vemos a organização de estivadores,
marmoristas, padeiros, tecelões, dentre outros, que almejam por condições de trabalho
mais justas. Não obstante, a educação aparece como pauta, seja ela formal por meio de
escolas, mas também com caráter mais informal nos mais variados espaços educativos.
Bibliotecas, associações literárias, conferências, teatro e outros diferentes espaços de
sociabilidade que ressaltam representações de discursos a respeito da instrução popular,
discursos estes fomentados pelos trabalhadores. Deste modo, ampliam as possibilidades
de nossos olhares, no sentido de voltarmos para propostas educacionais pensadas e
articuladas por trabalhadores.
O grande desafio se faz em construir uma narrativa que procure contemplar os
anseios e debates de práticas educativas, pelo viés da perspectiva dos trabalhadores.
Nesse sentido, o olhar lançado volta-se para iniciativas que envolvem práticas da cultura
letrada pela chave da dinâmica e do ponto de vista dos trabalhadores. Associados a estas
análises estão diversos aspectos relacionados a dificuldade de articulação, questões
financeiras, falta de verbas, dentre outras características que levam a desarticulação dos
trabalhadores em prol de iniciativas em benefício da instrução popular. No entanto, o
acesso à imprensa popular, sem que desconsideremos os grandes desafios atrelados aos
caminhos do pensamento até efetivamente as ações, das continuidades,
descontinuidades e rupturas, encaradas como barreiras reais e existentes, deixa um
recado à história da educação brasileira: em meio a uma instrução popular pensada pelas
elites dirigentes e grupos pertencentes ao Estado, havia processos em disputa, pensado e
gerido por múltiplos trabalhadores, com diferentes propostas, condições e distinto poder
de atuação, frente às suas demandas.
Em muitas publicações podemos perceber seleções de textos com conteúdos que
abordavam a necessidade de acesso a uma instrução que pudesse promover a
emancipação dos trabalhadores que viviam em condições de trabalho marcadamente
excludentes e exploratórias. Havia a preocupação em escrever para gerar a inquietação,
reflexão das situações postas, a fim de problematizar o modo como viviam. Sob esta
perspectiva, vale ressaltar que os jornais exerciam muito mais do que a função de
difundir e propagar a causa operária, considerando que o acesso à instrução compunha
uma dessas causas. Também fazia parte das análises no periódico a instrução necessária

sumário 1258
VII Seminário Vozes da Educação

à reflexão para perceber as condições impostas e a estrutura hierarquizante, que


destinava aos filhos de trabalhadores e as camadas populares uma instrução diferente
em relação aos grupos pertencentes às elites. Em diferentes textos e jornais, pôde-se
observar o descontentamento e insatisfação ao que era pensado por essas elites para a
manutenção de seus privilégios. Vemos publicações que demonstram reivindicações
traduzidas por meio de questionamentos frente a estas diferenças da instrução ofertada.
Jornais que nos permitem refletir sobre a multiplicidade de ofícios que
compunham uma rede de trocas, experiências, compostas também por uma diversidade
de agentes históricos. Percebemos aqueles que batalhavam pela causa do coletivo,
aqueles que viam a necessidade da luta, que defendiam a existência e manutenção do
jornal como veículo de comunicação, propagação, difusão e luta, e esses que
condenavam outros com valores pendentes e os ausentes nos centros de reuniões e
organização de diferentes movimentos. O contato com estes periódicos possibilita
confrontar suas posições e argumentos com os jornais da grande imprensa, de valores
burgueses, ao ampliar a possibilidade de olhar no que se refere às tensões sociais. Nessa
chave, podemos perceber o perfil identitário atribuído a estes periódicos caracterizados
em muitos subtítulos.
Os jornais analisados, assim como as obras consultadas, nos permitem observar
como eram diversas as associações operárias. O periódico Voz do Povo: Órgão da
Federação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro e do proletariado em geral (1920),
mesmo com sua existência efêmera, deixou registros que permitem ao pesquisador
refletir sobre a complexidade e multiplicidade dos diferentes trabalhadores e seus
ofícios. Nas mais diversas publicações do periódico, encontramos uma gama que
evidencia ofícios e atribuições distintos e representam a união, acordos, negociações e
aspirações que compõem a construção de classes trabalhadoras no bojo da redefinição
das relações de trabalho.
A edição nº 80 do Voz do Povo abordou as discussões no interior do 3º
Congresso Operário do Brasil e dentre as aspirações e pautas colocadas, mencionou a
Resolução sobre o tema Educação e Instrução que pleiteava a criação de escolas
operárias nas dependências dos sindicatos como medidas possíveis, não constituindo,
assim, “de maneira alguma um embaraço a ação especifica de resistência”. (Voz do
Povo. Rio de Janeiro, Terça-feira, 27 de abril de 1920, p. 1.)
Em maio o mesmo jornal publicou texto intitulado “Alliança dos Trabalhadores
em Marcenarias” e chamou a atenção para a falta de instrução nesses locais de trabalho,

sumário 1259
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

o que “cada dia mais faz sentir a necessidade de escolas sustentadas pelos syndicatos”.
(Alliança dos Trabalhadores em Marcenarias”. Voz do Povo, Rio de Janeiro, edição 107,
Quarta-feira, 26 de maio de 1920, p.3.)
O jornal dava publicidade aos debates no interior da associação dos marceneiros,
criada em 1919, que sinalizavam para a necessidade da instrução como forma de seus
trabalhadores reivindicarem direitos trabalhistas como as horas de trabalho e refletir
sobre as condições impostas pelos patrões. E foram além, avaliando as condições do
ensino na capital federal e fazendo uma crítica à nomeação para os cargos de confiança
a cada governo e as mudanças com a troca dos mesmos: “O atraso em que se acha o
ensino primario no Distrito Federal é devido exclusivamente a essa anomalia: a de
escolher-se para o dirigir individuos que jamais se dedicaram as questões
pedagógicas”.(Voz do Povo, Rio de Janeiro, edição 121, Quarta-feira, 9 de junho de
1920, p. 1.)
Um texto sem assinatura intitulada “Um problema a resolver: Educação e
Ensino” publicadono Voz do Povo discutia os desafios, dificuldades e perspectivas
referentes à educação moderna, na perspectiva de teóricos anarquistas. Pode-se perceber
uma perspectiva que contempla a educação a partir da experiência, uma instrução que
visa promover a autonomia e o pensamento crítico para a leitura de mundo:

A palavra educação já não significa abdicação da vontade da criança perante


a vontade soberana do superior. Já não significa uma summula de preceitos
de delicadeza cobrindo hipocritamente uma alma egoista ou revoltada, numa
imposição que não deixa sequer ao raciocinio a occasião de se manifestar. A
educação já não é a imposição de ideas e sentimentos feitos que a almasinha
ingenua da criança tem de aceitar como verdades intangiveis; como dogmas
indiscutiveis duma gravidade perfeitamente ritual.
“A instrucção já não é, para os modernos pedagogos, a absorção pela
memória de conhecimentos abstratos, de datas sem significação moral, de
factos truncados escapandoao cerebro de criança que os não pode
comprehender. (...) Não! Instruir não é fazer meninos prodígios, educar não é
fazer manequins sem vida propria.” (...)
Por instrução entende-se hoje dar ao homem, ser consciente e pensante, o
material necessario para que elle por si mesmo siga o pendor que a sua
intelligencia e o seu temperamento lhe indiquem, dar-lhe o instrumento
precisoso com o qual possa fabricara sua propria e inatacavel felicidade.”
“Educar é criar em cada ser uma alma autônoma, dar a cada criatura a inteira
responsabilidade das suas ações, a felicidade suprema de procurar na vida o
seu logar e, encontrando-se nelle á vontade, fazer a felicidade própria,
concorrendo com ella para a somma das alegrias e felicidades colectivas que
hão de tornar a sociedade mais justa, mais alegre e mais feliz”.(“Um
problema a resolver: Educação e Ensino”. Excerptos e Artigos de mestres e
discípulos da Educação Moderna. Voz do Povo. Ano I, n3. Rio de Janeiro,
Sábado, 7 de fevereiro de 1920).

sumário 1260
VII Seminário Vozes da Educação

Percebemos no periódico Voz do Povo diferentes vozes e concepções que


abordaram a necessidade de escolas que atendessem as demandas dos operários,
defenderam uma instrução capaz de articular o estímulo para as potencialidades de
reflexão sobre o mundo, compreensão para as relações sociais postas frente a
imposições, explorações no que diz respeito às relações de trabalho.
Muitas publicações trataram da infância e do cuidado e atenção para uma
educação de promoção à liberdade de pensamento e ideias, educação que de fato
contribuiria para uma formação capaz de desenvolver habilidades para a vida. Outras
publicações condenavam um ensino mecanizado, voltado para o que podemos articular
a um gerenciamento e controle hierarquizado que beneficia um determinado grupo, que
não por coincidência, era composto pelos donos das fábricas e que desejavam a
manutenção da hierarquia nas relações de trabalho, além de reforçar o caráter passivo e
conformista por parte das classes trabalhadoras.
Esses artigos, encontrados em diferentes edições do periódico Voz do Povo,
lançam a perspectiva de reflexão sobre o debruçar desses grupos em prol da educação
voltada aos trabalhadores. Em uma das primeiras edições, o jornal informou “Aos
nossos leitores” destacou que a Voz do Povo iniciaria “brevemente a publicação de
novas seções dedicadas à instrução dos trabalhadores” (“Aos nossos leitores.” Voz do
Povo. Rio de Janeiro, edição 3 , Sábado, 7 de fevereiro de 1920, p.3). Tal preocupação
reverbera os ânimos para os debates sobre a situação da instrução e medidas necessárias
para transformações efetivas.
O Voz do Povo, um periódico criado pela Federação dos Trabalhadores do Rio
de Janeiro “e dos proletários em geral” – fundada em 1919 e que reunia no ano seguinte
um conjunto de “25 sindicatos” filiados – atuava como um instrumento articulador de
categorias profissionais com especificidades e condições de trabalho muito diversas.
Apesar de congregar tantos sindicatos, uniões e associações, pode ser considerado um
jornal de vida curta, já que durou apenas um ano. Porém, ele traz para a pesquisa uma
série de informações – já que dava publicidade às reuniões, assembleias, deliberações,
estatutos e outros documentos dos sindicatos filiados – assim como os questionamentos
de múltiplos trabalhadores em diferentes ofícios, com exposições das condições que os
industriais insistiam em manter sob a lógica do capital dentro dos espaços de trabalho.
Esse jornal, assim como a Federação, eram espaços propícios para apresentação
de argumentos para questionar a manutenção de condições de vida e trabalho precárias e
nos possibilita observar expectativas, anseios, convicções refletidas nos textos

sumário 1261
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

publicados por variados agentes históricos que constituíram o jornal. Constantemente a


instrução foi sinalizada como um instrumento articulador de leitura de mundo e de luta
por condições mais justas de oportunidades, diante das situações que lhes eram
impostas. Assim sendo, o próprio jornal também foi analisado como instrumento
pedagógico e eixo orientador para repensar suas práticas e problematizar as explorações
vividas. O chamamento para a leitura e construção do jornal proporciona análises sobre
as experiências e a vontade por novas possibilidades: “O dever inadiável de todos nós.
Ler e fazer ler a Voz do Povo”.(Voz do Povo, Ano I, Segunda-feira, 23 de fevereiro de
1920.)
Ao acompanhar alguns jornais operários vemos como a instrução compunha a
pauta de reivindicações como forma de direito, a fim de promover transformações nas
relações de trabalho e como alcance de uma instrução que pudesse sensibilizar e
conscientizar para reflexão diante de uma educação emancipatória.
Dessa maneira, por meio da imprensa popular, vemos muitas iniciativas voltadas
para a criação de aulas, cursos e escolas. Criadas, o esforço destinava-se em manter as
mesmas, com pedidos de colaborações dos associados e demais esforços e práticas.
Acompanhamos seus apelos e estratégias para manter suas escolas em diferentes
localidades do Rio de Janeiro. A concepção de educação estava articulada, para além da
criação e manutenção de escolas, à difusão e propagação de artes, instrumentos
educativos fomentadores de práticas culturais com potencial de promover uma
formação reflexiva, percebida em anúncios de festivais e apresentações artísticas. (Voz
do Povo. Rio de Janeiro, ano I, Edição 99, Terça-feira, 18 de maio de 1920).
Nesse sentido, vemos uma série de pequenas notas convidando e estimulando a
encenação de peças teatrais, exibição de filme, dentre outros componentes culturais
associados a lazer, práticas culturais e como impulsionador de atividades à abertura e
manutenção de escolas.
As bibliotecas também compuseram um espaço que representou as lutas dos
trabalhadores, no sentido de pensar formas para sua formação e instrução. Sob este
aspecto, vemos publicações de propostas para criação de bibliotecas ao longo de vários
números de Voz do Povo e de outros jornais da imprensa operária.

Considerações finais
O trabalho cumpre a proposta de pensar e problematizar a instrução das camadas
populares por outros ângulos. Ainda que muito ainda tenha que ser percorrido, em busca

sumário 1262
VII Seminário Vozes da Educação

de maiores informações a respeito dessas escolas, o funcionamento e manutenção das


mesmas, as ideias iniciais nos permitem algumas análises. Se durante muito tempo
houve o predomínio do olhar para a instrução das camadas populares a partir das elites
dirigentes, proprietárias e por parte do governo, lançamos-nos ao desafio de
problematizar e pensar a educação dos trabalhadores por meio de novas perguntas, a
partir das experiências munidas de sentidos dos próprios trabalhadores, que possam
contribuir para ressignificar nossas interpretações referentes à atuação desses agentes
históricos, enquanto construtores de sua própria história. A partir da história social da
imprensa, nos apoiamos na perspectiva que considera o protagonismo e multiplicidade
dos trabalhadores, no sentido de ampliar as lentes da história, ao contemplar a
construção de suas experiências, nos mais variados espaços, acordos, organizações, por
meio de promoções de eventos, criação e meios para vencer os desafios para
manutenção de escolas e bibliotecas.
Uma das contribuições e aprendizado neste processo de pesquisa em
desenvolvimento diz respeito aos cuidados necessários para não cair em armadilhas
teóricas e metodológicas que levam a ver tudo como dado e posto na história ou como
realizações decididas acima dos cidadãos comuns, sem resistência. Em meio a moldes
civilizatórios, importados e hierarquizados com projetos de sociedade e, de educação de
cima para baixo, podemos observar lutas, resistências e embates cotidianos travados por
parte dos trabalhadores cariocas naquele período.
Em tempos atuais, sombrios, marcados por uma série de ataques referentes aos
valores humanos em prol do reforço para a manutenção de privilégios para legitimar o
poder nas mãos de um grupo seleto, medidas que geram perdas de direitos são
justificadas para tolher as lutas sociais e os direitos conquistados historicamente
construídos pelas classes trabalhadoras. Mas como podemos refletir sobre a relação
entre os acontecimentos no tempo presente com as lutas travadas, inclusive no campo
educacional, pelas classes trabalhadoras no início do século XX? Com todo cuidado
pertinente ao considerarmos os diferentes processos históricos e distintos atores
políticos, constitutivos de caminhos e instrumentos peculiares e particulares, nos
apropriamos da história para possibilitar novas reflexões.
O presente trabalho permitiu conhecer iniciativas de investimento e criação de
escolas e bibliotecas, realização de festivais, estímulos às artes com atenção voltada
para a dança, músicas, grupos teatrais e demais espetáculos, o que permite compreender
a educação de forma mais ampla e integral, ao contemplar os vários aspectos que

sumário 1263
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

compunham as pautas de diferentes associações e corporações de trabalhadores. Essa


educação potencializadora dos diferentes aspectos que formam o ser humano seria
estimulada por meio da instrução formal, com a sistematização do ensino, a partir da
articulação entre teoria e prática, no qual o conhecimento não se descolava da vida
prática e do cotidiano. Associada a esta educação formal contextualizada e prática, a
educação não formal e informal, realizada por meio dos diferentes espaços de
sociabilidade, no qual as associações e os jornais tinham importante papel, representam
a concepção de práticas culturais integrantes de uma perspectiva global de formação das
classes trabalhadoras, destinadas aos seus filhos e aos próprios operários.
Na conjuntura atual, em que vemos fechamentos de livrarias por todo país,
ataques às universidades públicas, relativizações execráveis acerca do trabalho infantil,
já tão condenado e abominável na imprensa operária, nas primeiras décadas do século
XX, além de perdas de direitos trabalhistas conseguidos através de emblemáticas lutas,
a história nos permite e nos instiga a pensar nos projetos de sociedade e de educação em
disputa em nossa contemporaneidade. O projeto que atualmente tenta imperar, não só de
educação, mas de uma sociedade partida, fragmentada e sedimentada na tentativa de
promover a alienação e impedir o pensamento crítico e reflexivo, vai contra a
perspectiva de uma educação capaz de questionar as dominações e travar
enfrentamentos em prol de efetivas transformações sociais. O recado já foi dado em
diferentes momentos históricos. As classes trabalhadoras no início do século XX
atuaram de forma maciça e o seu legado expresso em associações, alianças e uniões
sindicais muito tem a dizer, no sentido de sinalizar para a importância da ação coletiva,
de construir parcerias frente aos grandes desafios, anseios e ações em busca por direitos
para seus grupos.
Cabe a nós conhecermos a nossa história das classes trabalhadoras, e suas lutas
para conquistar e garantir nossos direitos. Temos direito a uma educação democrática,
emancipatória, capaz de desenvolver os múltiplos aspectos que nos constituem, uma
educação que nos permita compreender as situações a nossa volta, de maneira que
possamos ser autônomos, a fim de provocar mudanças sociais. Com efeito, salientamos
que essa educação – que hoje parece uma utopia – já foi uma realidade e fazia parte de
pautas, pensamentos e iniciativas de muitos trabalhadores, que viam na imprensa
operária um instrumento, não só de difusão, mas também de instrução, diálogo e luta
para as classes trabalhadoras.

sumário 1264
VII Seminário Vozes da Educação

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sumário 1265
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A CATEGORIA FUTURO NA EDUCAÇÃO: QUANDO O OBJETO PASSA A


SER O TEMPO

Natacha Ribeiro de Souza-Pinto177


FFP/ UERJ
natacha.ribeiro@hotmail.com

“Da mesma forma, a visão dialética nos indica a


incompatibilidade entre ela e a ideia de um amanhã
inexorável [...]. Não importa que o amanhã seja a pura
repetição do hoje ou que o amanhã seja algo pré-datado
ou, [...], um dado dado. Esta visão ‘domesticada’ do
futuro, de que participam reacionários e
‘revolucionários’, naturalmente cada um e cada uma a
sua maneira, coloca, para os primeiros, o futuro como
repetição do presente que deve, porém, sofrer mudanças
adverbiais e, para os segundos, o futuro como
‘progresso inexorável’. Ambas estas visões implicam
uma inteligência fatalista da história, em que não há
lugar para a esperança autêntica” (FREIRE, 2018:140).

Qual é o objetivo da educação ao se colocar o futuro como um norte? Pode-se


pensar a educação através de diversas perspectivas. Um dos movimentos atuais é
enxerga-la com as lentes da categoria futuro. Fala-se muito no profissional do futuro,
nas profissões do futuro e na educação do/para o futuro. São discutidos os ofícios que
poderão surgir e os que desaparecerão, as competências comportamentais que os futuros
profissionais haverão de dominar e os conhecimentos técnicos associados às ocupações
e à colocação no mercado de trabalho (O Profissional do Futuro: 2018; Futuro do
Trabalho - o que não muda?: 2018). Então, é significativo e pertinente tentar entender
qual é o objetivo da educação quando o futuro torna-se seu guia.

Situando a questão do tempo


O tempo dos relógios e dos calendários expressos como presente, passado e
futuro são instrumentalizações de processos sociais de padronização que têm como
objetivos a harmonização dos comportamentos e a adaptação das pessoas aos
fenômenos naturais. A cronologia surge como meio humano de orientação no universo

Cientista Social (UFF), Mestre em Arqueologia (MN/UFRJ), Pós-Graduanda em Educação Básica –


177

modalidade Gestão Escolar (UERJ FFP) e graduanda em Pedagogia (UERJ).

sumário 1266
VII Seminário Vozes da Educação

social e como modo de regulação da existência. A Filosofia entende o tempo como um


dado natural, como um processo de conhecimento que tem um começo e que se dá a
partir de um mesmo ponto para todas as pessoas. Newton, Descartes e Kant entendiam o
tempo como uma forma inata de experiência, como um dado objetivo do mundo criado.
Nessa concepção, o sujeito aparece sozinho diante do mundo. Então, restaria saber se é
a natureza do sujeito ou a do objeto que constrói as representações humanas (ELIAS,
1998).
Na Sociologia, em contrapartida, tempo é a relação de posições, segmentos e
sequências de acontecimentos em evolução contínua. Essa relação representa a
elaboração das percepções pelo saber humano que encontra expressão num símbolo
social comunicável, a ideia de tempo. Esta, no interior de uma sociedade, permite a
transmissão, de uma pessoa à outra, de imagens mnêmicas que dão lugar à experiência.
Assim, o indivíduo não elabora por si só o conceito de tempo (ELIAS, 1998). O tempo
“tal como a instituição social que lhe é inseparável, vai sendo assimilado pela criança à
medida que ela cresce numa sociedade em que ambas as coisas – o tempo e a instituição
social - são tidas como evidentes” (ELIAS, 1998:13). O tempo, nessa perspectiva, é
uma instituição social presente nos processos de socialização primária e secundárias
(BERGER &LUCKMANN, 1985) que tem como característica a coercitividade
(ELIAS, 1998).

“Ora, o tempo não se reduz a uma ‘ideia’ que surja do nada, por assim dizer,
na cabeça dos indivíduos. Ele é também uma instituição cujo caráter varia
conforme o estágio de desenvolvimento atingido pelas sociedades. O
indivíduo, ao crescer, aprende a interpretar os sinais temporais usados em sua
sociedade e a orientar sua conduta em função deles. A imagem mnêmica e a
representação do tempo num dado indivíduo dependem, pois, do nível de
desenvolvimento das instituições sociais que representam o tempo e
difundem seu conhecimento, assim como das experiências que o indivíduo
tem delas desde a mais tenra idade” (ELIAS, 1998:15).

O tempo é, simultaneamente, processo físico e social responsável por indicar aos


seres humanos a posição que ocupam nas transformações que ocorrem na natureza e na
sociedade. Nas sociedades ocidentais modernas, o tempo é marcado através de símbolos
numéricos. O relógio, assim como o calendário, é organizado de forma a transmitir
mensagens que regulem os comportamentos do grupo. O tempo transforma-se em uma
categoria cuja representação simbólica reúne sequências de caráter individual, social e
físico. A categoria tempo se dá no encontro entre natureza, indivíduo e sociedade
(ELIAS, 1998). Dessa forma, o habitus (BOURDIEU, 2013) individual é construído a

sumário 1267
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

partir do habitus social. Os processos de socialização, ao incutirem os símbolos sociais


nos indivíduos, proporcionam que a multiplicidade das pulsões e afetos seja convertida
em singularidade (ELIAS, 1998). Uma pessoa só consegue tornar-se “relativamente
autônoma, com uma personalidade bem afirmada e, portanto, mais ou menos única em
seu gênero, aprendendo com os outros, assimilando modelos sociais de autodisciplina”
(ELIAS, 1998:20). A individualização da regulação social do tempo ostenta traços de
um processo civilizador. Ou seja, a instituição social tempo ensina aos indivíduos,
através de coerções externas e internas (autoimpostas), desde a infância, a
desenvolverem autodisciplina. Isto posto, o tempo é um instrumento social
materializado através de símbolos que têm como função orientar e regulamentar as
condutas e as sensibilidades dos indivíduos em sociedade (ELIAS, 1998).

O futuro sobre o qual falamos hoje já estava colocado no passado


O que é despercebido ou ignorado por uma parcela da sociedade que escolhe
ocultar o caráter rudimentar do processo de escolarização é que a educação existe para
formação de mão de obra (RÊGO, 2005). A atual discussão sobre o futuro, diante da
característica originária da educação – construção de sociedades - é anacrônica na
medida em que se reproduz a tradicional instituição escolar e hodierna na medida em
que repensa a sociedade até então construída.
Na década de 1960, Anísio Teixeira já havia proposto uma forma de imaginar o
futuro. Quando Teixeira (1963) questiona os elementos do presente, o que há já hoje
que possa sugerir o que poderá vir a ser a escola de amanhã, ele estabelece que: a) a
escola é uma construção social; b) essa construção tem objetivos específicos e c) o
tempo – presente, passado e futuro – é um instrumento social (TEIXEIRA, 1963).
Assim, o futuro sobre o qual falamos hoje já estava posto no passado. Na
sociedade europeia do início do século XX, surgiram várias propostas pedagógicas,
sobretudo a partir da primeira guerra mundial. Nesse período é estabelecida a
necessidade de criar uma nova escola, uma nova educação para novas crianças. Com o
fim da primeira guerra mundial, a educação aparece como a única possibilidade
revolucionária. Deve-se mudar a escola para mudar o mundo. A educação, portanto,
opera como ferramenta na construção da sociedade almejada. O processo de
escolarização é o período de preparação das crianças para se tornarem adultos
habilitados a construir a sociedade desejada, a sociedade do futuro. E que futuro é esse?

sumário 1268
VII Seminário Vozes da Educação

A sociedade a ser (re)construída a partir da realidade da guerra (RévolutionÉcole:


2016).
A partir do século XX surgem as “escolas laboratório” com propostas de
educação diferentes da oferecida pelo Estado. Essas experiências se multiplicaram por
toda a Europa. Na França a educação tinha como objetivo formar bons cidadãos. A
escola desejava formar o cidadão esclarecido e prepara-lo para total obediência. Na
Espanha, a escola moderna de Francisco Ferrer implantou um programa educativo
racional que prometia a laicidade, a igualdade social, a autodisciplina, a recusa de
punição e dos exames. Na Bélgica, Ovile Decroly colocou em marcha os interesses das
crianças no centro de sua aprendizagem, inventando um novo método de leitura. Na
Itália, Maria Montessori produziu um material pedagógico revolucionário, aprovado no
mundo inteiro. Na Inglaterra, Alexandre Sutherland Neill denunciou a autoridade do
método e os castigos corporais. Na Alemanha, Paul Geheeb cria a Odenwaldschule a
partir dos princípios naturalistas (RévolutionÉcole: 2016).
Fica claro através desses exemplos que a partir da primeira guerra mundial é
pensada a necessidade de criar uma nova escola, uma nova educação para novas
crianças. Essa nova educação é responsável pela construção de um “novo ser”. Esse
“novo ser” não é a criança, é o adulto que habitará a nova sociedade (RévolutionÉcole:
2016). Além das ressignificações das categorias família e infância, nesse contexto
histórico, político e social do pós-guerra são estabelecidos os pressupostos da educação
como hoje a conhecemos e a categoria futuro é fixada como natureza da educação.
A educação constrói um futuro na medida em que estabelece, coercitivamente,
comportamentos e condutas para o grupo social, tornando praticamente impossível um
indivíduo viver em sociedade sem comungar das suas regras. A escola domestica,
doutrina e exercita os habitus sociais. Quando um sujeito encerra seu processo escolar,
está pronto para agir na sociedade de acordo com os valores e a moral que lhe foram
habilitados.
Nesse sentido, o futuro é um planejamento, é um exercício de imaginação
política que é praticado sobre crianças até atingirem a idade adulta. Quando as regras
impostas tornam-se autodisciplina e coerção interna, o futuro é materializado, a
sociedade que foi planejada materializa-se.

“A educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele


educador. Ela é política. [...] Para que a educação fosse neutra era preciso que
não houvesse discordância nenhuma entre as pessoas com relação aos modos

sumário 1269
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de vida individual e social, com relação ao estilo político a ser posto em


prática, aos valores a ser encarnados. [...] Para que a educação não fosse uma
forma política de intervenção no mundo era indispensável que o mundo em
que ela se desse não fosse humano. [...] O que devo pretender não é a
neutralidade da educação, mas o respeito, a toda prova, aos educandos, aos
educadores e às educadoras” (FREIRE, 2016: 108-109).

A educação constrói um futuro na medida em que as pedagogias estabelecem


conhecimentos, entendimentos e valores prioritários, necessários e indispensáveis às
crianças que educam. Todas as pedagogias realizam esse exercício, desde a concepção
naturalista de Paul Geheeb à pedagogia repressora de Stálin (RévolutionÉcole: 2016).
Cada proposta pedagógica – alternativa ou tradicional/coercitiva - tem como
objetivo a construção de uma sociedade com características particulares. A educação
praticada por educadores, alternativos ou tradicionalistas, visa à formação da sociedade.
Como as crianças só poderão ter poder de mudança política, econômica e social quando
adultas, a educação, assim como a ideia de futuro, são construções sociais que visam à
padronização de comportamentos e ações, sejam eles libertários ou tradicionais.
Na URSS, a educação ficou sob a responsabilidade de Nadežda Krupskaja.
Krupskaja teve contato com várias pedagogias europeias. Delas tirou o que julgou
melhor e mais interessante para o Estado Soviético e assim formou inúmeros
professores russos (RévolutionÉcole: 2016). A educadora defendia que era preciso
instruir os professores russos. "Se a educação burguesa tinha o objetivo de transformar
as crianças do povo em escravos assalariados e arsenal de guerra, e as crianças
burguesas em chefes, nós vamos formar militantes que vão ser socialistas proletários"
(RévolutionÉcole: 2016. 00:28:57 - 00:29:06). Dessa forma, conforme esta perspectiva,
a escola no meio social se transforma no social. O projeto soviético de construção de
operários capazes e instruídos é o projeto de homogeneização da população que precisa
trabalhar para garantir sua subsistência, é a construção de um vasto exército de mão de
obra capacitada e crítica no que diz respeito aos assuntos nacionais.
As crianças, assim como os adultos, possuem vida material e vida intelectual. Na
URSS, as crianças trabalhavam para ir acostumando o corpo à dureza do trabalho adulto
e estudavam, para alimentar a liberdade individual. As crianças na URSS produziam e
mantinham sua própria existência: trabalhavam para comer e morar, estudavam para
não se submeterem a um chefe, para serem autônomos. Essa pedagogia constitui o
futuro – instituição social produtora e reprodutora de habitus - que o governo soviético
desejava construir: trabalhadores resistentes e íntegros, cidadãos críticos e nacionalistas

sumário 1270
VII Seminário Vozes da Educação

arraigados. A educação do futuro, como fica claro, é a sociedade a ser construída, do


tempo que virá.
Em resposta às indagações: qual é o sentido da educação? para que se educa?,
podemos concluir que o objetivo final da educação é o futuro da sociedade.
A Sociedade das Nações, no espírito de renovação política, reestruturação
econômica e construção de uma nova sociedade, em 1920, seguiu os mesmos ideais
cooperativos e pacifistas que defendem os partidários de uma escola liberal. As
sociedades planejadas nesse período correspondem às pedagogias criadas. O objetivo da
educação é o futuro da sociedade, é a construção daquilo que ainda não é, daquilo que
pode vir a ser em um tempo que se acredita poder chegar. Ao mesmo tempo, esse tempo
que pode vir a ser, já é. Esse tempo já existe na medida em que a escola o estabelece no
presente, nas vidas das crianças que as frequentam, em seus corpos e nas suas psiques.
O tempo futuro que será construído pela educação do presente já opera no agora como
instrumento, como processo de padronização, de regulação, de coerção, como processo
de socialização (ELIAS, 1998).
Na Europa, as coisas se modificaram. A Educação Nova foi escolhida por
grupos cada vez maiores. A discussão é orientada então para a indagação: a educação
destina-se a quem? (RévolutionÉcole: 2016) Apesar dos inúmeros debates travados
entre as correntes políticas, todas as classes sociais são educadas. A educação se dá
entre e fora dos muros da escola, com ou sem profissionais da educação. O filho do
operário, por exemplo, é educado por sua família, amigos e vizinhos. Essa criança
aprende que começará a trabalhar muito cedo na vida e que esta será toda a sua vida. O
filho do burguês, em contrapartida, aprende com educadores as ciências. Com seus
familiares, amigos e vizinhos aprende que terá uma vida de luxo e privilégios, mas que
suas pulsões e desejos terão de ser reprimidos.
A educação, a construção da sociedade, portanto, está para além dos muros da
escola e atravessa as desigualdades de classes, gênero e religiosas. A educação é para
todos, pois ocorre em todos os lugares (FREIRE, 2016). O conhecimento científico,
entretanto, é para poucos, para a pequena maioria privilegiada economicamente e que,
curiosamente, após dominar os rudimentos da sociedade em que vive, determinará os
rudimentos da sociedade que pode vir a ser.
Se o objetivo final da educação é a sociedade, não basta mudar a pedagogia para
mudar a sociedade. É necessário ressignificar a educação formal constituída e elaborada
pelas classes dominantes ou reformular a sociedade - mantida e reproduzida pelas

sumário 1271
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

classes dominadas. Se o objetivo é construir um novo futuro, novos processos de


socialização, interdição e moralidade, a solução nunca estará na transformação da
educação formal, mas, talvez, em formalizar a educação informal, a educação do povo,
os aprendizados fora dos muros da escola. Levar a escola para o mundo e não o mundo
para a escola (FREIRE, 2016, 2018), ou como disse Anísio Teixeira (1936), a
democracia de fato só será possível quando a máquina para sua produção for criada e
essa máquina é a escola.

Observar a questão em uma perspectiva histórica


Na década de 1920 é criado o Primeiro Congresso Internacional da Escola Nova.
Pela primeira vez pedagogos - de todos os lugares do mundo - compartilham
experiências educativas e seus resultados. Entre os participantes estão médicos,
instrutores, filósofos, etc. Eles são católicos, protestantes, socialistas, espiritualistas,
teólogos, quakers, feministas. Mas todos são pacifistas e firmemente unidos contra a
Escola Tradicional (RévolutionÉcole: 2016).
Durante o Congresso, Adolphe Ferrière enumera as condições de uma Escola
Nova típica. Em um lugar isolado, próximo da natureza, a criança é ativa. Ela adquire o
conhecimento na experiência. Uma importância igual é atribuída ao trabalho intelectual
e artístico, como também à educação física e ao trabalho manual. A criança prepara as
regras que governa sua vida. Ela se autogoverna (RévolutionÉcole: 2016). O Congresso
Internacional da Escola Nova cria a Liga Internacional pela Escola Nova. Essa recém-
criada instituição estabelece como regras primordiais: 1) o objetivo essencial de toda
educação é de preparar a criança para desejar e a realizar na sua vida a supremacia do
espírito; 2) a educação precisa respeitar a individualidade da criança; 3) a criança é um
ser humano consciente da sua dignidade como homem; 4) a competição egoísta deve ser
abolida da educação e precisa ser substituída pela cooperação (RévolutionÉcole: 2016:
00:16:54 - 00:17:20).

"Bem logo, os governos e as famílias entenderão que, pelo nosso método,


podemos obter muito mais de resultados úteis do que esforços inúteis. Assim,
a verdade se imporá. Quanto tempo precisaremos para isso? O futuro dirá"
(Adolphe Ferrière In: RévolutionÉcole: 2016 / 00:18:00 - 00:18:18).

No contexto brasileiro é interessante observar que hoje essa categoria futuro é


retomada, porque hoje há grande preocupação com a formação do “profissional do

sumário 1272
VII Seminário Vozes da Educação

futuro”, o “trabalhador do futuro”. Contemporaneamente esse trabalhador tornou-se o


norte da educação, caso contrário, a educação não estaria voltada para um formato que
está em diálogo obrigatório com o processo de seleção para o ensino superior
(universitário) que é o vestibular. O vestibular pressupõe um tipo de aprendizagem, um
tipo de relação pedagógica. Relação pedagógica que estabelece comportamentos e
visões de mundo. Pedagogia que prepara o aluno para um futuro: o domínio de certos
conhecimentos e a aceitação de uma determinada estrutura trabalhista que corresponde
aos conhecimentos e habilidades adquiridos na escola (ensino básico e superior). Assim,
esse “novo adulto”, esse trabalhador, está construindo a sociedade. Sociedade que é a
reprodução do projeto político da escola na medida em que o novo trabalhador irá acatar
ou não as regras sociais vigentes, de acordo com a pedagogia que lhe foi atribuída, a
formação de seres autônomos ou a formação de corpos docilizados (FOUCAULT,
2013).
No período compreendido entre a primeira e a segunda guerra mundial,
educadores e pedagogos do mundo todo se reuniram para discutir os propósitos da
educação no mundo que mudava constantemente. A “pré-história” ou “subhistória” da
pedagogia consiste de profissionais e entusiastas envolvidos com a educação cuja
atuação, à época, era muito maior do que hoje, considerando os contextos políticos nos
quais as pessoas estavam imersas (RévolutionÉcole: 2016).
A Liga Internacional pela Educação Nova reconhecia que a Educação Nova
estava em mudança. Um dos objetos em discussão era a questão da “liberdade ou
disciplina" (RévolutionÉcole: 2016). No cenário brasileiro, Paulo Freire defendeu a
“autoridade sem autoritarismo” (FREIRE, 2016:102) e a “liberdade sem licenciosidade”
(FREIRE, 2016:102) no contexto da educação para formação de indivíduos autônomos
e emancipados. A necessidade por novas concepções e práticas pedagógicas foi, até
certa medida, universalizada.

"Normalmente pensamos que liberdade e disciplina são coisas opostas, e que


se um dos dois existe, o outro desaparece imediatamente. Ao contrário, eu
penso que não somente um vem do outro como também não podem existir
separadamente. Isto é tão verdade quando observamos as crianças. Se
estudamos o método de estabelecer a liberdade, nós alcançamos uma
disciplina maravilhosa. A disciplina é a ordem. Obedecer à lei não é somente
um dever. Mas uma necessidade vital" (RévolutionÉcole, 2016: 00:42:08 -
00:42:37).

sumário 1273
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Quando o fascismo monopolizou o poder na Europa, a Liga Internacional pela


Educação Nova, diante da tensão nacionalista, social e religiosa que assombrou o
continente, não se posicionou. Alguns afirmam que foi o início do fim da Liga
(RévolutionÉcole: 2016). Surda às inquietudes da época, a Educação Nova europeia
elaborou um curta metragem para promover seu novo método, lançando um apelo aos
governos então no poder. O filme exibe crianças ávidas por carinho, uma atmosfera de
frescor, de sinceridade, de curiosidade. As crianças seguem os conselhos em matéria de
ensino, os seguem em matéria de educação desde o início (RévolutionÉcole: 2016).
Com o fim da década de 1920 chega a crise mundial de 1929. O mundo
espiritualista do século XIX vem a desaparecer. A Liga Internacional pela Educação
Nova foi criada para desenvolver o indivíduo, seu inconsciente, sua via emotiva e sua
via artística, desenvolver o consciente a partir do inconsciente. O que importava eram as
artes, o autoconhecimento, as expressões individuais e a disciplina do indivíduo
conforme o documentário vai descortinando.
O último encontro da Liga Internacional pela Educação Nova foi anulado. "Nós
reconhecemos que a abolição da democracia foi concluída. Agora o fascismo e nazismo
buscam eliminar a justiça social e internacional, eliminando os seres humanos cultos e
pacifistas" (RévolutionÉcole: 2016: 01:17:59 - 01:18:11). Na política internacional fica
estabelecido que os nacionalistas farão de cada país um só destino. Em razão disto, os
pedagogos entendem que devem agir. À oeste da França, a prática da Educação Nova se
mantém abertamente democrata, resistente, idealista.

"Cada praça, cada comitê, nomeia seus responsáveis. Aqui o presidente emite
as células e tudo se passa regularmente. O princípio da mais pura democracia
é praticado aqui, uma organização humana indispensável a todos. É pelo
método que compreendemos as necessidades da criança e as necessidades
imperiosas do mundo atual, que a escola Decroly prepara a vida de homens e
das mulheres saudáveis, aprendendo a responsabilidade da democracia do
amanhã deixando-a forte e feliz” (RévolutionÉcole: 2016: 01:18:47 –
01:19:39).

Os governos autoritários e totalitários sujeitaram países em todos os continentes.


Na Europa, inicialmente, e no Brasil, posteriormente, esses governos romperam as
correntes progressistas que buscavam construir sociedades menos desiguais
economicamente, mais conscientes politicamente e cujos indivíduos fossem mais
autônomos e críticos. O movimento em defesa da democracia nas esferas sociais, no
Brasil, só foi retomado na década de 1980 com o fim do regime militar. Os governos

sumário 1274
VII Seminário Vozes da Educação

que sucederam o período ditatorial foram neoliberais e, portanto, defenderam e


desenvolveram o modelo bancário (FREIRE, 2016), gerencialista de educação.
A educação pública de qualidade, democrática, laica e formadora de cidadãos
autônomos nunca chegou a existir no nosso país. Nas palavras de Teixeira (1936),
nunca criamos a máquina produtora da democracia, e escola a escola pública rica e
eficiente, destinada a preparar o brasileiro para vencer e servir com eficiência dentro do
país (CORSETTI & ECOTEN, 2014).

O futuro que encontramos no presente


Podemos afirmar que hoje há uma concepção pedagógica dominante. Hoje a
instituição escolar está presente na maioria dos países. Para além disso, a valorização
social do conhecimento científico e o demérito dos conhecimentos adquiridos por
experiência acompanham a história e o desenrolar dessa instituição. A escola cumpre
um papel fundamental na sociedade, ela pode contribuir para legitimação, reprodução e
ampliação do status quo, para manutenção das estruturas sociais produtoras de
desigualdades sociais em todas as suas esferas. Ou ela pode contribuir para ruptura
dessas estruturas dominantes, ela pode conduzir à verdadeira transformação social
através da formação de cidadãos críticos, autônomos e emancipados (FREIRE, 2016,
2018; RévolutionÉcole: 2016).
Em tempos de governos autoritários, autocráticos e repressores, a educação
assume papel elementar na defesa e construção de sociabilidades que defendam a justiça
social, a pluralidade cultural, a libertação do ser, que desvende a essência não deixando
que a sociedade seja dominada pela aparência. A escola é a instituição social primordial,
está presente na vida dos indivíduos e constitui parte fundamental daquilo que é o
habitat natural dos indivíduos: a sociedade.
Se a escola tem como princípio a promoção da vida pessoal da criança e a
cultura do indivíduo, ela também se ocupa da educação da criança na sociedade e para a
sociedade.
Na realidade, todos (presente e passado) estão dialogando com uma concepção
de sociedade, implícita ou explicitamente. Pensam muitas vezes, que não estão
discutindo a sociedade, por isso não a incorporam explicitamente no discurso, mas é
sobre ela que falam o tempo todo, ela é o norte da formação da educação, é para isso
que se educa.

sumário 1275
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Joanna Grudzinska (2016) ilustra como a educação, o processo de escolarização,


a formação de pessoas, é a concretização da construção das sociedades de acordo com
os critérios políticos, econômicos, culturais, morais e éticos desejados e/ou necessários
à conjuntura histórica.
Em todas as épocas houve políticas governistas hegemônicas para construção de
sociedades de acordo com seus pressupostos particulares. No Estado Absolutista as
massas eram ensinadas a trabalhar e a pagar impostos; no Estado Liberal o trabalho foi
mascarado como forma de inserção no paraíso divino; no Estado Fascista as pessoas
eram divididas entre puras e não puras para viver em um território determinado; no
Estado Soviético o trabalho e a educação deveriam fazer parte da rotina das pessoas,
pois deveriam ser operários instruídos; no Estado do Bem Estar Social o trabalho era
meio para aquisição de bens que prometiam fazer famílias e indivíduos mais felizes; e
nos Estados Neoliberais vigora a ordem do ‘cada um por si’, conforme a perspectiva
funcionalista, segundo a qual estes poderiam ser classificados como estados anômicos
(DURKHEIM, 2000), porque as pessoas não mais se reconhecem no Estado e o que
aprendem na educação formal ou nas suas experiências particulares é que o Estado não
está gerindo seu território e sua população de forma a defender direitos e buscar
melhorar a qualidade de vida.

Considerações Finais
Assim, uma educação voltada para cidadania inserida em um contexto político-
econômico neoliberal, tem a importante missão de formar cidadãos autônomos para que
eles próprios possam buscar e construir o seu futuro, construir a sociedade na qual
desejam que as próximas gerações nasçam e se desenvolvam.
Cada parte da sociedade tem uma função. Como as partes funcionam de forma
coesa? Tendo um mesmo objetivo. Esse objetivo é a construção do cidadão do futuro.
Todavia, como previamente desenvolvido, o futuro é construído no presente através dos
processos de socialização, dos habitus e do processo de escolarização. O fator que
permeia essas formas de construção dos indivíduos é a pedagogia, é a ideologia eleita
para doutrinar os corpos e os pensamentos. Essa ideologia é o futuro. Quando a criança
que assimila essa ideologia ganha autonomia para interferir politica e economicamente
na sociedade, o futuro se materializa. Por isso a sociedade do presente deve ter
consciência dos valores, da moral, dos habitus, das interdições, dos tabus, da cultura
através da qual orientam o caminho das crianças. São essas ideologias que constituirão

sumário 1276
VII Seminário Vozes da Educação

profissional do futuro, as profissões do futuro e a educação do futuro. São essas


ideologias que determinarão os ofícios que surgirão e os que desaparecerão, as
competências comportamentais que os profissionais haverão de dominar e os
conhecimentos técnicos associados às ocupações e à colocação no mercado de trabalho.
O tempo instrumental revela-se fundamental para o tempo social, é no tempo dos
indivíduos contemporâneos que o futuro é arquitetado.

Referências
BERGER, Peter L., LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de
sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1985.

BOURDIEU, Pierre. Outline of a Theory of Practice.Cambridge: University Press. 2013.

CORSETTI, Berenice; ECOTEN, Márcia Cristina Furtado. A relação entre sociedade,


estado e educação no Brasil: uma reflexão a partir da contribuição de Anísio Teixeira.
Cadernos de História da Educação – v. 13, n. 2 – jul./dez. 2014

DURKHEIM, Émile. O suicídio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2013.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 2016.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.

GRUDZINSKA, Joanna. RévolutionÉcole, 1918-1939. França: Coprodução: ARTE


France, LesFilmsduPoisson, 2016. 1 disco DVD (1h25).

HABIMORAD, Maira. Futuro do Trabalho - o que não muda?


https://www.ted.com/talks/maira_habimorad_futuro_do_trabalho_o_que_nao_muda

RÊGO, Marta da Costa Lima. Concepções de alfabetização: a origem do mito. In:


ARAÚJO, Mairce da Silva. Alfabetização: conteúdo e forma 1. V.1. Rio de Janeiro:
Fundação CECIERJ, 2005.

SCHNEIDER, Michelle. O Profissional do Futuro.


https://www.ted.com/talks/michelle_schneider_o_profissional_do_futuro

TEIXEIRA, Anísio. Educação Para a Democracia. Rio de Janeiro, José Olympio, 1936.

TEIXEIRA, Anísio. Mestres de amanhã. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.


v.40, n.92, out./dez. p.10-19. Rio de Janeiro: 1963.

sumário 1277
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A RELAÇÃO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE NO CONTEXTO DA


CONTRARREFORMA DO ENSINO MÉDIO

Glasiele Lopes de Carvalho Ribeiro


UERJ
glasiribeiro@bol.com.br

Introdução
Este artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa em andamento,
realizada no Mestrado em Educação - Processos Formativos e Desigualdades Sociais
em curso na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – FFP – UERJ, na qual temos
como temática a reforma do Ensino Médio (EM) com foco na produção de sentidos dos
itinerários formativos.
Nosso objeto de estudo vem sendo analisado segundo a perspectiva do
Materialismo Histórico Dialético, oriundo da crítica de Karl Marx. Três categorias
teórico-metodológicas foram importantes no processo de elaboração dessa teoria:
totalidade, contradição e mediação.
Examinar um fenômeno social que emerge em um determinado período histórico
exige de nós um olhar atento à relação entre conjuntura e estrutura. A conjuntura é fruto
de determinações históricas, e para analisá-la nos valemos de algumas categorias:
“acontecimentos, cenários, atores e relação de forças” (SOUZA, 1984, p.9). A estrutura
é determinada pela posição dos indivíduos e de grupos em um sistema. De maneira mais
geral, podemos dizer que a estrutura se refere a como a sociedade se organiza.
Neste trabalho, buscamos compreender como a atual reforma do ensino médio
está alinhada ao ponto de vista da estrutura do Estado burguês. À luz da teoria marxista,
faremos uma exposição de elementos que têm cooperado para a fratura da escola
pública a partir das mudanças no EM, introduzidas pela Lei nº 13.415/17.
Interpelando nosso objeto buscamos compreender qual o projeto societário que
se traduz na relação Estado/ Sociedade nessa reforma. Para tal, realizamos uma pesquisa
bibliográfica com bases epistemológicas em Karl Marx, Antonio Gramsci, Nico
Poulantzas e Carlos Nelson Coutinho; e documental em leis e decretos. Nosso objetivo

sumário 1278
VII Seminário Vozes da Educação

é delimitar de forma mais clara os fenômenos sociais e históricos que dão materialidade
às mudanças no ensino médio. Assim, a teoria social crítica é basilar nessa análise.
Dito isto, traremos pontos necessários para a discussão que engendra as relações
capital-trabalho, capital-educação e trabalho-educação como desdobramentos da
reforma do EM. À vista disto, avançamos em uma tessitura sobre o trabalho assalariado
e a introdução do capitalismo industrial no Brasil como ponto de partida sobre a
educação brasileira para as massas populares.

Marx e Gramsci: construindo um conceito para o “Estado” capitalista


Apresentar um conceito de Estado é um exercício que exige determinada
complexidade. De acordo com Marco Aurélio Nogueira (2015). A expressão “Estado”
tem “grande densidade semântica”, por isso, formular uma ideia para compreendê-lo
demanda percursos históricos. De acordo com o autor, as dificuldades surgem das várias
“ressignificações” a que o termo foi submetido em um processo histórico de
democratização. Desta forma:

Capturado por um léxico polissêmico, politicamente condicionado e muitas


vezes enviesado, o conceito de Estado evoluiu vagando por um oceano de
mitos, monstros, fantasmas e imprecisões, ficando mais ‘intransparente’ e
mais disponível para abordagens reducionistas (NOGUEIRA, op. cit. P.325).

A polissemia do léxico e as possibilidades de interpelações reducionistas são


problemáticas como diz o autor, contudo, na tentativa de elaborar um conceito de
Estado, ele apresenta três faces que se articulam: sistema institucional; Estado como
agente de dominação; a dimensão menos “material” do Estado. Como sistema
institucional, o Estado é “[...] instrumento de governo, gestão e organização, um aparato
administrativo e um sistema de intervenções, um fator de racionalização e um
instrumento de animação e execução.” (NOGUEIRA, op.cit., p. 325). Como agente de
dominação, expressa o monopólio da força e o “direito único de ser opressor” quando
“[...] garante a reprodução dos ‘mais fortes’, reprime os ‘mais rebeldes’ e limita, em
maior ou menor dose, a livre movimentação e os desejos de todos aqueles que se
submentem.” (NOGUEIRA, op.cit., p. 325). Já na terceira face, refere-se a como as
comunidades manifestam e viabilizam a sua existência coletiva.
Dentre as possibilidades de conceituar o Estado, o autor traz a figura mítica do
“Leviatã”, o monstro marinho com poderes sobre-humanos. Idealizado por Thomas

sumário 1279
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Hobbes, filósofo jusnaturalista, o Leviatã representava a figura do Estado sobreano, que


garantia a passagem para o estágio “civil da humanidade”. O monstro ajudaria os
homens a sair do estado natural de existência, “o estado de natureza”, responsável pelas
lutas que travavam uns contra os outros. Segundo Hobbes (apud, NOGUEIRA, op.cit.),
a sociedade humana tinha necessidade de uma “instância centralizadora e autoritária de
poder”, que seria construída por ela através de um contrato social. “Seria preciso em
suma, que os indivíduos delegassem o poder a um soberano (uma pessoa, uma
assembleia, uma instituição) que arcaria com o custo de impedir que o contrato fosse
desrespeitado” (NOGUEIRA, op.cit., p.326). De certa forma, esse pensamento vigorou
até Marx introduzir o Estado no mundo social, através de suas tensões, classes e
conflitos.
Ainda em diálogo com Nogueira, entendemos que o Estado em Marx se
contrapõe a ideia de Hobbes, porque não se manifesta como o contrato perfeito, e sim
como elemento das lutas de classe. Para Marx e Engels “O poder do Estado moderno
não passa de um comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como
um todo” (MARX; ENGELS, 2008, p.12). Assim, se o pensamento jusnaturalista e os
pensadores que seguiram o seu lastro teórico numa perspectiva racional do Estado, o
marxismo se empenhou em romper com essa visão, quando compreende o Estado como
resultado de determinações sociais: sistema de classes e dominação das sociedades que
detém a propriedade privada e os meios de produção.
Marx não escreveu tratados de teoria política, como fez Locke, nem sistemas de
filosofia de Estado como Hegel, sua escrita concentrou-se na opressão estatal, na
exploração capitalista e nas ligações entre revolução, democracia e comunismo. Na
verdade os escritos marxianos revelam uma superação do Estado. “Os anos iniciais da
década de 1840 configuram-se como um período decisivo no qual Marx define os
pilares do seu pensamento político na forma de um movimento contra o Estado.”
(TIBLE, 2014, p.54)
A literatura marxiana aponta para o desejo do fim das estruturas de uma
sociedade injusta, na qual um grupo (a burguesia) com o intuito de manter seus
privilégios e proteger a sua propriedade privada se organiza para explorar outro grupo
(o proletariado), que tem as forças de trabalho expropriadas, a fim de garantir o status
quo do primeiro grupo.
Essa relação entre burguesia e proletariado perpassa grande parte dos trabalhos
acadêmicos das áreas de humanidades, já que para os pensadores de humanas, Marx

sumário 1280
VII Seminário Vozes da Educação

vislumbrou a possibilidade de superação da estrutura de uma sociedade de classes nas


suas proposições críticas sobre econômica política, ao analisar as condições de trabalho
realizadas pelos ingleses no século XIX. As contribuições de Marx e Engels na política,
economia e filosofia nos permitem ter noções sobre a relação capital-trabalho e um
perfil da sociedade, em que o trabalho assalariado aponta para um nexo entre
exploração e pauperismo. Vejamos:

A gestação do mundo burguês foi um processo longo, doloroso, uma história


de inaudita violência. Cobrindo um espaço temporal multissecular,
caracterizou-se pela destruição brutal de antigos modos de vida, pela
substituição de modelos anteriores de controle social, pela supressão a ferro e
fogo das formas de organização societária precedentes. Seu triunfo, porém,
assinalou um formidável avanço na existência humana. É no seu âmbito que
se colocam possibilidades antes inimaginadas para a exploração da natureza e
elevação das condições da vida dos homens - e pouco importa que tais
possibilidades, quando realizadas, tenham tido um preço social altíssimo,
uma vez que neste mundo o custo do progresso é a generalização da miséria
relativa. O que interessa é que o estabelecimento do mundo burguês abriu
uma etapa de desenvolvimento sócio-humano que, previamente, sequer seria
vislumbrada (NETTO, 1987, p.11).

Valemos-nos das concepções de Marx nessa reflexão sobre educação, porque


compreendemos que a escola e todos os processos que colaboram para a sua
organização estão subordinados aos interesses da classe burguesa, já que é a classe que
ocupa espaços de poder em uma sociedade de classes. Logo, as políticas públicas
destinadas às reformas na educação básica e superior em nosso país são produtos
históricos em que a elite “escolarizada” revela o seu anseio em perpetuar o poder. “Sem
esta compreensão, será impossível uma teoria social que permita oferecer um
conhecimento verdadeiro da sociedade burguesa como totalidade” (NETTO, 2011,
p.38).
Na discussão das dimensões políticas e econômicas do Estado moderno proposta
por Marx, compreende-se a dialética entre Estado e classes sociais, pois ele apresenta
uma sociedade heterogênea, um antagonismo entre classes, cujo princípio era defender
os interesses do capital. Para garantir a manutenção do acúmulo e reprodução do capital,
o Estado burguês constitui-se como elemento de opressão e repressão sob os proletários.
Os burgueses capitalistas não precisam trabalhar para sobreviver, enquanto os operários/
trabalhadores precisam vender a sua força de trabalho, para garantir a sua existência.

sumário 1281
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Encontramos nas concepções marxianas uma abordagem mais restrita sobre o


Estado, visto que nela discute-se “poucas determinações do fenômeno político estatal”,
contudo, isso não diminui a importância da sua teoria. Na concepção de Marx, o Estado
é analisado a partir das relações políticas pós-Revolução Francesa, “que se caracterizou
pelas reduzidas política do proletariado nascente”. Nesse período, o lado repressivo do
Estado esteve em primeiro plano. Segundo Simionatto (2011), se o Manifesto do
Partido Comunista é o ponto de “chegada” para Marx, já para Gramsci é o ponto de
partida.
A análise gramsciana destaca a crise do Estado liberal e o capitalismo como
sistema hegemônico fortalecido. Este é um período de insurgência de novas relações
sociais, na qual há uma “crescente socialização da política” e a “ampliação do
fenômeno estatal”. “Gramsci percebe que, na sociedade capitalista moderna, o Estado se
ampliou e os problemas relativos ao poder se complexificaram na trama da sociedade,
fazendo emergir uma nova esfera social” (SIMIONATTO, op.cit., p.68). Assim, nasce a
sociedade civil e com ela um Estado ampliado, no qual avulta-se o protagonismo
político e as organizações das massas. Para Gramsci, o Estado consiste na sociedade
organizada de forma soberana. A teoria proposta pelo italiano não descarta o que fora
proposto por Marx, Engels e Lênin, o que ele faz é incluir novos aspectos, novas
premissas. “No campo da teoria política, esse ponto de inflexão no pensamento
gramsciano apresenta-se como uma reflexão ampla e inovadora a respeito do conceito
marxista de Estado.” (SIMIONATTO, op.cit., p.69).
Gramsci compreende que a visão de Estado proposta por Marx não dava conta
das transformações sociais que aconteceram no século XX. Por isso, não elimina a
contribuição crítica marxiana. O seu esforço se deu em um “movimento dialético de
‘superação/ renovação’”, em que novos sentidos do capitalismo eram necessários. Por
conseguinte:

Em Gramsci, encontramos uma ampliação dessa interpretação, na medida em


que procura mostrar que a sociedade civil é o espaço onde se organizam os
interesses em confronto, é o lugar onde se tornam conscientes os conflitos e
as contradições. Nele, a sociedade civil é um momento da superestrutura
idológico-político e não, como em Marx, da base real. Essas esferas, contudo,
não são independentes, pois estrutura e superestrutura se relacionam
dialeticamente. Tal relação é a chave do marxismo gramsciano
(SIMIONATTO, op.cit. 70).

sumário 1282
VII Seminário Vozes da Educação

A “originalidade” das reflexões de Gramsci é a relação inédita entre “economia


e política, entre sociedade civil e sociedade política.”. A sociedade civil no pensamento
gramsciano é o local de disputa pela hegemonia, enquanto a sociedade política
representa o “conjunto de aparelhos” utilizados pela classe dominante para exercer a
violência “estado de coersão” - ditadura. Se na sociedade política o exercício do poder
está em uma ditadura, na sociedade civil pode ser dado através do consenso.

Os portadores materiais da sociedade política são os aparelhos repressivos do


Estado, cujo controle é realizado pelas burocracias executiva e policial-
militar (SIMIONATTO, op.cit., p.72).

Na sociedade civil são “aparelhos privados de hegemonia.” Se em Marx o fim


do Estado correspondia ao fim da sociedade de classe, em Gramsci o fim do Estado ou
da sociedade civil regulada está no fortalecimento da sociedade civil e eliminação de
meios autoritários e coercitivos.

A escolarização das massas para o trabalho a partir do processo de


industrialização no Brasil
As interpretações da realidade brasileira no que tange à economia, política e
educação podem ser analisadas através de inúmeras teorias. Aqui, as categorias
gramscianas, destacadas por Coutinho nos ajudam na compreensão da vivacidade do
concreto do cenário brasileiro a partir de 1930. O autor utiliza a chave de leitura de
Gramsci “revolução passiva”, a fim de demonstrar como o país experimentou o
processo de modernização do capitalismo.
A década de 1930 é considerada como a gênese da modernidade no Brasil. Isso
se dá pela expansão de bases do capitalismo industrial. Para Coutinho (2008), as
mudanças ocorridas na organização social do país são consideradas moderno-
conservadoras, já que conservam “elementos da velha ordem”, ou seja, se dão pelo alto
e não por vias populares. Nisso consiste o diálogo de Coutinho com Gramsci ao
expressar que nossas características histórico-genéticas são expressões de um processo
passivo político e social: uma revolução passiva. “[...] as revoluções passivas provocam
mudanças na organização social, mas mudanças que também conservam elementos da
velha ordem. [...] transformações – ou de revoluções, se quisermos – que se dão ‘pelo
alto’” (p.174). Motivo pelo qual fez com que a nossa transição de um país colonial para

sumário 1283
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

um país independente tenha sido frágil. A moderna burguesia brasileira preferiu pactuar
com o atraso a conciliar com as classes populares. Assim:

[...] se observarmos bem, veremos que o processo de independência não se


constituiu absolutamente em uma revolução no sentido forte da palavra, isto
é, não representou um rompimento com a ordem estatal e socioeconômica
anterior, mas foi apenas, de certo modo, um rearranjo entre as diferentes
frações das classes dominantes (COUTINHO, op.cit,, p.176).

Para explicar a formação política e social do Brasil, o autor utiliza o conceito de


“via prussiana” de Lênin, nas noções estruturais do Estado, mas precisamente na relação
com a modernização agrária e o de “revolução passiva” de Gramsci, nos aspectos
superestruturais, na relação política e social. O processo de independência é destacado
por Coutinho, a fim de entendermos que nos constituímos como Estado unificado, antes
de sermos uma nação.
Em sua concepção, se tivéssemos no Brasil um processo de independência
diferente, isso quer dizer de baixo para cima, através de ações populares e republicanas,
como aconteceu em outros países da América espanhola, mas visto entre nós nas
inconfidências baianas e mineiras, poderíamos hoje, não ser um país unificado. Mas, ele
não vê problema nesse evento. Salienta “E essa eventual fragmentação não teria sido,
necessariamente, um fato negativo, caso tais repúblicas tivessem sido construídas com
participação popular” (p.176), o que poderia resultar em estruturas mais democráticas e
menos oligárquicas. Coutinho acredita que o “milagre” da unificação do país tenha se
dado justamente pela independência do país ter sido de forma atípica. O resultado disso
é que:

[...] desde o início de nossa formação histórica, uma classe dominante que
nada tinha a ver com o povo, que não era expressão de movimentos
populares, mas que foi imposta ao povo de cima para baixo ou mesmo de
fora para dentro e, portanto, não possuía uma efetiva identificação com as
questões populares, com as questões nacionais (COUTINHO, op.cit., p.176).

Pode-se dizer que o Estado moderno brasileiro é uma “autocracia burguesa”,


expressão de Florestan Fernandes, que determina o poder da burguesia no
desenvolvimento do capitalismo nacional. Ainda para Coutinho, embora tenhamos
entrado na modernidade em 1930, somente no movimento liderado por Vargas
consolidou-se a passagem para o capitalismo no país. Após a Abolição da Escravidão e
da Proclamação da República, já éramos uma sociedade capitalista, em um Estado

sumário 1284
VII Seminário Vozes da Educação

burguês, todavia, depois de 1930, consolida-se e generaliza-se as relações capitalistas


no Brasil, “inclusive com a expansão daquilo que Marx considerava o ‘modo de
produção especificamente capitalista’, ou seja, a indústria.” (p.176).
É nesse contexto que se inicia uma modernização na organização da escola
brasileira. A Revolução de 1930 impõe um novo modelo de organização social. O
fortalecimento de modos de produção industrial demanda uma formação escolar do
trabalhador/operário para o trabalho nas fábricas. Reformas educacionais emergem, a
fim de ainda que de forma aligeirada e precária, os trabalhadores consigam inserção no
campo do trabalho. A Reforma Francisco Campos, Decreto nº 19.890 de 18 de abril de
1931 e todas que se seguem no modelo econômico liberal são insuficientes para atender
as exigências de um processo de formação democrático.
A escolarização da classe trabalhadora no Brasil é um projeto de manutenção do
poder hegemônico da burguesia. Quando analisamos a trajetória das reformas
educacionais do EM constatamos que às classes populares sempre foi ofertada uma
formação técnica e profissional, já para a elite “pensadora”, a educação propedêutica.
Essa dualidade histórica revela-se na materialidade do Estado no que se refere à divisão
social do trabalho “dirigentes e dirigidos”.
A divisão social do trabalho compõe a ossatura do Estado e de suas relações de
poder, segundo Poulantzas (2000):

Esta divisão não pode ser concebida de maneira empírico-naturalista, entre os


que trabalham com suas mãos e os que trabalham com cabeça: ela remete
diretamente às relações político-ideológicas, tais como ocorrem em
determinadas relações de produção (op.cit., p. 52).

Na divisão socio-técnica do trabalho, o intelectual e o manual compõem o


binarismo orgânico à acumulação do capital na materialização do Estado moderno
burguês. Essa relação tem ligação direta com a espoliação completa do trabalhador de
seus meios de produção. O trabalho intelectual (o saber) engendra a ideologia
dominante em seu processo de monopolização do saber, já que as massas populares
situam-se ao lado do trabalho manual.
Historicamente, o EM apresenta um caráter de “terminalidade”, ou seja, não são
dadas condições para que o trabalhador chegue ao ensino superior. Assim, permanece
em funções de trabalho manuais, enquanto a burguesia forma seus entes para compor os
poderes do Estado e garantir a propriedade privada.

sumário 1285
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Observamos que de 1930 aos dias atuais, as reformas educacionais consolidaram


o projeto de sociedade idealizado pela burguesia nacional. Na “nova” reforma do EM
não é diferente. Contudo, a nova legislação aponta para os estudantes como
protagonistas na seleção do seu percurso formativo. Mas, será que eles escolhem
mesmo, ou a possibilidade da escola é uma falácia? Levando em conta, que as classes
populares se formam para o trabalho, já que não acumulam capital, é possível, no nosso
ponto de vista que a grande maioria faça a opção pelo itinerário técnico-profissional ou
que a escola, que não está obrigada na Lei nº 13.415/17 a oferecer os cinco itinerários,
oferte em maior número, ou exclusivamente esse itinerário, que ainda possibilita que os
educadores não necessitem de uma formação docente, basta que tenham o notório saber.
Essa contrarreforma é mais uma resposta ao modelo econômico neoliberal
implementado no país desde a década de 1990.

A contrarreforma neoliberal e a farsa da reforma do ensino médio


De acordo com Draibe (1993), o neoliberalismo é uma reinvenção do
liberalismo, por não possuir um corpo teórico “próprio, original e coerente”. Contudo, o
neoliberalismo apresenta proposições e definições “mais próximas do
conservadorismo”. Para a autora há neoliberalismos, que se modificam no tempo, o que
dificulta a autoidentificação das correntes.
O fenômeno do neoliberalismo revela a lógica de como o capital se movimenta
na tentativa de libertar-se das barreiras que lhe são impostas. Nesse fenômeno, vemos o
desmonte de direitos sociais, fruto de lutas dos trabalhadores. O fim do Welfare State,
fim das garantias do trabalho e ao trabalho, e ainda a flexibilização dos modos de
produção, visto no Toyotismo e em seu modelo de acumulação flexível.

O que se pode denominar como ideologia neoliberal compreende uma


concepção de homem (considerado atomisticamente como possessivo,
competitivo e calculista), uma concepção de sociedade tomada como um
agregado fortuito, meio de o indivíduo realizar seus propósitos privados)
fundada na ideia da natural e necessária desigualdade entre os homens e uma
noção rasteira da liberdade (vista como função da liberdade do mercado)
(NETTO, 2012, p.238).

Esse modelo econômico foi implementado no Brasil a partir da década de 1990


no Governo de Fernando Collor de Melo e suas formas ampliadas nos governos de
Fernando Henrique Cardoso e os do PT. De acordo com Coutinho, o aspecto
fundamental desse Estado é ter relações com interesses privados, ou seja, ter ligação

sumário 1286
VII Seminário Vozes da Educação

com diversas frações da burguesia. A lógica do Estado neoliberal é além de privatizar o


patrimônio público, suprimir direitos sociais resultado das lutas da classe trabalhadora,
como já dissemos.

Adotando o modelo neoliberal, a burguesia (sobretudo o seu setor financeiro,


hoje predominante) propõe não só o fim do intervencionismo estatal, com a
transferência para o mercado da regulação da economia, mas também a
desconstrução do velho corporativismo de Estado, no qual, em troca da
renúncia à autonomia de suas organizações sindicais e políticas, eram
concedidos legalmente aos trabalhadores alguns direitos sociais
(COUTINHO, op. cit., p.194).

O capital industrial legitima e determina um sentido de formação. No tangue a


reforma do EM proposta pelo governo Michael Temer em 2016 pela Medida Provisória
746 e implementada em 2017, enxergamos mais um desdobramento da lógica
neoliberal. “Desde o final do século XX, o Brasil tem procurado ajustar sua política
econômica e de gestão do Estado sob orientação dos organismos internacionais tais
como o FMI e o Banco Mundial.” (DUARTE; DERISSO, 2017, p.132). Na escola
pública temos contemplado “uma orientação tecnicista e produtivista”.
Kuenzer (2017), destaca que a formação do EM vem sendo disputada e que nos
últimos cinco anos os “projetos e práticas pedagógica” foram mais flexibilizados.
Assim, numa ponta estão os “interesses privatistas”, na outra, “os intelectuais e
entidades” que se empenham em garantir “formação ampla” e “integrada” para as
massas populares.

A controvérsia estabelece-se sobre a relação entre rigidez e flexibilidade;


para o grupo privado que se organiza com o apoio do MEC, as
DCNEM/2012 em vigor são rígidas, uma vez que estabelecem um único
percurso, disciplinar e com excessivo número de componentes curriculares, a
partir do que propõe a flexibilização dos percursos. Para o Movimento em
Defesa do Ensino Médio, essa proposta fragmenta a formação e desconstitui
a educação básica, que deixa de ser obrigatória e comum, como determinam
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/1996) e as DCNEM/2012
(KUENZER, op.cit. p.333).

Para a autora, se as instâncias públicas: Ministério da Educação (MEC) e


Secretarias; e as privadas: Sistema S, Fundação Bradesco, UNIBANCO, Instituto
Ayrton Senna, Fundação Lemann, Todos Pela Educação apoiam as mudanças que
geram a flexibilzação do seguimento, vemos professores, estudantes, intelectuais e
movimentos sociais enfrentando as proposituras do “novo” EM.

sumário 1287
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Em janeiro de 2018, na página do Instituto Ayrton Senna foi publicado o texto O


novo Ensino Médio avança, escrito Por Mozart Neves Ramos e publicado originalmente
na
Isto É Online ‐ Opinião em junho de 2017. Em um dos trechos do texto lê-se:

Poucos meses após ter sido aprovado pelo Congresso Nacional, o novo
Ensino Médio avança no País, ainda que num cenário repleto de dúvidas
sobre sua implementação. De fato, ainda não muitos os desafios a serem
cuidados para que as mudanças possam sair do papel. Mas é alentador saber
que, apesar do grave cenário de crise política, há um grande esforço do
Ministério da Educação, do Conselho Nacional de Educação, de secretários
de Educação e de instituições e fundações do Terceiro Setor para aterrissar
esse novo Ensino Médio no chão de escola.

De acordo com Silva (2017), a Lei nº 13.415/17 anuncia um EM líquido. Isso se


deve ao fato de somente língua portuguesa e matemática serem matérias obrigatórias no
novo currículo. Todas as outras disciplinas poderão ser ofertas diluídas em outras. Além
das duas disciplinas obrigatórias, a opção de língua estrangeira no “novo ensino médio”
é a língua inglesa. Assim, o aluno não poderá selecionar a língua que deseja estudar.
O itinerário formativo que contempla a educação técnica e profissional pode ser
ofertado em parceria com o setor privado e utilizando os recursos do Fundo de
manutenção e Desenvolvimento da Escola Básica (FUNDEB). Nesse itinerário, não há
exigência de um docente. A exigência é atestar o notório saber, a fim de receber uma
certificação para a docência.
Na formação técnica e profissional, o aluno ainda pode ser dispensado de
algumas disciplinas, caso comprove que fez cursos à distância e consiga mostrar saberes
práticos sobre esse aprendizado. O que segunda autora, pode “esvaziar ainda mais o
aprendizado” e potencializar a “liquidez” da “nova” proposta de EM. Nisso, esse estado
líquido reforça a disputa que há no campo da educação básica no Brasil e os ataques
constantes que o EM enfrenta. Formar de forma aligeirada e para o trabalho simples, é,
sem dúvida uma proposição para as juventudes brasileiras das classes populares. Aquela
que mesmo em condições precárias e frágeis frequenta e se forma na escola pública.

É “líquido” também porque mergulha no mais profundo abismo a juventude


brasileira da escola pública. Porque afunda toda e qualquer possibilidade de
uma vida digna para esses/as jovens, conseguida por meio de uma formação
escolar densa e crítica, de uma preparação séria para o mundo do trabalho ou
para o prosseguimento dos estudos. Sobre esse último, o prosseguimento nos
estudos, essa “liquidez” afoga mais e mais as possibilidades já pequenas de
ingresso em uma Universidade pública (SILVA, 2017 s.p).

sumário 1288
VII Seminário Vozes da Educação

Para Duarte e Derisso (op.cit), esta reforma ancora-se na teoria do capital


humano, pois nela revela-se a intencionalidade de formação técnica e profissional. Não
há uma preocupação com a formação ampla para a juventude brasileira. Há uma
tentativa de fazê-los concluir o EM com um currículo mínimo, para que possam ao
término dessa etapa oferecer sua mão de obra para trabalhos manuais/ simples/ comuns.
Entendemos que dividir o alunado por percursos de formação é eliminar a sua
formação unitária. Ao/a aluno/a que optar pelo percurso formativo por áreas técnicas e
profissionais será negada a formação humanística (ampla e integrada) defendida por
Antonio Gramsci. Para o autor: “A divisão fundamental da escola em clássica e
profissional era um esquema racional: a escola profissional destinava-se às classes
instrumentais, ao passo que a clássica destinava-se às classes dominantes intelectuais.”
(GRAMSCI, op.cit., p.118). Nisto, não vemos nenhuma mudança estrutural no “novo”
EM, ao contrário ele reafirma o caráter dualista nessa propositura:

Num sentido prático, teremos assim a oficialização da escola dualista, do


modelo de escola capitalista constituído por duas redes de ensino. E um
conhecedor dos autores crítico-reprodutivistas poderia antecipar então que
estas duas redes sejam constituídas por uma que seria orientada para formar
quadros dirigentes e outra, muito mais abrangente, para a formação de mão
de obra, ambas no interior da escola estatal. Isto, porém, constitui uma
interpretação equivocada dos possíveis resultados da Reforma, uma vez que
no Brasil os dirigentes são na sua quase totalidade oriundos da rede privada
de ensino, diferentemente da França das décadas de 1960/70, que inspirou os
teóricos crítico-reprodutivistas, onde a rede privada de ensino era
praticamente insignificante se comparada com a rede estatal. Sendo assim, o
que podemos esperar é que as duas redes que passarão a existir no ensino
público estatal serão constituídas por uma destinada ao desenvolvimento de
competências para o trabalho no sentido mais pragmático e outra voltada para
o prosseguimento do ensino superior, em busca de ascensão social por meio
de postos intermediários de trabalho no setor de produção ou serviços, do
sucesso em pequenos empreendimentos ou de uma invejada profissão liberal,
mas dificilmente as grandes funções empresariais ou políticas (DUARTE
E DERISSO, op.cit., p.140).

Gramsci, nos ajuda na compreensão de que a escola é uma instância de


organização da cultura. Essa organização contempla mais um mecanismo de
acumulação de capital, por isso, a escola que conhecemos é uma escola de interesse
capitalista, cujo projeto civilizatório é burguês. A educação representa um campo de
força para que o consenso da burguesia se concretize. Para o autor, a divisão
fundamental entre a escola clássica (propedêutica) e a escola profissional está em que a
primeira destinava-se aos dominadores e segunda aos dominados.

sumário 1289
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

No esforço de superação dessa dualidade, Gramsci propõe uma escola única


composta por cultura geral, humanista, e que equilibrasse as atividades técnicas,
industriais e intelectuais. Além disso, nos chama atenção para uma escola criadora, na
qual o professor exerça somente a função de “guia amigável”. Assim, o/a aluno/a pode
realizar um “esforço espontâneo” e “autônomo”. O que é completamente alheio à escola
brasileira no que tange ao EM em sua construção histórico-social. O que vimos foram
várias tentativas de capacitar cada vez mais e mais rapidamente os/as alunos/as pobres
para a indústria e para o comércio. Numa pedagogia frágil e débil para diminuir as
fissuras formativas das juventudes no país.

Considerações provisórias
Iniciamosnossa reflexão com uma breve tentativa de elaborar um conceito de
Estado, baseado nas contribuições de Marx e Gramsci, para, a partir dele interrogarmos
o nosso objeto de forma mais consistente. Nesse movimento, verificamos que temos a
necessidade de conhecer mais sobre a temática, pois há inúmeras perguntas em aberto, e
precisamos de mais tempo e mais provocações teóricas para respondê-las.
Todavia, podemos provisoriamente concluir que a reforma do EM proposta pela
Lei nº 13.415/17, que altera a Lei 9.394/2016 não supera a problemática da precarização
da formação da classe trabalhadora neste seguimento da educação básica, pelo
contrário, irá potencializar as desigualdades dos processos formativos e reforçar a
estrutura dual do seguimento, já que atende a uma lógica hegemônica do Estado: formar
a elite para dirigir e a as classes populares para ser dirigidas.
Isto posto, temos o desafio de continuar nosso esforço epistemológico na
compreensão das disputas que ocorrem entre o Estado e a sociedade civil em uma
conjuntura cuja lógica mercadológica neoliberal nos impõe limites e nos desumaniza
com processos cada vez mais instáveis de oferta de trabalho e de direitos sociais.

Referências
BRASIL. Decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1931. Dispõe sobre a organização do
ensino secundário.

______. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017.

COUTINHO, Carlos Nelson. O Estado Brasileiro: Gênese, crises e alternativas. In:


LIMA, Júlio César Franca; NEVES, Lúcia Maria Wanderley. Fundamentos da
Educação Escolar do Brasil Contemporâneo. 2ª reimpressão. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2008.

sumário 1290
VII Seminário Vozes da Educação

DRAIBE, Sônia M. (1993). As políticas sociais e o neoliberalismo - Reflexões


suscitadas pelas experiências latino-americanas. Revista USP, (17), 86-101.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i17p86-101.

DUARTE, Rita de Cássia; DERISSO, José Luis. A reforma neoliberal do ensino


médio e a gradual descaracterização da escola. Germinal: Marxismo e Educação em
Debate. V.9, nº2, 2017. <
https://portalseer.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/21857>

GIOVANNI, Geraldo; NOGUEIRA, Marco Aurélio. Dicionário de Políticas Públicas.


São Paulo: UNESP, 2015. Verbete Estado.

GRAMSCI. Antônio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Trad. Carlos


Nelson Coutinho. 4ª. ed. Civilização Brasileira, 1982.

KUENZER, Acácia. Trabalho e escola: a flexibilização do ensino médio no


contexto do regime de acumulação flexível. Educ. Soc., Campinas, v. 38, nº. 139,
p.331-354, abr.-jun., 2017.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 1.ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2008.

NETTO. O que é Marxismo? 4.ed. São Paulo. Editora Brasiliense, 1987.

______, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. 1.ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2011.

______; BRAZ, Marcelo. Economia Política: uma introdução crítica. 8. ed. São
Paulo: Cortez, 2012.

POULANTZAS, Niko. O Estado, o Poder e o Socialismo. São Paulo: Paz e Terra,


2000.

RAMOS, Mozart Neves. O novo Ensino Médio. IstoÉ Online, 2017.


<https://www.institutoayrtonsenna.org.br/pt-br/radar/o-novo-ensino-medio-
avanca.html>

SILVA, Monica Ribeiro. Como fica o Ensino Médio com a reforma – vem aí o
Ensino Médio “líquido”. Observatório do Ensino Médio, 2017.
<http://www.observatoriodoensinomedio.ufpr.br/como-fica-o-ensino-medio-com-a-
reforma-vem-ai-o-ensino-medio-liquido/>

SIMIONATTO, Ivete. Gramsci: sua teoria, incidência no Brasil, influência no


Serviço Social. 4.ed. São Paulo: Cotez, 2011.

SOUZA, H. De. Como se faz análise de conjuntura? Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

TIBLE, Jean. Marx contra o Estado. Revista Brasileira de Ciência Política. nº 13.
Brasília, janeiro-abril de 2014.

sumário 1291
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À EDUCAÇÃO E A PRODUÇÃO DE


DESIGUALDADES SOCIAIS

Maria Beatriz Lugão Rios178


FFP UERJ
beatrizlugao@bol.com.br

“O todo sem a parte não é todo;


A parte sem o todo não é parte;
Mas se a parte o faz todo, sendo parte;
Não se diga que é parte sendo todo.”
(MATOS, Gregório )1

Através da história da constituição da Escola Pública Brasileira podemos


constatar períodos diferenciados de sua oferta quantitativa e qualitativa aos setores
populares. Essa construção é atravessada pelos conflitos sociais e econômicos que se
expressam nas lutas e pressões de sujeitos políticos coletivos e da forma e conteúdo que
cada um confere à educação. As sínteses oriundas desse embate se materializam em
políticas públicas que desenham o acesso, permanência e conteúdo da escola pública e
dão pistas da correlação de forças dos sujeitos coletivos em torno de seus interesses
econômicos/sociais.
Para Shiroma (2000), compreender o sentido de uma política pública necessita
ir além de sua esfera específica e buscar o entendimento do projeto social do Estado e as
contradições do momento histórico em questão.
Assim, para compreender o atual estágio de oferta e demanda pela escolaridade
básica formal e sua implicação na produção de desigualdades sociais o presente estudo
se remeterá a indicadores políticos/econômicos internacionais e nacionais, ao contexto
histórico de embates do ciclo hegemônico neoliberal, o papel da escola e as
consequências sociais de suas limitações.
O estudo é um exercício de aproximação do objeto em sua forma global e
específica, devendo ser aprofundado com mais diálogos conceituais, históricos e
estatísticos.

178
Doutoranda PPGEdu – Processos Formativos e Desigualdades Sociais/ FFP/UERJ.

sumário 1292
VII Seminário Vozes da Educação

O ciclo hegemônico neoliberal e seus pilares


A questão principal do estudo é a investigação do acesso à escolaridade como
fator de inserção social/econômica e cultural das classes populares pós ditadura militar,
quando teve início o ciclo hegemônico do neoliberalismo no país.
A eleição de 1989, primeira eleição direta para a Presidência da República, deu-
se sob o marco do Consenso de Washington, da queda do muro de Berlim e , enfim, de
um novo desenho de forças e projetos políticos e econômicos internacionais.
As 10 (dez) diretrizes econômicas do Consenso de Washington: Disciplina
fiscal; Redução dos gastos públicos; Reforma tributária; Juros de mercado; Câmbio de
mercado; Abertura comercial; Investimento estrangeiro direto, com eliminação de
restrições; Privatização das estatais; Desregulamentação (afrouxamento das leis
econômicas e trabalhistas); Direito à propriedade intelectual, irão guiar a luta pelo novo
formato do Estado , das políticas públicas e do mundo do trabalho.
A eleição de 1989 demonstrou o embate entre dois projetos para o Brasil. A
resistência de setores populares durante a ditadura e o aparecimento de novos setores de
trabalhadores urbanos se somaram em construção de representações políticas como
sindicatos, confederações, associações centrais sindicais e partidos. Essa associação de
forças populares resultou em um projeto democrático de massas representado pelo
Partido dos Trabalhadores em contraposição ao projeto de Fernando Collor de Mello,
que representou o projeto do Estado mínimo do Consenso de Washington. A vitória de
Fernando Collor abre um novo período político e econômico no Brasil, onde as políticas
neoliberais serão gestadas, testadas e implementadas em todos os setores.
Nesse processo de estabelecimento de políticas públicas no marco do Consenso
de Washington, em março de1990, a Conferência Mundial de Educação intitulada
Conferência Mundial Sobre Educação Para Todos reuniu 157 países em Jomtien, na
Tailândia.
A Educação, da escola básica à pós graduação, viverá um ciclo de reformas para
uma adaptação ao novo momento de acumulação do capital. A forma e o conteúdo da
escola básica precisam de um novo contorno para atender às diretrizes e ao novo papel
que lhe foi determinado.
A necessidade da universalização do acesso à educação foi uma das principais
metas para o decênio resultantes da Conferência Mundial de Educação Para Todos. 2 O
artigo 3 em seu item 1 da Declaração Mundial de Educação Para Todos, 1990 ,
aprovada no Conferência de Jomtien, aponta que “(..) A educação básica deve ser

sumário 1293
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

proporcionada a todas as crianças, jovens e adultos. Para tanto, é necessário


universalizá-la e melhorar sua qualidade, bem como tomar medidas efetivas para
reduzir as desigualdades”.
O acesso à educação passa a ser meta prioritária para as políticas públicas,
encaradas como forma de diminuição das desigualdades sociais.
A Declaração de Jomtien aponta, ainda, a necessidade de superar a degradação
dos serviços educacionais observada ao longo dos anos 1980.
No preâmbulo da Declaração há o diagnóstico de mais de 100 milhões de
crianças (60% delas meninas) sem acesso ao ensino primário e mais de 960 milhões de
adultos analfabetos á época.3
Os nove países em desenvolvimento mais populosos do mundo (Brasil,
Bangladesh, China, Egito, Índia, Indonésia, México, Nigéria e Paquistão) se reuniram
em 1993, na Índia, para estabelecer um plano que os colocasse em sintonia com as
metas da Conferência de Jomtiem . Ainda em 1993, no governo de Itamar Franco, foi
lançado o Plano Decenal de Educação Para Todos.
No ano de 2000 a Conferência Mundial de Educação Para Todos ,em Dakar –
Senegal, avalia os resultados da Conferência de Jomtien e aponta os principais desafios
a serem tratados na educação : a)expandir e melhorar o cuidado e a educação da criança
pequena, especialmente para as crianças mais vulneráveis e em maior desvantagem: b)
assegurar que todas as crianças, com ênfase especial nas meninas e crianças em
circunstâncias difíceis, tenham acesso à educação primária , obrigatória , gratuita e de
boa qualidade até o ano 2015; c) assegurar que as necessidades de aprendizagem de
todos os jovens e adultos sejam atendidas pelo acesso equitativo à aprendizagem
apropriada, a habilidades para a vida e a programas de formação para a cidadania ; d)
alcançar uma melhora de 50% nos níveis de alfabetização de adultos até 2015,
especialmente para mulheres , e acesso equitativo à educação básica e continuada para
todos os adultos ;e) eliminar disparidades de gênero na educação primária e secundária
até 2015 e alcançar a igualdade de gênero na educação até 2015, com enfoque na
garantia ao acesso e o desempenho pleno equitativo de meninas na educação básica de
boa qualidade ;f) melhorar todos os aspectos da qualidade da educação e assegurar
excelência para todos, de forma a garantir a todos resultados reconhecidos e
mensuráveis , especialmente na alfabetização, matemática e habilidades essenciais à
vida.

sumário 1294
VII Seminário Vozes da Educação

Com a participação de 180 países a Conferência constatou, que, apesar dos


avanços, após uma década, os problemas de acesso à escola persistem.

... “é inaceitável que no ano 2000, mais de 113 milhões de crianças


continuem sem acesso ao ensino primário, que 880 milhões de adultos sejam
analfabetos, que a discriminação de gênero continue a permear os sistemas
educacionais e que a qualidade da aprendizagem e da aquisição de valores e
habilidades humanas estejam longe das aspirações e necessidades de
indivíduos e sociedades. Jovens e adultos não têm acesso às habilidades e
conhecimentos necessários para um emprego proveitoso e para participarem
plenamente em suas sociedades. Sem um progresso acelerado na direção de
uma educação para todos, as metas nacionais e internacionais acordadas para
a redução da pobreza não serão alcançadas e serão ampliadas as
desigualdades entre nações e dentro das sociedades.” DECLARAÇÃO DE
DAKAR,28 de abril de 2000.

As Conferências Mundiais apontam a educação como fator de redução da


pobreza e da desigualdade social. Também apontam que a aquisição de valores e
habilidades humanas no processo de aprendizagem escolar estão longe das aspirações e
necessidades dos indivíduos e das sociedades. Ao constatar que jovens e adultos não
tem acesso ao conhecimento e habilidades necessárias para um emprego proveitoso,
relacionam a escolaridade com o mundo do trabalho, como fator de empregabilidade.
Sendo assim, desvelar a relação do mundo do trabalho da ciência e da educação
é também desvelar o conteúdo das políticas públicas para a educação e dos fundamentos
dos projetos sociais em disputa na sociedade e sua correlação de forças.

Trabalho, ciência, educação e escola


As novas tecnologias diretamente aplicadas ao mundo da produção requerem
uma reflexão sobre a relação entre trabalho/ciência e educação e do novo papel da
escola básica no atual momento de acumulação do capital, bem como as ações dos
movimentos sociais pela escolaridade.
A velocidade cada vez maior das inovações tecnológicas tem transformado o
mundo da produção, e redesenhado os quantitativos dos postos de trabalho, da
qualidade dos mesmos e das habilidades necessárias para a empregabilidade em todos
os países. O grande número de desempregados no mundo e no Brasil em particular,
com 13,1 milhões (treze milhões e cem mil) no trimestre de dezembro de 2017 a
fevereiro de 20184, não necessariamente reflete somente a falta de escolaridade ou
habilidades necessárias aos postos de trabalho.

sumário 1295
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Vários estudos abordam a questão. O Coletivo Estudos de Políticas


Educacionais5 em seu trabalho publicado em 2015 Educação Básica: Tragédia
Anunciada, apresenta parte de uma pesquisa intitulada A formação para o trabalho
simples no Brasil contemporâneo: da Educação para Todos para Todos pela Educação.
Silva Martins e Neves, p.18, apontam a “urgência de realização de um estudo
sistemático da política educacional brasileira para a educação básica, patamar mínimo
para a formação do trabalho simples no capitalismo neoliberal do século XXI.”
Ao avaliar as características do trabalho simples hoje, em um mundo onde a
ciência aplicada é cada vez mais presente em todas as atividades econômicas/sociais e
culturais, devemos avaliar também o conteúdo e forma, qualidade e quantidade da
escolaridade que deverá formar esses trabalhadores.
A busca pela sobrevivência das classes populares inclui a escola como local de
construção de possibilidades de ingresso no mercado formal. Mas as mudanças no
mercado de trabalho tem diminuído sistematicamente os empregos ou precarizado suas
relações. A recente reforma trabalhista modificou as relações de trabalho instituídas
pela CLT, consolidando, em lei, o que já vigorava mercado.6
Olhando o projeto oficial de escolarização como formação de mão de obra e a
escola básica como formadora para o trabalho simples, se faz necessário o entendimento
da dinâmica do desenvolvimento das redes escolares em um país de mais de 13 (treze)
milhões de desempregados onde grande parte não tem perspectivas de volta ao mercado
formal e muitos são jovens.

Escola, juventude e sociedade


A participação crescente do trabalho informal e comércio de drogas na
economia, assim como o aumento da criminalidade entre jovens e crianças em idade
escolar tem sido objeto de inúmeros estudos 7 e pesquisas e constantemente anunciado
nas mídias.8
Em particular, o Estado do Rio de Janeiro tem apresentado números crescentes
tanto de desempregados quanto de apreensão de menores em idade escolar. A crise
econômica pela qual o país passa é mais aguda no Estado do Rio de Janeiro. No entanto,
mesmo antes de 2015, marco da crise econômica no Estado do Rio, os números já eram
preocupantes e já sinalizavam a necessidade de um olhar mais atento às políticas
públicas para a educação implementadas pelos governos estaduais.

sumário 1296
VII Seminário Vozes da Educação

O quadro a seguir aponta uma série histórica de 2012 à a 2018 de apreensão de


menores no Rio de Janeiro. Os dados apresentados demonstram o aumento de quase
150% de menores apreendidos em cinco anos.

FOTO 1: RJ1 de 15 de maio de 20189

O que também chama atenção na tabela apresentada é que são menores


apreendidos com mandado, ou seja, menores que estão diretamente envolvidos com
organizações criminosas e não com delitos como furto ou roubo de pertences nas ruas.
O crescente número de jovens apreendidos de idade cada vez menor é uma
constatação, assim como o afastamento dos mesmos da escola . Mas quais fatores foram
determinantes nesse afastamento e qual o peso de cada um?
Para além da evasão escolar e suas causas e as dificuldades econômicas das
classes populares, existem outros fatores que podem contribuir nesse afastamento.
Recentemente o novo Secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro ,
Pedro Fernandes ,admitiu publicamente a falta de mais de 20 mil 10 vagas no ensino
médio.

A crise na educação do estado do Rio de Janeiro chegou até os alunos do


ensino médio. Se não bastasse a falta de professores, dessa vez, o problema é
a falta de vagas. De acordo com muitos estudantes, o sistema Matrícula
Fácil não oferece um número suficiente de inscrições. Por este motivo,
muita gente ainda não conseguiu se matricular. Estima-se que o déficit seja
de 11 mil vagas. Em alguns locais, a fila de espera chega a 500 candidatos
(Por Jonas Feliciano em 21/02/2019 às 22:41:3911).

O número da falta de vagas tem como referência aqueles que procuraram a


escola. Mas será que a procura pelas vagas se universalizou ou existe segmento

sumário 1297
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

substancial da população em idade escolar que sequer se apresenta como demanda por
vaga?

Educação e disputa
Segundo as análises de Angela Martins e Lúcia Neves em seu artigo
“Materialismo Histórico, Cultura e Educação: Gramsci, Thompson e Willians” (Revista
HISTEDBR, 2013), os teóricos Antonio Gramsci, Edward Palmer Thompson e
Raymond Williams apresentaram como denominação comum das suas reflexões , um
papel fundamental da cultura e da educação nos processos de conservação e de
transformação das sociedades contemporâneas.
Na sociedade contemporânea, diversas são as formas onde cultura e educação
são propagadas. No entanto, a escola básica pública ainda é o local privilegiado de
educação das classes populares e centro de formulação e disputa de políticas públicas
orientadas pelos projetos de sociedade.
Os sujeitos políticos coletivos apontam papéis diferenciados para a escola. No
documento da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e Banco Mundial(BM)
intitulado Conhecimento e Inovação Para a Competitividade (Brasília,2008) , fica claro
que o papel da escola é o de formação de capital humano para o novo momento da
produção. Nas principais mensagens sobre o ensino fundamental, o documento aponta
(p.178), que “os formuladores da política educacional se concentraram ( corretamente)
na expansão da cobertura do ensino fundamental, da alfabetização e da igualdade do
acesso nos últimos 15 anos.” E ainda

Os trabalhadores que dispõe de sólida capacitação básica e podem usar e


adaptar as novas tecnologias são necessários no chão da fábrica. No plano
econômico, eles não são menos essenciais do que os engenheiros e os
administradores- que apresentam novas tecnologias e estabelecem o ritmo do
crescimento da produtividade-, nem que os pesquisadores públicos e privados
cujas atividades de P&D podem levar a novas descobertas e aplicações. CNI,
BANCO MUNDIAL (p.178)

Nas mobilizações Nacionais das recentes lutas contra a reforma da Previdência,


a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação- CNTE12 – que está à frente
da construção da greve geral da educação no dia 15 de maio- evidencia uma visão de
escola diferente ao questionar a política educacional em vigor e a da propagada pela
CNI/BM.

sumário 1298
VII Seminário Vozes da Educação

O principal objetivo da atividade dos trabalhadores e das trabalhadoras de


todo país é o de denunciar os retrocessos e perigos que inúmeras medidas que
estão sendo tomadas em sentido contrário aos direitos assegurados na
Constituição Federal representam para a educação no Brasil. Entre elas, a Lei
da Mordaça, a privatização da escola e da universidade pública, a
desvinculação de recursos para a educação, a militarização das escolas, a
implantação de conteúdos mínimos e direcionados a uma formação escolar
adestradora, além dos constantes ataques aos trabalhadores e trabalhadoras
em educação, que afetam negativamente não apenas a valorização dos
profissionais, mas a qualidade de todo o sistema educacional. CNTE13

Na apresentação de suas finalidades no site da CNTE, a entidade revela sua participação


como sujeito político coletivo nas lutas pela educação em diversas esferas:

...os profissionais da educação lutam em defesa de uma escola pública


democrática e de qualidade, encaminhando suas propostas para os órgãos do
Governo Federal, do Congresso Nacional, dos Governos Estaduais e
Municipais, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores.

Aponta ainda ações e pesquisas desenvolvidas pela entidade:

Também as diversas pesquisas desenvolvidas pela CNTE têm respaldado a


luta dos trabalhadores em educação por políticas públicas focadas nas reais e
urgentes necessidades do ensino público. São pesquisas sobre saúde e
condições de vida dos educadores, análise crítica do Sistema de Avaliação da
Educação Básica (SAEB), condições dos trabalhadores aposentados, dentre
outras.14

Outros sujeitos políticos coletivos como o MST (Movimento de trabalhadores Sem Terra),
MTST (Movimento de Trabalhadores Sem Teto) , Partidos Políticos, associações de moradores,
organizações religiosas, Organizações Não Governamentais , etc também entram na disputa por
políticas públicas para a educação.
Ao disputar políticas públicas para a educação escolar, os movimentos sociais também
imprimem uma marca no conteúdo e na qualidade da escola. Sendo assim, a escola é um espaço
tanto de manutenção da realidade quanto de gestão de sua mudança. Os projetos que constroem seu
dia a dia disputam tanto sua quantidade como sua qualidade e desenham sua realidade atual.
No Brasil em 2017 a escola básica teve 48,6 milhões de matrículas 15,
representando quase ¼ da população brasileira, o que demonstra seu peso como política
de atendimento à população. E de potencial de conformar sociabilidades e habilidades.
As redes municipais detêm 47,5% das matrículas na educação básica; as redes
estaduais participam com 33,4%; a rede privada tem uma participação de 18,3%, a rede
16
Federal participa com menos de 1%. Assim, a escola básica pública atende a maioria
das matrículas e entre elas destacam-se as Redes Estaduais e Redes municipais.
No entanto o número de alunos fora da escola, atestado nos preâmbulos dos
documentos das Conferências Mundiais e em recentes campanhas educacionais como a
da Fundação Roberto Marinho (-# Nem1PraTras- que aponta mais de 1milhão e

sumário 1299
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

trezentos mil jovens fora da escola)17, evidencia que não se atingiu a universalização do
ensino.
Nas Conferências Mundiais de Educação Para Todos de Jomtien e Dakar o
acesso à educação é tida como uma prioridade. No entanto, nas décadas posteriores às
Conferências (1990 e 2000), ainda não se alcançou a universalização no país. A análise
do acesso à escola pode nos dar pistas da correlação de forças do embate entre os sujeitos políticos
coletivos.

A escola básica em foco


Como lócus privilegiado de formação das classes populares, a escola básica
pública, notadamente das redes municipais e estaduais, tornam-se objetos privilegiados
para estudos e pesquisa, aprofundando a perspectiva de contribuições para construção
de políticas públicas para sua qualificação de forma coerente com o projeto de
sociedade.
Assim, estudar a escola básica pública no Estado do Rio de Janeiro torna-se
relevante também pela influência política do próprio Estado nas articulações e
determinações das políticas nacionais de educação. Nos últimos 10 (dez) anos as lutas
dos Profissionais da Educação das redes públicas e também das Universidades contra
políticas meritocráticas nas escolas e universidades, contra o desmonte dos patrimônios
públicos foram marcantes .
Segundo projeção do IBGE o Estado do Rio de Janeiro chegou em 2018 a
17.159.960 habitantes18. Cerca de 20%, ou 3 milhões e meio, segundo censo escolar do
INEP, são atendidos pela escola básica . A Escola Básica tem , portanto, importância
estratégica para o desenvolvimento econômico, político e cultural do Estado, visto que
atende a população jovem que será ou já é economicamente e politicamente ativa e onde
trabalham milhares de profissionais da educação. Segundo o IBGE, existem mais de 10
mil(dez) estabelecimentos de ensino da educação básica e mais de 165 mil( cento e
sessenta e cinco) professores.19
Os últimos dois anos tem sido emblemáticos no Estado do Rio de Janeiro. A
explosão da crise econômica potencializou a violência já vivida principalmente nas
favelas, nas periferias e cidades da Baixada Fluminense e Grande Rio. Justamente em
lugares onde a Escola Pública é , em grande parte , a única presença do Estado.
Não se pretende aqui afirmar que a política educacional implementada pelos
governos seja a causadora do aumento da violência. Mas pode se afirmar que é um dos

sumário 1300
VII Seminário Vozes da Educação

fatores . Se olharmos noticiários e estatísticas de prisões e mortes violentas em


confrontos veremos vítimas cada vez mais jovens. Justamente aqueles que deveriam
estar em salas de aula do ensino fundamental e médio da escola pública.
Saber hoje quantos jovens estão fora da escola e porque estão fora da escola é de
suma importância para apontar políticas públicas de acesso .Não é possível hoje olhar
somente para aqueles que procuraram escola e não conseguiram vaga . É preciso
quantificar aqueles que nem mesmo procuraram a escola. A análise dos resultados do
cruzamento do Censo do IBGE com os resultados do Censo Educacional do INEP em
seus anos coincidentes( 2010/2020) poderá nos dar pistas do quantitativo de crianças e
jovens em idade escolar que são atendidos pela escola básica. E quantos ainda não são.
A Conferência mundial de Educação para todos em Dacar no ano 2000 teve
como objetivo discutir o resultado das políticas traçadas na Conferência de Jomtien em
1990. A questão do acesso ainda é um problema, mesmo após mais de 25 anos do
encontro de Jomtien.

"Houve poucos avanços na última década. Mais de 125 milhões de crianças


continuam fora da escola em todo o mundo e poucos governos estão se
esforçando para melhorar a qualidade do ensino", afirma Jennifer Chilewa,
presidente do Conselho Internacional de Organizações Não-
Governamentais.20

O olhar para o número de matrículas nas redes de escolas básicas nos mostra
aspectos fundamentais da política traçada para o Estado do Rio de Janeiro em sintonia
com o projeto neoliberal de Estado Mínimo. Diversos Governadores aplicaram
políticas neoliberais na educação como Marcello Alencar, com a demissão voluntária
do funcionalismo, incluindo a educação, e Antony Garotinho, que instituiu o Projeto
Nova Escola, baseado no conceito de meritocracia e que consistia em avaliações,
classificações e consequentes gratificações . Mas não é por acaso que o olhar desse
início de estudo é para o período de 2007 a 2017, marcado pelo Governo de Sérgio
Cabral e Luiz Pezão. O ritmo e profundidade das políticas educacionais dos governos de
Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão contribuíram com maior peso para o desenho da
escola pública básica em nosso Estado hoje.
A tabela da evolução de matrículas na Escola Básica , baseada nos Censos
escolares do Inep21, revela dados resultantes das políticas implementadas em 10 (dez)
anos.

sumário 1301
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O quadro mostra uma diminuição de matrículas no ensino fundamental e no


ensino médio. O aumento das matrículas na educação infantil poderia sugerir um
implemento de políticas públicas de expansão de vagas. No entanto o setor privado é
quem detém 90% (noventa por cento) das matrículas na pré -escola e 42% (quarenta e
dois por cento) nas creches.
No ano de 2015 a rede particular perdeu mais de 100 (cem) mil matriculas,
interrompendo o crescimento constante desde o início do período avaliado. Em 2017
retoma o crescimento em meio à crise econômica do estado do Rio de Janeiro . Em 10
(dez) anos o número de matrículas cresceu mais de 50% (cinquenta por cento).
Aumentou sua presença no ensino fundamental e médio, justamente nos segmentos
onde a rede estadual diminui sua presença.
Um quadro sobre o desenvolvimento de matrículas na rede estadual nos apontará
outras questões. A rede Pública Estadual que atendia em 2007 quase um milhão e meio
de alunos hoje atende somente 720 (setecentos e vinte) mil. Não se explica essa redução
somente pelo fim do atendimento nos anos iniciais do ensino fundamental, pois a
diminuição se deu , também, no atendimento do ensino médio , obrigatoriedade do
estado. De quase 600 (seiscentos) mil alunos no ensino médio em 2007 , a rede estadual
se reduz a cerca de 400 (quatrocentos) mil em 2017.

Evolução Geral das matrículas da Escola Básica na Rede Pública Estadual


do Rio de Janeiro
Modalidade 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 Diferença

Creche 503 477 289 288 273 81 84 58 94 90 69 -434


Pré-Escola 10.710 3.206 986 721 622 529 497 528 351 242 155 -10.555
Fundamental 138.004 113.738 88.303 68.194 45.275 27.176 10.855 5.240 3.370 2.584 1.931 -136.073
1
Fundamental 345.663 347.393 346.467 335.712 319.540 284.114 261.624 235.632 205.138 192.077 167.667 -177.996
2
Médio 534.149 523.895 503.761 489.850 467.963 449.339 440.611 442.094 431.901 442.812 424.216 -109.933
Técnico 27.117 30.003 22.574 29.321 23.120 29.202 21.074 15.571 - - - -27.117
1 2 3
EJA 180.934 197.616 196.663 187.844 138.603 89.702 77.854 69.927 122.383 126.545 119.775 -166.959
Presencial
EJA Semi- 105.800 125.312 124.478 99.833 79.206 86.959 66.051 38.128
Pres.
4
Educ. 5.756 5.551 4.671 5.478 5.948 6.049 4.985 5.053 404 227 6.333 +577
Especial
Total 1.348.636 1.347.191 1.288.192 1.217.241 1.080.550 973.151 883.635 812.231 763.641 764.577 720.146 -628.490
5
Escolas 1.505 1.492 1.412 1.357 1.338 1.308 1.299 1.273 -232

sumário 1302
VII Seminário Vozes da Educação

Fonte: Censo do INEP22;QEDU 23

As políticas Públicas Estaduais para a educação nesse período foram


responsáveis pela diminuição de 50% (cinquenta por cento) das matrículas no
fundamental 2 – obrigação compartilhada com os municípios, segundo o artigo 10 da
LDB e &s 2 e 3 do artigo 211 da Constituição Federal . Também foram responsáveis
pela redução, em 10 (dez) anos, de mais de 100 mil matrículas no Ensino Médio-
atendimento obrigatório pela rede estadual previsto na LDB e Constituição Federal.
A breve abordagem apresentada no presente trabalho aponta as seguintes
questões serem aprofundadas : Como se desenvolveu o acesso à escola básica na
década posterior à Conferência de Jomtiem e Dakar? Como se configuram nesse
processo as exigências de qualidade e quantidade da escola para a formação para o
trabalho simples? Como os sujeitos políticos coletivos travaram as lutas por projetos
contra hegemônicos no país e no Estado do Rio de Janeiro? O atual projeto econômico
necessita de uma nova política pública de acesso à educação? As classes populares
deixaram de procurar a escola pública ou as políticas públicas estão dificultando o
acesso? Em que medida as Políticas Públicas para a Educação no Estado do Rio de
Janeiro contribuíram para a crise social /econômica e politica do Estado? Existem
projetos alternativos sendo gestados nas diversas esferas da luta política? Quais ? Como
estão resistindo e se construindo?

Referências
Banco Mundial/Confederação Nacional da Indústria. Conhecimento e Inovação para a
Competitividade. RODRIGUES Alberto; Dahlman Carl, Salmi Jamil. BM/CNI.
Brasília .2008

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mobilizam em todo país. Disponível em : https://www.cnte.org.br/index.php/cnte-na-
midia/20794-trabalhadores-se-mobilizam-em-todo-pais-rumo-a-greve-geral-da-
educacao.html. Aceso em 22 de abril de 2019.

Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação. CNTE. Institucional.


Disponível em : https://www.cnte.org.br/index.php/institucional/a-cnte.html. Acesso em
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sumário 1303
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GLOBO. Secretario de Educação do RJ admite que não tem vaga para todos os
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IBGE: Dados populacionais e econômicos sobre Estado do Rio de janeiro.


Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/panorama>. Acesso em 20 de abril
de 2019.

IBGE :Desemprego volta a crescer com 13 milhões de pessoas em busca de


ocupação. Disponível em :.https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-
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Violência Extrema (editora Appris),2017-https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
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sumário 1304
VII Seminário Vozes da Educação

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179
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Disponível http://inep.gov.br/resultados-e-resumos; e http://academia.qedu.org.br/censo
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https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2604200025.htm 26 de abril de 2000.
Acessado em 22 de abril de 2019.

179
MATOS, Gregório de. In:, José Miguel, Org. Poemas Escolhidos, São Paulo, Cultrix,1976, p.3207
2
A Declaração de Jomtien contém 10 objetivos: satisfazer as necessidades básicas de
aprendizagem;expandir o enfoque;universalizar o acesso à educação e promover a eqüidade;concentrar a
atenção na aprendizagem;ampliar os meios e o raio de ação da educação básica;propiciar um ambiente
adequado à aprendizagem;fortalecer as alianças;desenvolver uma política contextualizada de
apoio;fortalecer solidariedade internacional.
3
Declaração de Jomtien (Tailândia) -09 de Março de 1990 Disponível em
www.unicef.org/brazil/declaracao-mundial-sobre-educacao-para-todos-conferencia-de-jomtien-1990
4
Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/20674-desemprego-volta-a-crescer-com-13-1-milhoes-de-pessoas-em-busca-de-
ocupacao
5
Grupo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) criado em 2000
6
Lei Nº13.467 de julho de 2017- Reforma Trabalhista modifica as relações de trabalho previstas na CLT,
entre elas a admissão do trabalho intermitente, a venda das férias, a não remuneração do tempo de
deslocamento para o trabalho, terceirização , etc.
7
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-40006165 A Formação de Jovens Violentos -
Estudo sobre a Etiologia da Violência Extrema (Rolins, Marcos editora Appris),2017
8
Disponível em: https://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/aumenta-numero-de-criancas-e-
adolescentes-envolvidas-em-crimes-no-ma.ghtml
9
Disponível em https://globoplay.globo.com/v/6737015/programa/
10
Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/02/18/secretario-de-educacao-do-rj-
admite-que-nao-tem-vaga-para-todos-os-estudantes.ghtml
11
Disponível em: https://eurio.com.br/noticia/5422/crise-na-educacao-atinge-alunos-e-professores-no-
e.html
12
A CNTE Conta com 50 entidades de Profissionais da Educação filiadas, somando mais de um milhão
de associados.
13
Disponível em https://www.cnte.org.br/index.php/cnte-na-midia/20794-trabalhadores-se-mobilizam-
em-todo-pais-rumo-a-greve-geral-da-educacao.html-acessoem 22/04/2019
14
Disponível em : https://www.cnte.org.br/index.php/institucional/a-cnte.html acesso em 22/04/2019
15
Censo Escolar 2017-Inep- Notas Estatísticas
16
Censo Escolar 2017-Inep- Notas Estatísticas
17
http://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/256683/canal-futura-faz-campanha-pelo-acesso-
educacao-de-.htm, acessado em 22 de abril de 2019
18
Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/panorama-acesso em 22/04/2019
19
Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/panorama acesso em 22/04/2019
20
Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2604200025.htm 26 de abril de 2000.
Acessado em 22 de abril de 2019.
21
Fonte : Censo Escolar Inep (http://inep.gov.br/resultados-e-resumos)
22
Disponível em http://inep.gov.br/resultados-e-resumos; acesso 06/2018
23
Disponível em http://academia.qedu.org.br/censo escolar /notas-técnicas acesso 06/2018.

sumário 1305
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

CARTAS DE MARIA LACERDA DE MOURA PARA FÁBIO LUZ: SOB O


OLHAR INDISCRETO DO PESQUISADOR

Jodar de Castro Roberto


NIPHEI-UERJ
jodarroberto@gmail.com

Que ninguém espere beneficiar-se com o porvir da sociedade libertária. Mas


trabalharemos para que alguém o seja e que isso constitua nossa maior
satisfação. Que importa o demais se nos anima a convicção de que o sublime
ideal da anarquia amanhã será uma realidade? (Fábio Luz – 1933)

A educadora Maria Lacerda de Moura (1887-1945) apresentou ao longo da sua


vida de escritora rebelde e intelectual combativa, uma série de embates que até o
momento atual ainda se encontram atuais, tais como: educação da mulher, violência
contra a mulher, opressão do modelo patriarcal, entre tantos outros. Nesta comunicação
analisamos um dos seus momentos de formação ao travar o diálogo com o intelectual
anarquista Fábio Luz.
Nos anos de 1920 a 1922, encontrávamos Maria Lacerda em franca expansão e
experimentando os novos caminhos até que efetivasse a sua saída de Barbacena.
Enquanto essa saída não ocorria, no ano de 1920, ela trocou uma série de
correspondências com o anarquista Fábio Luz, compreendemos que essas cartas mesmo
estando no campo do privado a levavam para fora, expandiam o seu horizonte.
Dessas correspondências, que se encontram digitalizadas e disponibilizadas pelo
Arquivo Nacional, trabalhamos com uma série de quinze cartas, que compreendem o
período de 11 de abril de 1920 a 24 de agosto de 1923. Nessas cartas observamos uma
temática variada, onde podemos destacar: a prisão de Fábio Luz, questões que discutiam
a anarquia e seus conceitos, questões literárias, discussões filosóficas, dificuldade de
convívio social, entre outras questões. A carta se mostrava como um suporte para a
criação de estratégias de ação entre os intelectuais, bem como permitia diminuir as
distâncias.
No caso de Maria Lacerda a carta era um meio fundamental para que mantivesse
contato com outros intelectuais do país, uma vez que ela só conseguiu mudar de

sumário 1306
VII Seminário Vozes da Educação

Barbacena para São Paulo, no segundo semestre de 1921. Diante deste quadro, enquanto
ela residia em Barbacena, local, que segundo ela, o convívio estava ficando cada vez
difícil, a escrita se transformava no seu lugar, no mundo onde o que ficava represado
poderia ser extravasado.
Através dessas cartas a subjetividade e a forma de ver e ler o mundo de Maria
Lacerda ficavam mais evidentes, já que determinados assuntos tratados nas cartas foram
temas dos seus livros. Dessa forma, as cartas por serem textos que abarcam uma forte
carga subjetiva, trazem no seu bojo aspectos como “verdade como sinceridade” e
“ponto de vista do autor do documento” (GOMES, 2004, p. 14) elementos que
possibilitam leituras mais profundas do autor.
Nas palavras de Gomes:

A escrita de si assume a subjetividade de seu autor como dimensão integrante


de sua linguagem, construindo sobre ela a “sua” verdade. Ou seja, toda essa
documentação de “produção do eu” é entendida como marcada pela busca de
um “efeito de verdade” – como a literatura tem designado -, que se exprime
pela primeira pessoa do singular e que traduz a intenção de revelar dimensões
“íntimas e profundas” do indivíduo que assume sua autoria. Um tipo de texto
em que a narrativa se faz de forma introspectiva, de maneira que nessa
subjetividade se possa assentar sua autoridade, sua legitimidade como
“prova”. Assim, a autenticidade da escrita de si torna-se inseparável de sua
sinceridade e de sua singularidade (2004, p. 14-15). (Grifos da autora)

As cartas escritas por Maria Lacerda são documentos preciosos para a


compreensão dos textos publicados em forma de livro. Fazemos essa afirmação porque
os elementos subjetivos que ficam aparentes nas cartas e na sua autobiografia, como o
uso da primeira pessoa e a busca pelo “efeito de verdade”, que dão ao texto
características singulares e marcas de autoria, são elementos que a intelectual explora
sem medo, nos parece que para além da voz nas conferências, foi na palavra escrita que
ela deixou com veemência o seu legado.

“Meu ilustre confrade Dr. Fábio luz”

De a muito acompanho com infinita simpatia o seu fecundo labor como


educador e como jornalista veemente.
Creia na minha extraordinária admiração. E os seus cabelos brancos me
infundem profunda veneração (MOURA, 1920, Arquivo Nacional).

Iniciamos a nossa abordagem das cartas de Maria Lacerda para Fábio luz,
buscando situá-lo no momento histórico o qual as correspondências foram trocadas e

sumário 1307
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

observando a representatividade do personagem. Para além dos atributos que fizeram a


intelectual travar correspondências com ele, o seu nome já era respeitado no que se
referia a sua trajetória contestadora.
Fábio Lopes dos Santos Luz ou Fábio Luz, como ficou conhecido. Nasceu em
Valença, na Bahia, no dia 31 de julho de 1864 e veio a falecer no Rio de Janeiro, em 9
de maio de 1938. Filho de Manoel dos Santos Luz, funcionário público e da professora
Adelaide Josefina Lopes Luz. Ator social de múltiplas atividades foi médico atuante no
município do Rio de Janeiro. No campo educacional, foi professor de francês,
português, história e latim, no Colégio Pedro II. Em colégios e centros de estudos
sociais ensinou História do Brasil, História Natural e Higiene. Dirigiu o Ateneu, depois
Liceu Popular de Inhaúma e foi professor de Artes e Ofícios na Escola Profissional
Feminina Orsina da Fonseca. No campo literário trafegou como escritor, romancista,
contista, crítico e ensaísta. Chegou a ser membro da Academia Carioca de Letras o que
denotava à sua produção literária certo valor.
O período da infância e da adolescência viveu na sua cidade natal. Em seguida
no período de 1883 a 1888, passou pelo processo de formação na Faculdade de
Medicina da Bahia. Na cidade de Salvador, onde a sua alma inquieta já se manifestava
em defesa das causas abolicionistas e das pautas republicanas. O acadêmico Fábio Luz
começava a identificar as injustiças e a desigualdade social como fatores que
prejudicavam sobremaneira as classes populares, esse quadro social adverso despertava
nele um grande interesse.
. A mudança para o Rio de Janeiro foi mobilizada pela finalidade trabalhar para
conseguir o sustento. Além da medicina, também trabalhou como inspetor escolar.
Posteriormente, instalou uma clínica no bairro do Méier. Passou a ser conceituado pela
forma cuidadosa com a qual cuidava dos seus pacientes, o que o levou a angariar
respeito e admiração da população, uma vez que atendia os que não dispunham de
recursos para a consulta.
O seu pendor pelas questões sociais o levou a buscar caminhos políticos com os
quais pudesse se identificar e atuar. Tomou contato com as ideias ácratas com as quais
passou a comungar. Sabia da sua condição de intelectual de classe média, entretanto não
deixava de sonhar com mudanças na sociedade que pudessem culminar com uma
revolução social. Esse posicionamento o levou a questionar o Estado e o poder do
capitalismo nas terras brasileiras, dessa forma, passou a atuar junto ao operariado
proferindo palestras e conferências, bem como escrevendo na imprensa anarquista e

sumário 1308
VII Seminário Vozes da Educação

libertária em periódicos como Spartacus, A Vida, Voz da União, A Plebe etc. Em 1920,
sua colaboração no jornal anarquista diário Voz do Povo levou-o à prisão, após a
invasão e o empastelamento da redação do periódico pela polícia.
No ano de 1904, participou da iniciativa de instalação de uma Universidade
Popular com o intuito de atender a classe proletária. Desse projeto participaram
intelectuais como Elísio de Carvalho, Evaristo de Moraes, José Verissimo, entre outros.
A empreitada não teve vida longa. No campo literário se dedicou a escrita de romances,
tais como O Ideólogo, Os Emancipados e Elias Barrão (1915); de novelas, Nunca e
Manuscrito de Helena. Além da imprensa anarquista, colaborou também na Imprensa
comercial, na função de crítico literário. Seus artigos foram compilados em diversos
livros tais como; A Paisagemno Conto, na Novela e no Romance (1922), Estudos de
Literatura (1927), Ensaios (1930) e Dioramas (1934). Maria Lacerda procurava
referências e interlocutores para dialogar. Fábio Luz foi um intelectual com um
currículo de lutas, de honestidade, de produção e de abnegação com os trabalhadores,
com a educação e um feroz contestador do sistema capitalista. Com todos esses
predicados a sua postura e representação social atraiu Maria Lacerda.
Essa atração levou Maria Lacerda a trocar correspondências com ele. A
compartilhar suas dúvidas e anseios, a partilhar a sua forma singular de ver o mundo,
como veremos a seguir nas três cartas selecionadas por nós, de um corpus de quinze
cartas. A seleção como se sabe é um critério pessoal. Nesse caso, buscamos
compreender como o entendimento entre os missivistas se deu e qual a importância de
um para o outro. Infelizmente, não tivemos acesso as respostas de Fábio Luz, o que nos
levou através dos indícios (GINZBURG, 2009), a buscar o contexto e das datas
elementos que nos ajudassem a entendê-las.

Apontamentos sobre a carta nº 1


Maria Lacerda não conhecia Fábio Luz pessoalmente, quando enviou para ele a
carta datada de 11 de abril de 1920. Esta carta foi escrita em folha de papel pautado, em
três páginas, com letra cursiva e rápida, onde de forma amistosa, buscava construir
laços necessários, para quem pretendia estender os contatos e a rede de amigos.
Percebemos que o início da carta ela já saúda o destinatário usando a palavra
“confrade”, que tem como significação básica a participação num grupo ou pessoas que
levam um mesmo modo de vida.

sumário 1309
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Não podemos deixar de observar que os anos de 1920 a 1922, são os anos
cruciais da partida para o mundo de Maria Lacerda. Não esqueçamos que ela já havia
lançado dois livros, “Em torno da educação” (1918) e “Renovação” (1919). Dessa
forma ela já poderia se sentir inserida enquanto escritora. Ela era professora, ele
também. Logo o uso da palavra “confrade” a colocava num mesmo patamar.

Meu Ilustre confrade Dr. Fábio Luz

De a muito acompanho com infinita simpatia o seu fecundo labor como


educador e como jornalista veemente.
Creia na minha extraordinária admiração. E os seus cabelos brancos me
infundem profunda veneração.
Agora, quando os jornais noticiaram sua prisão injusta eu o acompanhei com
o coração cheio de respeito ante essa velhice digna e atraente.
Quis escrever-lhe. Faltou-me o endereço. Visitei-o por intermédio de Octávio
Brandão. E só por isso tive a honra de merecer aquela generosa dedicatória
de “Leituras”.
Imensa gratidão. (MOURA, 1920, Arquivo Nacional)

Mesmo morando em Barbacena, podemos perceber que Maria Lacerda


acompanhava os fatos e as notícias do país e de outros países com muita atenção.
Informava-se. Sabia da prisão de Fábio luz, através dos jornais. A prisão dele ocorrera,
em função da sua colaboração com o jornal anarquista diário Voz do povo, pois a polícia
e a justiça funcionavam de forma concatenada, para a manutenção de um estado
repressivo. Dessa forma,

O projeto burguês de dominação comporta pedagogicamente a repressão,


pelos efeitos que ela produz sobre a consciência dos trabalhadores. Não se
trata apenas de incutir o medo pela ameaça, mas instituir toda uma estratégia
articulada de longa duração para permitir o enquadramento de toda a
população trabalhadora dentro de uma ordem orgânica de funcionamento da
sociedade. (ALVES, 2009, p. 66)

Fábio Luz era um anarquista declarado, pelas suas ações sociais, políticas e
pedagógicas. Fazia parte com outros intelectuais, operários, sindicalistas do movimento
contrário ao governo da época. Portanto, sua prisão no período estava dentro de um
projeto continuado e maior para acabar com a ideologia anarquista no país e com os
seus ideólogos. Principalmente no que concernia as autoridades e ao governo
constituído

As medidas repressivas na Primeira República, [...], não se destinavam


apenas ao controle das massas operárias “agitadoras” e indisciplinadas ou
para repor a ordem pública violada. A repressão tinha, também, o intuito de

sumário 1310
VII Seminário Vozes da Educação

assegurar a obediência as autoridades. Os governadores se revelavam


intransigentes no trato com a chamada “agitação operária”. Wenceslau Braz
(1914-1918), Epitácio Pessoa (1918-1921) e Arthur Bernardes (1922-1926)
foram os principais expoentes da repressão aos anarquistas nacionais e os de
origem europeia. As deportações de estrangeiros ocorreram de maneira
intensa nos anos de 1907, 1912, 1913, 1917, 1918, 1919 e 1920. Não foi por
outra razão que o Presidente Arthur Bernardes (1922-1926) solicitou
autorização do Congresso Nacional para renovar periodicamente o estado de
sítio e organizar uma polícia própria para garantir o prestígio das autoridades
republicanas (ALVES, 2009, p. 68-69).

Mesmo diante desses fatos Maria Lacerda, não se furtava em fazer conferências
e atacar as estruturas sociais da época. Entretanto, nessa carta ela apenas mencionava o
fato da prisão dele. E prosseguia de forma doce e amistosa:

Li seu belo livro – com interesse e com prazer. Não o escreveu só para
crianças: a gente grande nele encontra muito sabor. Sensibiliza e leva a
outros pensamentos fraternais daqueles que o leem sentindo.
Subscrevo a apreciação de Almachio Diniz quando escreve: “Permitam,
porém, os dois pedagogos, o autor e a prefaciadora que foi D. Esther Pedreira
de Mello, que eu coloque o livro acima da modéstia de um e dos escrúpulos
profissionais da outra”.
Andorinhas é de uma beleza, de um colorido, de um imprevisto admirável.
Lindas páginas contém todo o livro.
Talvez não saiba que há em Belo Horizonte belíssima herma de Anita
Garibaldi. Foi inaugurada na capital pelo Dr. Fausto Ferraz – por sinal que o
presente lhe custou dissabores: os padres e elementos católicos da beata
Minas deram-lhe lesíveis pancadas pela imprensa.
Confesso meu grande contentamento ao saber que lhe não sou estranho.
Seremos amigos de certo.
À Exma. Família cumprimentos afetuosos. Às filhinhas merecedoras de tão
delicados sentimentos – beijos carinhosos.
Saudações
Maria Lacerda de Moura
Barbacena, 11/04/1920 (MOURA, 1920, Arquivo Nacional)

Nessa parte da carta vemos Maria Lacerda elogiando a publicação do seu livro e
buscando o estreitamento de laços com o destinatário. Ao falar de leveza e
encantamento com o livro que recebera, situa o interlocutor com mais proximidade,
mais intimidade. Como ensina Gomes,

Escrevendo, é possível estar junto, próximo ao “outro” através e no objeto


carta, que tem marcas que materializam a intimidade e, com a mesma força,
evidenciam a existência de normas e protocolos, compartilhados e
consolidados (2004, p. 20).

Mesmo cumprindo os protocolos formais de uma carta. Maria Lacerda buscava a


proximidade, mesmo à distância, confessava “o contentamento de não se sentir

sumário 1311
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

estranha” e afirmava que certamente seriam amigos. Despedia-se da família de Fábio


Luz como se já fossem amigos, mandando “beijos carinhosos” as suas filhinhas”

Apontamentos sobre a carta N.º 2

Não tenho outra preocupação, nem outra aspiração que não seja a vitória do
ideal que me alentou a alma de moço e se cristalizou em prisma facetado, de
onde a luz de um futuro de amor e felicidade tira chispas douradas que
iluminam o caminho da velhice. Não desejo ser oráculo, guia, mestre ou
dirigente, como supõe alguém. [...] É um alto sentimento de justiça que me
impulsiona para convosco alcançar a realização de uma reforma social de
igualdade absoluta. (LUZ, Spartacus, Rio de Janeiro, 04/10/1919)

Na epígrafe podemos perceber o caráter idealista que movia Fábio Luz. Ele não
arrefecia os seus ideais de liberdade e de perspectivas para se construir uma sociedade
justa e igualitária. Podemos deduzir que essas características que transparecem no seu
texto, foram ao encontro das expectativas de Maria Lacerda, que estava predisposta a
expor o seu universo privado e estabelecer novos vínculos de sociabilidade.
O diálogo que se estabelece através das cartas tem um caráter revelador dos
missivistas. Na apresentação, Maria Lacerda fala do estímulo ao receber a resposta de
Fábio Luz. Observamos no discurso da intelectual que ela se preparava para o salto que
daria, posteriormente, ao mudar de Barbacena para São Paulo. Momento importante do
seu crescimento intelectual, pois a flagramos diante das dúvidas cruciais da sua virada
na compreensão do país, das questões que a mobilizavam.

Dr. Fabio Luz,

Sua carta de 14 foi para mim precioso estímulo.


Infinita gratidão por tão delicadas expressões e votos pela minha ascensão
para a conquista libertária.
Não me assustei com a palavra Anarquia.
O meu coração já sentiu o que seja esse grande ideal.
Falta-me de fato qualquer coisa para eu me despegar por completo de alguns
tantos prejuízos talvez – como a crença em reformas burguesas segundo a sua
expressão.
É que ainda não compreendi bem essa reviravolta necessária no mecanismo
social.
Prevejo-a, sinto-lhe a necessidade, entretanto eu não saberia como se
deveriam arquitetar novas sociedades assentadas em bases de equidade se
destes escombros só nos restam desilusões, miséria, injustiça, ceticismo, falta
de caráter.
Apego-me às vezes às leis – sem ter fé, convicta da sua inutilidade. Mas,
nesse período de transformação a que se deve apegar a gente como tábua de
salvação?
Inúteis, improfícuas as reformas burguesas, – mas, se o mundo está nas mãos
dos burgueses e o povo não está preparado para a revolução social e essa

sumário 1312
VII Seminário Vozes da Educação

revolução não é talvez para os nossos dias ou pelo menos não dará o
resultado desejado em os nossos dias? ...
Com que devemos contar por ora? (MOURA, 1920, Arquivo Nacional)

A afinidade de Maria Lacerda com os ideais anarquistas, ainda se iniciava, pois


segundo o texto e a resposta de Fábio Luz ela carregava “crenças” de que as reformas
burguesas seriam efetivas. Todavia, lamentava ao ver o resultado do que sobrava de
uma sociedade regida pelo capital e moldes burgueses. Sobravam “desilusões”,
“misérias” e as dúvidas latentes do que fazer num sistema estruturado para a
manutenção de tudo organizado para a exploração. A intelectual ansiava por respostas
que possibilitassem uma revolução.
E prosseguia:

Apelo então para a educação popular. Ao mesmo tempo sinto-lhe a


impotência uma vez que a facção governista não cuida disso e o povo ou a
iniciativa particular nada pode diante de tão imenso problema.
Enfim, meu venerando camarada, fico no caos, não saio desse círculo
vicioso.
Se tiver tempo queira ter a bondade de me dizer alguma coisa a respeito.
Quem sabe se a sua lógica me convenceria?
Acresce o seguinte: aqueles que estão fora desse ideal, por ignorância o não
compreendem e essa linguagem os assusta, não é pela persuasão que nós os
convenceremos? (MOURA, 1920, Arquivo Nacional)

A intelectual acreditava na educação como uma ponte de saída para o caos que
via no país, mas já entendia que essa mesma educação, encontrava-se nas mãos dos que
não pleiteariam mudanças num sistema oligárquico e conservador. Como mudar o
estado de coisas, como estruturar a mudança, como avançar nas causas que ela
acreditava, eram dúvidas, que podemos observar, transbordavam das linhas da carta. Ela
se sentia impotente para implementar as mudanças.
Maria Lacerda duvidava se o tempo seria suficiente para implementar as
mudanças que julgava necessárias. Não tinha certeza se parte da população, que estava
fora do processo por “ignorância” ou desconhecimento teria condições de encampar
essa empreitada. E continuava,

Acho o golpe por demais profundo para toda essa gente incapaz de encarar a
questão. Em torno de mim vejo ou ouço as maiores barbaridades contra o
ideal anárquico, barbaridades pronunciadas por pessoas generosas, idealistas.
É que o tempo não soou para elas: é a ignorância, e não se ensina a criança à
força o que o seu cérebro não pode conceber. É preciso jeito e tempo na obra
educativa. O povo é como a criança.
Peço-lhe que me diga porque é que não tenho razão.

sumário 1313
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Eu anseio pela Verdade e aproveito todas as oportunidades que se me


deparam para aprender com os mais experientes, com os mais dignos da
nossa admiração e respeito.
Desejo imenso que me conte entre o número dos seus grandes admiradores,
dos seus melhores amigos.
Faço votos pela felicidade dos seus filhos queridos.
Saudações fraternas.
Maria Lacerda de Moura.
18-11-1920 – Barbacena.

O movimento anarquista que se espalhou pelo país, com maior potência no eixo
Rio de Janeiro-São Paulo, nas duas primeiras décadas do século XX, e por algumas
outras cidades. Defendia um modelo de sociedade que se assentasse na liberdade dos
indivíduos, na solidariedade, na coexistência feita de harmonia, na propriedade coletiva,
este postulado contrariava completamente a perspectiva da propriedade particular, na
autodisciplina e autogestão, entre outros.
Uma sociedade que saía de um modelo agrário-escravocrata e tentava dar uma
roupagem nova para o país, não alcançaria objetivos tão avançados. A opção pela
educação seria o melhor caminho para retirar o povo da condição subalterna e submissa
e dar condições para ele, de construir as mudanças tão profundas, pois, nas suas
palavras, “o povo era como uma criança”, precisava de cuidados e tempo para ser
educada.

Apontamentos sobre a carta Nº 3


Em carta datada de 28 de novembro de 1920, datilografada em oito páginas e
com algumas rasuras e consertos. Maria Lacerda de forma direta abria o diálogo com o
destinatário de sua carta, no caso, Fábio luz, a partir de uma assertiva feita por ela no
qual ela o inquiria da seguinte forma: “quem sabe se a sua lógica me convenceria”
(MOURA, 1920, p. 1).
Ela mesma analisa o seu discurso:

Comecemos pelo princípio: o verbo no condicional nada tem que ver ou pelo
menos pouco tem que ver com o meu estado psicológico.
Não significa dúvida enorme como supôs e muito menos ironia.
Se me conhecesse melhor não seria capaz de imaginar que eu usasse de
ironias e muito menos com uma pessoa para mim veneranda a quem voto
infinita consideração em vista da sua superioridade moral (MOURA, 1920, p.
1) (Grifos da autora).

Os grifos da autora da carta, destacavam os pontos considerados passíveis de


discussão e arrogava ao seu interlocutor a necessidade de conhecê-la melhor, pois que

sumário 1314
VII Seminário Vozes da Educação

dessa forma não teria dúvidas sobre a sua fala. Inclusive destacava “os cabelos brancos”
do interlocutor, como sendo motivo suficiente para respeitá-lo, mas reafirmava as
qualidades por ela destacadas, qual seja, dele ser “um lutador pela causa da
humanidade” (MOURA, 1920, p. 1).
Segue o diálogo, pois a escrita de Maria Lacerda apresentava a vivacidade típica
da oralidade, a densidade discursiva do seu texto transbordava, o que permite ao leitor,
imaginá-las como se estivessem sendo faladas para o destinatário e não escritas.
Observamos essas marcas de oralidade e de uma busca de intimidade com o
destinatário, ao fazer referência aos seus livros de estreia. Nesse caso, ela se refere aos
livros Em torno da educação (1918) e ao livro Renovação (1919), ela afirma:

Não estivesse eu de mal com alguns períodos dos meus livros de estreia e
lhes mandaria para verificar num trecho ou noutro a sinceridade do meu auto
retrato psicológico e em conheceria bastante para ver o quanto me magoou o
haver causado pesar ao seu generoso coração (MOURA, 1920, p. 1) (Grifos
da autora).

Esse espaço temporal que abarcava os anos de 1920 e 1922, foram anos em que
Maria Lacerda reavaliou suas posições educacionais, bem como do contato com outros
intelectuais, como José oiticica. Os quais foram fundamentais para a intelectual
descobrir e descortinar novas vertentes na construção do seu pensamento educacional,
mas principalmente nas questões que envolviam a emancipação e a educação feminina.
Maria Lacerda entabulou e retomou a discussão ao fazer uma pergunta retórica,
para demonstrar que não havia uma divergência de grande monta e para provar as suas
teses: “quer ver como estamos de perfeito acordo?” E ela responde que a “felicidade
dos povos se realizará pela anarquia ou pelo comunismo anárquico, que é a mesma
coisa”. Podemos observar que a intelectual já se embebia das questões e pautas
anárquicas, em relação as questões educacionais, a sexualidade, a emancipação.
Neste momento ela dizia sentir a “possibilidade do comunismo”, citava o
exemplo de “comunidades religiosas” onde as relações poderiam ser melhoradas.
Abraçava a discussão e retrucava:

A verdade é lógica. Basta imaginar estarmos com a verdade para nos


convencermos do poder de persuasão (já não digo em virtude da nossa lógica
individual se a modéstia rigorosa o não permite, mas em razão da ideia
conduzida fervorosamente) (MOURA, 1920, p. 2).

sumário 1315
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Segundo Lacerda, o “ideal anárquico” traria a “convicção da felicidade”, pois o


mesmo se enraizaria “nos corações bem nascidos” em pessoas que acabariam sendo
convencidas de que esse seria o caminho do mundo, por isso o seu olhar idealista
acreditava que existiria “persuasão e lógica”. Trazia para o seu discurso a palavra “fé”,
na sua análise, a “fé” teria a possibilidade de criar “mártires” e “heróis” e com isso
convencer as massas, postulado contrário ao pensamento anarquista, de manter o “senso
da lógica”. Não aceitando líderes ou mártires (MOURA, 1920, p. 2).
Na intenção de conferir “verdade” a sua exposição, Lacerda cita August
Hamon 180 , que no seu livro “Psicologia del socialista-anarquista”, afirmava que:
“Autores e discípulos de uma doutrina estão em correlação com essa doutrina, sendo
esta impregnada de lógica, os seus discípulos e autores serão lógicos. Não se pode
conceber o contrário” (HAMON apud MOURA, 1920, p. 2).
August Hamon, em outra passagem do livro definia os anarquistas- socialistas:

Em suma, socialistas-anarquistas, adeptos da mesma doutrina, nascem nas


mais diversas regiões, vêm das classes sociais mais distantes, foram educados
em diferentes religiões e exercitam as profissões mais diferenciadas. Apesar
dessas diferenças de ambientes climatéricos, telúricos, familiares,
educacionais, sociais e profissionais, esses indivíduos que são seguidores de
um mesmo corpo de teorias apresentam qualidades psíquicas comuns (1894,
p.17) (Tradução minha).

Na concepção de Hamon, mesmo advindo de classes sociais diferenciadas, de


religiões e regiões diferentes, entre outros aspectos, “estes indivíduos adeptos de um
mesmo corpo de teorias apresentam qualidades psíquicas comuns”. Maria Lacerda
construía a sua argumentação na busca de que estas teorias, talvez fossem passíveis de
serem implantadas no país.
Maria Lacerda colocava-se em concordância com Fábio Luz, quando este
afirmara que “era preciso educar o sentimento”, afirmação que ela sublinhava e
destacava: “educar o sentimento”. Foi a partir desses pressupostos que avançou na
formação do seu pensamento sobre o anarquismo, buscando novos raciocínios e novos
entendimentos e já apontava não ver antagonismo entre “individualismo e altruísmo”.
Nessa direção, afiançava que “o amor a humanidade é já caminho certo para se desejar
que todos sigam as ideias e os programas de ação que nos pareçam propícios a
encaminhar o advento de civilizações mais doces” (MOURA, 1920, p. 3).

Augustin Fréderic Adolphe Hamon (20/01/1862 – 03/12/1945), escritor francês, filósofo, editor de
180180

jornais políticos. É considerado um dos precursores da psicologia social.

sumário 1316
VII Seminário Vozes da Educação

Diante disso, reafirmava a sua opção pela educação:

Por isso me bato denodadamente.


É aí a base do edifício a ser construído pelas gerações do futuro.
É justamente porque acho tudo dependente da educação que não pude
compreender ainda o mecanismo dessa transformação, uma vez que o povo
tudo ignora, inclusive o valor próprio [...] (MOURA, 1920, p. 3).

Na sequência da carta, a intelectual afirmava que “o povo se arranjará de


qualquer modo”, sem a ajuda de ninguém. Independente de “leis e decretos, com ou sem
a burguesia”. Contudo afiançava que sem a educação a “marcha evolutiva seria mais
lenta” e passava então a idealizar como esse processo de evolução poderia se dar a partir
de um processo Internacional do Pensamento, onde através da instrução obrigatória e
propaganda intensificada poderia ocorrer a revolução de forma rápida (MOURA, 1920,
p. 3).
Parecia alternar na escrita da carta, momentos de utopia plena, quando
acreditava e sonhava com mudanças rápidas e revolucionárias, com momentos nos
quais percebia não ser possível alterar ou extirpar do inconsciente coletivo a influência
hereditária. Mudava rapidamente o discurso e voltava a falar da necessidade de
existirem “verdadeiras escolas” e da “carência de mestres”. Sugeria a necessidade de
que surgissem pessoas capazes de “derrubar as escolas oficiais”. Pessoas dotadas da
“ousadia dos loucos” que fossem capazes de derrubar os “dogmas” existentes
(MOURA, 1920, p. 4).
Ao mesmo tempo que propunha a “ousadia dos loucos”, retomava a ideia de
educar a “elite intelectual”, que ela afirmava ser “instruída”, mas não “emancipada”.
Como ela estava na instância privada das cartas, falava em:

Desinfetar as almas desses almofadinhas e parvenus dar consciência aos


nouveaux riches, fazer nascer gente das melindrosas, em suma – educar os
homens e as mulheres para as conquistas do porvir – eis o que é preciso
(MOURA, 1920, p. 4) (Grifos da autora).

A educação seguia sendo o seu ponto de partida para a revolução desejada.


Pleiteava que se fizesse uma “revolução social”, mas tinha dúvidas de quem
compreenderia o termo “revolução social e as suas consequências”, ou mesmo quem
assumiria a proa dessa empreitada. Duvidava se “meia dúzia de idealistas da civilização
nova” seriam suficientes e afirmava: “É pouco porque a revolução tem garras e goelas

sumário 1317
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

escancaradas para devorar os próprios filhos – uns engolem os outros” (MOURA, 1920,
p. 4).
O seu olhar para a sociedade era de desalento, pois via “o caos, a hipocrisia, o
egoísmo e a ambição” como fatores que dificultariam a chegada do novo tempo. Neste
aspecto, a intelectual parecia querer jogar com o tempo, dominá-lo. Sobre esta questão
afirma Gomes:

Embora se possa considerar que toda escrita de si deseja reter o tempo,


constituindo-se em um “lugar de memória”, cabe observar que certas
circunstâncias e momentos da história de vida de uma pessoa ou de um grupo
estimulam essa prática. É o caso dos textos – sejam eles diários, memórias ou
cartas – que se voltam para o registro de fases específicas de uma vida, como
viagens, estadas de estudo e trabalho, experiências de confrontos militares,
prisão, enfim, um período percebido como excepcional (2004, p. 18) (Grifo
da autora).

Podemos classificar esse período da vida de Maria Lacerda como “excepcional”.


Momento no qual, ela através de correspondências, não só expandia a sua “rede de
sociabilidades” (SIRINELLI, 2003), como também aproveitava a possibilidade para
buscar compreender os fundamentos do Anarquismo expondo seu posicionamento

Eu (e minha opinião é a menor) acharia mais conveniente, antes de se pensar


em ajustar contas com a burguesia, aplainar o caminho para que o golpe
audaz fosse um só e não caíssemos nas garras dessa burguesia capitalista e
desse clericalismo ameaçador, capaz das mais cruéis vinganças (MOURA,
1920, p. 5).

Podemos perceber que nos bastidores, as perspectivas de confronto eram reais.


Maria Lacerda discordava de que se “precisava mais de ação, do que de palavras”, pois
acreditava numa revolução do pensamento. Acreditava que “falar, protestar, pregar,
discutir, apontar os erros” seria o caminho mais ponderado, “pregar a ideia nova” até
que todos a compreendessem. Segundo ela:

Assim, a revolução necessária, não se multiplicará em revoluções, em guerras


fratricidas, em lutas civis, em lutas entre os próprios irmãos de ideal,
atrasando, retardando o momento definitivo com questiúnculas e dissidências
de partidos ambiciosos (MOURA, 1920, p. 5).

Demonstrava que o pacifismo, uma de suas bandeiras, já estava içada. Para


além dessas lutas no campo externo, mostrava ao destinatário as suas lutas internas de
onde queria retirar os “vírus do passado conservador”. De forma confessional, dizia

sumário 1318
VII Seminário Vozes da Educação

contar com “ela mesma, com o próprio coração e com a própria razão” e também
contava com os amigos para poder dividir as suas angústias (MOURA, 1920, p. 6). A
intelectual usava as cartas como forma de desabafar as suas agruras, como forma de
compensar a sua vida distanciada dos grandes centros onde estavam ocorrendo as lutas.
Talvez para livrá-la da solidão que por ventura estivesse vivendo. Nessa direção, a
escrita de si e a escrita epistolar podem funcionar como terapia, como catarse para os
missivistas, pois podem auxiliar no alívio das angústias, da solidão. Preenchendo o
espaço de um companheiro, “ao qual quem escreve se expõe, dando uma prova de
sinceridade” (Gomes, 2004, p. 21).
Prosseguia o seu ato confessional e estabelecia uma comparação entre o
surgimento do comunismo e o surgimento do cristianismo, analisava como os dois
conceitos foram deturpados desde a ideia original. Apontava o choque de interesses
entre os libertários de São Paulo e os do Rio de Janeiro sobre a implantação ou não da
ditadura do proletariado como forma de mediar o caminho para a revolução plena.
Reclamava da falta de “coesão”, das “divergências” e das “tendências opostas” que
geravam dúvidas e incertezas para prosseguir na luta (MOURA, 1920, p. 6).
Avançava na sua avaliação do quadro político. Deixava o texto aberto através de
reticências, quando escrevia que “se a dúvida se alastrava na vanguarda dos
combatentes...” Afirmava: “também eu sinto dúvida”. É possível detectar nesta carta a
desconfiança de qual caminho a seguir. A mulher forte e determinada dos livros
publicados e das conferências, mostrava as fragilidades inerentes aos seres humanos, a
impotência aparecia na sua intimidade: “O que me falta compreender (e isso não tem
importância: a evolução se fará quer eu a compreenda ou não) é esse meio de
transformação” (MOURA, 1920, p. 7). Expunha a dúvida e sua sentença:

A burguesia é culpada, é má, ignorante, egoísta, mas - - uma ditadura


proletária ou mesmo qualquer coisa que seja um belo arranco de tudo das
mãos da burguesia, neste país de analfabetos aonde os próprios libertários
não se entendem, seria vantagem? (MOURA, 1920, p. 7).

Em seguida duvidava da capacidade do povo, classificava-o de “comodista,


ignorante, descansado” e que provavelmente aceitaria um meio termo “conciliador”.
Afirmava ainda que a “massa queria pão e divertimento, contentava-se com pouco”.
Demonstrava oscilação e dúvida sobre qual o caminho seguir, mas mantinha uma
certeza: a educação seria o caminho principal, para chegar a revolução. A educação

sumário 1319
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

inspirada no pensamento de Francisco Ferrer, uma instrução racional, científica e


passava do desânimo a euforia:

[...] Eis de que o meu coração tem fome num anseio ardente de mostrar a
toda gente até aonde pode ir o pensamento humano em busca do bem estar
para todos.
Eis o que eu desejaria se me fosse dado almejar qualquer coisa em proveito
dessa humanidade explorada, ludibriada, em prol da extinção da miséria
universal (MOURA, 1920, p. 7).

Fechava a carta informando que iria ao Rio de Janeiro, no final de dezembro de


1920, para uma conferência na Liga para a emancipação intelectual da mulher”, a
convite de Bertha Lutz. Aproveitava para falar da importância da amizade e tecia
elogios ao destinatário, prometendo que iria visita-lo para conhece-lo pessoalmente.
Maria Lacerda nesta missiva já sinalizava a sua investida em um espaço que até
então as mulheres sofriam resistência, pois segundo Michelle Perrot, “agir no espaço
público não era fácil para as mulheres, dedicadas ao domínio privado, criticadas logo
que se mostravam ou falavam mais alto” (2007, p. 146). Maria Lacerda preparava-se
para falar mais alto.

Referências
CAMPOS, Andreia da Silva Laucas de. Fábio Luz e a Pedagogia Libertária: traços
da educação anarquista no Rio de Janeiro (1898-1938). Dissertação de Mestrado.
Orientador: Prof. Drº. Roberto Luís Torres Conduru. Rio de Janeiro: ProPED-UERJ,
2007.

GOMES, Angela de Castro. Escrita de si, Escrita da História: a título de prólogo. In.:
GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de si, Escrita da História. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2004.

LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura.
São Paulo: Ática, 1984.

______. Maria Lacerda de Moura.Uma feminista utópica. Florianópolis: Ed.


Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005.

MOURA, Maria Lacerda de. Cartas para Fábio Luz. Fundo Fábio Luz. Arquivo
nacional.

ROBERTO, Jodar de Castro. Educação e emancipação feminina na obra de Maria


Lacerda de Moura (1919-1935) / Jodar de Castro Roberto. Orientadora: Sônia de
Oliveira Camara Rangel.Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Faculdade de Educação – 220 f. - 2019.

sumário 1320
VII Seminário Vozes da Educação

AS ATAS DA CÂMARA ENQUANTO FONTE PARA HISTÓRIA DA


EDUAÇÃO LOCAL: O CASO DO MUNICÍPIO DE DUQUE DE CAXIAS (1947-
1955)

Angélica de Sá de Oliveira Bauer Rodrigues


UERJ/ EHELO/ FAPERJ
angelicabauer89@gmail.com

Introdução
Dada as diferentes percepções de região e regional, Faria Filho (2009) propõe
conceber a região como uma unidade de análise e como posição epistemológica. Dessa
forma o que possibilita no campo da história da educação “a realização de uma história
regional é a maneira pela qual eu produzo teórica e metodologicamente o meu objeto de
pesquisa” (FARIA FILHO, 2009, p.60). Isto implica ir além de “critério geográfico,
político ou mesmo cultural” (FARIA FILHO, 2009, p.60). Significa considerar “as
temporalidades e dinâmicas próprias [do objeto], a suas relações com os demais
fenômenos sociais e por fim as fontes mobilizadas” (FARIA FILHO, 2009, p.60).
Assim o exame das Atas das sessões das Câmaras permite “acompanhar as
discussões dos mais variados projetos legislativos” (BARCELLAR, 2010). Além de
permitirem o mapeamento das iniciativas da nova prefeitura em matéria educacional e
conhecer as condições das escolas que é o nosso foco, possibilitam também apreender
as disputas de poder não só entre sociedade política e a sociedade civil, assim como no
seio da própria sociedade política (os conflitos entre o poder executivo e legislativo).
Permitem ainda compreender outros aspectos da história da região.
As sessões das reuniões da Câmara Municipal de Duque de Caxias estão
salvaguardadas no Instituto Histórico de Duque de Caxias, estando o acervo organizado
em livros que variam entre 300 e 400 páginas de manuscritos.
As Atas eram escritas por um redator (pessoa específica responsável por esta
função) e embora passassem por todo um processo para a sua aprovação, encontramos
reclamações sobre irregularidades nas Atas (IHCMDC, Livro3, Ata da 1ª Sessão
Ordinária,03/11/1949, p.305-310), constando ainda o registro de que houve “inúmeras
vezes graves omissões” das questões levantadas pelo edil Waldemar de Almeida,

sumário 1321
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

(IHCMDC, Livro 4, Ata da 3ª Sessão Ordinária,10/07/1950, p.132-143. Cabe pontuar


que a partir do 2º período legislativo as Atas passaram apresentar em média 30 páginas
de manuscritos.
É preciso considerar que as Atas expressam também para além das correlações
de forças existentes na sociedade duque-caxiense, o consenso sobre o trabalho
desenvolvido de cada legislatura que se pretendia instituir. As palavras de um dos
vereadores nos permite observar isto explicitamente, pois ele considerava que era
preciso “deixar memória lucida, honesta e dignificante nas atas da Camara, para que os
pósteros não lhes possa arremeçar a labeu da ignomínia e da desonra” (IHCMDC, Livro
6, Ata da 2ª Reunião Extraordinária,13/04/1951, p.169).

O território de Duque de Caxias...


Nesta seção buscamos apresentar aspectos do território de Duque Caxias, a partir
das Atas da Câmara Municipal, este município fica localizado no estado do Rio de
Janeiro e foi distrito de Nova Iguaçu até 1943, ano da sua emancipação, entretanto nem
sempre se chamou assim, era chamado de Meriti, em 1931 teve seu nome modificado
para Caxias e com a emancipação em 1943 recebeu o nome de Duque de Caxias. Seu
processo de emancipação iniciou-se bem antes dessa data e necessitou de muitos anos
para essa separação administrativa ser consolidada.
A partir das muitas insatisfações geradas por conta da administração realizada
por Nova Iguaçu, que não atendia as necessidades da população duque-caxiense, foram
empreendidos vários movimentos a fim de que Caxias fosse separada de Nova Iguassú.
Neste sentido Braz e Almeida (2010), destacam que na luta pela emancipação também
estiveram engajadas as “antigas famílias proprietárias” e “os novos moradores”, pois,
desejavam “maior autonomia”.
Embora burocraticamente Duque de Caxias estivesse emancipada no fim do ano
de 1943, somente em 1947 o poder político local foi instituído. Antes disso o município
era comandado por interventores (SOUZA, 2014).
Desta forma a análise das Atas da Câmara Municipal de Duque de Caxias, nos
permite conhecer aspectos da história local, a partir de distintos olhares do poder
legislativo. Nesta direção comparece nas Atas que a população desse lugar reivindicava
melhorias para sua região por meio do envio de abaixo-assinados, representações
assinadas, memoriais de comissões formadas por moradores que eram encaminhados à
Câmara de vereadores. Através das diferentes requisições feitas, é possível perceber

sumário 1322
VII Seminário Vozes da Educação

algumas demandas dos diversos bairros do município. O abaixo assinado dos


“moradores de Imbarié e Parada Angélica”, por exemplo, solicitava “a passagem dos
ônibus Praça Maua –Raiz da Serra” por locais diferentes do trajeto realizado (IHCMDC,
Livro 1, Ata da 14ª Reunião Ordinária,24/11/1947, p.121-139).
Muitas vezes a própria população se organizava para resolver problemas
cotidianos que o poder público municipal não resolvia (IHCMDC, Livro 7, Ata da 3ª
Reunião Extraordinária,09/08/1951, p.138-147). Monteiro (2001) conceituou como
“rede de resolução de problemas práticos” essa ação da população de Belford Roxo
durante a criação do município, para dar conta de serviços que o poder público não
prestava (MONTEIRO 2001 apud CANTALEJO, 2008). Cantalejo (2008) empregou o
mesmo conceito ao referir-se ao problema de infraestrutura em Duque de Caxias, no
que tangenciou o processo de loteamento. Em que, na ausência do poder público, a
própria população busca prover melhoramentos urbanos. Braz (2010) também destaca a
criação de “estratégias coletivas” para a superação das dificuldades (BRAZ;
ALMEIDA, 2010, p.85) no território.
Existiam muitos loteamentos irregulares na cidade o que contribuiu para que os
problemas da ausência de infraestrutura fossem ainda mais acentuados, pois, as
empresas loteadoras irregulares não realizavam os melhoramentos que prometiam. No
loteamento do Jardim Gramacho por exemplo, consta nas Atas, que as pessoas tinham
passar “sob cercas de arame (...) como se fossem animais “(IHCMDC, Livro 4, Ata da
5ª Sessão Ordinária,14/07/1950, p.149).
Cabe lembrar que a região de Duque de Caxias era um lugar contraditório, pois,
conforme atestam as atas da Câmara, apesar de ser, em 1947, um dos municípios “mais
ricos e de mais arrecadação do Estado do Rio, continua a ser um Municipio
completamente desajustado...Sem agua potável, sem rua calçadas, sem assistencia 181
social organizada” precisando também de “rêde de esgostos, escolas, Hospital”
(IHCMDC, Livro 1, Ata da 1ª Sessão Ordinária,23/10/1947, p.7-8-9).
Ainda em 1951 o acesso à luz elétrica era irrisório na região, chegando a
contemplar somente “5 %” da população existente. Pois, “apenas 5.554 de uma
população de 95.000 almas dispõem de meios para usofruto dêsse recurso da técnica”
(IHCMDC, Livro 6, Ata da 2ª Reunião Extraordinária,13/04/1951, p.166). Assim vivia
a maior parte dos caxienses “o mais obsoleto e anti-higiênico meio de iluminação que é

181
Optamos por deixar os trechos das fontes em sua grafia original.

sumário 1323
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

da lâmpada a candeeiro, ou luz a querosene” (IHCMDC, Livro 6, Ata da 4ª Reunião


Extraordinária,16/04/1951, p.184).
O problema da água era também outra contradição na região, pois, “os seus
mananciais serem aproveitados por outros enquanto a Cidade sente falta dagua”
(IHCMDC, Livro 12, Ata da 16ª Reunião Ordinária,25/03/1953, p.69). Os mananciais
da cidade abasteciam “o Distrito Federal” (IHCMDC, Livro 14, Ata da 14ª Reunião
Ordinária,22/03/1954, p.82v-87). Enquanto os moradores de Duque de Caxias
dependiam de bicas, da chuva, de poços e de carros-pipa para ter água (IHCMDC, Livro
6, Ata da 2ª Reunião Extraordinária,13/04/1951, p.168), IHCMDC, Livro 9, Ata da 4ª
Reunião Extraordinária,03/07/1952, p.192-197. Essa questão era ainda mais agravada
quando faltava água nestas bicas, como foi o caso “Parque Lafaiete”, em 1948
(IHCMDC, Livro 2, Ata da 7ª Sessão ordinária,13/07/1948, p.118).
Neste contexto de tentativas de melhoria da infraestrutura da cidade que era
muito incipiente no período investigado, percebemos como as questões estruturais
incidiam diretamente no dia - a - dia das escolas. A rua Itaperuna, por exemplo
“permanece esburacada”, mesmo existindo um “colégio” ali (IHCMDC, Livro 9, Ata da
15ª Reunião Ordinária, 26/03/1952, p.99-100).
Segundo denúncias feitas nas sessões da Câmara, o meretrício na cidade ocorria
“com escândalos e cenas licenciosas a plena luz do dia, frente aos educandários e às
residências” (IHCMDC, Livro 14, Ata da 17ª Reunião Ordinária,25/03/1954, p.89-94).
Com a jogatina não era muito diferente (IHCMDC, Livro 8, Ata da 3ª Reunião
Extraordinária,18/10/1951, p.13-14).
A saúde em Duque de Caxias figurava como “uma antecâmara da morte, onde o
povo não tendo onde viver, alí vai morrer nas condições mais miseráveis”, segundo o
vereador Moacyr Alves Branco (IHCMDC, Livro 6, Ata da 13ª Reunião
ordinária,28/03/1951, p.115-116).
Dessa forma, o estado de cuidado com a cidade também era um fator a
contribuir para estas epidemias, uma vez que “as valas e brejos-fornecendo os mesmos
grandes focos de mosquitos, moscume causadores da malária” (IHCMDC, Livro 7, Ata
da 17ª Reunião Extraordinária,07/06/1951, p.50).
Em 1952, Amaral Peixoto esteve em Duque de Caxias no dia 9 de outubro para
inaugurar escolas estaduais, embora este fosse o assunto principal do seu discurso
percebe-se como as questões sanitárias de Duque de Caxias figuravam uma

sumário 1324
VII Seminário Vozes da Educação

preocupação, inclusive para o governador do estado, devido à proximidade do território


(IHCMDC, Livro10, Ata da Reunião Extraordinária,13/10/1952, p.172 -183).

A educação primária pública e o poder legislativo em Duque de Caxias: debates e


criação de escolas
A proposição aqui adotada para analisar os processos de escolarização é baseada
no roteiro realizado por Faria Filho e Bertucci (2009) em que indica o estudo
simultâneo de dois sentidos de escolarização, a saber: o “estabelecimento de processos e
políticas concernentes à ‘organização’ de uma rede, ou redes de instituições” e “a
produção de representações sociais [...] cujos sentidos têm na escola o lócus
fundamental de articulação e divulgação” (FARIA FILHO; BERTUCCI,2009, p.14).
Para tanto identificamos nesta sessão quais foram as ações legislativas do poder
público municipal acerca da criação de instituições escolares182 em Duque de Caxias,
através das discussões ocorridas na Câmara Municipal buscando apreender como a rede
de ensino público municipal foi constituída.
Logo no início da 1ª legislatura, em novembro de 1947 foi proposto “o Projeto
de resolução do Vereador Pereira Pinto ao poder executivo para que sejam creadas
escolas publicas em propriedades agrícolas que distem mais de 10ks de localidade
despovoadas” (IHCMDC, Livro 1, Ata da 4ª Sessão ordinária, 06/11/1947, p.54). Em
1949, houve outra proposição de criação de escolas em propriedades agrícolas, que
também foi aprovada (IHCMDC, Livro 3, Ata da 8ª Sessão Ordinária,11/03/1949, p.40-
41). De acordo com o vereador Alvarenga Freire “o prefeito- informou - estava
trabalhando para criar dez escolas do tipo rural” (IHCMDC, Livro 11, Ata da 2ª
Reunião Ordinária,04/11/1952, p.28-29).
Em 1952, houve a preposição de um projeto para criação de um Patronato
Agrícola na cidade (IHCMDC, Livro 11, Ata da 5ª Reunião Ordinária,07/11/1952, p.44-
50). Segundo Costa (2017, p.26) os Patronatos Agrícolas eram instituições que
ofereciam educação primária e ensinavam a cuidar da terra e dos animais, centrando
algumas vezes “menores presos ou encontrados na rua, executando trabalhos informais
com vista à ‘regeneração’ desses indivíduos, objetivando um controle social e agrícola”.
Desse modo, cabe lembrar que a educação não é uma benesse do Estado, mas
sim um instrumento utilizado, em que as crianças populares são arrancadas “do seu

182
Entende-se aqui como instituição escolar no sentido estrito e instituição educativa em um sentido
amplo, tal como definido por Sanfelice (2005).

sumário 1325
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

meio, da sua classe, de sua cultura”, por meio legal, em que todas as engrenagens rodam
para converterem essas crianças em “um capital potencial”, ou seja, em bons
trabalhadores (VARELLA; URIA, 1992, p.87).
A 5ª sessão extraordinária da Câmara do ano de 1947 consta a existência de um
ofício enviado pelo “ex-prefeito Coronel Sapião da Silva Carvalho” em que este
comparece “doando ao Patrimonio Estadual a aréa de terreno doada à prefeitura pela
Empreza Melhoramentos de Caxias, para construção de grupos escolares”. A “doação
da referida aréa ao Estado” ocorreu “por não ter a Prefeitura meios para a construção do
grupo escolar” (IHCMDC, Livro 1, Ata da 3ª Reunião Extraordinária, 24/10/1947,
p.35).
Ainda se tratando dos tipos de escolas que eram propostas/ desejadas para o
município, percebe-se uma variedade de modalidades de ensino e natureza de
instituições. com uma “Indicação do Vereador Waldyr Medeiros para que seja criado
uma escola de Instrução Militar neste Municipio” (IHCMDC, Livro 3, Ata da 13ª
Sessão Ordinária,31/03/1949, p.74), a indicação de “serem reencetados os cursos
supletivos noturnos de várias escolas municipais” (IHCMDC, Livro 6, Ata da 8ª
Reunião ordinária,15/03/1951, p. 63), a “indicação do edil Peixoto Filho creando uma
escola na Igreja Metodista da Av. Rio Petrópolis” (IHCMDC, Livro 7, Ata da 6ª
Reunião Extraordinária,28/08/1951, p.160), nomeando também “uma professora” para
esta Igreja (IHCMDC, Livro 8, Ata da 12ª Reunião Ordinária,20/11/1951, p.125),
ambas sugestões foram “aprovad[a]s sem restrição” (IHCMDC, Livro 8, Ata da 13ª
Reunião Ordinária,21/11/1951, p.132).A proposição da criação de uma escola na Igreja
Metodista pode sugerir as formas pelas quais a educação no município era financiada.
O vereador Alves Branco solicitou a “instalação de uma escola do Senai”
(IHCMDC, Livro 11, Ata da 1ª Reunião Extraordinária,26/01/1953, p.146) e o vereador
Perez Montilho fez uma indicação que foi aceita “sugerindo entendimento do Prefeito
com o ‘SENAC’ para a creação de um ginásio gratuito em Caxias” (IHCMDC, Livro
12, Ata da 9ª Reunião Ordinária,13/03/1953, p.24). O memso vereador assinalou que
havia verba para a construção de uma escola em “Gramacho” (Vila Leopoldina) em que
o edil Gonçalves Moura sugeria que esta fosse feita “em terreno doado para esse fim”
(IHCMDC, Livro 12, Ata da 19ª Reunião Ordinária,30/03/1953, p.86).
Identificamos também o requerimento da instalação do “curso Secundário” em
um grupo escolar, ao Secretário de Educação e Assistência por parte do vereador
Moacyr Alves Branco (IHCMDC, Livro 7, Ata da 18ª Reunião

sumário 1326
VII Seminário Vozes da Educação

Extraordinária,08/06/1951, p.54). Assim os tipo de instituições escolares desejadas por


frações distintas do legislativo, expressam ao mesmo tempo as funções sociais
atribuídas às escolas, assim como os projetos de sociedade em disputa.
No decorrer da análise dessa fonte, percebemos a recorrência de Projetos de
resolução, sobre desapropriação para construção de escola (IHCMDC, Ata da 7ª Sessão
ordinária,11/11/1947, p.71.). Alguns desses projetos indicam até o nome da rua em que
ocorreria a desapropriação, alguns desses projetos citam as ruas ou localidades em que
ocorreriam as desapropriações “dois lotes de terrenos na Vila Leopoldina” IHCMDC,
Livro 1, Ata da 12ª Reunião Ordinária,19/11/1947, p.112-113), “no final da rua
Vassouras” (IHCMDC, Livro 1, Ata da 15ª Sessão extraordinária, 17/12/1947, p.213),
“rua 5 de Maio” (IHCMDC, Ata da 4ª Reunião extraordinária,06/08/1948, p.184).
Segundo o vereador Peixoto Filho, em 1951, “50% da população infantil” estava
sem escolas” no município (IHCMDC, Livro 6, Ata da 8ª Reunião
ordinária,15/03/1951, p.66). Neste contexto, as Atas indicam durante a segunda
legislatura que havia construções de escolas para serem concluídas, uma na “Rua Vasco
Toieto”, a “Escola do Chacunha”, de uma Escola Publica situada à Vasco Souto”
(IHCMDC, Ata da 3ª Reunião Ordinária,09/07/1951, p.79-86). Ainda em 1951 havia
um ofício em resposta à “indicação do vereador Gonçalves Moura, a respeito de
construção de sala na escola da Praça Ruy Barbosa” (IHCMDC, Livro 7, Ata da 1ª
Reunião Extraordinária,20/09/1951, p.199) e um “ante- projeto do edil Francisco Moura
creando um ginásio municipal” (IHCMDC, Livro 8, Ata da 6ª Reunião
Ordinária,09/11/1951, p.169-182).
Ocorreu no ano de 1951 a Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, em
que foi inaugurado, no Parque Lafaiete, o seu primeiro núcleo (IHCMDC, Livro 14, Ata
da 7ª Reunião Extraordinária,27/04/1954, p.133-135), o Ginásio chamado “Ana Maria
Gomes”, instituição educativa gratuita que integrava o “movimento pró-instrução
gratuita”, de “ensino não remunerado”, ou seja, “os mestres contribuem com a sua
parcela de sacrifício” (IHCMDC, Livro 8 Ata da 20ª Reunião Ordinária,30/11/1951,
p.175).
Para o vereador Wilson Bastos Ruy a instalação deste ginásio significava
“alevantamento intelectual e moral da mocidade caxiense” (IHCMDC, Livro 8 Ata da
20ª Reunião Ordinária,30/11/1951, p.175). A proposição de considerar esta instituição
em utilidade pública (IHCMDC, Livro 12 Ata da 1ª Reunião Extraordinária,13/04/1953,
p.102) suscitou uma séries de considerações acerca de sua natureza que não estava

sumário 1327
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

muito clara na Casa Legislativa (IHCMDC, Livro 13, Ata da 5ª Reunião


Ordinária,09/11/1953, p.123-124 – grifos nossos).
Apesar de no ano de 1952, o vereador Gonçalves Moura afirmar que o número
de escolas primárias no município tinha sido “elevado ao dobro”, isto não se
configurava numa “solução para a falta de escolas, pois é colossal o numero de creanças
que não estudam”, acrescentando ainda que “Aqui precisavam-se de novo grupos
escolares em vários bairros, onde o ensino não pode ser centralizado” (IHCMDC, Livro
10, Ata da Reunião solene,08/10/1952, p.168-169).
No ano de 1953 o vereador João Dias solicitava “o crédito de Cr$ 35.000,00
para creação de uma escola no Parque Fluminense” (IHCMDC, Livro 13, Ata da 9ª
Reunião Ordinária,15/07/1953, p.17-19) e o vereador Bastos Ruy solicitava “uma escola
no Centenário” (IHCMDC, Livro 13, Ata da 13ª Reunião Ordinária,22/07/1953, p.38).
Ambos os pedidos foram aprovados. O vereador Joaquim Tenório também solicitava
“uma escola no centenário”, contudo, pedia “Cr$ 200.000,00 para a construção”
(IHCMDC, Livro 13, Ata da 6ª Reunião Ordinária,11/11/1953, p.128). Em novembro
deste mesmo ano o edil Peixoto Filho pedia através de proposição de projeto as
“inclusões de verbas no próximo orçamento” para realização de diversas construções,
em Santa Cruz, dentre elas a de uma escola (IHCMDC, Livro 13, Ata da 9ª Reunião
Ordinária,16/11/1953, p.140). No ano seguinte este mesmo vereador fez um
requerimento “pedindo CR$50.000,00 para a construção de uma escola” nesta mesma
região (IHCMDC, Livro 15, Ata da 15ª Reunião Ordinária,21/07/1954, p.196 -199). Em
1954 este requerimento foi aprovado em 3ª discussão (IHCMDC, Livro 15, Ata da 19ª
Reunião Ordinária,26/07/1954, p.3).
A solicitação de diferentes vereadores para construção de escolas num mesmo
bairro pode significar o nível de importância daquela região para os interesses políticos
dos respectivos vereadores, bem como pode expressar a demanda da população por
escola. Pois, no fim deste mesmo ano teria eleições para o pleito de 1955 e neste
período só podia voltar que foi minimamente alfabetizado.
Embora muitas fossem as iniciativas da Casa Legislativa no que se refere a
criação de escolas em diferentes localidades de Duque de Caxias, principalmente no ano
de 1953, conforme comparece nos registros das Atas, “em Caxias, existiam 30 mil
creanças escolares e que, dentre êles, apenas 10 mil estudavam” (IHCMDC, Livro 14,
Ata da 11ª Reunião Extraordinária,12/12/1953, p.5). Assim torna-se perceptível, a partir

sumário 1328
VII Seminário Vozes da Educação

do exposto acima que apesar do município ainda não conseguir dar conta da demanda
existente para o ensino primário, havia uma busca por Ginásios para a região.

As condições das escolas primárias e as iniciativas de manutenção da educação


pública municipal
É possível também apreender a situação das escolas através das falas realizadas
pelos vereadores, assim como o seu funcionamento. Muitas escolas ficavam lotadas em
“prédios” alugados, e o não pagamento da prefeitura aos donos dos espaços também é
verificado:

...o vereador Luiz Gonzaga Peçanha fazendo ver a casa o estado de abandono
em que se acha à escola do centenário, que a noite e esconderijo de
vagabundos e jogadores, e comunica que hontem foi procurado pelo
proprietário do prédio em que funciona a citada escola, e que este alega, que
não recebe aluguel do prédio desde o tempo em que era Prefeito o senhor
Arruda Negreiros, o aluguel irrisório de oitenta cruzeiros mensais (IHMDC,
Livro 1, Ata 4ª Reunião Ordinária,06/11/1947, p.52).

Numa outra passagem ainda sobre a escola Centenário é possível perceber que
embora a escola que temos hoje seja totalmente diferente da escola experienciada
naquele momento, havia um certo ideário mínimo de escola que deveria ser atendido.
Esta mesma passagem nos dá margem para pensar que as políticas públicas propostas
até aquele momento não atendiam as necessidades das escolas, e que os próprios
vereadores tentavam sanar essas necessidades de forma privada (IHMDC, Livro 1, Ata
da 12ª Reunião Ordinária, 19/11/1947, p.109).
Com o intuito de amenizar a situação difícil da escola, é “apresentado pelo
Vereador Luiz Peçanha” ainda neste ano de 1947 um “Projeto de resolução, para
fornecimento pelo executivo de material escolar” (IHMDC, Livro 1, Ata da 13ª Reunião
Ordinária,21/11/1947, p.117).
No que se refere ao pagamento do aluguéis atrasados até o mês de dezembro de
1947 não tinha sido realizado, segundo o vereador Pereira Pinto, o mesmo pressionou o
Executivo a fazê-lo (IHMDC, Livro 1, Ata da 17ª Reunião Extraordinária, 26/12/1947,
p.237-238). Essa situação ainda não tinha sido resolvida até o final do ano de 1948,
dado que os vereadores Luiz Peçanha e Corrêa Lima sugeriram a efetivação dos
pagamentos (IHCMDC, Livro 2, Ata da 9ª Sessão Extraordinária,30/12/1948, p.371).
A problemática de ausência de pagamentos de aluguéis chegou atingir a “escola
Dr. Manhães do Parque Lafaiete” (IHMDC, Livro 4, Ata da 7ª Reunião

sumário 1329
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Ordinária,16/03/1950, p.52-53). Esta instituição inclusive “foi despejada por falta de


pagamentos de alugueis (IHCMDC, Livro 4, Ata da 7ª Sessão Ordinária,16/03/1950,
p.52-53). A partir dessa problemática foi solicitado ao Executivo “abertura de crédito de
Cr$ 3.800,00 para pagamento de alguns aluguéis atrasados de prédios de escola
pública” (IHCMDC, Livro 8, Ata da 12ª Reunião Ordinária,20/11/1951, p.126).
O trecho a seguir nos proporciona mais detalhes sobre outra situação que a
escola duque caxiense vivenciava no período, escola que não possuía poço e que a luz
elétrica era emprestada. Assim como, nos indica os caminhos de atuação da Comissão
de Higiene e Instrução:

Pede a palavra o Vereador Luiz Peçanha e declara que já começaram as aulas


na Escola do Centenario e que o poço ainda não foi aberto, a luz elétrica para
a escola continua a ser fornecida por um vizinho e paga pela professora, e
pede ao senhor Presidente se possível falar pessoalmente com o senhor
Prefeito sobre a abertura do poço. O senhor Presidente declara que o
Vereador Luiz Peçanha faça um requerimento citando os casos que
mencionou para que a Comissão de Higiene e Instrução se entenda com o
Prefeito a respeito (IHMDC, Livro 1, Ata da 5ª Reunião
Extraordinária,10/03/1948, p.326-327).

Na sessão seguinte é feito o “Requerimento do Vereador Luiz Gonzaga,


solicitando ao executivo a abertura de um poço e instalação eletrica na Escola
Centenario” (IHMDC, Livro 1, Ata da 7ª Reunião Ordinária, 12/03/1948, p.332).
Ainda no que se refere as condições das instituições escolares em Duque de
Caxias no loteamento “Olavo Bilac”, por exemplo, havia uma escola “de 120 creanças
numa apertada sala de 2 1/2ms. Por 3 metros, desprovida do mais elementar para o seu
funcionamento” (IHCMDC, Livro 9, Ata da 3ª Reunião ordinária,16/01/1951, p.34).
Outras escolas em diferentes localidades do Município também são apontadas
como estando em estado de abandono, como “a casa que as escolas da Bella Vista e
Guanabara também estão em completo abandono” (IHCMDC, Livro 1, Ata da 4ª
Reunião Ordinária, 06/11/1947, p.53). Neste período as escolas também funcionavam
em casas, pois ter um prédio próprio e adequado aos objetivos do ensino não era uma
realidade neste contexto, apesar dos grupos escolares já existirem no Rio de Janeiro.
Acerca do quantitativo de escolas, por exemplo, o distrito de Xerém, segundo
consta nas Atas, no ano de 1947, contava apenas com uma escola (IHCMDC, Livro 1,
Ata da 4ª Reunião Ordinária, 06/11/1947, p.52). Cabe ressaltar que Xerém é um distrito
afastado do centro do município e que essa situação pode representar o cenário
educacional dessas áreas mais distantes.

sumário 1330
VII Seminário Vozes da Educação

O pedido de informações “do vereador Helio Soares, com referencia a aluguel


da casa da Av. Nilo Peçanha1606, onde funciona uma escola”, por exemplo, fornece
inclusive o endereço de onde ficava a instituição (IHCMDC, Livro 3, Ata da 2ª Sessão
Ordinária,09/03/1949, p.13).
Identificou-se também a partir das discussões ocorridas na Casa Legislativa
outras iniciativas que visavam melhorar e facilitar a estádia dos alunos nas escolas, à
exemplo do vereador Amaro Rocha que realizou uma indicação “pedindo o abatimento
de cinquoenta por cento nas passagens dos transportes municipais paras crenças que
estudam” (HCMDC, Livro 9, Ata da 15ª Reunião Ordinária,26/03/1952, p.96). Esta
proposição foi aprovada “em discussão final” de forma unânime (IHCMDC, Livro 11,
Ata da 7ª Reunião Ordinária,11/11/1952, p.58).
Somando-se à essas iniciativas, em 1953 o vereador Alvarenga Freire indicou “a
nomeação de um dentista para atender aos escolares do Município” (IHCMDC, Livro
13, Ata da 2ª Reunião Extraordinária,27/10/1953, p.95) e o vereador Peixoto Filho
solicitou verbas “para compra de fardamento para alunos pobres das escolas
municipais” (IHCMDC, Livro 13, Ata da 9ª Reunião Ordinária,16/11/1953, p.140),
sendo seu pedido aprovado “em 3ª discussão” em julho de 1954 (IHCMDC, Livro 15,
Ata da 19ª Reunião Ordinária,26/07/1954, p.3).
De acordo com Abreu (1955), havia um controle da saúde dos estudantes,
através dos “Centros de Saúde”, “Postos de Higiene”, unidades sanitárias da Secretaria
de Saúde e Assistência, presentes em todas as sedes municipais e em muitos distritos. O
serviço de higiene escolar realizava a inspeção médica dos alunos, realizava exames,
oferecia vários tipos de vacinas, no caso de epidemia. Algumas cidades contavam com o
serviço de assistência odontológica e as Caixas Escolares também prestavam este
serviço.
Um outro aspecto a ser considerado nas iniciativas do poder municipal no
oferecimento de escolas é o da qualidade destas construções que está atrelada
diretamente aos valores dispensados às obras. Segundo consta nas Atas, em 1953,
estavam sendo construídas vários prédios escolares em que “os construtores das escolas
haviam recebido o valor de 5 delas adeatadamente” o que fazia faltar dinheiro para
outras demandas do município (IHCMDC, Livro 13, Ata da 8ª Reunião
Ordinária,12/11/1953, p.135 -139).
Assim as discussões realizadas pelos vereadores também descortinam as
problemáticas envolvidas nas construções das escolas neste ano. O super- faturamento

sumário 1331
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

das obras e o preço dispensado na construção de cada unidade escolar que seria
insuficiente para uma obra de qualidade constituíram estas problemáticas.

...Passando a falar o edil Bastos Ruy, leu certo trecho do jornal estipendiado
pela Prefeitura, no qual se acham publicados os documentos da concorrência
para construção das escolas. Destacou então que, o preço unitário estipulado
éra de CR$ 40.000,00 e estavam sendo pagas a CR$ 85.000,00. Como
cidadão pediria no judiciário c’o uma ação. Nesta altura a exaltação éra
grande o Sr. Presidente suspendeu a reunião por 5 minutos. Quando os
trabalhos recomeçaram o Sr. Zulmar Bastista refutou aquelas assertivas,
lendo o artigo 6º do edital de concorrência, aditando que a soma de Cr$
40.000,00 éra para efeito de caução porque não era crível que, no, dias de
hoje, houvesse quem se comprometesse a edificar escolas amplas por apenas
40 mil cruzeiros (IHCMDC, Livro 13, Ata da 8ª Reunião
Ordinária,12/11/1953, p.137).

Essa temática sobre a qualidade das construções escolares reaparece no ano de


1954 e ganha espaço e a atenção dos vereadores, visto que havia “o desbaratamento dos
dinheiros públicos na construção das escolas técnicamente mal feitas, sem segurança e
com material de péssima qualidade”, tendo uma delas ruído “por força de um pequeno
temporal ocorrido em Parada Angelica” antes mesmo de ser concluída.
Como resultado deste acontecido o vereador Peixoto Filho “leu um requerimento
de sua autoria sôbre o assunto, porque não éra possível que antes de concluídas, essas
escolas já estivessem caindo” e “assumia a responsabilidade das acusações graves que
lançava sôbre o empreiteiro” que considerava “desonesto”.
O estado das construções destas escolas comparecem como um “escândalo” no
material analisado e as ações do prefeito em relação a estas obras também são
questionadas: “O Sr. Moura disse que o Prefeito tinha visitado muito a construção de
certas escolas, não podendo ignorar a fraude”. Dessa forma, para o vereador Peixoto
Filho declarava que “as escolas não haviam absorvido cem mil cruzeiros, tal o péssimo
material empregado” (IHCMDC, Livro 14, Ata da 17ª Reunião Ordinária,25/03/1954,
p.93-94).
Noutra reunião o vereador Milton Pio exibiu “pedaços de embossos trazidos por
moradores que viram, estarrecidos, o seu desmoronamento, devido a má qualidade da
construção, onde não se fez o mais o mais leve traço de cimento” (IHCMDC, Livro 14,
Ata da 1ª Reunião Extraordinária,12/04/1954, p.117). Num outro encontro o vereador
Peixoto Filho apresentou “fragmentos de reboque das paredes externas de uma escola
em ruina, na Parada Angélica” (IHCMDC, Livro 14, Ata da 5ª Reunião
Extraordinária,20/04/1954, p.129-130).

sumário 1332
VII Seminário Vozes da Educação

Também foram levados à Casa Legislativa “restos de embôsso externo da escola


da rua Dr. Laureano óra em ruina” (IHCMDC, Livro 14, Ata da 5ª Reunião
Extraordinária,20/04/1954, p.130). Consta ainda que escolas em outras partes do
município ruíram, por exemplo em “Parada Anjélica as últimas chuvas fizeram ruir uma
escola cujo preço foi de CR$ 180.000,00, sem que qualquer providência fosse tomada.
Na Vila São Luís a situação é idêntica” (IHCMDC, Livro 14, Ata da 1ª Reunião
Extraordinária,03/05/1954, p.146). A escola Leandro da Mota, também configurava-se
como “uma construção calamitosa e criminosa pois não estando ainda pronta, já se acha
em ruina, dado o emprego de material ordinário e a ausência de cimento” (IHCMDC,
Livro 14, Ata da 2ª Reunião Extraordinária,04/05/1954, p.149).
Nem todas essas escolas ruíram, contudo, havia o receio de que isso acontecesse,
o que fica explicito no trecho a seguir: “Presa aos céus- frizou-, que no futuro aquelas
que ainda estão intactas não se abatam sobre dezenas de creanças, ceifando-as da vida”
(IHCMDC, Livro 14, Ata da 2ª Reunião Extraordinária,13/04/1954, p.122).
Os discursos realizados pelos vereadores do segundo período legislativo
perpassavam sempre que possível pela ideia de que “tudo resultava da iniciativa
particular” (IHCMDC, Livro 6, Ata da 2ª Reunião extraordinária,05/03/1951, p.17), era
“fruto da inciativa particular” (IHCMDC, Livro 10, Ata da Reunião solene,08/10/1952,
p.167) no município, consequentemente as iniciativas particulares na criação de
Ginásios também eram exaltadas pelo próprio prefeito:

Falando o Sr. Braulino Reis, prefeito municipal(...) Faltam escolas e é por


isso que não se cança de louvar o esforço, a coragem e a abnegação de
educadores particulares como os dos Ginásios locais, que tanto têm
produzido para ministrar luzes à nossa gente (IHCMDC, Livro 10, Ata da
Reunião solene,08/10/1952, p.171).

Neste sentido é preciso considerar o que representava ter um Ginásio no


município naquele contexto, mas ao mesmo tempo não se pode perder de vista qual era
o público que tinha acesso à este nível de ensino, uma vez que o ensino primário não
atendia a demanda existente e que só poderia cursar o Ginasial quem pudesse pagar e
quem já tivesse o ensino primário completo.
Contudo, vale frisar que havia diferentes modos pelos quais o poder público
municipal concedia verbas às instituições privadas. Assim a subvenção de escolas por
parte da prefeitura também é um aspecto que comparece na realidade duque –caxiense,
à exemplo o “Educandário Serra Cardoso”, o “Ginásio Duque de Caxias” que

sumário 1333
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

solicitaram a concessão de subvenção junto à Câmara (IHCMDC, Livro 2, Ata da 7ª


Reunião Extraordinária, 18-06-1948.p.62).
Apesar de estar presente na Câmara o pensamento de que a iniciativa privada era
quem fornecia melhoramentos ao lugar, a análise do material permite perceber que
muitos eram os modos como o poder público destinava verbas às instituições privadas
no município. Aspectos esses que podem ter contribuído para que não se desse conta da
demanda por ensino primário.

Considerações finais
O exame das Atas da Câmara Municipal além de revelar uma pluralidade de
temas ligados à educação municipal, descortina os contextos múltiplos em que se deu a
criação de escolas a partir da instalação do poder político local. Tendo em vista os
aspectos assinalados acima nota-se que os jornais municipais e os documentos oficiais
locais são fontes importantes para a história local, uma vez que fornecem indícios da
“força popular, tanto como uma atividade, quanto uma forma literária”, pois, trabalhar
com o local para “é uma construção política e simbólica, antes de ser físico-geográfica,
porque são as práticas políticas e as relações de poder que nomeiam, inventariam e
produzem sentido, visibilidade e reconhecimento do espaço físico” (CAVALCANTI,
2018, p.285).
Cumpre atentar nesta direção que a análise das Atas da Câmara Municipal de
Duque de Caxias traz à tona nuances que estiveram presentes no processo de criação de
escolas a partir da instalação do poder político local. Nuances essas que apontam que
mesmo havendo um esforço do poder legislativo municipal no que se referia a criação
de escolas, esta não atendia a demanda daquele contexto. Articulando-se à isso as
condições das construções de algumas escolas no território como o caso das escolas que
ruíram coloca em questão a problemática da quantidade versus a qualidade das
instituições escolares municipais criadas pelo poder municipal. Além disso, não se pode
perder de vista a presença da concessão de subvenções por parte do poder público
municipal às instituições privadas. Assim não se trata apenas de se saber quantas e quais
escolas foram criadas no território no período em análise, mas de também perceber os
contextos que foram tecidos nestes processos.

sumário 1334
VII Seminário Vozes da Educação

Referências
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CANTALEJO, M. H. de S. O Município de Duque de Caxias e a Ditadura Militar:


1964-1985. Rio de Janeiro 2008.Dissertação de Mestrado. (Educação)185 f. Rio de
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SOUZA, M. S. Escavando o passado da cidade: história política da Cidade


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Oliveira, Fábio Silva Gonçalves. Duque de Caxias, RJ: APPH-CLIO, 2014.

VARELA, J.; ALVAREZ-URIA, F. A Maquinaria Escolar In: Teoria e Educação.


Dossiê: História da Educação; Porto Alegre, Pannonica Editora, 6, 1992.

sumário 1335
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

OLHARES PARA UMA POLÍTICA PÚBLICA NO COTIDIANO DA


EDUCAÇÃO INFANTIL SOB A PERSPECTIVA DA PARTICIPAÇÃO DAS
CRIANÇAS

Débora Assumpção dos Santos Rodrigues


Fundação Municipal de Educação de Niterói - FME
deboraassumpcaorj@gmail.com

As crianças, como de costume, sempre encontram


algum sentido nas coisas. Eles sempre me
acompanham. Juntos desbravamos novos caminhos
(HOLM, 2016).

O presente artigo é fruto de uma pesquisa realizada no período de 2016 a 2018,


entrelaçada a outras conversas e às muitas outras experiências vividas no cotidiano da
Educação Infantil.
No ano de 2013 foi implementada uma política pública no município de Niterói
- RJ, denominada Programa MAIS INFÂNCIA. Tal política visava a expansão do
atendimento na Educação Infantil no município, e prometia como meta a construção de
20 novas Unidades Municipais de Educação Infantil (UMEI) de tempo integral até o
final de 2016, criando 3000 novas matrículas, envolvendo também reformas e
melhorias nas demais Unidades de Educação Infantil. Esta Política Pública
expansionista gerou as questões que me levaram à pesquisa que será aqui, em parte,
apresentada.
Fui levada a esta pesquisa a fim de compreender como o PROGRAMA MAIS
INFÂNCIA se materializa no cotidiano da Educação Infantil a partir dos olhares para a
minha própria prática, como diretora de uma Unidade Municipal de Educação Infantil
(UMEI) em uma ação desafiadora de fazer pesquisa a partir da própria prática,
construindo-a junto às crianças, no desbravar de novos caminhos, como nos convida a
epígrafe deste artigo.
A UMEI onde a pesquisa foi realizada, que optei por chamar de UMEI Gaivotas
(em um compromisso ético e epistêmico de preservar a identidade dos sujeitos
envolvidos), foi inaugurada em 2013, assim que foi dado início ao Programa MAIS
INFÂNCIA. Como professora da rede municipal de educação de Niterói, atuando como

sumário 1336
VII Seminário Vozes da Educação

diretora da referida UMEI, no contexto de tal política pública, percebo a relevância de


uma pesquisa que leve em conta as percepções e perspectivas das crianças com as quais
trabalho, sobre as quais penso, que se constituem como receptoras e consumidoras das
ações desta política, no sentido atribuído por Certeau (1996), que discorre sobre as
táticas e formas subterrâneas de conviver com as políticas impostas.
Para além de levantar e analisar documentos sobre a política pública e emitir um
parecer conclusivo do ponto de vista epistêmico, teórico e científico sobre os dados
levantados, considerei importante ouvir as crianças, sujeitos para os quais a política é
implementada e que vivem e sentem o dia a dia de uma UMEI durante nove horas
diárias, dada a cientificidade de suas descobertas e do que trazem para a pesquisa.
Por compreendemos que as crianças são sujeitos sociais, produtoras de
conhecimento, participantes da sociedade em que vivem, entendemos que não há como
dissociar a ampliação da oferta de vagas em instituições educacionais próprias para esta
categoria, das especificidades requeridas pela sociologia da infância.

Todo problema sociológico - mesmo aqueles que dizem respeito à criança -


tem múltiplas relações com todos os outros problemas sociológicos ou
mesmo antropológicos, isto é, biológicos e psicológicos, pois na vida social,
sublimação da vida propriamente dita, existe, necessariamente, unidade e
organismo (MAUSS, 2010).

Reiteramos o diálogo com Mauss, quando assumimos que na reflexão sobre as


questões sociológicas, não se pode apartar essa abordagem da vida social concreta das
crianças. Nesta perspectiva, a escola constitui-se como um organismo vivo, de fatos
sociais infantis que não podem ser negligenciados. Através do autor supracitado
encontramos as primeiras reflexões sobre a sociologia da infância, que nos instigam a
estudar as relações que se dão nos meios infantis e a forma como as crianças aprendem
e se organizam entre diferentes grupos geracionais, o que nos leva a questionar
severamente teorias desenvolvimentistas que tendem a compartimentar as capacidades
das crianças, que partem do individual e não do social e reforçam a ideia de um vir a
ser. Neste sentido, o autor nos provoca ao afirmar que “o homem é [...] um animal que
educa e adestra suas crianças[...]” (MAUSS, 2010).
Partindo dessas proposições, e levando em consideração os aspectos sociais da
infância, as relações das crianças e seus códigos em sua complexidade, venho trazer
alguns relatos de percurso epistêmico e político da pesquisa.

sumário 1337
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

MAIS INFÂNCIA nos remete a uma reflexão importante a respeito de um


pensamento sobre infância. Compartilho com Abramowicz, Levcovitz e Rodrigues
(2009) a ideia de que a infância

é aquela que propicia devires, um vir-a-ser, que nada tem a ver com um
futuro, com um amanhã ou com uma cronologia temporalmente marcada,
mas com aquilo que somos capazes de inventar como experimentação de
outras coisas e outros mundos. (p.180).

Nesse sentido, portanto, entendemos que infância é sobretudo, potência, uma


categoria marcada pela inventividade, por experiências múltiplas e por isso, falamos de
infâncias no plural, pela multiplicidade de experiências que as atravessam. Desta
forma, MAIS INFÂNCIA, deve denotar a preocupação com uma educação para a
criança levando em conta suas multiplicidades e singularidades, cujas infâncias
propiciam devires.
Pensar uma política para a(s) infância(s) seria, em termos práticos, fazer valer as
legislações que asseguram os direitos das crianças, quais sejam: ampliação da ofertas de
vagas, prédios dentro das especificações técnicas necessárias ao seu funcionamento,
espaços adequados para atendimento a um determinado quantitativo de crianças por
grupos etários etc., sem contudo deixar de ter especial atenção para as crianças no
cotidiano, nas suas relações umas com as outras e com os adultos, visando à redução
desta distância colocada entre as diferentes gerações. Assim como afirmam Graue e
Walsh (2003, p.10), a distância física, social, cognitiva e política entre adulto e criança
tornam suas relação muito diferente das relações entre adultos e através de estudos
etnográficos com crianças percebemos que existem características que são
especificamente infantis, sendo desta forma urgente pensar modos de intervenção nos
seus mundos sem, contudo, negligenciar suas peculiaridades, que refletem interesses e
vontades. A pesquisa etnográfica, como um dos braços metodológicos dos estudos
antropológicos, foi uma inspiração que nutriu a pesquisa pela identificação com as
questões centrais, que me levou à busca de perceber, olhar e compreender como se dão
os fenômenos sociais e culturais no contexto da educação infantil. No processo de
pesquisa, fui instigada a conviver com as crianças e buscar nesse convívio, saber mais
sobre elas, pois as crianças são as que melhor sabem sobre o seu mundo e então, a
partir desse convívio, gerar os dados da pesquisa.

sumário 1338
VII Seminário Vozes da Educação

Nos poucos documentos encontrados sobre o Programa em tela, é


explicitado o foco na expansão da Rede de Educação Infantil no município levando em
consideração aspectos físicos e pedagógicos, demonstrando a preocupação com a
participação de todos os segmentos da sociedade na construção de uma educação
pública de qualidade. Os documentos de que falo são folders de divulgação do
programa e o documento intitulado “Niterói que queremos”, que apresenta metas e
estratégias que visam “orientar os esforços, políticas públicas e investimentos na cidade
ao longo dos próximos 20 anos”. (NITERÓI QUE QUEREMOS, 2014, p.13).
Indo ao encontro das informações apresentadas acima, trago para esta discussão
algumas proposições da Conferência Nacional de Educação (CONAE), expressas
através do documento final disponibilizado em 2014, que sistematiza o debate nacional
sobre a educação brasileira.
À luz do referido documento e dos pensamentos de alguns autores que abordam
temas sobre participação política das crianças na creche e educação infantil (CASTRO,
2013; MOSS, 2009), busquei perceber como as crianças participam neste contexto
educacional e de que forma a política pública em questão tem contribuído para que
práticas de participação infantis se materializem no cotidiano, tornando-o o potente e
criando um “MAIS INFÂNCIA” genuinamente significativo.
Tomando como premissa a concepção de que uma política pública deve
expressar os pensamentos de diversos coletivos que compõem a sociedade, parto da
premissa que os coletivos infantis são, historicamente, os menos escutados na em um
contexto de sociedade eurocêntrica, capitalista, ocidental, onde o adulto tem sempre as
palavras primeira e final e onde a ciência é adultocêntrica e constrói verdades absolutas
sobre as infâncias (FARIA; FINCO, 2011, p.4).
A partir destas reflexões, dentre algumas questões que nortearam a pesquisa,
suscito o leitor às seguintes perguntas: Mais Infância se refere à possibilidades de
ampliação das participações infantis no contexto educacional, se constituindo como
uma política que remete à potência dos coletivos infantis? As vozes infantis produzem
ecos na construção de um projeto político pedagógico vivo e dinâmico, que impacta e
transforma o cotidiano da Educação Infantil?

As crianças na UMEI: (im)possibilidades de participação?


Após estas provocações ao pensamento, trago informações sobre a UMEI
Gaivotas, lócus da pesquisa, para que se possa compreender o contexto onde o

sumário 1339
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

atendimento é prestado e voltarmos o olhar para as crianças que são atendidas neste
espaço.
A UMEI está localizada na Região Oceânica de Niterói, no bairro de Itaipu.. O
seu prédio é constituído por cinco salas de aula e atende as crianças em grupos
denominados Grupos de Referência da Educação Infantil (GREI), sendo portanto, à
epoca da pesquisa, cinco grupos: um (01) grupo de três anos (GREI3), dois (02)
grupos de quatro anos (GREI4A e GREI4B) e dois (02) grupos de cinco anos (GREI5A
e GREI5B). Pela portaria que rege a modulação do quantitativo de crianças por grupo
(Portaria FME 087/2011), cada grupo tem como limite o número de 20 crianças,
podendo se estender para mais duas em casos de extrema necessidade, contudo, das 5
salas, pelo tamanho limitado, apenas duas comportam esse número de crianças e as
outras três comportam, no máximo, 16 crianças. Além das salas de aula, a Unidade
apresenta para as crianças uma sala de multimeios, onde há espaço para TV, leitura,
arara com fantasias e funciona como um espaço para atividades diversas, assim como o
nome anuncia. O refeitório da Unidade tem capacidade para, no máximo, 40 crianças
fazerem as refeições. Apresenta no térreo um banheiro infantil feminino com três
chuveiros e um infantil masculino sem chuveiros, um banheiro feminino adulto e um
adaptado (que funciona como o masculino adulto, que não existe na Unidade). No andar
superior, onde ficam as salas das crianças de 5 anos, funciona um banheiro infantil com
um chuveiro e um banheiro de adulto. A UMEI possui uma secretaria com banheiro,
uma sala de direção e um almoxarifado. Uma varanda grande é utilizada como
parquinho de grama sintética, apresentando alguns brinquedos, tais como, escorregos,
gangorras de plástico, casinha de bonecas.
A Unidade contava, na época da pesquisa, com onze professoras, duas para cada
grupo de crianças; uma professora de apoio educacional especializado (que atendem às
crianças com necessidades educacionais especiais); um agente administrativo e uma
auxiliar de coordenação; equipe de apoio operacional composta por três funcionárias de
serviços gerais e três merendeiras; equipe de articulação pedagógica composta por uma
diretora, uma diretora adjunta, uma coordenadora e uma pedagoga. O horário de
funcionamento da Unidade é das 8 às 17 horas e às quartas-feiras por ocorrerem
reuniões semanais de avaliação e planejamento das professoras, as crianças são
dispensadas às 15 horas.

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VII Seminário Vozes da Educação

O bairro de Itaipu, assim como os outros bairros da região, possui uma vasta
área natural, composta por praias e uma expressiva extensão de Mata Atlântica
preservada, no Parque Estadual Serra da Tiririca.
Além das riquezas naturais, o bairro apresenta uma grande riqueza cultural e
histórica, patrimônio da cidade de Niterói. Na praia de Itaipu existem sambaquis que
guardam registros históricos de animais e habitantes que ali viveram e o Museu
Arqueológico de Itaipu, que traz à comunidade e aos visitantes uma exposição
permanente dos materiais encontrados nas dunas e nas ruínas de um antigo abrigo para
mulheres, conhecido como Recolhimento de Santa Tereza, existente ali no século
XVIII.
Na praia também existe a colônia de pescadores. Esta comunidade guarda uma
história e uma cultura muito importantes a serem preservadas e promove movimentos
de resistência e luta por esta preservação. Em um outro ponto do bairro, no Engenho do
Mato, existe um espaço de resistência quilombola conhecido como Quilombo do
Grotão, que também realiza atividades comunitárias e guarda um patrimônio histórico e
cultural na localidade. Em vários pontos do território do Parque Estadual da Serra da
Tiririca, encontramos o caminho de Darwin, importante trilha a ser explorada.
De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil
(2010), as práticas nas instituições de Educação Infantil devem ser pensadas através de
princípios éticos da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do respeito ao
bem comum, ao meio ambiente e às diferentes culturas, identidades e singularidades
(p.16). Reforçando ainda que se faz necessário a garantia de experiências que
incentivem a curiosidade, a exploração, o encantamento, o questionamento, a
indagação e o conhecimento das crianças em relação ao mundo físico e social, ao
tempo e à natureza (p.26).

Eu gosto de passear no Museu, porque lá tem muita coisa legal. Tem


estátuas, dá pra correr, brincar... tem uma oca, que eu gosto de fingir que tem
um amigo ali do meu lado. (MEL, 6 anos)
Gosto de passear pelas ruas e ir na casa da professora...brincar com os
brinquedos da filha dela. E gostei de ir na casa da Rafa (amiga da turma).
(BEN, 5 anos)

As falas das crianças mostram esta relação com o mundo ilimitado, que vai
muito além do espaço físico da UMEI tão restrito e limitado. A valorização dada por

sumário 1341
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

elas ao deslocamento, ao sair das paredes que cercam a instituição e as cerceiam do


contato com o mundo.
Barbosa (2006) aponta para o fato de que a arquitetura de uma instituição de
educação revela um pensamento político pedagógico, à medida que interfere na criação
de possibilidades e oportunidades diversas para a ampliação do universo cultural e
conceitual das crianças.
As proposições das DCNEI (2010) fortalecem os aspectos pedagógicos da
UMEI na decisão coletiva de buscar garantir às crianças oportunidades de contato com
diferentes culturas e com a história local. A visitação e apropriação dos espaços
externos como espaço público, de todos, tem se constituído como um rico campo de
fomento à curiosidade e de aquisição de conhecimento sobre múltiplas questões, e de
diálogo com as crianças sobre temas transversais, abrindo caminhos de conhecimento
para crianças e adultos.
O espaço pequeno da UMEI, e a necessidade que as crianças externam de
brincar ao ar livre, de jogar bola, de subir em árvore, fez com que o coletivo de
profissionais se mobilizasse para pensar estratégias que suprissem essas necessidades de
uma certa forma.
As questões que surgem junto a adultos e crianças devido aos problemas com
espaço físico limitado vêm sendo estudadas por toda a equipe nas reuniões pedagógicas,
e a prática de apropriação dos espaços externos também surge como uma ampliação do
espaço (que vai do interno ao externo) para que as crianças possam brincar e para que
também sejam realizadas festas e reuniões com as famílias, se constituindo como
importante ação no que se refere à organização de tempos e espaços que compõem o
currículo da Unidade. Essa prática tem sido também uma forma de apresentar estes
espaços e a cultura local para as crianças e famílias que ainda não conhecem, pois
muitos, apesar de morarem no bairro, afirmam nunca os terem visitado e até mesmo
desconhecerem a existência deles.
Nesse sentido, a direção da UMEI firmou parceria com as direções do Museu de
Arqueologia de Itaipu (MAI), Horto Botânico de Itaipu, Quilombo do Grotão e também
o Instituto Estadual do Ambiente (INEA). Nesses espaços, as famílias e crianças são
muito bem acolhidas quando ocorrem os muitos festejos da Unidade. O INEA (Instituto
Nacional de Educação Ambiental) tem levado as crianças a conhecerem a
biodiversidade através de trilhas por diversos locais do Parque Nacional da Serra da

sumário 1342
VII Seminário Vozes da Educação

Tiririca e também, através do plantio do mangue, onde as crianças e suas famílias são
convidadas a participar.
Através destas ações, a equipe pedagógica foi encontrando, em certa medida
formas e propostas pedagógicas e culturais, que rompem de certo modo com os limites
colocados pela estrutura física, que se demonstra altamente condicionante. As crianças
passam nove horas diárias em uma estrutura espacial muito restrita que as condiciona a
rotinas com poucas possibilidades de flexibilização e estes espaços externos dão um
alívio nas tensões que surgem devido a estas limitações.
Professoras também buscam, na sensibilidade, encontrar meios de explorar a
inventividade das crianças apesar das dificuldades encontradas, como podemos perceber
no diálogo abaixo.

Pesquisadora: Como você acha que a estrutura física da UMEI interfere nas
escolhas das crianças? Facilitam ou dificultam? Se dificultam, você consegue
ver formas de romper com os possíveis limites?
- ISO: Débora, na verdade eu acho que para as crianças não facilita e nem
dificulta, porque eles buscam estratégias para adaptarem-se aos espaços, onde
a brincadeira é sempre o mais importante. Nós adultos e profissionais é que
temos um olhar diferente, pensando as possibilidades que poderiam ser dadas
a eles. Por exemplo: algumas crianças do meu grupo necessitam mexer em
terra, nas pedrinhas, nas folhas.... eles resolveram este problema! Sabe o que
eles fazem? Eles vão mexendo a terra dos vasos, aí eles criam pedrinhas para
colocar nos carrinhos com o cimento do parquinho que está soltando. O R., a
gente percebe que ele está acostumado a brincar em espaços maiores, onde
deve ter árvores. Aí o que ele faz? Ele precisa estar sempre subindo em
alguma coisa. Ele também já resolveu o problema dele.. Vive subindo nos
bancos e dando pulos... altos, né? Utiliza também as escadas dos escorregos
pra dar os impulsos e dar pulos mais altos. Ele... se acha um super herói...
com certeza!

Enquanto os adultos olham para as necessidades de uma organização bem


definida dos espaços e tempos para o melhor aproveitamento destes pelas crianças, e
buscam meios de trazer outras possibilidades às crianças, através da observação das
ações das crianças, percebemos que estas têm um olhar diferente para o espaço que a
cerca. O que é dificuldade para os adultos, nem sempre o é para as crianças.
Ao escutar e observar como as crianças percebem os espaços, fundem-se os
pensamentos sobre estes espaços físicos com a forma como são utilizados, e para as
crianças, estas questões parecem ser indissociáveis. Ao escutá-las, fomos supreendidos,
pois nossa atenção foi deslocada para um “não lugar”, onde existe a criação, a poesia, as
invenções do cotidiano.

sumário 1343
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Como premissa da pesquisa, me reuni com grupos de crianças com idades entre
3 e 5 anos para conversas sobre os espaços e tempos que experimentam diariamente na
UMEI. Nesses encontros me foi revelada a riqueza da percepção infantil sobre estes
temas. Essas vozes nos revelam os pensamentos das crianças sobre a vivência
cotidiana nesses espaços, e sobretudo, sobre as práticas e as organizações propostas por
nós adultos sobre a organização do cotidiano da UMEI, indicando como percebem a
política pública Mais Infância.
Nesse sentido, através de uma escuta sensível (Barbier, 2002), em um processo
de pesquisa-ação e no constante desafio de buscar uma relação de alteridade com as
crianças, afastando as tentações e armadilhas das práticas adultocêntricas, que se
fundamentam em estruturas históricas de longa duração, que nos atravessa e está
arraigada em nós. Em direção contrária, fui buscando estabelecer uma relação de
confiança com o grupo de crianças com o qual me reuni nas trajetórias da pesquisa.
Como afirmam Carvalho e Muller (2010, p. 67):

Todo pesquisador deve se inclinar sensivelmente para a arte de apreender a


voz da criança na singularidade de suas tessituras, isto é, ouvir representa
abrir mão de qualquer possibilidade de juízos e de valores que possam
corromper a tonalidade do que é dito pela criança, não cedendo lugar à
tentação de querer ouvir o que se pretende ouvir.

Desse compromisso de não ouvir somente o que se quer ouvir, é que surgem os
grandes achados da pesquisa.
Inicialmente, foram feitas perguntas às crianças sobre o que elas pensam sobre a
UMEI: O que vocês acham da UMEI? O que gostam e o que não gostam? Se pudessem
melhorar, o que fariam? As perguntas foram feitas sob formas de brincadeiras com o
objetivo de organizar os momentos de fala de cada um, buscando o exercício de escuta e
de respeito às falas do outro. CLA, de 5 anos, relembra nesses encontros dos momentos
em que chorava para ficar na UMEI, dizendo que “sentia e ainda sente saudade da sua
mãe porque fica muito tempo longe dela, mas agora não choro mais.”
Outra questão apontada pelo FLA, de 6 anos, é que “gostaria que tivesse um
campo para fazer esportes, correr e fazer capoeira”. Os outros do grupo concordam.
As crianças concordam sobre não gostar de determinados espaços da Unidade,
porém, em algumas falas percebo que as insatisfações são com as imposições adultas,
mais do que com os espaços propriamente ditos, revelando que a forma como a rotina é

sumário 1344
VII Seminário Vozes da Educação

organizada, sob a justificativa do pouco espaço ou do espaço inadequado, não


satisfazem às vontades e aos interesses das crianças.
MAR, 5 anos, ao ser perguntada sobre o que não gosta em sua escola, foi
categórica e rápida em sua resposta: “não gosto desta sala.” No momento, nos
encontrávamos na sala de Multimeios. Fiquei intrigada com a resposta, pois é uma sala
que apresenta, do meu ponto de vista adulto, uma quantidade enorme de materiais
atrativos para crianças (TV, fantasias, fantoches, livros de histórias, computador), então
lhe perguntei porque ela não gostava desse espaço e obtive a seguinte resposta: “porque
não gosto de assistir filmes”. A partir de sua fala, percebi que, o espaço da sala de
multimeios possui diversos materiais para serem explorados, mas que contudo, o único
recurso explorado é a televisão, que é ligada pela professora para que as crianças vejam
desenhos considerados infantis. Durante a conversa, perguntei se ela já havia dito isso
às suas professoras, e sua resposta foi positiva. Então perguntei se ela gostaria de
utilizar os outros materiais que se encontram na sala, e ela respondeu que sim.
As crianças demonstraram diretamente nessas conversas, questões
relacionadas ao espaço físico, exceto em alguns momentos, quando relatam o desejo por
um espaço amplo para esportes e para correr, o desejo por brinquedos encontrados nos
parques de diversões e quando falam sobre alguns vazamentos nos banheiros, falta de
luz em algum espaço... não obstante, denunciam de forma mais contundente a forma
como esses espaços são utilizados e as rotinas que são criadas pelos adultos, a fim de
organizar o cotidiano.
Fora das rodas de conversa, por exemplo, no contato do dia a dia, algumas
crianças resistem aos momentos de descanso após o almoço. Expressam que não têm
vontade de ficar na sala para descansar. ART, 4 anos, diz que não gosta de dormir,
DAV, 4 anos, alegou o seguinte para a sua professora: “Minha mãe disse que hoje eu
não vou dormir.” E as ações das professoras são as de revelar que não precisam dormir,
mas precisam deitar, fechar os olhos e ficar quietinhos nas salas de aula após o almoço,
locais onde são colocados colchonetes com lençóis, as luzes são apagadas e as cortinas
são fechadas para que possam descansar. Muitas discussões acontecem em torno desta
questão, porém, ainda não foram elencadas formas de minimizar as dificuldades
encontradas. O que promover às crianças que não desejam dormir? Onde elas poderiam
ficar? Em uma concepção adultocêntrica, as normas de organização dos tempos e
espaços ainda não concebem outras possibilidades para este momento, sob justificativa
da falta de um dormitório na Unidade para o descanso das crianças. Ainda existe a

sumário 1345
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

necessidade de se privilegiar a questão no projeto político pedagógico, pois ainda não


são apontadas soluções para o problema.Na conversa com as crianças, fiz a seguinte
pergunta:

- Da mesma forma que tem crianças que não gostam da hora do descanso, na
UMEI existem crianças que gostam, como aqui mesmo já foi dito. O que
poderiam fazer aqueles que não gostam de dormir, já que as salas de aula
estão ocupadas com os colchonetes e com as crianças que dormem?
- A gente poderia deixar eles quietos lendo livros na secretaria - fala MAI
- Mas na secretaria não teria espaço pra todo mundo, não teria nada
interessante para crianças lá e os funcionários estão trabalhando.
- Ahhh já sei, já sei!!! - Grita ANA - A gente vai ver um vídeo na televisão.
- Humm, e aonde seria esse vídeo? - eu pergunto de forma entusiasmada
- Aqui (sala de multimeios).
- Neste tatame - completa MAI
- E alguém tem mais alguma sugestão?
- Eu acho que pode ir pro parquinho - sugere CLA
Nesse momento, MAI questiona:
- Mas no parquinho depois do almoço vai passar mal!
- E baile à fantasia? (risos) - fala brincando.
- Mas com os outros dormindo?? - Eu pergunto
(Todos começam a rir)
MEL - Que tal assim, quando as pessoas não quiserem dormir, ficam
assistindo filme na Multimeios.
- Então vamos conversar com as professoras sobre as propostas de vocês.
Combinado? - Digo eu, assumindo o compromisso de conversar com as
professoras.

Após esta conversa, me comprometi com as crianças a levar a proposta mais


uma vez para a reunião com o grupo de profissionais, uma vez que já temos conversado
sobre isso, mas não tínhamos encontrado solução e desta forma, o assunto voltará a ser
discutido com o grupo docente, sendo retomadas as discussões acerca dos tempos e
espaços da UMEI.
Apesar de sabermos que a arquitetura escolar influi no projeto político
pedagógico, o espaço físico tem se colocado muitas vezes como justificativa para certas
práticas autoritárias e inflexíveis que estão postas no cotidiano. Percebo que este é um
grande obstáculo para que se (re)construam essas práticas. Olhar para a política pública
a partir do olhar das crianças, nos remete à forma como os adultos impõem os modos de
organização do cotidiano das crianças na UMEI.
Quando pensamos que a participação democrática e coletiva deve ser um dos
pilares da construção da educação, precisamos atentar para o fato de que as crianças
são os sujeitos para as quais o atendimento é direcionado na educação infantil, e como
sujeitos sociais, a sua participação esta implícita nos documentos que colocam como
fundamental a participação popular na construção da estrutura organizacional da

sumário 1346
VII Seminário Vozes da Educação

educação, mais especificamente no que se refere à educação infantil. Contudo, a


sociedade ainda nega às crianças a capacidade de participação política. Suas
participações ainda não são legitimadas nesses processos e, com isso, as crianças ficam
alijadas de qualquer discussão acerca de assuntos de seus interesses..
Acredito que espaços físicos mais ampliados e melhor pensados e planejados
também sob a ótica das crianças, facilitariam a socialização entre as crianças e
possibilidades de escolhas. Nesse formato de prédio, com ambientes tão pequenos, a
interação entre as crianças é bastante dificultada e a visita aos espaços externos não é
possível com tanta freqüência, pois são espaços distantes da Unidade.
Percebo que o enfoque das políticas públicas dirigidas à infância, de acordo com
CASTRO (2013, p.85) ainda evidenciam a diversidade significativa dos interesses
nacionais acerca dos direitos das crianças e não exatamente, a importância das
crianças e sua contribuição para a comunidade política moderna.
Na UMEI, têm sido discutidos com os profissionais, modos de escuta e
participação das crianças que ultrapassem à visão da criança como um vir a ser, mas que
a consideram como um sujeito que é, no presente, potente, resistente às práticas
adultocêntricas de dominação.

Quem trabalha com as crianças pequenas conhece as marcas que as


diferenciam de outras categorias sociais. Quem trabalha com as crianças
pequenas sabe que há algo em devir que nada tem a ver com um vir-a-ser
adulto, mas sim, um devir-criança. Há crianças que conseguem realizar o seu
devir, outras não. Devir como uma capacidade de transpor barreiras e
fronteiras entre o individual e o coletivo, o humano e inumano, etc. Devir que
deve ser entendido como movimento, ‘processualidade’, trajetos, como
forças intensivas. (ABRAMOWICZ, 2003, p. 18).

O Projeto Político Pedagógico tem sido uma ferramenta para acolhimento das
vozes das crianças. Está em constante processo de construção, visto que a realidade da
UMEI é múltipla e dinâmica.
As participações na escrita do PPP das crianças foram estimuladas nos grupos,
pelas professoras suas contribuições foram dadas através de desenhos e falas registradas
pelas docentes. As ideias das crianças foram levadas aos encontros para que fossem
incorporadas ao documento, e desta forma, foram incluídas poesias sobre a história
local, de autoria das crianças e ilustrações que dos seus desejos em relação à UMEI.
Dentre os desejos das crianças expressos no documento, estão:

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

“areia e pedrinhas para brincar;


um escorrega bem grandão;
cavalinho de carrossel para montar;
uma bola grandona para deitar
e descansar nela.”CAM - 4 anos

“desenhos na parede da sala;


uma boneca no parquinho;
mais mingau na hora do lanche;
um espelho mágico para brincar
cerejas para fazer bolo de aniversário.” GAB - 5 anos

“Paredes da sala pintadas de azul


escuro e verde claro, que são as cores que eu mais gosto;
um foguete no parquinho que leve às crianças à lua;
carrinho bate-bate igual ao que tem no shopping;
brigadeiro no lanche.” GAB - 5 anos

“Um pula-pula muito grande,


para todas as crianças pularem;
Bonecas bebês para mim e para minhas amigas para brincar de mamãe e
neném, com roupinhas,
mamadeira e uma casinha grande;
Um mapa de todos os lugares do mundo, na sala;” AND - 4 anos

Através destes registros do que nos disseram algumas crianças, podemos


encontrar pistas sobre o que de fato é importante para que MAIS INFÂNCIA seja
potente e para que o cotidiano seja criado e recriado a partir das vozes das crianças. As
crianças nos trazem a poética como resistência. Encontram alegria na simplicidade. São
potentes para reinventar, junto aos adultos, um cotidiano alegre possível, através das
artes de fazer este cotidiano, em um trabalho coletivo e colaborativo.
Elas nos apontam modos de enfrentar o que lhes é dado a cada dia, o que lhes
oprime, por isso são consideradas arteiras, astutas, transgressoras por buscarem meios
de burlar e escapar às conformações impostas no cotidiano e encontrar maneiras de
vivê-lo com alegria e poesia.

Referências
ABRAMOWICZ, Anete. O direito das crianças à educação infantil. Proposições, v. 14
n.3(42), set.-dez. Campinas, 2003, pp 13-24.

ABRAMOWICZ, Anete; LEVCOVITZ, Diana; RODRIGUES, Tatiane Cosentino.


Infâncias em Educação Infantil. Pro-Posições [online]. 2009, vol.20, n.3, pp.179-197

BARBIER, R. A escuta sensível na abordagem transversal. In.: BARBOSA, Joaquim


(Coord). Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar,
1998. p.168-199

sumário 1348
VII Seminário Vozes da Educação

BARBOSA, Maria Carmen Silveira. Por amor e por força: rotinas na educação
infantil. Porto Alegre: Artmed, 2006.

BRASIL. Ministério da Educação. CNE/CEB. Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação Infantil. Brasília, 1999.

CASTRO, Lúcia Rabelo de. O futuro da infância e outros escritos. Rio de Janeiro:
Letras, 2013.

CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Editora


Vozes, 1998.

FARIA, A. L. G. de; FINCO, Daniela (orgs). Sociologia da Infância no Brasil.


Campinas, SP: Autores Associados, 2011

FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE EDUCAÇÂO DE NITERÓI. Portaria FME n° 087 de


12 de fevereiro de 2011. Institui a Proposta Pedagógica que fundamentará o trabalho
pedagógico das Unidades de Educação que constituem a Rede Municipal de Ensino de
Niterói. Diário Oficial da União, Niterói, 12 fev. 2011.

GRAUE, M. Elizabeth & WALSH, Daniel J. A investigação etnográfica com


crianças:
teorias, métodos e ética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

HOLM, Anna Marie. Eco-arte com crianças. São Paulo: Ateliê Carambola, 2015.

MAUSS, Marcel. Três observações sobre a sociologia da infância. Revista Pro-


Posições, São Paulo, v. 21, n. 3, p. 237-244, set./dez. 2010.

NITERÓI. Documentos Institucionais – Plano de Desenvolvimento Estratégico:


Niterói Que Queremos, 2014.

sumário 1349
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O PROGRAMA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO INTEGRAL EM TEMPO


INTEGRAL DE MARICÁ

Lúcia Velloso Maurício


UERJ
luciavelloso.uerj@gmail.com

Rodrigo de Moura Santos


UERJ
projetos.edu.marica@gmail.com

Introdução
Este artigo se propõe a apresentar o esforço que o município de Maricá vem
empreendendo no sentido de dar continuidade à proposta de educação integral em
tempo integral após o forte esvaziamento financeiro e pedagógico do Programa Mais
Educação que teve como consequência a redução do número de alunos atendidosno
país. Não queremos com isto considerar este programa um modelo a ser adotado por
todos, mas reconhecer o vigor que imprimiu ao crescimento de matrículas e de
experiências diversas de educação integral em tempo integral ou ampliação da jornada
escolar. Assim, tomamos o município de Maricá como um exemplo de rede de ensino
que vem se organizando para manter e ampliar o número de escolas de tempo integral
visando a educação integral por reconhecer neste projeto um investimento para a
qualidade do ensino.
O artigo começa apresentando um histórico da sustentação teórica que embasou
propostas de educação integral em tempo integral ao longo dos anos no país. A seguir
relata resultados de pesquisas realizadas à medida que o crescimento de matrículas em
tempo integral foi se adensando e os instrumentos legais que foram sendo promulgados.
Em segundo momento, apresentamos o município de Maricá e os dados educacionais
recentes, descrevendo o histórico da implantação da proposta de educação integral em
tempo integral que vigora hoje na rede, através do Programa Municipal de Educação
Integral em Tempo Integral (PROMETI)

sumário 1350
VII Seminário Vozes da Educação

A relevância do tema está assentada na continuidade do crescimento de


matrículas em tempo integral na Educação Infantil e no Ensino Fundamental nos
últimos quatro anos, mesmo com a redução do Programa Mais Educação, indicando a
consistência do projeto de implantação do tempo integral escolar. Além disso, a
compreensão de educação que o município vem desenvolvendo nos últimos anos,
através de instrumentos legais que estabelecem diretrizes pedagógicas e de avaliação do
desempenho escolarmantêm consonância com os pressupostos que estavam na base da
proposta pedagógica do CIEP de Darcy Ribeiro (1986)e na Escola Parque de Anísio
Teixeira (1994), como se revela no título do Manual de Orientações Preliminares
enviado e discutido nas escolas – Educação de todas as raças, de todas as cores,
saberes e sabores.Finalmente, é de se destacar o investimento que o município vem
fazendo em educação para além da sua própria rede, oferecendo instalações para o
estado implantar escola de ensino médio; e estimulando seus jovens a cursarem nível
superior, mesmo sem contar com uma universidade no seu território, ofertando bolsa e
apoio para transporte. Em síntese, o município dispõe de recursos, normas, profissionais
e vontade política.

Histórico de fundamentação teórica da educação integral em tempo integral


Anísio Teixeira (1994) defendeu a necessidade de escolarização em tempo
integral desde a década de 1950, tema que, praticamente, só reapareceu a partir da
década de 1980, com as experiências do Centro Integrado de Educação Pública (CIEP)
no Estado do Rio de Janeiro, do Programa de Formação Integral da Criança
(PROFIC)no estado de São Paulo e do Centro de Educação Integrada (CEI) em
Curitiba. Alvo de intensa polarização no cenário político da redemocratização brasileira,
os textos que circularam na época não destacaram qualquer potencial inovador na
proposta de ampliação do tempo escolar que se discute ainda hoje.
Em 1988, a Fundação Carlos Chagas realizou um seminário com intuito de
promover uma apreensão objetiva da implantação da escola pública de tempo integral.
O livro resultante deste Seminário (PARO et al, 1988) não escapou ao dilaceramento
eleitoral da época e exerceu nítida influência sobre a produção acadêmica do tema.
Segundo Maurício (2009), a crítica contra a instalação do período integral se voltava
para as condições em que se dava o ensino, que não oferecia boa qualidade em tempo
parcial, levantando polêmica do custo-benefício que inviabilizava a universalização do
ensino fundamental; e para o caráter assistencial, inserido na discussão da função social

sumário 1351
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

da escola. Na época, Zaia Brandão (1989),apesar de criticar o CIEP, afirmou que o


impacto nacional causado por este programa colocou em discussão não as escolas, mas
a disputa político-partidária representada por Leonel Brizola e Darcy Ribeiro.
Os argumentos usados desde a década de 1980 sobre a escola de tempo integral
ainda são evocados nos debates atuais sobre o tema, seja como crítica ou como
justificativa para a ampliação do tempo escolar. Em maio de 2006, o Jornal O Globo
publicou uma sequência de reportagens sobre a escola pública de tempo integral do Rio
de Janeiro. A chamada para a série estava estampada na primeira página: Cieps fazem
21 anos de expectativas e fracassos. A avaliação publicada nas reportagens trouxe a
mesma marca daquela feita há 30 anos atrás: não discutia as possibilidades inerentes ao
projeto nem a sua viabilidade efetiva; apenas tentava provar, através de um
levantamento da trajetória de vida de antigos alunos, que a escola de tempo integral era
cara, que foram desperdiçados recursos e que esta escola não garantia bom desempenho.
De acordo com Maurício (2009), a leitura que se queria transmitir é que os pobres não
conseguem bons resultados mesmo quando se oferece a eles uma escola bem equipada.
A autora desmonta os argumentos em artigo publicado sobre as reportagens
(MAURICIO, 2009).
Ao longo deste tempo, autoras como Coelho (2009) e Cavaliere (2009),que vêm
estudando a educação integral em tempo integral, identificam tanto concepções
emancipatórias e democráticas da proposta de escolarização em tempo integral, que
Coelho (2009) chama de sócio histórica, como concepções assistencialistas, sob
formatos diversos, voltadas para a proteção social, priorizando população e territórios
em situação de vulnerabilidade social, afastando-se de uma proposta educacional.
Cavaliere (2009) categorizou os termos escola de tempo integral versusaluno em tempo
integral. O primeiro se refere à ampliação da jornada como um aspecto decorrente da
própria função da escola, instrumento para construção da qualidade da educação. O
segundo termo, aluno em tempo integralnão prevê o adensamento da função da escola,
mas sim a ocupação, a guarda do aluno que nela se encontra, ou seja, a proteção se
sobrepõe à função pedagógica.
Cavaliere (2013) chama atenção para as políticas especiais que propõem
“educação integral” com intenção de fazer face às necessidades da massa de alunos que
chega hoje às escolas. Afirma que as políticas especiais em geral se desenvolvem em
forma de projetos destinados a setores específicos da população, “uma forma de
discriminação positiva, que tenta concentrar recursos, ideias e energias nas escolas e nos

sumário 1352
VII Seminário Vozes da Educação

alunos com maior dificuldade” (CAVALIERE, 2013, p. 240). A autora considera que,
se a ampliação da jornada escolar proporciona processo educativo democrático, então
esta proposta de educação integral deve atender a todos.
Pesquisa financiada pela FAPERJ em municípios do estado do Rio de Janeiro
sobre os sujeitos da ampliação da jornada escolar (COELHO; et al, 2012) evidenciou
que quase todas as experiências investigadas não se constituíam enquanto políticas
públicas. As respostas dos participantes deixavam entrever diferentes visões sobre a
ampliação da jornada escolar para tempo integral: uma visão assistencialista presente
principalmente em comunidades mais carentes; e outra que procurava conjugar a
extensão do tempo com uma concepção de educação mais ampla, que passa pela
formação cognitiva e cultural do aluno. As entrevistas remetiam para a tensão
contemporânea entre a universalização e a focalização das políticas de educação. Como
a implantação de educação integral em tempo integral implica em prioridades cujas
concepções e operacionalização vão marcar o projeto e seus desdobramentos,
enfatizamos que a extensão do tempo exige condições para expandi-lo qualitativa e
integradamente.
A proposta de escola de tempo integral não é nova. Foram desenvolvidas
experiências, a partir do início dos anos 1950 no Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal,
em cinco escolas públicas de 1ª à 4ª série. Sob coordenação, supervisão e apoio
financeiro do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), presidido na época por
Anísio Teixeira, este projeto experimental constituiu campo de pesquisa aplicada
segundo orientações curriculares diversas. No mesmo período, desenvolveram-se quatro
ginásios públicos, equivalentes ao ensino médio, com finalidade de qualificação
profissional.
A fundamentação do projeto de educação em tempo integral que se desenvolveu
no CIEP no Rio de Janeiro, originou-se nos argumentos que levaram Anísio Teixeira,
com quem Darcy Ribeiro trabalhou longos anos, a inaugurar, em 1950, o Centro
Educacional Carneiro Ribeiro, em Salvador, quando era secretário de educação da
Bahia. O Centro, chamado de Escola Parque, contava com quatro escolas-classe, de
nível primário, com funcionamento em dois turnos, projetadas para 1.000 alunos cada, e
uma escola-parque, com sete pavilhões, destinados às chamadas práticas educativas,
frequentadas pelos alunos em horário diverso ao da escola-classe, de forma que as
crianças permanecessem dia completo em ambiente educativo. A proposta era que esse

sumário 1353
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

conjunto funcionasse como centro de demonstração para a instalação de outros


semelhantes no futuro.
A presença cada vez mais significativa da proposta de ampliação da jornada
escolar na legislação brasileira tem contribuído para o aumento do número de
municípios brasileiros que desenvolvem esta proposta escolar, fazendo crescer o
número de matrículas em tempo integral. Depois de promulgada a Constituição Federal
(BRASIL, 1988), que deixa entrever, mas não se refere explicitamente à educação em
tempo integral, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96)
introduziu a perspectiva de ampliação do tempo escolar diário nos artigos 34º. e 87º; o
Plano Nacional de Educação (PNE), publicado através daLei n o. 10.172 (BRASIL,
2001), indicou, entre seus objetivos, o tempo integral para crianças das camadas mais
necessitadas; esta restrição já não consta nos objetivos e metas específicos do PNE para
o ensino fundamental.
Lançado em 2007 pelo Decreto no. 6.094 (BRASIL, 2007), o Plano de Metas
Compromisso Todos pela Educação formulou entre suas diretrizes “ampliar as
possibilidades de permanência do educando sob responsabilidade da escola para além
da jornada regular”, que deu origem ao Programa Mais Educação, instituído pela
Portaria Normativa Interministerial no.17 (BRASIL, 2007) e regulamentado pelo
Decreto no. 7.083 (BRASIL,2010). Estímulo importante para a ampliação da jornada
escolar deve ser atribuído ao Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e
Valorização do Profissional da Educação (FUNDEB) homologado pela Lei nº. 11.494,
(BRASIL, 2007), que prevê repasse de recursos acrescido de 30% para alunos do ensino
fundamental da rede pública em regime de tempo integral, ou seja, mais de 7 horas por
dia, durante toda a semana letiva. O documento final da Conferência Nacional de
Educação (CONAE, 2010) propôs oferecer educação em tempo integral em, no mínimo,
50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, de forma a atender a, pelo menos, 25%
(vinte e cinco por cento) dos (as) alunos (as) da educação básica do Brasil até o final da
vigência do próximo PNE. Esta meta foi incorporada ao novo Plano Nacional de
Educação 2014-2024, homologado pela Lei no. 13.005 de 25 de junho de 2014.
O crescimento de matrículas e a presença cada vez maior na legislação
estimularam a realização de pesquisas de âmbito nacional sobre a proposta da
ampliação da jornada escolar, seja pela escola de tempo integral ou pela extensão do
turno. Em 2008, o Ministério da Educação (MEC), na época, através da Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, financiou pesquisa com o objetivo

sumário 1354
VII Seminário Vozes da Educação

de mapear o desenvolvimento da ampliação da jornada escolar para além das 4 horas


diárias obrigatórias, nos municípios brasileiros. A segunda etapa, de caráter qualitativo,
visitou, em 2009, 21 municípios das cinco regiões do Brasil (MEC, 2009). Em 2010, foi
desenvolvida pesquisa qualitativa, pela Fundação Itaú Social/CENPEC (2011), que
investigou 16 experiências de ampliação de turno, públicas ou particulares. Em 2013, a
Fundação Itaú Social/CENPEC (2013) lançou nova publicação sobre visita a 20
municípios que se tornaram referência em ampliação de jornada escolar. Essa sequência
de pesquisas de abrangência nacional não apenas nos fornece um panorama de
informações como indica o interesse que o tema da educação em tempo integral vem
despertando. Nos últimos dez anos, a Fundação Itaú Social/CENPEC tomou para si a
proposta de educação integral, com várias pesquisas em andamento, diversas
publicações decorrentes de múltiplas ações, como se pode constatar no portal da
Educação & Participação. Segundo Maurício (2016), a instituição vai consolidando sua
visão de educação integral, com protagonismo da parceria público/privada, através de
organizações não governamentais, para crianças em situação de vulnerabilidade social,
a ser implementada no contraturno escolar, como se desenvolvia no Programa Mais
Educação.
A pesquisa quantitativa do MEC contabilizou que das 800 experiências de
ampliação da jornada escolar além de 4 horas diárias, em 2008, mais de 55%
desenvolviam-se em 7 horas ou mais diárias, critério do Programa Mais Educação e do
FUNDEB para repasse de recursos por matrícula em tempo integral. A fase qualitativa
nos 21 municípios investigados apontou que a falta de espaço e de infraestrutura para o
desenvolvimento das atividades e para formação continuada dos profissionais se
apresentava como o maior obstáculo. E ainda que a vinculação entre as atividades da
ampliação da jornada e o projeto pedagógico da escola era um desafio. Alguns gestores
propiciavam encontros entre os profissionais dos tempos diversos. Era incipiente, na
época, a preocupação sobre os resultados que as atividades de ampliação da jornada
trouxeram à escola e aos alunos.
A pesquisa realizada pela Fundação Itaú Social/CENPEC (2011) teve objetivo
de conhecer experiências em período escolar ampliado e/ou em turno oposto, com
atividades diversificadas. A seleção de abrangência nacional e com diversidade de
características, visitou dez iniciativas do poder público. A pesquisa concluiu que
predominavam escolas públicas em áreas periféricas das cidades, com Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) e Índice de Desenvolvimento da Educação Básica

sumário 1355
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

(IDEB) baixos, sem atender a todos os alunos, priorizados por dificuldade de


aprendizagem, vulnerabilidade e estar incluído no Programa Bolsa Família 183. Registrou
que, nas escolas de tempo integral, havia intervenção na organização do tempo escolar,
do currículo e do trabalho docente, com atividades diárias no interior da própria escola.
A jornada ampliada, a mais ofertada pelo poder público, com atividades duas a três
vezes por semana, em turno oposto ao regular, em geral em espaços alternativos, era
ofertada tanto por escolas como por ONGs. Em 2013, a Fundação Itaú Social, o Cenpec
e a Unicef publicaram o resultado de visita a 20 municípios com projetos de referência
em educação integral, com objetivo de mostrar avanços, ideias e soluções na educação
integral.
A realização destas pesquisas revela a importância que a ampliação da jornada
escolar veio adquirindo nos anos recentes, confirmando a tendência já apontada nos
instrumentos legais da LDB para cá. Além disso, as pesquisas não foram realizadas
somente pelo poder público, indicando o interesse da sociedade civil pela ampliação da
jornada escolar. De 2015 para cá, apesar da aprovação do PNE 2014-2024 (BRASIL,
2014), que reforça a proposta de ampliação do atendimento em tempo integral, disputas
políticas causaram paralisação e/ou retrocesso de vários programas de educação, entre
os quais o Programa Mais Educação. Sua concepção abandonou a proposta de educação
integral e voltou-se para o reforço escolar. A redução do financiamento reduziu de
forma intensa o atendimento em jornada ampliada.

O desenvolvimento da educação integral em tempo integral no município de


Maricá
A Rede Pública Municipal de Educação de Maricá é constituída por 64Unidades
Escolares, sendo 21 Unidades em tempo integral. Segundo levantamento da
Coordenadoria Geral de Administração da Secretaria de Educação, em setembro de
2018 a rede contava com 24.801 alunos. Este levantamento tem coerência com a
projeção do IBGE de 24 mil matrículas, considerando educação infantil e ensino
fundamental.
Nas eleições de 2008 para a prefeitura de Maricá, a escola de tempo integral já
era pauta da campanha do candidato Washington Quaquá, que foi eleito.Criou-se então

183
O Programa Bolsa Família é um programa de transferência de renda do Governo Federal, para as
famílias pobres, com renda per capta até R$89,00. A contrapartida é que as famílias zelem pela
frequência dos filhos à escola e mantenham a vacinação em dia.

sumário 1356
VII Seminário Vozes da Educação

a Subsecretaria da Cidade Educadora dentro da Secretaria de Educação, responsável por


pensar a implantação das escolas de tempo integral, além da criação de 13 creches
também em tempo integral.Tornava-se um desafio para a Rede Pública Municipal a
implantação da Educação Integral e também para a equipe que estava assumindo a
Secretaria, já que se tratava de um grupo novo, que não havia passado ainda pela
experiência da gestão pública.Mas havia uma marca importante: a equipe gestora -
secretário, subsecretários e alguns assessores - era oriunda do primeiro e segundo
programa dos Cieps (PEE). Ao implantar um programa de educação integral, a equipe
que assumira escolheu o Ciep como parâmetro de referência, pautando-se no
entendimento de que o projeto de ensino dos Centros Integrados de Educação Pública
(CIEPs), idealizados por Darcy Ribeiro, era centrado no aluno, no desenvolvimento
completo em seus aspectos cognitivos e culturais.Para isso entendia que, além de uma
proposta pedagógica estruturada , tendo o aluno como agente e não simplesmente
receptor de conhecimento, a escola também deveria atender suas necessidades básicas,
como alimentação e saúde, condição para o desenvolvimento pleno de sua capacidade
cognitiva. O CIEP tinha como objetivo principal superar os obstáculos observados na
escola pública brasileira que Ribeiro (1986) considerava “seletiva, elitista, excludente”,
pois tratava todas as crianças da mesma forma, sem distinguir a origem das mesmas.O
autor destacava a importância do investimento na formação dos professores como um
dos componentes básicos de garantia da qualidade do ensino público,pontos que iam de
encontro à nova proposta que se pretendia implantar.
Em 2009, o Programa Mais Educação 184 foi implantado em cinco unidades
escolares da rede pública municipal de Maricá, atendendo a 600 alunos, entre crianças e
adolescentes. Em 2010, a Prefeitura inaugura a primeira escola de tempo integral de
Maricá, chamada Escola Popular Transformadora (EPT) da Mata Atlântica.
Em novembro de 2012, foi publicada a Resolução 006 que criava o Programa
Municipal de Educação Integral em Tempo Integral (PROMETI), que previa dois tipos
de estruturação para a escola de tempo integral: um modelo com foco no espaço escolar,
como uma releitura do CIEP; o segundo modelo com foco no território, prevendo o uso
do entorno da escola, inspirado no movimento das Cidades Educadoras, dentro da

184
Programa Federal, criado em 2008 como uma das ações do Plano de Desenvolvimento da Educação
(PDE), com intuito de induzir municípios e estados a desenvolverem programas ou políticas de ampliação
do tempo de permanência na escola para 7 horas ou mais. Os recursos eram repassados às escolas através
do Programa Dinheiro Direto na escola (PDDE) do FNDE para equipar as escolas e contratar monitores
para desenvolver oficinas de acordo com os eixos temáticos escolhidos pelas unidades escolares. Para
aderir ao programa, os estados e municípios tinham que assinar o Plano de Ações Articuladas (PAR).

sumário 1357
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

perspectiva do Programa Mais Educação. O PROMETI estendeu a duração da jornada


escolar para 9 horas diárias, atendendo ao Ensino Fundamental I e II, com maior
concentração no fundamental I (1º ao 5º ano). Algumas unidades organizam o horário
com aulas da base regular obrigatória mescladas às oficinas; outras com horário em que
os alunos têm aula da base regular comum obrigatória num turno e oficinas no
contraturno.
Há também unidades regidas pela Instrução Normativa 001 de 2013, que propõe
o turno estendido, compreendido como educação em tempo integral, pois atende à
oferta de no mínimo sete horas diárias conforme estabelecido pela Lei do FUNDEB
(Lei nº 11494, de 20 de junho de 2007). A opção pelo turno estendido se deu pela
junção das atividades desenvolvidas com recursos do município e aquelas
desenvolvidas através do Mais Educação. No ano de 2016, com o redirecionamento da
política do MEC, após o impedimento da presidenta Dilma, o Programa Mais Educação
sofreu corte de 70% em seu orçamento. O município de Maricá, que chegou a contar
com 45 Unidades Escolares com o Programa em atividade, a partir de 2013, passou a
oferecer o Programa em apenas cinco escolas, chegando, somente, a 3 unidades no ano
de 2019, ainda com saldo de verbas passadas. A Secretaria de Educação assumiu as
atividades de turno estendido através de recursos próprios da Prefeitura, de modo que os
projetos que vinham sendo desenvolvidos em parceria com o Mais Educação não
parassem.
Neste contexto, segundo dados do Censo Escolar do INEP, o número de
matrículas em tempo integral cresceu nos três segmentos da faixa da obrigatoriedade
escolar sob responsabilidade municipal, de 2014 a 2018, seja na Pré-escola, passando de
19,8% a 31,4% do total de matrículas, o que corresponde a 823 alunos; nos Anos
Iniciais do Ensino Fundamental, passando de 20% a 46,3% das matrículas, o que
corresponde a 4.062 alunos; e nos Anos Finais, que aumentou de 8,1% para 15,6% das
matrículas.
A Instrução Normativa 001/2013 propõe como princípios gestão democrática,
equidade, autonomia, trabalho coletivo e interesse público, contemplando a diversidade
dos sujeitos. Indica currículo interdisciplinar, com base em conhecimentos
multidisciplinares, a partir de eixos temáticos integradores: identidade, cidade, cultura,
cidadania, diversidade, trabalho e tecnologia. Estes eixos atravessam o ano letivo de
todos os níveis escolares. Sugere que a organização do trabalho pedagógico e a
avaliação dos processos de ensino se pautem pela valorização da experiência e

sumário 1358
VII Seminário Vozes da Educação

conhecimento prévios dos educandos, pela valorização da diversidade e pelo


reconhecimento das diferentes potencialidades e ritmos de aprendizagem. Por isso
propõe que sejam proporcionadas oportunidades de escolha e tomadas de decisão,
adoção de estratégias de ensino diversas, previsão de ações extracurriculares que
incentivem autonomia e ampliação de experiências culturais. Uma proposta inovadora é
o Plano de Ação, “uma experiência de trabalho cooperativo e de responsabilidade
solidária com o grupo, essenciais para a formação de cidadãos críticos, reflexivos e
atuantes na sociedade”. Cada turma deve elaborar um plano de ação, que se inicia pela
identificação de desafios da comunidade, que supõe conhecimento da cidade. Todos os
professores são responsáveis pela construção do plano de ação, que será acompanhado
pelo professor conselheiro escolhido pela turma.
Sobre avaliação, a resolução indica que ela deve ser feita de maneira contínua,
progressiva, formativa, contextualizada, inclusiva, integradora e cumulativa, analisando
múltiplos aspectos do desempenho dos educandos, através da utilização de diferentes
procedimentos e instrumentos de avaliação, caracterizando que a avaliação deve ser
compatível com a proposta de educação integral.
A jornada ampliada deve ser uma opção para alunos e professores, pois a
adaptação a este regime escolar não é automática. A escola precisa ser acolhedora para
que alunos e professores desenvolvam adesão a esta proposta. Pelo mesmo motivo, a
escola precisa ter uma infraestrutura adequada, para que o espaço restrito não constranja
o desenrolar das atividades. A jornada estendida, no sistema de turno e contraturno, não
reconfigura o projeto de escola, por mais que possa enriquecer as atividades dos alunos
ao longo do dia. Usando a terminologia de Ana Cavaliere (2009), a jornada estendida
propõe o aluno em tempo integral; a escola de tempo integral propõe a reconstituição da
escola. Mas a jornada estendida pode ser uma preparação para a instalação de uma
escola de tempo integral. Esta tem intenção de modificar o projeto de escola, com uma
proposta pedagógica com dimensão mais ampla do que seja conhecimento.
Em 2009, duas unidades escolares começaram em tempo integral; na época, a
meta da Secretaria de Educação era atingir 13 escolas em tempo integral até 2012. Neste
ano, o PROMETI começou a funcionar com 12 escolas, todas de anos iniciais; outras 14
eram atendidas pelo Programa Mais Educação, entre as quais duas de Ensino
Fundamental II, que também contavam com estudo dirigido oferecido por professores
da rede. Em 2013, o número de escolas do PROMETI passou de 12 para 15 e 99% das

sumário 1359
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

outras unidades escolares receberam o Mais Educação. No ano de 2014, o PROMETI


abrangeu 16 escolas em tempo integral, passando para 21 escolas, em 2017.

IDEB Observado Anos iniciais


2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017
Maricá 3.9 4.3 4.2 4.3 4.9 4.9 5.5
BR mun. 3.4 4.0 4.4 4.7 4.9 5.3*

INEP. *A coloração verde indica que o resultado igualou ou alcançou a


meta prevista.

No quadro acima temos o resultado do IDEB para os anos iniciais nas escolas
municipais do Brasil e do município de Maricá, de 2005 a 2017. Veja-se que o
município de Maricá teve crescimento contínuo do IDEB, ultrapassando a média
nacional em 2017. Nos anos finais, abaixo, o crescimento do IDEB de Maricá não é
contínuo, somente a partir de 2013, conseguindo superar a média nacional em 2017.
Não consideramos que resultados de proficiência e IDEB traduzam os objetivos do
PROMETI, mas é o que temos registrado por enquanto.

Anos finais IDEB Observado


2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017
MARICÁ 4.1 3.9 4.1 4.0 3.6 3.9 4.5
BR Munic. 3.1 3.4 3.6 3.8 3.8 4.1 4.3

No quadro abaixo, apresentamos um panorama das escolas inseridas


noPROMETI que têm os dois segmentos do ensino fundamental, registrando ano de
início no programa; IDEB 2015 e 2017 para anos iniciais e finais; porcentagem de
alunos em tempo integral que participaram do SAEB em 2017; número total de
matrículas das escolas e o número de alunos em tempo integral. A fonte vermelha indica
o IDEB abaixo da meta prevista.

Matríct alunos EF1/% EF2/% Ideb EF1 ideb EF2


NOME / Dados 2017 início
otal TI aluno TI aluno TI 15/17 15/17
E.M. Antonio L. Fontoura 828 200 62% - 4,9/5,2 3,6/4,1 2012
E.M. Prof. Darcy Ribeiro 1.459 383 40% - 4,3/4,6 3,2/3,6 2012
E,M. Amanda P. A. Soares 364 160 87% 43% 5,3/6,0 4,6/5,3 2012
E.M. Lucio T. G. Feteira 512 238 54% 100% 4,7/5,4 4,1/5,3 2013
E.M.V.João Silva Bezerra 419 73 - 50% 5,0/6,4 4,9 / 5,8 2013
E.M.V. Osdevaldo M. Matta 570 211 56% 44% 5,0/5,4 4,5/4,4 2014
E.Mun.Min. Luiz Sparano 167 120 100% - 4,9 /6,0 - 2014

sumário 1360
VII Seminário Vozes da Educação

E.M. Marques Maricá 823 116 15% 10% 4,8/5,5 4,1/5,0 2014
E.M. João Monteiro 753 56 - 2,1% - 3,7/4,8 2014
Inep http://idebescola.inep.gov.br/ideb/consulta-publica

O quadro revela que nenhuma das escolas tem a totalidade dos seus alunos em
tempo integral, ou seja, o atendimento nesta modalidade é por série. Indica que a maior
parte dos alunos que participou do SAEB em 2017, componente do IDEB, estudava em
tempo integral, portanto este aspecto se fez presente no resultado do IDEB apurado.
Todas as escolas, com exceção de uma única, tiveram crescimento no IDEB de 2015
para 2017 tanto nos anos iniciais quanto nos finais, independente de terem alcançado a
meta prevista ou não. Poderíamos desejar que o crescimento fosse maior para as escolas
que estão há mais tempo no programa, mas isso se revela para algumas e não para
outras, mostrando a interferência de outros fatores no resultado do desempenho das
escolas.
Este texto buscou sistematizar alguns elementos para a análise da política de
educação integral em tempo integral do município de Maricá, à luz do ciclo das
políticas de educação integral em tempo integral que foram implantadas ao longo da
história da educação brasileira. Transpareceu que a temática está presente na agenda
político-educacional do município e que podem ser apontados vários indicadores de
ordem social ou educacional que justificam ações de ampliação da jornada escolar.
Fazer uma análise da proposta da política de ampliação de jornada do município de
Maricá mostra o grande desafio, dada a descontinuidade dos programas e repasses
federais para a ampliação do tempo escolar, ea escolha política feita pelo município,
para a não paralisação da proposta. A reorganização da rede para a ampliação da
jornada, não se desenvolveu cronologicamente em sintonia com as publicações de
documentos oficiais. Como dizia Darcy Ribeiro, a política se desenvolveu como um
“fazimento”, e sua legislação foi se construindo com o passar do tempo. Sobre isto,
Darcy afirma que “Nada se ganharia, esperando de braços cruzados – senão a reiteração
de uma rotina pobre – se eu não mandasse rodar, improvisando. Rodar da única forma
que as coisas marcham no mundo real que é ir fazendo e corrigindo no curso do
fazimento” (RIBEIRO, 2018, p. 201/2).Ficou evidenciado, também, através deste
estudo que em cada fase do ciclo da política pública de educação integral de Maricá há
uma tendência à continuidade e ampliação desta proposta, mesmo com as mudanças no
executivo municipal e na gestão da secretaria,apesar de não contar mais com programas
e repasses federais para a educação integral.

sumário 1361
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

No que tange ao ensino, conseguimos perceber que mesmo não atingindo em sua
totalidade as metas estipuladas para o IDEB, houve um crescimento representativo no
alcance dos indicadores. Pela descrição da organização do tempo na matriz curricular e
concepções editadas nas normativas, pode-se inferir que a reestruturação
pedagógicacaminha para a criação de um currículo integrado, vendo o aluno como ser
integral e buscando ações que se complementam, configurando o princípio da educação
integral.
Ponderamos que, diante de um tema tão abrangente, importante e
imprescindível, ainda há muito que se investigar, que se refletir sobre o assunto e suas
complexidades. Dessa maneira, faz-se necessário investigar a fundo estratégias do
Prometi e até que ponto elasbuscam solucionar as dificuldades encontradas para a
aquisição e construção do conhecimento ou se estão sendo levadas em consideração
apenas as condições e as possibilidades que priorizam determinados aspectos da
sociedade global. Mas podemos inferir que dada a atual conjuntura política e econômica
do Brasil, Maricá se sobressai como experiência exitosa, nesta arena de disputas
ideológicas que interferem diretamente nas políticas educacionais do Brasil, nas quais
se percebe o posicionamento antidemocrático que se instaura na formulação e
implementação de tais políticas.

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sumário 1362
VII Seminário Vozes da Educação

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 1364
VII Seminário Vozes da Educação

MAIS UMA VEZ CONVOCADOS: O MANIFESTO DOS EDUCADORES DE


1959 COMO RETRATO DA EDUCAÇÃO NA DÉCADA DE 1950

Luciano Faria da Silva


UERJ FFP
Email: lucianofaria@prof.educacao.rj.gov.br

Introdução
Antes de entrarmos nas reflexões que conduzimos neste artigo, precisamos situar
o que entendemos sobre História e História da Educação para nós que não somos
historiadores de ofício, essa compreensão preliminar é relevante.
Poderíamos ter iniciado este texto com a pergunta proposta por Marc Bloch no
início de seu Livro Apologia da História, para serve a História? Pergunta esta, feita por
uma criança. Para tentar responder essa pergunta, propomos outra, para que fazer
pesquisa em História da Educação? Uma reflexão em torno dessas duas questões, nos
leva, inicialmente, a compreender o objeto da História, quanto a isso Bloch (2004, p.54)
afirma que “(...) o objeto da história é, por natureza, o homem. Digamos melhor: os
homens”. Em outro momento, o autor acrescenta que a história é a ciência dos homens
no tempo (Idem, p.55).
Ao estudarmos a história estudamos os homens, as mulheres, ou seja, a nós
mesmos. E para que estudarmos a nós mesmos? O que nos move a olharmos para o
passado? O que nos move são as questões do presente (PROST, 2012), (BLOCH,
2004). Olhamos para o passado na busca de compreendermos o presente com as
questões que elencamos, que nos provoca. Todavia, essa tarefa é complexa, pois o
presente não é permanente:

O que é, com efeito, o presente? No infinito da duração, um ponto minúsculo


e que foge incessantemente; um instante que mal nasce morre. Mal falei, mal
agi e minhas palavras e meus atos naufragaram no reino da memória
(BLOCH, 2004, p. 61).

Ao refletirmos sobre a história temos que ter em mente que o tempo está sempre
em movimento, como os homens estão em movimento, não podemos falar em paisagens
estáticas e tempos estáticos (BLAUDEL, 2007). Voltamos a nossa pergunta inicial para

sumário 1365
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

que serve a História? Para essa pergunta caberiam muitas respostas e nenhuma
definitiva, uma delas é dada por March Bloch (2004, p.46) “É um esforço para o
conhecer melhor: por conseguinte, uma coisa em movimento.” Dessa forma, a História
é um esforço para conhecer melhor o presente, para entender melhor as demandas e
questões que ele nos coloca ou que colocamos para ele.
A história da Educação se insere nesse âmbito da História, apesar de ter suas
próprias questões e campo de pesquisa. Podemos então voltar a nossa segunda questão,
para que pesquisar em história da educação? Também poderíamos encontrar muitas
reflexões a esse respeito, Lopes e Galvão (2001) nos apontam que:

A História, dessa forma, ajuda-nos a olhar nossa realidade com paciência:


afinal, as coisas demoram muito a mudar... Ás vezes é preciso esperar duas
ou três gerações para que uma inovação educacional se estabeleça (LOPES e
GALVÃO, 2011, p.17).

Deve ser considerado que entre o presente e o passado “há rupturas e


descontinuidades inultrapassáveis” (LE GOFF, 1990, p. 23). Dessa forma, jamais
apreenderemos de forma plena o vivido. Devemos também atentar para o fato de que ao
olharmos o passado: “(...) não podemos ignorar os fatos que conduziram homens e
mulheres a produzirem a perpetuação de suas memórias e, por outro lado, o apagamento
de tantas outras” (CAMARA, 2003, p. 30).
A partir dessas perspectivas, indagamos o que nos leva a refletir a respeito do
Manifesto Mais uma vez convocados? Além de ser um documento de suma importância
para a educação brasileira. Nele estão refletidos os ideais de mais de 160 educadores e
intelectuais brasileiros das mais diversas concepções políticas e ideológicas. Além da
inquestionável importância histórica do Manifesto de 1959, compreendemos que ele se
faz atual. Os ideais contidos em suas páginas, ainda não alcançados, nunca foram tão
necessários relembrá-los.
Pesquisar sobre certos períodos históricos é uma tomada de posição política,
pois segundo o interesse político de cada época, há o apagamento de algumas
personalidades históricas e de certos documentos.
Tendo em pauta essas premissas, o presente artigo pretende refletir a respeito da
educação nos anos de 1950 por meio do Manifesto “Mais uma vez convocados
(Manifesto ao povo e ao governo)” redigido por Fernando de Azevedo e publicado em 1
de julho de 1959 no impresso jornal O Estado de São Paulo. O documento abordado é o

sumário 1366
VII Seminário Vozes da Educação

Manifesto de 1959 publicado no mesmo ano na revista Estudos Pedagógicos número


74.
A história da educação nos anos de 1950 é um tema por demais amplo, que ao
fazermos alguns recortes conceituais, excluímos outros. Não temos, neste artigo, a
intenção de dar conta de toda gama de reflexões a cerca da educação nesta década, mas
levantar questões para pensarmos esse rico período da educação brasileira, por meio dos
indícios do passado. Segundo nos aponta Ginzburg (1989) o historiador deve estar
atento aos rastros, indícios e sintomas deixados pelo passado. Ao analisarmos as fontes,
devemos atentar para o que elas indicam, mas principalmente para o que elas calam.

1. Um panorama dos embates da década de 1950.

Mudaram, pois, os alunos — hoje todos e não apenas alguns; mudaram os


mestres, — hoje numerosos e nem todos especialmente chamados, pela
paixão do saber; e mudaram os objetivos da escola, hoje práticos, variados e
mais profissionais e de ciência aplicada do que de ciência pura e
desinteressada." É o que mais ou menos já sustentara Rui Barbosa, no
alvorecer deste século, quando mostrava a necessidade de "limitar as
superabundâncias da teoria, de robustecer científica e profissionalmente, a
um tempo, o ensino, saturando-o de prática, de trabalhos investigativos, de
hábitos experimentais" (MANIFESTO, 1959, p. 20).

Com essa passagem, o Manifesto Mais uma vez convocados apontava que na
década de1950 os tempos eram outros. Havia se passado 27 anos desde o Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova de 1932 e agora o país respirava novos ares. Poderia ter se
modificado o número de alunos e os professores talvez não tivessem mais a “vocação”
necessária para o magistério, mas os ideais do primeiro Manifesto ainda não haviam se
concretizado. Era necessário escrever um novo Manifesto “ao povo e ao governo”.
Na década de 1950 a educação entra em pauta como impulsionadora do
desenvolvimento nacional, nos anos de Jucelino kubichek o desenvolvimento era a
marca de seu governo “cinquenta anos em cinco”.
Fausto (2009) denomina os anos que entre 1945 e 1964 de período democrático.
O Brasil respirava a democracia, após atravessar o Estado Novo (1930 a 1945), mas
entraria novamente no período ditatorial com o golpe militar (1964 a 1984). É entre
essas duas ditaduras que se desenvolve a década 1950, década de grande
desenvolvimento econômico, social e educacional, mas de perenes contradições.
Apontada como “os anos dourados” a década de 1950 teve a educação como uma
questão que precisava estar em pauta para o desenvolvimento da nação.

sumário 1367
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Nos dourados anos 50 já tínhamos claramente delineada a educação como


problema governamental. Alimentava-se a idéia de que ela era, em boa parte,
a solução para o aumento da produtividade e conseqüente desenvolvimento
econômico, para a integração das populações marginais das grandes cidades
brasileiras e instrumento da participação da vida democrática (NUNES, 2000,
p. 110).

Biccas e Freitas (2009) chamam a atenção para as contradições da década de


1950, onde o desenvolvimento convivia com a miséria de muitas regiões do país. O
Brasil na década de 1950 estava num processo de “transição”, como nação do terceiro
mundo que um dia se tornaria desenvolvida (FREITAS, 2011).
Já é fato bastante debatido na literatura especializada da história da educação a
atuação de Anísio Teixeira nesta época, podemos citar algumas referências que tratam
dessa temática Nunes (2000) e Corrêa (2013). Biccas e Freitas (2009) chegam afirmar
que não podemos entender os anos de 1950 sem a atuação de Anísio Teixeira.
Corrêa (2013) aponta que a influência da visão educacional democrática de John
Dewey era muito forte em Anísio Teixeira. O educador brasileiro defendia os ideais
democráticos explicitados, sobretudo, no Manifesto dos Pioneiros da Educação de 1932.
O grupo de intelectuais que se reuniram em torno de Anísio Teixeira pretendia elevar o
país aos padrões da Europa e pensavam modelos de nação para o Brasil.
Na direção do Instituto Nacional de Pesquisa, Anísio Teixeira fez importantes
trabalhos para o desenvolvimento das ciências sociais e trouxe para o Brasil muitos
pesquisadores que mudaram o caráter da pesquisa brasileira. Com Anísio Teixeira
nascia as mais importantes instituições de pesquisas que o Brasil teria ao longo do
século XX (FREITAS, 2011), (CORRÊA, 2013).
A década de 1950 foi de grande efervescência intelectual e científica no país.
Todavia, esse desenvolvimento convivia, como convive até hoje, com suas contradições
sociais. No caso dos anos de 1950 essas contradições encontravam mais ênfase na
relação entre o urbano e o rural (FREITAS, 2011).
A necessidade do Brasil se modernizar nos remete ao século XIX, com maior
ênfase com o advento da República, conforme nos aponta (NEVES, 2003). Essa
perspectiva entre o arcaico e o moderno, entre os “muitos brasis”, é uma questão
recorrente, estando sempre em pauta em diferentes momentos da história brasileira.
Nos anos de 1950, novamente a questão entre o moderno e o arcaico está em
pauta, conforme nos aponta (BICCAS e FREITAS, 2009). Após a Segunda Guerra
Mundial, a necessidade de reconstrução do mundo entra em pauta em boa parte do

sumário 1368
VII Seminário Vozes da Educação

mundo, o Brasil não ficou indiferente a essa perspectiva. O desenvolvimentismo foi à


grande panaceia que deveria solucionar todos os problemas da nação e inserir o Brasil
no mundo moderno.

O conceito de desenvolvimento foi apropriado e usado com tal multiplicidade


de sentidos que, em pouco tempo, tornou-se um conceito ‘areia movediça’,
dragando para dentro de si a educação e as representações de cultura nacional
que, na fala dos mais variados atores políticos, tornavam-se reféns da
adaptação ‘necessária’ de tudo e todos para que o país pudesse alçar o
desenvolvimento (BICCAS; FREITAS, 2009, p. 129).

Os jornais eram veículos de debate do desenvolvimento da nação “A conjuntura


democrática que marcou a década de 1950 colocou em relevo as variadas perspectivas
de desenvolvimento nacional, permitindo-se observar, através da imprensa, a explicação
de diferentes perspectivas e projetos de reconstrução nacional” (XAVIER, 2005, p.2).
Todavia, o desenvolvimento convivia com a miséria e o atraso do país:

O Brasil, todavia, permanecia submerso numa impressionante


heterogeneidade. Por um lado, desenhou-se mais clareza a concentração
regional do país urbano e industrial e, por outro lado, uma série de
acontecimentos revelou a sobrevivência do ‘país profundo’ ainda à mercê de
um isolamento suficientemente grande para consolidar distâncias colossais
não só entre regiões mas, principalmente, entre pessoas e estratos socais
(BICCAS; FREITAS, 2009, P. 129).

Segundo Pécault (1990) outro ponto que caracteriza os anos de 1950, no Brasil,
era à busca de uma identidade nacional. Essa “missão” de pensar o país pertencia aos
intelectuais que deveriam se voltar para as questões nacionais.
A educação não passou ao largo da perspectiva desenvolvimentista da década de
1950, pelo contrário, a educação deveria impulsionar o país em seu progresso. Todavia,
o que se desejava como educação para o país estava longe de um consenso. A década de
1950 foi terreno de disputas travadas entre católicos e liberais em torno da escola
pública. Foi também cenário dos embates que configuraram a confecção da primeira
Lei de Diretrizes e Bases Nacional, Lei nº 4.024 de 1961 (ROMANELLI, 1991),
(GHIRALDELLI, 2008). Nesse cenário, é moldado a Campanha Nacional pela Escola
Pública e o Manifesto Mais uma vez convocados, o que abordaremos a seguir.

2. Mais uma vez convocados


Romanelli (1991) enfatiza que a Constituição Federal de 1946 se caracterizava
pelo espírito liberal e democrático. Esta Constituição assegurava, entre outras coisas,
direitos e garantias individuais, estabelecendo que à União caberia legislar sobre as

sumário 1369
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

diretrizes e bases da educação nacional. Dessa forma, a partir da Constituição Federal,


se inicia um debate em torno da primeira Lei de Diretrizes Bases Nacionais, que se
acirraria ao longo dos anos de 1950.
A primeira LDB foi disputada por setores liberais e conservadores da sociedade.
Após vários embates e reveres em seu entorno, eclodiu em 1959 a Campanha em Defesa
da Escola Pública, que contou com o apoio do Jornal O Estado de São Paulo, além de
vários setores da sociedade, no mesmo ano foi lançado o Manifesto dos Educadores
Mais uma vez convocados (Manifesto ao povo e ao Governo).
Fernando de Azevedo, em defesa do amigo Anísio Teixeira que sofria severos
ataques de setores conservadores da sociedade, redigiu o Manifesto de 1959 e convocou
mais uma vez os educadores e intelectuais a reafirmarem os ideais democráticos do
escolanovismo.
O Manifesto foi lançado pela primeira vez no Jornal O Estado de São Paulo em
1 de julho de 1959 e simultaneamente no periódico Diário do Congresso Nacional,
depois publicados em outros períodos como Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos
número 74 de 1959. A imagem do documento de página inteira é emblemática:

Imagem 1 .Mais uma vez convocados

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo 01 de julho de 1959, p. 08, Acervo O Estadão online.

sumário 1370
VII Seminário Vozes da Educação

Fernando de Azevedo, escritor do Manifesto, era um entusiasta e um conhecedor


dos jornais. Já havia sido redator do Jornal O Estado de São Paulo nos anos de 1920.
Ao redigir o Manifesto, Fernando de Azevedo escolheu os jornais como fonte de
divulgação, pois sabia de sua importância no meio letrado e intelectual da sociedade
(CAMPOS, 2012).
Fernando de Azevedo fazia parte de uma geração de intelectuais voltados para as
questões populares. Esses intelectuais que atuavam na década de 1950 pretendiam
pensar e estar à altura da construção da nação, da identidade nacional (PÈCAULT,
1990). Estes intelectuais, que se organizavam em torno da figura de Anísio Teixeira,
eram pertencentes à elite brasileira. Era a elite que se colocava a tarefa de pensar a
educação no país.
Para Campos (2012) os jornais são “sujeitos da história” e na década de 1950
tinham uma importância política e cultural significativa, não apenas noticiavam e
informavam, discutiam a sociedade e ditavam os modos de vida urbano. A importância
da imprensa para os setores intelectuais da sociedade brasileira é apontada também por
Camara e Roberto (2017):

A imprensa de opinião constituiu-se como um importante instrumento


político e pedagógico, à medida que colaborava na difusão de idéias,
promoção de embates e na formação do leitor. Por meio da imprensa,
esperava-se sedimentar um projeto que proporcionasse o desenvolvimento
econômico, social, educacional e cultural do país aos moldes dos países
considerados civilizados (CAMA e ROBERTO, 2017, p. 43).

A publicação do Manifesto de 1959, no jornal O Estado de São Paulo, faz parte


de uma tendência da imprensa brasileira de manter em seus jornais colunas a respeito da
educação, nas quais eram discutidas as questões da educação. Exemplo dessas colunas é
a escrita por Cecília Meireles, de 1930 a 1932 intitulada “Nas páginas da educação” do
Jornal Diário de Noticias (CAMARA e ROBERTO, 2017). Xavier (2005) coloca que
na década de 1950 os jornais Correio da Manhã, Diário de Noticias, Última hora e
Tribuna da Imprensa, mantinham com regularidade matérias sobre educação.
Tania Regina de Luca (2008) nos chama atenção para o fato dos jornais não
serem neutros em suas representações sociais, muito pelo contrário, os grandes órgãos
estão muitas das vezes a serviço dos interesses políticos e financeiros de setores da
sociedade. Os jornais são fontes ricas para entendermos a história, os costumes e os

sumário 1371
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

sujeitos de uma época, todavia é necessário entendê-los dentro de suas contradições


históricas.
Segundo Sanfelice (2007) o Manifesto de 1959 é “também uma versão da
história”. Concordamos com o autor, podemos compreender a história a partir deste
documento. Nele está a expressão dos embates da década de 1950. Assinado por uma
plêiade de educadores e intelectuais de diferentes vertentes políticas e ideológicas, este
documento nos aponta, indícios e rastros na concepção de Ginzburg (1989) dá a esses
termos, para entendermos a educação nessa década.
Ainda Sanfelice (2007) nos aponta que o Manifesto de 1959 coloca novamente
em pauta o que não havia sido alcançado com o de 1932.

Reconhece-se que houve iniciativas, mas isoladas e regionais. Isso torna


possível reiterar as marcas do Manifesto de 32: educação democrática, escola
democrática e progressista, liberdade de pensamento e igualdade de
oportunidades para todos. Conclui-se: a sociedade projetada na visão
antecipatória do Manifesto de 1932 ainda não se materializara totalmente nos
anos 50 do século XX, mas os anos JK, como se diz hoje, numa referência ao
governo do presidente Juscelino Kubitschek, faziam alguma diferença. A
nova capital, Brasília, estava prestes a ser inaugurada e a construção do
capitalismo industrial associado e/ou dependente, sob a vigilante “ajuda”
norte-americana, desde o término da Segunda Guerra Mundial, avançava com
certa solidez. Daí a urgência: o que não foi feito, na educação, precisava ser
feito imediatamente (SANFELICE, 2007, p. 547).

O Manifesto Mais uma vez convocados pretendia falar ao povo e ao Estado, em


um momento de grandes embates em torno da primeira Lei de Diretrizes e Bases
Nacionais. Embora o Manifesto de 1959 retomasse os ideários da escola nova o e os
preceitos do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932 há diferenças e
continuidades entre os dois documentos:

O texto em pauta reivindica o princípio de liberdade e o dever como


justificativa para apresentar e submeter ao julgamento público os pontos de
vista sobre problemas graves e complexos como os da educação. Posiciona-
se como uma nova etapa no movimento de reconstrução educacional,
considerando ainda o Manifesto de 1932, mas agora com a solidariedade dos
educadores da nova geração. Deseja ser menos doutrinário, mais realista e
positivo, mas mantendo a mesma linha de pensamento daqueles educadores
anteriores (SANFELICE, 2007, p. 546).

O Manifesto de 1959 se mantém fiel aos ideais liberais, ao modelo de escola


pública, laica e gratuita. O documento denuncia o atraso do Brasil em relação às nações
européias apontadas como modelo de civilização e desenvolvimento. Como já
apontamos, o desenvolvimento era tônica dos anos de 1950 e é expressivo no Manifesto

sumário 1372
VII Seminário Vozes da Educação

de 1959. A citação que segue é, a nosso ver, a passagem que mais expressa as ideias
contidas neste documento:

Entendemos, por isso, que a educação deve ser universal, isto é, tem de ser
organizada e ampliada de maneira que seja possível ministrá-la a todos sem
distinções de qualquer ordem; obrigatória e gratuita em todos os graus;
integral, no sentido de que, destinando-se a contribuir para a formação da
personalidade da criança, do adolescente e do jovem, deve assegurar a todos
o maior desenvolvimento de suas capacidades físicas, morais, intelectuais e
artísticas. Fundada no espírito de liberdade e no respeito da pessoa humana,
procurará por todas as formas criar na escola as condições de uma disciplina
consciente, despertar e fortalecer o amor à pátria, o sentimento democrático,
a consciência de responsabilidade profissional e cívica, a amizade e a união
entre os povos (MANIFESTO, 1959, p. 18).

Esses ideais apontados acima, até hoje não alcançadas, muito nos toca e nos
inquieta como educadores. Em 20 de dezembro de 1961, a Lei 4.024 foi aprovada, a
respeito da nossa primeira LDB, Anísio Teixeira diria se tratar de “Uma meia vitória,
mas ainda assim uma vitória” (GHIRALDELLI, 2008).

3. Considerações finais
Os embates e contradições, da década de 1950, na sociedade e na educação que
levaram a confecção do Manifesto dos Educadores Mais uma vez convocados, ainda
não foram superados na sociedade brasileira. Convivemos até hoje com os muitos
“brasis”, com um país de desigualdades sociais e educacionais profundas.
Podemos afirmar o mesmo da nossa educação, o que temos alcançado não são
meias vitórias? A educação pública que nos deparamos hoje deixa quase tudo pelo meio
do caminho, muito para fazer. O Brasil que experimentou momentos de
desenvolvimento na década de “ouro” da educação, ainda é o “país do futuro”, com suas
contradições que de tão profundas e enraizadas chegam a ser quase como uma tradição.
Não se trata de “resgatar” os ideais do Manifesto, fazendo uma transposição para
os dias de hoje, mas sim de ter esse documento monumento como marca de uma época
rica para a educação brasileira. Não dissemos com isso que o Manifesto não tenha suas
contradições, como as tem toda produção humana, todavia ele representa a síntese
possível do pensamento de uma plêiade de educadores e intelectuais que lutavam por
uma educação pública gratuita e laica e de qualidade que inserisse o Brasil no mundo
moderno.

Referências

sumário 1373
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

AZEVEDO, Fernando de. Mais uma vez convocados (Manifesto ao povo e ao governo)
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Nova de 1932 como itinerário para construção do Brasil moderno. GONDRA, José G.;
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manifestantes. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.

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CAMPOS, Raquel Discini de. No rastro de velhos jornais: considerações sobre a


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educação. Revista Brasileira de História da Educação. Campinas SP, v. 12, n. 28,
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CORRÊA, Mariza. Traficantes simbólicos e outros ensaios sobre a história da


antropologia. Campinas, SP; Editora da Unicamp, 2013.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13 ed. 1. reimpr. São Paulo: Editora da


Universidade de São Paulo, 2009.

FREITAS, Marcos Cezar; MAURILANE, Souza Biccas (org.) História social da


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SP: Cortez, 2011, p. 13-52.

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LUCA, Tania Regina de; MARTINS, Ana Luiz (orgs.).História da imprensa no


Brasil. São Paulo: Contexto, 2008.

PÉCAULT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. Entre o povo e a nação.


SP: Ática, 1990, p. 5-57.

SANFELICE, José Luís. O manifesto dos educadores (1959) á luz da História.


Educação e Sociedade. vol. 28, n. 99, maio/agosto. 2007, p. 542-557.

XAVIER, Libânea. Educação e imprensa carioca na década de 1950. ANPUH XXIII


Simpósio Nacional de História. Londrina, 2005.

sumário 1374
VII Seminário Vozes da Educação

PROGRAMA EDUCACIONAL NO COTIDIANO ESCOLAR: UMA PESQUISA


EXPLORATÓRIA

Tania de Assis Souza Granja


UERJ/FFP
tasgranja@gmail.com

Sonia Maria Cerqueira de Brito


UNIGRANRIO
soniavioleta@oi.com.br

Introdução
Este texto é desdobramento da pesquisa em curso intitulada “Educação e
Currículo: práticas, políticas e programas no cotidiano da escola”, cujo objetivo é
compreender a natureza do processo de construção do currículo escolar a partir dos
impactos das políticas, programas e projetos educacionais que chegam às escolas
públicas de modo a contribuir, também, para a compreensão de como estes se
concretizam na prática, fornecendo elementos, tanto sobre a escola, quanto sobre os
programas educacionais e as práticas que perpassam a estrutura educacional da escola
contemporânea.
Neste trabalho focalizamos o Plano de Desenvolvimento da Escola – PDE
Escola, que, alinhado com o MEC, na direção da melhoria da qualidade do ensino e da
gestão, é um programa dirigido às escolas que apresentam baixo desempenho, também
chamadas de prioritárias, ou seja, para as escolas que apresentam baixo IDEB. O PDE
Escola tem como função “elevar a qualidade da escola e torná-la mais eficiente”
(RODRIGUES;SOLANO, 2016, p.10-11), segundo a ótica gerencialista que está no
cerne da proposta deste programa.
Desse modo, a pesquisa exploratória realizada vem proporcionar maior
familiaridade com o Plano de Desenvolvimento da Escola – PDE Escola, de forma a
explicitá-lo e a identificar sua natureza, características e alinhamento com o cotidiano
escolar.

sumário 1375
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O programa educacional e a escola


O Plano de Desenvolvimento da Escola - PDE Escola é um programa do MEC,
criado em 1998, no âmbito do Fundescola, fruto de um acordo de empréstimo entre o
governo brasileiro e o Banco Mundial, implementado e desenvolvido em forma de
parceria com as secretarias municipais e estaduais de educação dos estados envolvidos
(FONSECA;OLIVEIRA;TOSCHI, 2005). Na análise de Fonseca (2009, p.191), “O
Fundescola pode ser considerado como a ação internacional mais significativa, pelo fato
de ter sido planejada para o período de dez nos (1998-2010) e de incluir uma vasta parte
do território nacional”. É oportuno destacar que esta proposta vem no bojo da
reestruturação do Estado brasileiro, dentro das reformas do estado preconizadas pelo
ideário neoliberal.
A literatura (FONSECA, 2003, 2009; FONSECA;OLIVEIRA;TOSCHI, 2005;
OLIVEIRA, 2007; RODRIGUES;SOLANO, 2016) aponta que o Plano de
Desenvolvimento da Escola - PDE Escola vincula-se ao Plano de Desenvolvimento da
Educação (PDE), este que é composto de várias ações, visando a melhoria da qualidade
da educação, no que tange à metodologia de gestão estratégica proposta pelo MEC,
tendo no PDE Escola uma das ações. Este programa traz uma proposta de planejamento
estratégico (FONSECA, 2003, 2009), visando ajudar as escolas na identificação de seus
desafios e problemas, viabilizando através de um elenco de ações a superação destes,
melhorando seus resultados e, como meta, melhorar a gestão das escolas.
Nessa perspectiva, vários autores (FONSECA;OLIVEIRA, 2003;
FONSECA;OLIVEIRA;TOSCHI, 2005; TERTO;FRANÇA, 2007; TRINDADE, 2011;
TAQUES, 2011; BAYER, 2012; SCHIMONEK, 2012; OLIVEIRA, 2014;
CORDEIRO, 2015) ressaltam que o Plano de Desenvolvimento da Escola - PDE Escola
revela, de um lado, a lógica marcadamente gerencialista e, de outro, aponta, também,
que ele tem dado continuidade ao desenvolvimento das reformas do Estado iniciadas na
década de 1990, aprofundando os mecanismos gerenciais aí instituídos, principalmente
os relacionados à descentralização, à responsabilização e à regulação, com a ampliação
do raio de ação do programa para todas as escolas públicas com baixos índices de
desenvolvimento da educação-IDEB.
No processo de formulação e implementação do PDE Escola, este, desde sua
criação, já passou por vários ajustes, tanto conceituais como técnicos na metodologia,
resultando em novos arranjos. Na nova configuração, desde 2007, com o lançamento do
Plano de Metas Todos pela Educação do Governo Federal, de acordo com Cordeiro

sumário 1376
VII Seminário Vozes da Educação

(2015, p.31), “[...], o PDE Escola passou a fazer parte de uma das metas a serem
implementadas por unidades escolares de todo o país que apresentassem baixo IDEB
como forma de dar condições para que melhorassem a qualidade do seu ensino [...] com
vistas à elevação do índice”. Assim sendo, o programa atende a todas as escolas com
baixo rendimento e os estados e municípios, que aderiram à proposta, assinam um
Termo de Adesão ao Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) Nacional,
vinculado ao “Compromisso Todos pela Educação” (CORDEIRO, 2015).
O programa PDE Escola, na sua constituição, pretende ser um apoio à gestão
escolar e de melhoria da qualidade da educação, utilizando-se do planejamento
estratégico para a realização de um diagnóstico, construído coletivamente, refletindo a
realidade escolar e, consequentemente, um plano com metas e um planejamento. A
partir desta ação, o MEC repassa recursos financeiros, que tem como base o número de
alunos matriculados na unidade escolar e o censo do ano anterior (CORDEIRO, 2015),
visando apoiar as ações da escola para a execução no todo ou em parte do seu
planejamento.
Nessa perspectiva, os recursos são repassados por dois anos consecutivos
visando auxiliar a escola na implementação das ações definidas por ela no seu plano,
que é, previamente, validado pelo MEC. Cabe destacar que, segundo Fonseca (2009,
p.192), “as propostas dirigidas ao planejamento escolar orientam-se pelas diretrizes
estabelecidas em documentos produzidos pelo BM [...]”, cuja ênfase está na liderança
do diretor, a partir de treinamento intensivo em planejamento estratégico, tornando-se,
assim, a mola mestra impulsionadora do programa na escola. Nas palavras de Fonseca
(2003, p.305), “[...] A liderança constitui o elemento básico para que a escola possa
construir seu projeto e que possa administrar suas carências financeiras com iniciativas
próprias ou com o suporte da comunidade em que se localiza a escola”, atribuindo, por
conseguinte, ao gestor, o papel de protagonista do programa PDE Escola e pontuando,
também, a natureza da propalada descentralização na lógica neoliberal.
Em 2011, o MEC criou uma ferramenta denominada PDE Interativo,
aperfeiçoando a metodologia e a funcionalidade do programa neste novo sistema. Neste
sentido, segundo Oliveira (2014), a introdução do PDE Escola no PDE/Plano de Metas
vem atender aos interesses do MEC de desenvolver um sistema mais amplo de apoio e
monitoramento das escolas com os piores indicadores educacionais. De todo modo, de
acordo com Oliveira (2014, p.52) “[...], a entrada do PDE Escola no conjunto de
programas que compõe o PDE/Plano de Metas evidencia uma tentativa do governo

sumário 1377
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

federal de responsabilizar as escolas, fazendo-as responder pela demanda de melhoria


dos serviços prestados [...]”, demonstrando uma preocupação com resultados e
cumprimento de metas.
Outro aspecto a ser destacado desse programa é, segundo a literatura (RIBEIRO;
RIBEIRO;GUSMÃO, 2005; ANDRADE, 2009), seu caráter de responsabilização, face
ao contexto de políticas educacionais do governo federal de feição neoliberal. Assim
sendo, na perspectiva de responsabilização da escola, as secretarias, os técnicos
envolvidos vivenciam este aspecto através de mecanismos explícitos como pressão
externa, cobranças, especialmente no que tange á implementação do programa, os
resultados, às verbas e prestação de contas (OLIVEIRA, 2014).

A pesquisa de campo em diferentes contextos


Trata-se de uma pesquisa exploratória, descritiva de abordagem qualitativa,
desenvolvida nas escolas das redes municipais de S. Gonçalo e do município de Duque
de Caxias, ambos no Rio de Janeiro. O objetivo deste estudo é o de conhecer como se
articulam e se desenvolvem as políticas e os programas educacionais no cotidiano da
escola, visando compreender os impactos destes sobre a gestão, a construção do
currículo e sobre as práticas escolares, de modo a contribuir para a compreensão de
como se concretizam, na prática, as políticas e programas que chegam às escolas
públicas. Assim, nesta fase, definimos como objetivos específicos deste estudo: a)
identificar os impactos das políticas e programas sobre o trabalho dos gestores e o
trabalho dos professores; b) compreender como se desenvolvem e se articulam nestes
contextos os programas, com ênfase no PDE Escola e as estratégias utilizadas para a sua
implementação, execução, operacionalização e efetivação na instituição de ensino. A
questão norteadora deste estudo é: Como se concretizam, na prática, as políticas e os
programas no interior das escolas públicas?
A pesquisa exploratória tem nos permitido conhecer um pouco sobre os
programas educacionais ora vigentes nas redes municipais e, sobretudo, o Plano de
Desenvolvimento da Escola - PDE Escola, que é o foco deste estudo, uma vez que
tínhamos poucas informações sobre o programa nas respectivas redes de ensino. Afora
isso, viabilizou, também, obter um conhecimento mais amplo e mais próximo da
realidade estudada.

sumário 1378
VII Seminário Vozes da Educação

Nesta etapa, reunimos um total de 60 participantes/entrevistados, que estivessem


na gestão das unidades escolares há pelo menos 1 ano. Foram pesquisadas 25 escolas
em São Gonçalo e 35 escolas em Duque de Caxias. Vejamos:

Distribuição das escolas pesquisadas no município de São Gonçalo e Duque de


Caxias

Fonte: Adaptação - elaboração própria

A título de uma breve explicação sobre o mapa acima, é oportuno mencionar


que, no município de São Gonçalo, as escolas pesquisadas ficaram concentradas no
1º.Distrito e estão representadas pela logo da Uerj. Já no município de Duque de Caxias,
as escolas pesquisadas ficaram distribuídas no 1º., 2º., 3º. e 4º. Distritos e estão
representadas pela logo da Unigranrio.
Esta etapa da pesquisa compreendeu a coleta de informações diretas nas escolas
por meio de entrevistas e observação, uma vez que buscávamos obter maiores
informações sobre o programa. Para coleta de dados, a escolha foi aleatória de escolas
da rede municipal com o Ensino Fundamental em ambas as redes. Os alunos-
pesquisadores definiam as escolas a serem investigadas em razão da proximidade de sua
residência ou trabalho a fim de otimizar o tempo para dedicar-se mais tempo à pesquisa
de campo. Os sujeitos foram, inicialmente, os gestores das escolas públicas e, num
segundo momento serão realizadas entrevistas com integrantes da equipe pedagógica e
da prestação de contas das Secretarias de Educação, em ambos os municípios.
O procedimento adotado foi a entrevista semiestruturada, com base em um
roteiro guia para as perguntas que contemplavam os objetivos exploratórios da pesquisa.

sumário 1379
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

As entrevistas foram previamente agendadas, tendo em vista o movimento e as


dinâmicas das escolas e a disponibilidade dos gestores.
A pesquisa de campo, no período de 2 anos, tem sido executada por alunos da
disciplina de Gestão I e da disciplina de Gestão Educacional da Faculdade de Formação
de Professores/UERJ e a Universidade do Grande Rio - Unigranrio, respectivamente, a
partir de um roteiro guia com pontos chave sobre a temática. Esta experiência visava o
enriquecimento do espaço formativo que é a sala de aula; objetivava a que os alunos
conhecessem o trabalho que é realizado pela Gestão Escolar, de modo a compreender
suas atribuições, suas responsabilidades e sua atuação no cotidiano da Instituição de
Ensino, bem como tinha como objetivo, também, a coleta de dados e a aproximação do
aluno com a prática da pesquisa e o conhecimento, tanto da realidade da gestão como no
tocante aos programas que as instituições de ensino recebem, na atualidade, no
cotidiano da escola como estratégia da descentralização financeira implementada sob a
égide da concepção economicista de viés neoliberal das políticas governamentais para a
educação. Para execução da tarefa, os alunos fizeram algumas leituras sobre o tema
gestão escolar no contexto neoliberal e o gerencialismo; sobre o programa PDE Escola e
fizeram, ainda, dois laboratórios de entrevistas, visando um breve treinamento,
antecedendo a entrada em campo.

Um breve relato sobre os resultados da pesquisa: a materialização do programa


Cabe destacar que, de acordo com pesquisas realizadas por Fonseca, (2004,
2009a), Oliveira (2007) e Rodrigues;Solano (2016), o que tem sido constatado é uma
grande racionalidade técnica e financeira, com foco na maximização de resultados
quantitativos e eficiência operacional, desconsiderando a educação enquanto ato
político, enquanto possibilidade para desenvolvimento do homem. Assim sendo, a
investigação da dinâmica que o Programa assume nas escolas na atualidade, bem como
sua materialização torna-se fundamental para a compreensão dos seus impactos sobre o
currículo escolar, as práticas e nas múltiplas dimensões que este imprime ao cotidiano
das escolas públicas de ensino fundamental, foco deste estudo.
Nos municípios investigados, verificamos que a adesão das escolas das redes
estudadas não foi compulsória, ficando de fora do programa várias escolas com baixo
rendimento. Nesta perspectiva, os dados coletados revelam algumas lacunas na
materialização do programa nas redes pesquisadas: há falta de informações sobre o
programa por parte dos gestores das escolas e, em alguns casos, total desconhecimento;

sumário 1380
VII Seminário Vozes da Educação

alguns gestores não participaram, tanto pela preocupação com a complexidade da


prestação de contas que continha um cem número de formulários a serem preenchidos,
quanto pela preocupação com o volume de recursos públicos que seriam recebidos pela
escola; a ausência de orientação e acompanhamento sistemático do programa
desencorajou a adesão de alguns gestores; houve relatos com relação à interrupção do
recebimento da verba para a execução do plano de ação das escolas; relatos de que
planos de ação foram executados parcialmente contribuindo para que não houvesse
mudanças qualitativas no âmbito pedagógico nas escolas de baixo desempenho que
aderiram ao programa. Foram feitas críticas ao programa e às Secretarias de Educação
no tocante à ausência de formação continuada dos gestores.
Tomando de empréstimo a reflexão de Minayo (2004, p.90) sobre a
inatingibilidade do objeto em que ela explica que “as ideias que fazemos sobre os fatos
são sempre mais imprecisas, mais parciais, mais imperfeitas” que o próprio objeto,
levando o pesquisador, no processo de pesquisa, a um movimento de “definição e
redefinição do objeto”, de escolhas e tomada de decisão. Nesse sentido, os dados
coletados nesta primeira fase do estudo indicaram a necessidade de uma investigação,
junto à Secretaria de Educação dos municípios pesquisados, para conhecer como está a
gestão, o acompanhamento e o controle do Programa nas escolas e mapear os resultados
aferidos nas instituições de ensino.
Foi observado nesse caminho percorrido que a gestão da escola, no geral, está
envolvida em funções burocráticas e administrativas, em detrimento das atribuições
pedagógicas, colocando, portanto, a dimensão pedagógica do trabalho escolar num
segundo plano. Encontramos, também, uma gestão enfrentando vários desafios, entre
eles, problemas oriundos da ausência de recursos que comprometem, sobremaneira, a
qualidade do trabalho escolar e, por conseguinte, a tão propalada qualidade da
educação.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 1383
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O SISTEMA DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA E A QUALIDADE


NA/DA EDUCAÇÃO INFANTIL NO MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO

Elane Neves da Matta Souza


elanematta@gmail.com

Introdução
O presente artigo representa a continuação de uma linha de pesquisa, cuja
temática principal liga-se ao conjunto de questões referentes a possíveis alternativas
para se pensar uma educação básica de qualidade. O tema abarca inquietações e
complexidades relevantes à questão da avaliação da Educação Infantil como primeira
etapa da Educação Básica no Brasil, constituindo-se como elemento chave nas
discussões no campo educacional.
A discussão sobre a qualidade da educação básica no Brasil, de acordo com
estudiosos do tema, aponta que é uma premissa investimentos urgente na educação.
(LUCKESI 2002, p.15). Segundo o autor, o fraco desempenho dos estudantes no
Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica o SAEB deixa claro, que o Brasil
precisa de sérias medidas para mudar o quadro, uma vez que a realidade dos sistemas de
ensino no país vem apresentando resultados insatisfatórios como o do último SAEB,
como sinalizadores dos fatos que foram investigados.
Os resultados segundo Perrenoud (2002) demonstram a indiscutível exclusão da
maioria na esfera da ação como sujeitos que são condenados a ser meros objetos, em
nome da suposta superioridade de poucos, em termos de mérito. A estrutura atual da
educação formal se coloca como guardiã levando a um conformismo generalizado, para
poder operar e subordinar as exigências sob a ótica da ordem estabelecida.

As finalidades do sistema educacional e as competências dos professores não


podem ser dissociadas tão facilmente. Não privilegiamos a mesma figura do
professor se desejamos uma escola que desenvolva a autonomia ou o
conformismo, a abertura ao mundo ou o nacionalismo, a tolerância ou o
desprezo por outras culturas, o gosto pelo risco intelectual ou a busca de
certezas, o espírito de pesquisa ou o dogmatismo, o senso de cooperação ou
o de competição, a solidariedade ou o individualismo. (PERRENOUD, 2002,
p.12)

sumário 1384
VII Seminário Vozes da Educação

Neste mesmo raciocínio Freire (1998) esclarece que em relação às avaliações o


questionamento deve ser pensado com foco em: para quê e porque avaliar? E ainda,
avaliar para que e por quê? Sobretudo, porque essa avaliação é realizada em larga
escala, a nível nacional onde são considerados, além de dados e resultados dos
estudantes, os dados de desempenho dos professores e da escola.

Os sistemas de avaliação pedagógica de alunos e de professores vêm se


assumindo cada vez mais como discursos verticais, de cima para baixo, mas
insistindo em passar por democráticos. [...] A questão que se coloca a nós é
lutar em favor da compreensão e da pratica da avaliação enquanto
instrumento de apreciação do que fazer de sujeitos críticos a serviço, por isso
mesmo, da libertação e não da domesticação. Avaliação em que se estimule o
falar a como caminho do falar com. (FREIRE, 1998.p.130).

A avaliação realizada pelo SAEB desafia gestores a pensar a qualidade do


Ensino Fundamental e do Ensino Médio nas instituições públicas e privadas,
(FREITAS, 2009). Além de um posicionamento que demande ações que contribuam
para a avaliação e qualidade no ensino, o que de acordo com Bonamino (2000), “trata-
se de uma avaliação que focaliza os sistemas de ensino responsáveis pela educação
fundamental e média”.
Entendendo a educação escolar pública como uma das alternativas às
desigualdades e expropriações cada vez mais as camadas populares são submetidas.
Pesquisadores (as) de diversas áreas concordam com a urgência de se discutir
ferramentas pedagógicas eficientes, que atuem na transformação da realidade na qual
crianças e estudantes estão inseridos. (FREIRE, 2004).

Problematização
A atual crise no Sistema Educacional Brasileiro está ancorada na redução de
investimentos significativos em educação, que na visão neoliberal configura-se como a
política do estado mínimo, de acordo com a citação;

“pois o acesso a todo recurso escasso começa sempre a constituir um


problema quantitativo para converter-se posteriormente, quando a escassez já
não é tanta, numa questão qualitativa” (ENGUITA, 2002, p.96).

Nessas circunstâncias, o autor esclarece que a escassez de investimentos


inviabiliza os recursos necessários para se atingir uma expressiva faixa da população,
que em sua formação inicial ingressam no ensino fundamental e médio, sendo avaliados

sumário 1385
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

por exames para aferição dos níveis de proficiência, resultantes da aprendizagem


escolar, Luckesi (2002, p.13).

“A característica que de imediato se evidencia a nossa prática educativa é de


que a avaliação de aprendizagem ganhou um espaço tão amplo nos processos
de ensino que nossa prática educativa escolar passou a ser direcionada por
uma pedagogia do exame”.

Neste caso, é possível perceber que, não somente a escola, mas o sistema
educacional prioriza os resultados em detrimento ao aprendizado, o que configura uma
pedagogia cristalizada no ensino médio, entendida como uma prática permanente de
atividades docentes e discentes. Logo, especifica-se neste nível de ensino, o treinamento
para se resolver provas, memorizar tabelas, enunciados e aprender a destacar questões
mais complexas, objetivando a aprovação para o ingresso na universidade, o que se
constitui em uma porta socialmente fechada.

Objetivos
Geral
Estudar o caso SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), no
que tange aos seus avanços e retrocessos para o acesso a uma educação de qualidade e
como isto se efetiva na concepção dessa avaliação.

Específicos
➢ Identificar estratégias e ações docentes que contribuam para avaliações qualitativas da
Educação Infantil no município delimitado na pesquisa.
➢ Identificar os atores sociais envolvidos na formação e fomentar estratégias para
potencializar a abrangência das atividades no processo de formação.

Justificativa
A análise e compreensão dos dados anteriores e atuais do SAEB, pode se
desdobrar em movimentos que contemplem uma educação que priorize a formação e
não apenas resultados avaliativos de caráter discriminatório dessa pedagogia vigente,
que promove a prática de examinar em detrimento do ato de avaliar de modo formativo.
Contudo, a inclusão da Educação Infantil no contexto da política de avaliação do INEP,

sumário 1386
VII Seminário Vozes da Educação

requer uma investigação mais apurada sobre seus desdobramentos nesta primeira etapa
da educação básica.
“Nos estudos sobre avaliação, pouco se tem debruçado sobre a Educação
Básica” (LOUZADA, 2017 p.24)
Porém, a Educação Infantil vem afirmando sua identidade e se consolidando na
legislação e nas políticas públicas brasileiras como dever do Estado e direito de todas as
crianças de 0 a 5 anos de idade à educação. Sua institucionalização está assegurada nos
seguintes documentos:

A Constituição Federal Brasileira de 1988 em seu artigo 208

“O dever do do Estado com a Educação será efetivado mediante a garantia


de:
I – Educação Básica e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade, inclusive sua
oferta gratuita para todos que a ela não tiveram acesso na idade própria.
II - Educação Infantil em creche e Pré-Escola às crianças até 05 anos de
idade.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional defende que:


art. Quatro: O dever do Estado com a Educação escolar pública será
efetivado mediante a garantia de:
Educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos dezessete anos de
idade, organizada da seguinte forma:
Pré-escola;
Ensino fundamental;
Ensino médio.
Educação infantil gratuita para todos que a ela não tiveram acesso na idade
própria
[...]
IV - Educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até cinco anos de
idade.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2010, P.12),


afirmam que:

“A Educação Infantil primeira etapa da Educação Básica é oferecida em


creches e pré-escolas , as quais se caracterizam como espaços institucionais
não domésticos que constituem estabelecimentos públicos ou privados que
educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em
jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão
competente do sistema de ensino, e submetidos à controle social.”

“Segundo Kramer, a primeira infância tem sido alvo de intensos e acalorados


debates políticos e científicos” (LOUZADA, 2017 p.25).

sumário 1387
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Neste sentido, pretendo investigar as políticas de avaliação na/da Educação


Infantil no município de São Gonçalo e quais concepções de avaliação se
fundamentam. “O Plano Nacional da Educação apresenta metas para que se alcance a
universalização da educação básica com garantia de equidade nas condições de acesso e
permanência dos/as estudantes, visando à melhoria da qualidade da educação oferecida.
Assim, o meu interesse investigativo se dirigirá às políticas de avaliação da Educação
Infantil pública no município gonçalense procurando entender os seus desafios e
possibilidades.

Metodologia
A metodologia utilizada para esta pesquisa incluiu um amplo levantamento
bibliográfico qualitativo e quantitativo que conforme a citação de Molina (2004, p. 96).

O estudo de caso qualitativo é especialmente pertinente, quando se trata de


tentar responder a problemas ou perguntas que se formatam em ‘comos’ e/ou
‘porquês’ e que se interessam por acontecimentos contemporâneos dos quais
obtemos poucas informações sistematizadas (MOLINA, 2004).

Nesta perspectiva, procurarei realizar um levantamento bibliográfico e


documental no campo da avaliação na Educação Infantil, além de entrevistar atores
fundamentais no desenvolvimento de políticas na Educação Infantil em São Gonçalo
como: secretário de Educação, coordenação de Educação Infantil e professores (as) da
rede municipal da cidade.

Referencial teórico
No século XVI, foram elaborados os primeiros instrumentos de avaliação
escolar, usados como forma de disciplinamento social dos estudantes (LUCKESI, 2002,
p. 17). Este modo de avaliar estava inserido na pedagogia jesuítica do século XVI, que
tinha por objetivo a construção de uma hegemonia católica a fim de impedir as heresias
protestantes. A ocasião das provas configurava-se como um momento solene tantos nas
classes mais abastadas quanto nas populares.Neste contexto, os instrumentos usados
pelos educadores causavam medo e vergonha aos educandos.

“Eram solenes essas ocasiões, seja pela constituição da banca examinadora,


seja pela comunicação pública dos resultados, seja pela emulação ou pelo
vitupério daí corrente” (LUCKESI, 2002, p. 17).

sumário 1388
VII Seminário Vozes da Educação

Para a pedagogia Comeniana, a ação do professor deve ter uma atenção especial
acreditando que os exames servem como um instrumento para estimular os estudantes
ao trabalho intelectual e a aprendizagem. E obrigando-os a estarem sempre preparados
para os exames finais do curso superior, ainda que próximo à colação de grau. Neste
caso, para o aluno aprender é preciso prestar atenção, sendo o medo um recurso
fundamental para o comprometimento em sala de aula, e a prova, um instrumento
bastante utilizado para estimular o medo. Isto pretendia tornar a aprendizagem eficaz e
atraente, mesmo usando métodos rígidos, marca da pedagogia tradicional na história da
educação, segundo Aranha (1998, p.108).

“Comênio diz que o medo é uma fator para manter a atenção dos alunos. O
professor pode e deve usar desse “excelente” meio para manter os alunos
atentos ás atividades escolares. Então eles aprenderão com muita facilidade,
sem fadiga e com economia de tempo” (LUCKESI, 2002, p.22).

Atualmente, existe uma preocupação de pesquisadores, acerca das questões


envolvendo o universo escolar, tais como: a efetiva democratização do ensino; a
garantia da educação pelo Estado; e a maior permanência dos alunos na escola com
objetivo de um preparo mais eficiente para o exercício profissional e da cidadania
(FRIGOTTO, 2003; COLARES et al., 2009).
No que se refere ao SAEB e institucionalização, de acordo com Bonamino
(2001, p.16) sua origem remonta a segunda metade da década de 80, que marcam o
início e compreensão da política de avaliação. Este período revela três pontos
importantes: a redemocratização da sociedade brasileira; redemocratização das gestões
das secretarias estaduais de educação e a universalização, atingida pelo ensino de
primeiro grau. Ainda neste período, o crescimento vegetativo da população e a
aceleração da urbanização levaram ao aumento da demanda e pressão por serviços
públicos, principalmente na educação, (MALUF, 1996 p. 5-38).
O SAEB surge em um período em que o sistema educacional sofre mudanças
significativas, forçando a municipalização do ensino de primeiro grau, na medida em
que a arrecadação de impostos estaduais se mostra insuficiente. Outro fato relevante
neste período foram às excessivas taxas de repetência e a evasão precoce dos alunos,
principalmente os das camadas mais populares, levando a implantação de políticas de
avaliação continuada (GATTI, 2000; NEVES, 2010).

sumário 1389
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Assim o SAEB começava a se destacar, com reconhecimento da inexistência de


estudos que mostravam mais claramente o atendimento educacional oferecido a
população e o peso sobre o desempenho dos alunos dentro do sistema escolar. Surgem
nesse momento, as primeiras experiências de avaliação do ensino de primeiro grau,
usando instrumentos cognitivos e contextuais para aferir a qualidade do ensino nesses
dois níveis. Os instrumentos cognitivos são compostos de provas de desempenho
baseados em matrizes curriculares, (BONAMINO 2002, p.124).
Mediante as análises e reflexões de alguns pesquisadores, o SAEB contribuiu de
uma forma significativa para uma educação de qualidade, procurando atingir a todos os
cidadãos brasileiros, pois existem localidades do território nacional de difícil acesso
para os agentes como as escolas em áreas rurais ainda desconhecidas (ARROYO,
2004). Contudo, é de vital importância responder a demanda da falta de oportunidade
em cada contexto para a promoção uma educação de qualidade que deveria ser um
direito de todos, dentro dos marcos constitucionais brasileiros (FREIRE, 2004).
A questão da qualidade em educação desde a criação do SAEB se constitui um
problema de ordem social, política e econômica que exigirá mudanças urgentes
começando nas três instâncias governamentais, ou seja, na esfera federal, estadual e
municipal, através de ações democráticas e compartilhadas entre os gestores,
professores (as), crianças, familiares e a comunidade, (GENTILI, 2002, p.115;
OLIVEIRA, 2011).
Cabe pontuar a relevância da pesquisa a ser desenvolvida durante o mestrado,
acerca das questões envolvendo o SAEB, com base nas considerações descritas neste
trabalho. Nesse sentido, com o intuito de crescimento, capacitação acadêmica e na
expectativa de contribuir na ênfase ações concernentes a qualidade da Educação Infantil
em São Gonçalo, encaminho esta proposta à apreciação, como um dos requisitos para o
processo seletivo.

Avaliação na/da educação infantil


A avaliação na Educação Infantil é pouco trabalhada pelos autores. Rosemberg
trabalha sobre as questões relacionadas a esta etapa da Educação Básica, a escassez de
produções e pesquisas acadêmicas que tratem sobre o assunto e a pouca visibilidade que
as questões relacionadas a mesma possui.

sumário 1390
VII Seminário Vozes da Educação

“Com efeito, ao se pesquisar a disponibilidade bibliográfica na área da


Educação que usaram o descritor avaliação para a Educação Infantil, observa-se uma
baixíssima incidência.” (ROSEMBERG, 2013 , p.3)
Segundo a referida autora, mesmo ao mobilizar debates e discussões entre
gestores, pesquisadores e ativistas, o tema ainda não demarcava um problema social
prioritário.
O presente artigo se posiciona no momento em que a Educação Infantil começa
a se despontar no cenário acadêmico e nas políticas públicas como um campo de
estudos específicos, com métodos de avaliação que precisam ser problematizados,
regulamentados para que realmente se tornem uma política pública com seu devido
embasamento e efetividade nos resultados.
“Ao entrar na pauta da agenda política, a Avaliação na Educação Infantil ganha
visibilidade, recursos e legitimidade.” (Idem)

Referências
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edição 1998.

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sumário 1391
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 1392
VII Seminário Vozes da Educação

CARTOGRAFIA DA AÇÃO: UM BALANÇO DA PRODUÇÃO DA PESQUISA


PODER LOCAL E O DIREITO À EDUCAÇÃO NO MUNICÍPIO DE SÃO
GONÇALO (2008-2019)

Thaís Alves de Souza


UERJ/FFP/ Bolsista PIBIC/ CNPq
tata.ads29@gmail.com

Marcia Soares de Alvarenga


PPGEdu-FFP/ UERJ
msalvarengauol.com.br

Introdução
O presente trabalho inscreve-se junto ao projeto de pesquisa intitulada Políticas
Educacionais e Poder Local: Um estudo sobre a implantação do Plano Municipal de
Educação e suas repercussões no processo de escolarização em São Gonçalo que tem
como objetivo principal analisar como as políticas nacionais direcionadas para a
educação básica estão sendo estabelecida pelas instituições públicas locais e como as
questão relativas ao direito à educação e à cultura estão sendo inseridas por
organizações e/ou movimentos organizados pela sociedade civil do município de São
Gonçalo - RJ. Considerando o plano de trabalho do recorte da pesquisa realizou-se a
cartografia da produção científica dos trabalhos de monografias de TCC no contexto do
Projeto de Iniciação Científica e dissertações de mestrado do PPGEdu – Processos
Formativos e Desigualdades Sociais elaboradas no âmbito da pesquisa em tela, tendo
como recorte temporal o período de 2008 a 2018.
Para tanto, o trabalho tem como objetivo buscar fontes documentais que
evidenciam as políticas educacionais para a modalidade de ensino EJA (Educação de
Jovens e Adultos) com enfoque nas ações governamentais e movimentos sociais
organizados, a partir das quais atualizamos a cartografia das escolas municipais de São
Gonçalo-RJ.
O levantamento e estudo de revisão acerca das pesquisas apresentadas no GT 18
da Associação Nacional de Pesquisa em Pós-Graduação em Educação fez-nos perceber

sumário 1393
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

que as pesquisas, as quais possuem a temática Políticas Públicas voltadas para Educação
de Jovens e Adultos (EJA), são abordadas como estudo de caso em instituições de
ensino da rede pública, ou em análises de dados censitários em áreas de influências
nacional e internacional. Destacamos que as contribuições oferecidas pelas pesquisas
nos revelam a possibilidade de uma avaliação minuciosa de modo a captar pontos
positivos e negativos das políticas educacionais, em seus rebatimentos local, regional e
nacional, a qual proporcionará ampliar o tema da pesquisa em consonância ao contexto
vivenciado.
Desse modo, cabe destacar que o estudo nos permitiu compreender a dinâmica
das relações de forças entre os sujeitos de um lugar e alude sobre os desafios que
envolvem o processo de democratização da EJA e da consolidação do direito à
educação dos sujeitos jovens e adultos que, a despeito deste direito ser reconhecido por
lei, não tem sido respeito no sentido de sua ampliação em quantidade e qualidade que
deveria ser garantido pelo governo local.

Fundamentação teórica-metodológica da pesquisa


Nesse percurso teórico-metodológico foram realizadas as análises quantitativas e
qualitativas dos dados levantados. Para compreendermos acerca dos fenômenos de
poderes no território tem que partir dos pressupostos de que o local não se ressume
apenas em um espaço físico, mas em um conjunto de rede estruturada em torno de
interesses identificáveis. Essa questão faz-nos perguntar acerca do espaço político local,
as competições e os atritos que refletem a memória política local e as diversas
atividades do poder. Sendo assim, Silva (2008, p. 20) definirá o conceito de espaço
como “O local é então, a singularidade com a história e memórias próprias, com
identidades e práticas políticas determinadas”.
Neste sentido, foi utilizado na pesquisa o conceito de Cartografia da Ação
Social, partindo do pressuposto de Ribeiro (2009) que sustenta ser a ação de fácil
entendimento além de possuir representatividade por meio dos movimentos sociais
como os protestos, as reivindicações e manifestações. Desse modo, a autor a acrescenta
que a cartografia da ação social é uma ação portadora de sentidos, de visão de mundo e
de estratégias de artes de fazer que representa também o cotidiano da vida coletiva.
Além desta, a pesquisa foi embasada nas ideias de Alvarenga (2010) que dialoga
a partir das perspectivas de Gramsci (2000) e Bakhtin (2000) pelo fato de

sumário 1394
VII Seminário Vozes da Educação

compreendermos que as políticas educacionais envolvem disputas pela hegemonia de


sentido sobre o direito à educação para jovens e adultos trabalhadores.
A rigor, por se tratar de um estudo sobre política pública educacional, os
municípios constituem-se em lócus privilegiados para analisarmos a efetivação do
direito à educação e dos mecanismos que possam assegurar este direito em toda a sua
plenitude. Vale dizer que as medidas político-pedagógicas pensadas e sistematizadas
pelo poder local precisam convergir para o atendimento deste direito tanto do ponto de
vista da sua universalização quanto do ponto de vista da qualidade com que este direito
será usufruído pela população.
Com efeito, vimos procurando identificar/analisar, à luz de documentos
produzidos e que aludem ao processo de democratização da EJA e da consolidação do
direito à educação das pessoas jovens e adultas, as ações articuladas pelo poder local em
face às metas estabelecidas e germinadas do amplo processo de discussão dos fóruns
identificados com esta luta. Sob condições diversas e desiguais, jovens da classe
trabalhadora que interromperam ou nunca iniciaram o seu percurso escolar nos inquirem
a (re) desenhar uma cartografia para além da teoria do capital humano, uma cartografia
em que o lugar seja o que Santos (1999) compreende como o exercício da dialética, das
contradições entre o vertical e o horizontal o Estado e o mercado.
Decerto que as ações políticas demandadas, pensadas e sistematizadas pelo
poder local precisam convergir para o atendimento do direito à educação, tanto do ponto
de vista da sua universalização quanto do ponto de vista da qualidade com que este
direito será e/ou está sendo usufruído pela população. Autores como Lesbaupin (2002) e
Vainer (2002) nos ajudam alargar os sentidos de poder local como conjunto de forças
produzidas em um determinado território entre governos locais e sociedade civil, cujas
relações de poder e representação política são continuamente engendradas e disputadas
em face às reivindicações e demandas relativas aos direitos e políticas públicas.
Sustentamos na pesquisa que os governos locais dispõem de duas importantes
vantagens comparativas com respeito a seus tutores nacionais. De um lado, gozam de
uma maior capacidade de representação e legitimidade com relação a seus
representados; são agentes institucionais de integração social e cultural de comunidades
territoriais. De outro, gozam de muita flexibilidade, adaptabilidade e capacidade de
manobra em um mundo de fluxos entrelaçados, demandas e ofertas cambiantes e
sistemas tecnológicos descentralizados e interativos.

sumário 1395
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Apesar dos pressupostos democráticos serem recorrentemente reafirmados na


base da descentralização/municipalização estes acabam justificando a transferência de
poder e de competências da esfera central para a esfera local, respaldadas em
orientações neoliberais que, em última instância, objetivam a redução do Estado às suas
funções mínimas. Por se tratar de um estudo sobre direito à educação de jovens e
adultos, os municípios vêm se constituindo em locus privilegiados para analisarmos a
efetivação dos direitos citadinos e dos mecanismos que possam assegurar estes direitos
em toda a sua plenitude.

A produção discente voltada para poder local do projeto (2008-2019)


Os dados da pesquisa demostram que as produções dos discentes priorizam
questões voltadas para o poder local e políticas educacionais, da rede pública de
educação básica, nos diferentes municípios do estado do Rio de Janeiro. Estas
produções aqui referidas são compostas por dissertações de mestrado, pesquisa de
monografias e de iniciação cientifica.
Foram orientadas, neste período (2008-2019), 16 dissertações de mestrado, 15
trabalhos de conclusão de curso e 21 produções de iniciação científica. Por meio das
tabelas a seguir, foi possível explicitar como foram organizados esses trabalhos
acadêmicos.

Tabela 1: Síntese dos temas estudados e modalidades de trabalhos de


período de 2008 a 2019.
Monografias de
Dissertações de Trabalhos de Iniciação
Temas Trabalhos de
Mestrado Científica
Conclusão de Curso
Educação de jovens e
adultos trabalhadores,
poder local, direito à 21 15 20
educação e
movimentos sociais
Fonte: Acervo das produções bibliográficas do projeto. Tabela elaborada pela bolsista.

Guardados os limites deste texto, na tabela 2 relacionamos apenas as


monografias defendidas que resultaram de trabalhos concluídos e defendidos por
bolsistas PIBIC, no contexto do projeto:

sumário 1396
VII Seminário Vozes da Educação

Tabela 2
Trabalho de Iniciação Científica
Aluno Título do Trabalho Ano
Felipe Neuman Movimentos Sociais de Cultura Sociais das 2019
Juventudes em São Gonçalo
Guilherme Figueiredo e Sousa Poder local e educação: a atuação dos 2016
empresários da educação no município de São
Gonçalo/RJ
Felipe Neuman Poder local e políticas educacionais: a atuação 2016
dos movimentos de jovens sobre o direito à
educação em São Gonçalo/RJ
Marcelo de Souza Valente Poder local e direito à educação: cartografando 2015
ações do legislativo municipal em face ao direito
à educação na cidade de São Gonçalo/RJ
Jéssica Gonçalves da Silva O ensino da língua inglesa na educação de jovens 2014
e adultos trabalhadores: uma análise da ?Coleção
Cadernos de EJA? (MEC-2007)
Gabriela Fernandes Santos Alves Contribuições metodológicas do 2013
geoprocessamento para uma cartografia do
direito à educação
Isadora da Silva Marques Poder Local e políticas educacionais: cartografia 2013
do direito à educação
Thamyres Cabral Poder local e direito à educação: cartografia dos 2013
processos comunicacionais
Isadora da Silva Marques Educação de Jovens e Adultos na perspctiva da 2013
Educação Popular: uma leitura no município de
São Gonçalo-RJ
Marcelo Valente de Souza Poder local e políticas educacionais: a atuação do 2012
legislativo em São Gonçalo em face ao direito à
educação
Natália Fraga Coutinho Processos comunicacionais e poder local: 2011
articulações entre movimentos sociais e poder
governamental sobre o direito à educação
Josiane Gomes Cortes Oficinas Pedagógicas na Educação de Jovens e 2011
Adultos em escola de periferia urbana
Marcela Parmanhane Guimarães Educação de Jovens e Adultos: reflexões teórico- 2010
Garcia metodológicas sobre linguagem e o ensino de
Língua Portuguesa
Marcela Parmanhane Guimarães O ensino da Língua Portuguesa na Educação de 2010
Garcia Jovens e Adultos: práticas pedagógicas docentes
em escola pública de São Gonçalo/RJ
Natália Fraga Coutinho Processos comunicacionais e o direito à 2010
educação no bairro Jardim Catarina
Natália Fraga Coutinho Processos Comunicacionais e direito à educação: 2010
o papel dos movimentos sociais em São Gonçalo
Micheli Lanes Meireles Leituras cartográficas sobre o direito ä educação 2010
no município de São Gonçalo
Micheli Lanes Meireles Leituras cartográficas sobre o direito à educação 2009
na cidade de São Gonçalo
Natália Fraga Poder Local e Políticas Educacionais: O Plano 2009
Municipal de Educação e suas repercussões
sobre o direito à educação em São Gonçalo
Tatiana Gonçalves Costa O Plano Municipal de Educação e suas 2008
repercussões sobre o direito à Educação infantil
no município de São Gonçalo
Fonte: Acervo das produções bibliográficas do projeto. Tabela elaborada pela bolsista.

sumário 1397
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Nesse contexto, percebe-se que os trabalhos acadêmicos produzidos pelos


alunos, que se referem às políticas educacionais originados do Grupo Vozes têm sido
voltados para a ampliação do conhecimento e aumento da investigação cientifica sobre
a educação pública no município de São Gonçalo - RJ. Vale mencionar que para isso foi
necessário investir nessa pesquisa com o objetivo de investigar diferentes programas e
projetos do governo, além dos trabalhos elaborados por discentes do curso superior.

Plano Municipal de Educação e Ensino de EJA: Atualizando o banco de dados em


cartografias
O Plano Municipal de Educação e Ensino de EJA, aprovado no ano de 2015,
foca na abertura de novas escolas com a modalidade de ensino para Jovens e adultos.
Contudo o que pode ser concluído através da pesquisa foi a diminuição no quantitativo
de unidade escolar com oferta para EJA.
As análises realizadas no ano de 2011 apontam a existência de 30 unidades
escolares com oferta para EJA. Em 2012 esse número é reduzido para 28 escolas. Em
2013 esse número decresce e atinge 22 unidades. No entanto, entre o ano de 2015 e
2017 esse número permanece estagnado com um quantitativo de apenas 19 escolas que
oferecem a modalidade EJA em todo o município de São Gonçalo. Conforme ilustrado
nos mapas a seguir:

Figura 1: Representação da quantidade de escolas com oferta EJA no Município de São


Gonçalo em 2011.

Fonte: www.saogoncalo.rj.gov.br. Mapa elaborado no âmbito do projeto de pesquisa

sumário 1398
VII Seminário Vozes da Educação

Observa-se as 33 unidades escolares que oferecem a modalidade de ensino para


jovens e adultos divididas pelo município.
O mapa a seguir mostrará como se apresenta esse quantitativo nos anos de 2015
a 2017:

Figura 2: Representação do quantitativo de escolas com oferta EJA no Município de


São Gonçalo – RJ nos anos de 2015 a 2017.

Fonte: Mapa elaborado no âmbito da pesquisa.

O PME/SG está inserido em um contexto pelo qual há uma profunda


descentralização referente ao profundo processo de municipalização dos setores
educacionais do Estado brasileiro. Nesse sentido, foi traçado como objetivo deste
trabalho monográfico verificar diante de suas diretrizes como a juventude do Município
de São Gonçalo é retratada bem como que políticas públicas devem ser atribuídas para
esse seguimento social para os próximos anos.
Muito tem se debatido nos últimos anos, sobretudo com o avanço de forças
conservadores sobre os espaços de tomada de decisão nas mais diferentes escalas
federativas, a inserção ou não nos respectivos planos de educação da temática racial e
bem como, e provavelmente a mais polêmica, a discussão de gênero. Evidentemente as
duas questões somadas fazem parte da extensa lista de encontros e descobertas para
nossos jovens, tornando-se assim temas fundamentais para elaborações de políticas
públicas que tenham a juventude como público para as quais as políticas se dirigem.

sumário 1399
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Porém mediante ao processo de elaboração do Plano Municipal de Educação,


seguindo até mesmo uma tendência multiescalar, tais temáticas foram deixadas de lado
ou foram superficialmente citadas, de maneira que se torna muito problemática o
surgimento de políticas públicas que visam atender as necessidades nessas questões. Os
trechos a seguir foram totalmente ou parcialmente cortados do texto final que compõe o
plano.

Desenvolver políticas públicas, em parceria com a Secretaria de Assistência


Social e Direitos Humanos, voltadas para a Educação das Relações Humanas
e promoção da redução das desigualdades de gênero, classe, raça, etnia,
geração, orientação sexual e deficiência, pautando-se pelo princípio da
equidade e igualdade social, a fim de promover um desenvolvimento
sustentado e comprometido com a justiça social. (PME, 2015)
Elevar Garantir a escolaridade média da população de 18 (dezoito) anos a 29
(vinte e nove) , de modo a alcançar, no mínimo, 12 (doze) anos de estudo ao
longo da vigência deste Plano, para as populações das regiões de menor
escolaridade no município e igualar a escolaridade média entre todos. negros,
não negros e indígenas declarados à Fundação Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE. (PME, 2015)

Constitui-se assim, portanto uma enorme contradição perante a própria realidade


do município, as tabelas abaixo demonstram o número de matrículas de EJA dividida
por seco e Cor/Raça em um levantamento realizado pelo INEP nos de 2016 e 2017
respectivamente.

Número de Matriculas na EJA – São Gonçalo - Ano de 2016


Tabela 1: Número de matrículas na EJA

Fonte: INEP

Tabela 1Número de Matriculas na EJA – São Gonçalo - Ano de 2017

Fonte: INEP

sumário 1400
VII Seminário Vozes da Educação

Verifica-se que em ambos os anos que há uma enorme diversidade em diferentes


clivagens dos estudantes matriculados no EJA no município, o que torna muito
preocupante a maneira pela qual o poder público lida com tal realidade, ignorando
assim a demanda e diversidade dos sujeitos da EJA, entendendo-a como a expressão do
direito à educação como direito humano, uma vez que repõe o direito negado às
populações que não tiveram acesso ou não concluíram a educação básica durante a
infância e a adolescência.
Nesse sentido, o PME apresenta diretrizes que dizem respeito a EJA nas metas
8, 9 e 10 como estão destacadas abaixo:

Meta 8: Garantir a permanência e escolaridade da população acima de 15


(quinze) anos de forma universal. Igualando a escolarização entre os
diferentes grupos étnicos e minorias. Garantir a escolaridade média da
população, de modo a alcançar, no mínimo, 12 (doze) anos de estudo ao
longo da vigência deste Plano, e igualar a escolaridade média entre todos.
(PME, 2015)

Meta 9: Garantir o aumento da taxa de alfabetização da população com 15


(quinze) anos ou mais para 80% (oitenta por cento) até o final da vigência
deste PME, erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir em 70% (setenta por
cento) a taxa de analfabetismo funcional. Assegurar o ingresso, a
permanência e conclusão do curso da população a partir de 15 anos na
Educação de Jovens e Adultos. (PME, 2015)

Meta 10: Oferecer e garantir, no mínimo 25% (vinte e cinco por cento) das
matrículas ofertadas pelo Município para a Educação de Jovens e Adultos,
sendo 30% (trinta por cento) oferecidas para educação profissional, na forma
concomitante ou subsequente. Este percentual deverá ser alcançado nos
primeiros cinco anos, garantindo a sua manutenção nos 5 (cinco) anos
restantes. Garantir a sistematização e a implantação da Educação para o
Desenvolvimento Sustentável em todo o território do Município de São
Gonçalo. (PME, 2015)

É notório que a Educação de Jovens e Adultos é parte estruturante de um direito


que se flexibiliza de acordo com relações e tensões sociais produzidas no espaço,
estabelecendo assim novas demandas a serem contempladas por políticas públicas para
jovens e adultos trabalhadores.

Conclusões provisórias
O trabalho teve como objetivo principal construir uma cartografia da produção
científica no âmbito do projeto com vista às análises sobre as ações do poder local
cotejadas à luz das metas do Plano Municipal de Educação (PME/SG).

sumário 1401
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A análise dos trabalhos acadêmicos evidencia que no período recortado, o


projeto contribuiu para uma produção significativa de trabalhos acadêmicos, publicação
bibliográfica com desdobramentos para a formação de jovens pesquisadores para o
campo das políticas públicas em seu enlace com os dilemas que envolvem o direito à
educação, em particular, para jovens e adultos trabalhadores. Desse modo, as pesquisas
analisadas permitiram elaborar cartografias de ação movimentada pelos sujeitos em
dinâmicas de relações de força, disputas de interesse em torno das políticas
educacionais.
Sendo necessário pesquisar/interrogar sobre a produção da dinâmica da oferta
que ora se expande ora se retrai nos bairros com escolas púbicas pertencentes à rede
municipal, observa-se ainda uma concentração de unidades escolares municipais que
ofertam a EJA na porção central do município de São Gonçalo, com no máximo uma a
duas escolas. Os bairros fronteiriços com os municípios de Niterói e Itaboraí, em sua
grande maioria, não apresentam oferta de EJA pelo poder público municipal.
A educação como direito público subjetivo parece incursionar na condição
abstrata, ou seja, a universalização de um direito que envolve uma forma jurídica que
gradualmente se autonomiza de sua raiz social concreta. Tal forma jurídica pode, assim,
expandir-se para recobrir relações sociais cada vez mais distantes de seu âmbito
original, num processo muito similar àquele da forma mercadoria que, uma vez
universalizada, também ganha autonomia progressiva e passa a recobrir objetos que não
tiveram origem no trabalho humano.
A universalização da educação básica não tem sido priorizada pelo Estado
brasileiro. Ao contrário, os governos – federal, estaduais e municipais – seguem
enfrentando a situação educacional do país de modo parcial, a partir de programas de
governo. No caso da EJA, a sua vinculação às frações empobrecidas da classe
trabalhadora explica a sua tradição histórica de ações paralelas ao sistema de ensino, de
ser alvo de iniciativas aligeiradas – com conteúdo pedagógico circunscrito ao mercado
de trabalho – e secundarizada na política educacional. Além disso, apresenta a
descontinuidade como a marca da política para a EJA.
Sobre essa análise, podemos imaginar que a redução da oferta de EJA não se
prende, necessariamente, ao sentido do direito como móvel da igualdade, mas à relação
social jurídica anterior a esse direito. Jovens e adultos trabalhadores, quando buscam
ampliar a sua escolarização, visam (re)posicionar-se no mundo do trabalho em
condições melhores para que vivam a vida com dignidade.

sumário 1402
VII Seminário Vozes da Educação

Através da contribuição dos estudos aqui apresentados, podemos inferir que a


crescente demanda e a redução da oferta de EJA, sob a dinâmica das relações de
produção do capitalismo, necessitam de todo o espaço social, isto é, do espaço como
totalidade e não apenas do local onde a classe trabalhadora vende sua força de trabalho
e/ou se reproduz. No entanto, é também fundamental levar em conta a dinâmica
socioespacial dos lugares nas análises empreendidas sobre demanda e oferta por EJA.
O que nos parece, entretanto, é que em um contexto de alto índice de
desemprego, como vemos hoje no Brasil, o direito à educação, muito embora não esteja
inscrito imediatamente nas relações de trocas mercantis, tem identificação com o
Estado, que deve cumprir o dever de provê-lo dentro do ramo do direito público. Nesse
contexto, é preciso testarmos hipóteses sobre quais vetores estariam determinando a
redução da oferta da EJA em municípios de periferias urbanas, como é o caso da cidade
de São Gonçalo.

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EGLER(orgs.). Otros desatolo urbano: cuidad incluyente, justicia social y gestem
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Plano Municipal de Educação de São Gonçalo. Educação de Jovens Adultos:2015.


Disponível em: http://www.saogoncalo.rj.gov.br/diario/2015_12_08.pdf. Acessado em:
20 de agosto de 2018.

SANTOS, Milton. O espaço do Cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.

sumário 1403
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

DIRETO À EDUCAÇÃO NO ENFRENTAMENTO DAS DESIGUALDADES:


TECENDO CAMINHOS PARA ORGANIZAÇÃO ESCOLAR EM CICLOS NA
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Regina Aparecida Correia Trindade


UERJ FFP
ginatrindade@gmail.com

Introdução
Pensar a Educação de Jovens e Adultos (EJA) é compreendê-la como resultado
de um processo histórico de desigualdades no seio da sociedade brasileira. É
compreendê-la como fruto de uma lógica capitalista de exploração e mais valia. É
compreender a necessidade de (re) assumirmos a discussão e defendermos a Educação
Pública, gratuita, laica e de qualidade humana e formativa para os sujeitos sociais,
sobretudo os das camadas populares. É refletirmos sobre qual tipo de escola estamos
construindo para formar que tipos de sujeitos? Para que tipo de sociedade? Tais
questionamentos nos orientam para a necessária (re) invenção da educação para a
construção efetiva de uma superação do modelo tradicional de ensino, por compreender
que este modelo de educação (regulado pela lógica mercadológica da educação) nunca
foi capaz de atender de fato às necessidades de uma educação conscientizadora,
emancipatória, crítica para os estudantes, sobretudo os das camadas populares,
considerando que estes são historicamente subjulgados e explorados por uma sociedade
capitalista desigual e dual.
Neste sentido, este trabalho busca dialogar com a construção de uma escola
organizada em ciclos para os estudantes da modalidade da Educação de Jovens e
Adultos, refletindo sobre algumas constituições históricas, compreendendo a herança de
uma visão pejorativa sobre estes sujeitos e sobre educação destinada a eles. A proposta
deste trabalho é trazer uma reflexão acerca dos processos de organização da
escolaridade na EJA em ciclos e das possibilidades de rompimento com as práticas
naturalizadas e tradicionais que refletem um olhar para esta modalidade apenas como
um espaço de compensação e correção de fluxo escolar. Diante disto, o recorte deste

sumário 1404
VII Seminário Vozes da Educação

trabalho se dará na reflexão sobre a organização da escolaridade da Educação de Jovens


e Adultos do Ensino Fundamental - compreendida do 1º ao 9º ano de escolaridade.
Este trabalho é um desdobramento da pesquisa realizada no âmbito do Mestrado
Acadêmico 185 , realizado na UNIRIO, sobre a análise documental dos ciclos na
Educação de Jovens e Adultos, onde foi possível debruçar sobre como a questão da (re)
implementação da organização da escolaridade em ciclos foi se organizando nesta
modalidade de ensino, mais especificamente no ensino fundamental, compreendendo as
perspectivas de agrupamento e reagrupamentos escolares, considerando que, em alguns
casos, um ano escolar na EJA corresponde a dois anos escolares no ensino fundamental
regular, compreendendo as possibilidades de flexibilização da organização escolar
permitida pela mudança de um paradigma tradicional de ensino para um paradigma
mais democrático de ensino: os Ciclos.
Considerando ainda algumas questões contemporâneas que estamos
atravessando no que tange à discussão da Educação Pública enquanto direito, e alvo de
inúmeros ataques, este trabalho busca trazer algumas possibilidades de diálogos no
sentido da defesa e da reafirmação do espaço do Direito à Educação para a modalidade
da EJA, historicamente marginalizada a partir de uma perspectiva que, em geral,
condiciona(va) a justificativa do ensino formal para esta modalidade ao entendimento
de haver ainda sujeitos sociais jovens, adultos e idosos, com necessidade de
alfabetização / escolarização.
Não podemos deixar de ressaltar a necessidade de defesa pela Educação Pública
em virtude de tantos ataques oriundos de um levante conservador e a defesa da
autonomia pedagógica do professor como educador, formador, profissional e sujeito do
seu fazer em sua dimensão individual e nos espaços de formação coletivo.
Desta forma, compreender a discussão sobre a organização de escolaridade em
ciclos para a EJA, modalidade esta oriunda de um processo de desigualdade social e
educacional é compreender que estamos dialogando com uma perspectiva mais humana,
plural, que flexibiliza os tempos e espaços escolares, que promove uma possibilidade de
trânsito entre estes estudantes e os saberes que os formam e os que transitam entre os
acontecimentos do cotidiano escolar. Consideramos que a perspectiva de uma

185
Utilizo neste estudo a 3º pessoa propositalmente. Muito embora, a apropriação dos conhecimentos
tenha se dado no âmbito individual, opto por trazer implícito na minha fala a construção feita em um
trajeto de aprendizagens e trocas que se deu também no coletivo. Neste trabalho em especial eu ressalto a
importância do coletivo para a reconstrução da escola, buscando a superação dos pressupostos
tradicionais, desta forma, emprego o coletivo em minha voz, para representar aqui este coletivo como
força em meu processo formativo.

sumário 1405
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

organização escolar que busque superar a naturalização e a reprodução históricas de


práticas tradicionalizantes do ensino nos instrumentalizam a promover discussões, ações
que nos possibilitem a enfrentar a necessária (re) construção da escola e do diálogo com
seus sujeitos e com a comunidade em seu entorno.

Perspectiva Metodológica
Amparados na perspectiva de pesquisa qualitativa trazida por Minayo (2013),
compreendemos o método como uma escolha do pesquisador, que apresenta como
função fundamental tornar plausível a abordagem da realidade, a partir das perguntas
lançadas pelo próprio pesquisador.

Entrelaçando sentidos: a viabilidade dos ciclos na organização de escolaridade da


EJA
É possível perceber, no âmbito das pesquisas de campo da EJA, uma defesa pelo
direito à Educação, historicamente marginalizado nesta modalidade em detrimento de
outras modalidades de ensino no que se refere a alguns aspectos, entre eles a questão do
investimento e repasse de verbas. Também se faz recorrente a percepção, nos espaços
sociais, políticos e até mesmo educativo, do entendimento de que a Educação de Jovens
e Adultos só existe em virtude de ainda existirem jovens e adultos em processo de
escolarização básica e/ou alfabetização. Ao contrário, também se faz presente nas
discussões do campo uma perspectiva intitulada educação ao longo da vida 186
(HADDAD, 2009; DINIZ, 2011), conceito que compreende a educação, para além da
escolarização sistematizada, contemplando a permanência de processos educativos e
formativos ao longo da vida. O que nos interessa destacar nesta perspectiva é a
possibilidade de ampliação da percepção do direito ao aprendizado ao longo da vida,
onde a condição de aprender é inerente à própria natureza humana, como nos afirmou
Freire (2003).
A promulgação da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (LDB) nº
9394 de 1996 trouxe para a Educação de Jovens e Adultos o status de modalidade de
ensino, garantindo por lei a organização da escolaridade pública, gratuita, e com esta

186
Diferentes autores se apropriam do conceito dando a ele outras nomenclaturas, tais como Educação e
aprendizagem ao longo da vida (DINIZ, 2011); educação continuada e ao longo da vida (HADDAD,
2009). No entanto, embora possuam semelhanças, foi decidido dar ao tópico a nomenclatura herdada da
Declaração de Hamburgo sobre Educação de Adultos, elaborada na V CONFINTEA, em julho de 1997, e
publicada em 1998 pela UNESCO.

sumário 1406
VII Seminário Vozes da Educação

inclusão, a oferta do ensino formal, que passa a ser regularizada em instituições,


sobretudo em horário noturno, pois o perfil dos estudantes desta modalidade era
composto, em grande parte neste momento, por estudantes trabalhadores e adultos.
Contudo, este perfil tem sofrido alterações desde que a LDB 9394/1996 alterou a idade
para ingresso no primeiro segmento do ensino de jovens e adultos de 17 para 15 anos
completos. Esta mudança tem gerado um movimento chamado de juvenilização
(SCHNEIDER; FONSECA, 2010) na Educação de Jovens e Adultos, onde o ingresso e
a composição das turmas pelos jovens têm aumentado nas salas de aula da EJA,
inclusive viabilizando a abertura de algumas turmas da EJA no diurno. Jovens que,
muitas vezes são oriundos do próprio ensino regular, sem que tenha havido de fato
alguma interrupção ou afastamento dos estudos. São diversas as razões que levam os
jovens a comporem os bancos da EJA, podemos indicar algumas, sem que haja a
intenção de esgotar aqui este assunto: como as de ordem econômica, e outras
representando os processos de retenção deste estudante dentro do próprio sistema
escolar.
Coexiste ainda, no cenário social e educativo, a perspectiva de que a EJA
representa um espaço de compensação, um espaço que visa preencher com o que falta
com o que o aluno não sabe. Este lugar de “não saber” está presente em uma perspectiva
de ensino tradicional, na educação bancária (FREIRE, 2005), onde é na instituição
escolar, no professor, na seleção curricular prévia e sem a participação do/a estudante
sujeito que estão os saberes validados socialmente.
Podemos destacar também que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional nº 5692 de 1971, deliberada no contexto brasileiro em período ditatorial, civil
e militar, trazendo uma perspectiva da educação para pessoas adultas como um processo
“supletivo”, do ensino como “suplência” possibilitando um processo formativo à
distância, em massa, sem interação, aligeirado, certificador. Esta percepção de educação
em massa se deu em consonância com um projeto social que visava à ampliação dos
conhecimentos mínimos para este grupo social, uma vez que os índices de
“analfabetismo” eram considerados, pela classe dominante, um óbice ao
desenvolvimento industrial e tecnológico desejável e em curso do país.
Historicamente a EJA vem se constituindo um espaço de atuação trazendo uma
discussão do campo fortalecida no que tange a necessidade de construir novas
perspectivas educacionais, entre elas a compreensão da participação do/a estudante
neste contexto, onde esta participação deste estudante se pauta em uma percepção

sumário 1407
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

oposta à ideia da educação bancária. Este/a estudante é percebido/a como um sujeito


social, do qual traz em sua trajetória experiências de vidas diferenciadas, marcas do
processo de escolarização, muitas vezes rotulado por este estudante como fracasso,
marcas de uma percepção de mundo, do seu lugar neste mundo e de suas experiências
de vida e sobrevivência, além de perspectivas futuras, gatilhos que muitas vezes os
levam a retornar aos espaços escolares.
Nesta perspectiva, o sujeito/estudante deixa de ser alguém que “não sabe” para
passar a ser percebido como alguém que traz diferentes conhecimentos que podem ser
ressignificados nas relações de construção de conhecimento nos espaços escolares.
Diante desta perspectiva, que desloca o lugar do estudante como alguém que não tem
conhecimento para o de alguém que traz em suas vivências conhecimentos múltiplos, os
educadores têm buscado refletir sobre as práticas educativas para esta modalidade de
ensino, e nestas reflexões, as questões curriculares ganham destaque, onde se faz
significativo destacar a importância das atividades, das ações curriculares serem
construídas a partir de uma relação significativa com os estudantes, com o perfil da
turma, e não mais reproduzidas tal como eram empregadas em turmas do ensino
fundamental regular, reaproveitando tais atividades para as turmas de alfabetização para
a EJA.
Faz-se necessário destacar que esta prática de elaborar, ou reaproveitar
atividades de alfabetização, por exemplo, com a mesma lógica de pensamento
infantilizado utilizado para crianças em processo de alfabetização, está associada a uma
visão que alguns educadores tinham dos processos de alfabetização dos estudantes de
EJA. Diz muito também do contexto e das discussões compartilhadas à época, e esta
ausência de percepção e de discussão difundida sobre o cotidiano da EJA faz parte de
um processo construído de marginalização/exclusão da EJA, ou do entendimento, como
já mencionado acima, de que basta um mínimo de conhecimento para que os interesses
hegemônicos de exploração capitalista possam se perpetuar e que cada sujeito continue
a ocupar seu lugar nessa dinâmica complexa e excludente.
Desta forma, por tudo que foi exposto a organização da escolaridade em ciclos
na EJA se faz uma alternativa com grandes possibilidades emancipatórias, pois permite,
por meio de seus pressupostos, romper com a lógica do ensino tradicional, fragmentado,
dicotômico, alienante, com a lógica do professor como centro do processo educativo,
com a lógica de um ensino previamente definido, planejado a priori, onde o professor é
um mero executor e o estudante um mero receptor.

sumário 1408
VII Seminário Vozes da Educação

Nesta forma tradicional de pensar a educação, o estudante de EJA não é visto em


suas potencialidades, pois não há espaço na escola de pressupostos tradicionais para esta
percepção. Nesta escola, as relações educativas estão centradas em um saber definido
muitas vezes pelos órgãos normativos, de cima pra baixo, e o aluno é percebido em seu
“fracasso”, isto é, como alguém que interrompeu os estudos ou abandonou, e por esta
razão tem um “déficit” enorme com relação ao estudante do ensino regular. Estabelece-
se assim, nesta lógica, o “lugar” dos estudantes no processo educacional, mas não
somente, se define concomitante o lugar dos estudantes no processo social também,
afinal, é como se fosse um “favor” do Estado em oferecer por meio das instituições
escolares merenda, uniforme, passagens gratuitas nos transportes públicos para estes
estudantes, livros didáticos, de forma a amenizar o abismo de conhecimentos (validados
pelas instituições escolares) e o “lugar” onde eles pretendem chegar com a
escolarização.
Outro aspecto que se faz necessário destacar é a questão do agrupamento destes
estudantes nas turmas da EJA. Em geral, segue-se uma ordenação gradual na alocação
deste aluno na turma, quando este estudante traz algum registro oficial de sua vida
escolar que dê um panorama de até onde estudou. Em caso de estudantes sem esse
registro é feito uma avaliação de conhecimentos curriculares. Ocorre que nestas
classificações, dentro de uma perspectiva de orientação tradicional, não se dimensionam
outros aspectos sociais, culturais, regionais, grupos de interesse, tais como a juventude,
a idade adulta e idosos, aspectos estes que ultrapassam os muros da escola, e na
perspectiva tradicional este muro é bem marcado com a questão da separação entre
saberes populares e o saber escolarizado, validado e reproduzido pelas instituições
sociais.
A escola organizada em ciclos permite outra perspectiva de pensar a organização
da escolaridade, buscando superar as práticas excludentes alicerçadas em pressupostos
fragmentados presentes na escola tradicional.
Diante disto, buscaremos a seguir, elucidar, com base em alguns pontos
convergentes desta reorganização curricular, algumas características inerentes a
organização da escolaridade da EJA em ciclos:

A organização escolar em ciclos na EJA: alguns aspectos


O que se pretende neste trecho é trazer alguns tópicos, sem a intenção de esgotar
aqui a discussão, ou delimitar fronteiras entre eles, que consideramos relevantes quando

sumário 1409
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pensamos a reorganização da escolaridade em ciclos, a saber: o planejamento; a questão


do currículo e suas tensões e interseções, os agrupamentos e reagrupamentos escolares
dentro da perspectiva da flexibilização dos tempos e espaços escolares.

Planejar em ciclos
Vamos iniciar este tema com uma pergunta: o que é planejar? Imagino que as
possibilidades de entendimento estejam associadas à construção de um percurso, de um
trajeto, considerando onde estamos e para onde queremos ir com determinada ação. Eu
posso planejar as ações do dia, do mês, do ano. Posso planejar uma festa, e também
posso planejar as ações didático/pedagógicas para o meu fazer educacional.
Com relação especificamente a questão do fazer educacional, precisamos refletir
sobre a relação entre o planejamento e a própria função social da escola, uma vez que o
planejamento das ações cotidianas (micro) em salas de aula deveria estar entrelaçado
com uma proposta de educação (macro), onde o envolvimento de todos com a
percepção do percurso e de onde se almeja chegar deveria ser um objetivo claro para
todos.
Consideramos relevante destacar aqui que não se trata de pensar este
planejamento como uma série de etapas a serem cumpridas, hierarquicamente
ordenadas, fragmentadas nas ações cotidianas. Não significa ainda defender que não
seja possível retornar ao ponto anterior, reformular o trajeto e as escolhas feitas, se esta
for uma necessidade percebida no coletivo a partir do processo avaliativo do
planejamento em execução. Fetzner (2007) alerta que:

A seriação foi o regime escolar predominante, com características


organizacionais que podem ser resumidas, como dissociação entre quem
planeja e quem executa, entre quem pesquisa e quem ensina, entre quem
ensina e quem aprende, entre quem aprende e quem não aprende. (p. 83-84)

Contudo, um elemento que merece destaque é o entendimento de que na escola


organizada em ciclos o planejamento não é um ato individualizante, embora ele tenha a
dimensão individual, pois estamos falando de diferentes indivíduos entendendo,
participando do processo em construção, que não está dado, precisa ser trilhado, mas
esta ação deve ser entendida e praticada como uma ação coletiva. Sim, coletiva e é esse
destaque que gostaríamos de acentuar.

sumário 1410
VII Seminário Vozes da Educação

Quando pensamos na dimensão coletiva do planejamento das ações pedagógicas,


o foco deixa de ser o individualizado, fragmentado, para se pensar onde “nós” queremos
chegar? Nós que podem ser dimensionados dentro da perspectiva não somente dos
professores/educadores, mas com vozes ecoantes dos/nos alunos, comunidade,
funcionários terceirizados das instituições. Quando pensamos no planejamento coletivo
se faz inerente à percepção de que neste planejamento precisa existir a troca, o
compartilhamento entre os sujeitos, a discussão sobre os rumos, sobre os papéis sociais
desta escola. Implica refletir também sobre o lugar onde esta escola está inserida e o
lugar que ela ocupa nesta dimensão, que não é somente geográfica, mas também
formativa. Implica pensar os sujeitos que a compõe e as relações entre eles, e implica
criar espaços garantidos onde estes sujeitos possam se relacionar, espaços previstos
institucionalmente onde possam existir estes momentos de formação e de efetivo
planejamento.
Desta forma, o entendimento deste planejamento vai muito além de um
momento semanal, quinzenal, onde os professores se encontram para trocar matrizes de
atividades prontas, para falar do desempenho baixo de algum estudante, a ideia deste
planejar é construir juntos propostas educativas e pedagógicas que sejam significativas
com a comunidade onde a escola esteja inserida, e que possam ser também instrumentos
de emancipação dos estudantes, sujeitos envolvidos no processo de formação.
E é neste espaço que um dos tópicos elencados anteriormente vem à tona nas
discussões sobre planejar, exatamente por ser inerente ao planejamento pedagógico, a
saber: a definição das matrizes curriculares que serão abordadas nas salas de aula.

A perspectiva de currículo em ciclos


Quando pensamos no currículo precisamos ter clareza da existência de diferentes
matrizes que muitas vezes coexistem em um espaço escolar. Coexistem no sentido de
estarmos a todo o momento construindo uma percepção de um outro currículo que nos
permita desenvolver “conhecimentos outros” que os elencados pela matriz tradicional.

[...] a EJA é entendida como processo de desenvolvimento cultural, ou seja,


um processo educativo que se dá em uma relação cultural. Nessa educação,
os sujeitos são sujeitos de interpretação; os objetos de saber são os discursos
orais e escritos, os materiais culturais em geral. Entende-se que a EJA, no
plano epistemológico, requer movimentos investigativos sobre os processos
de construção de saberes; no plano pedagógico, requer necessidades

sumário 1411
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

metodológicas singulares: sujeitos sociais e culturais discentes e docentes


convidados ao diálogo cultural, incitados, interpelados pelos diferentes
saberes, saberes produzidos e conhecidos nas diferentes práticas sociais e
culturais. (CARVALHO, 2012, p. 2).

Pensar na formação da identidade dos sujeitos, plurais e múltiplos, isto é pensar


o próprio cotidiano dos estudantes da EJA implica pensar em uma história diferente da
perpetuada pela hegemonia civilizatória. Implica problematizar a relação hierarquizada
que historicamente atribuímos a algumas culturas, sobretudo a europeia, em detrimento
das culturas indígenas, afro-brasileiras, nordestinas, entre outras. E se observarmos bem,
os sujeitos frequentadores da EJA são em sua maioria originário destes grupos
identitários historicamente excluídos das matrizes curriculares. A questão que se coloca
então é que o “pertencimento” a estes grupos não se dá de forma descontextualizada dos
processos históricos e sociais ao longo de algumas décadas e que não é por acaso que
existe esta identificação na prática, ou seja, dito com outras palavras: não é à toa que os
estudantes de EJA compõem estes grupos historicamente excluídos. E ter clareza desta
dimensão é ter a consciência de que é possível assumir o leme e dar a educação outros
rumos, mais humanos, justos, formativos e emancipatórios, sendo estes pressupostos
fundantes da escola em ciclos.
Outro aspecto relevante quando discutimos a matriz curricular da instituição é a
questão das fronteiras instituídas entre as disciplinas. Disciplinas estas que foram
pensadas em outro contexto social, que nasceram no bojo de outra sociedade, onde a
perspectiva da educação era de fato tradicional e fragmentada. A escola formava outro
tipo de sujeito para outro tipo de sociedade. Com o legado que temos hoje no que se
refere às críticas a este modelo de escola e as discussões acerca de seus conteúdos,
precisamos pensar, na práxis, estratégias que rompam com essas barreiras, com estes
limites instituídos. Precisamos construir de fato transversalidades entre esses “lugares
limites” pré-estabelecidos e enraizados entre as disciplinas. Para pensarmos em um
exemplo, podemos trazer o tema da colonização, que não deve ser entendida como um
conteúdo exclusivo da História ou geografia, pois quando pensamos no papel social da
escola no processo formativo da identidade deste estudante, já que quando falamos da
colonização e criamos espaços para discutir este processo sobre a ótica do “colonizado”,
das estratégias de resistência e coletividade, da possibilidade de construção de outra
percepção do processo histórico contado em geral pela ótica do “herói” do europeu,
estamos possibilitando uma educação conscietizadora e potencialmente emancipatória.

sumário 1412
VII Seminário Vozes da Educação

Com esta mudança de percepção, este estudante, pode descortinar, desnaturalizar o


entendimento do seu lugar na constituição da sociedade capitalista e dos instrumentos
exploratórios, por exemplo. Sem dúvida, não temos como prever ou mensurar a
dimensão processual nos ambitos individuais e coletivos dos estudantes, mas este
processo se faz um caminhar fundamental para se pensar a “seleção” dos currículos para
a EJA em seus tensionamentos e disputas.
Desta forma, o que estamos salientando aqui é a percepção dos atravessamentos
que algumas temáticas provocam e nas possibilidades destes atravessamentos se
constituírem como conhecimentos interdisciplinares e transdisciplinares, rompendo as
fronteiras que fragmentam os conhecimentos inerentes a cada disciplina e as
fragmentam neste processo de separação/disciplinarização.
Pensar a formação de um currículo emancipatório para a EJA é buscar perceber
em seu cotidiano as demandas, as tensões, as pluralidades e diversidades, as formas por
vezes engessadas, que este estudante traz sobre a escola e sobre si próprio neste
processo de construção do conhecimento, e que muitas vezes se auto declara no lugar do
não saber. É preciso buscar romper esta lógica, selecionando conhecimentos que sejam
significativos a este estudante, é fundamental, sobretudo, escutar este estudante, e ter a
autonomia profissional e a troca coletiva para buscar reinventar caminhos formas de
tornar o conhecimento para este/a jovem, adulto/a, idoso/a circular, transversalizado,
inundado de sentidos e promotor de emancipações.

O reagrupamento e a dimensão dos tempos e espaços escolares na EJA


Quando pensamos na forma como o currículo tradicional está organizado, na
fragmentação e dicotomização entre as disciplinas e o isolamento dos professores dentro
de suas “especialidades”, e muitas vezes reflexo de uma formação que este professor
teve em seus cursos de licenciatura que podem não ter promovido o diálogo entre
diferentes saberes, pensamos no desafio que é repensar os tempos e espaços escolares
sob a ótica do reagrupamento.
O ciclo é compreendido por Barreto e Mitrulis como:

Os ciclos compreendem períodos de escolarização que ultrapassam as séries


anuais, organizados em blocos cuja duração varia, podendo atingir até a
totalidade de anos prevista para um determinado nível de ensino. Eles
representam uma tentativa de superar a excessiva fragmentação do currículo
que decorre do regime seriado durante o processo de escolarização. A
ordenação do tempo escolar se faz em torno de unidades maiores e mais

sumário 1413
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

flexíveis, de forma a favorecer o trabalho com clientelas de diferentes


procedências e estilos de aprendizagem (2003, p. 70).

Como podemos perceber a proposta dos períodos de escolarização em ciclos


busca superar a ordenação fragmentada no ensino tradicional e inserir uma reflexão
pautada na própria organização da escolaridade, antes já definida de cima pra baixo
onde o professor era um mero executor, e agora, este professor deve ser o sujeito deste
fazer coletivo.
Nesta mudança de paradigmas, a questão dos tempos e espaços escolares assume
nova dimensão. Se antes era rigorosamente definido e aceito com a duração de 1 ano
escolar, onde o estudante ao término deste ano saberia se “passou de ano ou não” na
organização em ciclos esta dimensão é ampliada. A “reprovação” não acontece mais ao
término de cada ano escolar, e sim, dependendo do tipo de ciclos 187 adotado e
implementado ao término de um período, onde é preciso considerar também uma
mudança na perspectiva de acompanhamento e avaliação do desenvolvimento deste
estudante, desenvolvimento este que não deve ser mais centrado especificamente na
questão do cognitivo, mas sim ampliado para inter-relações com aspectos sociais,
culturais, entre outros.
Desta forma, o tempo de aprender nos ciclos é outro, está baseado em outra
perspectiva e orientação em detrimento do ensino tradicional, e isso precisa estar claro
para todos. Não se trata de avaliar apenas ao término do processo, mas sim durante o
processo, com mediações, interlocuções e construções e (re)planejamentos no caminhar.
Por esta razão, não se tem como ter uma receita de bolo pronta, não se tem como utilizar
atividades preparadas para o ensino regular na EJA, não se tem como usar
exclusivamente o livro didático ou cópia do quadro, atividades estas sem sentido algum
para este estudante. Não se trata mais de ser apenas um executor da ação educativa já
pronta, mas sim do exercício e desafio de constante (re)criação, do pensar coletivo, das
trocas com os sujeitos envolvidos.
Os espaços também ganham nova configuração, espaços da sala de aula, espaços
dos limites das disciplinas isoladas, espaços e lugares escolares como um todo, podem,
na organização em ciclos, serem redefinidos. O estudante não precisa ficar agrupado em
uma mesma turma como no ensino tradicional cuja ênfase para este agrupamento é
exclusivamente a questão cognitiva. Os espaços de trânsito deste aluno são ampliados,

187
As possibilidades de organização da escolaridade podem ocorrer por meio dos: ciclos de alfabetização;
ciclos de aprendizagem; e os ciclos de formação (FETZNER, 2007, p. 2).

sumário 1414
VII Seminário Vozes da Educação

ele ganha maior flexibilidade para ser reagrupado em outros grupos com base em uma
avaliação que pode considerar aspectos múltiplos, desde os cognitivos, mas também aos
culturais, afetivos, geracionais, entre outros. Pois é preciso não perder de vista que na
EJA a duração dos anos escolares é em geral semestral e os estudantes tem uma
variação na faixa etária.
Desta forma, diante destas peculiaridades, a questão da implementação dos
ciclos na EJA se traduz em processo de desseriação (KRUG, 2007) e de reinvenção da
educação em sua práxis, em um desafio constante de perceber estes estudantes em seus
saberes, em buscar a construção de conhecimentos significativos a eles, na dinâmica
plural que eles se constituem. Não se trata de entender os ciclos como o objetivo final
do percurso de uma educação emancipatória, mas de entendê-lo como uma
possibilidade viável hoje para esta travessia, para este caminhar.

Os Ciclos, a EJA e a Educação como um Direito: reflexões em processo


Discutir a formação dos processos de construção e organização da escolaridade
sistematizada e regularizada requer, concomitante, uma reflexão do que representa este
movimento, sobretudo a partir da Constituição Nacional de 1988 e da última Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional em vigor 9394/1996, que representam
historicamente o marco legal de uma perspectiva outra de educação para além do
regime ditatorial e militar (1964 a 1985). O pensar sobre questões inerentes a
organização da escolaridade, sobre a questão do planejar, dos espaços de trocas entre
seus sujeitos, sejam estes estudantes ou educadores, sobre as perspectivas acerca do
próprio desenvolvimento dos sujeitos estudantes, de seus processos de aprendizagens e
saberes que vão além dos limites da escola e das disciplinas escolares, tem sido algo
presente no próprio processo de olhar para a constituição da educação e de seus
significados de disputas, dos seus tensionamentos representados entre os projetos da
classe hegemônica para as classes populares e da própria classe popular sobre a
educação e seus processos formativos de estar e perceberem neste mundo.
Neste sentido, muito embora várias experiências em diferentes contextos e com
diferentes caminhos sobre a organização da escolaridade tenham acontecido, e, sobre
elas possam existir duras críticas, não podemos perder de vista às possibilidades reais
existentes para um processo de (re) construção e enfrentamento das disputas sociais por
uma educação pública, gratuita, laica e de qualidades críticas e emancipatórias aos seus
sujeitos, tão necessários nos dias atuais.

sumário 1415
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Diante disto, defendemos aqui que uma dessas possibilidades é a organização da


escolaridade em ciclos por esta opção estar pautada em princípios democráticos,
respeitosos, que buscam compreender o sujeito em um processo de desenvolvimento,
cujo envolvimento e a força motriz do coletivo escolar são fundamentais para esta
transformação. Transformação esta onde a organização escolar em ciclos possa ser o
movimento de mudança, e não o fim em si. Que neste caminhar, neste processo
construtivo, possamos vislumbrar, defender, acreditar e lutar por uma educação
realmente formativa, que de fato possa ser capaz de formar sujeitos da EJA mais
críticos, emancipados, e que estejam compartilhando desta percepção de educação, não
somente os sujeitos da escola (educadores, estudantes), mas também a comunidade da
qual as instituições escolares fazem parte.

Referências
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Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2º graus, e dá outras providências. Diário
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1971. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5692.htm>. Acesso
em: 01 set. 2019.

______. Ministério da Educação. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece


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VII Seminário Vozes da Educação

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sumário 1417
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL NA ESCOLA:


QUESTÃO DE DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA

Maria Eugênia Brêttas Veiga188


Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia
brettasveiga@bol.com.br

Introdução
Ao se propor pensar em direitos humanos, pretendeu-se refletir acerca da
constituição de preceitos e concepções que permitam compreender que,
independentemente de origem, credo, cor da pele, orientação sexual, faixa etária e
classe social, todos os sujeitos – respeitadas as diferenças culturais, sociais, históricas,
étnicas, religiosas – são passíveis de direitos e deveres.
No que diz respeito à sociedade brasileira, profundos ataques aos direitos
humanos e sociais, atualmente, afetam os princípios fundamentais da cidadania, deixam
marcas na democracia e, por consequência, atingem o processo de educação nacional.
Nesse contexto, afloram discriminações e preconceitos em relação às pessoas que têm
uma orientação sexual considerada diferente, dos que não se enquadram na
heterossexualidade.
Como afirma Hannah Arendt (1987, p. 188-189):

Se não fossem diferentes, [...] os homens não precisariam do discurso ou da


ação para se fazerem entender. [...] Ser diferente não equivale a ser outro [...].
A alteridade é [...] um aspecto importante da pluralidade; é a razão pela qual
todas as nossas definições são distinções e o motivo pelo qual não podemos
dizer o que uma coisa é sem a distinguir de outra.

Na visão arendiana, a humanidade diz respeito à pluralidade humana, que, nesse


sentido, deve ser considerada do ponto de vista de uma comunidade global capaz de
amparar e proteger os indivíduos, resguardando-os enquanto sujeitos de direitos e
deveres, isto é, dentro de uma ordem jurídica que lhes permita viver em segurança e
compartilhar o mundo.

188
Doutoranda em Educação.

sumário 1418
VII Seminário Vozes da Educação

[...] Esta nova situação, na qual a “humanidade” assumiu de fato um papel


antes atribuído à natureza ou à história, significaria nesse contexto que o
direito a ter direitos, ou o direito de cada indivíduo de pertencer à
humanidade, deveria ser garantido pela própria humanidade. Nada nos
assegura que isso seja possível.” ( ARENDT, 1989, p. 332).

Pode-se afirmar ainda que a capacidade de ter “direitos” é o que efetivamente


capacita os indivíduos à atuação e participação no espaço público. Em ambos os casos,
é preciso que a cidadania esteja resguarda pela Constituição, que Arendt define como
um documento estável, objetivo e duradouro, que emerge da fundação do corpo político
e que não é suscetível a alterações ou emendas “de acordo com as circunstâncias”
(ARENDT, 2011, P. 207). Aprofundar a cidadania a partir de pensamento de Arendt
continua a representar um desafio de transformação das estruturas sociais e políticas
construídas na modernidade.

O próprio governo representativo está em crise hoje; em parte porque perdeu,


com o decorrer do tempo, todas as praxes que permitiam a real participação
dos cidadãos, e em parte porque atualmente sofre gravemente da mesma
doença que o sistema de partidos: burocratização e tendência do
bipartidarismo em não representar ninguém exceto as máquinas de partidos (
ARENDT, 2004, p. 79).

Entretanto, para Arendt (1989, p. 334), o não pertencimento a uma comunidade,


isto é, a ausência do status político no indivíduo, implica a privação de um espaço
público e tem como consequência o confinamento em uma vida privada, inexpressiva.
No caso extremo dos Regimes Totalitários, culmina no completo desamparo e
abandono, na superfluidade daqueles que passam a compor monturos de minorias,
refugiados e apátridas.
Embora Arendt (1906-1975) não tenha textos voltados especificamente para o
tema da cidadania, não concebe a educação como a única ou totalmente suficiente para
formar os indivíduos para a cidadania, pois ela pode ser “pervertida” como ocorreu no
Nazismo, por exemplo. Por isso, a educação, não deve visar ao treino, ao preparo para o
trabalho, mas, sim, para o exercício da cidadania.
A perspectiva arendiana se volta para o juízo estético que permite ao espírito ser
livre e, assim, não se deixar condicionar por situações impostas. Dito de outro modo, o
ser humano, de acordo com a autora, traz em si a possibilidade de romper com o
automatismo, a apatia e o “sonambulismo”, característico de muitos que vivenciaram os
Sistemas Totalitários. Para Arendt (2016) o gosto, o juízo estético, pertence à classe das

sumário 1419
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

faculdades políticas, pois apela ao senso comum e seu interesse pelo mundo “é
puramente desinteressado”.
Atualmente, é fundamental desenvolver, no cotidiano das escolas, pesquisas
sobre Gênero e Sexualidade, sobre direito de exercer a diferença, pois vivenciamos na
sociedade uma retórica conservadora, que tende a defender os valores tradicionais. É
importante ressaltar que esse conservadorismo se reproduz nas práticas pedagógicas
escolares e, amiúde, fundamenta processos de exclusão. Muitas vezes, a pessoa sente-se
discriminada, excluída, o que interfere no processo de construção de sua identidade, no
seu rendimento escolar. Não se sentindo aceita, foge da escola.
É imprescindível, portanto, pensar a questão da sexualidade, da cor, da classe, da
religião no campo da educação, pois atuam como marcadores de identidade e de
diferença.
Louro (2008, p. 25) afirma que:

A escola que nos foi legada pela sociedade ocidental moderna começou por
separar adultos de crianças, católicos de protestantes. Ela também se fez
diferente para os ricos e para os pobres e ela imediatamente separou os
meninos das meninas.

As pesquisas e os debates possibilitam novas percepções do que vem a ser


Cidadania, alicerçada no reconhecimento da diferença e de políticas sociais voltadas
para o combate ao conservadorismo para diminuir as desigualdades, para encontrar
novos caminhos de intervir na sociedade.

A idéia de movimento, de articulação de diferenças, de emergência de


configurações culturais baseadas em contribuições de experiências e de
histórias distintas tem levado a explorar as possibilidades emancipatórias [...],
alimentando os debates e iniciativas sobre novas definições de direitos, de
identidades, de justiça e cidadania (SANTOS, 2003, p. 33).

A necessidade de debater na escola sobre Cidadania é primordial; professores e


professoras necessitam perceber a importância de saber lidar com a diferença, mas
temos que ter consciência que também a saúde, os movimentos sociais, a televisão, o
cinema, as instituições públicas, a família, as religiões são imprescindíveis para debater
o direito de ser diferente.

sumário 1420
VII Seminário Vozes da Educação

Neles são explorados os potenciais e os limites dessas experiências como


iniciativas emancipatórias e caminhos para cidadanias ativas. Estas procuram
articular o reconhecimento da diferença e a luta pela igualdade e pela
redistribuição segundo princípios de justiça e constelações de direitos atentos
à diversidade dos atores e dos contextos e à interseção de diferentes escalas:
local, nacional e global. (SANTOS, 2003, p. 44).

Nessa lógica, é preciso considerar que “[...] a sexualidade é uma das dimensões
do ser humano que envolve gênero, identidade sexual, orientação sexual, erotismo,
envolvimento emocional, amor e reprodução” (ABRAMOVAY et al., 2004, p. 29) e
que, portanto, não pode ser alienada das características humanas.
Segundo Deborah Britzmam ( 1996, p. 74):

Nenhuma identidade sexual [...] é automática, autêntica, facilmente


assumida; nenhuma identidade sexual existe sem negociação ou construção.
Não existe [...] uma identidade heterossexual lá fora, pronta, acabada,
esperando para ser assumida e [...] uma identidade homossexual instável,
mutável e volátil, uma relação social contraditória e não finalizada.

Destarte, foi escolhido abordar as discussões de gênero, pertinentes à


sexualidade, na perspectiva fundamentada em direitos humanos, pela ânsia de preservar
a cidadania do indivíduo tido como diferente, em que se prioriza uma abordagem
pedagógica dos conteúdos desprovida de convicções e crenças pessoais.
Este estudo tem por objetivo promover uma discussão crítica sobre diversidade
sexual e questões de gênero na escola, no afã de possibilitar o debate sobre práticas
pedagógicas, embasadas em uma cultura de respeito em relação às manifestações da
sexualidade, no intuito de tornar visível a violência desferida contra o que difere dos
padrões da heteronormatividade189.
A filósofa norte-americana Judith Butler (2003) destaca o caráter compulsório
da heterossexualidade e como este faz com que a cultura não admita um sujeito ser
outra coisa além de um homem ou uma mulher, impondo também que a única forma
legítima de amor e desejo sentidos por um homem esteja dirigida a uma mulher, e vice-
versa.
Segundo Guacira Lopes Louro (2000, p. 9)

189
Conceito criado, em 1993, pelo pesquisador americano Michael Warner para descrever a norma que
toma a sexualidade heterossexual como norma universal, e os discursos que descrevem a situação
homossexual como desviantes (DINIS, 2011).

sumário 1421
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Em nossa sociedade, a norma que se estabelece, historicamente, remete ao


homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão, e esta passa
ser a referência que não precisa mais ser nomeada. Serão os “outros” sujeitos
sociais que se tornarão “marcados”, que se definirão e serão denominados a
partir desta referência. Desta forma, a mulher é representada como “o
segundo sexo” e gays e lésbicas são descritos como desviantes da norma
heterossexual.

Metodologia
O estudo é uma investigação qualitativa, utiliza a técnica de análise de
conteúdo,à luz de uma perspectiva sócio-histórica, examinou-se livros, revistas e
trabalhos de instituições nacionais e internacionais contemporâneos, sobre o tema
proposto.

Resultados e Discussão
Historicamente, a escola não só transmite ou constrói conhecimento como
também reproduz padrões sociais, pois está inserida em um contexto que, muitas vezes,
tende a refletir opiniões das classes dominantes. Bourdieu aponta que, conforme
distintas disposições de capitais sociais, “a instituição escolar pode funcionar como uma
imensa máquina cognitiva operando classificações que reproduzem as classificações
sociais preexistentes” ( BOURDIEU, 2001, p. 80). Estudos indicam que o ambiente
escolar, embora devesse se constituir em um espaço de promoção da cidadania,
apresenta-se como adverso, intolerante e violento no que diz respeito a lésbicas, gays,
bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros LGBTs), configurando-se, por muitas
vezes, como espaço de produção e reprodução da homofobia (JUNQUEIRA, 2009a, p.
121).
Nesse contexto, Junqueira (2009b, p.15) destaca ser a escola um ambiente que:

Configura-se um lugar de opressão, discriminação e preconceitos, no qual e


em torno do qual existe um preocupante quadro de violência a que estão
submetidos milhões de jovens e adultos LGBT. [...] E isso se faz com a
participação ou omissão da família, da comunidade escolar, da sociedade e
do Estado.

A pesquisa “Perfil dos Professores Brasileiros”, realizada pela Unesco, entre


abril e maio de 2002, em todas as unidades da federação brasileira, na qual foram
entrevistados 5 mil professores da rede pública e privada, revelou, entre outras coisas,
que para 59,7% deles é inadmissível que uma pessoa tenha relações homossexuais e que

sumário 1422
VII Seminário Vozes da Educação

21,2% deles tampouco gostariam de ter vizinhos homossexuais (UNESCO, 2004, p.


144-146). Outrossim, a falta de conhecimento, os valores arraigados e/ou o receio de
que o resultado do trabalho seja interpretado negativamente podem justificar um
posicionamento, se não oposto, mas não comprometido, de profissionais da educação a
respeito da abordagem de tais assuntos.
Nesse sentido, Jimena Furlani ( 2008, p. 12) afirma que:

[...] em meio a disputas e relações de poder, as muitas instituições sociais,


usando de seus discursos normativos, posicionam certos saberes como
‘hegemônicos’, muitas vezes transformando a diferença ‘do outro’ em
desigualdade social. E isso deveria interessar, sobremaneira, à Escola e suas
educadoras e educadores.

Uma pesquisa sobre o perfil sociopolítico dos/as participantes da Parada do


Orgulho LGBT na cidade do Rio de Janeiro, em 2004, revelou, entre outras coisas, que
a discriminação de caráter homofóbico nas escolas se assemelha a condições epidêmicas
no tocante a vítimas jovens: “Nada menos do que 40,4% dos adolescentes entre 15 e 18
anos foram vítimas dessa experiência. Entre jovens de 19 e 21 anos, 31,3% referiram-se
a discriminações na escola ou na faculdade” (CARRARA; RAMOS, 2005, p. 80).
Abramovay (2004, p. 277-304) aponta que outra pesquisa realizada pela Unesco
em 13 capitais brasileiras e no Distrito Federal forneceu certa compreensão do alcance
da homofobia no espaço escolar (nos níveis fundamental e médio).
Constatou-se que o percentual de professores e professoras que declaram não
saber como abordar os temas relativos à homossexualidade em sala de aula vai de
30,5% em Belém e a 47,9% em Vitória.
Acreditam ser a homossexualidade uma doença cerca de 12% dos educadores e
educadoras em Belém, Recife e Salvador, entre 14 e 17% em Brasília, Maceió, Porto
Alegre, Rio de Janeiro e Goiânia e mais de 20% em Manaus e Fortaleza.
Não gostariam de ter colegas de classe homossexuais 33,5% dos estudantes de
sexo masculino de Belém, entre 40% e pouco mais de 42% no Rio de Janeiro, em
Recife, São Paulo, Goiânia, Porto Alegre e Fortaleza e mais de 44% em Maceió e
Vitória.
Pais de estudantes de sexo masculino que não gostariam que homossexuais
fossem colegas de seus filhos, 17,4% no Distrito Federal, entre 35% e 39% em São
Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, 47,9% em Belém, e entre 59 a 60% em Fortaleza e
Recife.

sumário 1423
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Parece improvável, portanto, conceber a construção de um currículo que não


leve em conta a alteridade como ponto essencial do reconhecimento à diversidade, bem
como não pensar no estudo sobre a sexualidade inserido nos conteúdos das várias
disciplinas da Educação Básica, uma vez que:

Essa presença da sexualidade no ambiente escolar independe da intenção


manifesta ou dos discursos explícitos, [...] da inclusão ou não desses assuntos
nos regimentos escolares. A sexualidade está na escola porque ela faz parte
dos sujeitos, ela não é algo que possa ser desligado ou algo do qual alguém
possa se “despir” (LOURO, 2004, P. 81).

Ao pensar dessa forma, destaca-se a importância da abordagem pedagógica mais


crítica em relação à orientação sexual. Assim, verifica-se o quanto a interferência de um
currículo atento para a construção de práticas voltadas pelo respeito à diferença e à
pluralidade humana é válida para que encontremos caminhos para edificação de ações
mais democráticas no espaço escolar.
A escola, portanto, é um espaço sociocultural rico em interações que precisa
ajudar a desconstruir a opressão, a discriminação e os preconceitos, em que crianças,
jovens e adultos vivem mergulhados por não se sentirem aceitos em suas escolhas
sexuais. Muitos deixam de assumir suas identidades de gênero, o que possibilitaria
construir de outras formas suas identidades, assim como de operar o direito de exercer a
diferença, de vivenciar suas sexualidades e comportamentos de gênero.

Conclusões
Após analisar os temas deste estudo, inferiu-se que o caminho para garantir a
cidadania plena, para que o direito possa ser assegurado a todos e todas, no contexto
educacional, é perceber a importância de lidar com a manifestação da diferença. Para
isso, é indispensável que educadoras e educadores repensem suas práticas, de modo que,
a partir do debate, possam surgir outros olhares sobre o corpo, a sexualidade, os
comportamentos de gênero, a etnia, a classe social e a religião.
O estudo constatou que as políticas públicas são indispensáveis para a
construção de uma escola mais justa, pacífica, livre do preconceito e da discriminação,
na qual se permite o exercício da cidadania, em que se respeitam os direitos humanos.
A importância da inclusão no currículo também é reforçada por inúmeros
autores que recomendam “inserir, como discussão curricular, a questão das diferentes

sumário 1424
VII Seminário Vozes da Educação

discriminações (racismo, homofobia, religião, características físicas, pobreza e gênero)”


(ABRAMOVAY, CUNHA, CALAF, 2009, p. 439-440).
Além da capacitação e a institucionalização da política, e em vista das
percepções, atitudes e práticas de profissionais e estudantes apontadas pela pesquisa, é
importante promover a realização de pesquisas acadêmicas sobre os fenômenos da
heteronormatividade e do machismo, uma vez que representam obstáculos ao respeito à
diversidade sexual e ao enfrentamento da homofobia.
Esse ponto de vista é compartilhado por Torres, que afirma que “é preciso que a
escola e as pesquisas acadêmicas dialoguem mais com os espaços não formais de
educação, numa troca mútua de saberes e fazeres, tendo em vista uma sociedade mais
justa e menos excludente” (TORRES, 2010, p. 55). Também seria importante realizar
pesquisas com o objetivo de testar estratégias de intervenção para o enfrentamento da
homofobia no ambiente escolar que pudessem ser avaliadas e expandidas no sistema
escolar.
A escola, ao reforçar o modelo masculino hegemônico, gera opressão,
discriminação e preconceito, o que limita o Estado Democrático de Direito,
fundamentando processos de exclusão e evasão escolar. Conclui-se que as políticas
públicas são indispensáveis para a construção de uma escola justa, pacífica, livre do
preconceito e da discriminação, na qual o exercício da cidadania e os direitos humanos
sejam respeitados.
O estandarte da educação tem de ser pelo respeito à diferença, à pluralidade
humana. A escola, por conseguinte, é um dos espaços para acolher amorosamente
crianças, jovens e adultos, a fim de que se tenham sucesso no rendimento escolar,
sepultem a evasão e lutem para construção de padrões diversos, além dos
heteronormativos.
Se a educação sozinha não transforma o mundo, sem ela, tampouco, a sociedade
não muda (FREIRE, 2000).

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sumário 1425
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 1426
VII Seminário Vozes da Educação

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cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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sumário 1427
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

OS NÚMEROS DO PLANO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO EM SÃO


GONÇALO/RJ: A INFÂNCIA SILENCIADA

Mônica de Souza Motta


PPGEdu – FFP UERJ
monica_mtt2004@yahoo.com.br

Graciane de Souza Rocha Volotão


Proped– UERJ
gracianevolotao@hotmail.com

O direito à Educação Infantil

(...) as crianças são o grupo geracional mais afectado


pela pobreza, pelas desigualdades sociais e pelas
carências das políticas públicas (SARMENTO, 2007,
p.38).

As discussões referentes às crianças pequenas como sujeitos de direitos nas


sociedades denominadas ocidentais são recentes, todavia, os debates no campo
histórico-social vêm se fortalecendo principalmente nos países da Europa após a
segunda Guerra Mundial, especialmente diante dos resultados da universalização dos
sistemas de ensino, conforme os apontamentos de Tavares (2003).
O direito à educação gratuita e obrigatória das pessoas a partir de quatro anos
está definido no inciso I do artigo 208 na Constituição Federal de 1988 como direitos de
todos e dever do Estado. O acesso à escola pública também está previsto na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que preceitua que todas as pessoas devem ter
oportunidades de estar em escolas, em condições apropriadas para possibilitar o
aprendizado com qualidade, justiça social e o exercício da cidadania.
No Brasil, o direito à Educação Infantil passa a ser determinado pela
Constituição Federal de 1988 que define como dever do Estado a garantia da “Educação
Infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade” (art. 208, inciso
IV). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/96, em seu artigo

sumário 1428
VII Seminário Vozes da Educação

21, inciso I, apresenta em seu texto a regulamentação da Educação Infantil, incluindo-a,


juntamente como o Ensino Fundamental e Médio, nas etapas da Educação Básica.
É de fundamental importância destacar que a LDB 9.394/96 define o direito das
crianças em serem atendidas em creches e pré-escolas compondo a primeira etapa da
Educação Básica, isto é, inclui a faixa etária a partir do nascimento até os cinco anos de
idade, na oferta obrigatória e gratuita pelo Estado, como também, determina as
responsabilidades dos entes federados para com os níveis da educação, estabelecendo
que: “os municípios têm por incumbência oferecer a Educação Infantil em creches e
pré-escolas, e, com prioridade, o Ensino Fundamental” (art. 11, inciso V).
Neste contexto, a Constituição Federal (CF) de 1988 (BRASIL, 1988, arts. 211 e
214) e a LDB nº9.394/96 no art. 10, inciso III (BRASIL, 1996) apontam a elaboração
do Plano Nacional de Educação, o que provocou alguns desafios para os municípios
que, diante do novo indicativo legal (PNE) 2001-2010 (BRASIL, 2001), necessitaram
articular a participação da sociedade civil organizada, com o objetivo de formular os
seus respectivos planos, de acordo com suas realidades e peculiaridades locais,
resultando nos Planos Municipais de Educação (BRASIL, 2001, art.2°).
O Plano Nacional da Educação (PNE - lei 13.005/2015) tem como distinção ser
caracterizado como uma política de Estado e, para que seja possível a sua efetivação,
prenuncia em seu próprio texto a avaliação e o monitoramento das metas e estratégias
estabelecidas.
Nesse sentido, o Plano Nacional de Educação (PNE) (2014-2024) se manifesta
como marco norteador para que o Distrito Federal, os Estados e os Municípios
organizem seus respectivos planos, e definam as 20 metas a serem alcançadas até 2024.
O PNE aponta, ainda, que os planos estaduais e municipais sejam elaborados e
constituídos de forma democrática, garantindo a participação efetiva da sociedade civil
organizada.

O Plano Municipal de Educação


Com base nas proposições do PNE, o Plano Municipal de Educação do
município de São Gonçalo/RJ deve apresentar como premissa a realidade local e
regional, proporcionando a participação dos diversos segmentos da sociedade civil
organizada. As audiências públicas são os marcos norteadores que apontam como
objetivo discutir as metas nacionais e formular as estratégias municipais para

sumário 1429
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

apresentação, discussão e aprovação do documento final em plenária, numa perspectiva


de compromisso e de garantia dos direitos.
Como foco nestas questões, que voltamos o nosso olhar para a rede pública
municipal de ensino do município de São Gonçalo/RJ com o intuito de discutir acerca
do papel político do atual Plano Municipal de Educação. Contextualizando, informamos
que a Lei de nº 658/2015, constitui o Plano Municipal de Educação vigente, que foi
sancionado, na, então, gestão do Prefeito Neilton Mulim, com abrangência para o
decênio 2015/2025.
Cabe destacar que o campo da política educacional no Brasil é historicamente
marcado pela descontinuidade das ações governamentais. Ao analisarmos os números
de matrículas podemos refletir sobre as ações governamentais e sua “descontinuidade”.
Apesar dos planos, nacionais, estaduais e municipais, representarem uma exigência
legal, conforme os apontamentos de Souza & Alcântara (2017) não é uma tarefa fácil
articular um sistema de ensino a uma cultura de planejamento de longa duração.

Em outras palavras, construir uma política com fins e princípios mais amplos,
comprometidos com os interesses da maioria da sociedade, requer a
implantação de projetos que transcendam a um mandato de governo, o que
implica a instauração de uma nova cultura política. (SOUZA &
ALCÂNTARA, 2017, p.768)

O Plano Municipal de Educação organizado através de uma política pautada em


metas e estratégias mais alargadas, devido sua temporalidade, busca garantir os
interesses educacionais da sociedade civil organizada, necessitando avançar numa
perspectiva de política de Estado e não de governo.
No entendimento da amplitude do Plano e diante das mudanças dos gestores
municipais, como os Secretários Municipais de Educação e de sua equipe no âmbito da
Secretaria Municipal de Educação (SEMED), no decorrer de sua construção e vigência,
optamos neste artigo investigar e analisar a Meta 1 do Plano Municipal de Educação -
Lei nº 658/2015 - (Período: 2015/2024) que determina:

Universalizar e garantir, até 2016, a Educação Infantil na pré-escola para as


crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de
Educação Infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 70% (setenta
por cento) das crianças de até 3 (três) anos até o 3º (terceiro ano) do início da
vigência deste PME, adequando as unidades existentes aos padrões de
infraestrutura para atenderem às características singulares da Educação
Infantil.

sumário 1430
VII Seminário Vozes da Educação

Com o indicativo da meta apresentada, a pesquisa consiste numa investigação de


natureza macro/micro, compreendendo que há uma dualidade que perpassa a
diferenciação da pesquisa qualitativa/quantitativa de forma perpendicular e não paralela,
logo, o menor liga-se ao maior ou vice-versa de maneira incompleta na complexidade
do mundo social. (BRANDÃO, 2001, p. 162)
Do ponto de vista teórico-metodológico, o procedimento utilizado consiste na
análise documental do Plano Municipal de Educação de São Gonçalo/RJ e os dados
quantitativos fornecidos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP) e da Secretaria Municipal de Educação (SEMED/SG). Numa
abordagem referendada nos apontamentos de Lopes (1992), considerando que “tanto o
documento ensina sobre o que relata quanto o trabalho que se faça sobre ele” (LOPES,
1992, p.113 – nota nº4) e em diálogo com Evangelista (2012, p. 56) ao defender que “a
análise de documentos implica em considerá-la(s) resultantes de práticas sociais e
expressões da consciência humana possível em um dado contexto histórico e
político”.Trata-se de um estudo fundamentado nas discussões referentes às formulações
de políticas públicas para a garantia do direito à educação aos “pequenos” (TAVARES,
2003) e que pretende discorrer sobre o papel do Estado e das classes sociais na
construção dos direitos e da democracia (BOSCHETTI, 2009).
Na análise das políticas sociais entendemos que durante a tramitação ocorreram
lutas ideológicas e política para a construção do documento final. Todavia, os conflitos,
acordos e debates não findam com a publicação da lei, pois os textos são traduzidos na
pluralidade, submetidos às diversas interpretações na atuação das políticas. (BOWE et
al., 1992 apud MAINARDES, 2006, p. 53).

A infância silenciada São Gonçalo/RJ: O que revelam os números.


O município de São Gonçalo, segundo dados do IBGE, no que se refere ao
campo da educação efetivou em 2000 o percentual de 14,14% de matrículas de pessoas
de 04 e 05 anos e em 2010 o crescimento foi de 15,3%, alcançando o percentual de
29,44% de crianças matriculadas. Em relação ao número de habitantes, houve um
crescimento de 109.564 habitantes entre 2000 e 2010. De 2010 para 2016 o crescimento
foi de 47.112 pessoas.
Com a finalidade de uma melhor compreensão do contexto da Educação Infantil
no município de São Gonçalo/RJ, segue o índice populacional, conforme indicativos do

sumário 1431
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

IBGE, referente à faixa etária de 0 a 5 anos de idade nos anos de 2010 e 2014, bem
como o quantitativo de matrícula na rede pública e privada, conforme tabela.

Quantitativo de matrículas em 2010 e 2014

Educação Infantil

População População Nº de População de População de Nº de


Rede de 0 a 3 de 0 a 3 matrículas em 4 a 5 anos em 4 a 5 anos em matrículas em
anos em anos em 2014 2010 2014 2014
2010 2014
Aproximada
Municipal 801 mente 3424

46.185 47.821 26.053 28.000


Privada 3878 12078

Total 4679 15502


Tabela 1/Fonte: Plano Municipal de Educação de São Gonçalo 2015/2025

Os números apresentados indicam o reduzido quantitativo de vagas ofertadas


pela rede pública municipal de ensino. Em contrapartida, observamos o crescimento
significativo do quantitativo de matrículas efetivadas na rede privada. Tais dados nos
sugerem, ainda, sobre um descuido do governo municipal para com a educação dos
“pequenos” (TAVARES, 2003), o que pode ser contemplado no fato de que a rede
privada tem se apresentado em número maior que a rede pública municipal de ensino.
A Educação Infantil tem sido generosamente ofertada pelo setor privado, diante
do número expressivo de instituições privadas em detrimento das públicas, sendo
regulamentadas mediante autorização de funcionamento e acompanhamento do
Conselho Municipal de Educação, responsável pela legislação em regime de
corresponsabilidade com a União.
Nesse contexto, o poder público contribui para o processo de exclusão e
desigualdade ao delegar a sua responsabilidade para a sociedade civil, ignorando o
princípio constitucional que define a educação como “direito de todos e dever do
Estado”. Procedendo dessa maneira ainda coopera, para “acentuar a equação perversa
que marca a política educacional brasileira atual, assim caracterizada: filantropia +
protelação + fragmentação + improvisação = precarização geral do ensino no país”.
(Saviani, 2013, p.754).

sumário 1432
VII Seminário Vozes da Educação

Escolhemos a cidade em que trabalhamos como Professoras Supervisoras


Educacionais para essa análise regional da atuação política, assim, consultamos os
dados do IBGE, do INEP e da PME/SG, analisando os números de habitantes e de
matrículas.
No quadro de progressão de matrícula contido no documento do PME/SG,
observamos como estavam as matrículas em 2014, período em que foi apresentada a
análise situacional que constitui parte do documento PME (2015/2025), contabilizamos
por meio dos dados fornecidos, o total de matrículas na rede pública e privada, como
vemos a seguir:

Matrículas na rede pública e privada em 2014


Modalidade/Ano Pública Privada
Educação Infantil (0 a 5 anos) 4.225 15.956
Fonte: tabela2/ organizada pelas pesquisadoras a partir do PME/SG Lei 658/2015

A partir da leitura do PME/SG, realizamos um levantamento dos números de


matrículas no município. O texto do PME/SG apresentou, na análise situacional da meta
1, a progressão de matrícula de 2009 a 2014. Destacamos o ano de 2014 e montamos a
tabela acima, percebendo que a rede privada é a que mais atendia à educação infantil, o
que mesmo assim, não garantia a universalização da educação infantil no território
gonçalense.
De acordo com o índice de Gini 190 , a renda domiciliar per capita em 2000
apresentava 0,4863 e em 2010 reduziu para 0,4610. Informamos que neste indicador,
quanto mais próximo de 1, maior a desigualdade na distribuição de renda. Logo, há
melhoria, embora ainda tímida para um interregno de 10 anos. A melhoria mais sensível
se verificou no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), que em 2000
era 0,641 e em 2010 subiu para 0,739.
Nessa abordagem, garantir o direito dos “pequenos” (TAVARES, 2003) ao
acesso e permanência na educação, ainda, configura para o município um horizonte
distante de ser consolidado, tendo em vista que em 2017 a população estimada estava na
margem de: 1.049.826 de habitantes, distribuídos em 92 bairros e alguns sub-bairros,
organizados em 5 (cinco) distritos, que são: São Gonçalo, Ipiíba, Monjolos, Neves e
Sete Pontes.
190
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/ibge/censo/cnv/ginirj.def

sumário 1433
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Na busca de apresentar os dados mais recentes do município de São Gonçalo/RJ,


recorremos ao INEP (2017) com o intuito de identificar os desafios que o município tem
a enfrentar no contexto referente à meta da universalização para a pré-escola, e da
ampliação de atendimento para a creche, bem como a garantia da qualidade nas
instituições de Educação Infantil.
As informações do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP/2017) demonstram a configuração do sistema municipal de
ensino, que no ano de 2017, apresentava a seguinte composição:

Nº de escolas e matrículas na rede pública e privada em 2017


Redes Nº de Escolas da Nº de matrículas: Nº de matrículas:
Educação Básica Creche Pré-Escola
Rede Pública 108 1.117 3.845
Rede Privada 302 4.929 10.807
Fonte: tabela3/organizada pelas pesquisadoras

Os números atualizados em 2018, pelo INEP, apontam que de 2014 a 2018, a


educação infantil apresentou um acréscimo de matrícula de 726 matriculados, que ainda
não é suficiente, demonstrando a exclusão das crianças dessa modalidade. Os dados
mencionados expressam o não cumprimento da meta 1 do Plano Municipal de Educação
no município de São Gonçalo que, após alguns anos de vigência, ainda não conseguiu
atingir a universalização na pré-escola e nem o indicativo da ampliação no atendimento
referente a 70% (setenta) por cento do número de vagas em creches.
O resultado parcial da pesquisa comprova que, mesmo havendo aumento
populacional segundo o IBGE em sua estimativa, assim como queda do índice de Gini e
elevação do IDHM, há claramente uma negligência considerável de políticas de acesso
no território gonçalense, o que revela o descumprimento da meta referente à
universalização da pré-escola e a ampliação da oferta de creche. A educação infantil
está, portanto, marcada pelo processo de exclusão e de silenciamento da primeira
infância ao negar o que se constitui como direito social fundamental.
No Brasil, o entendimento dos “pequenos” (TAVARES, 2003) como sujeitos de
direitos é determinado pela Constituição Federal de 1988, que após seus 30 anos de
promulgação, configuram um movimento de fragilidade em sua consolidação,
sobretudo, no que diz respeito à educação.

sumário 1434
VII Seminário Vozes da Educação

Cabe destacar que historicamente as políticas educacionais no Brasil não


priorizam os “pequenos” (TAVARES, 2003) em sua agenda e, atualmente, com a
aprovação da Emenda Constitucional 95/2016 sua ação ficou muito dificultada por estar
alicerçada num sistema de governo que não prioriza as políticas sociais. As restrições
orçamentárias impostas engessam o cumprimento das metas do Plano Nacional de
Educação produzindo sua estagnação. Colaborando com esta discussão, Amaral
assevera que:

(...) se considerarmos que em 2014 o país aplicou o equivalente a 6% do PIB


em educação, somando-se os recursos aplicados pela União, pelos estados,
DF e municípios (BRASIL. INEP, 2015), pode-se concluir que, se os estados,
DF e municípios também aplicarem esta mesma regra prevista na PEC
241 191 , esse percentual se reduzirá para 5% em 2024. (AMARAL, 2016,
p.662)

Com a prerrogativa da diminuição das contas públicas, a meta de ampliação no


percentual de 70% no crescimento da oferta das vagas para creche tende a sucumbir,
visto a vulnerabilidade do orçamento municipal. Os resultados são preocupantes diante
das desigualdades na oferta e no acesso das crianças pequenas na Educação Infantil,
demonstrando mais uma vez que as mesmas não são prioridades nas políticas
educacionais.
No caso da Educação Infantil, o município de São Gonçalo/RJ possui como
meta a universalização no atendimento das crianças na faixa etária de 4 e 5 anos até
2016 o que de acordo com os dados apontados ainda não foi alcançada, acrescentando
que com o intuito de universalizar o acesso a pré-escola percebemos a diminuição da
oferta de vagas para as turmas de 0 a 3 anos, caracterizando uma realidade perversa para
a educação dos bebês e crianças bem pequenas.
Em derradeiro, aponta-se a meta 1 da Lei nº 658/2015, que determina a
ampliação do atendimento às crianças na faixa etária de 0 a 5 anos de idade, e ainda se
apresenta longe da sua consolidação, conforme dados do INEP em 2017, os indicativos
de atendimento que configuram o sistema municipal de ensino referente a Educação
Infantil, apontam o seguinte percentual de matrículas: 26% na rede pública e 74% na
rede privada. Cabe salientar que o direito à educação está previsto em nossa legislação,
como no caso da meta acima referenciada, mas o dever da garantia desse direito pelo
Estado vem sendo negligenciado e adiado ao longo dos anos.
191
Promulgada na Emenda Constitucional de nº 95 em 15 de dezembro de 2016.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc95.htm

sumário 1435
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Diante do exposto, nos parece de grande importância à organização de um


planejamento voltado para as reais condições do município, tendo como objetivo avaliar
as possibilidades de novas construções e contratações de professores, aquisição de
mobiliário apropriado, entre outros bens que se fazem necessários para a consolidação
da meta 1 determinada no PME, além da estimativa orçamentária que deve ser
mobilizada.
Nesse contexto, os recursos financeiros disponibilizados pela União e pelo
Estado, por meio de programas voltados para essa etapa da educação básica precisam
ser considerados como de grande importância para garantir o cumprimento da meta
referente à universalização do atendimento a pré-escola, bem como a ampliação do
acesso a creche.

(In) conclusões provisórias


O município de São Gonçalo, o segundo maior do Estado do Rio de Janeiro,
conforme indicativos do IBGE (2017), diante de uma realidade imposta pela redução
orçamentária determinada pela aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, enfrenta
o desafio de buscar um planejamento orgânico que elege uma política de direito, voltada
pela realização dos levantamentos de dados e informações sobre a oferta e a demanda
educacional em seu território.
O caminho voltado para a realização do diagnóstico da real situação do
município tem como indicativo a elaboração de diretrizes que determinarão os meios
pelos quais, as metas do Plano Municipal de Educação serão consolidadas, no período
de sua vigência, em corresponsabilidade com a União e o Estado numa determinação de
ofertar a Educação Infantil num padrão de qualidade que torne a educação pública
acessível a toda a população do município.
Entretanto, as políticas educacionais atuais no Brasil estão engessadas, incluindo
a falta de decisão e legislação que garanta a continuidade do FUNDEB, configurando
num impedimento para as ações efetivas de garantia de direitos dos “pequenos”
(TAVARES, 2003), produzindo um enfraquecimento/impedimento das políticas
municipais perante o cumprimento das metas de atendimento a educação infantil,
resultando num retrocesso no campo dos direitos sociais e na convalidação das
desigualdades sociais.
O Município de São Gonçalo nesse percurso do Plano Municipal de Educação,
no que se refere às políticas educacionais para as crianças pequenas, ainda encontra-se

sumário 1436
VII Seminário Vozes da Educação

em processo embrionário visto a não efetivação de uma política de direitos que


assegurem o acesso, a universalização e a qualidade no ensino. O acesso à creche
continua sendo muito limitado, além de verificarmos um número elevado de
atendimento em unidades particulares, conforme constatamos nesta pesquisa.
Ao analisarmos a atuação das políticas educacionais em consonância com a
Conferência Nacional Popular da Educação (CONAPE), faz-se importante ecoar a
necessária mobilização social, com especial atenção, após os resultados expostos aqui, à
urgência de regulamentação do ensino privado, o fortalecimento do ensino público e a
revogação da Emenda Constitucional 95/2016, que representa um desmonte nas
políticas sociais, inviabilizando o financiamento para as conquistas das demais pautas,
que poderiam de fato garantir a efetivação das metas previstas no Plano Nacional de
Educação.
Nesse contexto, o município possui um grande desafio, no que se refere à
ampliação das vagas para creche até 2024, frente às restrições orçamentárias impostas
aos entes federados. Com a paralisação do investimento na educação por 20 (vinte)
anos, temos como resultado a estagnação das metas do Plano Nacional de Educação
reforçando o quadro de desigualdade já estabelecido.
O Plano Municipal de Educação, que em sua elaboração deveria ser um
planejamento orgânico da administração pública, com possibilidade de identificar
problemas, prioridades, prazos, recursos e ações a serem implementadas de maneira
objetiva e organizadas, com a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, está
ameaçado à impossibilidade em seu cumprimento, frente ao congelamento das contas
públicas, por duas décadas (até 2036).
As medidas orçamentárias consolidadas pela Emenda Constitucional são
consideradas regressivas, pois inibem a elaboração e a implementação de políticas
públicas que promovam a justiça social, a solidariedade e o desenvolvimento do país.
Trata-se de um tempo difícil para o Brasil, onde estamos enfrentando
consequências de um golpe de Estado severo, cortes públicos e reformas sociais sob a
alegação de crise econômica. Cumpre iluminar a educação sob a perspectiva da
globalização capitalista e o projeto hegemônico que vem prevalecendo nos discursos
políticos e nas políticas educacionais.
A educação infantil pública nos parece ser de fundamental importância à
inclusão na agenda de prioridades das esferas político-administrativa do Brasil
compreendendo a União, Estado, Município e Distrito Federal, especialmente, neste

sumário 1437
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

tempo em que as políticas educacionais têm elegido apenas as metas que corroboram
com os ideais da educação para o mercado, atendendo ao neoliberalismo e à
meritocracia, cenário que piora com os retrocessos políticos atuais que anunciam
ataques à educação pública, que impulsionarão o aumento das desigualdades sociais e
educacionais.

Referências
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sumário 1438
VII Seminário Vozes da Educação

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sumário 1439
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

EIXO 3
IDENTIDADES, INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO

sumário 1440
VII Seminário Vozes da Educação

ANÁLISIS DE LOS FACTORES QUE AFECTAN EL USO DEL QUECHUA EN


LOS ESTUDIANTES DE LA INSTITUCIÓN EDUCATIVA ASILLOPATA DEL
DISTRITO DE COPORAQUE PROVINCIA DE ESPINAR REGIÓN CUSCO.

Roxana Alencastre Caballero


roxanaalencastre@gmail.com

Danilo Pezo Carreón


dpezo71@hotmail.com

Introduccion
La creación de los centros educativos ha sido una demanda por los miembros de
la comunidad; pero, el ingreso de la escuela a la comunidad ha transformado la
valoración de quechua no solo de los niños y jóvenes sino principalmente de los padres
y por extensión a la comunidad en general. Por este proceso de homogenización, el
quechua fue relegado a espacios no-académicos como el hogar la chacra, el pastoreo.
Este hecho incidió de manera significativa en la actitud de los monolingües hablantes
del quechua, lo que dio inicio a la incorporación del castellano en todos los espacios
aunque de manera rudimentaria y gradual. Este fenómeno a lo largo de estos años ha
dado como resultado en la actualidad un bilingüismo activo, pero con tendencia al
monolingüismo en castellano, pareciera esto reflejado en las nuevas generaciones,
infantes principalmente. Proceso que alarmantemente va en avance vertiginoso por
factores sociales, económicos, culturales, religiosos y educativos influyen en el
desplazamiento del uso del quechua por parte de los hablantes de la zona principalmente
los jóvenes estudiantes como una imposición del castellano sobre el quechua (Condori,
2014).
El estudio Intercultural Bilingüe (EIB) desarrollada en zonas rurales realiza un
diagnóstico del uso y funciones que asignan a su lengua originaria los bilingües-
hablantes entres escenarios. A través del bilingüismo e interacción que los jóvenes de
nivel secundario tienen en la comunidad de habla quechua se describe y analiza la
mantención desplazamiento o vitalización que tiene el idioma ancestral en la zona. Para

sumário 1441
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

esto se describe el uso de la lengua indígena en espacios públicos y familiares ubicados


tanto en el distrito como en la comunidad; se analiza la incidencia de las políticas
lingüísticas-educativas en la construcción y reconstrucción de la identidad de la
comunidad de un sector o de la familia (Córdova et al., 2005).
La investigación describe el uso del idioma quechua en los estudiantes, quienes
participaron del programa de EIB implementado en la escuela y continuado por la
Institución Educativa secundaria. Se observa el uso del quechua en los estudiantes en la
interacción comunicativa de tres ámbitos: la escuela, el hogar y la relación con personas
extrañas y/o comunidad.
La zona habitada por los jóvenes es un territorio eminentemente rural, pero en
los últimos años ha dado claros indicios de una transición a características urbanas. Los
pobladores presentan en su vida cotidiana rasgos de la vida citadina como en su
actuación lingüística; por lo tanto el objetivo del presente es Analizar los factores que
afectan el uso del desplazamiento del quechua en los estudiantes de la Institución
Educativa Asillopata comunidad de Huayhuahuasi del distrito de Coporaque Provincia
de Espinar región Cusco.

Metodologia
Lugar de ejecución
El estudio se realizó en el ámbito de la Institución Educativa (IE) Asillopata de
la comunidad campesina de Huayhuahuasi del distrito de Coporaque provincia de
Espinar región Cusco Perú.

Descripción de la investigación.
Se entrevistó a estudiantes de primaria del programa EIB y secundaria en el uso
del idioma que usan en la interacción comunicativa entre los miembros de su entorno
entrevistándolos:
en el ámbito familiar (hermanos, padres, abuelos y parientes referidos a su
contexto familiar), institución educativa (compañeros, amigo, docentes, autoridades
educativas, autoridades de otras instituciones e integrantes de la comunidad educativa),
por ultimo interactuando en la comunidad y agentes externos (comerciantes,
transportistas, autoridades, laicos, medios de comunicación, y personasextrañas)

Metodología de investigación

sumário 1442
VII Seminário Vozes da Educação

Se desarrolló de acuerdo al modelo de investigación social etnográfica


cualitativa (Cook y Reichard, 1995) sistemática de la cultura de los estudiantes de
Huayhuahuasi y con enfoque naturalista (Miles y Huberman, 1994).

Técnicas de recojo de información y opinión:


La observación no participante es cuando el observador reduce su interacción en
el grupo observado al mínimo para centrar su atención en el flujo de los
acontecimientos (Goetz y Lecompte 1988). Se, menciona que esta técnica tiene mejores
resultados cuando el observador ya está instalado en el contexto, cuando la gente se
habitúa a la presencia del observador. Esta técnica nos posibilita el registro del hecho en
el momento en que se suscita (Bertely,2000).
La entrevista semi-estructurada nos ayuda a recolectar información necesaria
para aclarar algunos hechos y actuaciones comunicativas necesarias para nuestra
investigación. Rodríguez et al (1999) nos menciona que la entrevista es una técnica en
la que una persona (entrevistador solicita información de otra o de un grupo
(entrevistados, informantes) para obtener datos sobre un problema determinado.
Schatzman y Strauss (1973) dividen las preguntas de entrevista en algunos
grupos tomaremos tres de ellas. 1) preguntas de información, que descubren el
conocimiento de una situación social precedida de interrogativo. 2) preguntas
suposicionales, inductoras, que descubren temas controvertidos. 3) preguntas hipotéticas
que estimulan la especulación del respondiente en torno asituaciones.

Obtención de información y de opinión


Para la recolección de datos se utilizó guías diseñadas para los estudiantes,
familiares y personas de la comunidad. Para lograr las entrevistas, gradualmente se tuvo
que ganar la confianza Para la ubicación de los informantes se tuvo que lograr la
confianza poco a poco ganándose la confianza de los entrevistados, en la participación
de sus actividades comunales.
Los apuntes de campo se registraron todos los acontecimientos o fenómenos que
se observaron en la participación de los estudiantes, familiares y comunidad en las
actividades fundamentales que realizaron las personas que forman parte de la
comunidad e institución.
Los recursos para recojo de datos fueron: cámara de videos para registrar las
escenas más significativas, cámara fotográfica, previa autorización de los actores, diario

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de notas y cuaderno de campo que sirvió para registro de datos documentales propios de
la entrevista donde se organizó y sistematizo la información.

Resultados y discucion
La IE Asillopata es punto de concentración de diferentes actividades sociales
económicas, laborales, culturales, religiosas, deportivas y de encuentro que los
pobladores tienen donde existe una relación con agentes de diferentes lugares
Los hablantes bilingües al momento de entablar una conversación con un
interlocutor bilingüe esporádico externo o perteneciente a la comunidad, otorgan a éste
la elección de uno u otro idioma mencionando: “Castellano hablo cuando hay visitas o
cuando cualquier persona te viene y te habla puro castellano tienes que responder
también, si es quechua tienes que responder quechua” (Raúl Censia)
La I.E Asillopata está ubicada a pie de carretera que une los distritos de, Yauri
Pichihua y Coporaque. En el presente estudio se logró identificar los siguientes factores:

Factor económico
Los padres de los estudiantes para generar su economía necesitan ir a trabajar a
las minas, obras de construcción, municipios y diferentes actividades económicas y
están en contacto con el castellano mientras, que las mamás se quedan en la casa al
cuidado de sus hijos y suganado donde predomina en el hablar del quechua. Las ferias
de ganaderas también convocan masivamente a foráneos de habla castellano de
diferentes lugares de la región.

Factores sociales
Existe una marcada diferencia entre los estudiantes que migraron en la época de
vacaciones a trabajar a ciudades cercanas donde mayormente se habla en castellano y
los estudiantes que se quedan a en sus casas pasteando sus ganados donde mayormente
hablan quechua creándose diferencias sociales.

Factores de desarrollo tecnológico


La tecnología es muy importante en estos últimos tiempos y en el campo de la
educación mucho más por este motivo los estudiantes interactúan con las redes sociales
y se comunican en castellano desplazando el quechua

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VII Seminário Vozes da Educação

Factor religioso
Desde la época de la conquista la religión juega un papel importante,
actualmente en la I.E Asillopata los estudiantes tiene diferentes religiones donde sus
pastores predican en castellano y quechua la biblia está escrita en los dos idiomas.

Factor educativo
La I.E es el lugar donde los estudiantes permanecen la mayor parte del día
recibiendo diferentes sesiones pedagógicas, la mayoría de los docentes son castellano
hablantes, los materiales que se reparten por el ministerio son en base al idioma
castellano. Los estudiantes tienen predilección por el uso del castellano esto por su
contacto con la ciudad, la que se da en periodo vacacional y su permanencia en la
ciudad después del término de clases.

Factor de transporte
Al desplazarse de la comunidad a la capital de provincia o las ciudades cercanas,
los estudiantes interactúan con diferente tipo de personas donde su comunicación es
mayormente en castellano quedando desplazado el quechua.
Se observa un continuo y acelerado desplazamiento del quechua, fenómeno que,
se debe, principalmente, al contacto dinámico y fluido que tienen los hablantes con
representantes o representaciones exógenos a la comunidad. A los dos contextos
geográficos se suma un contexto “moderno” imaginario o imaginado donde el
castellano en mayoría es usado y através de ella se exige y reproduce formatos de vida
solo desde una visión. Las exigencias se dan dentro de la misma comunidad, por
adopciones de elementos introducidos, como fuera de ella (Condori,2014).
Todos estos factores en alguna medida desplazan el habla el quechua dentro de
la interacción de la I.E, familiar y la comunidad.
Cabe mencionar que estos factores escritos afectan el desplazamiento del
quechua sin embargo traen desarrollo y crecimiento a la I.E Asillopata y a la comunidad
de Huayhuahuasi.
Coporaque, actualmente, es una zona que alberga grupos de actores e
instituciones de la zona y foráneas que emplean el castellano y quechua desde sus
particulares necesidades e intereses. Con los testimonios recogidos y situaciones
observadas, se constató que los diferentes grupos en Coporaque viven en el paradigma
de la colonialidad de poder (Garcés 2005) y diferenciación colonial, los cuales tienen

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

como fin una línea homogeneizante. Este patrón de vida ha generado el


desconocimiento, a propios y foráneos, de la diversidad cultural y lingüística comunal
viviente. Los datos empíricos muestran que, ante estos hechos, ambos grupos de actores
no han manifestado acciones de reacción hasta el momento.
Coporaque no tiene plena autonomía para enfrentar e incorporar los elementos
culturales foráneos desde la construcción y avance cultural propio (Bonfil 1987). Y
muestra una visión disímil que relaciona al quechua con un mundo “tradicional”
rezagado y al castellano con un mundo “moderno” en avance. Para la inserción al
mundo moderno, los hablantes cumplen requisitos como saber escribir y leer en
castellano que son solicitados por instituciones del estado instaladas en lazona.
En el nivel ideológico externo, la influencia de la religión evangélica en el
desplazamiento de la concepción cultural ha sido importante. Esta tendencia va en
avance por algunas limitaciones que la comunidad presenta a nivel social y cultural.

Concluciones
Los factores económicos, sociales, desarrollo tecnológico, religioso, educativo,
de transporte y cultural afectan el desplazamiento del habla del quechua en los
estudiantes de la institución educativa Asillopata.
En la comunidad deHuayhuahuasi,convergen diferentes personas de
diferentes instituciones y actividades que emplean el castellano y quechua de acuerdo a
sus intereses.
Los estudiantes de la I.E Asillopata pasaran de un habla monolingüística –
quechua a un bilingüismo quechua-castellano debido a los factoresdescritos.
El desarrollo y crecimiento por los factores que afectan al desplazamiento del
quechua tiene un efecto negativo en el monolingüismo pero un efecto positivo en el
bilingüismo del quechua- castellano.

Recomendaciones
Se recomienda fortalecer el EIB en las instituciones educativas rurales y
urbanas.
Fortalecer habla del idioma quechua en los diferentes escenarios que afectan al
habla del quechua en la IE de Asillopata de la comunidad de Huayhuahuasi.

sumário 1446
VII Seminário Vozes da Educação

Bibliografia
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Bonfil, Guillermo 1987 “La teoría de control cultural en el estudio de procesos étnicos”.
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UMSS/ Andes/Plural editores.Bolivia.

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investigación educativa. Madrid:Morata.

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Paz:Plural-cendA.

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cualitativa. Malaga: Aljibe.

Schatzman, L., & Strauss, A.L. (1973). Field research: Strategies for a natural
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sumário 1447
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

CULTURA VISUAL E IDENTIDADES AFROBRASILEIRAS NA ESCOLA:


VISUALIDADES E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS ANTIRRACISTAS

Maria Cecília Castro


PROPED-UERJ/UFF
mcecilias.castro@gmail.com

Nas últimas décadas, constatamos crescentes lutas históricas de diferentes


movimentos sociais que questionam/problematiza/desnaturalizam os privilégios de
grupos sociais hegemônicos. Entretanto, pouco avançamos em relação às
transformações de fato necessárias para a produção da justiça social e cognitiva. Ao
contrário, os pequenos avanços que foram alcançados parecem produzir desconforto,
indignação e revolta nas hegemonias habituadas a terem todos os direitos e
oportunidades.
No campo acadêmico, é possível identificar um aumento significativo de estudos
e pesquisas que comprovam preconceitos e discriminações em que vivem os sujeitos
que escapam à normalidade imposta por essas hegemonias. Santos (2010) aponta a
existência de um pensamento abissal que produz a inexistência e a tentativa de
invisibilização de conhecimentos e diferentes modos de produção de ser e estar no
mundo. As dicotomias entre regulação/emancipação, nós/ os outros, saber/não saber
promovem hierarquizações, preconceitos e estereótipos. É a partir da ruptura desses
valores que pretendo confrontar as identidades que subvertem a lógica hegemônica.
Diferentes estudos raciais contribuem para denúncia de manutenção desse
quadro de desigualdade. Neste sentido, este trabalho pretende não apenas identificar
com essa perspectiva de desigualdade mas produzir a ruptura deste paradigma
excludente.
O corpus da pesquisa acontece no Colégio Universitário Geraldo Reis (Coluni).
Este colégio está vinculado a Universidade Federal Fluminense (UFF). A partir de abril
de 2006, uma parceria entre a UFF e a Secretaria de Educação do Estado do Rio de
Janeiro permitiu à universidade a criação do Colégio Universitário da UFF
(Coluni/UFF).

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VII Seminário Vozes da Educação

A estrutura arquitetônica- social do Coluni é de CIEP (Centro Integrado de


Educação Pública) que foi um projeto educacional de meados dos anos 80 na gestão do
atual governador Leonel Brizola, do então secretário de educação Darcy Ribeiro e
muitos colaboradores, dentre eles, Oscar Niemeyer, que tinham inspirações outras para
a educação do estado do Rio de Janeiro desde então. Mignot (2001) afirma:

Erguidos sobre os escombros da escola pública herdada dos 20 anos de


ditadura militar e alicerçados na necessidade de reverter o abandono do
ensino, os CIEPs procuravam operar uma revolução no sistema educacional
capaz de diminuir os altos índices de evasão e repetência(MIGNOT,
2001:155).

Neste sentido, o colégio sempre atendeu as crianças de classes populares, filhos


de trabalhadores que atuavam no município de Niterói ou crianças que moravam em
comunidades próximas a instituição, dentre elas o Morro do Estado e do Palácio.
De acordo com dados das pesquisas do IBGE (2014), 76% da população
brasileira considerada mais pobre, isto é, com renda familiar média de 130 reais por
pessoa. Por conseguinte, o Ciep Geraldo Reis atendia, majoritariamente, crianças negras
e pobres de Niterói e adjacências.
Para garantir a continuidade do projeto inicial dos Ciep de garantia de escola
integral de atendimento às classes populares, optou-se pelo sorteio como forma de
ingresso nesta instituição. Além disso, os profissionais e alunos que desejassem
continuar inseridos neste cotidiano escolar, teriam a garantia de permanência na
instituição.
Em 2014, iniciamos nossas atividades como professoras desta instituição.
Apesar de nossa experiência docente, passamos por um período bastante turbulento de
adaptação à rotina e estrutura do Colégio. Este desafio potencializou os sentimentos
comuns em nossas trajetórias como professoras. O medo do fracasso, a insegurança, a
impotência diante de questões que se colocam em minha prática pedagógica foram
teorizadas nas pesquisas de Taubman (2009, p.129 apud Macedo, 2014, p.1551). Digo
isso, pois a cada turma iniciada, sinto-me desafiada a educar crianças de classes
populares a aprender a escrever a sua vida como autor e como testemunha de sua
história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se (FREIRE, 2014:12).
Conforme já mencionamos, desde da segunda metade do século XX, os
movimentos sociais têm lutado pelas pautas relacionadas às questões de etnia/raça, a
fim de valorizar e reconhecer as múltiplas identidades que envolvem a formação dos

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

sujeitos e que foram negligenciadas ao longo do processo histórico de formação


ocidental. No Brasil, no fim da década de 90, e início de 2000, as políticas públicas
começam a trazer mais intensamente este debate para o espaço escolar a partir de uma
série de leis e diretrizes que promovam o direito de acesso e permanência desses grupos
historicamente excluídos.
Hall (2006), ao apresentar a chamada "crise das identidades" nas sociedades
atuais, traça um percurso histórico da construção dos conceitos de identidade hoje em
discussão. Na contemporaneidade as questões identitárias de raça estão cada vez mais
em evidência. Daí a necessidade de a escola falar sobre elas. Visto o crescente
conservadorismo que toma conta da sociedade atualmente, a escola não pode se calar e
precisa dar suporte para que seus alunos e alunas possam construir suas identidades
livremente, respeitando e valorizando as diferenças. Sendo a escola um lugar de
formação, por excelência, esta seria sua principal função: a sociabilidade.
Vygostki (1991) considera que os processos de ensino-aprendizagem se dão de
forma dialética entre os que aprendem e os que ensinam. Neste sentido, foi nesta relação
de escuta sensível que compreendemos a necessidade de discutir essas questões em
nosso espaçotempo de atuação.
A elaboração e implementação das ações afirmativas no Brasil, em especial no
âmbito educacional, deve partir da reflexão sobre a formação da identidade negra
(GOMES, 2003), proporcionando uma maior aproximação entre a teoria e a prática pois
conforme diz:

Compreender a complexidade na qual a construção da identidade negra está


inserida, sobretudo quando levamos em consideração a corporeidade e a
estética, é uma das tarefas e desafios colocados para os educadores. Deveria,
também, ser uma das preocupações dos processos de formação de professores
quando estes discutem a diversidade étnico-cultural. Os professores
trabalham cotidianamente com o seu próprio corpo. O ato de educar envolve
uma exposição física e mental diária. Porém, ao mesmo tempo em que se
expõem, os educadores também lidam com o corpo de seus alunos e de seus
colegas. Esses corpos são tocados, sentidos. A relação pedagógica não se
desenvolve só por meio da lógica da razão científica mas, também, pelo
toque, pela visão, pelos odores, pelos sabores, pela escuta (GOMES,
2003:173).

Neste sentido, percebemos o quanto os discursos que excluem, hierarquizam e


produzem sujeitos que são invisibilizados em nossa sociedade são produzidos inclusive
na escola. É, portanto, a partir da compreensão surgida no Brasil em meados dos anos
1990, que propõe discutir a relação do currículo como cultura (MACEDO, 2014), que

sumário 1450
VII Seminário Vozes da Educação

norteamos nossa prática pedagógica por entender que a cultura é um objeto


epistemológico, na medida em que ela é inventada, pensada e recriada, não de maneira
estática, mas dinâmica e contingente, como objeto do saber-poder. Ela é o resultado
temporário e híbrido, que tentamos domesticar como objeto, porém, ambivalentemente,
não cessa de ser prática. Uma prática conduzida por relações de poder tensas e
conflituosas, que classificam a diferença como inimigo e adversário, como inferior e
superior. Uma prática que enuncia demandas particulares buscando articulações com e
contra outras para alcançarem algum privilégio nas negociações de sentidos e
conquistas concretas. Ambivalentemente, a cultura é o objeto de disseminação dos
discursos de uma hegemonia provisória e a prática indecidível e não-classificável das
diferenças.

Cultura visual e a construção de identidades na escola


Partindo dessa concepção de currículo como cultura, entendemos que as
visualidades presentes no cotidiano escolar são de extrema importância para os
processos não hegemônicos de ensino-aprendizagem que contribuem na construção das
identidades e, portanto, na sociabilidade, dos alunos e alunas.
Por isso, partimos da seguinte concepção de Cultura Visual, buscando destacar o
poder das imagens na medicação pedagógica:

Consideramos que a Cultura Visual abarca muito mais que um campo de


estudo e pode inspirar projetos de trabalho na Educação Básica, pois se
caracteriza como uma atitude intelectual que busca nas visualidades do
contexto, no qual estão inseridos os sujeitos, aquelas que possam deflagrar a
reflexibilidade tanto de discentes como de docentes, voltando-se para si
mesmos na tentativa de compreenderem seus contextos, como também seus
posicionamentos nesses contextos. Essa atitude intelectual explicita o poder
das imagens, das visualidades, compreendendo que toda e qualquer imagem,
inclusive as eleitas para a mediação pedagógica, também são produzidas a
partir de uma visão que, consequentemente, coloca discentes e docentes em
uma determinada posição. Desse modo, o que importa não é a imagem, pois
nenhuma imagem aliena ou empodera por si mesma, apesar da
intencionalidade do produtor da imagem, mas é a ação das pessoas, o que
elas fazem com e a partir das imagens para suas próprias vidas.
(HERNANDEZ, 2000:32)

Deste modo, entendemos que não basta haver imagens, artefatos, propagandas
que dêem conta de “representar” a diversidade étnico/racial na escola, mas, é preciso
que as ações pedagógicas se voltem para a construção desse olhar atento sobre as
imagens e a construção das narrativas sobre elas. Ou seja, no caso da contação de

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

história acima citada, a ilustração do livro provoca e assusta a criança que não se
reconhece como negra, mas é na mediação pedagógica que se pode, de fato, construir
esse processo de estranhamento do que seria ser negro, segundo a fala da aluna.
No geral, temos uma escola no Brasil que ainda é extremamente racista e
excludente. Segundo dados do Todos Pela Educação, uma organização da Sociedade
civil, sem fins lucrativos, em um levantamento feito em 2015, 30% da população negra
(pretos ou pardos) não completava o Ensino Fundamental antes dos 16 anos e só 56,8%
da população preta e 57,8% parda, entre 15 e 17 anos, continuava no Ensino Médio. E o
cenário se agrava se comparado a dados da população branca: 82% dos alunos brancos
terminam o Ensino Fundamental, e 71% com idade entre 15 a 17 anos, continuavam no
Ensino Médio. Segundo dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de
2015, 44,8% dos alunos brancos do 9º ano do Ensino Fundamental aprenderam
adequadamente o português e somente 30,8% e 24,5%, entre os estudantes pardos e
pretos, respectivamente. Em matemática, 27,4% dos brancos tem o domínio adequado
da disciplina contra 15% dos pardos e 10,7% dos pretos. Dados do questionário do
Censo Escolar de 2015, aplicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep) com 52 mil diretores de escolas, mostram que em
12 mil delas não existem projetos com a temática do racismo.
Assim, neste difícil cenário, entendemos que a cultura visual assume um
importante papel no currículo, uma vez que, a partir dela, pode-se buscar fomentar os
modos pelos quais vemos o mundo e a nós mesmos. Esta noção de visão, para além da
fisiologia, mas articulada às questões culturais, nos parece fundamental para os
processos pedagógicos:

As noções de visão -o processo fisiológico em que a luz impressiona os


olhos- e visualidade -o olhar socializado- são fundamentais para o campo de
estudo da Cultura Visual, pois pensar sobre essas práticas implica questionar
os modos pelos quais vemos o mundo e a nós mesmos e, também, como
somos capazes, autorizados e ou levados a ver a nós no mundo (JAY,
2003:41)

Isto quer dizer que o campo da Cultura Visual, mais do que pensar quais
imagens ou objetos devem ser estudados, analisados e questionados, se debruça sobre as
construções de narrativas a partir das representações traduzidas nestas imagens, objetos
e artefatos. Ou seja, coloca em discussão os modos de dizer o que e como é o mundo

sumário 1452
VII Seminário Vozes da Educação

que habitamos, auxiliando na construção de visões sobre nós mesmos no mundo, sobre
nossas identidades individuais e coletivas.
Segundo Freedman (2002), a identidade de cada sujeito se reflete e se define no
modo como cada um representa a si mesmo visualmente. Para esta autora a cultura é a
forma como o sujeito vive, e a cultura visual dá forma ao mundo do sujeito, uma vez
que atribuem significados às imagens e suas produções partir de suas próprias histórias
de vida e experiências cotidianas.
Assim, é preciso que a escola ofereça as condições necessárias para que esta
atribuição de sentidos ocorra, o que passa por não só oferecer imagens que que
“retratem” a diversidade mas discutir a diversidade a partir da experiência, do cotidiano
da escola. Não basta, por exemplo, somente colar cartazes no mural sobre a luta anti-
racista ou falar da cultura afrobrasileira como um conjunto de tópicos ou características
formais e visuais, mas sim, discutir como essas imagens ganham sentido a partir da
experiência dos alunos e alunas, em especial, os negros e negras que, como vimos,
ainda vivem uma absurda desigualdade no acesso e permanência na escola no Brasil.
Neste sentido, a preocupação com a imagem/representação não devem fazer
parte somente das aulas de arte na escola, mas estar integrada ao currículo como um
todo, permeando os diferentes fazeres pedagógicos na escola. Aqui, entendemos
imagem como “símbolos e narrativas visuais, que abordam a todo instante os sujeitos
contemporâneos neste início de século, promovem um cruzamento de significações e
constroem conhecimentos quando se lê ou se produz imagens” (CARDOSO, 2010: 11).
Foi com esse norte que buscamos desenvolver no Colégio Universitário Geraldo
Reis da Universidade Federal Fluminense (COLUNI- UFF) uma série de ações tendo a
imagem como eixo central de atividades pedagógicas que colocassem em discussão a
temática étnico-racial na escola. A primeira delas partiu do autorretrato. Pedimos que
cada aluno (as) desenhasse como se via e como gostaria de ser. A imagem que mais nos
surpreendeu foi esta:

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Isaque, 8 anos. À esquerda, desenho de como o aluno se vê. À direita, desenho de como ele gostaria de
ser.

O aluno negro de cabelos pretos representava a si mesmo como sendo branco e


loiro, o que não acontecia com alunos brancos. Nenhum dos 22 alunos brancos, em uma
turma de 27 alunos, desenhou a si mesmo como sendo negro, por exemplo.
Percebemos que havia uma dificuldade grande, entre as crianças, em se
reconhecerem em seus fenótipos e suas características étnico-raciais, em especial entre
as meninas, cujos cabelos crespos eram considerados por muitos como cabelos ruins,
interferindo diretamente não só na identidade mas na própria autoestima dessas meninas.
A construção da identidade é tema central no processo de aprendizagem,
especialmente, nos anos iniciais. Conforme afirma Vygotsky (1988), as características
individuais, e até mesmo nossas atitudes, estão impregnadas de trocas com o coletivo,
ou seja, por mais individual que a identidade possa ser ela é construída a partir de sua
relação com o outro. Sendo a escola um espaço da relação com o(s) outro(s), um espaço
da sociabilidade, é preciso pensar as identidades, em especial, a identidade negra, de
forma a combatermos o racismo e a desigualdade ainda presentes nas relações escolares.

sumário 1454
VII Seminário Vozes da Educação

O negro, frente a essa sociedade tomada por valores europeus, encontra-se,


muitas vezes, desprovido de um parâmetro capaz de fazê-lo se reconhecer
como parte dela. Dessa forma, a identidade negra pode se constituir numa
identidade frustrada e aderir ao ideal do branqueamento da nação, negando,
assim, a sua condição. (MUNANGA, 2004:26).

Realizamos, então, uma atividade de contação de histórias do livro “Os mil


cabelos de Ritinha” para falar sobre essa questão da identidade das meninas negras.
Após a leitura do livro, analisamos imagens de mulheres negras em jornais e revistas e
seus cabelos e criamos uma colagem que tivessem por base a forma desses cabelos.
Por fim, foi feita uma oficina de turbantes, oferecida pela mãe de uma aluna,
onde tanto as meninas como os meninos puderam experimentar a técnica do turbante e
discutir sobre as questões de beleza, padrão de beleza, cabelos, etc. Obviamente, apenas
estas ações não são suficientes para acabar com a desigualdade ainda presente na escola,
mas acreditamos que ações como estas podem começar um longo processo de discussão
que fazem não só alunos como professores repensarem suas práticas, e (re)elaborarem
significados para construir suas identidades.
A cultura visual tem um papel fundamental nesse processo, pois através dela
podemos ver a nós mesmos e ao mundo e buscar entender como essas visões se
constroem. Entendendo como atribuímos significados às imagens e a nós mesmos,
poderemos começar a construir práticas pedagógicas não racistas e antirracistas, isto é,
práticas que não só coloquem o racismo e a desigualdade em discussão mas que criem
as condições objetivas e subjetivas para acabar com elas. Afinal, esta é a principal
função da educação: ser transformadora.

Referências
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sumário 1456
VII Seminário Vozes da Educação

“DESCOLONIZAÇÃO” DO PENSAMENTO DE BOAVENTURA SOUSA


SANTOS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA PENSAR A EDUCAÇÃO PARA
RELAÇÕES RACIAIS

Gracyelle Silva Costa


PPGE-UFF
graccy_sc@hotmail.com

Introdução
O pensamento de Boaventura Sousa Santos 192 tem sido muito difundido no
Brasil. O autor discute muitas temáticas como epistemologia, cidadania, emancipação
social, sociologia do direito, igualdade/diferença, interculturalidade, teorias pós-
coloniais, conhecimento, justiça social, democracia, entre outros.
O interesse em aprofundar a expressão “descolonização” trazida pelo
autor Boaventura Sousa Santos veio através da leitura de artigo da autora Nilma Lino
Gomes, intitulado “Relações Étnico-Raciais, Educação e Descolonização dos
Currículos”. A autora discute e destaca as tensões que impossibilitam a
“descolonização” dos currículos na educação básica. Dessa forma, indica que deve
ocorrer uma mudança epistemológica e política que valorize e trate a questão étnico-
racial de forma obrigatória nos currículos, como se refere a Lei 10.639/03193. O dialogo
feito pela autora com Boaventura 194 se dá por meio da noção de “descolonização”
proposta por este, ou seja, uma (re)construção histórica alternativa e emancipatória que
192
Boaventura de Sousa Santos nasceu no dia 15 de novembro de 1940, na cidade de Coimbra, em
Portugal. Em 1963 licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, tendo realizado no ano de
1964 um curso de pós-graduação na Universidade de Berlim. Obteve seu título de mestre em 1970, pela
Yale University, com a tese “As Estruturas Sociais do Desenvolvimento e o Direito”, e em 1973 concluiu
seu doutorado pela mesma instituição. Atualmente é Professor Catedrático da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade
Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente Diretor do
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Diretor do Centro de Documentação 25 de abril
da mesma Universidade e Coordenador Científico do Observatório Permanente de Justiça Portuguesa.
Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/cientistassociais/boaventura. Acesso em: 28 jul. 2019.
193
A lei que torna obrigatório nas escolas públicas e privadas o ensino de história e cultura afro-
brasileira e cujo objetivo é desconstruir o preconceito étnico-racial no âmbito do espaço escolar.
194
Neste trabalho me refiro ao autor Boaventura Sousa Santos, não pelo sobrenome “Santos”, mas pelo
primeiro nome “Boaventura”, pois é uma forma mais comum de nos referirmos a ele, além de diferenciar
dos outros autores com o mesmo sobrenome.

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pretende construir uma história outra que se oponha a perspectiva eurocêntrica


dominante (2012, p. 107).
Neste texto, adoto a opção epistemológica de fazer o uso do termo “relações
raciais”, ao invés de “étnico-raciais”, estando em concordância com Munanga (2000) e
Seyferth (2016). Kabengele Munanga, em sua produção “Uma abordagem Conceitual
das noções de Raça, Racismo e identidade e etnia”, afirma que os grupos populacionais
ditos raças “branca”, “negra” e “amarela” podem ter, assim, várias etnias.
(MUNANGA, 2000, p.12). E a “etnia é de conteúdo sociocultural, histórico e
psicológico”. Uma etnia seria um conjunto de indivíduos que têm um ancestral comum,
têm uma língua comum, uma mesma cosmovisão, uma mesma cultura e moram
geograficamente num mesmo território (MUNANGA, 2000, p. 28).
Ainda em diálogo com Munanga, em seu texto, antes de tratar da categoria
“etnia” ele faz considerações sobre a categoria “raça”. Segundo o autor, inicialmente,
foi atribuída a uma desigualdade biológica no âmbito das ciências sociais e humanas, de
forma que as relações entre negros e não-negros se estabelecem a partir do significado
social atribuído às diferenças fenotípicas, dando origem ao conceito sociológico de que
“o racismo cria a raça” (2000, p. 16).
A autora Giralda Seyferth em seu texto “Raça, Mestiçagem no Brasil” (2016, p.
33) também atribui o conceito de raça como “símbolo de diferenciação dos grupos” e
como produtor de ralações hierarquizadas nas quais os indivíduos são identificados
como superiores e inferiores. Sendo assim, pensando e estando em diálogo com os
autores citados, substituir ou compor a palavra raça com a palavra etnia pode disfarçar
os entraves que o racismo provoca na vida das populações negras. E a categoria “raça”
deve desaparecer, quando não tivermos a “racialização” no mundo.
Pretende-se nesse texto explorar as potencialidades de Boaventura de Souza
Santos, as suas contribuições e especialmente as implicações do conceito
“descolonização”. Posteriormente, pensar nas conquistas em termos de legislação e
políticas públicas que tivemos no campo das relações raciais. Por fim, tecer algumas
considerações sobre a relevância do pensamento do Boaventura Sousa Santos como
possibilidade de educação democrática e antirracista.

“Descolonização”: negação em reconhecer da humanidade integral do outro


Utiliza-se neste texto a expressão “descolonização” a partir da concepção de
Boaventura (2019, p. 13). O autor defende que é preciso descolonizar as ciências

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sociais, a escola e a universidade ocidental ou ocidentalizada.


Em uma recente obra, O fim do império cognitivo: a afirmação das
epistemologias do Sul, publicada neste ano, o estudioso faz uma ampla discussão sobre
a expressão “descolonização” e retoma alguns conceitos de obras anteriores que
aprofundam a explanação, sendo muito importante recuperá-los para que possamos
compreender efetivamente que tipo de “descolonização” ele propõe.Neste sentido,
Boaventura discute os conceitos de “epistemologias do Sul” e “epistemologias do
Norte”. Para o autor, não se trata do Sul e Norte geográficos.

Trata-se de um Sul epistemológico, não geográfico, composto por muitos


suis epistemológicos que têm em comum o fato de serem conhecimentos
nascidos de luta contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. São
produzidos onde quer que ocorram essas lutas, tanto no norte geográfico
como no sul geográfico. O objetivo das epistemologias do Sul é permitir que
os grupos sociais oprimidos representem o mundo seu e nos seus próprios
termos, pois apenas desse modo serão capazes de o transformar de acordo
com as suas próprias aspirações (SANTOS, 2019, p. 17).

O Sul epistemológico é definido como conhecimentos que geralmente são


ignorados, apagados pelas culturas dominantes (do Norte). Os conhecimentos que ele
chama de “epistemologia do Sul” nasceram nas lutas sociais, vêm de experiências de
povos marginalizados que resistem cotidianamente.
Segundo Boaventura (2019, p. 18), a intenção é valorizar e identificar o que
muitas vezes não é considerado como conhecimento pelas epistemologias dominantes.
As epistemologias do Sul, para o autor, ocupam esse conceito de epistemologia para que
ressinifiquem as epistemologias do Norte e os seus conhecimentos dominantes. Ainda
assim, afirma que “só existe epistemologia do Sul na mesma medida que existe a
epistemologia do Norte”.
Para Boaventura (2019, p. 19), o termo “epistemologia” está centrado na
“análise das condições de produção e identificação do conhecimento válido (numa
dimensão normativa)”. As epistemologias do Sul desafiam as epistemologias do Norte
em dois pontos cruciais. Os seus pontos indicam que é preciso “identificar, discutir a
validade de conhecimentos e de modos de saber” que são ignorados pelas
epistemologias do Norte

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(...) por não serem produzidos de acordo com metodologias aceitáveis ou


inteligíveis, ou porque são produzidos por sujeitos ausente, sujeitos
concebidos como incapazes de produzir conhecimentos válido devido a sua
impreparação ou mesmo à sua condição não plenamente humana (SANTOS,
2019, p.19).

Em seu texto “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma
ecologia de saberes”, o autor afirma que o pensamento moderno ocidental é um
pensamento abissal, considerando a existência de diferenciações “visíveis” e
“invisíveis”. Para ele, a realidade social é dividida em dois universos distintos. A
separação acontece quando “o outro lado da linha” desaparece enquanto a realidade
torna-se inexistente. A inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser
relevante ou compreensível. O que é produzido como inexistente é excluído de forma
radical, porque “permanece em um universo exterior que a própria concepção aceite de
inclusão julga como sendo o Outro” (SANTOS, 2010, p. 32). “O pensamento abissal é
impossibilidade de copresença dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece
na medida em que esgota a realidade relevante. Para além dela apenas existência,
invisibilidade e ausência não dialética” (SANTOS, 2010, p. 32).
O pensamento abissal representa a permissão à ciência moderna do monopólio
da distinção universal entre o verdadeiro e o falso, em detrimento de dois
conhecimentos alternativos: a filosofia e a teologia. A questão principal é a disputa
epistemológica moderna entre as formas científicas e não-científicas de verdade. Tendo
como validade universal da verdade científica é, reconhecidamente, como uma verdade
sempre relativa, dada pelo fato de poder determinar apenas em relação a certos tipos de
objetos em determinadas circunstâncias e por meio de determinados métodos, ou seja,
como que ela se relaciona com outras verdades possíveis, podendo “inclusivamente
reclamar um estatuto superior, mas não podem ser estabelecidas de acordo com método
científico” (SANTOS, 2010, p. 33).
O autor identifica a existência de “linhas abissais globais dos tempos modernos”,
essas que operando de forma diferenciada, são bilaterais, mesmo com as tensões. E
exemplifica que as tensões entre a ciência, a filosofia e a teologia são visíveis, portanto,
ele está em defesa da complementariedade entre ambas. Os conhecimentos populares 195
não se encaixam nas formas de conhecer invisibilizando a sua visibilidade.

195
O autor faz menção aos conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses, indígenas do outro
lado da linha. Esses que desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se
encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso.

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É inimaginável aplicar-lhes não só a distinção científica entre o verdadeiro e


falso, mas também as verdades inverificáveis da filosofia e da teologia que
constituem o outro conhecimento aceitável deste lado da linha. Do outro lado
da linha não há conhecimento real, existem crenças, opiniões, magia,
idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos, que, na melhor das
hipóteses, podem tornar-se objetos ou matéria-prima para a inquirição
científica (SANTOS, 2010, p. 34).

Boaventura indica como “o outro lado da linha” o campo do direito moderno,


este que é determinado por “legal e ilegal de acordo com o direito oficial do Estado ou o
internacional”. Indica duas únicas formas de relevantes perante a lei, que são o legal e o
ilegal, e entre ambos há uma diferenciação universal. O que desconsidera todo um
território social, um território considerado ilegal de acordo com direitos não
oficialmente reconhecidos. Dessa forma, a linha abissal invisível fragmenta “o domínio
do direito do domínio do não-direito fundamentado numa dicotomia invisível entre o
legal e ilegal”(SANTOS, 2010, p. 34). Reafirma que o pensamento moderno ocidental
continua a operar mediante as linhas abissais que dividem o mundo humano do sub-
humano.
Como resultado de resultado de uma reflexão teoria e epistemológica, o autor
faz menção a “dois procedimentos sociológicos” que contribui contra a exclusão e
discriminação/desumanização.
Em seu livro a Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência,
Boaventura traz o que nomeia por “procedimentos sociológicos de sociologia das
ausências e da sociologia das emergências”, dentre tantos outros conceitos e categorias,
mas neste momento destaco esses dois.
Assim, acredita que a riqueza social não pode ser desperdiçada, sendo necessário
um modelo diferente, ou seja, “outro modelo de racionalidade”. Considera que a
experiência social no mundo possui uma diversidade de conhecimentos/saberes até
maior do que a tradição científica ou filosófica ocidental, que é a considerada a mais
importante (SANTOS, 2004, p. 774).
A sociologia das ausências tem a finalidade de converter os sujeitos ausentes 196
em sujeitos presentes, sendo de caráter essencial para identificar e validar os
conhecimentos que visem auxiliar na reinvenção emancipatória dos sujeitos sociais
silenciados. A perspectiva da sociologia das emergências, também indicada pelo autor,
significa dar visibilidade aos sujeitos sociais e aos seus conhecimentos através de

196
Os trabalhadores, imigrantes vítimas de xenofobia, afrodescendentes vítimas de racismo, muçulmanos
pobres, refugiados, mulheres, população LGBTQ+, entre outros.

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possibilidades plurais e concretas futuras o que ele chama de “vir a ser” (SANTOS,
2004, p. 793).
Boaventura (2004, p. 794) dialoga e compartilha do mesmo pensamento do autor
Ernst Bloch (1995), quando cita a afirmação deste de que “o possível é o mais incerto, o
mais ignorado conceito da filosofia ocidental”. Neste sentido, a sociologia das
emergências traz a ideia de que a realidade não se restringe àquilo que existe, ela age
também nos possíveis “Ainda-Não realizados”.

O Ainda-Não é a categoria mais complexa, porque exprime o que existe


apenas como tendência, um movimento latente no processo de se manifestar.
O Ainda-Não é o modo como o futura se inscreve no presente e o dilata. Não
é um futuro indeterminado nem infinito. É uma possibilidade e uma
capacidade concretas que nem existem no vácuo, nem estão completamente
determinadas. O Ainda-Não é, por um lado, capacidade (potência) e, por
outro, possibilidade (potencialidade) (SANTOS, 2004, p. 795).

Os dois procedimentos sociológicos indicados pelo autor, a “sociologia das


ausências” e a “sociologia das emergências”, apontam que “quanto mais experiências
estiverem hoje disponíveis no mundo, mais experiências são possíveis no futuro”
(SANTOS, 2004, p.796).
A sociologia das ausências se destina a descobrir as experiências existentes,
sendo uma forma de “conhecer melhor o que as realidades investigadas através de pistas
ou sinais”, já a sociologia das emergências se propõe pensar sobre viés futuro, como foi
mencionado anteriormente, sendo assim, estuda as experiências possíveis, do que
“Ainda-Não” é, porém o amplia e o insere nas possibilidades que ele comporta, ou seja,
tem a finalidade de “fortalecer essas pistas ou sinais” (SANTOS, 2004, p. 796).
Dentro dessa proposta, ambos os procedimentos sociológicos se correlacionam,
trazendo elementos concretos dessas muitas realidades, apoiados em possibilidades
reais, ultrapassando o idealismo e o universalismo criado pelo determinismo.

Contudo, enquanto a sociologia das ausências se dedica à negatividade dessas


exclusões, no sentido em que sublinha e denuncia a supressão da realidade
social gerada pelo tipo de conhecimento validado pelas epistemologias do
Norte, a sociologia das emergências dedica-se a positividade dessas
exclusões, considerando as vítimas de exclusão no processo de rejeição da
condição de vítimas, tornando-se pessoas resistentes que praticam formas de
ser e de conhecer na sua luta contra a dominação. Tonar possível a passagem
de vitimização à resistência (SANTOS, 2019, p. 53).

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Neste sentido, os sujeitos que foram produzidos como ausentes apresentam seus
modos de ser diferentes, podendo-se caracterizá-los como oprimidos, silenciados,
pessoas humanas que têm sido excluídas do modo dominante de ser e conhecer. As
relações de poder desiguais se fazem presentes em seus cotidianos. O autor indica que é
preciso resgatar em seus processos cognitivos o seu protagonismo, que é um “ato depré-
conhecimento, um impulso intelectual e político” (SANTOS, 2019, p.53).
Portanto, é “estabelecida uma relação entre o sujeito que conhece e o objeto de
conhecimento”, sendo nesse processo dialético que se resgata a autoria do sujeito, a luta
social (âmbito coletivo) e política. Dessa forma, o conhecimento (razão) e o saber (com
o corpo e os sentidos) são constituídos por práticas de resistência contra a opressão.
(SANTOS, 2019, p. 19).

Equivalerá a trivializar lutas sociais que, doutra perspectiva, seriam


importantes, não permitindo que essas mesmas lutas contribuam para a
expansão e o aprofundamento do horizonte global de emancipação social, ou
seja, a própria ideia de que um outro mundo é possível. As epistemologias do
Sul são a expressão da luta contra o possível duplo desperdício: um
desperdício intelectual e um desperdício político (SANTOS, 2019, p. 29).

Boaventura considera não haver justiça social sem a justiça cognitiva, por isso a
descolonização do conhecimento é um “pensamento alternativo as alternativas para
fortalecer as lutas contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado” (SANTOS,
2019, p. 24).
“Descolonização” vem do termo “colonialismo”, que é a recusa de “reconhecer a
humanidade integral do outro”. E descolonizar provoca a “descolonização do
conhecimento colonizado quanto do conhecimento do colonizador”. Sendo importante
considerar a expansão e a consolidação da dominação moderna que aconteceu através
do capitalismo (mercantilização e exploração da natureza do trabalho) e o seu caráter
patriarcal (desvalorização dos corpos, do trabalho das mulheres). Essas que funcionam
em conjunto, incluindo a ocupação territorial e estrangeira. Havia outras formas de
colonialismo, na Europa, como o racismo e a discriminação de certos grupos sociais.
(SANTOS, 2019, p. 163).

Para serem consistentes e eficazes, o pensamento e a ação descolonizadores


têm de ser igualmente anticapitalistas e antipatriarcais. De acordo com as
epistemologias do Sul, o pensamento e a ação descolonizadores não
constituirão uma intervenção cultural eficaz se não intervierem também no
âmbito da economia política (SANTOS, 2019, p. 176).

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É preciso ter em mente que o colonialismo assumiu em diferentes regiões do


mundo características distintas. Entende-se que não se centrou exclusivamente na
conquista ao “Novo Mundo”, mas também é preciso considerar que o colonialismo se
espalha para África e Ásia assumindo particularidades distintas. O autor afirma a sua
defesa na “centralidade de lutas contra a dominação capitalista, colonial e patriarcal,
onde quer que ocorram” (SANTOS, 2019, p. 177).
O sentido de descolonizar para o autor seria por em prática as “ecologias de
saberes”. O autor define como “ecologia o reconhecimento da pluralidade dos
conhecimentos heteragéneos197 e em interações sustentáveis e dinâmicas” (SANTOS,
2010, p. 53). A ecologia de saberes tem como principal argumento a “diversidade
epistemológica no mundo, o reconhecimento de uma pluralidade de formas de
conhecimentos além do conhecimento científico” (SANTOS, 2010, p.53-54).
A ecologia de saberes198 para o Boaventura é “dar consistência epistemológica
ao pensamento pluralista e propositivo, sendo o cruzamento entre os conhecimentos e as
ignorâncias”. A ignorância como possibilidade de ser o ponto de chegada e não
necessariamente o ponto de partida e também pode inclusive resultar no processo
“desaprendizagem”. As argumentações do autor no que diz respeito à ecologia de
saberes é que todos têm limites internos e limites externos. Todos os conhecimentos são
incompletos e precisamos ter consciência dessa imperfeição (SANTOS, 2010, p.56).

O pluralismo interno da ciência abre espaço para à sua utilização contra as


formas de dominação. Nas condições do nosso tempo, os conhecimentos
mobilizados nas lutas sociais são em geral uma combinação de, por um lado,
conhecimentos científicos, eruditos, e, por outro, conhecimentos artesanais,
empíricos e práticos. A construção dessas combinações, misturas e
hibridizações é a principal tarefa das ecologias de saberes (SANTOS, 2019,
p. 77).

O autor está em defesa dos conhecimentos nascidos das lutas sociais, porque é
construção do desenvolvimento da luta, nomeado pelo autor por “conhecer com”. Sendo
uma realização de reflexão da ação e, ao mesmo tempo, a reflexão sobre a própria ação.

Entre muitas facetas outas facetas esse reflexo-com-reflexão torna possível


uma visão complexa do presente histórico da qual surge uma compreensão
mais aprofundada do estado presente de uma dada luta. Um presente

197
Exemplo de um deles seria a ciência moderna;
198
Para se integrar nas ecologias de saberes, a ciência precisa considerar o “critério de objetividade
próprio da ciência, respeitando também o critério do esforço das lutas contra a opressão” (SANTOS,
2019)

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reflexivo é um triplo presente: o passado-enquanto-presente, o presente-


enquanto-tarefa e o futuro-enquanto-presente (SANTOS, 2019, p. 196).

É importante considerar que através de reivindicações dos movimentos sociais


que temos dado alguns “passos”, ou seja, é/ foi através de lutas sociais e reivindicando a
presença de temáticas e conteúdos que foram silenciados durante muito tempo.

Educação antirracista: avanços e retrocessos


No campo das relações raciais tivemos alguns avanços que devem ser
considerados, através da colaboração entre os pesquisadores e movimento social negro,
que têm funcionado como “vasos comunicantes” 199
, ou seja, uma relação de
complementariedade mútua, enriquecedora e solidária. O que dialoga com o
pensamento de Boaventura sobre o papel importante das lutas sociais.Nos últimos anos,
foram aprovados leis e documentos relativos às relações raciais e a educação. No ano
1997, ocorreu o reconhecimento de Zumbi dos Palmares como herói nacional, a data de
sua morte se tornou feriado nacional, nomeado como o dia da Consciência Negra, dia
20 de novembro, rompendo um pouco com legado da branquitude ou heróis brancos.
No ano de 2003, foi sancionada a Lei 10.639, que incluiu na LDB200 o
ensino obrigatório no currículo oficial “a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”,
além da Lei 11.645/2008, que inclui também a Cultura Indígena. Esse foi um
importante passo dado na educação, porque foi à oportunidade apresentar outras
narrativas históricas e culturais. Sendo um momento crucial de romper com “história
única” que foi contada tradicionalmente contada sob a perspectiva colonial.

É impossível falar sobre uma única história sem falar sobre o poder. Há uma
palavra, uma palavra da tribo Igbo que eu lembro sempre que penso sobre as
estruturas de poder do mundo, e a palavra é “nkali”. É um substantivo que
livremente se traduz: “ser maior do que o outro”. Como nosso mundo
econômico e político, histórias também são definidas pelo princípio do
“nkali”. Como são contadas, quem as conta quando e quantas histórias são
contadas, tudo realmente depende do poder (ADICHIE, 2016).

Em 21 de março de 2003, a Seppir 201 (Secretaria Especial de Políticas de


Promoção da Igualdade Racial) instituiu a Política Nacional de Promoção da Igualdade

199
O conceito de “vasos comunicantes” foi abordado pelo professor Kabengele Munanga na Conferência
de Abertura do COPENE de Uberlândia, em Minas Gerais, em 12 de outubro de 2018.
200
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional;
201
No ano de 2016, 52 anos após o golpe 1964, o nosso país vive em “tempos sombrios”. Atualmente, a
Seppir foi extinta após o golpe de 2016, por uma medida de Michel Temer. O que vivemos em 2016 e

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Racial. Desta forma, recolocou a questão racial na agenda nacional e a importância de


se adotarem políticas públicas afirmativas de forma democrática, descentralizada e
transversal. O principal objetivo desses atos é promover alteração positiva na realidade
vivenciada pela população negra e trilhar rumo a uma sociedade democrática, justa e
igualitária, revertendo os perversos efeitos de séculos de preconceito, discriminação e
racismo.
A Resolução CP/CNE n. 1/2004 institui as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana. Essas diretrizes estão pensando em políticas de reparações,
de reconhecimentos e valorização dos negros, possibilitando à população o ingresso, a
permanência e o sucesso na educação escolar, tendo em vista as desigualdades que
permeiam o processo de escolarização da população negra.
A Lei 12.711/12 lei das Cotas no Ensino Superior pode ser considerada também
um avanço. No entanto, tem priorizado as condições socioeconômicas, desconsiderando
a autonomia entre raça e classe. Através dos indicadores sociais, geralmente, ambas as
categorias se cruzam, produzindo as desigualdades e discriminação. Ainda assim, é
preciso manter a autonomia das categorias. Por exemplo, um homem negro de classe
média alta pode sofrer racismo, que é produtor de discriminação. O racismo penaliza os
negros, independente da sua condição socioeconômica, portanto este grupo tem direito à
reparação para que a justiça social se estabeleça.
Com os percalços e/ou pormenores, as políticas de ações afirmativas
contribuíram e tem contribuem significativamente com a presença cidadãos negros na
universidade e se transformando em sujeitos de direitos, protagonistas de suas próprias
histórias, tendo uma presença considerável no ensino superior. Sãos também
expressivos os materiais didáticos e livros acadêmicos que começam a valorizar a
diversidade na formação. Em alguns cursos no ensino superior são alteradas ementas,
mas sabemos que também são obrigatórios, tais conhecimentos entre os componentes
curriculares, determinados pela Resolução mencionada CP/CNE n. 1/2004.Ressalte-se
que sequer a Medida Provisória 746/2016, que delegou à Base Nacional Comum
Curricular, cuja versão final revoga temas importantes que eram tratados na Educação
Básica, especificamente no diz respeito à reforma do Ensino Médio e indica o prazo de
até 2020 para sua implementação nas salas aula. A Base Nacional Comum Curricular

continuamos a viver, hoje, neste país foi/é um desrespeito à Constituição Federal de 1988 e contra o
“estado democrático de direito”, após a retirada de uma presidente eleita pelo povo.

sumário 1466
VII Seminário Vozes da Educação

tem o papel de responsabilizar os alunos pelos maus resultados que virão. Como exigir
de um estudante negro, de periferia que faça escolhas “livres e com autonomia” para o
“seu projeto de vida” numa comunidade miserável e violenta?
Como podemos, ver foi aprovado
um conjunto de medidas que permitiram uma redução das desigualdades raciais. No
entanto, estamos passando por um momento de retrocesso histórico e temos visto o
retorno de modelos autoritários. Atualmente, o discurso conservador tem ignorado as
demandas das minorias, como quando o presidente afirma que “no Brasil o racismo é
algo raro”202, negando a nossa história, as pesquisas acadêmicas e indicadores sociais
que constituem os bancos de dados disponíveis para o estudo das relações raciais por
meio do IBGE, IPEA e INEP. Para compreender a situação acima,
é preciso que a ideologia do branqueamento e o mito da democracia racial.

O mito da democracia racial não só implicou uma ‘reconstrução idílica’ do


passado e a persistência do clientelismo, como foi também sustentado pelas
realidades sociais do período republicano inicial – a falta de discriminação
legal, a presença de alguns não-brancos dentro da elite e a ausência de
conflito racial declarado. Por sua vez, a comparação frequente dessas
realidades coma situação racial de outras sociedades, particularmente os
Estados Unidos, ajudava a moldar a autoimagem favorável dos brasileiros
como referências às relações raciais (HANSEBALG, 2005, p. 251).

As bases para a legitimação dessa hierarquia excludente, que se reproduz na


escola, estão pautadas na sua pretensa igualdade de acesso para todos e por entender-se
possuidora de um conhecimento universal. Segundo Arroyo (2007), tal igualdade e
universalidade são “concebidas em abstrato, não concebidas no diálogo com a
diversidade racial, mas para silenciá-la. Daí que persistentemente o sistema venha
ignorando a questão racial” (ARROYO, 2007, p.117).
A autora Bell Hooks (2019, p. 204) dialoga com Judith Simmer-Brown sobre o
conceito de pluralismo, que é um compromisso de se comunicar com e em relação a um
mundo maior – com uma vizinhança muito diferente ou uma comunidade muito
distante. O que vem dialogar diretamente com o pensamento do Boaventura. A
indicação da autora é que precisamos buscar “sinais de esperança” através práticas de

202
Disponível em:
https://www.folhape.com.br/politica/politica/bolsonaro/2019/05/08/NWS,104376,7,1267,POLITICA,219
3-BOLSONARO-AFIRMA-QUE-RACISMO-ALGO-RARO-BRASIL.aspx

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participação, diálogo social e de constituição de novos sujeitos coletivos. Como Freire


já dizia, manter a esperança ativa, do verbo esperançar, para que juntos possamos
recuperar a democracia de valores solidários e emancipatórios.

Considerações finais
A Boaventura de Souza Santos não é um estudioso das relações racial, mas
aborda diversas temáticas e questões sociais. O termo “descolonização” proposto em
seu pensamento traz uma reflexão sobre outra epistemologia alternativa, essa que deve
considerar a pluralidade, diversidade e reconhecimento da humanidade integral do outro
(diferente de nós). O processo de descolonização do conhecimento é um “pensamento
alternativo” as alternativas para fortalecer as lutas contra o capitalismo, o colonialismo e
o patriarcado. Produz contribuições significativas para mudarmos a nossa óptica e nos
abrir para as diferenças culturais como riquezas que aumentam as nossas experiências e
a nossa sensibilidade, ou seja, propõe uma diversidade cognitiva do mundo.
Para isso nos propõe a desconstruir pontos que foram naturalizados que nos
impossibilitam de enxergar de forma positiva as diferenças culturais, sendo assim,
potencializando a educação intercultural, que contribui para descolonização dos
conhecimentos. O autor nos convida a investir nas possibilidades/práticas
emancipatórias educacionais e igualitárias. Sendo preciso mais do que discursos e muita
coragem e “luta por um fim sem fim” (SANTOS, 1996, p. 21).

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sumário 1469
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

OS CORPOS DOS DISCENTES NEGROS NA ERA VARGAS

Maiza da Silva Francisco 203


maizafrancisco@hotmail.com

Introdução
Esse trabalho tem como finalidade tecer algumas considerações relacionadas aos
Corpos Negros e o movimento eugenista e sua influência na educação brasileira na
década de 30. Nesse sentindo o estudo tem como objetivo discutir a prática esportiva
enquanto prática de ampliação e consolidação da educação eugênica no âmbito escolar.
A escola “é vista como um espaço em que ensina e compartilha não só
conteúdos e saberes escolares, mas também valores, crenças, hábitos e preconceitos
raciais” (GOMES, 2005, p .40). Nesse espaço, assim como na sociedade, “nós
comunicamos pormeio do corpo. Um corpo que é construído biologicamente e
simbolicamente na cultura e na história” (GOMES, 2005, p. 41). Segundo Guedes
(2006), foi através desse movimento corporal que os médicos sanitaristas utilizaram a
prática esportiva para além da disciplina, mais como disseminador de valores eugenistas
na educação brasileira.
Mas, retornemos as nossas questões iniciais: com a criação do modelo ideal de
raça superior idealizado a partir do homem eurocêntrico, o movimento eugenista foi
inserido nas escolas? A partir dessa prerrogativa, como esses corpos negros foram
adequados na escola? Para responder tais perguntas utilizaremos um referencial teórico
pautado na discussão sobre a Educação da Relações Étnico-Raciais, tendo como método
a pesquisa bibliográfica, por ser um conjunto de conhecimentos reunidos em obras.
Segundo Fanchin (2006), esse método tem como finalidade fundamentar vários
procedimentos metodológicos, ou seja, dados obtidos através de várias fontes escritas
como documentos, livros, fontes, etc.
Nesse sentido, o estudo apresenta-se assim estruturado: na primeira parte
abordarmos o movimento eugenista e os corpos negros, focando no surgimento dessa
teoria ideológica no Brasil; a segunda parte trata-se da influência do movimento

203
Mestrado em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Especialista em
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira pela UFRRJ, Graduação Licenciatura em
História pela Universidade Veiga de Almeida.

sumário 1470
VII Seminário Vozes da Educação

eugenista e a escola: nesse tópico da pesquisa buscamos responder como se


desenvolveu essa teoria dentro do contexto escolar; e na terceira parte, o doutrinador
dos corpos: buscamos dialogar de que forma a educação física na década de trinta foi
inserida como doutrinador dos corpos e principalmente propagador dos valores
eugênicos.

Os corpos negros e o movimento eugenista


Embora o foco desse artigo seja Corpos Negros na era Vargas, a nossa discussão
permeia pela prática esportiva como doutrinadora desses corpos a partir da disciplina
Educação Física que foi aderida no ambiente escolar no Governo Provisório. É preciso
compreender o processo de industrialização ocorrido no país na década de 20 e 30 para
entendermos como as propostas educacionais eugenistas firmaram-se nessa época.
Com as inovações ocorridas entre o Século XIX e XX durante o processo de
transição da oligarquia para o sistema fabril, ocorreram várias modificações na estrutura
urbanística da cidade, o aumento populacional com a migração do campo para a cidade
e a inserção de imigrantes em solo brasileiro. Desta forma o Brasil iniciou o processo de
expansão com novas bases econômica, política e social, valores e costumes da
população brasileira e a reconfiguração do Estado com novos padrões educacionais. A
partir desse processo de modernização foi incorporado o discurso científico relacionado
ao movimento eugenista que despertou interesse por parte dos médicos, professores,
cientistas, etc.
A construção da ciência eugênica no Brasil difere da ciência desenvolvida em
outros países, como os Estados Unidos, que criaram em suas narrativas dessa prática
científica, entre os anos de 1900 e 1930, uma influência “na promulgação de leis de
esterilização eugênica de antimiscigenação, de códigos criminais rigorosos e de
restrições a imigração” (TRAGTENBERG, 2009, p. 105).
Os códigos rigorosos implementados nos Estados Unidos contribuíram, a partir
do fornecimento das ideias eugenistas, no controle da natalidade como medida de
prevenção nascimento de indivíduos com doenças mentais. Essa justificativa era
equivocada. Como evidência Davis (2016), a esterilização era usada como artifício para
que não ocorresse a miscigenação entre os grupos étnicos e aponta que o controle de
natalidade era estimulado a jovens como desculpa de prevenção temporária; e a
mulheres pertencentes a minorias étnicas eram estimuladas, ou até mesmo ameaçadas a
se submeterem a prática de esterilização, sendo que algumas dessas mulheres foram

sumário 1471
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

abusadas; enquanto as mulheres brancas eram estimuladas a reproduzir. A partir da


reflexão desta autora pode-se entender que a eugenia foi utilizada como princípio para
interromper o crescimento da população negra pois, uma vez que a mulher negra era
impossibilitada de gerar filhos, não daria continuidade ao seu grupo étnico.
No Brasil, esse movimento surge como uma característica peculiar, tendo como
finalidade o “aperfeiçoamento da raça humana capaz de dar uma raça melhor dotadas
com o maior número de probabilidades para prevalecer sobre as menos boas” (KEHL,
1929, p. 4). Na fala do representante médico sanitarista Renato Kehl, a eugenia estava
sempre vinculada a questão racial, a civilizar a população brasileira e eliminar a
quantidade de elementos inferiores204 que cooperavam para o não desenvolvimento do
país.
Neste sentido, existia um esforço por parte dos médicos sanitaristas em extinguir
os corpos negros. Para esses médicos e alguns intelectuais fascinantes da ideologia
eugênica, era necessário atribuir o atraso no país à grande quantidade de negros
existente. O anseio dos intelectuais brasileiros em tornar o país “civilizado” e
“avançado” semelhante aos países europeus, com caraterísticas de Estado –Nação. Ao
comparar o Brasil com países “desenvolvidos”, esses intelectuais percebiam que além
do país ser rural, constituído por uma grande quantidade de analfabetos, ainda possuía o
agravante de ter uma grande quantidade de pretos e mestiços nessas terras, ou seja, esse
grupo étnico simbolizava atraso e disgênico.
A solução encontrada por esses intelectuais foi fomentar a inserção de
imigrantes estrangeiros de origem europeia no Brasil, com o intuito de branquear as
futuras gerações através do cruzamento inter-racial. Para Silva (2005, p. 210), “alguns
pensadores eugenistas, abandonariam seus projetos iniciais de aperfeiçoamento das
raças humanas, substituindo-o pela busca e valorização da raça branca”. A preocupação
pela manutenção da hereditariedade da raça era de suma relevância para o adepto desse
movimento. Influenciou de sobremaneira nos debates dos parlamentares que utilizaram
a Constituição de 1934 (BRASIL, 1934, p. 2) para regulamentar, por meio do Art. 138
da mesma constituição, a incumbência à União, Estados e municípios, nos termos da
Lei, em seu inciso b) estimular a educação eugênica.

204
No final do século XVIII a categoria raça ganhou força no pensamento social tendo reforçado os seus
pressupostos no final do Século XIX com o desenvolvimento da ciência em especial da biologia e de uma
forma “social de entender o Dawin e Spencer (HERNANDEZ, 2008, p. 132). De acordo com esta autora,
na modernidade era relevante a hierarquização dos quatros grupos étnicos elaborados pelos “naturalistas”
na qual era articulada o patrimônio genético, e as aptidões intelectuais na qual classificam o negro como
inferior e o branco como superior.

sumário 1472
VII Seminário Vozes da Educação

Diante de tais medidas adotadas na constituição brasileira, a ciência eugênica foi


ampliada por seus adeptos e inserida no âmbito escolar como espaço de (re) produção
de práticas culturais, e o modelos que diferenciavam dos modelos que eram
implementados a partir da cultura eurocêntrica era estabelecido como ausência de
civilização.
A partir dessa prerrogativa racial o corpo negro ficou marcado desde o processo
escravagista como objeto de desejo, como guerreiro, tratados como mercadorias
examinadas para serem colocados à venda, desumanizados, marcados pelo chicote pela
rebeldia; os corpos negros sempre tiveram na linha de frente, seja nas lavouras, ou nas
guerras, despertando interesses de forma diferenciada.
Nesse contexto, esses corpos negros sempre foram alvos de uma elite
eurocêntrica que alimentava o preconceito e o racismo que permeava na sociedade
incorporado na teoria do branqueamento205, que estava incluso no movimento eugenista.
Nesse sentindo, o Estado estava adotando a teoria racial pseudocientífica
eugenista por meio da teoria do branqueamento como um instrumento para civilizar o
país e clarear a população brasileira, transformar o fracasso em melhoria e aspirações
futuras de povos alfabetizados, instruídos que construíam uma nação.
Para Morales (2002), esse projeto de construção de um novo Estado era explícito
na política de remanejamento populacional que contribuiu para o perfil distinto de cada
região do país. No Sul a entrada de imigrantes, os nordestinos e sertanejos para o Norte.
Para a autora, o Brasil atrasado seria destinado ao Norte e Nordeste; o Brasil moderno
compreendia a região sudeste e sul, onde concentraria a grande quantidade de grupos
étnicos brancos.
A partir desse exposto podemos trazer a reflexão Gonzalez (1984) para
pensarmos sobre o desenvolvimento econômico brasileiro, e o resultado obtido através
do modelo de modernização conservadora excludente no qual todo o investimento de
industrialização foi direcionado a inserção de imigrantes ocorrendo um

205
Surgiu como política de incentivo a entrada de imigrantes espanhóis, italianos, entre outros, com o
intuito da limpeza étnica da nação. Nesse sentindo buscava o critério de imigração para o povo que teria
que ser de raça branca; imigração esta vista como possibilidade de regeneração da raça brasileira. Nesse
sentido a teoria do branqueamento sustentava a concepção de superioridade da raça branca. Como afirma
a autora MORALES (2002, p. 88), essa teoria tinha como pretensão criar uma positividade para o fato da
miscigenação, e afirmava que mesmo na união com o indivíduo portador de uma herança negra o
elemento branco predominaria”. Ainda com a autoraMorales (2002) essa teoria não estava apenas no
plano do pensamento social. Ela era incorporada na visão constitucional e utilizada como instrumentos de
fomentação de políticas de imigrações, sendo regulamentada através de leis que permitiam a inserção de
trabalhadores brancos em solo brasileiro.

sumário 1473
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

desenvolvimento desigual, de diferentes formas, dos Estados brasileiros e,


principalmente, privilegiando determinados grupos étnicos.
Desse modo, o racismo, enquanto articulação, manifesta ideologias e práticas
que denota a divisão do trabalho a partir de uma conjuntura racial extremamente
combinada a um divisão de grupo étnico, como afirma, Gonzalez (1984).

Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um


dos critérios de maior importância na articulação dos mecanismos de
recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema de
estratificação social. Portanto, o desenvolvimento econômico brasileiro,
enquanto desigual e combinado, manteve a força de trabalho negra na
condição de massa marginal, em tempos de capitalismo industrial
monopolista, e de exército de reserva, em termos de capitalismo industrial
competitivo (satelitizado pelo setor hegemônico do monopólio)
(GONZALEZ, 1984, p. 3).

Ao analisar o racismo institucional no Brasil, Werneck (2016) descreve que o


racismo permeia em diferentes esferas da sociedade e produz seus resultados tanto na
vida social quanto na econômica, na educacional, o que nos permite,

compreender como o racismo estrutura profundamente o escopo de


democracia no Brasil, reduzindo a abrangência da cidadania por estar na base
da criação e manutenção de preconceitos, ou seja, ideias e imagens
estereotipadas e inferiorizantes acerca da diferença do outro e do outro
diferente, justificando o tratamento desigual (discriminação) (WERNECK,
2016, p. 541).

É importante salientar que o racismo construído na sociedade por meio de uma


política eugênica, sanitarista, tendo como sustentação o pensamento científico, nos anos
trinta, foi inserida por meio das políticas do educacionais implementadas pelo Estado
com o intuito de disseminar tais pensamentos, e buscou na instituição de ensino um
lócus reprodutor dessa ideologia. A escola vista como difusora do aparelho ideológico
do Estado – que através da biopolítica controla “os corpos sociais, pelo sistema jurídico
das leis e das normas. [...] a vida e seus mecanismos entram no domínio dos cálculos
explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana”
(FOUCAULT, 1999, p. 154).

A Eugenia e a Escola
A escola é o espaço de socialização do indivíduo, onde o sujeito resignifica
novas palavras, conhecimentos, espaço de interação do educando, nesse sentindo é

sumário 1474
VII Seminário Vozes da Educação

atribuída com a responsabilidade de construção da identidade nacional brasileira. É a


partir dessa perspectiva que a escola começa a sua inserção no início da década de XX,
tendo sua função associada à formação do cidadão nacional, e concebida como
instrumento de garantia da reprodução cultural, social e econômica da sociedade.
A estimulação por parte do Estado, através de Legislação educacional, em favor
da aplicabilidade da ciência eugênica fazendo parte do currículo escolar, era defendida
por parte de intelectuais como o Manifesto dos Pioneiros da Educação que “defendia a
necessidade de disciplinar a infância em termos de higiene e modificar a herança
recebida dos tempos da escravidão provocando uma espécie de branqueamento na
sociedade” (FREITAS, 2005, p. 78).
Havia uma preocupação por parte dos sanitaristas, médicos e intelectuais da
educação na preservação dos discentes, para não contrair nenhuma moléstia, livrando, a
população dos males do álcool e dos vícios, cuidando da saúde mental e, principalmente
por uma seleção genética, formar o cidadão nacional com base na ciência eugenista e ao
patriotismo.
Com base na teoria eugenista o Estado apropriou-se dessa ciência para interferir
nos corpos no sentindo de discipliná-los, doutriná-los e estruturar a sociedade de acordo
com as políticas da saúde. O projeto educacional promovido pelo Estado pretendia
inserir hábitos higiênicos, cuidados com o corpo, e valores culturais, eram ensinados aos
discentes no âmbito escolar com o intuito da manutenção de uma genética saudável, o
casamento entre seus pares, mesma linha de descendência, evitando casamentos
consanguíneos e o fortalecimento da cultura europeia.
Para Durkheim (1975, p. 45), “a formação educacional está ligada a religião, na
política, no desenvolvimento das ciências, no Estado, nas indústrias etc. Separados de
todas essas causas históricas, tornam-se incompreensíveis”. A partir da concepção do
autor citado podemos entender que a escola na década de 30 tinha como referência a
ciência e a sua falsa neutralidade; a partir desta, a escola foi fundamentada com base
científica eugenista.
Tendo como base a ciência eugênica e a proposta educacional de estimular a
educação eugenista na instituição de ensino, os médicos sanitaristas encontraram na
instituição de ensino o lócus para propagar suas ideologias e interferir nas políticas de
inserção do discentes nas escolas.
Esses médicos sanitaristas até no processo de seleção para entrada dos
educandos na escola eles interferiam com “os argumentos que justificavam as

sumário 1475
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

discordâncias e aqueles que sustentavam as proposições e tratavam explicitar a sua base


cientifica”(STEPHANOU, 2005, p. 151). Ainda de acordo com a autora, esses médicos
também problematizavam os currículos escolares que eram ofertados.
O reconhecimento por parte dos médicos Sanitaristas sobre os conteúdos
programáticos relacionados a higiene deveria ser a principal preocupação da instituição
de ensino, principalmente em promovê-la no currículo escolar. Esses esculápios
entendem que a “ideologia eugenista” no currículo carrega as marcas indeléveis das
relações sociais de poder; nesse sentido, o currículo reproduz – culturalmente a estrutura
da sociedade” (SILVA, 2005, p. 148). Esse modelo educacional instrucional emergiu a
partir do processo discriminatório que desconsiderou determinado grupo étnico e
privilegiando outro na instituição de ensino.
Essas marcas de exclusão são percebidas por corpos negros dentro da instituição
de ensino como afirma o pesquisador Siss (2005), em seu artigo Multiculturalismo,
Educação Brasileira e Formação de Professores: Verdade Ou Ilusão? Em relação à
postura discriminatória e excludente na instituição de ensino na década de 30, foi
denunciada pela Imprensa Alternativa Negra, principalmente por conta de alguns
professores que menosprezavam os corpos negros não dando a devida importância para
a aprendizagem desses sujeitos.

Doutrinador dos corpos


A relevância em compreender a doutrinação do corpo por parte da ciência
eugênica, tendo a escola como lócus de construção e obtenção de conhecimento,
principalmente através da prática esportiva durante a década de 30 do século passado,
contribuiu para padronizar corpos brancos e aumentar a discriminação e o preconceito
do corpo negro.
Dentro dessa perspectiva, a Educação Física enquanto esporte foi incluso na
escola a partir da década de 30, à princípio como parte fundamental para a regeneração
da raça e instrumento disciplinador e caracterizador de um tipo físico nacional
(BRASIL 1934, p. 3).
De acordo com a pesquisa realizada por Gomes e Dalben (2011) relacionada ao
esporte e a eugenia, Arthur Neiva, (membro da Sociedade Eugênica de São Paulo)
percebia que o esporte era uma medida preventiva para salvaguardar a saúde da
população e colaboraria para aperfeiçoar a raça nacional, principalmente tornando os
homens e mulheres mais robustos e proles (as) condensas a valores civilizatórios.

sumário 1476
VII Seminário Vozes da Educação

A Educação Física tinha a incumbência de regular os corpos, os movimentos e


as habilidades, sendo aplicada na escola através da prática esportiva “era encorajada na
escola como forma de ‘nivelar as disparidades étnicas’” (LOWENSTEIN, 1942, apud
STEPAN, 2004, P. 376, ).
A partir da reflexão desses autores Gomes e Dalben (2011), Stepan (2004)
acerca da implementação da Educação Física na escola, essa iniciativa por parte do
Estado, tem o projeto engajado ao projeto da teoria do branqueamento que era reforçada
na escola. O modelo estabelecido dentro do Estado Nacional seria o homem e mulher
com características semelhantes aos europeus. O exercício físico não teria somente a
finalidade de deixar o rapaz mais robusto, entretanto descaracterizar as normalias
deixadas durante o processo de branqueamento.
A partir dessas perspectivas, os historiadores Junior e Garcia (2011) ao
examinarem revistas de Educação Física na década dos anos 30, que tiveram suas
descrições relacionadas a eugenia no país, e a participação da Educação Física enquanto
prática esportiva, propagava o valor civilizatório, as práticas higiênicas e o controle
social, na sociedade brasileira. Além disso, esses pesquisadores encontraram passagens
que representam ideias defendidas pela eugenia.

Especialmente aquelas que levavam a questão da raça até as últimas


consequências e defendiam o controle da procriação. Além de defenderem o
casamento só entre “raças puras”, contrariando uma característica da
constituição racial em nosso país (a miscigenação de raças existente), a
Educação Física aparece em uma destas passagens como uma atividade que
visa ao aprimoramento da saúde individual e coletiva da população brasileira,
melhorando a constituição racial das futuras gerações (JUNIOR e GARCIA,
2011, p. 251).

Nesse momento histórico, a Educação Física serviu para propagar a ideologia


eugenista e colaborar para que o sujeito tivesse uma inclinação de superioridade ao
grupo racial diferente. Como evidencia Guedes (2006), a

Educação Física enquanto área que trata do movimento humano e que tem o
corpo como um instrumento a ser disciplinado, docilizado e intencionalmente
discriminado para deflagrar movimentos higienistas. Culminando com o fim
da escravidão em que o negro passou à condição de homem “livre”, foi
necessária, portanto, uma política de ordenamento dos corpos (GUEDES,
2006, p. 6).

A partir dessa reflexão de Guedes (2006), podemos dizer que a prática


pedagógica estava vinculada aos médicos sanitaristas que entendia essa liberdade dos

sumário 1477
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

corpos negros vinculada à promiscuidade, violência, amoralidade, sexualidade;


entretanto, a Educação Física por meio do esporte pode contribuir e erradicar os males
dos vícios e principalmente disciplinar os corpos.
Atribuindo o papel de destaque à Educação Física e a sua relação com a
ideologia eugenista e combate à “liberdade dos corpos negros”, a educação
proporcionada na escola, proclamada por Lei Constitucional no ano de 1934, buscou
exigir em seu Artigo 131, a “educação física, o ensino cívico e o de trabalhos manuais
serão obrigatórios em todas as escolas primárias, normais e secundárias, não podendo
nenhuma escola de qualquer desses graus ser autorizada ou reconhecida sem que
satisfaça aquela exigência” (BRASIL, 1934, p .10).
Dentro dessa perspectiva, a Educação Física foi implementada na escola, como
estratégia de regenerar a raça e vencer o atraso social. Segundo Nascimento (2012), essa
ideia de recuperar o país do atraso e eliminar os males da sociedade era compartilhada
por vários intelectuais da Escola Nova dos anos 30.
Nesse sentindo, o intelectual, educador e integrante da Escola Fernando de
Azevedo compartilhava dos ideais de seus companheiros do Manifesto dos Pioneiros da
Educação e buscava na disciplina Educação Física, por meio da prática esportiva, a
criação de uma geração saudável, longe dos vícios e doenças degenerativas, livres do
alcoolismo e preparada para atuar no mercado de trabalho; deste modo a educação
Física estava ligada à construção de um país moderno.
Diante do exposto, as teorias eugênicas foram associadas a pratica da Educação
Física na construção para além do discurso de os corpos saudáveis, essa prática
esportiva tinha como finalidade que os militares pudessem participar nas políticas
educacionais por intermédio da Educação Física. Segundo Nascimento (2012),

um dos caminhos encontrados por esses atores sociais para intervir nas
diretrizes da política nacional para o setor foi a criação da Direção de
Educação Física, cujo objetivo compreendeu interferir, diretamente na
formação do profissional dessa área. Atuação de alguns segmentos das
Forças Armadas do país, período colaborou para imprimir, como
características de política de nacionalização do Ensino, a preocupação com o
revigoramento físico da população e a presença do racismo (NASCIMENTO,
2012, p. 221).

Mediante o princípio que levou a implementação da disciplina Educação Física


na instituição de ensino pode-se considerar que a prática esportiva buscava hierarquizar,
e controlar o movimento corporal, os movimentos humanos e socialmente criados, a

sumário 1478
VII Seminário Vozes da Educação

partir de uma perspectiva darwinista de uma raça superior e idealizando uma teoria do
branqueamento com base no modelo eurocêntrico.

Para além das considerações finais


O movimento eugenista que ocorreu no Brasil estava associado à raça, tendo
como fundamentação o Darwinismo e outras correntes ideológicas, como a teoria do
branqueamento, que contribuiu para o fortalecimento da hierarquização racial.
Essa teoria eugenista estava associada ao discurso progressista principalmente
dos reformadores da Escola Nova, nesse contexto essa ideologia foi inserida na Carta
Magna de 1934, que descrevia a relevância do discente possuir em suas disciplinas
valores civilizatórios e disciplinares.
Dentro desse paradigma, cabia às instituições de ensino implementar em suas
práticas as teorias eugênicas, tendo na disciplina de Educação Física um instrumento
propagador dessa ideologia. Além de criar padrões, estabelecer ligação com a cultura
europeia, trabalhar com a movimentação dos músculos, de toda corporeidade e a
disciplina do corpo, vinculava a prática esportiva com a limpeza e a higiene corporal.
Nessa perspectiva, a disciplina Educação Física usada como difusora do
movimento eugenistas, contribuiu com o discurso ideológico racista para determinar os
padrões estéticos na sociedade, e manter a hierarquização dos corpos.
A ideologia eugenista atrelada a outras teorias, como darwinistas, buscou pôr
fim nos corpos pretos, com a suposta teoria do branqueamento, e em processo disso,
temos a ressignificação e fortalecimento desses corpos pretos e a construção de uma
identidade racial, embora a ideologia eugenista tenha sido abolida do âmbito escolar
enquanto prática pedagógica.
Atualmente, ainda temos resíduos dessa prática no âmbito social, escolar e
religioso, permanecendo como escopo o corpo preto que é o principal alvo da expressão
da desigualdade que recai sobre esses corpos, que são marginalizados, que sofrem alto
índice de genocídios e que ainda ocupam em maior número nos complexos
penitenciários.

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sumário 1480
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22h.

sumário 1481
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

RESENHA CRÍTICA
BHABHA, HOMI K. NUEVAS MINORÍAS, NUEVOS DERECHOS, NOTAS
SOBRE COSMOPOLITISMO VERNÁCULO (2013)

Soraia Sant’Anna Gomes


UERJ
soraiasantannapessoal@gmail.com

Sinopse
Homi K. Bhabha chama a atenção para as Novas minorias, que não são tão
novas assim, referindo-se àqueles sujeitos das comunidades diaspóricas, “sem Estado”.
O desafio é o de se sentir em casa, tendo vindo de fora, uma vez que essas minorias não
são levados em consideração sob o prisma da política de reconhecimento, tornando-as
invisíveis, do ponto de vista da cidadania e inclusão social. Tais minorias postulam
serem reconhecidas e advogam uma noção de direitos, não na dimensão estatal, mas a
partir de uma enunciação, na perspectiva discursiva das minorias, numa proposta de
superação das diferentes formas de opressão e discriminação dos povos subalternizados.
Homi K. Bhabhaanalisa que é no âmbito da cultura que se expressam as dimensões de
poder globalizador/normalizador/normatizador, sobretudo na esfera discursiva, que
tende a apagar as diferenças, assumindo que a linguagem é que institui a realidade e não
mais a representa.
Bhabha discute no capítulo 1 o conceito de comunidades paradoxais formada
por comunidades diaspóricas que se aceitam, na medida em que se reconhecem
estrangeiros; reconhecer o outro, o movimento de aproximação e de audição da
experiência do outro é o início de um processo que vai fazer com que se faça uma
política de reconhecimento das minorias, a partir de uma reflexão das comunidades
paradoxais. Não há como entrar nessa discussão sem entrar nessa clivagem social “eu e
o outro”- o nativo e o estrangeiro; o cidadão e o forasteiro; direito de sangue e do
solo; e sem abordar os processos de subjetivação construídos por formações discursivas
que diz respeito às diferentes formas de opressão e discriminação dos povos
subalternos. Menciona o conceito do terceiro espaço o qual é um espaço intersticial da
ambivalência, cujo movimento é fluídico, performático, não localizado. É um conceito
conflituoso, pois, nunca é negada a tensão. É o local de luta política de quem não foi

sumário 1482
VII Seminário Vozes da Educação

aceito ou luta por várias outras demandas que o tempo inteiro é imprevisível,
indecidível, pois é um processo dinâmico e impossível de se prever. Bhabha finaliza
esse primeiro capítulo trazendo esse terceiro espaço, cuja negociação conflituosa
perpassa pelo desafio de se sentir em casa, tendo vindo “de fora”. É no âmbito da
cultura que se expressam as dimensões de poder, estando ambas as dimensões
relacionadas para além da mera dimensão estatal, sobretudo na esfera discursiva,
assumindo que a linguagem institui a realidade e não mais a representa; ele traz o
conceito de autenticidade como uma prática da aceitação. É uma construção, um
conflito constante desse agente da ação. O sujeito do reconhecimento se faz através do
agente da ação. A prática do reconhecimento é apenas a metade do caminho, sendo esse
caminho o terceiro espaço, sendo um espaço aberto à contingência.
No capítulo 2 Bhabha trabalha com o conceito da ambivalência, no sentido da
produção de verdade, sendo a ambivalência o território do plural e não do singular,
tanto na área científica quanto na área social. Bhabha retrata as ambivalências do
global, trazendo a questão do direito da igualdade, na diferença. O título Novas
Minorias fala de minorias que não são novas, uma vez que tais minorias sempre
existiram, mas eram invisíveis e agora elas estão sendo reconhecidas e precisam de
novos direitos. Ele coloca quais são os limites para se romper com a forma com que
essas minorias eram vistas na modernidade, onde se admitia até mesmo a barbárie;
retrata todo o processo histórico pelo qual a humanidade passou relembrando o
holocausto e o perigo daquele acontecimento tenebroso cair em banalidades,
considerando o fato de que hoje em dia ser comum pessoas visitarem os túmulos das
vítimas do holocausto e fazerem comentários fúteis, sem se darem conta ou
demonstrarem empatia à altura do que foi aquele horror! Hanna Arendt (1998, p.247
apud BHABHA, 2013 p.48) discute “a questão de a governança global promover uma
espécie de alienação que segue uma dinâmica demoníaca para as minorias” tornando-
as invisível, uma vez que não são as mesmas levadas em consideração, dentro da ética
da política. A exemplo disso é possível citar uma significativa força de trabalho na
agricultura e outros tantos trabalhadores que se ocupam na construção civil que sequer
tinham documentos – não são assim tão invisíveis, portanto!
Bhabha vai trabalhar com o conceito da ambivalência na esfera do direito,
porém, no relativismo; nos deslizamentos. No terreno do cultural explodem várias
tensões e conflitos, porque não há como enquadrar, normatizar ou normalizar as
posições das minorias, o poder globalizador/normalizador/normatizador pode significar

sumário 1483
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

a invisibilização daqueles sujeitos “sem Estado”, pois não são levados em consideração
dentro da ética da política significando a morte do sujeito de direito.
Retoma a questão da tradução para que pensemos o terceiro espaço como uma
alternativa de se pensar o direito das minorias que é o espaço da tradução, da reflexão
sobre as diversas ambivalências. Essas ambivalências exigem uma reflexão em torno de
uma ética global que permita a sobrevivência de uma cultura plural. Essa ética não
surge do nada, não está escrita, mas haverá de ser forjada nos interstícios da relação
com o outro, na medida do compartilhamento de sentidos que nos lembrem, por
exemplo, de fatos históricos marcados pela barbárie para que esta jamais se repita, uma
vez que sabemos muito bem do o quê o ser humano é capaz de fazer com o outro,
diferente, no sentido da barbárie.
No capítulo 3, Bhabha nos traz a noção de agências sociais, que no seu entender
dá-se na contingência, sem apriorismos, devendo seguir o fluxo do movimento de
tradução. Bhabha critica a visão do humanismo tradicional, na medida em que parte das
agências humanas conservadoras tendem a esboçar realidades nacionais circunscritas.
Essas formas nacionalistas que tentam reforçar essas identidades fixas, homogêneas e
coesas, expõem a ideia de uma cultura fundamentalmente “nacional” ou “nacionalista”.
Essa inteireza propagada é, na verdade, uma tentativa de se apagar as minorias, pois a
noção de totalidade de uma pequena inteireza vai sendo desmontada por Bhabha, uma
vez que não existe uma essência que as caracterize – quer na cultura nacional, quer na
cultura das minorias – Não há uma agência prévia dos sujeitos; a agência se dá nesse
movimento de tradução. A ideia de agência não remete a um tempo preciso, pois ela se
dá nos interstícios que emergem na tensão, nos espaços híbridos de tradução, em meio
aos fluxos de movimentos das questões culturais, sem apriorismos. A ideia de agência,
´sem apriorismos` é a ideia de se pensar a tradução, não como sendo literal porque ela
se dá contingencialmente, emergindo neste entre-lugar de contornos fronteiriços
borrados, junto ao terceiro espaço da enunciação, o qual é ambivalente, híbrido, que
exige as negociações como ato de tradução.
No capítulo 4, Bhabha recusa a identificação do ser como identidade e vê um
atributo do ser na multiplicidade das ideias, entre as quais existe a relação de alteridade
recíproca. A ideia de gênero, raça, classe cria e recria o antagonismo e a forma como se
vê o mundo acreditando-se naquele entendimento de que existe um fundamento para a
concepção desses binarismos. Tal visão de mundo tem uma lógica cultural que
naturaliza algo que não é natural, e a partir deste lugar “ser mulher/homem”; “ser

sumário 1484
VII Seminário Vozes da Educação

branco/negro”; “ser patrão/empregado”, bem como dessas dicotomias: ocidente/oriente;


nós/eles; desenvolvido/subdesenvolvido; progresso/atraso é que se vai produzindo essa
sensação de fundamento. As palavras e as classificações vão produzindo significações
que por sua vez vão produzindo verdades tais, as quais vão se modificando a partir de
novas significações, em um processo enunciativo na medida em que é pronunciada a
diferença cultural, sendo esta, a partir de então, descoberta e reconhecida, estando este
processo imbricado nas relações de poder que “prendem esses sentidos”. A ideia de que
se consegue controlar o “vir a ser do outro” fere a alteridade, a ética de não se querer
formatar o outro. Um dos princípios fundamentais da alteridade é o de que o homem,
como ser social, tem uma relação de interação e dependência com o outro. Por este
motivo, o “eu” individual só pode existir na relação com o outro. Portanto, a diferença
cultural é um processo de identificação, enquanto que a diversidade cultural é um
processo de comparação e categorização. Faz críticas ao humanismo tradicional que
esboça a ideia de circunscrever a toda a sociedade, modelos de identidades fixas,
hierarquizadas, cujo ideal de homens baseia-se em condutas e costumes a serem
seguidos, a exemplo das metanarrativas do ocidente, que na verdade representam
tentativas de poder.206
No capítulo 5, a questão central nas reflexões de Homi Bhabha é o
reconhecimento do cosmopolitismo vernáculo, termo cunhado por Bhabha que mede o
progresso global a partir da re(localização) da cultura na perspectiva da minoria, dos
grupos subalternos de imigrantes advindos dos fluxos das diásporas, os quais trazem
consigo a sua bagagem cultural que disputam reconhecimento nas estruturas de
autorização. O conceito-chave defendido por Bhabha contido no núcleo central do
termo “cosmopolitismo vernacular”, é a alteridade, a polissemia marcada pelos estilos
de vida, por expressões religiosas, por práticas culturais dos grupos minoritários.
Entendido como cosmopolita vernáculo, o “doméstico”, o “nativo” é aquele cidadão do
mundo que vive fora de sua sociedade de origem que, devido às mobilidades
internacionais e à diversidade vivenciada nas relações sociais transnacionais, tende a ser
um sujeito curioso, tolerante para com as diferenças, aberto a experimentar e consumir a
diferença. Esses sujeitos levam uma vida na qual não negam as suas origens, mas
mediante suas experiências em diferentes contextos, vivem na extensão cosmopolita do
mundo, mas, em ambientes de opressão e preconceitos esses sujeitos se vêem forçados a

206

sumário 1485
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

viverem em uma zona de tradução de suas culturas, nos interstícios de um espaço


cultural híbrido e de uma identidade intervalar. Tais indivíduos agem na interseção de
diferentes tradições culturais e religiosas que, por serem sempre polissêmicas,
reivindicam uma relação dinâmica e dialética que disputam reconhecimento, numa
espécie de negociação das diferenças de poder cultural, de poder simbólico. Bhabha nos
leva a refletir sobre a necessidade de o cosmopolita vernáculo tomar para si uma voz
enunciada na narrativa de indivíduos de diferentes estilos de vida e de origem étnica,
que reivindicam o direito de igualdade e liberdade, não aquela oferecida por um Estado
que promete uma igualdade formal e democracia procedimental, e que implementa
estratégias de exclusão e discriminação, mas por seus “direitos à diferença, na
igualdade” (BALIBAR, 1994, p. 56 apud BHABHA, 2013, p. 97), sem que para isso
tenha que aceitar a bagagem ideológica, ética ou dos costumes em invólucros de
identificações fixas, entendendo o conceito “cosmopolitismo vernacular”, no sentido de
que as pessoas têm múltiplas identidades e identificações para além das polarizações
local/ global; centro/periferia; cidadão/forasteiro. O cosmopolita vernáculo entende o
compromisso de um direito à diferença, na igualdade, como um processo político de
grupos e agrupamentos emergentes que operam com as mesmas práticas políticas e
escolhas éticas de um governo democrático, a partir da criação de novas formas de
agência, novas estratégias de reconhecimento, novas formas de representação política e
simbólica, ao invés de simplesmente aceitar entidades ou identidades políticas
“marginais” já constituídas.

Considerações complementares
Os capítulos 1-5 nos levam a pensar sobre o caráter ambivalente da cultura, cuja
dinâmica serve tanto ao poder hegemônico, quanto a um projeto de resistência, de
criação de criação de novas identidades, de novas representações, sempre perpassados
por essas ambivalências, as quais provocam desdobramentos: o primeiro deles é a
relação entre saber & poder - a necessidade de refletirmos sobre como as imagens e
percepções pressupostas que temos do mundo podem servir para justificar certas esferas
de poder que temos na sociedade, responsáveis pela hierarquização e assimetria entre os
grupos culturais, estando a esfera da política, cada vez mais permeada por essa
dimensão cultural de criação de novos imaginários que disputam suas representações
identitárias, na contingência, sendo tal identidade concebida no sentido do Bhabha,
como indeterminação e discurso, como uma elaboração híbrida e inconclusa. Outro

sumário 1486
VII Seminário Vozes da Educação

desdobramento provocado pela relação antagônica da ambivalência é devido ao caráter


duplo que a dimensão da cultura sempre vai ter porque os imaginários novos, as
criações, as invenções em disputas podem também ser traduzidas no multiculturalismo;
ou ainda, nas formas nacionalistas que reforçam a identidade, cuja cidadania é
concebida, conforme dito por Bhabha:

Nuestra concepción de una ciudadanía soberana centrada en la nación sólo


puede concebir la situación de la “pertencia” a una minoría como un
problema ontológico, con lo que convierte la cuestión de pertenecer a una
raza, un género, una clase o una generación en una especie de “segunda
naturaleza”, una identificación primordial, una herencia o tradición, una
naturalización de los problemas que plantea la ciudadanía (BHABHA, 2013,
p.98).

É nessa tensão ambígua que ao mesmo tempo em que se imagina um novo


mundo, é possível cair naquele caráter fixo, homogêneo, coeso do multiculturalismo,
onde as identidades fixas são naturalizadas como um problema ontológico que remete
às questões de raça, gênero ou classe, como uma naturalização dos problemas da
interseccionalidade colocados pelas questões de cidadania.
Tendo em vista que a questão central do Bhabha é o compromisso teórico de
conceber a cultura como indissociável da seara da política e da economia, porém, dentro
de uma dimensão discursiva que produz subjetividades e institui realidades, um ponto
de inflexão a ser considerado é a necessidade de se perceber certos limites nessa relação
entre agência e cultura, sem apriorismos, onde o Bhabha deixa transparecer em sua
teoria, uma concepção de indeterminação e discurso na constituição da identidade, [...]
”sendo imprecisa a ideia de agência do sujeito, ideia esta demasiadamente livre de
qualquer imperativo, como se o agente pudesse, em vários momentos, se criar, se
(re)inventar automaticamente” (CARVALHO, 2011, trecho 14:35) 207 208 e neste
ponto, incorporando Foucault em “A Ordem do Discurso”, marca a inflexão acerca dos
procedimentos de exclusão nessas relações de poder que impera quando da disputa
cultural que cada vez mais permeia a seara da política e da economia, o que nos leva a
indagar sobre quem pode tomar para si uma voz enunciativa desperta na narrativa de
indivíduos que lutam por seus direitos? “[...]o quê pode ser dito,[...][e] “[...]sobre quais
circunstâncias; [e] “[...] quem pode proclamar certos discursos[...]” (FOULCAULT,

207
Registro do trecho do vídeo no youtube (14:35), da Conferência no Departamento de Ciência Política
da UFF -Pensamento pós-coloniais, segunda parte –Professor Bruno Sciberras Carvalho: Canal Estudos
Humanos, Publicado em 28/09/2011 - Vídeo Youtube, 14min35 https://youtu.be/jrpmeBNeUOc

sumário 1487
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

1996 , p. 9), de modo a fazer com que a identidade do sujeito possa constituí-lo como
tal, sendo este sujeitado às dinâmicas intersubjetivas que ocorrem nas classes
multiétnicas e na diversidade cultural e, sem que ensejam nas interdições dos jogos de
poder, quando da proclamação dos discursos e enunciados que venham a favorecer uma
(e não outra) política cultural, forjada na contingência, onde a luta política é possível?
Sim, é possível, mas quem seria esse sujeito e em que circunstância seria capaz de agir
na interseção de diferentes tradições, livres de imperativos, de apriorismos?

Referências
BHABHA, Homi K. Nuevas Minorías, Nuevos Derechos, notas sobre
Cosmopolitismo vernáculo. 1.ed. al cuidado de mariano siskind. Traducción de Hugo
Salas: Siglo Veintiuno editores, 2013- (224 p.)Capítulos1-5.

BRUNO, Sciberras Carvalho. Pensamento pós-coloniais em Edward Said.In.:


Conferência no Departamento de Ciência Política da UFF -Pensamento pós-
coloniais
Canal do Youtube: Estudos Humanos, Duração14min35, Publicado em 28/09/2011-
https://youtu.be/jrpmeBNeUOc

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula Inaugural no Collège de


France,pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida
Sampaio: Loyola, São Paulo, Brasil, 1996.

sumário 1488
VII Seminário Vozes da Educação

SINCRETISMO RELIGIOSO AFRO-BRASILEIRO NA REPRESENTAÇÃO


IMAGÉTICA DE SANTO ANTÔNIO DE LISBOA E DO ORIXÁ EXU NO
PERÍODO COLONIAL

Samira Lucia Dias dos Santos de Sousa


FFP/UERJ
samira.lucia@hotmail.com

Luiz Fernando Conde Sangenis


FFP/UERJ
lfsangenis@gmail.com

Introdução
Os currículos escolares atinentes à história do Brasil colonial, ainda na
atualidade, são fortemente impactados por construções da historiografia que perpetuam
com relativa força e autoridade uma pretensa exclusividade do protagonismo jesuítico
na história do Brasil e na história da educação brasileira.As fontes tradicionais da
historiografia, ao exaltarem a atuação da Companhia de Jesus, e, consequentemente,
secundarizarem ou mesmo destituírem de valor a atuação de outras ordens religiosas
que tomaram parte da empresa colonial – ensejaram representações exageradase
estereotipadas desses grupos religiosos. Segundo Sangenis e Mainka (2019), ao
considerarem as duas principais ordens, a franciscana e jesuíta, seja pelo número de
membros, seja pela extensão geográfica de sua atuação nos brasis coloniais, entenderam
que ambas se destacaram ao seu modo na educação e no ensino.
Mais propriamente, a ordem franciscana e suas ramificações instituídas
historicamente em variados institutos e províncias mereceriam atenção dos
pesquisadores. Os franciscanos precederam os jesuítas em mais três séculos, uma vez
que sua fundação ocorreu no início do século XIII, enquanto os jesuítas surgiram na
terceira década do século XVI. Entre seus membros, contam-se renomados mestres
escolásticos e pensadores destacados responsáveis por originar uma tradição intelectual
consagrada no tempo e que determinou o surgimento ulterior de renovadas vocações à
ciência, à erudição e ao ensino em todos os níveis. Tanto na Europa, quanto no Novo
Mundo, mantiveram escolas e fundaram universidades. Antes do aparecimento dos

sumário 1489
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

jesuítas, eram os franciscanos os missionários que tomavam parte das ações de


conquista e expansão ultramarina ibérica, na África, na Ásia e nas Américas. No Brasil,
a atuação das ordens religiosas que aqui chegaram, durante o século XVI, foi
essencialmente a mesma que tiveram em outras partes.

Não há dúvida de que todas as ordens religiosas presentes no Brasil deram


sua contribuição à educação. É bem verdade que os jesuítas tinham o
monopólio régio para atuar nos ensinos secundário e superior, em Portugal e
em seus domínios. Todavia, os religiosos, indistintamente, por ordenação da
Coroa, erigiam e administravam as aldeias de índios com o intuito de
catequizar e civilizar os silvícolas. Frades e padres congregados pelos seus
institutos construíam as suas escolas contíguas às igrejas. Nisso e em muitos
outros encargos nada diferiam entre si. Todas as ordens contribuíram para
construir a cultura brasileira e a mentalidade da sua população, a
religiosidade popular, em regiões distintas e em períodos diferentes.
(SANGENIS e MAINKA, 2019, p. 11).

É autêntica a importância da ordem criada por Inácio de Loyola. Porém, o


espaço-tempo que a separa da história dos franciscanos e das outras três ordens
presentes no Brasil (beneditinos, carmelitas e mercedários) e seus inegáveis sucessos
fáticos, por si só, não deveria ofuscar as realizações das demais. No entanto, os jesuítas,
de forma mais exímia, projetaram uma potente imagem institucional que se perenizou
mundo a fora. Hábeis no uso da escrita foram grandes produtores de documentos e de
narrativas, boa parte impressa e com finalidades propagandísticas, consolidando sua
própria visão da história, posteriormente, elevada ao grau de “verdade histórica” pelos
historiadores.

Os jesuítas foram grandes produtores de documentos e hábeis em divulgá-los,


lançando mão da nova e revolucionária tecnologia: a imprensa. Boa parte do
que escreviam e publicavam tinha o objetivo de atingir o maior número de
pessoas, a partir dos estratos mais influentes das sociedades europeias. Ainda
que utilizemos termos extemporâneos, os jesuítas, certamente, foram a
primeira das organizações a perceber e a utilizar eficazmente o grande poder
da imprensa para influenciar a opinião pública a seu favor. Em especial, as
cartas ânuas da Companhia, divulgadas aos quatro cantos da terra, tornaram-
se um grande fenômeno de mídia a constituir uma das primeiras campanhas
propagandísticas dos tempos modernos. (SANGENIS, 2006, p. 75).

A ordem Franciscana tinha singularidades genuínas, como o estilo de vida


humilde e era regida por princípios espirituais, como o da pobreza, que os destituía do
uso do poder econômico. Os frades utilizavam a imprensa com certa parcimônia,
reflexo não apenas de seu modo de vida, mas sobretudo pelas dificuldades da colônia
que não dispunha de impressores, apenas existentes em Portugal, haja vista a proibição

sumário 1490
VII Seminário Vozes da Educação

da impressão de livros e jornais no território brasileiro. A falta de recursos financeiros


também inviabilizava muitos projetos que ficavam manuscritos. Mais tarde, já no século
XIX, o despovoamento dos conventos, acontecido de forma mais acelerada, contribuiu
para que parte do acervo dos conventos fosse perdido para sempre. A Província do
Nordeste, a de Santo Antônio, ainda conserva parte importante do que sobrou dos livros
e dos documentos.
As crônicas dos frades, tanto no Brasil, quanto na América espanhola, ao darem
ênfase à virtude da pobreza – marca do evangelismo franciscano vivenciado em atitudes
de desapropriação e de desapego aos bens materiais –destacaramum forte elo dos
franciscanos com os povos também desprovidos de riqueza, marginalizados e
escravizados, sobretudo os índios, negros e mestiços. Em particularos negros, que são o
intuito do estudo,foram feitos cativos, tiveram suas origens, crenças e culturas
subjugadas e demonizadas. Encontraram, no entanto, a mesma empatia com relação aos
santos do panteão franciscano, sincretizando-os com seus orixás, voduns e inquices,
evocando suas origens ancestrais, suas crenças e mitos africanos.
O sincretismo é um fenômeno comum em sociedades como a nossa, composta a
partir do encontro de diversos povos e tradições étnico-culturais. Importante notar que a
ação franciscana foi eficaz na sua capacidade de marcar de forma indelével a cultura
brasileira. Foi o franciscanismo aquele que mais e melhor forneceu matéria e
plasticidade para amalgamar-se aos elementos culturais dos povos autóctones e
africanos. Gilberto Freyre, no entanto, lamenta “que falte esse registro sistematicamente
histórico dos feitos franciscanos no nosso país; que por escassez de documentação
escrita pareça às vezes menos importante do que foi ou tem sido a ação franciscana
entre nós” (FREYRE, 1959, p. 16).
E continua Freyre.

Mas estou certo de que ao espírito de São Francisco – a este mais agradável
será que a recordação dos feitos dos seus filhos no Brasil esteja menos nos
livros que no folclore; menos na prosa dos eruditos, que na poesia dos
analfabetos; menos nas estátuas dos escultores acadêmicos que nas imagens
dos santeiros populares. (FREYRE, 1959, p. 16).

Para demonstrar o que Freyre chamou a atenção, nosso intento é analisar a


relação sincrética entre Santo Antônio de Lisboa e Exu, orixá pertencente à
religiosidade africana e afro-brasileira. Quanto ao conceito de sincretismo, seguimos os
trabalhos de Ferretti (2008, 2013, 2014) que nos dão o suporte necessário para

sumário 1491
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

considerar que o conceito é bastante pertinente para analisar os fenômenos religiosos e


histórico-sociais mais amplos no Brasil.

O santo, o mensageiro e a igreja


Fernando de Bulhões e Taveira de Azevedo nasceu em Lisboa no ano de 1195,
porém adota o nome de Antônio após entrar para a ordem franciscana. Na adolescência
entra para o Convento dos cônegos de Santo Agostinho próximo a Lisboa. Durante sua
permanência no convento recebe cinco franciscanos que estavam a cumprir missão no
Marrocos, porém os frades foram mortos durante sua missão e seus corpos retornam
para o convento de Santo Agostinho. Fernando de Bulhões após presenciar esses
acontecimentos, sente o desejo de se tornar franciscano e cumprir missão no Marrocos.
Partindo em direção ao Marrocos, adoece e tem de retornar a Portugal. Durante esse
percurso encontra uma tempestade que leva o navio até a Itália. Chegando às terras
italianas, o frade vai a Assis onde conhece São Francisco. Após sua inserção na ordem,
é convidado para pregar e ser professor dos frades franciscanos.
Santo Antônio de Pádua ou de Lisboa é um dos santos mais conhecidos da Igreja
Católica no Brasil. Suas hagiografias relatam que realizou muitos milagres, dentre os
quais, a cura de cegos, de surdos, de coxos e de outros doentes, e mesmo após sua morte
os milagres em nome do Santo continuaram. Faleceu na cidade de Pádua em 13 de
junho de 1231 e foi canonizado um ano depois.
A iconologia de Santo Antônio é variada, conforme é comum no panteão das
representações santorais. No entanto, a sua imagem esteve muito vinculada ao
nacionalismo lusitano. No Brasil, também se prestou aos arroubos nacionalistasdo
século XIX. Sua representação escultórica repetiu no Brasil os mesmos cânones
portugueses, ibéricos e europeus. A partir do século XVIII, começou a transmudar.
Segundo Castro (1996), a arte popular brasileira dá a representação de Santo Antônio
uma identidade adaptada ao novo país. Olhares diversos sobre a imagem do Santo são o
resultado da heterogeneidade que aqui estava irradiando. São nesses novos
reconhecimentos que os ecletismos começam a se concretizar e a formar convergências,
e vemos em Santo Antônio esses novos frutos sendo declarados.
Exu, também conhecido como Legbá, Bará, Eleguá e Elegbara, é o orixá
mensageiro, aquele que faz o elo entre os humanos e os demais orixás. Nas palavras de
Prandi (2018, p. 20), “Exu é o orixá sempre presente, pois o culto de cada um dos orixás

sumário 1492
VII Seminário Vozes da Educação

depende de seu papel de mensageiro. Sem ele, orixás e humanos não podem se
comunicar”.
Diz a mitologia africana que Exu andava pelas terras iorubás procurando
soluções para problemas que atormentavam o povo e os orixás. Segundo Prandi (2001),
ele é orientado a ouvir a todos, seres humanos, animais, divindades e quaisquer outros
seres que compartilham da terra com os homens. Após ampla pesquisa, ele reuniu o
necessário para explicar a gênese e a regência do mundo dos homens e da natureza
sobre os flagelos que ameaçam a todos. São eles, a pobreza, a perda de bens, a posição
social, as derrotas injustas, as infertilidades, a doença e a morte. Esses saberes foram
dados a um adivinho chamado Orunmilá, ou Ifá, que os transmitiu aos seus sacerdotes,
que são os babalaôs ou pais do segredo. Para os iorubás antigos nada é novo, tudo que
ocorre já é resultado de algo que ocorreu anteriormente. Exu então tem o papel de elo de
comunicação entre o adivinho e Orunmilá, o deus do oráculo, que é o responsável por
responder e transportar as oferendas ao mundo dos orixás.
Exu, portanto, é o orixá que se encarrega de ser o elo entre os humanos e as
divindades. Ele não é bom nem mau, e possui todas as reações e sentimentos humanos.
Exu controverte os paradigmas acerca do conceito de bem e de mal presentes na cultura
europeia, segundo a modelagem do monoteísmo judaico-cristão e os separa de forma
estanque. Na visão africana, o bem e o mal variam de acordo com as situações e pessoas
envolvidas, ganhando então um olhar mais subjetivo.
No período colonial, quando ocorreu o choque com as pluralidades de culturas
existentes na época, os conceitos cristãos de bem e de mal começaram a se impor sobre
os povos dominados, e os costumes que não seguiam o modelo eurocêntrico foram
demonizados e excluídos. Os povos indígenas e africanos sofreram um violento
processo de aculturação de modo que se adaptassem aos novos paradigmas impostos.
Porém, o sincretismo é mais complexo e não se resume a uma simples estratégia de
suposta adaptação ou de dissimulação das raízes culturais para que não se perdessem
por completo.

Qualquer tentativa de superação da condição escrava, como realidade ou


como herança histórica, implicava primeiro a necessária inclusão no mundo
branco. E logo passava a significar o imperativo de ser, sentir-se e parecer
brasileiro. Os negros não podiam ser brasileiros sem ser ao mesmo tempo
católicos. Podiam preservar suas crenças no estrito limite dos grupos
familiares — muitas vezes reproduzindo simbolicamente a família e os laços
familiares mediante a congregação religiosa, daí a origem dos terreiros de
candomblé e das famílias-de-santo —, mas a inserção no espaço maior exigia

sumário 1493
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

uma identidade nacional, por assim dizer, uma identidade que refletisse o
conjunto geral da sociedade católica em expansão. (PRANDI, 1998, p. 154)

À vista disso, os negros identificam, nos santos católicos, características que


empatizavam com os seus orixás, tomando para si aquilo que lhes era apresentado como
permitido e aceito, ressignificando imagens, sinais e símbolos, sem perder as referências
culturais originárias.
O modo de vida franciscano, sua espiritualidade baseada na pobreza evangélica
e na fraternidade e sua simbologia estética foram muito próprias para criar empatia com
os indígenas e africanos. A simpatia pelos frades e pelas suas abordagens, mesmo que
levemos em conta que a ação missionária dos franciscanos também representou a
imposição violenta de uma civilização sobre outras, merece mais estudos e
aprofundamento. Sangenis (2019, p. 46) apresentou um quadro de correspondências
entre santos católicos franciscanos e orixás/voduns/inquices de modo a dar a dimensão
do que chamou de “fecunda comunhão entre o franciscanismo e seus santos mais
representativos e as expressões das religiões afro-brasileiras”.
Outro aspecto importante a considerar é a função socializadora e
educativa das instâncias religiosas. A igreja, templo religioso, em especial a de estilo
barroco, é arquitetonicamente concebida para servir de aula, a sala magna para
congregar público numeroso. A arte decorativa, integrada ao conjunto arquitetônico,
tem a intencionalidade de proporcionar variados modos de comunicação e de
experiência sensórias. A intensidade da luz, a acústica, a ausência de colunas na nave da
igreja, a ornamentação interna, a pintura dos retábulos, das paredes e do teto, os
entalhes em pedra e madeira, a arte escultórica representativa dos santos e das imagens
celestes compõem um cenário intencionalmente organizado para a transmissão da fé
católica aos fiéis. A liturgia e as festas, as palavras e os gestos, os sinais e os símbolos,
as cores e os olores, o canto e a música educam os sentidos a uma forma própria de
sensorialidade cristã. As irmandades e confrarias são espaço e possibilidade de coesão
social, da agregação de iguais, reforçamento de identidades e de pertencimentos, além
de garantir a segurança e o amparo social para os desafios da vida e para assegurar uma
boa morte. A igreja se tornou a única instância de educação em que os pobres eram
aceitos.

A Igreja era a única escola aberta aos pobres na Colônia. As festas populares,
as suas grandes oportunidades de trocas de conhecimentos e de
experimentações coletivas a céu aberto. Vigorava uma pedagogia suportada

sumário 1494
VII Seminário Vozes da Educação

na oralidade, nas imagens, nos movimentos e nos símbolos e cujos resultados


eficazes e duradouros operavam nos indivíduos e nas comunidades
aprendizagens para toda a vida. (SANGENIS,2017, p.2).

A instituição do culto aos santos negros no período colonial é um dos modos de


criar empatia com os africanos feitos escravos e seus descendentes. As imagens e altares
dedicados principalmente a Santa Efigênia, a Santo Elesbão e a São Benedito, ainda que
em posição secundária no interior dos templos, apresentam modelos de santidade e de
vida cristão heroica às camadas sociais constituídas de negros e de mestiços. A cor
negra considera inferior, em relação à branca, também sofre um processo de revisão
conceitual e valorativa por parte de alguns religiosos. Afinal, como coadunar a
santidade com a negritude, uma vez que o sangue negro, mouro ou judeu era
classificado de infecto e causa de estigmatização social. Entre os franciscanos que
divulgavam o culto aos santos de cor, houve quem defendesse publicamente teses
corajosas exaltando a perfeição da cor negra e parda. É o caso do Frei Apolinário da
Conceição, autor de uma biografia de São Benedito, e de Frei Antônio de Santa Maria
Jaboatão, propagador do culto a São Gonçalo Garcia no nordeste brasileiro e defensor
da mestiçagem ao tentar provar a perfeição da cor parda ante a preta ou a branca. Em
sermão de entronização do santo pardo em igreja do Recife, assim se pronuncia:

Mas como a natureza sempre aspira aperfeiçoar-se, e mais a mais,


comunicando-se, ou misturando-se a cor preta com a branca, por meio da
mesma natureza, assim se vai com a branca aperfeiçoando-se a preta, até
tornar ao seu princípio, e ficar no seu natural. E quem negará que a cor parda,
que resulta assim da preta, e da branca, não aspira toda a perfeição desde o
seu primeiro princípio? (JABOATÃO, 1758, p. 209 apud SANGENIS, 2017
p. 9).

Essas e outras afirmações semelhantes levam-nos a crer que alguns franciscanos


estavam dispostos a superar os paradigmas raciais da época para defender o que
consideravam ser uma causa nobre. Foram precursores das teses valorizadoras da
mestiçagem do povo brasileiro, apenas consideradas pela ciência duzentos anos depois.

Imagem, arte e sincretismo


As iconografias são fortemente presentes no cristianismo católico. A
colonização, evidentemente, trouxe-nos o modelo imagético ibérico e europeu. O
barroco repetiu os cânones consagrados pela arte sacra, até que os artistas populares
criassem estilos próprios e desvinculados das formas e técnicas consideradas eruditas. A

sumário 1495
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

arte sacra de expressão popular incorporou elementos culturais não europeus


introduzindo traços das culturas indígenas e africanas. Daí não ser rara a identificação
de composições sincréticas nas obras dos artistas populares. Ainda que em parte
encoberta, os elementos sincréticos atribuem novos sentidos e ressignificam a obra de
arte.
As imagens compõem um rico processo de leitura e aprendizado. Segundo
Santaella (2012), tratando da leitura de imagens, engana-se quem pensa que estamos
restritos a ler apenas letras que compõem os alfabetos existentes. Pontua que a
comunicação imagética e a comunicação verbal não estão em disputa, mas se
completam, de modo que uma não pode repor totalmente a outra. Para Nóbrega e Prado
(2012), permanentemente somos expostos às imagens visuais e levados a lê-las, seja
com intenção ou de maneira ingênua. Razão pela qual podemos falar em aprendizagem
da leitura das imagens ou a alfabetização imagética. No entanto, o sentido é elaborado
pelo indivíduo e suas circunstâncias culturais e sociais, e depende dos saberes que o
sujeito possui ou não.

Todas as imagens, em todo o caso, têm sua razão de ser, exprimem e


comunicam sentidos, estão carregadas de valores simbólicos, cumprem
funções religiosas, políticas ou ideológicas, prestam-se a usos pedagógicos,
litúrgicos e mesmo mágicos. Isso quer dizer que participam plenamente do
funcionamento e da reprodução das sociedades presentes e passadas
(SCHIMITT, 2007, p. 11).

Segundo Prandi (2001), na cultura tradicional africana e ioruba, ter muitos filhos
é sinal de felicidade. É preciso ter muitas esposas e uma vida sexual ativa para gerar
descendência numerosa. As representações africanas de Exu valorizam a forma fálica
do orixá. Suas efígies exageram o tamanho do falo ereto, desproporcional ao restante do
corpo. Exu então é o responsável da ligação de gerar sucessores para garantir a
sobrevivência do povo e imortalizar a raça humana. No entanto, os missionários
interpretaram negativamente o realce das características sexuais exarcebadas do orixá,
identificando-o com o diabo cristão.
No Brasil, Exu perde o acento demasiado nas suas características priápicas que
foram reprimidas ou em grande parte esquecidas, facilitando que se amoldasse à moral
cristã dominante.

Suas imagens brasileiras perderam o esplendor fálico do explícito Elegbara,


disfarçando-se tanto quanto possível seus símbolos sexuais, pois mesmo

sumário 1496
VII Seminário Vozes da Educação

sendo transformado em diabo, era então um diabo de cristãos, o que impôs


uma inegável pudicícia que Exu não conhecera antes. Em troca ganhou
chifres, rabo e até mesmo os pés de bode próprios de demônios antigos e
medievais dos católicos. (PRANDI, 2001, p.52).

Gilberto Freyre, em obra intitulada A propósito de frades, editada, na Bahia,


1959, veicula a fotografia de uma escultura africana de Santo Antônio de Pádua, a única
figura existente ao longo de toda a publicação. A figura do santo está interposta em
página seguinte às informações bibliográficas do livro e antes do prefácio, com a
seguinte legenda: “Santo Antônio – Escultura africana – Foto do arquivo da Agência
Geral do Ultramar de Lisboa” (FREYRE, 1959, s/n). É no mínimo curioso que a
imagem do santo tenha sido disposta pelo autor, aparentemente de forma
despretensiosa, uma vez que em nenhuma outra parte da obra tenha feito mínima alusão
ou comentário a ela, salvo a legenda que transcrevemos acima.
O que teria intencionado Freyre ao inserir aquela instigante imagem de Santo
Antônio produzido pela arte popular africana, todavia sem chamar sobre ela atenção
através do texto escrito? Aos desavisados, poderia passar sem suscitar grande alarde,
não obstante conter traços e atributos sincréticos que lhe conferem singular e inaudita
expressividade e incomensurável valor étnico e antropológico. Ao mesmo tempo em
que a imagem é um texto imagético eloquente, em razão de seu alto valor artístico e
simbólico, Freyre opta pelo silêncio, talvez com a intenção de que a imagem falasse por
si mesma. Certamente, Freyre deixou-a lá, exposta aos sentidos, mas apenas
cognoscível aos que tivessem olhos para lê-la. Terá Freyre evitado a polêmica, já que
seu texto tinha como principais destinatários os frades franciscanos que celebravam os
séculos de presença no Brasil? Afinal de contas, a imagem não se coaduna a nenhum
dos cânones usuais da representação do santo.
Santo Antônio traz ao lado esquerdo um menino Jesus, da forma que é
tradicionalmente representado, mas que, todavia, com o braço e a mão aponta para um
bastão portado pelo santo franciscano com a mão direita. O bastão tem o formato de um
falo, à semelhança de um ogó, porrete que é carregado por Exu.
Em Mitologia dos Orixás, Prandi (2018, p. 575), encontramos uma
imagem de Exu, com um bastão na mão direita. O autor assim descreve a imagem: “Exu
dançando, empunhando o ogó, porrete de forma fálica com o qual castiga seus
desafetos”. (PRANDI, 2018, p. 575).

sumário 1497
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

As mãos do menino Jesus são mais evidentes, dada a desproporção em relação


ao tamanho do corpo da criança. Os formatos dos rostos e os acabamentos nos remetem
a algo mais rústico. Nota-se que as faces não são o ponto central da escultura, pois se
observa que em toda a obra seus formatos parecem não ser o ponto principal, e sim o
que o santo carrega em sua mão destra. A intencionalidade do artista é destacar o bastão
fálico, uma vez que a indicação do próprio menino Jesus dirige a atenção do espectador
para tão inusitado atributo.
Temos diante de nós uma importante evidência da sincretização entre Exu e
Santo Antônio, patenteada pelo atributo comum que ambas as representações carregam
com a mão direita. De acordo com o paralelismo sincrético, Santo Antônio, empoderado
com os atributos de Exu, orixá propiciador da fertilidade e da procriação, torna-se o
santo casamenteiro no contexto do catolicismo popular.

Conclusões
A correlação e o paralelismo sincrético entre Santo Antônio e Exu, com toda a
evidência, está na raiz das invocações e do título de casamenteiro atribuído pelo povo ao
santo católico. A imagem africana de Santo Antônio publica por Freyre, com elemento
que não pertence a simbologia católica, no entanto, originária da cultura africana, apela
para a necessidade de ampliar estudos sobre a história, culturas e religiões ancestrais do
continente africano. Tais estudos ajudarão a melhor entender a nossa própria história e
formação cultural, tão mestiça, plural e sincrética. Considerando que avançamos
consideravelmente nessa direção, é preciso, agora, aprofundar e ampliar o que já foi
feito.
A pesquisa histórica precisa considerar o africano para além da escravidão,
situação que enriqueceria substancialmente o conhecimento acerca da cultura negra na
diáspora colonial. Mas há muito a ser feito nessa área de estudo, inclusive maior
investimento dos historiadores que tratam da história da educação aos estudos que
elegem o período colonial brasileiro e a busca de novas fontes que, certamente, não se
resumiriam a documentos e a antigos manuscritos perdidos nos arquivos.
De igual forma, precisa haver maior investimento da historiografia no estudo de
outras ordens religiosas, além da Companhia de Jesus. É preciso buscar, catalogar e
utilizar outras fontes historiográficas não jesuítas. Constatamos que, em relação aos
franciscanos, é preciso buscar na cultura popular brasileira vestígios da exitosa ação que
exerceram na formação do imaginário nacional. Foram exímios evangelizadores e

sumário 1498
VII Seminário Vozes da Educação

educadores que se serviram de escolas, menos que os jesuítas, em número, organização


e knowhow, mas, sobretudo, de outras formas de educação, em especial, utilizando
variados mediadores da arte e da cultura. Parafraseando Freyre (1959), os indícios dessa
história são encontrados menos na escola que serviu a uma pequena elite e mais na rua,
nos costumes do povo e na cultura popular.
A imagem sincretizada de Santo Antônio, produto do catolicismo popular em
chão africano, é a ponta de um novelo que envolve uma história que, para ser melhor
tramada, precisa se deslocar no espaço e no tempo. Há suficientes razões para dar curso
a um movimento em direção à África e volver ao século XV, quando foi iniciada a
colonização e cristianização da região centro-africana pelos portugueses. Parte dos
africanos convertidos ao cristianismo vieram servir de escravos no Brasil. Nem sempre
consciente, vige entre nós uma série de traços culturais que são o produto da elaboração
de um Brasil que abraçou culturalmente a África.

Referências
CASTRO, Carlos Javier. A iconografia portuguesa de Santo Antônio e a sua difusão
no Brasil. Universidade Católica portuguesa Família Franciscana Portuguesa. Actas, II
volume. Braga, 1996.

FREYRE, Gilberto. A Propósito de Frades. Salvador: Universidade da Bahia, 1959.


JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Lisboa: Ed. 70, 1994.

NÓBREGA, M. J. e PRADO, R. Apresentação. In: SANTAELLA, L. Leitura de


Imagens. São Paulo: Melhoramentos, 2012. p. 5-6.

PRANDI, Reginaldo. Exu, de mensageira a diabo: sincretismo católico e demonização


do orixá Exu. Revista USP, São Paulo, n.50, p. 46-63, jun./ago., 2001.

PRANDI, Reginaldo. Referências sociais das religiões afro-brasileiras: Sincretismo,


branqueamento, africanização. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 4, n. 8,
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PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. 24ª reimpressão. São Paulo: Companhia
das Letras, 2018.

SANGENIS, Luiz Fernando Conde. Aula magistral: Frei Jaboatão e a exaltação da cor
parda na festa do Beato Gonçalo Garcia no Recife setecentista. EDUR • Educação em
Revista, Belo Horizonte, n.33, e165930, 2017.

SANGENIS, Luiz Fernando Conde. Gênese do pensamento único em educação:


Franciscanismo e Jesuitismo na história da educação brasileira. Petrópolis, RJ: Vozes,
2006.

sumário 1499
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

SANGENIS, Luiz Fernando Conde. Santo Antônio e seus muitos nomes: mitologia
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SANGENIS, Luiz Fernando Conde (Org.). Franciscanos no Brasil: protagonismos na


educação, na história e na política. Rio de Janeiro: EdUerj, 2019.

SANGENIS, Luiz Fernando Conde; MAINKA, Peter Johann. Presença franciscana e


supremacia jesuítica no campo da História e da História da Educação na época colonial:
um diagnóstico na pesquisa historiográfica a partir da análise dos CBHE da SBHE.
Revista Brasileira de História da Educação, v. 19, p. 1-24, 2019.

SANTAELLA, Lucia. Leitura de imagens. São Paulo: Melhoramentos, 2012 (Coleção


Como eu ensino).

SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade
Média. Bauru: Edusp, 2007.

sumário 1500
VII Seminário Vozes da Educação

ERA UMA VEZ, ABIOYE: A PRINCESA NEGRA DE CINDERELA E CHICO


REI COMO POSSIBILIDADE DE REEDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES RACIAIS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Sylvia Soares de Souza

A história começa assim...


Cinderelae Chico Rei (2015) foi a primeira obra selecionada para a investigação
e possivelmente, a mais desafiadora. A narrativa é uma adaptação de um conto de
fadas209, porém contada com personagens brasileiros. Entretanto, bem se sabe que este é
um gênero literário originalmente trajado pela cultura eurocêntrica, portanto, carente de
abordagens positivas sobre temáticas afro-brasileiras. Além disso, apesar de serem
histórias que se tornaram conhecidas pelo mundo e acessadas por crianças de todas as
idades e raças, também são histórias de cunho moralizante e especialmente destinadas a
crianças e mulheres na juventude (DUARTE, 2018).
Na sociedade brasileira a branquitude foi construída como norma, direcionando
às pessoas brancas, as referências positivas (SCHUCMAN, 2012). A branquitude
representa a parte boa. A negritude a parcela ruim, logo, existem obras literárias infantis
resultantes desta normativa. Como as princesas dos contos de fadas são
majoritariamente brancas, a criança que corresponde a esse fenótipo tem possibilidades
de experiências positivas diversas e uma representação privilegiada. Nestes casos a
construção identitária de ser uma menina ou mulher branca tende a ocorrer de maneira
profícua, por fazer parte de um padrão constituído.
Já a negritude enfrenta outros caminhos. A princesa é então inferida como um
não lugar para crianças negras. Santos (2004) narra com vivacidade o problema que a
falta de representatividade de crianças negras na LI configura:

Vemos em nossa cultura, cotidianamente, a mulher negra ser descaracterizada de


modo a sentir-se sem apoio interno e insegura: insegura no tocante a sua beleza,
feminilidade, inteligência. Desde pequenas são levadas a construção de uma imagem
negativa de si mesmas reforçadas pelos mesmos contos de fadas, nos quais desfilam em

sumário 1501
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

livrinhos coloridos, princesinhas brancas e louras com seus príncipes encantados. [...]
Como poderiam lutar contra a opressão e desprezo dos irmãos, da sociedade, se ela
própria (a sociedade) lhe diz o tempo todo que elas (as mulheres negras) não podem? A
borralheira Negra passa a esperar também pelo seu príncipe encantado (SANTOS, 2004,
p.43).
Nesse sentido, a predominância de personagens brancas, de modo especial, as
princesas na LI, reflete que o projeto de nação brasileira, no qual a literatura estava
atrelada (COUTINHO, 2002) não tinha pessoas negras como prioridade. Não é por
acaso que os estudos feministas (ADICHIE, 2017) questionam a relevância dessa
personagem, já que em muitos casos elas incutem discursos conservadores na criança e
correspondem a uma organização hegemônica.
Nessa perspectiva, os estudos do feminismo decolonial (LUGONES, 2014)
auxiliam-nos a problematizar a princesa de etnia negra em uma narrativa infantil. Como
uma obra literária como Cinderela e Chico Rei pode contribuir para a desconstrução de
um discurso hegemônico, que ao reforçar a categoria de mulher universal, subalterniza
crianças negras na literatura?
Em diálogo com estas perspectivas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de história e Cultura Afro-
brasileira e Africana endossam a emergência de produções literárias que resgatem os
valores de uma comunidade cuja participação foi decisiva na construção da nação
brasileira. As contribuições de França (2006) a respeito da LI e personagens negras
revelam que o Movimento Negro (MNU) já há algum tempo vem reivindicando
personagens femininas negras que contribuam para a desconstrução de estereótipos.
Dessa maneira, é importante destacar que ao investigar as possibilidades que
Cinderela e Chico Rei oportuniza no trabalho da reeducação das relações raciais
buscamos não somente respostas, mas ao contrário, fazer novas perguntas. A partir daí,
o caminho escolhido para a investigação se deu através da elaboração de uma ficha de
análise motivada pelo método da teórica Matsuda (1991) de fazer outras perguntas. O
conceito desenvolvido pela autora articula raça e gênero, para visibilizar os marcadores
de racismo e violência de gênero, nos diversos contextos sociais. Vejamos abaixo, a
conceituação do método:

Muitas vezes uma condição pode ser identificada, por exemplo, como
produto óbvio do racismo, porém, mais poderia ser revelado se, como rotina,
fossem colocadas as seguintes perguntas: “Onde está o sexismo nisso? Qual a

sumário 1502
VII Seminário Vozes da Educação

sua dimensão de classe? Onde está o heterossexismo?” E a fim de ampliar


ainda mais tais questionamentos, poder-se-ia perguntar: “De que forma esse
problema é matizado pelo regionalismo”? Pelas consequências históricas do
colonialismo? (MATSUDA, 1992, p.10)

Matsuda define que fazer perguntas nos ajuda a encontrar os sinais de


discriminação racial, mesmo em contextos onde o racismo é velado e passa
despercebido. Considero esse caminho adequado para a proposta de analisar Cinderela
e Chico Rei. Ocorre que como LI em geral, investe em uma estruturação lúdica para
atrair o público infantil, é comum não perceber os discursos reprodutores de racismo
presentes nas entrelinhas. Por isso, as perguntas da ficha de análise foram elaboradas
sob uma abordagem simplificada, mas que seja possível esmiuçar quais questões sobre
gênero e raça a protagonistas evoca. Desse modo cheguei as seguintes perguntas:

• Qual é o título da obra literária?


• Qual é a editora?
• Quem são os autores ou autoras?
• Em que ano a obra foi publicada?
• Resumo da Obra;
• Quais são os temas contemplados na obra?
• Qual a ilustração da Capa?
• Quem exerce a função de protagonista na obra literária?
• Como o feminino é trabalhado através das personagens da obra literária?

Era uma vez, uma princesa negra: título da obra, tema, autoria e editora.
A obra literária Cinderela e Chico Rei conta-nos a história de Abioye, a filha de
reis africanos que morreram em um navio negreiro. Após o falecimento dos pais, ela foi
escravizada e vendida para uma mulher muito má. Em seguida, trazida para o Brasil e
forçada a realizar tarefas domésticas exaustivamente.
Abioye também era obrigada a suportar as ofensas que Mafalda e Fiona
provocavam. As duas moças apelidaram-na de Cinderela, porque ela vivia suja de
cinzas. Certo dia, o mensageiro anuncia que Chico Rei210 dará um baile em Vila Rica
convidando todas as moças da região. Cinderela deseja profundamente ir ao baile, mas
210
Francisco Rei é um personagem lendário da tradição oral de Minas Gerais, Brasil. Segundo esta
tradição, Chico era o rei de uma tribo no reino do Congo, trazido como escravo para o Brasil. Conseguiu
comprar sua alforria e de outros conterrâneos com seu trabalho e tornou-se "rei" em Ouro Preto.

sumário 1503
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

julga que seu desejo é impossível de ser realizado, por conta de sua condição de
escravizada.
Como a obra Cinderela e Chico Rei é uma adaptação dos contos de fadas, a
narrativa conta com fenômenos mágicos no desenrolar da história. Quando Cinderela
perde totalmente as esperanças de ir ao baile, eis que surge a fada madrinha
transformando o seu destino. Com uma atitude encorajadora e palavras mágicas, a fada
madrinha transforma as vestes de Cinderela em um belo vestido, a abóbora em
carruagem e faz surgir um par de chinelinhos de cristal. Cinderela “segue o baile” e
surge linda perante Chico Rei. Não demora muito tempo para que Chico Rei a resgate
das maldades de Fiona e Mafalda, ao calçar-lhe os chinelinhos de cristal.
Conforme já foi mencionado, Cinderela e Chico Rei foi publicada em 2015, pela
Mazza Edições. Diante da leitura da história, era necessário compreender o que Abioye
apresentava como possibilidade de princesa, no que tange à valorização étnico-racial
negra. O trecho escrito pelos autores da obra expõe algumas pistas:

Mas... E se Perrenault, Andersen e Grimm tivesse nascido no Brasil? Como


seriam os seus contos? E sobre essa perspectiva que Ronaldo Simões Coelho
e Cristina Agostinho, com sua larga experiência na literatura infantil,
recontam essas histórias, ambientando-as nas diversas regiões do nosso país,
transformando-a em personagens que nada tem de brasileiros em seres com o
nosso rosto e pele. Enfrentando bruxas no nosso imaginário cultural
(AGOSTINHO e COELHO, 2015, p.24).

O trecho acima é uma fala dos autores da obra presente na contracapa do livro.
Nela, é possível identificar que os autores da obra literária referenciaram-se em contos
de Charles Perrault, Hans Christian Andersen e dos Irmãos Grimm, para a produção da
narrativa. É válido ressaltar que estes escritores são tradicionais nomes dos contos de
fadas. Ao mesmo tempo, essas histórias foram produzidas em um período histórico,
cujas narrativas seguiam influências europeias, porém pouco exploradas em temáticas
de questões raciais. Ainda assim, Agostinho e Coelho propõem trabalhar a valorização
racial produzindo um conto de fadas, que apresente a princesa africana como
personagem principal. Espera-se, então, que a referida obra literária ofereça recursos
para trabalhar a reeducação das relações raciais.
Nesse sentido, é primordial aprofundar-se nos elementos que constituem
Cinderela e Chico Rei. Sendo assim, sugiro um breve diálogo, a respeito da autoria da
obra, em harmonia com as perguntas apresentadas na ficha de análise. Agostinho e
Coelho são dois autores prestigiados no mercado editorial. Agostinho é uma escritora

sumário 1504
VII Seminário Vozes da Educação

que tem publicações na área da educação étnico-racial e concebeu o “Alfabeto negro”


211
, cujo material era indicado como uma espécie de manual do professor. Já Coelho tem
mais de cinquenta publicações no campo da literatura infantil. Algumas delas foram
traduzidas para outros países e recomendadas pela biblioteca internacional da juventude
de Munique.
Com base nestas informações, problematizo que boa parte dos autores e autoras
visibilizados no contexto literário está sustentada pela hierarquia de grupos
subalternizados (RIBEIRO, 2017). Ocorre que, reconhecer o que a autoria representa na
produção das narrativas “é uma postura ética, pois saber o lugar de onde falamos é
fundamental para pensarmos as hierarquias, as questões de desigualdade, pobreza,
racismo e sexismo” (RIBEIRO, 2017, p 86). Creio que ao adquirir tal consciência,
potencializam-se condições para a produção de narrativas infantis idealizadas como
janelas de desconstrução do racismo. Isso possibilita um olhar mais atento, com relação
às práticas de escrita que inferiorizam personagens negros na literatura infantil.
As trajetórias realizadas pelas autorias também ajudam a compreender como
personagens infantis são posicionados no mercado editorial. Acontece que a
preponderância das normativas eurocêntricas favoreceu o nascimento de narrativas
estereotipadas, construindo princesas dentro do padrão hegemônico. Sendo assim, ao
pensar na elaboração de personagens infantis desprendidas de tais padrões, é necessário
que a autoria busque o devido aprofundamento nos estudos de raça, gênero e
branquitude, durante o processo de escrita.
Dados os expostos, é primordial que homens e mulheres, ao escreverem obras
literárias sobre a temática étnico-racial negra, reconheçam-se nos devidos lugares de
fala, no exercício da autoria. Portanto, concordo com Santos (2006) quando a autora
afirma que para estar no lugar do outro, para tentar traduzir o lugar do outro, é
necessário um desprendimento de si mesmo.

Os traços de Abioye: a capa de Cinderela e Chico Rei


Na obra literária, a ilustração tem o poder de ativar emoções de sujeitos. É
através dela que uma narrativa afeta o leitor em campos os quais as palavras, às vezes,
não alcançam. Nessa direção, ilustrações de personagens negras têm muito a dizer em

211
O Alfabeto Negro é um trabalho composto de livro-texto com belas ilustrações e manual do professor,
que visa sensibilizar para a questão dos brasileiros negros. De A a Z, figuram múltiplas possibilidades de
pesquisar e trabalhar: palavras de origem africana e palavras que remetem a lugares, personalidades e
temas africanos e afro-brasileiros nas áreas da cultura, da história e do político-social.

sumário 1505
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

uma obra literária infantil. Elas ajudam a delinear a abordagem de uma narrativa com
relação às questões raciais. Esse é um fator relevante, porque em meio ao mito da
democracia racial que ignora as hierarquias dos grupos subalternizados, é preciso
atentar-se aos detalhes.
Na EI, as obras literárias têm grande significado e são recomendadas em
documentos elaborados pelo Ministério da Educação (2014) a respeito de práticas
pedagógicas e currículo escolar. Dessa forma, é com elas que a criança interage em sala
de aula, seja nas rodas de leitura, contação de histórias, ou em brincadeiras de faz de
conta. Em muitos casos, também é possível que o único contato que a criança tenha
com uma obra literária infantil se dê no espaço escolar. Considerando tais aspectos, as
pesquisas sobre personagens negros na literatura têm sido produzidas de maneira atenta
às ilustrações das narrativas, visto que elas também despertam o imaginário da criança.
A este exemplo, Oliveira (2003) aponta aspectos depreciativos, negativos e
estereotipados na representação de sujeitos negros através de imagens na literatura. A
visão da autora corrobora com o que explicito, sobre a importância de avaliar
ilustrações com personagens negros. Diante disso, destaco o seguinte trecho da autora:

A ilustração tem servido de veículo para reforço de estereótipos e


preconceitos. [...] As imagens ilustradas também constroem enredos e
cristalizam as percepções sobre aquele mundo imaginado. Afinal, [...] por
que analisar as características das ilustrações das personagens?[...] Para ficar
atento aos estereótipos, estreitadores da visão das pessoas e de sua forma de
agir e de ser... a ajudar a criança leitora a perceber isso (OLIVEIRA, 2003,
p.05).

A partir do trecho destacado, articulo a análise das ilustrações de Cinderela e


Chico Rei. A capa é o primeiro elemento ilustrado da obra. A mesma é constituída de
papel brochura e revestimento brilhoso. Quanto à espessura, é mais densa do que as
demais páginas do livro, tornando-se mais resistente a contatos físicos. Este é um
detalhe importante a ser observado, porque na EI, as variadas formas de interação da
criança com o livro devem ser estimuladas. Para isso, é fundamental que ela se permita
explorar o livro. Pegue-os de prateleiras, compartilhe-os com os amigos e folheie-os
quantas vezes julgar necessário. Esses tipos de interações enriquecem o processo de
aquisição de leitura da criança e, para isso, é necessário que uma obra literária seja
produzida com materiais de qualidade.
Além disso, no que tange a livros com a temática étnico-racial negra, como é o
caso de Cinderela e Chico Rei, a qualidade do material das publicações adquire maior

sumário 1506
VII Seminário Vozes da Educação

amplitude, se considerarmos a importância de que tal temática adquira cada vez mais
visibilidade no espaço escolar. Nesse sentido, é fundamental que o material da referida
obra literária seja de boa qualidade. Afinal, dificilmente a criança irá escolher um livro
cujas capas estejam rasgadas, amassadas, de aspecto envelhecido, tornando-o pouco
atrativo.
Levando em conta as reflexões acima, narrarei os aspectos observados para a
análise da capa. Nela, há a identificação do título da obra, autores, editora e ilustrador.
O título e a ilustração dialogam no objetivo de apresentar ao leitor/leitora os
personagens principais da narrativa. Há também forte investimento das ilustrações, que
por sinal, ocupam a maior parte da capa. As ilustrações delineiam os personagens
principais, utilizando seus rostos como representação. É praticamente impossível não se
voltar para o olhar marcante de Abioye (Cinderela). Os traços dos personagens são
precisos e intimistas, exatamente como o ilustrador da obra costuma delinear suas
produções utilizando aquarela.

Figura 11: Capa da obra literária Cinderela e Chico Rei.

Fonte: Mazza Edições

A dedicação direcionada às ilustrações da capa, com riqueza de detalhes,


expressividade e amplitude dos rostos dos personagens, constitui-se como estratégia
condizente, para a aproximação do público infantil. Isso faz todo sentido, porque a capa
do livro tem grande impacto para crianças, principalmente, as que vivenciam a EI.
Como crianças neste segmento de ensino, em geral, ainda não dominam o código
escrito, é por meio de ilustrações que elas recebem as primeiras informações sobre o
que a história enuncia (CORSINO, 2014).

sumário 1507
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Ainda sobre as ilustrações da capa, os personagens Cinderela e Chico Rei são


esboçados de maneiras particulares. Cinderela aparece em primeiro plano. Tem feições
infantilizadas, rememorando o rosto de uma menina. Essa semelhança aponta para o
objetivo de aproximar a criança à narrativa, gerando identificação entre elas. Já Chico
Rei é retratado de forma distinta. O rosto do personagem possui características adultas,
masculinizadas, semelhantes à representação de um jovem rapaz.
Por outro lado, ao contrário de diversos contos de fadas, que caracterizam
princesas europeias, logo na capa do livro, Cinderela e Chico Rei surgem de maneira
oposta. A figura que se tem é a da menina descaracterizada dos vestidos reais e tiaras,
tradicionalmente empregadas em histórias com princesas. Ainda que estes elementos
façam parte da composição de Abioye, na passagem que ela vai ao encontro de Chico
Rei no baile, pode-se afirmar que o que temos na capa é a ilustração de uma menina
negra. Diante disso, o que simboliza tal representação em um conto de fadas?
Sem dúvida, significa muito. As experiências em salas de aula de EI
demonstram como os contos de fadas tocam crianças de maneira particular. Diversas
vezes nos momentos de brincadeira, a princesa ressurge no faz-de-conta. O enredo
fantasioso desses contos torna a narrativa extremamente envolvente, cativando as
emoções e o imaginário da criança. Acredito que essa perspectiva também tenha tocado
Santos (2016) na pesquisa desenvolvida por ela, sobre meninas negras e literatura.
Diante das indagações se a figura da princesa é ou não uma representação
positiva para crianças nos tempos atuais, a identidade negra articula-se a esta discussão,
de maneira particular. Em outras palavras: “O desejo de ser princesa atinge toda classe e
etnia de meninas; elas querem ser, fazer parte da realeza. A imagem da princesa está
associada à beleza, luxo e poder, elementos sedutores para qualquer indivíduo” (Santos,
2016, p.199).
A partir dessa perspectiva, quando a ilustração de uma princesa negra é
esboçada de maneira desprendida de simbologias europeias, abrem-se precedentes para
crianças construírem outras possibilidades de representação. Ou seja, praticar essas
agências, mesmo com uma simples capa de conto de fadas, também diz respeito à
quesionar lugares privilegiados, que sequer são pensados para meninas negras, em
situações nas quais o racismo atua como estrutura.

Da abóbora à carruagem: o que torna Abioye uma protagonista em Cinderela e


Chico Rei?

sumário 1508
VII Seminário Vozes da Educação

Cinderela e Chico Rei são os principais personagens da narrativa, porém é


Abioye (Cinderela) quem ocupa o lugar de protagonista. Embora essa informação
pareça óbvia, é interessante destacar as estratégias que a reafirmam no lugar de
protagonismo. O primeiro indício está nas ilustrações. Cinderela é a personagem com
maiores aparições na obra literária, totalizando oito imagens, considerando a capa. Já
Chico Rei aparece em seis, com o segundo maior quantitativo. A frequência das
ilustrações de Cinderela estimulam crianças a se manterem atentas à narrativa,
despertando o interesse pelo contexto da história. Até mesmo em diálogos ocorridos
entre as personagens Fiona e Mafalda, observa-se que somente a imagem de Cinderela é
representada. A esse exemplo, destaco a passagem abaixo:

Naquela época, as minas de ouro de Vila Rica atraíam tanta gente que a
cidade tinha mais habitantes que as grandes cidades da Europa, como
Londres e Paris. Mas Abioye não conhecia Londres nem Paris. Só conhecia
aquela casa, onde era obrigada a trabalhar dia e noite [...]. Por isso, as duras
irmãs que a maltratavam muito, apelidaram-na de Cinderela, que quer dizer,
suja de cinzas (AGOSTINHO e COELHO, 2015, p.02.).

Neste trecho, é possível perceber a contextualização da protagonista Cinderela e


das antagonistas, Fiona e Mafalda. A obra literária é dedicada a descrever Cinderela
detalhadamente através das ilustrações e de trechos na história. Isso cria maior
intimidade entre a criança e a personagem. Já Fiona e Mafalda não são ilustradas em
momento algum da narrativa. Sobre elas, basta saber que são personagens perversas e
que zombam e maltratam Cinderela frequentemente. Dessa forma, é estabelecida a
perene relação entre o bem e mal, usualmente explorada em contos de fadas (PAIVA,
1990), onde neste caso, a princesa negra representa o lado bom da história.
A conduta de Cinderela colabora para a sua aproximação com o contexto
infantil. Crianças tendem a serem cativadas por personagens bons e belos, pois para
elas, estes são critérios importantes, para a aquisição de carinhos e afetos (SANTOS
2004). É claro que nem sempre as subjetividades de personagens literários são
traduzidas exclusivamente pela relação entre o bem e o mal. Há outros elementos
determinantes para a construção da identidade de um personagem.
Ao mesmo tempo, a abordagem de conceitos morais, de forma simplista,
potencializa condições, para que a criança interaja com esse tema de forma mais
essencial, já que um caminho mais complexo poderia confundi-la sobre o assunto. Por

sumário 1509
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

essa razão, utilizar personagens para simbolizar o aspecto dualístico (bem e mal) é uma
estratégia bastante utilizada pelos contos de fadas.
Em diálogo com tal questão, é válido ressaltar que já nos primeiros anos de vida,
crianças precisam escolher entre o certo ou errado, o que é bom ou ruim. A rotina
escolar da EI reflete bem essa ideia, através de combinados realizados pela turma
juntamente à professora, acerca das ações que serão ou não aceitas em sala de aula.
Sabendo destes objetivos, narrativas de contos de fadas são repletas destas simbologias,
fazendo uso dos personagens para representá-las no universo infantil.
Sob outro ponto de vista, o fato de uma princesa negra representar o lado bom
em Cinderela e Chico Rei também diz respeito à desconstrução de estereótipos, onde o
sujeito negro é visto distanciado dos aspectos morais. Em “A máscara” Kilomba (2010)
explicita que “no mundo conceitual branco, o sujeito negro é identificado como ruim”.
(KILOMBA, 2010, p.174) Neste mesmo diálogo, Schucman (2012) traz notáveis
contribuições com sua tese, uma vez que os sujeitos entrevistados associaram a moral à
cor da pele, exatamente como Kilomba explicitava. Na concepção de Schucman, essas
associações são ainda seguidas de uma perspectiva de superioridade, a qual os sujeitos
brancos se apropriam. Vejamos então uma das considerações da autora, a respeito do
assunto:

Ser branco para ele vincula-se a características de atitudes e não a cor da pele
[...] É interessante observar que nos sujeitos entrevistados, há insistência nos
discursos. Vinicius com sua espontaneidade reproduz a ideia de que as raças
não são definidas apenas por diferenças físicas, mas correspondem também a
diferenças morais, psicológicas e intelectuais e que dentro dos grupos raciais
existem as atitudes “melhores”, “naturalmente” associadas aos brancos
(Schucman, 2012, p.73).

Com base nas contribuições das autoras, compreendo que a atuação de


personagens negras que estejam do lado bom da história também contribui para uma
importante desconstrução no que se refere à criminalização da cultura negra no Brasil.
Isto é, para manter-se, a estrutura escravocrata difundiu uma imagem social de homens
e mulheres negras como seres pré-humanos, irracionais e violentos (GOMES, 2019).
Essa imagem perdura até hoje e é sob esse olhar preconceituoso que a cultura negra é
analisada e segregada.
Sabendo disto, atento-me ao fato de que crianças se apropriam de narrativas
infantis, como produções de conhecimento em suas projeções de mundo. Nesse sentido,

sumário 1510
VII Seminário Vozes da Educação

ao posicionar personagens negras no lugar da bondade, potencializam-se ferramentas,


para a desconstrução da descriminalização racial na literatura.

Como o feminino é abordado em Cinderela e Chico Rei?


A todo o momento a infância a todo o momento é bombardeada por referenciais
de gênero, cujos objetivos pairam sobre a criança e suas escolhas para a formação da
identidade. Elementos como brinquedos, festas temáticas, vestimentas e até
programações televisivas são exemplos de ferramentas utilizadas para incutir
construções de gênero.
A LI também é parte desse processo. Partindo do pressuposto em que a infância
e a cultura são conceitos historicamente produzidos, Corsino (2015) afirma que a LI
nasce do seio de uma cultura que define o que é ou não infantil ou próprio das/para as
crianças. Nessa direção, o conceito de feminilidade foi incorporado no universo
literário, produzindo personagens cuja conduta era pautada em atitudes de submissão e
fragilidade.
Em diálogo com essa perspectiva, Fink (2016) nos alerta sobre os roteiros
marcadamente enunciados em histórias de princesas. A autora observou características
elementares apresentadas nos contos de fadas clássicos. Uma delas era a necessidade de
espera. Nas primeiras histórias, em especial nas produções literárias do século XIX,
cultivava-se a esperança pela pessoa ideal (geralmente representada pela figura
masculina). O príncipe encantado cumpria com o papel de retirar as personagens dos
apuros, despertá-las do sono profundo e calçar-lhes os sapatos de cristal.
Em Cinderela e Chico Rei, Abioye também passa pela experiência da espera.
Vale lembrar que a referida obra literária é uma adaptação da versão escrita por Charles
Perrault 212 . Dessa forma, é previsível que determinados discursos, comumente
encontrados nos contos de fadas europeus possam se repetir. Os personagens Cinderela
e Chico Rei apaixonam-se logo na primeira vez que se encontram durante o baile.

212
Cinderela é um dos contos de fadas mais populares da humanidade. Sua origem tem diferentes
versões. A versão mais conhecida é a do escritor francês Charles Perrault, de 1697, baseada num
conto italiano popular chamado La gattacenerentola ("A gata borralheira"). A mais antiga é originária
da China, por volta de 860 a.C.. Existe também a dos Irmãos Grimm, semelhante à de Charles Perrault.
Nesta, porém, não há a figura da fada-madrinha e quem favorece a realização do desejo de ir ao baile são
os pombos e a árvore que crescem no túmulo de sua mãe. Neste caso, Cinderela sabe palavras mágicas,
usadas no imperativo, que auxiliam na transformação de seu pedido em realidade. No final, as irmãs
malvadas ficam cegas quando são atacadas por pombos que lhes furam os olhos. Segundo outras versões
a figura da fada madrinha na verdade é o espírito da falecida mãe da própria protagonista que trazia um
vestido do céu para Cinderela usar no baile.

sumário 1511
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Como Chico Rei é um ex-escravizado, que se tornou um dos homens mais abastados de
Vila Rica, ele acaba por libertar Cinderela da condição de escravizada através do
casamento, trazendo grandes mudanças para a vida da personagem.
Naturalmente, a abordagem da figura masculina representada por Chico Rei
merece ser debatida como questão neste trabalho. Por outro lado, reitera-se que na
versão escrita por Agostinho e Coelho, a história de amor entre os personagens
Cinderela e Chico Rei serve como pano de fundo para falarmos sobre a afetividade da
mulher negra. E este é um tema importantíssimo de ser debatido mesmo no contexto
infantil, porque basicamente toda mulher negra tem recordações dolorosas de sua
infância e adolescência (ARRAES, 2019).
Além disso, o tema há um tempo já é pauta de debates feministas e trabalhos
acadêmicos, a partir da constatação que raça e gênero são aspectos determinantes para a
solidão da mulher negra. Pacheco (2008) chega a essa conclusão através da tese que
desenvolveu sobre escolhas afetivas e significados de solidão, entre mulheres negras em
Salvador, Bahia. Os resultados apontaram a cor e a raça como elementos precedentes na
preferência afetiva sexual dos parceiros. Como consequência, haveria um “excedente”
de mulheres negras sem relações afetivo-sexuais estáveis, em relação às mulheres
pertencentes a outros grupos raciais.
Dado o exposto percebemos que a questão racial resulta em relações
diferenciadas de feminino. Ao observar Cinderela e Chico Rei, podemos considerar que
uma obra literária que se propõe a trazer a história de amor de uma personagem negra
acaba realizando uma abordagem singular de narrativa nos contos de fadas. Não é fácil
para crianças não brancas darem início às suas experiências de ser mulher, tendo
princesas brancas como referências majoritárias de feminilidade. As eminências de
princesas brancas, sumariamente reproduzidas nos contos de fadas, reforçam o
pensamento de que o padrão de feminilidade não foi pensado para meninas negras.
Os padrões de gênero são tão profundamente incutidos em nós que, às vezes, é
difícil desaprendê-los. Consequentemente, crianças negras e brancas são tratadas sobre
diferentes perspectivas, exatamente por estarem inseridas em tais padrões. É
impressionante como nem sempre há a devida conscientização sobre como os
estereótipos de gênero e raça implicam na vida das crianças, ao que diz respeito a
gênero, raça e classe.
Sobre isso, apresento os seguintes dados: no Brasil, entre os períodos de 2011 a
2017, houve um aumento de 83% nas notificações gerais de violências sexuais contra

sumário 1512
VII Seminário Vozes da Educação

crianças e adolescentes, segundo boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da


Saúde. Nessa estatística, 74% das vítimas eram meninas e 25% eram meninos. Com
relação ao perfil racial, 45% das vítimas eram crianças negras e 39% eram brancas213.
A estatística apresentada também se confirma nos estudos desenvolvidos no
relatório “Girlhood Interrupted: The Erasureof Black Girls’ Childhood” (Infância
Interrompida: O Apagamento da Infância de Crianças Negras 214 ), que aponta a
existência do olhar hipersexualizado sobre meninas negras. Em outras palavras,
meninas negras foram apontadas pela pesquisa como menos inocentes do que as
crianças brancas.
À luz de hooks (2017), enfatizo que todas estas evidências estão atreladas a
pressupostos históricos. Os estereótipos da feminilidade negra já existem desde a
abolição da escravatura. Naquela época, os preconceitos contra mulheres negras
serviam para preconizar suas relações afetivas, uma vez que o relacionamento entre
raças foi legalizado. Assim, ao promover a ideia de superioridade racial, as mulheres
brancas protegiam suas posições sociais. “Dessa forma, reforçava-se a noção de que
negras eram imorais, sexualmente licenciosas e carentes de inteligencia” (hooks, 2017,
p.132).
Nessa perspectiva, compreendo que a dominação das princesas brancas na
literatura com seus príncipes encantados e finais felizes é um modo de reforçar
estratégias de depreciação, às quais hooks faz referência já na infância. Em face de
tamanha realidade, encontro em Cinderela e Chico Rei a oportunidade de estranhar o
currículo (LOURO, 2008), isto é, questionar o que já está posto como construção de
feminino e aplicar essas reflexões no contexto infantil.

Referências
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Companhia das Letras, 2017.

AGOSTINHO, Cristina e COELHO, Ronaldo. Cinderela e Chico Rei. Minas Gerais:


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213
Disponível em: http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/junho/25/2018-024.pdf. Acesso
em 12/07/2018.
214
Disponível em: https://www.geledes.org.br/meninas-negras-sao-vistas-como-menos-inocentes-do-que-
brancas-diz-estudo/. Acesso em 01/5/2019.

sumário 1513
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ARRAES, Jarid. Os padrões de feminilidade e a mulher negra. Disponível em


https://www.geledes.org.br/ospadroes-de-feminilidade-e-mulher-negra-por-jarid-arraes/
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Disponível em:
<http://www.uece.br/endipe2014/ebooks/livro1/310-
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sumário 1514
VII Seminário Vozes da Educação

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SCHUCMAN Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”:


Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude. 2012.

sumário 1515
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

WEB-TV E FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA UMA EDUCAÇÃO DAS


RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Graziele Lira
UFRRJ
liragrazi@gmail.com215

Valter Filé
UFRRJ
valterfile@gmail.com216

1. Laçando a pesquisa
O texto que ora apresentamos é um recorte de uma pesquisa de mestrado
vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e
demandas populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - linha de
pesquisa: Educação e Diversidades Étnico-Raciais. Uma composição que tenta pensar
junto ao Laboratório de estudos e aprontos multimídia: relações étnico-raciais na
cultura digital (LEAM)217 as desigualdades produzidas nas relações étnico-raciais, nas
transformações socioculturais produzidas pelas Tecnologias de Informação e
Comunicação (TICs), bem como no aparecimento de outras formas de racismo
buscando promover ações para uma educação antirracista na formação dos professores.
A pesquisa acompanhou o processo de criação e desenvolvimento da Síncopa-
TV218, uma Web TV que está sendo desenvolvida pelo LEAM no projeto de pesquisa
Educação das relações étnico-raciais na cultura digital219 (2017-2020). A pesquisa de
Mestrado, que resultou na dissertação A Síncopa-TV por uma educação antirracista:

215
Mestre em Educação pelo PPGEDUC-UFRRJ. Pedagoga pela UFRRJ. Membra do Laboratório de
estudos e aprontos multimídia: relações étnico-raciais na cultura digital (LEAM). Orientadora Pedagógica
do Município de Japeri.
216
Professor da UFRRJ - coordenador do LEAM
217
Linha de pesquisa ao qual essa composição está vinculada. O LEAM é coordenado pelo Profº. Drº.
José Valter Pereira (Valter Filé) no Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ-IM). Suas pesquisas e movimentos podem ser acompanhados no site:
<http://estudoseaprontosmultimidia.info/.>.
218
A Síncopa-TV foi lançada no final de 2016 e se encontra disponível em <http://sincopa-
tv.estudoseaprontosmultimidia.info/>.
219
O projeto propõe um estudo das relações étnico-raciais na cultura digital a fim de compreender as
resistências à implementação da Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura

sumário 1516
VII Seminário Vozes da Educação

experimentações audiovisuais na formação de professores 220 buscou desenvolver um


estudo sobre as potências do audiovisual numa educação para as relações étnico-raciais
tendo como o locus dessa experimentação a formação de professores.
Esse texto apresenta algumas questões e caminhos que surgiram ao longo dessa
pesquisa. O acompanhamento das experimentações audiovisuais na Síncopa-TV revela-
se como o lugar onde problematizamos: Como a linguagem audiovisual pode ser uma
potência na formação para uma educação antirracista?
Perseguindo os caminhos da dissertação, que trilhou uma escrita zigzagueante
como tentativa de dar conta dos processos de fazer pesquisa sem hipóteses. Longe de ter
um objeto essa pesquisa foi composta por sujeitos, histórias, desassossegos, linguagens
outras, suportes outros. Ou seja, a experiência encarnada na escrita, a escrita como
acontecimento. Como nos diz Larrosa:

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o
que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas
coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo
o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. (LARROSA,
2002, p. 21)

Através desse modo de fazer pesquisa, continuamos em formação e


transformação a partir de um movimento de alteridade, pois, apesar das definições
serem solitárias, a escrita para nós sempre está unida ao coletivo, pelo menos ao LEAM.
Sendo assim, os acontecimentos que geram experiências nesse eterno devir nos
encorajam a pensar nas amarras que forjam o nosso olhar, a nossa atenção, a nossa
disposição nos processos que nos formam. Pretendemos articular esse movimento na
tentativa de lidar com outras linguagens e dispositivos que nos ajudem a definir como e
por onde foi tecida a pesquisa que nasceu e se desdobrou dentro de um outro projeto de
pesquisa do LEAM.

2. O projeto
O projeto nó221 propõe um estudo das relações étnico-raciais na cultura digital a
fim de compreender as resistências à implementação da Lei 10.639/03, que torna
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas,

220
Dissertação orientada pelo Prof. Dr. Valter Filé. Defendida em abril de 2019.
221
Forma como os pesquisadores do LEAM denominam os estudos que nascem ou se articulam a partir
do projeto central desenvolvido pela linha de pesquisa, no caso, o projeto Educação das relações étnico-
raciais na cultura digital.

sumário 1517
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

investindo na criação de espaços de formação e de experimentação, considerando os


desafios e as possibilidades da cultura digital. Sendo assim, iniciamos essa jornada
atentos às questões problematizadas e estudadas pelo LEAM neste projeto de pesquisa:

Como as desigualdades produzidas nas relações étnico-raciais podem ser


pensadas/problematizadas na chamada cultura digital? Será que tais
desigualdades, muitas delas históricas, aprofundam-se, renovam-se ou estão
sendo reinventadas? As tecnologias da informação e da comunicação (TICs)
poderiam contribuir para uma educação mais democrática? (FILÉ, 2016, p. 3)

Para o LEAM a cultura digital - suas mídias e linguagens - podem ajudar a criar
outros processos e espaços-tempo de formação que articulem tanto o campo das
relações étnico-raciais quanto às questões geradas pelas TICs.

3. Os desassossegos
Uma das questões que impulsionam essa pesquisa nasceu no processo seletivo
para o mestrado. Uma pergunta que ressoou nos ouvidos da autora da pesquisa e
provocou enorme desassossego: “E se alguém te perguntasse: por que você, uma pessoa
branca, se interessa por pesquisar as relações étnico-raciais?” Repenso essa pergunta da
seguinte forma: por que uma pessoa não se interessaria por pesquisar as relações étnico-
raciais?
Entre os diversos voos que a autora fez para pensar essa pergunta um deles foi
lembrar desde quando começou a se identificar como “branca”... Pouco antes de entrar
na faculdade ela teve que preencher um formulário que perguntava a sua identificação
racial. Ela passou os olhos nas classificações: Branca; Parda; Negra; Indígena. Até antes
daquele momento ela não se recordou de ter pensado sobre reconhecer seu
pertencimento racial. Ela passou a se reconhecer, também, pelo olhar do Outro…
Passou a se incomodar com essa autoclassificação que tem como base os traços físicos
que carregamos e ao mesmo tempo passou a sentir-se como uma branca não-branca.
Como nos diz Carone (2002, p. 23): “a cor/ raça protege o indivíduo branco do
preconceito e da discriminação raciais na mesma medida em que a visibilidade do negro
o torna um alvo preferencial de descargas de frustrações impostas pela vida social”.
Afinal o que é ser branca no Brasil? Estamos longe de concluirmos um pensamento
sobre isso, mas partimos do princípio que ser branca no Brasil é reconhecer seus
privilégios por ser vista como o padrão da normalidade, do belo, do ético, da
competência, do bom… Mas a autora ainda não havia se dado conta disso durante a

sumário 1518
VII Seminário Vozes da Educação

graduação. A naturalização da mentalidade racista brasileira faz com que os


afrodescendentes de pele clara não sofram tanto quanto o que sofrem os considerados
pretos. Nessa discussão de autoclassificação e mentalidade racista está implícito o mito
da democracia racial do Brasil 222 . Ao não nos formarmos e educarmos para as
diferenças partimos para a eliminação de nossa ancestralidade, nossa história, nossa
aparência. Começamos então a questionar: como fomos formados para essa cegueira?
Quanto do nosso não ver contribuiu/contribui para a continuação desse racismo que
mata e fere todos os dias?

4. Uma Educação para as Relações Étnico-raciais


Pensando na inclusão e equidade da diversidade étnico-racial no Brasil, a autora
Nilma Lino Gomes nos presenteia com um artigo elucidando a luta do Movimento
Negro para reivindicar a questão racial como uma forma de opressão exigindo políticas
de ação afirmativas das diversas esferas do Estado.

Os ativistas do Movimento Negro reconhecem que a educação não é a


solução de todos os males, porém, ocupa um lugar importante nos processos
de produção de conhecimento sobre si e sobre “os Outros”, contribui na
formação de quadros intelectuais e políticos e é constantemente usada pelo
mercado de trabalho como critério de seleção de uns e exclusão de outros.
Além disso, a educação, no Brasil, é um direito constitucional conforme o
artigo 205 da Constituição Federal (1988). Porém, todas as pesquisas oficiais
realizadas nos últimos anos apontam como o campo educacional tem
produzido e reproduzido no seu interior um quadro de desigualdades raciais.
(Gomes, 2010, p.4)

Uma das políticas conquistadas pelo Movimento Negro e intelectuais


comprometidos com uma educação antirracista é a Lei 10.639/03 que, como já foi dito
nesse texto, torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Africana e Afro-
brasileira nas escolas. Em 2008, a lei 11.645/08 acrescentou o ensino de Histórias e
Culturas Indígenas alterando assim a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Esse é um grande passo para o enfrentamento das desigualdades produzidas em uma
educação etnocêntrica no Brasil, mas como acontecerá essa abordagem se muito sobre
esse tema foi negado inclusive na própria formação desses professores?
Como formação estamos considerando também as experiências, os discursos, as
narrativas. Compreendo assim, que os processos formativos estão nas diversas

222
O mito da democracia racial propaga que por ser, o Brasil, um país miscigenado não existe
discriminação racial, dificultando o enfrentamento do racismo ao reproduzir um discurso de minimização
e invisibilização do preconceito e da discriminação racial no cotidiano brasileiro.

sumário 1519
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

experiências que nos acontecem ao longo da vida, e não apenas vinculados às


instituições de ensino. Para Macedo:

aprender num cenário curricular, por exemplo, é aprender em meio a uma


cultura densa, estruturante e opcionada; é aprender num contexto social e
cultural onde um determinado tipo de conhecimento e de atividade se
apresenta e se organiza como relevante em termos de aprendizado e
formação. Ou seja, é aprender em espaços onde se elege um conhecimento
relativamente sistematizado como formativo. (MACEDO, 2014, p.2)

Dessa forma, seria um equívoco jogar apenas nas mãos dos educadores a
responsabilidade em garantir uma educação antirracista para as novas gerações, pois
essa é uma questão estruturante na sociedade brasileira. E não nos formamos apenas nas
dependências das escolas guiados pelos professores... Somos formados desde cedo para
a eliminação da representatividade negra, uma verdadeira tentativa de epistemicídio
(Boaventura de Souza Santos, 2004). Como de uma hora para outra faremos diferente
apenas nas salas de aula? Como podemos ampliar essa luta para outros espaços-tempo?
Ou seja, precisamos pensar na política educacional como uma das muitas ações
para equidade na sociedade brasileira. Segundo Gomes,

Entender a dimensão do conflito e repensar a prática pedagógica como base


nele, no sentido de exercitar uma postura ética poderá nos apontar para a
liberdade, e não para o aprisionamento do sujeito no preconceito, na
desigualdade, na discriminação e no racismo. A educação para as relações
étnico-raciais que cumpre o seu papel é aquela em que as crianças, os
adolescentes, os jovens e os adultos negros e brancos, ao passarem pela
educação básica, questionem a si mesmos nos seus próprios preconceitos,
tornem-se dispostos a mudar posturas e práticas discriminatórias, reconheçam
a beleza e a riqueza das diferenças e compreendam como essas foram
transformadas em desigualdades nas relações de poder e de dominação. Em
suma, os sujeitos de uma educação das relações étnico-raciais que se pauta na
ética aprenderão a desnaturalizar as desigualdades e, ao fazê-lo, tornar-se-ão
sujeitos da sua própria vida e da sua história e aprenderão a se posicionar
politicamente (e não somente no discurso) contra toda sorte de discriminação
(GOMES, 2007, p. 83)

Lutar pela valorização da história e culturas negras e indígenas dando a ver uma
imagem positiva, crítica e emancipatória desses povos e seus grandes personagens me
faz pensar no espaço de aparência desses sujeitos e do quanto a escola e a mídia se
comportam, muitas vezes, como instrumentos na reprodução do racismo. Segundo
Arendt, “tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem maior
divulgação possível. Para nós a aparência - aquilo que é visto e ouvido pelos outros e
por nós mesmos - constitui a realidade.” (ARENDT, 2007, p. 59). Ou seja, o espaço de

sumário 1520
VII Seminário Vozes da Educação

aparência dos sujeitos se dá no espaço público. Logo, ao construirmos uma sociedade e


uma escolarização baseada no etnocentrismo invisibilizamos os sujeitos, negando suas
existências. Diante disso, como podemos utilizar os espaços públicos das mídias para a
visibilização dos negros na sociedade? Sem dúvidas, esse seria o início das
transformações necessárias para ampliar as condições educativas e os esforços dos
professores em busca de uma práxis voltada para uma educação das relações étnico-
raciais que considerem as questões que estão sendo impostas pelas TICs.

5. As mídias na Educação das Relações Étnico-raciais


Nesse texto desejamos afirmar a necessidade de compreender as transformações
provocadas pelas TICs e os novos regimes de visualidade e descentramentos culturais
(MARTÍN-BARBERO, 2000) para encontrarmos outras formas de lutarmos em favor
de uma educação antirracista. O modelo educacional baseado na linguagem escrita que
determina quem, quando e em que tempo os conhecimentos serão “transmitidos” têm
sofrido grandes abalos e perda de autoridade frente ao avanço das TICs.

Cada dia mais estudantes testemunham uma simultânea porém


desconcertante experiência: a de reconhecer que o professor sabe sua lição, e
ao mesmo tempo o desconcerto de constatar que estes conhecimentos se
encontram seriamente defasados dos saberes e linguagens que - sobre
biologia, física, filosofia ou geografia – circulam fora dela. E frente a alunos
cujo meio-ambiente comunicativo lhes “ensopa” cotidianamente destes
outros saberes-mosaicos que, em forma de informação, circulam pela
sociedade, a reação da escola é quase sempre a de entrincheiramento no seu
próprio discurso: qualquer outro é sentido pelo sistema escolar como um
atentado a sua autoridade. (MARTÍN-BARBERO, 2000, p.94-95)

E mais...

O quadro não pode ser mais significativo: enquanto o ensino discorre pelo
âmbito do livro o professor se sente forte, porém quando aparece o mundo da
imagem o professor perde o chão, seu terreno se move: porque o aluno sabe
muito mais e sobretudo maneja muito melhor as linguagens da imagem que o
professor. E ademais porque a imagem não se deixa ler com a univocidade de
códigos que a escola aplica ao texto escrito. Frente a esse desmoronamento
de sua autoridade ante ao aluno, o professor não sabe reagir senão
desautorizando os saberes que passam pela imagem. (MARTÍN-BARBERO,
2000, p.97)

A cultura digital, e especificamente chamamos a atenção para a linguagem


audiovisual, ganha um espaço importante na forma como nos comunicamos,
produzimos conhecimentos, compartilhamos informações, nos formamos, e é claro

sumário 1521
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

como entretenimento e registro de momentos. As novas gerações nasceram em um


mundo repleto de possibilidades de produzir e consumir imagens, cores, movimentos,
sombras, sons e silêncio.
A linguagem audiovisual permite uma composição de linguagens em si mesma,
podendo estabelecer conexões e ser composta pela linguagem visual, linguagem verbal,
linguagem escrita e linguagem sonora. Quais as possibilidades de uso das linguagens
audiovisuais na ampliação da visibilidade do negro na sociedade problematizando as
injustiças cognitivas que se estabelecem dentro e fora da sala de aula? Como pensar as
TICs para além de seu uso instrumental? Como lidar com a linguagem audiovisual
pensando em seu potencial comunicativo e formativo?
Podemos dizer que vivemos uma expansão da linguagem audiovisual com a
popularização dos meios digitais. A internet possibilita uma nova forma de nos
relacionarmos com o audiovisual. A necessidade por buscar entender o que é e como se
dá uma Web-TV, passa por pesquisar suas possibilidades e os movimentos
indispensáveis para desenvolver outros fazeres.
Para iniciarmos o desenvolvimento dessa Web-TV investimos na tentativa de
dar a ver algumas possibilidades das mídias contribuírem para a ampliação das formas
de comunicação e de produção de conhecimentos, buscando uma ampliação dos
espaços-tempos de envolvimento com a vida acadêmica. Além de investir em outras
formas de envolver as pessoas no debate que se encontra a luta por uma educação
antirracista e oportunizar encontros para quem se interessa pelo assunto, mas
principalmente para os professores, que precisam lidar com as questões étnico-raciais
dentro das salas de aulas e muitas vezes se veem perdidos e sozinhos nessa discussão.
Essa pesquisa pensou na tessitura de uma cultura que vem quebrando essa
autoridade de poder sobre o saber para o desenvolvimento de uma Web TV na formação
de professores para uma educação para as relações étnico-raciais que não deve estar
presa às unidades de ensino, mas se conectar aos diversos espaços-tempos que a Era
digital possibilita.
Os desafios que enfrentamos para efetivarmos uma educação para relações
étnico-raciais não estão somente na falta de materiais e recursos, mas principalmente no
âmbito das ideias, do conhecimento, da formação, da experimentação, do questionar os
discursos e as imagens naturalizadas, de buscar outras linguagens e imagens que estão
mais próximas dos estudantes que estão dentro das salas de aula. E também pensando
sobre os desdobramentos dessa questão começamos a desenhar oportunidades de

sumário 1522
VII Seminário Vozes da Educação

223
desenvolver com/no ciberespaço possibilidades de entramar histórias
problematizando os desafios que emergem nessas complexas áreas para a Educação que
refletem a formação dos professores.
Dessa forma, a pesquisa buscou acompanhar o processo de criação e
desenvolvimento de uma Web-TV. Em virtude das múltiplas transformações que as
novas tecnologias propiciam a partir de seus usos Cerqueira (2009) nos afirma que o
conceito de Web-TV não está dado e não pode ser amarrado com palavras
determinadoras, mas pode ser pensado a partir de seu funcionamento generalizado.

O conceito de WebTV mostra-se confuso, abrigando desde o simples


compartilhamento de vídeos até uma distribuição mais densa e organizada,
sistematizada em torno de uma verdadeira programação. Em linhas gerais, os
conceitos de WebTV abrangem a distribuição de conteúdo audiovisual
usando a web como plataforma. Neste contexto, é possível estabelecer
configurações distintas de webtv em função dos aspectos como: natureza do
produtor e da programação; tecnologia de distribuição, transmissão ao vivo
etc. Assim, uma webtv pode constituir um espaço para conteúdo transmitido
por emissoras tradicionais, como também de registros produzidos por
usuários comuns. É neste amplo espectro de configurações que surgem uma
gama de denominações, a exemplo de TVWeb, Televisão na Internet etc.
(Op. cit., p.5)

Da mesma forma Ribeiro nos adverte que a programação de uma Web-TV pode
ser pensada com foco nos temas discutidos através da linguagem audiovisual “mais do
que um novo meio digital, a Web-TV chega com um viés colaborativo revolucionário
ao descentralizar o foco das discussões do meio para o conteúdo” (RIBEIRO, 2009,
p.10). Essa inversão no uso vai além de uma interação reflexiva do conteúdo. Ela
possibilita a quem sempre foi consumidor se tornar agora produtor de conteúdo. Quais
caminhos se abrem com esse abalo na estrutura do poder midiático?

5.1 A Síncopa-TV
Como já foi dito, a Síncopa-TV é o Canal do LEAM que oportuniza pensar
sobre/com as narrativas e experiências formativas, pedagógicas, sociais e políticas que
constituem os sujeitos. Seu uso pode nos dar pistas para pensar sobre as problemáticas
pesquisadas no projeto nó, a formação de professores para uma educação das relações
étnico-raciais e as desigualdades perpetuadas nos diversos processos formativos.

223
O ciberespaço (que também chamarei de “rede”) é o novo meio de comunicação que surge da
interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infra-estrutura material da
comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os
seres humanos que navegam e alimentam esse universo. (LÉVY, 1999, p.17).

sumário 1523
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Desde seu lançamento, em 2016, esse canal abriga as diversas produções


dirigidas pelo coordenador do LEAM, Valter Filé. São quarenta e cinco produções
realizadas no Projeto Puxando Conversa224 e os seis vídeos da TV Maxambomba225.
Além do documentário “Cultura digital no cotidiano escolar” realizado em 2011 durante
o projeto de pesquisa, de mesmo nome.
No final de 2016 produzimos a gravação de um vídeo com depoimentos de
estudantes do curso de Pedagogia. O vídeo se estabelece como outra forma de narrar,
com outro tipo de linguagem, com possibilidades de recepção de outro tipo que a da
linguagem escrita, predominantemente usadas nas Instituições de Ensino. Os
depoimentos foram gravados no LEAM e originaram a produção Memórias de
formação226, neste as alunas contam acontecimentos que marcaram as suas vidas e que
estão sendo oferecidos para pensarmos as relações raciais no Brasil e a formação de
professores. Os relatos compartilhados nesse vídeo propõem pensar no quanto somos
formados bem antes dessa formação dita como inicial. Temos acreditado que essa
formação inicial, na verdade, faz parte de uma formação continuada ou apenas mais
uma dimensão da formação, pois as histórias e os encontros que temos nos transformam
o tempo todo e certamente influenciam em como cada um exerce a cidadania e a sua
profissão, como cada um se coloca no mundo.

7. (In)Conclusões
Esse texto não apresenta resultados finais ou conclusões finais, o que buscamos
oferecer são as questões e movimentos que surgem/encontramos/provocamos e que tem
possibilitado pensar a partir da Síncopa-TV as desigualdades perpetuadas nos diversos
processos formativos, a relação do audiovisual com a perpetuação da discriminação,
mas que pode a partir de outros usos aliar a formação de professores para uma educação
das relações étnico-raciais…
É preciso legitimar e efetivar ações educativas e culturais que promovam uma
educação antirracista no Brasil. Essa luta precisa estar aliada contra o desperdício da

224
O Puxando Conversa aconteceu entre 1990 e 2004 e se materializa com o registro audiovisual da
memória de vida e obra dos compositores de samba do RJ. O projeto foi idealizado por Valter Filé.
225
A TV Maxambomba conduziu na Baixada Fluminense atividades inéditas de TV comunitária, por
meio de vídeos os moradores retratam sua realidade e as exibições ocorrem em praças públicas. Para
maiores informações acesse: <http://www.cecip.org.br/site/tv-maxambomba-2/>. Acesso em 20 jan de
2018.
226
Disponível em https://youtu.be/b_xEE3CDsD0. Acesso 17 de março de 2018.

sumário 1524
VII Seminário Vozes da Educação

experiência, como nos aconselha Boaventura, pois para democratizar a escola é preciso
descolonizar o pensamento, o currículo e as práticas educativas.
Pensar a Síncopa-Tv é questionar as pedagogias que conduzem, formam,
educam a nossa forma de olhar. Como estamos sendo formados ética, estética e
politicamente através das imagens que nos circundam não só nas escolas, mas nas
diversas instituições que nos formam? Como os professores se preparam para trabalhar
nas escolas públicas, onde a maioria dos alunos são negros e pobres? Que olhar ele leva
do outro para dentro de sala de aula?

Referências
ALVES, Nilda. Imagens das escolas: sobre redes de conhecimentos e currículos
escolares. Educar, Curitiba, n. 17, p. 53-62. 2001. Editora da UFPR.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10.ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2007.

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brasileira. In: CARONE, Iray & BENTO, Maria A. S. (orgs.). A psicologia social do
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CERQUEIRA, Jean Fábio Borba. Uma análise das potencialidades de implantação de


uma WebTv a partir dos sites YouTube, Vimeo, YahooVideo. 2009. Disponível em
<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2009/resumos/R4-2393-1.pdf>. Acesso
em 10 de out. de 2017.

FILÉ, Valter. Projeto de pesquisa Educação das relações étnico-raciais na cultura


digital. 2016.

GOMES, Nilma Lino. Um olhar além das fronteiras: educação e relações raciais. Belo
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<http://www.anpae.org.br/iberolusobrasileiro2010/cdrom/94.pdf>. Acesso em 20 fev de
2018.

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista


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LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999;

MACEDO, Roberto S. Compreender/Mediar a formação: o fundante da educação.


Brasília: Liber Livro Editora, 2010. 15.

sumário 1525
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

MARTÍN-BARBERO, Jesus. Novos regimes de visualidade e descentramentos


culturais. In: FILÉ, Valter (org). Batuques, fragmentações e fluxos. Rio de Janeiro:
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SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da Razão indolente – contra o desperdício da


experiência. São Paulo: Cortez, 2000.

sumário 1526
VII Seminário Vozes da Educação

PERCEPÇÃO DO ENTENDIMENTO DOS ALUNOS DE UMA ESCOLA


PÚBLICA EM SÃO GONÇALO-RJ DO CONCEITO DE DESIGUALDADES E
DIFERENÇAS, NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA: IMPORTÂNCIA DOS
TEMAS TRANSVERSAIS

Marcio Ramos
UERJ FFP
marcio.ramos.uerj@gmail.com

Introdução
O escopo desta proposta é discutir e problematizar a atuação pedagógica dos
profissionais da escola pública, no que tange à historicidade cultural de seus educandos.
Em outras palavras, construir uma relação dialógica entre a escola e a compreensão de
vida e perspectiva de comunidade escolar, sobretudo dos estudantes.
Uma grande fatia da sociedade brasileira, principalmente nas periferias urbanas
das grandes cidades, se encontra sucumbida diante do mundo do trabalho e sem
vislumbrar nenhuma melhoria na qualidade de vida. Desta forma, a contextualização do
discurso escolar, principalmente na escola pública, torna-se fundamental na busca de
uma perspectiva pluralista que permitirá o entendimento das desigualdades e diferenças,
base do preconceito e discriminação.
O Aumento da pobreza nas duas últimas décadas do século passado foi um forte
pilar para o incremento das desigualdades sociais. Desta forma, as diferenças, tais
como, a de gênero, raça e cor foram destacadas por questões que perpassam nossa
história, evidenciando a hegemonia colonizadora. Sendo assim, os projetos neoliberais
implantados nos últimos 25 anos do século XX tem forte influência no mundo do
trabalho e na educação brasileira.
A partir dos anos 1970, o Capitalismo entrou em um novo ciclo de crise, abrindo
espaço para uma nova recomposição das relações sociais capitalistas. Assim, o consenso
em torno do “Estado de Bem-Estar Social” (walfare state) foi sendo substituído pela
agenda econômica neoliberal, a qual colocou em ‘xeque’ o regime de acumulação
keynesiano-fordista. O Estado, então, assumia o papel de um agente essencial na
condução do desenvolvimento econômico, fosse através de intervenções reguladoras

sumário 1527
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

nas políticas comerciais, financeiras e industriais, fosse constituído por empresas em


pontos estratégicos das cadeias produtivas, e nos processos regulatórios para manter a
proteção social.
O neoliberalismo consiste em um conjunto de ideias políticas e econômicas
destinadas a impor um domínio mais completo possível do capital sobre o trabalho.
Possui os seguintes princípios básicos: a mínima participação estatal nos rumos da
economia de um país; pouca intervenção do governo no mercado de trabalho; política
de privatização de empresas estatais; livre circulação de capitais internacionais e ênfase
na globalização; abertura da economia para a entrada de multinacionais acompanhada
de adoção de medidas contra o protecionismo econômico; oposição do controle de
preços dos produtos e serviços por parte do Estado, ou seja, a lei da oferta e da demanda
é suficiente para regular os preços; a base da economia formada por empresas privadas;
e defesa dos princípios econômicos do capitalismo.
O receituário neoliberal fortaleceu-se a partir das experiências de governo de
Margareth Thatcher (1979-1990), no Reino Unido, e Ronald Reagan (1981-1989), nos
Estados Unidos. O bordão de Thatcher, TINA (There Is No Alternative – Não há
alternativa), tomou conta dos Estados capitalistas avançados e foi usado com poderoso
efeito retórico. Não tardou para que a experiência dos países centrais alcançasse
também os países periféricos. Sobre essa questão, Gaudêncio Frigotto esclarece da
seguinte forma o projeto neoliberal:

Trata-se de uma relação conflitante e antagônica, por confrontar de um lado


as necessidades da produção do capital e de outro as múltiplas necessidades
humanas. Negatividade e positividade, todavia, teimam em coexistir numa
mesma totalidade e num processo histórico e sua definição se dá pela
correlação de força dos diferentes grupos e classes. (1996, p.36).

Na periferia das grandes cidades, o avanço do neoliberalismo significou a


destruição de quase toda a forma de controle e regulação. Sendo, portanto, uma
alavanca para geração da pobreza e consequentemente da miséria. As que sobreviveram
foram privadas de recursos e pessoal para cumprir sua missão; os marcos normativos
que regulavam as atividades econômicas foram “flexibilizados”; os controles de
qualidade e preços dos serviços privatizados se converteram em um plano meramente
retórico. (BORON, 2009)
Gurgel (2003) reafirma a destruição proporcionada pelo ideário neoliberal e a
forma como interfere com a Educação:

sumário 1528
VII Seminário Vozes da Educação

[...] A isto, acresceram a abertura de áreas como a Educação e Saúde, que em


muitos Estados nacionais eram dever exclusivo da administração pública. A
título de ilustração, tomando o exemplo mais próximo, o Brasil, em sua
reforma constitucional, reclassificou a educação, passando-a a área
competitiva, o que significa dizer o espaço para disputa do setor privado.
Essa mudança constitucional reforça o poder da Educação privada [...]
(GURGEL, 2003, p.126).

Por consequência, a Educação pública vai sofrendo progressivamente um


processo de desmanche, através dos baixos salários dos profissionais trabalhadores das
escolas, em destaque o corpo docente, este principal ponto de ligação e resgate da
historicidade cultural do aluno. Além de ser o mais atuante profissional na compreensão
da interseção desigualdade e diferença. Assim, o neoliberalismo se aprofunda como
projeto de dominação das classes populares precarizando o trabalho seus principais
interlocutores na luta contra as desigualdades sociais e na compreensão das diferenças.
A crise do socialismo real e o fortalecimento da hegemonia neoliberal que
eclodiram no último quartel do século XX, provocaram tanto nos países centrais como
nos periféricos a reconfiguração no mundo, sendo os mais afetados o trabalho e a
Educação. As mutações em curso adquiriram relevância à medida que remodelaram as
formas de produzir e os modos de organizar o trabalho, reordenando as relações sociais
através da educação Pinto (2007) e Diehl (2018).
Um dos saldos da fase de hegemonia neoliberal no Brasil e no mundo é a
chamada “precarização” do trabalho – e seus efeitos sobre a organização da sociedade.
A intensa flexibilização em relação aos salários, a mobilidade dos trabalhadores, às
regras de recrutamento e às regulações do mercado de trabalho, no contexto da
reestruturação produtiva tem sido objeto de intensa investigação acadêmica.
Os anos 1980 assistiram à queda da ditadura e à estruturação da democracia, foi
acompanhada de crises políticas e consequentemente instabilidade monetária. Os
neoliberais fizeram, a partir daí, um discurso que serviria de base para a eleição de
líderes na América Latina com total descompromisso com os objetivos nacionais.
(CERVO, 2000).
No Brasil, geraram-se incertezas na economia, o que fez iniciar uma degradação
do mundo do trabalho e marcou o início da década de 1990 com perdas contínuas nos
empregos, salários e, principalmente, nas condições de vida do trabalhador. Portanto,
conclui-se que todas as modificações políticas e sociais ocorridas na década de 1980/90
deixam um espaço para a implantação dos projetos neoliberais, o que vai afetar de

sumário 1529
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

forma expressiva a base da sociedade, representada pela classe trabalhadora, constituído


por estudantes de escolas públicas que têm de enfrentar uma complexa realidade no
mundo do trabalho formal (Pochmann 2002 e Diehl, 2018).

Os altos (e crescentes) índices de criminalidade nos centros metropolitanos


atestam não apenas a falência do Estado brasileiro, objeto de devassa das
políticas neoliberais, como o resultado cumulativo de um modo de produção
social que se tornou não apenas incapaz de absorver contingentes maciços da
força de trabalho, como demonstrou ser voraz em degradar emprego, salário
e condições de trabalho de contingentes importantes do mundo do trabalho
organizado. (POCHMANN. 2002, p. 72).

A citação acima apresentou o aspecto principal das transformações no Brasil.


Tal como o crescimento exponencial das comunidades populares na década de 1990.
Esse crescimento coloca em destaque as desigualdades e seus pontos de interseções com
as diferenças. De maneira bem transparente, os menos qualificados estende o espaço de
exclusão social para os ex-assalariados, ex-integrantes do mercado formal e os jovens
recém-ingressos na população economicamente ativa.
Após um pequeno destaque sobre a conjuntura da década de 1980 e dos efeitos
nos anos seguintes, caminharemos nesse trabalho enfatizando a situação dos
trabalhadores que sofreram com a ação esmagadora do neoliberalismo. “Ao longo da
década de 1990, mudou o funcionamento da economia capitalista no Brasil, mudaram
os objetivos da política de Estado e mudaram a posição política e o poder econômico
dos diferentes setores da burguesia brasileira” (BOITO JR, 2002).
O ápice dos projetos neoliberais nos anos 1990 foi decisivo para desencadear a
crise atual do trabalho e consequentemente a desestruturação da classe trabalhadora, se
refletindo no aumento da pobreza, já destacado anteriormente neste texto.

O aumento do desemprego estrutural, o avanço tecnológico, a globalização, o


aumento da pobreza, o enfraquecimento das relações públicas, a
flexibilização das leis trabalhistas, o crescimento do “subproletariado” e a
consequente diminuição do proletariado industrial, a crise do movimento
sindical e tantos outros acontecimentos compõem o novo ‘verniz’ do mundo
do trabalho. (AMORIM, 2007, p.18).

Hoje, nas comunidades populares de São Gonçalo, Estado Rio de Janeiro, pode-
se observar uma grande quantidade de trabalhadores desempregados o que caracteriza
um aumento da pobreza, um afastamento entre culturas e um aumento sobremaneira da
desigualdade, como afirma a expressão, acima, “subproletariado”. Além disso, a

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VII Seminário Vozes da Educação

concepção hegemônica e classista de vida e de mundo fora dessas comunidades, buscam


enfraquecer a percepção das diferenças e o reconhecimento dos sujeitos das camadas
populares como cidadãos de direitos (Pandolf, 1999).
O preenchimento desta lacuna, dentro do ponto de vista de uma pluralidade
social culturalmente ativa e participativa, somente se fará através da ação integradora
dialógicas nas comunidades populares. A detecção e percepção a respeito das
desigualdades e diferenças no contexto das comunidades populares pode estreitar os
laços de entendimento da sociedade. Isso traz à tona, mais uma vez, a importância de se
rever as concepções em torno dos conceitos de diferenças e desigualdades que
permeiam e perpassam o cotidiano dos alunos das escolas públicas. Quanto as
diferenças, elas assumem diversas formas de expressão e linguagem, se afirmando,
principalmente nas étnicas, de gênero, orientação sexual e religiosa. Associando-se,
ainda a injustiças e igualdade de bens e serviços e falta de reconhecimento político e
cultural (CANDAU, 2012).
Propõe-se, aqui, um estudo da atual situação dos alunos do Centro
Integrado de Educação Pública (CIEP) “Professor Tulio Rodrigues Perlingeiro” no
bairro do Salgueiro em São Gonçalo que sofrem os reflexos da precarização e
desemprego proporcionado pelo neoliberalismo na década passada. Na medida em que
o projeto neoliberal cresceu e afastou cada vez mais o trabalho formal da vida cotidiana
de homens, mulheres e jovens, esses foram perdendo suas capacidades reivindicatórias
em face de sua apatia do não entendimento entre diferenças e desigualdades nos
estudantes da escola pública em questão.

Desigualdade, diferenças e preconceitos


Do ponto de vista mais lato, no contexto iniciado neste trabalho, segundo
Candau (2012) existem vários conjuntos socioculturais presentes no cenário público. No
internacional, assim como no brasileiro, sendo assim, as tensões, conflitos e
divergências e tentativas de diálogos tem sido frequentes, na tentativa de um ajuste no
entendimento entre as diferenças e desigualdades.
Retornando ao nosso eixo principal, a Educação, pode-se perceber uma
manifestação clara dos reflexos divergentes dessa pluralidade cultural. Akkari e
Santiago (2015) descrevem que as práticas escolares têm abordado a diferença como
limitação ou deficiência, em outras palavras, estigmatizam as diferenças, comprometem
a expressão do sujeito ou da população.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Ainda os autores citados acima, destacam a cultura escolar como um privilégio


mais próximo das classes dominantes que daquelas classes marginalizadas e que
sucumbiram aos projetos neoliberais. Eles usam o exemplo da preferência da dança
clássica em detrimento a capoeira e do conhecimento da matemática às atividades
físicas, posicionamento que torna a Educação excludente, não destacando a cultura
popular como base.
Concordamos com o Filósofo italiano Antonio Gramsci, manifestado através dos
autores abaixo citados, quando apresentam uma noção de hegemonia mais engendrada,
sem a ambivalência do tradicionalismo, do materialismo e do idealismo. Com base em
Gramsci, através deste conceito, poderemos vislumbrar uma maior compreensão a
respeito da luta de classes. O que tem uma relação diretamente proporcional ao
desrespeito às diferenças por enfatizar a desigualdade (BIANCHI; MUSSI; ARECO,
2019). O que nos permite entender, que o elo entre as classes citadas, seriam a cultura,
linguagem que caracteriza um povo ou sociedade.
Em outras palavras, se existe uma elite dominante interessada no não
entendimento entre as classes populares, o resgate da história cultural seria,
provavelmente uma aproximação e um consenso, possível, através da escola pública ou
privada. Como afirma Candau (2012, p.237):

Esta realidade obriga a que, se quisermos potencializar os processos de


aprendizagem escolar na perspectiva da garantia a todos/as do direito a
educação, teremos de afirmar a urgência de se trabalhar as questões relativas
ao reconhecimento e a valorização das diferencas culturais nos contextos
escolares. Esta proposta supõe, na linha de pesquisa que venho
desenvolvendo, incorporar a perspectiva intercultural nos diferentes âmbitos
educativos. Esta preocupação não e algo secundário ou que se justapõe as
finalidades básicas da escola, mas e inerente a elas.

Levando em consideração, que através da dialogicidade de conceitos das


desigualdades e diferenças, entre classes e grupos hegemônicos, poderia ser entendido
pela mesma linguagem cultural. Entende-se, portanto, que a escola pode ser a estrutura
física e humana, onde diferenças e desigualdades podem entendidas e percebidas. Os
parâmetros Curriculares Nacional (PCN) aponta um caminho através dos temas
transversais (PCN, 1997).
Assumo, como autor deste trabalho, que os PCN, através dos Temas
Transversais, se tornaram a maior ferramenta para auxiliar o caminho para percepção a
respeito das várias culturas. Em particular “A Educação Física permite que se

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VII Seminário Vozes da Educação

vivenciem diferentes práticas corporais advindas das mais diversas manifestações


culturais e se enxergue como essa variada combinação de influências está presente na
vida cotidiana” (PCN, 1997, p.24).
As atividades práticas das aulas de Educação Física, podem tomar um formato
diferenciado, a partir das discussões teóricas em sala de aula. O aluno toma uma posição
de responsabilidade, junto com o docente, do resgate da sua cultura, e que desta forma
aumentará sua responsabilidade no resgate dos seus direitos. Sendo assim, o aluno deixa
de ser apenas um espectador das questões que permeiam a escola.
Apesar de uma discussão ampla na escola, ainda é muito lento firmar os direitos
principalmente quando falamos da escola pública. Na verdade, os alunos e seus
aprendizados nas aulas práticas e teóricas, não são suficientes. O convívio com a
comunidade escolar abolindo as hierarquias é de importância capital para a
reivindicação dos seus direitos, previstos em lei, conforme complementa, abaixo,
Ramos (2019, p.07).

[...] além de o direito à escola ter sido afirmado lentamente, pode-se dizer que
também se revelou oscilante. Esse é um dado que de uma ou de outra
maneira ajuda a entender o quão frágil é a nossa escola pública. É que a
garantia jurídica do direito social, cuja afirmação também depende da pressão
do setor da sociedade mais prejudicado, define em que medida o Estado deve
atuar para salvaguardar as finalidades expressas na lei.

Um grande debate em todos os âmbitos de interesse, é a questão racial, assim se


destaca o papel da escola no aumento ou na descontração racismo. Observa-se uma
visão depreciativa aos alunos e alunas negras, através de uma rotulagem de
inferioridade (ALVES, 2012). Isso ainda nos remete ao conceito de hegemonia em
Gramsci, citada anteriormente.
Como já descrito na literatura especializada, as frases, figuras e histórias fazem
parte de alguns livros didáticos, podem fazer parte de um ideário que destaca o
masculino e o branco, do ponto de vista de evidenciar estas duas características como
superiores ou privilegiadas. Dando continuidade ao trabalho citado no parágrafo
anterior, onde se percebe pela citação que segue, um destaque pelo que descrito no
atual:

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Uma narrativa construída no masculino e numa branca resume as


características dadas aos conteúdos escolares pelos entrevistados numa
pesquisa. Estes revelam uma monopilização da visibilidade por partes dos
brancos [...]. Essa visibilidade estava presente nas diferentes disciplinas e nos
materiais didáticos utilizados, sendo diversificada somente nas discussões
históricas a respeito da colonização. (Alves, 2012, p. 143).

A citação anterior descreve, não somente de agora, mais uma realidade de


décadas acerca daquilo que vem sendo propagado no material didático. Além do
posicionamento do autor ou editora, com seus interesses colocados acima da Educação.
Os textos muitas das vezes imperceptíveis aos olhos dos estudantes.
Por muitas vezes, segundo Saboya (2012), existe a negação do preconceito como
estratégia de convívio e resistência. Na realidade, uma forma de se sentir incluído
negando o termo discriminação negando a diferença e muitas vezes a desigualdade
social, mesmo participando do mesmo ambiente de ensino.
Nesse caso da negação do preconceito, não significa falta de entendimento, mas
a substituição por outros adjetivos que não destacam a diferença, portanto classificam
atitudes preconceituosas, como infantis e ignorâncias. De uma certa forma, a diferença
continua omitida, tanto no diz respeito a gênero quanto também a gênero (SABOYA,
2012).

A participação dos alunos nas aulas de Educação Física


No CIEP Professor Tulio Rodrigues Perlingeiro diferente da maioria, as aulas de
Educação Física têm um tratamento teórico que prioriza a relação entre, esporte e
cidadania. Sendo assim, os temas transversais (TT), destacados nos PCN, são levados
para as aulas práticas, como espaço de entendimento das diferenças e desigualdades.
Numa primeira abordagem, em sala de aula, com o tema diferenças e
desigualdades, que mais acarretou estranheza, a turma de nono ano, foi a questão
conceitual. Quando questionei o significado de cada uma das palavras, um aluno
bastante participativo, se manifestou “as duas quer dizer a mesma coisa”, levando para o
exemplo simplista matemático, “se dois números são diferentes, então eles não são
iguais”. Mais perguntas surgiam entre eles, mas apesar de explicações confusas, se
percebia a não acomodação por parte da turma, surtira o primeiro bom efeito, o debate.
A medida que desigualdade social foi associada àquilo que se necessita para
sobrevivência e qualidade de vida, os próprios alunos foram percebendo as questões de

sumário 1534
VII Seminário Vozes da Educação

gênero, raça e cor como diferenças. Desta forma, os exemplos reais que aconteciam em
sua comunidade foram colocados.

Um conhecido nosso que é “gay” não consegue trabalho! Isso é desigualdade


ou diferença? Perguntou outro aluno da mesma turma (nono ano). Por que
demoram tanto para atender meu pai no UPA (unidade de pronto
atendimento) quando ele passa mal, porque ele é alcoólatra [...]

Como se observa nessa conversa inicial, a necessidade do debate se faz presente


a todo instante, representando aquilo que emerge ou já faz parte da cultura. Portanto,
aquilo que usei como conversa informal, na linguagem dos alunos, abriu espaço para a
forma comunicação daquela comunidade. Conforme descreve Sodré (2012, p.23) “[...]
seus efeitos são igualmente danosos no tocante à Educação, porque o monismo cultural
que privilegia a linguagem hegemônica e impede o pluralismo das característica dos
alunos provenientes de diferentes estratos sociais[...]”.
Em outras palavras, a linguagem que faz parte da cultura local, em hipótese
alguma pode ser desprezada. Houve sim, um pouco mais de dificuldade na colocação
dos alunos do sexto e sétimo ano, os exemplos foram mais do cotidiano escolar. No
entanto, foram mais rígidos com relação dos diferentes conceitos existentes entre,
diferenças e desigualdades. Com isso se fortaleceu as interseções, conforme já havia
surgido entre os alunos do nono ano.
As interseções potencializam mutuamente as diferenças e desigualdades,
conforme o caso de gênero e suas dificuldades em empregar-se, citado na narrativa
acima do nono ano. Nesse relato a questão de gênero se desdobra uma situação de
exclusão da classe trabalhadora. O que fecha um ciclo com as questões dos projetos
neoliberais, descritos no início deste trabalho.
Os alunos do sétimo ano, por um motivo não especifico, enfatizou mais as
dificuldades de acesso a saúde que as demais turmas. Talvez somente uma característica
ou tema que angustiou a turma por problemas, provavelmente, em comum vividos por
eles. Todas as relações de TT discutidas em sala, melhorou de forma expressiva o
relacionamento na quadra ou em outra prática. As reivindicações tornaram-se mais
evidentes. Narrativas em aulas fora de sala foram destaques, como reflexo das aulas
teóricas.

sumário 1535
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Claro que posso jogar, cada um joga como sabe, lembra o que o professor
falou! [...] aluno do sétimo ano, ao ser rejeitado no futebol (2019).

Só saio da quadra quando decidirem como vou brincar (aluna do sexto ano,
2019).

[...] regras do futebol mesmo, profissional, nem sempre vale pra gente. A
gente faz as regras conforme a gente precisa! (aluna do sétimo ano, 2019)

A discussão das regras em sala foi feita, em função, não só do esporte, mas
também das diferentes necessidades reivindicatórias que mais se aproximavam da
realidade da comunidade do Salgueiro e suas diferenças socioculturais. Desta forma, a
manipulação da classe dominante não é fortalecida pelo seguimento de regras
excludentes. De forma mais precisa e objetiva, as regras que as classes dominantes
determinam é um estimulo ao racismo e a discriminação que não se adequam as classes
populares.
A imposição do trabalho escravo negro era feita debaixo da chibata, porque as
regras não se condiziam para seres humanos, portanto eram impostas, e mesmo assim as
revoltas dos negros escravizados aumentava, de alguma forma tinham que impor suas
próprias regras (GOMES, 2012).
Isso fica claro nos alunos do CIEP Professor Tulio Rodrigues Perlingeiro,
quando se percebe hábitos e costumes consumistas. Provavelmente, uma tentativa de
negação da exclusão formando uma expropriação da sua cultura. Por outro lado, faz
questão de ressaltar a forma de linguagem da comunidade do Salgueiro, ou seja, adere
parcialmente as regras externas.
O entendimento das diferenças e desigualdades começa a se clarear a cada aula
ou atividade pedagógica que, de alguma forma, envolva os TT. No entanto, a percepção
do valor do conhecimento que vem se adquirindo, não está claro de como e de que
maneira será usado como instrumento de lutas.

Considerações finais

Todos os homens do mundo na medida em que se unem entre si em


sociedade, trabalham, lutam e melhoram a si mesmos.
Antônio Gramsci

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VII Seminário Vozes da Educação

À medida que foi descrito, o presente trabalho do CIEP Professor Tulio


Rodrigues Perlingeiro, a percepção dos alunos da escola pública, em questão, do
município de São Gonçalo aumentam suas percepções sobre desigualdade e diferenças.
Com certeza, existirão, ainda, questionamentos quanto ao tema. A medida que o TT é
proposto em sala de aula e tem continuidade em outros espaços da escola, novas
dúvidas vão surgindo de forma mais amadurecida.
O neoliberalismo foi arrasador para classe trabalhadora, se refletindo na
Educação Pública, principalmente, provocando um desmonte nas relações culturais.
Tendo em vista, os resultados dos trabalhos desenvolvidos na escola em questão,
vislumbra-se um caminho de resistência no caminho da luta contra as desigualdades e
apoio as diferenças. Dentro da visão de perspectiva de avanço, os alunos demonstram o
tema como uma grande forma de defesa e argumentação em algumas situações.
A relação entre a prática e a teoria na conscientização popular, parece ter uma
resposta melhor em adolescentes e crianças.

Referências
AKKARI, Abdeljalil; SANTIAGO, Mylene Cristina. Diferenças na Educação: do
Preconceito ao Reconhecimento. Revista Teias, [S.l.], v. 16, n. 40, p. 28-41, mar.
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AMORIM, Andressa. Terceirização e desidentidade sindical. Uma (ou mais uma?)


estratégia ideológica do capital. Científico, 2007, pp. 314-21.

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BORON, Atilio A.Socialismo siglo XXI: Hay vida después del neoliberalismo?. 2
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CARVALHO, P. C. Diferenças e desigualdades na escola. Papirus editora. São Paulo.


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sumário 1537
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SODRE, M. REIVITANDO A EDUCAÇÃO. Petrópolis. Ed. Vozes. 2012.

sumário 1538
VII Seminário Vozes da Educação

“OLHA A CRÍTICA!”: ENREDOS EMBLEMÁTICOS INTEGRANTES DE


UMA PEDAGOGIA DE MASSAS A PARTIR DOS ANOS 80 NO CARNAVAL
CARIOCA

Phellipe Patrizi Moreira


FFP UERJ
phellipe.patrizi@gmail.com

“São Clemente... através do Carnaval


Traz uma mensagem na avenida
Que transformamos em salas de aula
Cobrando urgente a solução
Para o problema da educação”

Samba-enredo do G.R.E.S. São Clemente 1992. Enredo: “E o Salário Ó”

A letra do samba-enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba São Clemente


para o carnaval de 1992, composta por Helinho 107, Chocolate, Maurício, Ricardo Góes
e Ronaldo, revelam o caráter crítico da proposta do desfile da agremiação carnavalesca
para aquele ano.
Com o enredo “E o salário Ó”, de autoria dos carnavalescos Luiz Fernando Reis
e José Félix, a escola de samba originária do bairro de Botafogo, zona sul da cidade do
Rio de Janeiro, protestou na Avenida por melhores salários para os professores na
proposta de carnavalizar o Sambódromo carioca em salas de aula. Mas afinal, seria a
Avenida Marquês de Sapucaí o palco para esses debates? Os enredos das escolas de
samba podem considerados integrantes de uma pedagogia de massas ou até mesmo
canais de comunicação para o grande público em que se explicitam suas concepções,
ideais e conflitos?

Escolas e samba: as hipóteses em torno do surgimento da denominação “escolas de


samba”
No mundo do samba, entendo neste caso, como os “ambientes frequentados
pelos sambistas, tais como Escolas de Samba, determinados bairros, morros da cidade

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

do Rio de Janeiro, botequins, praças, programas nos meios de comunicação”, de acordo


com o conceito definido por Cristina Tramonte e reafirmado por Lima (2002, p.177), há
uma polêmica que gira em torno do surgimento do termo “escola de samba”. Dentre as
possibilidades estudadas, destaca-se a versão de que Ismael Silva batizou a agremiação
“Deixa Falar” em 12 de agosto de 1928 com este termo, visto que nas localidades onde
aconteciam as reuniões, no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, ficava próxima a uma
Escola Normal. O sambista cunhou esta expressão, pois defendia a ideia de que, já que
os (as) professores (as) se encontram na escola para ensinar aos alunos (as), os mestres
do samba também deveria se reunir em uma escola, mas neste caso, de samba, afirma
Felipe Ferreira (2004).
A versão narrada por Ferreira dialoga com a de Nei Lopes e Luiz Antônio Simas
(2015) quando nos contam as demais versões para esta história. Outra hipótese consiste
no relato do radialista, pesquisador e cantor Almirante. De acordo com ele, a
popularização do tiro de guerra em 1916 desencadeou a nomeação devido à frequência
em que se ouvia pelas ruas do Rio de Janeiro o comando “Escola, sentido!”. A terceira
refere-se à nomeação da imprensa ao Ameno Resedá (1907-1943) como “rancho-
escola”, inspiração para as apresentações das primeiras escolas de samba. Deste modo,
Ferreira conclui que a suposta preocupação das agremiações em relacionarem as
palavras escola e samba ocorreu por conta do desejo de se introduzirem na sociedade e
ganharem uma maior aceitação por parte das diversas camadas sociais. Estas primeiras
reuniões de sambistas de forma mais estruturada e organizada originaram-se dos
ranchos e blocos de ruas, já existentes, das misturas de batuques com a música popular.
Com efeito, os escritos de Lopes e Simas (2015) e Lima (2002) reconhecem as
agremiações como manifestações articuladoras e negociadoras perante os interesses do
poder público em busca de (re) existência, sejam pelos modos de se apresentarem,
sejam das suas concepções religiosas, sociais e culturais. Logo, as escolas de samba
podem ser caracterizadas como elementos de socialização de saberes (LIMA, 2002), nos
quais os “códigos, estratégias de sobrevivência, de resistência cultural, de afirmação de
um grupo social que além de estar na base da pirâmide social, sofre discriminação e o
preconceito, e tem o peso da história de vários séculos de opressão.” (p.180)
Desta forma, o samba floresce em meio ao processo de exclusão das populações
negras no período da pós-abolição como uma possibilidade (re) existir às tentativas de
apagamento das culturas afro-brasileiras. A República instaurada no ano seguinte da
assinatura da Lei Áurea, em 1989, trouxe para a cidade do Rio de Janeiro o ideal de

sumário 1540
VII Seminário Vozes da Educação

modernização e urbanização, apagando o passado colonial/imperial e mostrando a


grandeza e poder do novo regime instaurado no Brasil.
O sentimento da Belle Époque (Bela Época) tomou conta da região, o Rio
desejava ser a Paris nos Trópicos e com isso, levou a expulsão das populações negras e
pobres para os morros e subúrbios. Os menos favorecidos ficaram a margem da
sociedade sem contar com nenhum privilégio ou política pública de reparação pelos
séculos do sistema escravista. As comunidades negras e pobres excluídas do mundo do
trabalho tiveram de se concentrar entre os becos e vielas, restaram-lhe apenas um único
deslocamento: da senzala com destino a favela. Dando eco a essa afirmação, Jessé de
Souza diz que “desse modo, o processo de incorporação do mestiço à nova sociedade
foi paralelo ao processo de proletarização e demonização do negro.” (2017, p.42). Para
Souza, a opressão não se concentrava mais nas mãos dos senhores de escravos, mas na
de qualquer europeu contra os mais pobres, negros e os indígenas.
Neste período o lançamento do livro de maior sucesso do sociólogo Gilberto
Freyre “Casa Grande & Senzala” em 1933, marca o enaltecimento da figura do negro
como componente essencial da cultura nacional somado as políticas governamentais de
Getúlio Vargas no decurso da ditadura do Estado Novo (1937-1945), que promovia
oficialmente a unidade e pelo afã da brasilidade. No bojo dessa discussão, encontra-se a
mestiçagem através da união das três raças formadoras do país: os colonizadores
europeus, povos negros e as populações indígenas. Este seria o componente fugaz do
mito da democracia racial brasileira. Souza (2017) classifica como um romance da
identidade nacional que forjou a compreensão (as) dos brasileiros (as) tem de si
mesmos.
O samba ora marginalizado, tornou-se em seguida, o autentico símbolo nacional
alimentando a visão do perfil de “mulato” da nação brasileira. Essa máscara sociorracial
torna perigosa a ilusão da fraternidade entre as raças, uma vez que o tráfico
transatlântico carregou vidas cujas identidades foram deturpadas ao chegaram às terras
brasileiras, tornando-os assim em “objetos” de compra e venda dos seus senhores.
Com o advento de novas escolas de samba, objetivadas por recreação e
sociabilidade, surgem às primeiras disputas entre si. O primeiro esboço de concurso
ocorreu em 1929 na Praça Onze em comemoração a data do santo padroeiro da cidade
do Rio de Janeiro São Sebastião, 20 de janeiro, organizada por Zé Espinguela. Nele, o
grupo de Oswaldo Cruz consagrou-se campeão do torneio musical. Em 1932, temos o
crescimento da festividade com um pequeno cortejo e a oficialização do concurso pelo

sumário 1541
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

prefeito da capital Pedro Ernesto no qual quatro comunidades foram premiadas:


Mangueira, Vai como Pode (nome do grupo de Oswaldo Cruz, sucedido por Portela
logo em seguida), Para o Ano Sai Melhor e a Unidos da Tijuca. Estas puderam
apresentar até três sambas. O patrocínio para a organização desses festejos ficou a cargo
do jornal O Mundo Spotivo, pois viu nestes a possibilidade de movimentar as manchetes
de seu periódico devido à ausência de competições esportivas nesse período do ano.
No ano seguinte, em que houve os primeiros auxílios públicos, a prefeitura
municipal reconhece e oficializa a festa neste carnaval. Com a instalação do
regulamento seguido pelas escolas, a Mangueira ganhou o título de campeã, assim como
em 1934, momento que o palco do espetáculo desloca-se para o Campo de Santana,
segundo Lopes e Simas (2015).
A partir do final da década de 30, cresce a abordagem dos enredos das escolas de
samba as temáticas ufanistas e em exaltação as grandes efemérides e aos heróis do
Brasil. O debate historiográfico sobre a introdução dos temas nacionais confronta a
visão de que era uma política governamental do presidente Getúlio Vargas, centralizada
no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), instituição da obrigatoriedade, a
partir de 1939, de as escolas de samba homenagearem, em seus respectivos enredos,
temas nacionais em defesa do “ufanismo patriótico”, mobilidade e reconhecimento. No
entanto, a histografia recente problematiza essa questão, como aponta Lopes e Simas
(2015), ao mostrar uma preocupação em maior grau das próprias agremiações em
buscarem uma conversa com a proposta governamental do que de uma imposição do
DIP. Essa ação visava à maior aceitação das massas em prol do reconhecimento das
associações culturais.
Contrariando o regulamento e o projeto de governo, A Vizinha Faladeira teve
como enredo “Branca de Neve e os sete anões”, assunto este considerado como de teor
internacional, levando a desclassificação, uma vez que faz um tributo a uma história
norte-americana dos estúdios Walt Disney. A agremiação da zona portuária carioca,
cujas apresentações arrancavam aplausos dos espectadores em anos anteriores, desfilou
em 1940 com a faixa com seguinte dizer: “Devido às marmeladas, adeus Carnaval. Um
dia voltaremos". Seguindo a mensagem exibida, a Vizinha Faladeira encerra as suas
atividades durante aproximadamente cinqüenta anos, voltando ao carnaval apenas no
ano de 1989.
A “exigência” sobre a temática brasileira nos enredos das escolas de samba foi
abolida somente em 1997 quando a G.R.E.S. Acadêmicos da Rocinha exibiu o enredo

sumário 1542
VII Seminário Vozes da Educação

“A viagem fantástica de Zé Carioca”, ironicamente similar ao tema da co-irmã


desclassificada no final da década de 1930. A promoção dos valores patrióticos marcou
o carnaval carioca ao decorrer de seis décadas, apesar da rotatividade de presidentes no
poder do país após redemocratização em 1946. Em suma, a finalidade governamental
era a apresentação de um “carnaval pedagógico” e agora com apenas um samba de
enredo.

As narrativas críticas-políticas encontram eco na Passarela do Samba


A preocupação deste texto não é fazer olhar sob o panorama histórico das
escolas de samba, mas apenas contextualizar o leitor ou a leitora de como se deu o
surgimento dessas agremiações e como o debate em torno de papel pedagógico ocorreu
desde os passos iniciais desse movimento cultural.
A seguir este texto se aterá a análise de três enredos das agremiações
carnavalescas do carnaval carioca a partir da década de 1980, no contexto no qual se
instaurou no país uma conjuntura repressiva como desdobramento do período ditatorial
brasileiro iniciado com o Golpe Militar de 1964 e findado em 1985. Para entendermos
como esse caminho fora trilhado é necessário observar desde a década de 1960 as
mudanças que vinham acontecendo nas escolas de samba desde a entrada do “elemento
externo” e da introdução da temática negra no carnaval.
Guilherme Faria (2018) aponta para este espaço conquistado pelas escolas de
samba elencando-as como “um dos canais mais potentes de emissão das expressões
culturais afro-brasileiras que as potencializaram e popularizaram em todo o país” (p.
193). Faria afirma deste modo, a importância das escolas de samba como “emissores de
discursos”. Muitos deles, apesar de contemporâneos, apresentam conflitos nas linhas
escolhidas para narrar os enredos. Assim, cada um deles simboliza as diferentes
disputas do uso do passado na carnavalização das histórias. É a partir desse poder de
divulgação dessas versões da história que as escolas de samba ajudam a construir uma
emissão de reflexões a respeito do cenário político, social e cultural do país.
Como ressalta Faria (2017), “ampliar uma narrativa que permite compreender o
papel desempenhado pelas agremiações nos embates, disputas, conflitos e negociações
que se estabeleceram ao longo dos anos 80”, (p.2). Esse percurso tendo o seu embrião
nos anos 60 quando o professor da escola de Belas-Artes Fernando Pamplona trouxe
para os desfiles mudanças estéticas, advindas, sobretudo, na parte da propositiva dos
enredos e no uso de materiais para as confecções de fantasias.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A entrada de “elemento externo” as escolas de samba gerou inicialmente um


estranhamento, porém rapidamente conquistou a consagração entre os desfiles dos anos
de 1960 no G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro. O então jurado do concurso encantou-se
com a bela apresentação da escola no ano anterior, 1959, desfile que rendeu o vice-
campeonato a agremiação com um enredo sobre Jean-Baptista Debret, este fato o fez ser
convidado para liderar a equipe artista para o carnaval de 1960 da escola.
O primeiro enredo foi uma homenagem a Zumbi com “Quilombo dos Palmares”
contou com a parceria com cenógrafo e figurinista Arlindo Rodrigues, o desenhista
Nilton Sá e em conjunto com o casal já atuante na escola, a figurinista Marie Louise
Nery e seu marido, Dirceu Néri. Pamplona conta que raramente propôs as diretorias das
escolas de samba pelas quais trabalhou o enredo para o desfile, mas desta vez, o
professor, atraído pela cultura negra, escolheu o enredo sobre Palmares.
Ele alega em entrevista concedida à Maria Laura Cavalcanti e à Filipina Chinelli
em 1989, que estava convencido de que para alterar o cenário social do país, precisava
ser político em suas ações. Deste modo, o enredo sobre Palmares foi uma reação contra
a escravidão e pela liberdade. No entanto, era a primeira vez que se fazia uma fantasia
negra no carnaval. Os componentes do Salgueiro estavam habituados a desfilarem
trajando figuras brancas no carnaval com Dom João VI, de D. Pedro I e não com roupas
negras. A partir disso, Pamplona argumenta que os desfilantes relacionavam as
vestimentas negras à escravidão e a indumentária branca ao poder. Logo, eles optavam
pela branca. Por conseguinte, os responsáveis pelo setor artístico do Salgueiro,
resolveram vestir a comunidade com fantasias de negros buscando nas nações africanas
essa relação de poder.
Para Cavalcanti (1999), “nos sambas-enredos do carnaval estão em jogo uma
pedagogia e uma imensa conversa sobre os assuntos que interessam a diversas camadas
sociais. Dentre esses assuntos, destaca-se a temática racial” (p.35). Em diálogo com esta
afirmação, Faria (2018) aponta para os enredos e suas respectivas letras dos sambas em
meio à década de 1960 como porta-vozes das identidades étnicorraciais negras do país
no que tange suas questões raciais e as ações de combate ao racismo.
No decurso das décadas posteriores, as escolas de samba ecoaram na Passarela
do Samba suas insatisfações, desejos, críticas, contradições, ambiguidades e o que
esperavam para o futuro da nação. Desta forma, segundo Faria (2017) essas instituições
recreativas lançam na avenida a necessidade de lutar por direitos, fazer valer as suas

sumário 1544
VII Seminário Vozes da Educação

vozes, as vontades de debater a política e explicitar os seus modos de exercitar a suas


cidadanias.
Em entrevista concedida para este autor, Simas (2019) diz compreender as
escolas de samba de samba como instituições dialógicas com a sociedade para além dos
desfiles durante o carnaval. Em sua fala, ele acredita que estas podem ofertar um papel
educativo na sociedade. O Salgueiro cantou na Avenida o Quilombo dos Palmares, no
desfile de 1960, antes de esse personagem ser abordado nas salas de aula. O
entrevistado refere-se a essa ação educativa como de Pedagogia de massas, pois, de
acordo com ele, “ali você está educando. A educação é fenômeno que transcende a sala
de aula. É movimento muito mais amplo” (LUIZ ANTÔNIO SIMAS. Entrevista. Rio de
Janeiro: 2019.)
Em exemplo disto, os três desfiles aqui analisados consistem sob a luz do prisma
crítico-político lançados no carnaval carioca nas últimas décadas. São eles: G.R.E.S.
Caprichosos de Pilares com o enredo “A visita da nobreza do riso a Chico Rei, num
palco nem sempre iluminado” de 1984; G.R.E.S. São Clemente em “E o Salário Ó!” de
1992; e por último, o carnaval de 2018 do G.R.E.S Paraíso do Tuiuti em “Meu Deus,
Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?”.
A seleção destes enredos e não de outros fora motivada por serem considerados
pela imprensa como “emblemáticos” no tocante às críticas ao contexto político nacional
em que cada escola passou pela Avenida Marquês de Sapucaí, no Sambódromo carioca.
O desfile da Caprichosos de Pilares de 1984 se insere na conjuntura os anos finais do
Regime Militar(1964-1985) e no processo dos movimentos da Diretas Já!. Nesta época,
diversos setores da sociedade brasileira lutavam pelo fim da censura e o encerramento
da Ditadura Militar que assolava o país, desde o Golpe Militar de 1964 quando fora
deposto do cargo de presidente da república, João Goulart, pois era visto como uma
ameaça ao projeto capital-desenvolvimentista do Brasil, já que desejava a implantação
de Reformas de Base no país.
A Caprichosos apresentou diversos enredos críticos-reflexivos neste período
ganhando o apelido de ser uma “escola de samba crítica”. O mesmo termo foi cunhado
a São Clemente por conta desse perfil político por se apresentar no Sambódromo ao
som de uma análise do cenário político do país. E o Paraíso do Tuiuti adotou essa
postura principalmente com a assinatura do desfile pelo carnavalesco formado pela
Escola de Belas-Artes, Jack Vasconcelos.

sumário 1545
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A escola de samba azul e branca do bairro de Pilares, zona norte da cidade do


Rio de Janeiro levou para a Sapucaí de carnaval de 1984 um tema em homenagem ao
ator e humorista Chico Anísio. De autoria do carnavalesco Luiz Fernando Reis, a
sinopse do enredo disponível na internet e na revista da Caprichosos de Pilares
apresenta diversas críticas aos políticos que governam o país na época como, por
exemplo, ao jogo de palavras com de Salim Maluf com o Reis inverte as letras e o
batiza como Milas Fulam, o bobo da corte no reino do Chico Rei. As palavras escritas
ao longo do texto explicativo do enredo “A visita da nobreza do riso a Chico Rei, num
palco nem sempre iluminado” revelam o desejo da equipe artística do desfile em
externar a volta das eleições diretas para Presidente da República com a seguinte
transcrição do excerto: “DIRETA sem intermediários” ou até mesmo quando Reis
escreve em meio a uma sátira ao rei do Chico Rei de “forma INDIRETAMENTE O
BOBO QUERIA SER REI”, “ainda escondidos”. Estes trechos revelam a insatisfação
com a as eleições indiretas para o mais alto cargo do Pode Executivo do Brasil e as
personalidades perseguidas e exiladas durante o Regime Militar no país.
A sinopse, segundo as palavras do próprio carnavalesco da agremiação, tinha
uma proposta de desfile “popular, crítico e descontraída de fácil assimilação por parte
do grande público”. No encerramento do desfile, visto através de imagens da internet, a
Caprichosos de Pilares soltou balões em plena Sapucaí pedindo eleições diretas para
Presidente, numa clara demonstração que escola de samba emite mensagens político-
educativas para o grande público.
Já a agremiação preta e amarela do bairro de Botafogo, zona sul do Rio de
Janeiro, na década seguinte, porém ainda permeada pelo processo de Redemocratização
do país com a promulgação da Constituição de 1988, as ideias de uma nova política
pairando sob o país não apresentavam a novidade há tanto tempo querida por algumas
camadas da sociedade. Com o enredo “E o Salário Ó!”, a São Clemente transformou a
Sapucaí em salas de aula pedindo mais respeitos e valorização pelos profissionais da
educação. Através do trecho da letra do samba-enredo da escola, São Clemente...
através do Carnaval/Traz uma mensagem na avenida /Que transformamos em salas de
aula”, presente da epígrafe deste texto, vê-se uma necessidade por parte da escola em
levar alguma mensagem para as massas.
Já o G.R.E.S Paraíso do Tuiuti, na figura do carnavalesco Jack Vasconcelos,
acredita que confeccionar um desfile de escola de samba é ato de resistência,
independente do assunto escolhido, ela despertam como um movimento cultural, um

sumário 1546
VII Seminário Vozes da Educação

lugar de fala. Em “Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?”, A preocupação
do carnavalesco era facilitar o entendimento de quem está assistindo ao desfile. Para ele,
o público que realiza a leitura o caderno Abre-Alas ou de outros roteiros detalhados das
apresentações não é maioria, todavia os espectadores possuem a liberdade de apenas
“brincar” o carnaval, o que não os impede de posteriormente, caso os interessem,
pesquisar a respeito do que se tratou aquele tema.
Os enredos das escolas de samba não necessitam apresentar uma temática crítica
para se afirmar a posição identitária. Os outros temas que, apesar de não terem essa
perspectiva de forma explícita em seus desfiles, emergem como um lócus de reflexão
para o grande público. A ação de desfilar e relevar as origens negras já aponta como um
ato de resistência. Assim, estas podem ser utilizadas por um amplo público como fontes
de conhecimentos históricos e culturais, visto que constroem representações dos modos
pelos quais seus componentes articulam as memórias, as relações de pertencimento e
suas visões perante a história do Brasil e do mundo.

Referências
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos bastidores ao
desfile. 3° ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.

______. O rito e o tempo: ensaios sobre o carnaval. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1999.

FARIA, Guilherme José Motta de Souza. As escolas de samba cantam sua negritude
nos anos de 1960: uma página em branco na historiografia sobre o movimento negro no
Brasil. In:ABREU, Martha; XAVIER, Giovana; MONTEIRO, Lívia; BRASIL, Eric.
Cultura Negra vo1 1: festas, carnavais e patrimônios negros. Niterói: Eduff, 2018.

FERREIRA, Felipe. O livro de ouro do carnaval brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro,


2004.

LIMA, Augusto. Escola dá samba? O que dizem os compositores de samba do bairro de


Oswaldo Cruz e da Portela. In: CANDAU, Vera (Org.) Sociedade, educação e
cultura(s) questões e propostas. Rio de Janeiro: Vozes, 2002

LOPES, Nei. SIMAS, Luiz Antonio. Dicionário da História Social do Samba. 1° ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

sumário 1547
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

EIXO 4
LINGUAGENS, SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS

sumário 1548
VII Seminário Vozes da Educação

YOUTUBE: O LUGAR DO OLHAR E DA PALAVRA NA COMPREENSÃO DE


UMA NOVA FORMA DE MEDIAÇÃO

Alessandra da Costa Abreu


PROPED UERJ
Alessandra.abreu@oi.com.br

Vick, adorei o seu vídeo e suas dicas, eu criei o meu


canal faz pouco tempo e tô curtindo d+, realmente
quando damos esse passo de criar um canal literário
nossa vontade de ler aumenta, mto mais... Tô curtindo
mto! (post do vídeo Problemas de um leitor, do canal
“Chiclete Violeta”).

Esse comentário é parte de uma postagem divulgada no canal literário “Chiclete


Violeta” e pode contribuir para revelar os hábitos dos jovens da atualidade e mostrar a
relação do jovem com as redes sociais. A prática de postar e assistir a vídeos no
YouTube vem crescendo muito nos últimos cinco anos. É cada vez maior o número de
crianças e jovens que publicam vídeos sobre diversas situações (acidentes, trolagem,
ensino, comentários, apresentações de dança e de canto, entre outros assuntos),
principalmente no YouTube. Essas grandes mudanças na potencialidade das redes
sociais na contemporaneidade se devem aos praticantes culturais que produzem
conteúdos com a plasticidade do digital em rede. Segundo Burgess e Green (2009),
inicialmente o YouTube funcionava como um repositório de vídeos digitais, um local de
armazenamento pessoal de conteúdo de vídeos, mas logo tornou-se uma plataforma
broadcast yourself (transmita-se), de expressão pessoal, ou seja, um provedor de
distribuição de conteúdo. Na edição de julho de 2006, a revista Time publicou uma lista
com as melhores invenções em diversas categorias, incluindo entre elas o YouTube, “o
mais popular site de compartilhamento de vídeos” (BUECHNER, 2006).
Essa revista, que já tinha a prática de nomear a personalidade do ano, em 2006
nomeou “você”. Isso mesmo! “Ou melhor: não apenas você, mas também eu e todos
nós” (SIBÍLIA, 2010). Uma revista que, em anos anteriores, nomeou Hitler, George W.
Bush e o aiatolá Khomeini, entre outras personalidades da história, reconhece que

sumário 1549
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pessoas comuns estão ganhando visibilidade e reconhecimento da massa populacional


no contexto atual. Segundo Sibilia (2010, p. 9), isso se deu porque

você e eu, todos nós, estamos transformando a era da informação. Estamos


modificando as artes, a política e o comércio e até mesmo a maneira de
percebermos o mundo. Nós, e não eles, a grande mídia tradicional, tal como
eles próprios se ocupam de sublinhar. Os editores da revista ressaltaram o
aumento inaudito de conteúdo produzido pelos usuários da internet, seja nos
blogs, nos sites de compartilhamento de vídeos como o YouTube ou nas
redes sociais de relacionamento como o MySpace e o Orkut. Em virtude
desse estouro de criatividade (e de presença midiática) entre aqueles que
costumavam ser meros leitores e espectadores passivos, teria chegado a hora
dos amadores.

O YouTube é atualmente um dos sites mais populares da internet; permite que


seus usuários carreguem e compartilhem vídeos em formato digital e armazena grande
quantidade de filmes, videoclipes e materiais caseiros. O material encontrado no
YouTube pode ser disponibilizado em blogs e sites pessoais por meio de mecanismos
(Apis – desenvolvido pelo site). Pessoas do mundo inteiro se interessam pelo que é
postado nesse site tendo em vista a grande variedade de conteúdos encontrados. Sua
invenção foi recente, em 2005, quando dois jovens – Chad Hurley e Steve Chen –,
numa garagem da cidade de São Francisco (Califórnia, EUA), de forma despretensiosa,
optaram por compartilhar vídeos caseiros com os amigos, já que enviar por e-mail
demorava muitas horas. Devido ao sucesso e ao reconhecimento, inclusive da revista
norte-americana Time, em outubro de 2006 a Google anunciou a compra do site pela
quantia de US$ 1,65 bilhão, unificando os serviços ao seu próprio site de
compartilhamento de vídeos.
O lançamento no Brasil foi em junho de 2007; cada dia mais o YouTube
funciona como suporte que contribui para a produção e divulgação da cultura. Em 2008,
já era o site mais visitado do mundo e hospedava algo em torno de 85 milhões de
vídeos, fator que contribuiu para que não tenhamos dúvida quanto à consolidação e
sucesso desse suporte digital; desde então, os vídeos publicados representam a
manifestação da cultura participativa e vem contribuindo na atração de usuários pela
quantidade de produções postadas e comentadas.
A palavra YouTube foi formada a partir de dois termos da língua inglesa: You,
que significa você, e Tube que provém de uma gíria americana que se aproxima de
televisão. Em outras palavras, seria a “televisão feita por você”. Esse movimento de
publicar conteúdo na rede digital parece ser a principal função desse fenômeno da

sumário 1550
VII Seminário Vozes da Educação

internet, além de permitir que os usuários criem seus próprios canais televisivos. Desde
o seu lançamento, a principal regra do site é o não compartilhamento de vídeos
protegidos por direitos autorais, fato que muitas vezes não é cumprido. O YouTube
tornou possível a qualquer um que usa computador postar na internet um vídeo que
milhões de pessoas podem visualizar em poucos minutos. A grande variedade de
tópicos cobertos pelo YouTube tornou o compartilhamento de vídeo uma das mais
importantes partes da cultura da internet. Com o recurso “Convide seus amigos”,
contribuiu para aumentar o número de usuários, o que vem agregando várias pessoas a
essa prática cultural, principalmente entre os jovens.
O YouTube, desde a sua criação, participou de três revoluções na internet. A
primeira se refere ao fato de transformar as formas de produção de vídeo, o que causou
a popularização do uso das câmeras digitais dos telefones celulares (interface de
software de produção mais fácil). A segunda, pelo surgimento da Web 2.0, que
colaborou para que os “sujeitos praticantes” possam participar e colaborar na produção
de conteúdo online. A terceira, pela Revolução Cultural que permitiu a qualquer pessoa
do mundo criar conteúdos e publicá-los (MARCELINO; SANTOS, 2015).
O YouTube hoje também é considerado uma rede social, já que muitos de seus
usuários, além de assistir a vídeos, possuem uma conta, efetuam login e criam canais.
Nesses canais os “praticantes culturais” comentam, compartilham e criam vídeos com
seus dispositivos móveis e suas webcams. Para Burgess & Green (2009), os vídeos são
o principal elo entre os usuários da rede; para compreender esse fenômeno, é preciso
não ficar restrito a assistir aos conteúdos dos vídeos, mas também criar, compartilhar e
comentar, pois só por esse movimento pode-se entender o funcionamento do YouTube
como conjunto de tecnologias e como rede social.
É isto que esta investigação vem tentando construir com os sujeitos: uma relação
de aproximação dialógica em que cada sujeito inserido em determinado lugar e espaço
pode revelar seu modo de ver o outro e a cultura que os envolve, considerando que a
compreensão que cada pessoa tem de si se constitui por intermédio do olhar e da palavra
do outro (JOBIM e SOUZA, 2007; BAKHTIN, 1999); essa perspectiva de análise
defende que nossa individualidade não teria existência se o outro não a criasse. O
território interno de cada um não é soberano; ser significa ser para o outro, por meio do
outro e para si próprio, porque é pelo olhar e pela palavra do outro que se realiza a
interação com a consciência alheia. Bakhtin recorre ao conceito de exotopia para discutir
que não é possível uma consciência total de si ou de um fenômeno sem recorrer ao olhar

sumário 1551
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

do outro, pois é o outro é que pode me ajudar a ver o que sozinho não consigo enxergar.
Não há como fazer pesquisa na área das Ciências Humanas sem essa dimensão do que o
outro vê. Cada um de nós se encontra na fronteira do mundo que vê.

Por que pesquisar no YouTube?


Jobim e Souza, há mais de uma década – especificamente em 2007 –
convidou a “olhar mais devagar” para o efeito das imagens técnicas no nosso cotidiano
e estudar como as relações com as imagens estavam presentes nas práticas. Para
exemplificar esse movimento que estava ocorrendo no período, a autora trouxe no seu
texto, “Dialogismo e alteridade na utilização da imagem técnica em pesquisa
acadêmica: questões éticas e metodológicas”, práticas que estavam se tornando comuns
naquele período: as filmagens dos acontecimentos do dia a dia, ou seja, casamentos,
aniversários, partos, churrascos, acidentes e tudo que representava experiência
significativa para o sujeito. Com o surgimento do YouTube, esses vídeos que serviam
para compartilhar a experiência com a família e os amigos mais próximos viraram
documento público, que, após divulgado na rede, pode oferecer a oportunidade de
qualquer pessoa acessar e se interessar pelo conteúdo exibido. Vídeos feitos com a
câmera do celular, com ou sem planejamento, viralizam na rede, com milhões de
visualizações.
Atualmente, o YouTube parece representar um espaço de publicidade, debate
sobre questões pertinentes à sociedade de forma geral e, algumas vezes, espaço para
denúncia ou simplesmente lugar de pura diversão, ou seja, podemos encontrar de tudo;
por isso, “não há como escapar desse olhar máquina que ressignifica nossa presença no
mundo, criando comportamentos e experiências subjetivas inteiramente novas” (JOBIM
e SOUZA, 2007, p. 78). Com base nessas novas relações com as imagens, passamos a
viver o mundo em função delas. Um depoimento, uma opinião, um evento, um deslize
no trânsito, ou seja, qualquer acontecimento que antes era experiência apenas para quem
vivenciou o fato, hoje pode ser capturado pelo celular de um sujeito interessado em
publicar esse conteúdo na rede. Para Jobim e Souza, essa explosão de imagens pode
contribuir para dificultar o funcionamento pleno de nossa capacidade de decifrar as
cenas que se apresentam na forma de imagens como significados construídos, porque
podemos tomar aquela experiência como verdade absoluta, sem atentar para o caráter
crítico daquela informação. De acordo com a autora uma imagem técnica sempre
esconde conceitos e sentidos que lhe deram origem; daí a importância de buscar decifrá-

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VII Seminário Vozes da Educação

los. Assim, o virtual passou a ser entendido como espaço de experimentação da própria
realidade, como lugar de transformação e de desestabilizações, com efeito no
comportamento das pessoas (LÈVY, 1999).
Nesse sentido, pesquisar tais experiências no espaço do YouTube vem
contribuindo para a pesquisa em Ciências Humanas, por problematizar questões e
pensar a imagem técnica como “instrumento mediador e revelador das intensas
experiências culturais e subjetivas na atualidade”. Como Jobim e Souza (2007, p. 78)
afirma “as práticas de pesquisa precisam ser condizentes com a experiência do sujeito
contemporâneo de ver e ser visto” graças à mediação desses instrumentos técnicos; para
tanto, os conceitos fundamentais de dialogismo e alteridade de Mikhail Bakhtin
contribuem para pensar as questões éticas e metodológicas relativas à publicação e
autoria no YouTube. Embora Bakhtin tenha dedicado grande parte da sua obra à análise
de textos literários, suas reflexões no campo da criação estética permitem expandir suas
considerações teóricas e metodológicas a enunciados que escapam da forma oral e
escrita. Permitem analisar as imagens técnicas como enunciados que carregam sentidos
e abrem novos formatos éticos e metodológicos e lançam novos desafios
epistemológicos para as pesquisas nas áreas das Ciências Humanas.
Marcelino e Santos (2015) defendem que a criação e a publicação de vídeos
tornaram-se elemento importante da cultura contemporânea; por isso a necessidade da
compreensão de questões relacionadas à reconfiguração dessas tecnologias. Como são
produtos de coletividades, não é possível utilizá-los sem interpretá-los, pois são os usos
que fazemos deles e as táticas dos praticantes (CERTEAU, 2014) que podem modificar
o modo de refletir e agir no mundo.

As questões teórico-metodológicas

Pesquisar é isso. É um itinerário, um caminho que


trilhamos e com o qual aprendemos muito, não por
acaso, mas por não podermos deixar de colocar em
xeque “nossas verdades” diante das descobertas
reveladas (Nadir Zago).

Os múltiplos desafios de um processo de investigação formação como o


proposto por este trabalho, tendo em vista a temática e os objetivos aqui já explicitados,

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

implica a definição de uma metodologia polifônica que se fundamenta principalmente


na pesquisa empírica e tem como principal referencial teórico e metodológico Mikhail
Bakhtin. Esse pesquisador trouxe para as Ciências Humanas grandes contribuições no
que se refere à compreensão do papel da peremptoriedade da palavra. O conceito de
exotopia apresentado por Bakhtin remete à importância de escutar o outro. O que eu
vejo não é o mesmo que o outro vê; o outro me olha e vê o que está atrás de mim e eu
não consigo enxergar. Ou seja, cada um, no lugar onde está, consegue ver coisas que
são importantes e é no diálogo que esses olhares podem se complementar.
É nessa perspectiva de investigação que conceitos bakhtinianos de dialogismo,
alteridade e exotopia norteiam os caminhos teórico e metodológico deste estudo. Em se
tratando de uma abordagem sócio-histórica, reconheço que a fonte de dados é o texto,
ou seja, o contexto no qual os acontecimentos emergem. Nesse sentido, as questões
formuladas não são estabelecidas sem uma imersão no cotidiano da pesquisa, ou seja, é
preciso ir ao encontro da situação no seu acontecer; por esse motivo, procuro estar
sempre online nos canais procurando estabelecer uma relação dialógica com os
youtubers e alguns jovens inscritos nos canais. Este percurso investigativo vem sendo
utilizado como instrumento de compreensão; por isso, vale-se das descobertas para
buscar explicar o fenômeno com ética.
Nessa abordagem, considerar a pessoa investigada como sujeito implica
compreendê-la como detentora de uma voz reveladora, capaz de construir um
conhecimento sobre sua realidade, que a torna coparticipante desse processo de
investigação, reconhecendo, assim, que, nesse processo, produzir linguagem não
interessa apenas a quem escreve, porque a escrita sempre estará endereçada ao outro, e é
esse outro que, de certa forma, completa e ressignifica os sentidos. A opção por trazer
os conceitos bakhtinianos para dialogar com este estudo se faz necessária porque
entendo que tais conceitos ajudam a pensar o ato de fazer pesquisa em Ciências
Humanas como um movimento em que o pesquisador rompe com uma pretensa
neutralidade na produção do conhecimento e se deixa afetar pelas circunstâncias. Para
Bakhtin (2011), exotopia e alteridade são movimentos de aproximação e distanciamento
que necessitam ser paralelamente realizados. É a diferença de lugar que pode oferecer a
compreensão necessária para que a alteridade possa acontecer, por meio da relação
dialógica.
Recorro também à contribuição teórica de Martín-Barbero (2015), que ajuda a
compreender os processos de comunicação e não somente o processo de recepção. Para

sumário 1554
VII Seminário Vozes da Educação

esse pesquisador, as mediações empíricas são relações lógicas de produção, matrizes


culturais, competências de recepção e formatos industriais e distintos conceitos de
mediação que estão a ligar objetos, lugares e processos concretos.
Nesse percurso teórico e metodológico construído com os sujeitos que são
interlocutores deste estudo – jovens que assistem e publicam as resenhas literárias no
YouTube –, venho pesquisando e aprendendo junto e buscando nesse movimento de
pesquisa desconstruir a relação de poder entre o jovem e o pesquisador. Em um artigo
sobre jovens escrito há aproximadamente meio século, Maria Zambrano indagava-se se
não deveríamos apagar de nosso vocabulário a expressão “essa juventude de hoje” e
começar a falar com os jovens (ZAMBRANO, 2007, p. 95). Não existe um único
modelo de juventude, mas juventudes que variam conforme os contextos social e
político em que estão inseridas. A pesquisa com jovens requer perguntar: que tipo de
escuta requerem aqueles a quem nós, adultos, não vemos como iguais? (e eles também
tampouco veem a nós!). É necessária uma escuta que atravessa e que envolve todos os
sentidos, e não somente o da audição, para fazer do processo de investigação uma
verdadeira experiência.
Com base nisso, percebo que pesquisar no meu cotidiano escolar as
experiências dos jovens com a literatura, tendo como interlocutor principal o YouTube
é uma experiência que me atravessa e constitui-se em uma prática que comove e instiga
a pesquisar sempre mais.
Portanto, ao seguir uma linha categorizada por Bakhtin, compreendo que ele é o
principal sinalizador para o debate que vem sendo proposto entre a pesquisa e os seus
interlocutores (sujeitos que utilizam do YouTube para publicar, dialogar e comentar
conteúdos referentes a literatura) e os referenciais teóricos; os outros pesquisadores, à
medida que este debate necessita de consistência mais sólida e de um trabalho mais
analítico e mais substancioso, apresentam um arcabouço teórico que ajuda a pensar as
questões que vão sendo levantadas durante o percurso investigativo e servem para sanar
as dúvidas e possibilitam a oportunidade de sua resolução. Entretanto, pelo próprio
dinamismo da análise, as linhas teóricas muitas vezes convergem e fluem em novas
indagações, o que de certa forma enriquece o trabalho, possibilitando abertura para
novas descobertas e novas investidas.
Em se tratando de um estudo online em canais divulgados no YouTube, trazer
Bakhtin para fazer interlocução com os dados pesquisados e com os sujeitos envolvidos
nesse processo nos coloca diante da compreensão de que a linguagem é o convite para o

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

encontro com o outro. Muitos pesquisadores já iniciaram esse movimento de


interlocução com os estudos online (RECUERO, 2009; COUTO JUNIOR, 2017;
QUEIROZ, 2017; MARCELINO; SANTOS, 2015) e por isso suas contribuições estão
presentes ao longo de todo este estudo, principalmente neste capítulo e no próximo.
Os estudos de Mikhail Bakhtin, apesar de terem sido escritos no final da década
de 1920, mantêm atualidade espantosa e fazem parte dos fundamentos da mais atual
comunicação dialógica e constituem o verdadeiro campo da vida e da linguagem; seus
estudos abrem portas para uma nova interpretação de signo, linguagem, comunicação e
ideologia, de base social e material, mas não mecânica e nem positivista, porque
compreende o outro como sujeito. Nas suas palavras, “ser significa ser para o outro e,
através dele, para si. O homem não tem um território interior soberano, está todo e
sempre na fronteira, olhando para dentro de si; ele olha o outro nos olhos ou como os
olhos do outro” (2011, p. 341).
Considerado um filósofo da linguagem, sua linguística é considerada uma
"translinguística", porque ultrapassa a visão de língua como sistema. Para Bakhtin, não
se pode entender a língua isoladamente, porque está relacionada a fatores
extralinguísticos como contexto de fala, a relação do falante com o ouvinte e o
momento histórico. Suas obras têm caráter interdisciplinar (BRONCKART; BOTA,
2012).
Dostoievski é o herói preferido de Bakhtin; a maneira como ele o define
caracteriza, ao mesmo tempo e da forma mais justa, sua própria metodologia científica:
“nada lhe parece acabado. Todo problema permanece aberto, sem fornecer a mínima
alusão a uma solução definitiva”(JAKOBSON, 2006, p. 16).
Bakhtin (1998) evidencia o caráter dialógico e alteritário das pesquisas
em Ciências Humanas ao descrever que o objeto de estudo dessas ciências “é o ser
expressivo e falante” (p. 395). Para esse pesquisador, o homem não pode ser
considerado uma coisa ou um objeto passível apenas de descrição, mas o sujeito que
interpela, que provoca reflexões que exigem respostas do outro (do pesquisador). Na
perspectiva do dialogismo, a palavra está sempre direcionada a outrem, no sentido de
uma contrapalavra, ou seja, como uma ponte que perpassa e atravessa, com a
possibilidade de voltar ao locutor e/ou interlocutores, assim imbuídos desse dialogismo,
e se sucederem em atos de fala que transformam todos os envolvidos e que sempre são
produtos inacabáveis. Nesse sentido, a palavra é, portanto, uma “ponte lançada entre

sumário 1556
VII Seminário Vozes da Educação

mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre
o meu interlocutor (BAKHTIN, 2010 p. 133).
Para Bakhtin (2010), o que é esperado do homem é o ato responsável e o
entendimento de que nada é absoluto nem um produto acabado. Estamos sempre em
construção. O sujeito situado no seu lugar e no seu tempo é responsivo e responsável
em/pela sua sociedade e seu contexto histórico. Com base nisso, este estudo busca fazer
emergir novos sentidos para uma pesquisa de práticas online, mas ciente de que não é
uma tarefa fácil, uma vez que escutar o outro sem sufocá-lo ou subestimá-lo é um
exercício de pesquisa e de escuta, e para que se estabeleça a possibilidade do diálogo é
necessário também assumir uma posição que é minha, somente minha, em relação ao
outro; isso assume o meu lugar ético na pesquisa em Educação.
Acredito na importância desta investigação, porque como professora
compreendo a importância de pesquisas que deem visibilidade a jovem que leem,
escrevem e dialogam sobre literatura. Reconhecendo que para compreender é preciso
construir junto e estar atento ao que o outro pode me ensinar é que venho buscando
estabelecer esse contato dialógico e exotópico com estes jovens. Com o aceite para
participar desta discussão e a parceria dos jovens da Escola Municipal Paulo Reglus
Neves Freire é que todo o processo investigativo tem se tornado mais fácil e não me
sinto mais um investigador secreto que está ali para descobrir e publicar; eu me vejo
como uma professora pesquisadora que sabe muito pouco sobre a internet, sobre a
cibercultura e que precisa dos jovens que vivenciam essa experiência cotidiana para lhe
mostrar os sentidos que esse artefato cultural proporciona e buscar construir
coletivamente outras formas de ver, ler e interpretar os canais literários.
Esse entendimento de que não sei tudo e de que o outro pode me ajudar a ver o
que sozinho não consigo enxergar é conceituado por Bakhtin como exotopia. Para
Bakhtin (2010), esse termo não é simplesmente um ver-se no outro, como num espelho;
é perceber que somente o outro, do lugar que ocupa e habita, pode me dizer o lugar que
ocupo; estou condenado a não me ver. Bakhtin também defende que há algo a mais
além da exotopia: um elemento que faz parte dela e que não percebemos é a
“inconclusibilidade” humana – a noção de que esse acabamento que o outro pode me
dar é sempre provisório e mutante.
Esse conceito de exotopia é bem explicitado por Bakhtin no livro Estética da
Criação Verbal, quando ele analisa a relação autor-herói na atividade estética. O autor é
mostrado como alguém que sempre sabe mais que o herói e que possui, em relação a

sumário 1557
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ele, um excedente de visão em relação à consciência e ao acontecimento da existência


do herói; assim,

o discurso do herói sobre si mesmo é impregnado do discurso do autor sobre


o herói, o interesse (ético-cognitivo) que o acontecimento apresenta para a
vida do herói é englobado pelo interesse que ele apresenta para a atividade
artística do autor (BAKHTIN, 2010, p. 34).

Em parceria com os jovens, nas rodas de conversas, a pesquisa vai se


apresentando em uma “metodologia que se produz com os sujeitos e suas vozes em um
movimento dinâmico, rizomático e imprevisível” (SERPA, 2010, p. 2). À medida que
me aproximo do meu estudo e dos sujeitos envolvidos, percebo que a pesquisa no
cotidiano passa por muitos movimentos de idas e vindas e que a proximidade e a
familiaridade como certos conhecimentos e experiências que nos atravessam nos
permitem aprender e rever o caminho a percorrer. Nesse movimento, aprendemos “com
a palavra que flui, com a palavra que ainda não foi sacralizada, (...) com o que ainda é
semente” (SERPA, 2010, p. 3), com o que ainda está em produção no interior de cada
sujeito; aprendemos com o latente e com as nossas dúvidas e silêncios.

Considerações finais (ainda que provisórias)


Para Bakhtin (2010), não nos aproximamos de nada impunemente. Não se olha
com “olhos livres” para o mundo. Nosso olhar em direção a um objeto qualquer não é
um olhar neutro e desinteressado. Por melhor que nossa palavra represente, ela nunca
conseguirá forjar uma verdadeira indiferença em relação ao objeto de que trata. Como
diz Bakhtin, uma palavra não designa simplesmente um objeto, seja qual for, ela
também expressa uma atitude valorativa em relação a muitas de minhas limitações;
percebo, com a ajuda desse autor, que à medida que me aproximo do outro posso
compreender melhor a mim mesma. Vou percebendo que a aproximação com esse
objeto é uma identificação da jovem que fui, que, apesar de sempre ter gostado de ler,
tive muitas dificuldades para ingressar na universidade e não conseguia construir essa
ponte entre o que eu lia na escola e fora dela. Pelas narrativas dos jovens, percebo que a
experiência que eu construí com a literatura é única, mas se entrelaça e dialoga com a
experiência de muitos outros jovens.
Nesse exercício de escuta sobre as experiências dos jovens com a literatura
tendo como suporte de análise o YouTube, venho percebendo que esse artefato cultural

sumário 1558
VII Seminário Vozes da Educação

parece estar proporcionando ao jovem a possibilidade de vencer seus desafios com a


leitura. Com esta investigação, venho descobrindo que para conhecer o quanto as novas
tecnologias estão contribuindo para a formação intelectual e social de nossos jovens é
preciso uma “escuta sensível” (BARBIER, 1992) e o entendimento de que, como
professora, nada sei sobre meus alunos e principalmente sobre a cultura em que eles
estão inseridos. Sei que, para conhecer um pouco da cultura desses jovens, um estudo
sobre eles não daria conta, e é por isso que esta pesquisa vem buscando uma pesquisa
com eles. Ver e analisar somente à luz das teorias não permitiria a compreensão dos
sentidos que esses vídeos remetem aos jovens da atualidade. Por que esses canais são
tão visualizados e têm tantos inscritos? Eu tenho algumas pistas e hipóteses de por que
isso acontece, mas ainda não tenho respostas e muito menos a compreensão do
significado dessa prática para esses jovens.
Este estudo vem me proporcionando conhecer a trajetória e a inserção de alguns
jovens na literatura e vem contribuindo para o entendimento de que nada sei sobre os
jovens que estão na escola e fora dela e que preciso mais do que ouvi-los; preciso
realmente escutá-los para repensar alguns formatos institucionais que parecem estar
consolidados.
Defendo que este estudo necessita de continuidade para compreender por que os
canais literários vêm se tornando uma possibilidade concreta de letramento para muitos
jovens e porque são mais atraentes e de melhor compreensão que os cânones escolares.
Por que muitos youtubers estão desistindo de canais de literatura e estão adotando
outros produtos para lançar em seus canais? Qual o impacto desse fenômeno entre os
jovens que curtem esse conteúdo na rede? Que pistas os jovens imersos nesse universo
dos canais podem fornecer à educação, que podem contribuir para a educação? Por
entender que muitas questões ainda necessitam ser aprofundadas é que percebo a
necessidade da continuidade desta investigação.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F.


Bernardini et al. 4. ed. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1999.

BARBIER, René. A escuta sensível em educação. Revista da Anped, Caxambu, n. 5,


set. 1992.

sumário 1559
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

BUECHNER, M. M. 50 Best Websites 2006.Times, [Los Angeles], July 2006.


Disponível em:
http://www.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,1949762_1949762_19500
25,00.html. Acesso em: 19 jan. 2018.

BRONCKART, Jean-Paul; BOTA, Cristian.Bakhtin desmascarado – história de um


mentiroso, de uma fraude, de um delírio coletivo. São Paulo: Parábola 2012.

BURGERSS, J.; GREEN, J. YouTube e a revolução digital: como o maior fenômeno


da cultura participativa transformou a mídia e a sociedade. São Paulo: Aleph, 2009.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer; Tradução de Ephraim


Ferreira Alves. 22. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

JAKOBSON, Roman. A geração que esbanjou seus poetas. Trad. e posfácio Sônia
Regina Martins Gonçalves. São Paulo: CosacNaify, 2006.

JOBIM E SOUZA, S. (Org.). Educação @ pós-modernidade: ficções científicas e


ciências do cotidiano/organização. Rio de Janeiro: 7 Lettras, 2007.

LEVY, Pierre. O que é virtual. São Paulo: Editora 34, 1999.

MARCELINO, C.; SANTOS, R. Vídeos digitais na pesquisa em Educação e


cibercultura: narrativas e imagens com a rede social YouTube em convergência com
ambientes virtuais de aprendizagem. In: PORTO, Cristiane et al. (Orgs.). Pesquisa e
mobilidade na cibercultura: itinerâncias docentes. Salvador: EdUFBA, 2015. p. 185-
209.

MARTÍN BARBERO, J. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2015.

SERPA, Andréa. Pesquisa com o cotidiano: caminhos da formação da professora


pesquisadora. R. Est. Pesq. Edu. Juíz de Fora. V. 15, n.2, jul/dez. 2010.

SIBÍLIA, Paula. O Show do Eu. a intimidade como espetáculo. Rio de


Janeiro:contraponto, 2010.

sumário 1560
VII Seminário Vozes da Educação

APRENDER NAS RUAS: POR UMA PRÁTICA EDUCATIVA


TRANSVERSALIZADA

Maria Beatriz Albernaz


Pedagogia, ISERJ
albernaz.bia@gmail.com

Depois de ter realizado cursos da disciplina obrigatória no currículo da


Pedagogia do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (Iserj), “Estudos
Interdisciplinares da Educação”, durante seis anos e criado um blog 227
como
instrumento paradidático, em 2012, surgiu o grupo que produziu o projeto “Aprender
nas ruas – um projeto transdisciplinar de educação” (ProAR), sob minha coordenação.
A disciplina"Estudos interdisciplinares do Rio de Janeiro", além de
possibilitar o aprofundamento na história e na geografia da cidade, me permitiu
desenvolver uma importante reflexão: qual o lugar da cidade na educação? Como
reconhecer, ativar e recriar este lugar?
Recuando um pouco mais no tempo, porém, é possível afirmar que este
trabalho de pesquisa teve início com a elaboração da minha tese de doutorado, em
Poética (antiga linha de estudos do programa de Ciência da Literatura, da
UFRJ):Paidéia poética na cidade sitiada – uma leitura de Clarice Lispector228, cujo
objetivo era sondar as possibilidades pedagógicas abertas pela compreensão de cidade,
de acordo com a poética da autora. Neste trabalho foi possível alargar o próprio
conceito de cidade, abolindo suas fronteiras, passando não só a ver o caminho do
campo229 em meio às ruas, como também percebendo que, mesmo em áreas totalmente
descampadas, o ser humano não deixa de exercer o seu papel de fundador de cidades,

227
“A escola não dá conta. Nas ruas, ônibus, centros culturais, em todo lugar se aprende. Em cada um,
uma história, um modo de ver, de dizer, de aparecer. Neste blog, nossas contribuições para quem
cidadaniza o mundo, respeitando a terra.” Texto de abertura do blog Cidade Educativa RJ
(http://cidadeeducativa.blogspot.com/)
228
Publicada pela Azougue Editorial, com o Auxílio Editoração da FAPERJ, em 2009, sob o título
Claricidade – a cidade segundo Clarice.
229
“Caminho do campo” é tomado aqui como uma noção apreendida com a leitura heideggeriana da
fenomenologia, isto é, como o colocar-se numa via que busca a compreensão da dimensão existencial da
história, retomando a investigação ontológica do ser. Especificamente, neste trabalho, admito ainda uma
interpretação mais literal do termo e compreendo “caminho do campo” como apreensão da presença de
elementos na cidade que não são passíveis de serem classificados como urbanos, mas que tanto nela (na
cidade), quanto no campo, participam de acontecimentos existencialmente significativos, como o vento,
por exemplo. Cf. HEIDEGGER, 1969.

sumário 1561
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

organizando e intensificando a convivência social, política, econômica e cultural,


materializando ou objetivando as trocas intersubjetivas.
No trabalho de pesquisa para a escrita da tese, busquei explorar as
possibilidades e diferenciações dos processos de aprendizagem, formação cultural,
iniciação e metamorfose. Ao longo desse processo, à minha visão como educadora
agregou-se um olhar fenomenológico, o que me fez compreender a importância de que,
para conhecer bem um lugar, deveria me aproximar da experiência do que é viver ou
habitar tal lugar.
Nessa mistura de formações acadêmicas, percursos profissionais,
militâncias e leituras diversas, outros conceitos mostraram-se ressonantes às minhas
propostas e projetos. A diferenciação heideggeriana de "espaço" e "lugar", assim como
a sua noção de "habitar" poeticamente, foi posteriormente fortalecida pela concepção de
"poder local" levantada por Dowbor (1995), mas também tensionada pela sinalização
de Milton Santos (2002; 2005), no que diz respeito à necessidade de apreensão do
fenômeno global, que se sobrepõe, em geral de modo bastante conflituoso, às
peculiaridades de cada meio. A compreensão da cidade nesta dupla vertente, como luta
entre o mundo e a terra, não tira de foco aquela que tem sido a prioridade, em nossa
contemporaneidade: a cidadanização do mundo, com obediência à “lei inaparente da
terra” (tomando de empréstimo a expressão formulada por Heidegger, 2002).
A partir de tais leituras, consolidou-se a premissa de que a cidade forma e
transforma seus habitantes, tornando-se lugar por excelência de educação e reeducação,
de exercício de compreensão sobre o modo como o outro compreende e se relaciona
com o mundo. Somos uma legião de moradores e trabalhadores que vem e vão. Muitas
das nossas relações e do que construímos de material permanece nas ruas, nos prédios.
O nosso modo de ser urbano reflete, pois, diretamente, a nossa possibilidade de ser
humano.
Em meu percurso prático e de pesquisa, ensaiei construções teóricas para
aproximação do urbano e do humano, produzidas com base na compreensão da cidade
como obra de arte, como lugar a ser habitado ou cuidado, como caminho do campo e
como atitude política, transgressora e interativa, pela qual se desenvolve constantemente
tanto a capacidade de escuta quanto a formulação de questionamentos.
Para viabilizar tal visão, é preciso assumir que todo o processo de
conhecimento, em seu duplo caráter – de integrar e transgredir; de romper e reproduzir
– é também de autoconhecimento e de reflexão epistemológica, de modo a atentarmos

sumário 1562
VII Seminário Vozes da Educação

para o que disciplinariza o saber e o que o separa do meio em que foi produzido. É
preciso cuidar enquanto se conhece, pois pela lógica de exclusão da materialidade do
conhecimento, apaga-se a participação do corpo na aprendizagem, decisiva na
percepção e apreensão do mundo. Nesse sentido, a concepção fenomenológica contribui
para diminuir a distância entre o que se aprende na escola e fora dela. Hoje já é senso
comum referir-se à qualidade da presença, como um modo de ser-no-mundo. A partir
dessa experiência, nos damos conta de como a História se reflete em nossas relações, o
que permite acompanhar e elaborar melhor o vai-e-vem da prática educativa e da
interpretação dos dados.
Uma atitude ética em que a investigação e a compreensão das diferenças
não se separam empenha-se no desenvolvimento de um projeto educativo pelo qual a
aprendizagem acontece como participação qualificada, ou seja, por meio da apropriação
de uma poética, um dizer que necessariamente se descobre como expressão de uma voz,
isto é, de uma ação.
Em que consiste a aprendizagem poética na cidade? Na assimilação da
tensão necessária entre poder e despojamento; e entre conflito e apaziguamento. Pela
aprendizagem poética – sempre realizada pelo posicionamento diante de uma realidade
específica –, promove-se o reencontro autoral, de des-re-apropriação dos lugares-
territórios230 e de afirmação do habitante em relação à sua cidade. Considerando toda
cidade como uma obra de arte ou um projeto de convivência, admitimos que dela
também se depreenda uma poética, isto é, um modo de fazer revelador de realidades
internas e externas ou, simplesmente, de acontecer, de acordo com diferentes modos de
aparecer, os quais podem ser designados como: convergente, pela acolhida de diversas
culturas; fundante, pelas portas que abre para a experiência; comunitária, ainda que em
desequilíbrio, entre as necessidades mundanas e as demandas ambientais; infiltrada de
poesia, pela constante reinvenção e dinamismo da linguagem.
O ProAR baseava-se então, de acordo com o projeto encaminhado para a
FAPERJ, em 2012, na interação de saberes acadêmicos de áreas diversas, artísticos, da
cultura popular e da indústria cultural; na realização de visitas pela cidade; e em debates
teóricos. A proposta era (e ainda é) abrir espaço para a formulação de propostas

230
A partir dos anos 1970, a discussão de território em constante processo de produção do espaço,
envolvendo relações de poder, no cotidiano e em redes, em diferentes tempos, lugares e circuitos, isto é, a
territorialização, desterritorialização e reterritorialização, ganha um caráter interdisciplinar, passando pela
geografia, a ciência política e a epistemologia. Sobre Educação e Território, cf. o site
https://compromissocampinas.org.br/educacao-e-territorio/

sumário 1563
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pedagógicas focadas na cidade como lugar de educação. O arcabouço de metodologias e


conceitos de apoio ao desenvolvimento do projeto era a realização de leituras da cidade,
de seus lugares de memória, da sintaxe de suas ruas, do seu patrimônio material e
imaterial, a fim de aliviar a escola do acúmulo de funções afetivas, sociais e políticas
que ela tem sido obrigada a desempenhar e de revelar a força educativa já existente e
ainda muito pouco aproveitada que a cidade detém.
O principal conceito para consolidar o projeto “Aprender nas ruas” era
então de “cidade educativa”, havia uns dez anos, quando dele tive conhecimento pela
leitura do educador Jaume Trilla Bernet, da Universidade de Barcelona. Em termos
sintéticos, o que me pareceu muito oportuno foi o seu olhar didático da cidade como um
suporte, um contexto que, para além dos seus aspectos históricos, pode ser
compreendido por conteúdos não só descritivos, mas desiderativos e projetivos. Da
mesma forma, uso e abuso da sua tríplice análise dos tipos de aprendizagem propiciados
pela cidade, aos quais sinteticamente associa a uma mudança proposicional, isto é,
haveria o aprender na, da e a cidade. Considero muito feliz essa simplificação pois, ao
contrário do que pode aparecer, ela não reduz pois, por serem altamente
instrumentalizáveis, essas três dimensões da aprendizagem possibilitam conhecer
melhor um determinado lugar, em suas peculiaridades e potencialidades pouco
perceptíveis aos educadores em geral.
O interesse na “cidade” como conceito de maior abrangência nesse
estudo, encontrava-se no cruzamento política e educação, e no seu reflexo histórico, de
onde ressurgia a visão de uma polis firmemente sustentada por um projeto formativo.
Dele, emanam as soluções momentâneas e muitas vezes conflituadas dos processos de
urbanização e de civilização, assim como o maior ou menor poder dos cidadãos de
participarem dessas supostas escolhas. Como educadora, a minha aposta é que aos
cidadãos se deveria abrir oportunidade de ler e de escrever os rumos de suas cidades.
Tal alfabetização obviamente não está apenas a cargo da escola.
O que traria maior consistência a essa capacidade de ler/escrever o curso
das cidades? Hoje talvez não usasse tais termos, mas ainda vejo a importância de
dominar, em maior ou menor grau, da ciência dos signos, a fim de fruir da e interferir na
infinita cadeia de formas que uma metrópole produz. Igualmente continuo a apostar nas
possibilidades abertas pelo refinamento diferenciado da nossa percepção. Talvez hoje
me soe um pouco ingênua a validação desses recursos com os quais, numa espiral
combinatória de processos simultâneos de leitura e mutação desses mesmos signos,

sumário 1564
VII Seminário Vozes da Educação

transformaríamos coisas, gestos e paisagens em textos estruturados, passíveis de análise,


de compreensão, de crítica e de recriação.
De 2012 a 2016, um grupo de trabalho, reunindo alunos e professores do
ISERJ/FAETEC, se reuniu com o objetivo de buscar a renovação de práticas
pedagógicas e expansão da instituição para fora dos seus muros, tanto no curso de
formação de professores, quanto no seu Colégio de Aplicação (CAP-ISERJ).
A pretensão inicial do projeto, em 2012, era reunir conhecimentos
dispersos num banco de dados; levantar recursos educativos disponíveis ou a se
construir; e realizar oficinas para estudantes e educadores formais, não formais e
informais (terminologia absorvida a posteriori, pela leitura de Maria da Glória Gohn,
2010). Estavam nos planos a realização de um encontro, um vídeo e uma publicação,
com foco na aproximação educação-patrimônio-cultura e escola-rua-comunidade. As
dificuldades de financiamento nos fizeram redimensionar nossas pretensões.
Desenvolvemos um vídeo que nos possibilitasse a aproximação acima
descrita, assim como o mergulho num lugar específico, ao qual chegaríamos a conhecer
melhor por meio de uma cartografia singular. Procuramos aproximar atividades
científicas latu-sensu (de cunho educativo-cultural) e artísticas, em encontros de
investigação e também de performance, no âmbito acadêmico e escolar, em um espaço
de educação não formal do entorno do Iserj: a Aldeia Maracanã. A definição e a
delimitação deste patrimônio aconteceram por conta da proximidade com indígenas
envolvidos que também atuavam no momento, no Iserj, como docentes de disciplinas
eletivas e como contadores de história. A realização do que denominamos “travessia”,
entre o Iserj e a Aldeia Maracanã, com turmas de Estudos Interdisciplinares do RJ
proporcionou mapearmos a necessidade de abordarmos a questão do indígena em
contexto urbano, buscando com isso superar vários preconceitos e lacunas no
entendimento a respeito da questão indígena e das intercessões floresta e cidade,
destacando-se a reflexão sobre o que viria a ser uma aldeia em área urbana. Para a
realização do vídeo, foi realizada uma oficina de roteiro com a participação de
indígenas e não indígenas, abordando-se a necessidade de quebrar com a rigidez dos
estereótipos do indígena, como ser alheio aos dispositivos da tecnologia, e do não
indígena, como ser desconectado de saberes tradicionais. Na oficina de roteiro e,
posteriormente, durante as etapas de produção e gravação do vídeo, estudantes e
professores participaram em condições iguais e de acordo com seus interesses
específicos.

sumário 1565
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O roteiro foi concebido por meio da construção de dados, com visitas


mediadas e abertas à Aldeia, para conhecimento do lugar e em eventos locais, culturais
e educativos; e para um laboratório vivencial com os participantes da oficina, em que se
procurava dar voz a algumas questões surgidas pela leitura paralela do livro “A
comunidade que vem”, de Giorgio Agamben (2006). Essa atividade buscava
transversalizar visões do senso comum, científicas, políticas e literárias, promovendo o
entrecruzamento dos saberes eruditos, da cultura dita popular e da indústria cultural. A
tomada de depoimentos com os professores indígenas, a atuação artística e a entrevista
com pessoas na rua geraram a elaboração do roteiro e a realização do vídeo “Agora
você é índio” (20’), a redação de relatos para o blog “Cidade educativa – RJ”231 e um
TCC por uma das alunas envolvidas no projeto.
Em fase posterior, já em 2014, buscamos o envolvimento também das
crianças da escola, mas com abordagem focada em passeios, e em parceria com o
projeto “Ônibus da esperança”.232 A parceria aconteceu com a observação participante
de monitoras em passeios multigeracionais às zonas sul, oeste, norte e à orla litorânea
da cidade (desconhecida por grande parte das crianças atendidas Pelo projeto). Com a
premissa de que a escola precisa buscar uma prática escola não disciplinar, o Aprender
nas Ruas foi buscar modos de fortalecê-la como um lugar de aprender e ensinar, no
gozo e no privilégio de poder criar-transformar. Nessa altura, percebíamos que as
fronteiras entre a escola e a cidade demarcam linhas móveis, uma vez que estamos
sempre em trânsito e refletimos a ambas. Nesse sentido, tanto a escola precisa da cidade,
quanto vale também o inverso. É preciso romper com o medo que separa uma da outra,
como parte do paradigma que separa vida e arte ou arte e trabalho. Política, ciência e
poesia, reunidas, fazem acontecer a cidade educativa.

231
No momento, a produção em nosso blog (cidade educativa rj), como um locus operandi de estudantes,
monitores e pesquisadores, para tessitura e dinamização de uma rede de intercâmbio das experiências e
saberes investigados, em permanente transformação, tem se dado de modo intermitente. Abaixo,
encontram-se listadas as categorias que compõem alguns tags do blog: 1) Leituras da cidade, incluindo
relatos, textos literários e históricos, predominantemente sobre o Rio de Janeiro, mas também de outras
cidades, ruas e bairros de moradia, para além de um olhar turístico da cidade; a visitação com registro e
proposição de circuitos históricos, culturais, paisagísticos e sócio-ambientais; episódios ou detalhes
pitorescos com informações que façam diferença na observação dos roteiros; registro de trabalhos
artísticos de relevância que intensifiquem a visão poética da cidade e a correlacionem a aspectos estéticos
e éticos (intervenções urbanas, mostras ou experiências artísticas urbanas em espaços museais e não
convencionais; 2) Modos de ver, incluindo o levantamento de conceitos teóricos e pontos de vista
estabelecidos à luz de experiências que implementem uma renovação das leituras da cidade, para
redefinição de termos e ampliação de um glossário sempre aberto e em discussão sobre as dimensões
educativas da cidade; 3) Estações da experiência, incluindo o levantamento de instituições e projetos que
atuam no binômio cidade-educação, e de sites e blogs referenciais.
232
https://www.facebook.com/busderhoffnung

sumário 1566
VII Seminário Vozes da Educação

Paralelamente, buscamos expandir a experiência, tendo em vista a


divulgação de princípios da cidade educativa e a necessidade do fortalecimento do
compromisso político com o cidadão, no Rio de Janeiro, através de seu ingresso na
OICE. Internamente, aconteceram diálogos interdisciplinares e também entre segmentos,
principalmente com a Educação Infantil e Educação Fundamental, e com setores de
educação não formal, como a Brinquedoteca, o Multimídia e o setor de eventos.
Realizamos debates sobre a área do Maracanã e o direito à cidade 233, mobilizados pelas
reformas urbanas pré-Copa do Mundo e Olimpíadas, com a presença de Gustavo Mehl,
do Observatório das Cidades; Carlos Sanders, da Escola Municipal Friedenreich; e
Dauá Puri e José Urutau Guajajara, da Aldeia Maracanã. Pensando em abrir o Instituto à
visitação pública, chamamos uma roteirista e diretora de teatro; uma fotógrafa; uma
pesquisadora de história de educação; e uma ex-aluna e ex-professora do Instituto.
Em 2015, concorremos a um edital da Faperj, em comemoração aos 450
anos da cidade, com o projeto “Trilhas do Rio: a educação da memória e a memória da
educação”. Apesar de termos sido contemplados mas não favorecidos, devido à
bancarrota do estado do Rio de Janeiro, desenvolvemos a etapa inicial do projeto: o
levantamento, roteirização e reconhecimento in loco de três (03) trilhas de interesse
histórico, cultural e social, abrangendo bairros da Grande Tijuca, Maracanã. Praça da
Bandeira e São Cristóvão. A pesquisa, bibliográfica e em campo, foi realizada com
estudantes das disciplinas Estudos Interdisciplinares do Rio de Janeiro e Antropologia,
de modo a estabelecer roteiros nas seguintes áreas: Quinta da Boa Vista e arredores de
São Cristóvão e Praça da Bandeira; Floresta da Tijuca, acompanhando-se o trajeto dos
rios Maracanã, Trapaceiros e Joana até a Baía da Guanabara; e instituições educativas
por onde passou a formação de professores na cidade, tais como o Imperial Colégio de
Pedro II, o atual Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, o atual Centro de
Referência da Educação Pública (ex-escola Rivadávia Correa), a Escola Normal no
Estácio e o Instituto de Educação.
Nesses últimos anos, a pesquisa sobre o caráter educador da cidade tem
demonstrado sua pertinência, principalmente no momento histórico que atravessamos.
Fica muito clara a percepção dos limites da escola diante da necessidade de formação
cidadã, e também de uma maior ousadia na introdução de propostas transversalizadas, a
fim de superar barreiras sociopolíticas e epistemológicas. Trata-se da retomada da

233
Cf. “O direito à cidade’, de David Harvey. New Left, 2008.

sumário 1567
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

política em seu papel constituinte de um lugar de convivência, onde as paisagens urbana


e humana, com suas tensões e conflitos de poder, é ponto básico para o conhecimento.
Ao longo de minha atividade docente, ainda procuro conjugar os campos
da Poética e da Educação. Acredito que por aí abrimos o campo para a expressão de
vozes mais criativas na educação, aumentamos o repertório e alargamos os horizontes
das linguagens, pela reflexão crítica e pela invenção, com o aprofundamento de
conhecimentos técnicos, e o aporte de signos e códigos diversos em curso. Mais
recentemente tenho adotado o conceito de transversalização do currículo, lendo e
discutindo o texto de Sílvio Gallo (2000), que resume bem uma visão rizomática como
de conhecimento, para além da transdisciplinaridade. Com a ajuda das categorias do
urbanista Kevin Lynch,234 dos critérios para definir um espaço público como aceitável e
seguro, listados pelo também arquiteto e urbanista Jan Gell,235 e incorporando alguns
termos adaptados pelo arquiteto e cidade-educador Pedro Lessa para que as crianças em
idade escolar possam apurar o seu olhar para o ambiente, temos desenvolvido exercícios
de cartografia não só dos espaços urbanos mas também dos patrimônios, instituições e
lugares comuns. A cartografia social e o mapeamento participativo como uma
metodologia que não desvincula observação e atuação; em muito tem colaborado para
que nossa prática docente e de pesquisa possam acontecer
concomitantemente. 236 Reconhecendo a necessidade de buscar uma metodologia de
aprendizagem baseada na diversidade da cultura urbana, gradualmente cartografada,
esperamos contribuir para a escola expandir os seus horizontes e oxigenar o seu
currículo.
Estamos em um momento político em que a necessidade de apropriação
dos interessantes conceitos da Nova História, como “lugar de memória” (NORA, 1984
apud ABREU, 2005) e “não lugar” (AUGÉ, 1994), se faz em ressonância com os de
“temporalidade” e “territorialidade”, e também compreendendo as estâncias do macro e

234
Kevin Lynch cunhou os conceitos de legibilidade e imageabilidade, a fim de aprimorar a percepção
ambiental. Para operacionalizá-los, ele sugere a análise de cinco elementos presentes em todas ascidades:
caminhos (paths), limites (edges), bairros (districts), pontos nodais (nodes) e marcos, tendo em vista sua
estrutura, identidade e significado.
235
Natalia Garcia, do projeto Cidade das pessoas, traduziu e adaptou os 12 critérios para determinar o que
é um bom espaço público estabelecidos por Jan Gehl et alli no livro New City Life. São eles: proteção
contra o tráfego, segurança nos espaços públicos (circulação de pessoas, espaços que tenham vida de dia e
de noite, boa iluminação); proteção contra experiências sensoriais desagradáveis; espaços para caminhar;
espaços de permanência; possibilidade de observar; ter onde sentar; oportunidade de conversar; locais
para se exercitar; escala humana; possibilidade de aproveitar o clima; e boa experiência sensorial.
236
Cf. PASSOS, Eduardo, BARROS, Regina B. A. “Cartografia como método de Pesquisa Intervenção”.
In: PASSOS, E. (Org.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de
subjetividade, 2009.

sumário 1568
VII Seminário Vozes da Educação

do micropolítico. Endossando a visão teórica de Suely Rolnik (1989), é preciso


aproximar a prática macropolítica à micropolítica (em suas dimensões educadoras), em
termos éticos e estéticos com a noção de corporalidade. Ou seja, não se trata mais do
indivíduo respeitar o outro, mas de sabê-lo incorporado, percebendo-se que o outro atua
– em constante tensão – diretamente nos corpos individuais, em suas objetividade e
subjetividade.
Confere-se qualidade à participação quando se exercita a visão para além
do que está dado, a disposição para se fazer presente nos lugares, a percepção da
simultaneidade dos tempos, e a perspectiva de que o conhecimento passa pela
historicidade, pelo interesse e pelo afeto (ou como diz Rolnik, referindo-se à
terminologia de Deleuze, de conceptos, de perceptos e afectos).237
Revestindo de arte, a educação; e de educação, a arte, apontamos para
uma ética de concomitância ou de permanente movimento, entre a transgressão e a
interação, tendo em vista a apropriação e a humanização da cidade, para enfim poder
perceber no lugar onde se habita, tal como Tuan, uma “localização de lealdade
apaixonada” (1995, p. 149), mas também um território de lutas pela superação de
poderes impostos que restringem a experiência da cidadania a um padrão
homogeneizador e reprodutor de uma ordem repressora dos corpos em devir.
Além das já citadas, algumas outras referências teóricas constantes neste
trabalho são: Gaston Bachelard, no que diz respeito a sua proposição de uma poética do
espaço; Walter Benjamin (2000; 1994; 1975), principalmente no que se refere à noção
de experiência e da narração para a experienciação do acontecimento; Ítalo Calvino, em
sua poetização do olhar e capacidade descritiva e de síntese de cidades imaginárias;
Paulo Freire (1995; 2000), por sua postura dialógica e adesão ao projeto de cidade
educadora, juntamente com Moacir Gadotti (2004); e Joan Manoel del Pozo (2103), por
sua colocação da educação permanente como um opção política.
Nosso objetivo, ao escolher a cidade como lugar privilegiado de
educação, e ao exercitar uma prática pedagógica nas ruas ou em espaços institucionais
não escolares é dialogar com a tendência que discerne aprendizagens formais, não
formais e informais,238 introduzindo a noção de que a dinâmica desses modos gera uma
quarta possibilidade de aprendizagem “transformal”. Pesquisando modos de aprender-

237
Cf. “A hora da micropolítica”. Entrevista com Suely Rolnik. Disponível em
https://www.goethe.de/ins/br/pt/kułfok/ruł20790860.html
238
Cf. CARNICEL, A., FERNANDES, R.S., PARK, M. (orgs.). Palavras-chave em educação não-
formal, 2007; GOHN, 2010.

sumário 1569
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ensinar pautados na indissociabilidade dos aspectos éticos, estéticos e poéticos das


relações, educa-se o ser “em situação”, presente, atuante e em relação com o lugar em
que vive; e também se contribui para a vigência de uma comunidade educativa voltada
para questões cultural e politicamente invisibilizadas. Compreender a experiência de
participação na cidade coincide com a de estar nos lugares, ensaiando intervenções
educativas, políticas e artísticas. Nesse processo, a pesquisa acontece pelo
desenvolvimento de ações de comunicação, memória e linguagem, em pontos no
entorno do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro, com a consciência de que
os dados são construídos, quando se fundem leituras, depoimentos, entrevistas e
trabalho de campo ao olhar e à capacidade de escutar, de suspender um padrão que
separa o público, o comunitário e o privado na cidade.

Referências
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sumário 1570
VII Seminário Vozes da Educação

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sumário 1571
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 1572
VII Seminário Vozes da Educação

BIBLIOTECA ESCOLAR: DESAFIOS, PERSPECTIVAS E MINHA


EXPERIÊNCIA

Amanda do Nascimento dos Santos Almeida

Introdução
As concepções atuais da educação apontam para o desenvolvimento do ser
humano como um todo, relacionando seu papel nas transformações pelas quais vêm
passando as sociedades contemporâneas e assumindo um compromisso cada vez maior
com a formação para a cidadania. Portanto, a concepção de educação que dispomos hoje
em dia está intimamente ligada à concepção de sociedade que temos e que pretendemos
ter.
As habilidades da língua portuguesa compreendem utilizar a palavra oralmente:
ouvir e falar; e de utilizar a palavra escrita: ler e escrever. A seguir, trechos dos
Parâmetros Curriculares Nacionais, que comunicam-se com a proposta para a formação
do leitor crítico:
Os PCN’s indicam como objetivos para o ensino fundamental que os alunos
sejam capazes de:
• (...) Posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes
situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e de
tomar decisivas;
• (...) desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o sentimento de
confiança em suas capacidades afetiva, física, cognitiva, ética, estética, de
inter-relação pessoal e de inserção social, para agir com perseverança na
busca de conhecimento e no exercício da cidadania;
• (...)
• utilizar diferentes linguagens – verbal, matemática, gráfica, plástica e
corporal – como meio para produzir, expressar e comunicar suas ideias,
interpretar e usufruir das produções culturais, em contextos públicos e
privados, atendendo a diferentes intenções e situações de comunicação;
• (...)

sumário 1573
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

No processo de ensino-aprendizagem no ensino fundamental, espera-se que o


estudante amplie seu domínio ativo em suas diversas situações comunicativas o que
desenvolverá sua capacidade de interação social no exercício da cidadania. Para isso, a
escola deverá realizar atividades que possibilite ao aluno:
• utilizar a linguagem na escuta e na produção de textos orais e na leitura e
produção de textos escritos de modo a atender a múltiplas demandas sociais,
responder a diferentes propósitos comunicativos e expressivos, e considerar
as diferentes condições de produção de discurso;
• utilizar a linguagem para estruturar a experiência e explicar a realidade,
operando sobre as representações construídas em várias áreas de
conhecimentos;
• (...)
• analisar criticamente os diferentes discursos, inclusive o próprio,
desenvolvendo a capacidade de avaliação de textos;
• usar os conhecimentos adquiridos por meio da prática de análise linguística
para expandir sua capacidade de monitoração das possibilidades de uso da
linguagem, ampliando a capacidade de análise crítica.

Nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Linguagens, Códigos e


suas Tecnologias – Conhecimentos de língua Portuguesa, orienta-se que:
• (...) as ações realizadas da disciplina Língua Portuguesa, no contexto do
ensino médio, devem propiciar ao aluno o refinamento de habilidades de
leitura e escrita, de fala e de escuta.
• (...) o texto passa a ser visto como uma totalidade que só alcança esse status
por um conjunto de construção de sentidos (...).
• (...) se é pelas atividades de linguagem que o homem se constitui sujeito, só
por intermédio delas é que tem condições de refletir sobre si mesmo.
• (...) a língua é uma das formas de manifestação da linguagem, e um entre os
sistemas semióticos construídos histórica e socialmente pelo homem.
• (...) o papel da disciplina de língua portuguesa é o de possibilitar, por
procedimentos sistemáticos, o desenvolvimento de ações de produção de
linguagem em diferentes situações de interação (...).

sumário 1574
VII Seminário Vozes da Educação

• (...) as práticas de linguagem a serem tomadas no espaço da escola não se


restringem nem se filiam apenas aos padrões socioculturais hegemônicos.
• (...) a escola que se pretende efetivamente inclusiva e aberta à diversidade
não pode ater-se ao letramento da letra, mas deve, isso sim, abrir-se para os
multiletramentos, que, envolvendo uma enorme variação de mídias,
constroem-se de forma multisemiótica e híbrida – por exemplo, nos
hipertextos na imprensa ou na internet, por vídeos e filmes etc.

A biblioteca escolar reúne o acervo de cada unidade escolar e, portanto, não


pode ser negligenciada, esquecida, ficar com suas portas fechadas, pois a leitura como
atividade de linguagem é uma prática social de alcance político. Ao promover a
interação entre indivíduos, a leitura, compreendida não só como leitura da palavra, mas,
também como leitura de mundo, deve ser atividade constitutiva de sujeitos capazes de
entender o mundo e nele atuar como cidadãos.
A escola pública, portanto, deve continuar lutando pelo bom funcionamento
deste espaço de democratização da leitura e da literatura.

1. Projeto de Leitura Escolar


O agente de leitura deve trabalhar unido ao coordenador pedagógico da escola,
como também junto ao orientador educacional quando houver, pois todas as suas
atividades serão norteadas pelo Projeto Político da escola, que descreverá o histórico da
unidade, suas conjunturas, especificidades e perspectivas. Portanto, o Projeto de Leitura
Escolar deve alinhar-se aos objetivos da escola, e dele fazer parte.
Ler um texto literário é um ato crítico histórico-social culturalmente situado, ou
seja, é um ato (um conjunto deles) que envolve e comporta hipóteses e juízos. A
literatura por si mesma assume muitos saberes, e são esses, que pretendemos fazerem
dialogar com os saberes dos participantes do Projeto de Leitura Escolar.
O PLE deve ser construído a partir do PP, e com a participação da equipe
diretiva, professores parceiros da sala de leitura e que desejem participar das atividades
em conjunto, como também dos alunos que pretendem participar. É preciso estabelecer
as atividades que se pretende realizar ao longo do ano letivo, e o objetivo das mesmas,
assim como é possível também definir os seus temas, que podem variar a autores
homenageados, regiões, temas transversais, uma época, ou outros fatores que
influenciem a escolha e engaje os jovens estudantes.

sumário 1575
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A importância de ter um Projeto de Leitura bem estrutura reside na leitura como


atividade de linguagem e uma prática social de alcance político. Ao promover a
interação entre indivíduos, a leitura, compreendida não só como leitura da palavra, mas
também como leitura de mundo, deve ser atividade constitutiva de sujeitos capazes de
entender o mundo e nele atuar como cidadãos.
Como exercício da cidadania, a leitura exige um leitor privilegiado, de
aguçada criticidade, que, num movimento cooperativo, mobilizando seus
conhecimentos prévios, seja capaz de preencher os vazios do texto, que não se limite à
busca das intenções do autor, mas construa a significação global do texto percorrendo as
pistas, a indicações nele colocadas. E, mais ainda, que seja capaz de ultrapassar os
limites pontuais de um texto e incorporá-lo reflexivamente no seu universo de
conhecimento de forma a levá-lo a compreender seu mundo e seu semelhante.239
São algumas sugestões de atividades inerentes ao Projeto de Leitura Escolar:
• Sarau Literário;
• Varal de Poesias;
• Café Literário;
• Cardápio de Livros;
• Círculo de Leitura;
• Periódico Escolar;
• Mural Temático;
• Visita às Bibliotecas Públicas;

Abaixo, alguns registros de atividades e eventos realizados entre 2014 e 2018 no


C.E. David Capistrano:

239
ALMEIDA, Amanda do Nascimento dos Santos. Releitura de clássicos na contemporaneidade: um
instrumento necessário em mãos precisas – Formação de leitores em foco, 2016.

sumário 1576
VII Seminário Vozes da Educação

E demais atividades consoantes com o incentivo à cultura, à leitura e auxilie no


desenvolvimento intelectual e acadêmico do corpo discente. Nossos objetivos
perpassam ainda por:
• Tornar o ambiente da sala de leitura útil e agradável;
• Desenvolver o protagonismo juvenil;
• Desenvolver a aprendizagem colaborativa;
• Favorecer as práticas de leitura e produção textual;
• Desenvolver a comunicação e o pensamento crítico dos nossos estudantes;

2. O Agente de Leitura
O servidor que está responsável pela sala de leitura, é o responsável não apenas
pela salvaguarda dos livros, mas também pelo seu asseio, bom estado para empréstimo,
organização, disposição nas prateleiras, identificação, empréstimo e orientação de
leitura para os estudantes.
O agente de leitura deve ser um amante de livros, um ávido degustador de
literaturas. Muitas vezes os estudantes são impelidos a retirarem livros porque tem
algum trabalho para fazer, é comum que professores principalmente de língua
portuguesa e literatura demandem resenhas de obras literárias, situação a qual o aluno
que não tem o hábito de frequentar a sala de leitura e nem de ler livros, abomina.
O agente de leitura deve orientar o estudante para o nível de leitura desejado,
principalmente quando for da escolha do aluno o autor, enredo da obra. É preciso olhar

sumário 1577
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

para esse estudante e entender qual livro em meio a tantos poderá instiga-lo não só a
investir tempo naquele, quanto o leve a procurar outras leituras e literaturas.
Certa vez um aluno da terceira série do ensino médio me procurou com esse
propósito. Ele escolheu o livro mais fino que viu pela frente, intitulava-se "cabelos
molhados". Então aquele aluno de quase dois metros, jogador de futebol, atleta juvenil,
se interessou pela leitura de "cabelos molhados"? Poderia. Mas não foi o caso. Recusei-
me a registrar o empréstimo do livro, e levei o a outros títulos cujas narrativas
encaixavam se melhor no seu momento de vida e em seus gostos pessoais.
Não raramente os jovens desconhecem o que gostariam de ler, e precisamos
puxar deles essa informação. O aluno terminou por escolher uma trama de Agatha
Christie, não tão mais “paginosa” do que "cabelos molhados", mas desta vez escolheu
de verdade, pelo que o livro poderia lhe oferecer e contribuir para a vida, não apenas
como um "dever de casa", uma tarefa obrigatória.
Esse olhar cuidadoso pode mudar a vida de um estudante, insistir em demasiado
não recomendo mas perguntar por qual motivo escolherá este ou aquele livro, se já
conhece tal autor, ou se interessa por ficção científica, romance, biografia...
Nosso objetivo é que eles leiam. Os livros que mais emprestei foram romances
românticos de Nicolas Sparks, John Green, Nora Roberts, passando pela aventura com
J.K. Rowling, com sua saga atemporal, o Ladrão de Raios, Crônicas de Gelo e Fogo, e
por aí vai. Mas nenhum, nenhum livro foi mais emprestado do que "a sexualidade para
adolescentes - tudo que uma garota precisa saber". Esse título praticamente não parava
na estante, e somava tantos empréstimos que trocávamos a ficha de anotação na capa do
livro. O bom agente de leitura não julga a escolha do seu público e procura entende-la.
Foi então que junto a direção recomendamos palestras sobre gravidez na
adolescência, uso de métodos contraceptivos e saúde da mulher. Teve camisinha na
banana, respondendo dúvidas, a apresentação do preservativo feminino. Muitas vezes
os jovens nos dizem todo o tempo do que precisam, mas nós não conseguimos perceber.
Nessa percepção, é necessário, portanto, criar um ambiente acolhedor que gere interesse
de permanência dos estudantes. Assunto que trataremos no próximo capítulo.

3. Criando um ambiente acolhedor


É possível junto à direção da unidade criar um ambiente acolhedor e que
ao mesmo tempo estimule a curiosidade do estudante. Estruturalmente é necessário
pensar a disposição das estantes nas quais fica o acervo observando se a iluminação é

sumário 1578
VII Seminário Vozes da Educação

suficiente para que o estudante consiga alcançar as prateleiras mais baixas ainda com
boa visibilidade. Outra estratégia é mudar a cor de uma ou duas paredes, animando o
ambiente, mas sempre lembrando de mantê-lo suave e propício a leitura.
Se no espaço houver outros móveis, é importante dispô-los pensando na
movimentação dentro da sala de leitura, de modo que os estudantes não esbarrem nos
itens. Veja, tudo na sala de leitura deve ser pensado para que o estudante queira ficar
nele. O que nos leva ao próximo ponto: conforto.
É interessante que a sala de leitura tenha sofás ou cadeiras acolchoadas, pufes e
tapetes inclusive confeccionados pelos alunos, já que também ajudante a produzir o
ambiente, ele se torna consequentemente mais valorizado pela comunidade escolar. O
ambiente aconchegante fica direcionado a quem quiser pegar uma leitura rápida como
revistas e histórias em quadrinhos como também consultas rápidas, que dispensem levar
o livro para casa.
Colocar papel de parede pode parecer complicado, mas de fato não é. Eu mesma
o coloquei em uma parede apenas com auxílio de uma escada. Colocamos tecido com
cola branca, tive o auxílio de uma aluna que se dispôs para ajudar na tarefa.
Eis um ponto interessante, quando os alunos percebem a movimentação de
transformação daquele ambiente, provavelmente vão se envolver e querer participar. É
importante não tolher a ajuda e as ideias dos jovens, deixá-los decidir coisas que não
impactem a estrutura fixa da escola, como cores, locais para pendurar quadros ou
colocar cartazes.
Uma ideia ainda em relação a estrutura da sala, é quando na impossibilidade de
pintar as paredes, pulsar adornos como cartazes, que podem ser desde simples figuras
que remetam a leitura como a frases de incentivo para ao estudo já que a biblioteca
muitas vezes é usada para produzir trabalhos escolares.
Os jovens e adolescentes possuem muita energia que canalizada para os afazeres
estudantis dão muitos frutos. Eles são cheios de ideias e estão sempre antenados ao que
está "na moda", por isso essa participação é tão fundamental e indispensável, pois é
igualmente impensável que um ambiente feito para eles não seja coerente com seu
comportamento e modo de ver o mundo.
Por isso cada sala de leitura vai assumir uma roupagem diferente, pois cada
comunidade escolar possui suas especificidades, e colocará em prática trabalhos e
atividades que melhor lhe encaixarem. Eis algumas formas de caracterizar o ambiente:
• Pintura na parede;

sumário 1579
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

• Texturização com recortes de revista e/ou jornal;


• Colocação de papel de parede ou tecido sobre a parede;
• Colocação de itens de decoração confeccionados pelos alunos;
• Colocação de móbiles de dobradura de papel;
• Estante de Caixotes;
• Colocação de E.V.A. ou papel colorido nas estantes;

É, portanto, impossível exigir de uma unidade cuja característica principal dos


estudantes é o desinteresse pelos estudos, atraí-los para a biblioteca obrigando os a
ficarem quietos e imóveis em uma sala impecavelmente arrumada, na qual é proibido
mexer nas estantes ou interagir com os materiais que ali estão.
A organização da biblioteca escola é fundamental e inquestionável, no entanto é preciso
imaginar a sala de leitura como um ser vivo que se alimenta de ideias e mãos e mentes.
Abaixo, gravuras das mudanças e dos estudantes interagindo com e na sala de
leitura do C.E. David Capistrano:

sumário 1580
VII Seminário Vozes da Educação

4. Não existe isso de biblioteca arrumada


Ponto. Se está cumprindo sua função, e o agente de leitura está movimentando
projetos, espalhando cartazes pela escola, cobrando entrega de obras nas salas,
pesquisando passeios culturais e palestras educativas para os alunos da escola... a
biblioteca vai estar “bagunçadinha” sim.
Sinal de que esta sendo utilizada , que não está com suas portas fechadas. Os
estudantes vão "bagunçar" as estantes, vão colocar as obras com a lombada do livro
para dentro inviabilizando a identificação do título e autor, vão apoiar livros uns sob os
outros e trocar as sessões dos mesmos. Mas assim se quebram as primeiras barreiras
entre o jovem que frequenta pouco a sala de leitura ou não a frequenta, pois, se ele não
puder saltear os livros sentindo seu peso, grossura, o cheiro, texturas das capas... nunca
saberá a sensação o gosto de um
A sala de leitura tem seu asseio, mas a comunidade escolar precisa entender que
aquele espaço é dos jovens, e se naquele momento há cinco grupos nas cinco mesas
redondas fazendo trabalhos para a feira multidisciplinar, vai cair papel picado, ponta de
lápis, eles vão conversar, te pedir régua emprestado, e já separa os pilots na cor preta...
e, ainda bem, a biblioteca enquanto espaço de produção de conhecimento está
cumprindo seu nobre papel, o de auxiliar Na formação de estudantes para o mundo.
Mas, jamais deixemos de chamar os jovens para a responsabilidade de limpar o
que sujaram , arrumar o que desarrumaram e refletir sobre o quanto eles os responsáveis
por aquele espaço. É possível deixar bilhetinhos educados nas estantes, lembrando os
que os livros estão em ordem para melhor serem encontrados, que a limpeza da sala é
agradável a todos, e que não se pode comer no mesmo espaço que se lê para evitar
insetos e outros bichinhos.

sumário 1581
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Não precisa ter necessariamente uma placa pedindo silêncio aos estudantes. Sim,
não precisa. Há momentos nos quais os alunos cão fazer trabalhos e vão precisar fazer
pesquisas e discutir sobre elas, conversar sobre a confecção de trabalhos e outras
atividades que podem implicar em barulho. Mas existe barulho melhor do que o de
conhecimento sendo exercitado?
Algazarra é proibida. Mas logo os alunos vão perceber que precisam se respeitar
caso queiram continuar a utilizar o espaço, pois, do contrário, o mesmo fixaria inviável.
É preciso que saibam que há medida é momento para todas as atividades e que o
respeito é a régua que decide o momento de mais e o momento de menos.
Som ambiente costuma funcionar e nem precisa ser um aparelho de áudio muito
elaborado. A maioria das escolas tem um radinho FM esquecido em um canto, e quando
não o tiver não é difícil quem o doe.
Deixe o som tranquilo , ameno e suave. Deixe o rádio à mostra, como se tivesse
à disposição. Faça acordos com os frequentadores da sala de leitura, que escolham a
rádio e /ou as músicas durante o seu intervalo. Todo jovem adolescente gosta de música,
muitos a mais do que os que gostam declaradamente de ler.

5. Restaurando livros do acervo


Algumas unidades escolares possuem acervos grandes, enquanto outras nem
tanto. O livro enquanto material físico não é um bem tão durável quando de mão em
mão, mochila em mochila, deteriora-se, amassa, suja. Os estudantes precisam
responsabilizar-se pelo cuidado com o título, mas o uso do mesmo já traz as marcas de
uso, que podem ser amenizadas em oficinas pelos próprios estudantes.
Em 2014 nosso grupo de alunos, o primeiro que coordenei foram para o
“Conheça a UFF” evento da Universidade Federal Fluminense, no qual estudantes de
diversos cursos montaram stands e compartilhavam suas experiências com os alunos do
ensino médio. Os meninos dividiram-se de acordo com seus interesses, houve inclusive
palestras centrais, explicando como funcionava o processo seletivo pelo Enem e Sisu. O
projeto Conheça a UFF esteve em parceria com o C.E. David Capistrano até o final de
2018, abaixo estão alguns registros:

sumário 1582
VII Seminário Vozes da Educação

Além de informados sobre o ingresso na UFF, os alunos que participavam do


Projeto de Leitura Escolar à época, aprenderam algumas técnicas de restauração de
livros no stand dos universitários de biblioteconomia. Para replicar o conhecimento,
fizemos na escola um mutirão de cuidado com os livros que estavam mais velhinhos,
com páginas despencadas, e marcas de uso.
A atividade virou rotina para os alunos que rondavam a biblioteca, pois, ao
perceberem este ou aquele ajuste que poderia ser feito, logo tomavam a iniciativa de
pegar uma fita durex, cola branca ou de madeira, borracha para apagar marcas a lápis,
pedaços de retalho com desinfetante que traziam de casa, a fim de tornar o uso dos
livros mais prazeroso para aquele que quisesse lê-lo.
Dessa forma, ao colocar os próprios estudantes para reformarem os livros,
conseguimos diminuir os danos que vinham sendo causados às obras, pois, os próprios
alunos cobravam uns aos outros que cuidassem melhor dos títulos.
Abaixo, registros dos alunos restaurando livros na biblioteca do C.E. David
Capistrano:

sumário 1583
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Conclusões
Ler um texto é um ato crítico histórico-social culturalmente situado, ou seja, é
um ato (um conjunto deles) que envolve e comporta hipóteses e juízos. A literatura por
si mesma assume muitos saberes, e são esses, que pretende-se fazerem dialogar com os
saberes dos participantes dos elementos apresentados como experiências possíveis.
Sem dúvidas a biblioteca escolar é um ambiente potencial de desenvolvimento
do conhecimento e da ação diante do mundo. Formar um cidadão sem acesso a livros é
impossível se considerarmos que a leitura em si mesma é complexa e traz benefícios
que outras mídias não podem agregar.
Pode-se dizer que: o leitor crítico é aquele que vai além do título e da capa de
um livro. Sempre lê a sinopse, porém é uma ou duas palavras que contém nela que
chama-lhe atenção. Ao folhear o livro ele encontra trechos que o fazem pensar naquela
leitura como um desafio que tem que superar. Quase sempre o leitor crítico não se
prende ao nome do autor, é verdade que o título sempre vai dizer algo mais a ele. Seja
num texto verbal ou não verbal, ele sempre se colocará em alerta, não aceitando aquilo
como uma verdade. E mesmo nos textos de ficção, ele sabe que o que está ali é apoiado
no real, no sentido do real. Ele lê nas entrelinhas. Ele sabe que há pistas que o
transportam para além do texto.
Para que tal movimento seja possível, é preciso que continuemos a movimentar
nossas bibliotecas escolares, a mobilizar funcionários, servidores, voluntários, todo
aquele que souber o potencial e importância de uma biblioteca escolar.

Referências
BRASIL. Programas do Livro – PLi. Brasília: Ministério da Educação/FNDE, 2004.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.

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PARO, Vitor Henrique. Gestão Escolar, Democracia e Qualidade do Ensino. Editora


Ática, São Paulo, 2007.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Literatura comparada, intertexto e antropofagia. In: Flores


na escrivaninha. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Caderno de Estudos do Curso Programas do Livro - PLi/Fundo Nacional de


Desenvolvimento da Educação. 5a ed., atual. - Brasília: MEC, FNDE, 2014.

sumário 1584
VII Seminário Vozes da Educação

PARÂMETROS Curriculares Nacionais – Língua Portuguesa. Brasília: Secretaria de


Educação, MEC, 1998.

sumário 1585
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

CONCEPÇÕES DE ENSINO DA MATEMÁTICA E


FORMAÇÃOCONTINUADA DE PROFESSORES NO ÂMBITO DE PROJETOS
INSTITUÍDOS NA REDE MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE NITERÓI(2015-
2019)

Cristiane Custódio de Souza Andrade


SMECT NITERÓI
custodioandrade@uol.com.br

Introdução

Eu dei uma atenção maior pro português, do que a matemática, porque eles
não sabiam nem escrever, não sabiam ler... então, eu dei um enfoque maior
pro português, sinto que ficou faltando essa parte da matemática...(Professora
do Reforço Escolar no ano de 2015)

Trabalho muito a leitura para poder dar a matemática, porque se não souber
ler, não vai saber matemática! ... (Professora do Reforço Escolar no ano de
2015)

As falas destacadas em epígrafe representam relatos das professoras dos anos


iniciais, ante o desafio de ensinar matemática para alunos considerados com baixo
desempenho frente as habilidades esperadas para o 2º Ciclo de ensino. Inserem-se no
conjunto de dados produzidos em minha dissertação para obtenção do grau de mestre.
Foram produzidos em espaços de formação continuada, no âmbito do Projeto de
Reforço Escolar na Rede Municipal de Niterói no ano de 2015.
A análise das falas das professoras nos sugere estar implícita certa concepção de
ensino que tem a alfabetização na língua materna como “pré-requisito” para
ensinar/aprender matemática. E embora não seja infundado o pressuposto de que o
conhecimento da língua materna é importante para a compreensão do significado dos
saberes matemáticos, isto não é determinístico, visto que muitas atividades com a
matemática podem ser desenvolvidas através do uso da oralidade e com materiais
concretos, manipuláveis...
Para Machado (1998), desde os primeiros anos de escolaridade, a matemática e a
língua materna constituem conhecimentos básicos nos currículos escolares, favorecendo

sumário 1586
VII Seminário Vozes da Educação

compreender que entre ambos os sistemas de representação - alfabeto e números, há um


certo paralelismo e interdependência, de modo que não se justifica aprendê-los
isoladamente ou em momentos distintos.

[...] mesmo no tempo em que dizia que as pessoas iam à escola para aprender
a ‘ler, escrever e contar’, o ensino de Matemática e o da Língua Materna
nunca se articularam para uma ação conjunta, nunca explicitaram senão
relações triviais de interdependência. É como se as duas disciplinas, apesar
de longa convivência sob o mesmo teto – a escola – permanecessem
estranhas uma à outra, cada uma tentando realizar sua tarefa isoladamente ou
restringindo ao mínimo as possibilidades de interações intencionais
(MACHADO, 1998, p. 15).

Segundo o autor, há muito tempo a matemática e a língua materna são


conhecimentos apreendidos pelas pessoas para a compreensão da realidade. Para ele,
portanto, causa estranheza continuarem sendo abordados pela escola com restritas
interações. Machado (1998) ainda nos adverte que os estereótipos amplamente
difundidos sobre a matemática como conhecimento “rígido”, “difícil”, “estático”,
destinado a mentes privilegiadas, têm dificultado seu ensino e aprendizagem.
Além desta concepção de ensino, outras pautadas na linearidade, hierarquização
e precedência lógica dos conhecimentos matemáticos estiverem presentes entre os
relatos das professoras. Concepções fundamentadas na crença de que aquilo que o aluno
“ainda não sabe” se constitui como limitador para a atuação do/da professor/a em sala
de aula. A linearidade assim compreendida, funciona como uma espécie de “currículo
internalizado”, entendido como único caminho válido e verdadeiro, uma vez que
inspirado na crença de que certos “conteúdos matemáticos” já deviam ter sido
aprendidos pelos alunos. Para Garnica (2008), “essa certeza quanto a necessidade de
habilidades prévias e disponíveis para o desenvolvimento do currículo escolar implica,
frequentemente, a utilização de uma metodologia na qual as aulas são
predominantemente expositivas” (p. 505), considerações pertinentes, face que era
comum no âmbito do projeto de reforço, relatos nos quais era identificada a utilização
de aulas expositivas seguidas de algoritmos e cálculos repetitivos, priorizando uma
metodologia baseada na transmissão, reprodução e memorização de conhecimentos.
Segundo D’Ambrosio (1993), em geral “o professor ensina da maneira como lhe
foi ensinado” (p.38), de modo que é possível identificar, na adoção do “paradigma do
exercício” e da “memorização da tabuada”, uma concepção de ensino que tem se
manifestado em decorrência das experiências escolares dos sujeitos. Nesta concepção, o

sumário 1587
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

conhecimento é tratado como “conteúdos” a serem “transmitidos” ao aluno, e cuja


aprendizagem é medida pela capacidade de receber informações e armazená-las na
memória. Neste sentido, há aqui uma identidade com a concepção de “educação
bancária” há muito denunciada por Paulo Freire.
Para D’Ambrosio (1993), ainda é possível presenciar situações escolares nas
quais a aula de matemática se realiza, predominantemente, pelo método expositivo.
Nela, predominantemente o aluno copia para o seu caderno um grande número de
algoritmos de forma repetitiva. A persistência em tais práticas contribui para a crença de
que a matemática é aprendida através do acúmulo de fórmulas, regras e domínio dos
algoritmos, para os quais pouco se questiona. Assim, “o aluno, acreditando e
supervalorizando o poder da matemática formal perde qualquer autoconfiança em sua
intuição matemática” (p.15), uma vez que, ao viver um papel passivo na aprendizagem,
não expressa seus saberes, tendendo ao desinteresse pela aula.
Alguns autores/as (Carraher e Schlimann, 1982; D’Ambrosio, 2007; Skovsmose,
2012), estabelecem uma crítica às atividades repetitivas, mecânicas e que não exijam a
participação ativa dos alunos, defendendo a organização de experiências escolares que
proporcionem aos alunos a articulação da matemática aos saberes e fazeres próprios de
sua cultura. Skovsmose (2012) defende que fazer uma crítica da matemática, como
parte da educação matemática, é um interesse da educação matemática crítica.
Outros autores também consideram potencialidades nas situações cotidianas dos
alunos. Afirmam que estas são ricas de possibilidades matemáticas (FIORENTINI e
MIORIN, 2001; NACARATO, 2015; SÁ, 2010). Desta forma, ao manter diálogos com
os alunos sobre suas experiências, é possível perceber oportunidades de ensino da
matemática relacionada a contextos familiares, brinquedos, ambiente profissional dos
pais, entre outros. Para Nacarato, Mengali e Passos (2015), o ambiente para ensinar e
aprender matemática deve ser pautado pelo diálogo, compreendido no sentido
empregado por Freire (1987), que o caracteriza como uma ação que “[...] não pode
reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se
simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes” (p. 79), mas
estabelecida nas relações entre professores e alunos, na qual ambos possam ser ouvidos
e expressarem seus pensamentos e reflexões. Uma comunicação caracterizada pelo
respeito, onde ideias e saberes podem ser igualmente compartilhados.
A partir de uma perspectiva dialógica, tomada como “ponto de partida” no
processo ensino/aprendizagem, é possível pensar num currículo de matemática não

sumário 1588
VII Seminário Vozes da Educação

pautado somente em “conteúdos” a serem ensinados, mas também nas possibilidades de


inclusão social e cultural para crianças e jovens. Esta é uma perspectiva defendida pelos
autores (NACARATO, MENGALI & PASSOS, 2015; D’AMBROSIO, 1996, 2007;
SKOVSMOSE, 2013; DE PAIVA & DE SÁ, 2011), que também compreendem que a
matemática é um conhecimento historicamente construído e que, portanto, precisa estar
disponível a todos.

Concepções de ensino da Matemática presentes na formação continuada e na


prática educativa dos professores
Com base nos dados explicitados, e dos resultados da pesquisa realizada no
âmbito do Projeto de Reforço Escolar durante o ano de 2015, foi possível elaborar
reflexões importantes tanto sobre as práticas pedagógicas quanto sobre concepções de
ensino da matemática presentes na escola e na formação de professores. Entretanto,
torna-se importante pontuar que, considerando que concepções não são estáticas, estão
sujeitas a alternâncias e permanências, filiar as práticas docentes a determinadas
concepções sobre o ensino da matemática pode ser impreciso, pois que dependente do
contexto vivenciado. Corrobora com este alerta, as afirmações de Garnica (2008), ao
assinalar que

nossa visão acerca de algo está radicada nas nossas percepções, no que
sentimos do mundo, no que sentem do mundo as pessoas com as quais
convivemos, de como elaboramos essas percepções e as tornamos
operacionalizáveis para continuarmos vivendo e convivendo (vivendo com
outros). Isso é próprio do que poderíamos chamar de ‘processo de formação’,
ainda que tal processo não tenha um objetivo claro e definido previamente,
pois também seus objetivos vão se alterando durante o processo, mantendo
algumas características e revertendo outras que até então julgávamos
estabelecidas (GARNICA, 2008, p. 499).

Tal compreensão nos possibilita a afirmar que as concepções dos professores


acerca do ensino da matemática se assentam sobre uma complexa rede de relações
escolares e não-escolares, cujo acesso nem sempre é possível, porque nem sempre
transparente. Logo, tentar compreender as concepções torna-se preferível, ao invés de
simplesmente nomeá-las.
Na apropriação e reflexão sobre os aspectos que emergiram neste campo de
pesquisa, outras investigações foram sendo provocadas, sobretudo naquelas que
possibilitam ampliar as conexões entre Educação Matemática, Currículo, Avaliação e
formação inicial e continuada de professores.

sumário 1589
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Cabe ressaltar, que a Rede Municipal de Niterói, através das equipes que
integram a Secretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia (SMECT/FME),
tem buscado instituir ações e estratégias pedagógicas cuja pretensa proposta é promover
“melhorias” em relação ao ensino da matemática para os anos iniciais do ensino
fundamental. Além do Projeto de Reforço Escolar, iniciado no ano de 2015 (e ainda
vigente), no início do ano letivo de 2017, a equipe que integra a Diretoria de 1º e 2º
Ciclos de ensino elaborou o Projeto Matemática em Ação, o qual consistia no
oferecimento de vagas para estagiários, graduandos em Matemática, estarem atuando
em regime de colaboração/parceria com os professores regentes do 5º ano de
escolaridade, no que se refere ao ensino da matemática para os alunos.
Além da integração formativa entre Universidade e Escola Básica, a proposta
para o desenvolvimento do trabalho previa uma construção coletiva de estratégias de
ensino/aprendizagem privilegiando o diálogo entre atividades que utilizassem materiais
manipuláveis, lúdicos, jogos..., e a sistematização do conhecimento matemático
conforme abordado nas avaliações em larga escala, e pelas quais o desempenho dos
estudantes do 5º ano do ensino fundamental seria mensurado/aferido.
Nesta proposta de trabalho, buscava-se potencializar as práticas de ensino,
através da inclusão e co-participação democrática dos sujeitos envolvidos na ação
pedagógica, desmitificando assim, a crença de que o conhecimento matemático é
destinado apenas a mentes privilegiadas, e por isso de difícil familiarização. Por outro
lado, ainda que de modo contraditório, buscava-se concomitantemente melhorar o
desempenho dos alunos na resolução de questões baseadas na Teoria de Resposta ao
Item (TRI), propostas em avaliações internas e externas da Rede Municipal de
Educação de Niterói.
O Projeto Matemática em Ação teve início no ano de 2017 e contou inicialmente
com a contratação de 10 estagiários, os quais atuaram nas unidades escolares, sendo
remunerados com uma bolsa-auxílio para desenvolverem atividades junto aos
professores regentes de 5º ano de escolaridade. Cada estagiário poderia atuar em até 4
turmas, sendo uma turma em cada dia da semana. Nas quartas-feiras, não havia
acompanhamento aos alunos, pois ficava reservado ao planejamento junto aos demais
professores da escola. Devido ao pequeno número de estagiários frente as 47 unidades
escolares que atendem ao 2º Ciclo de ensino, apenas algumas escolas tiveram a
oportunidade de participar das ações propostas pelo Projeto Matemática em Ação,
embora esta fosse uma iniciativa desejada por gestores(as) e pedagogos(as) das escolas.

sumário 1590
VII Seminário Vozes da Educação

Até o presente ano, as atividades do projeto ainda permanecem vigentes na referida


Rede de ensino.
No espaço temporal, compreendido entre o desenvolvimento dos dois projetos -
Projeto de Reforço Escolar (2015- 2019) e Projeto Matemática em Ação(2017- 2019),
cabe indagar, a partir do que expressam os sujeitos integrantes nesta lógica de trabalho,
se, de fato, as atividades desenvolvidas contribuiriam para dar “novo formato” as
estratégias didático-pedagógicas, potencializando com isso a apreensão significativa
do conhecimento matemático pelos alunos. Tal indagação se torna relevante,
principalmente ao reconhecermos que estas ações confluem para um objetivo comum,
um produto cuja finalidade será melhorar o desempenho dos alunos aferido nas
avaliações em larga escala, favorecendo, com isso, aumentar o IDEB da referida rede
ensino.
Historicamente, disposições e prescrições previstas em leis, instituídas através
de projetos tentando regulamentar e organizar ações que visam “corrigir falhas” no
processo educativo, têm se mostrado insuficientes para eliminar os problemas
educacionais que pretendem solucionar, fato que tem contribuído para a (re) elaboração
de novas/velhas estratégias. Tal insuficiência na “correção de falhas” pode ocorrer
exatamente porque o foco dessas supostas “falhas” tem se centrado nos sujeitos (as
dificuldades são deles!), e não na organização do sistema de ensino, das práticas
pedagógicas e da formação docente, entre outros aspectos.
Considerando isoladamente o Projeto Matemática em Ação (2017 – 2019), outra
possibilidade de investigação consiste em identificar que contribuições/trocas
formativas, tanto os estagiários, quanto os professores regentes de quinto ano,
poderiam experienciar no âmbito do Projeto Matemática em Ação. Porém nesta
perspectiva, busca-se evitar a ideia de “lacuna” no processo de formação dos
professores dos anos iniciais, com relação à formação de um especialista em matemática
– compreendida aqui como formação “ainda em construção” para os estagiários. Na
apreensão destes sentidos, pontua-se a necessidade de uma análise criteriosa acerca dos
discursos produzidos na/pela investigação proposta. Isto seria uma tentativa para evitar
desqualificar o profissional com formação exclusiva em Pedagogia, o qual “também
ensina matemática, embora não tenha formação específica para isso” (FIORENTINI et
al., 2005; NACARATO, MENGALI e PASSOS, 2015).

sumário 1591
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Algumas questões teóricas-metodológicas presentes na efetividade dos Projetos


Algumas pesquisas (VASCONCELLOS e BITTAR, 2007; CURI, 2004; 2005)
sobre a formação do professor para o ensino de Matemática na Educação Infantil e nos
anos iniciais, face as novas demandas educacionais, explicitam que muitos profissionais
estão ingressando na profissão docente sem um conhecimento que lhes garanta atuar de
forma segura ao ensinar Matemática, de modo que tem sido proposto repensar os cursos
de magistério e os programas de formação continuada para os professores dos anos
iniciais. Segundo Curi (2005), Nacarato e Passos (2003), entre outros pesquisadores,
esses docentes tiveram, em geral, muita dificuldade na aquisição do conhecimento
matemático durante sua escolaridade, fato que pode ter influenciado sua opção por uma
formação que não exigia tantos conhecimentos na área. Contudo, não era percebido por
estes profissionais que, embora fosse frágil a abordagem à matemática durante seu
processo de formação, o encontro com essa área de conhecimento seria inevitável, face
a necessidade da abordagem junto aos alunos em sala de aula.
Gatti (2010), ao analisar as propostas curriculares de 71 cursos de Pedagogia no
Brasil, concluiu que, em média, apenas 7,5% das disciplinas desses cursos destinam-se
aos conteúdos a serem ensinados nas séries iniciais, dado que revela que “os conteúdos
específicos das disciplinas a serem ensinadas na sala de aula não são objeto dos cursos
de formação inicial” (p. 1368). A autora ainda destaca que “as ementas registram
preocupação com as justificativas sobre o porquê ensinar; entretanto, só de forma muito
incipiente registram o quê e como ensinar” (ibid, p. 1371). Tomando como referência as
fragilidades da formação matemática dos/as professores/as dos anos iniciais, Nacarato,
Mengali & Passos (2015), propõem uma reflexão sobre os desafios que os professores
encontram para “ensinar o que nem sempre aprenderam” (p. 15). Para as autoras, os/as
professores/as têm tido poucas oportunidades para construir, na sua formação inicial,
um conhecimento matemático capaz de responder às prescrições curriculares. Assim, as
dificuldades encontradas pelos alunos, as quais relacionam-se ao ensino/aprendizagem
da matemática nos anos iniciais, podem ser atribuídas a diferentes variáveis, entre as
quais comumente aparece a atuação dos professores/as em sala de aula, cuja ação
docente pode ser capaz de produzir e cristalizar essas dificuldades, contudo também
pode superá-las. Dessa forma, a responsabilidade desses profissionais tem sido
aumentada, conforme explicita Carneiro e Passos (2014), visto que prescrições
curriculares orientam para construção de uma “base” nesta fase do ensino, sobre a qual
se sustentará o aprofundamento desse conhecimento nos anos posteriores.

sumário 1592
VII Seminário Vozes da Educação

Diante desses sentidos, e a partir da efervescência dos debates acerca das


fragilidades relacionadas ao conhecimento matemático presentes na formação dos
professores dos anos iniciais, surgem novas/velhas tensões e desafios experienciados
pelos docentes, sobretudo no que tange à passagem de um ciclo de escolarização para
outro.
Desse modo, a partir da lógica da “eficiência/eficácia” do ensino, focada no
desempenho dos alunos e prescritas pelos documentos oficiais (sendo a BNCC o mais
recente), quem estaria mais APTO para ensinar matemática nos anos iniciais do ensino
fundamental? O profissional licenciado em Pedagogia, ou o especialista em
matemática? Dado o número escasso de professores especialistas em matemática nas
redes de ensino municipal, frente ao quantitativo demandado pelos anos finais do
ensino fundamental, haveria professores de matemática excedentes para atender aos
anos iniciais?
Tais questões se fundamentam em concepções e crenças acerca dos saberes
docentes, as quais presumem que os professores especialistas em matemática
possivelmente possuem um conhecimento mais abrangente sobre os conteúdos a serem
abordados, embora se reconheça a carência de conhecimentos didático-pedagógicos
para atuarem junto aos alunos dos anos iniciais. Ancorados nestas fundamentações
teóricas-metodológicas, tanto o Projeto de Reforço Escolar, quanto o Projeto
Matemática em Ação se configuram em ações pensadas pela Rede Municipal de
Educação de Niterói, de forma a alcançar professores/as dos anos iniciais através de
encontros de formação continuada (tanto em serviço, quanto em outros espaços
designados pela Secretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia –
SMECT/FME).
Não obstante, cabe salientar, que embora a principal variável pensada pelas
redes de ensino, de modo a influenciar as possibilidades de atuação dos/as
professores/as em suas práticas educativas tem sido a formação continuada, nos
remetemos a Ponte (1992) para trazer à tona algumas considerações importantes:

[...] Os processos de formação não podem ser concebidos como a imposição


de um qualquer conjunto de "verdades", mas exigem uma atitude diferente,
de grande respeito pelos participantes. A formação tem de ser entendida
como um processo de troca e de criação coletiva, em que quem conduz
intervém com certos conhecimentos e competências, mas está igualmente a
aprender com os outros. Nestas condições a formação é apenas mais um
processo partilhado de aprendizagem (PONTE, 1992, p. 27).

sumário 1593
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Assim, tomando como referência tais considerações, compreendemos que não há


garantias de que os sujeitos alteram efetivamente suas concepções de
ensino/aprendizagem da matemática a partir de suas participações nas formações
continuadas, visto que entretecidas numa rede onde se intercalam distintos significados
e subjetividades dos sujeitos. Entretanto, focar numa formação enquanto perspectiva
dialógica e colaborativa entre os sujeitos, pode ser uma possibilidade. Assumindo tais
perspectivas com relação à formação continuada, surge outra questão: considerando a
ausência de garantias quanto à formação continuada em serviço, que perspectivas
outras poderiam estar presentes, ainda que invisibilizadas, através da proposta de
trabalho prevista no Projeto Matemática em Ação?

Algumas considerações
Considerando os últimos cinco anos, temos assistido uma efervescência de
prescrições acerca do trabalho pedagógico a ser desenvolvido pelos professores dos
anos iniciais, ante ao desafio de favorecer o “melhor desempenho dos/as alunos/as”,
sobretudo nas avaliações em larga escala, proposta pelas atuais ações da Política Pública
em vigor. Dentro desses sentidos, a promoção de uma educação matemática “mais
eficiente/eficaz” tem sido focada e requisitada, buscando uma (re)significação do
trabalho docente para os profissionais que atuam nesse segmento de ensino. Cabe
lembrar que, embora estes profissionais tenham que ensinar matemática, mesmo não
possuindo formação específica para fazê-lo, cada vez mais lhe são exigidas habilitações
para ensinar componentes curriculares não abordados durante sua formação
exclusivamente em Pedagogia. Tal condição, contribui para a formação de uma ideia na
qual a formação do professor nunca é suficiente para ensinar matemática aos alunos.
Destaca-se neste caso, a inserção dos componentes Álgebra, Probabilidades e
Estatística, previstos na BNCC para ensino da matemática durante os cinco primeiros
anos de escolaridade, os quais comumente não são abordados nos cursos de formação
pedagógica. A partir desses impasses, que se apresentam na confluência entre
investigações sobre Formação de Professores, Currículo e Avaliação, surgiram as
questões descritas neste trabalho, as quais sugerem ampliar o campo de pesquisa
vinculado à Educação Matemática nos anos iniciais do ensino fundamental. De fato
compreende-se que, enquanto estas questões continuarem invisibilizadas e silenciadas,
continuar-se-á buscando soluções superficiais e locais para problemas estruturais, e de
ausência de articulação efetiva entre os Ciclos de Aprendizagens. Nesse sentido,

sumário 1594
VII Seminário Vozes da Educação

observa-se, cada vez mais frequente, o esforço das Redes de ensino para “remediar” e
atender as prescrições da Política Pública para a Educação, sendo a implementação de
Projetos paralelos ao trabalho desenvolvido pelos docentes em sala de aula uma, entre
outras, saídas pensadas para sanar tais situações.

Referências
BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação
- PNE e dá outras providências. Brasília, 2014. Disponível em: <www.planalto.gov.br>.
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estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para dispor sobre a formação dos
profissionais da educação e dar outras providências.Brasília, 4 de abril de 2013.

CARRAHER, T.; CARRAHER, D.; SCHLIEMAN, A. L. Na vida dez, na escola


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graduados em Educação matemática, v. 9, n. 2, 2007.

sumário 1596
VII Seminário Vozes da Educação

FANZINES E RELATOS DE MEMÓRIA: SEJA PROTAGONISTA DE SUA


HISTÓRIA!

Andrea Gomes Barbosa


IFF – Instituto Federal Fluminense campus Macaé
andrea.barbosa@iff.edu.br

1. Introdução
As políticas educacionais têm implementado ações que visem acolher no âmbito
escolar as experiências culturais dos alunos. Os Parâmetros Curriculares Nacionais
destacam a necessidade do levantamento e valorização das formas de produção cultural
mediadas pela tradição oral. Segundo os PCN’s (1997, p.156), a valorização dessas
vozes no cotidiano da escola implica pesquisas de cunho literário e também junto à
comunidade, por meio de depoimentos que muitas vezes não têm registros nas escritas
de nossas histórias.
Desenvolvido na área de abrangência do Instituto Federal Fluminense campus
Macaé, o presente trabalho é um projeto integrador, reunindo ações de ensino, extensão
e pesquisa abrangendo:
• O resgate dos textos de Tradição Oral;
• A contação de histórias;
• O fanzine – como suporte pedagógico.

1.1 O resgate
Em 1997, os Parâmetros Curriculares Nacionais já tratavam do tema Pluralidade
Cultural, destacando a necessidade do levantamento e valorização das formas de
produção cultural mediadas pela tradição oral. Segundo os PCN’s (1997) a linguagem
oral pressupõe a investigação das histórias orais em diferentes épocas e contextos, como
transmissoras de uma determinada cultura, tendo em vista preservar e reinventar
valores, normas e costumes no interior daquele grupo social. Daí a sua relevância para a
configuração de nossa memória e identidade. Entretanto, é certo que a memória de um
povo, muitas vezes, acaba desvinculada do currículo formal ou, quando nele está, não é
levada em consideração nas sequências didáticas que, efetivamente, chegam à sala de

sumário 1597
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

aula. Isto fica claro quando o Mec afirma que “frequentemente esse processo complexo
presente na vida brasileira é ignorado e/ou descaracterizado. Na escola, onde a
diversidade está presente diretamente naqueles que constituem a comunidade, essa
presença tem sido ignorada, silenciada ou minimizada”. Ainda, segundo o Mec (1997),
a valorização dessas vozes no cotidiano da escola implica pesquisas de cunho literário e
também junto à comunidade, por meio de depoimentos que muitas vezes não têm
registros nas escritas de nossas histórias. Tratar da tradição oral de diferentes grupos
étnicos e culturais terá, assim, tanto um sentido de exploração de linguagem quanto de
conhecimento de elementos ligados a diferentes tradições culturais. Dessa forma,
literatura, arte e tradição fundem-se valorizando a cultura no cenário educacional.
Antigamente as tradições eram transmitidas apenas oralmente. Para Zumthor
(1985) a voz é mais que a palavra. Sua função vai além de transmitir a língua e mesmo a
cultura – racional e tecnológica – está impregnada de tradições orais e sem elas
dificilmente subsistiria. Com o avanço da tecnologia e a migração, esta forma de
comunicação começou a ficar ameaçada. Mesmo com toda riqueza da cultura popular,
há uma disparidade entre o currículo formal e o ensino da transmissão oral de tradições.
Esse projeto nasceu do desejo de se trabalhar não só a Literatura prevista no currículo,
mas incluir neste a Literatura Oral Brasileira.
O IFFluminense campus Macaé reúne alunos oriundos não só deste município,
mas de diferentes lugares. Nesse contexto, o projeto possibilita a troca entre culturas de
diversas partes do país, oportunizando-se discussões a respeito da diversidade cultural.
Ao aluno recém-chegado é oferecida a possibilidade de conhecer o lugar em que vive,
as culturas produzidas, além de mostrar um pouco de suas raízes, contando as histórias
da cidade de onde veio. Um grande desafio no conhecimento e respeito à diferença
cultural e heterogeneidade de experiências no âmbito escolar. Ao propor aos alunos que
realizem pesquisas relacionadas à literatura oral nas comunidades, estudem a melhor
maneira de fazer a transposição do oral para o escrito e retornem o resultado à
comunidade, proporciona-se a interação entre tradição e ensino acadêmico. Para
desenvolver as atividades os alunos recorrem a conteúdos relacionados a várias
disciplinas. Ao articular diferentes áreas do conhecimento humano, proporciona-se a
integração do que se estuda com o cotidiano buscando valorizar a tradição da oralidade
como patrimônio imaterial e cultural.

sumário 1598
VII Seminário Vozes da Educação

1.2 O contador de histórias


E quando se fala em textos da Literatura de Tradição Oral, a memória já nos
remete à figura do contador de histórias e ao encantamento que estas provocam nos
ouvintes. Não se tem como negar as funções sociais, terapêuticas e pedagógicas dos
contos. Atualmente as pessoas são incentivadas a contar histórias por vários motivos,
entre eles, formar leitores, estimular o imaginário e manter a tradição, perpetuando
elementos culturais através das gerações. É crescente o número daqueles que querem se
dedicar a essa arte.
Busatto (2011) afirma que contar histórias é uma arte rara, pois sua matéria-
prima é o imaterial, e o contador de histórias um artista que tece os fios invisíveis desta
teia que é o contar. Ela traz o contorno, a forma. Reatualiza a memória. O impacto
social do projeto é potencializado ao se trabalhar com essa arte promovendo oficinas e
minicursos destinados a alunos do Curso Normal e a professores do Ensino Básico.
Objetivando ampliar o trabalho com a Literatura Oral na área de abrangência do
IFF campus Macaé, outra ação do projeto traz a proposta de formação inicial de
contadores, que são responsáveis pela transmissão, de forma artística, das histórias
recolhidas nas comunidades pesquisadas. Além disso, contribui com a formação inicial
e continuada de professores que serão, posteriormente, multiplicadores do trabalho com
a Literatura Oral em suas salas de aula. Já afirmava Celso Sisto (2012):

para contribuir com o processo de formação do professor, nada melhor do


que torná-lo um leitor e um contador de histórias. Estabelecido esse elo e este
compromisso, ele nunca mais deixará de crescer e correr atrás de seu
aperfeiçoamento. O processo pedagógico de toda e qualquer escola
certamente estará enriquecido com a inclusão de atividades de contação de
histórias, bem como propiciará a inserção do sujeito na realidade mais ampla
do mundo. Das histórias para o mundo, do mundo para as histórias. Essa é a
recíproca! Mas é preciso fazê-la ser verdadeira! (SISTO, 2012).

Dessa forma, interação entre memória, oralidade, tradição e ensino acadêmico


só enriquecerá ainda mais o processo de formação de todos os envolvidos.

1.3 A fanzinagem
A origem do termo fanzine encontra-se na contração das palavras inglesas
“fanatic” e “magazine”, ou seja, revista do fã. Assim Henrique Magalhães o define

sumário 1599
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Os fanzines são publicações de fãs – ou aficionados – por algum tema


artístico que se dirigem a outros fãs que tenham o mesmo interesse. São
publicações amadoras, sem fins lucrativos, feitas geralmente de forma
artesanal, em pequenas tiragens, que visam à liberdade de expressão de seus
produtores, à troca de informações com o grupo, ao exercício artístico, à
crítica e à divulgação da obra de novos autores. (MAGALHÃES, 2013).

Há fanzines sobre os mais diversos assuntos: de quadrinhos, de ficção científica


e de horror, de música e literário, filosóficos e experimentais e o biograficzine (ou
fanzine autobiográfico), entre outros temas.
Todo o processo editorial do fanzine é controlado por seus autores, desde a
concepção da ideia até a coleta de informações, a diagramação, a composição, a
ilustração, a montagem, a paginação, a divulgação, a distribuição e venda. Para
Henrique Magalhães, professor e quadrinista, essa é uma das características mais
importantes dos fanzines já que dá ao editor maior liberdade de criação e execução da
ideia, embora exija mais tempo e habilidade (MAGALHÃES, 2013).
Já Edgar Guimarães destaca a simplicidade quando se quer fazer um original
para ser reproduzido através de fotocópias já que são necessários pouquíssimos recursos

A maneira mais simples de fazer um original de fanzine, que vá ser


reproduzido em xerox utiliza apenas papel, caneta (ou máquina de escrever) e
cola. O editor escreve ou coleta o material escrito, seleciona as ilustrações,
faz a montagem do material em folhas de papel no formato que vai ser
reproduzido. Após a impressão em xerox de um certo número de cópias de
cada original, o editor deve montar cada exemplar e grampeá-lo
(GUIMARÃES, 2005).

O trabalho ora apresentado é resultante da parceria estabelecida entre os projetos


de extensão “IFanzine”, “Em cada canto, um conto” e “Em cada conto, um
encanto!”. O primeiro auxilia na etapa de transposição artística das narrativas
recolhidas, fornecendo técnicas de criação, ilustração e edição de revistas artesanais, os
fanzines (ou apenas zines). Os dois últimos deram origem ao projeto integrador Resgate
da Literatura Oral: do conto à fanzinagem!. Dessa parceria, nasceu o Traços de
Memória que está em sua terceira edição. Produzido com base no material coletado, o
fanzine tem levado a todo país, de forma artística, os causos, contos, lendas e relatos de
memória da comunidade atendida.
O trabalho com o fanzine, tanto no ambiente escolar como comunitário, tem
ganhado destaque, assim, outra ação propõe a pesquisa sobre o tema, promovendo o
estudo da relação entre o fanzine e o processo formativo do aluno e do professor

sumário 1600
VII Seminário Vozes da Educação

enquanto autores, buscando entender como os mesmos se constituem e se reconhecem


como sujeitos ao experienciarem a função de autoria através da produção de fanzines.
No meio educacional, onde práticas educativas inovadoras buscam despertar
tanto no docente como nos alunos uma educação para autonomia que desenvolva a
expressividade e autoralidade, o uso de fanzines é visto como um caminho viável. Gazy
Andraus defende o seu uso didático e afirma que a produção de um zine é um
processamento criativo prazeroso e faz com que professores e alunos percebam que são
autores em potencial:

um fanzine (ou zine) é na realidade um instrumento que permite ao autor


desenvolver melhor suas ideias que muitas vezes não têm espaço e nem local
propício para serem liberadas, já que o excesso de rigor cientificista
cartesiano oriundo de anos de formatação (e cristalização) no ensino
acadêmico levou a coibir a expressão, prejudicando o desenvolvimento
pessoal no quesito da expressão artística em geral. Os fanzines, então, sob
esse prisma das possibilidades, são imprescindíveis e importantíssimos
catalisadores proeminentes (e agregadores fraternais) que precisam
urgentemente ser adotados nas escolas e até nas universidades (ANDRAUS,
2013).

O uso de fanzines como uma ferramenta pedagógica na escola tem sido tema de
estudos e pesquisas. Professores e pesquisadores favoráveis à utilização dessas revistas
artesanais como recurso destacam vários pontos positivos, entre eles: abordam a
criatividade, a expressividade, a autoralidade e o trabalho em equipe; podem fomentar o
pensamento divergente e a convivência com pontos de vista diferentes; pode-se
trabalhar qualquer componente curricular de forma reflexiva, consciente e criativa;
podem servir como instrumento eficaz de avaliação. Apesar de inovador, o fanzine
ainda tem sido pouco utilizado enquanto ferramenta pedagógica.
Como destacou Andraus, além dos alunos, o fanzine também proporciona aos
professores a percepção de que eles também são autores em potencial. A construção do
conhecimento se faz no contexto da relação pedagógica entre aluno e professor, sendo
necessário diálogo entre os mesmos e que o professor tenha autonomia e capacidade de
autoria.
A construção do conhecimento se faz na relação, no encontro e, portanto,
além do conhecimento intelectual, crítico, exige também afetividade, diálogo
e escuta sensível. Estas exigências requerem do(a) professor(a) atitudes que
tendem sempre mais para a autenticidade, a criatividade, autoralidade e
autonomia, afinal, apesar de preparar-se antecipadamente para suas aulas,
elas acontecerão de fato, na atualidade de cada novo encontro com aquele
grupo de alunos(as), que, a cada dia, traz desafios novos. Se o(a) professor(a)
não tiver autonomia e capacidade de autoria não irá conseguir responder de
forma positiva a estas exigências. (ANDRAUS e NETO, 2010, P. 30)

sumário 1601
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Apesar disso, são escassos trabalhos que apontem reflexões sobre o uso do
fanzine efetivamente empregado por professores no processo ensino-aprendizagem
relacionado ao afeto e a subjetividades em suas produções. Como desdobramento dessa
ação, aponta-se, na etapa posterior ao presente trabalho, uma análise do impacto de uma
fanzinoteca no ambiente escolar.

2. Objetivos:
Além de resgatar a Literatura de Tradição Oral na área de abrangência do
IFFluminense campus Macaé utilizando o fanzine como ferramenta pedagógica
inovadora, o projeto tem os seguintes objetivos:
• Valorizar a cultura no cenário educacional;
• Contribuir na interação entre tradição e ensino acadêmico;
• Coletar as histórias contadas há várias gerações nos municípios da área de
abrangência do IFFluminense campus Macaé;
• Socializar as histórias pesquisadas com a comunidade através de círculos de
leituras, rodas de contação de histórias e/ou outras formas de apresentação;
• Realizar oficinas e minicursos sobre Literatura Oral e contação de histórias;
• Contribuir com a formação inicial e continuada de professores da Educação
Básica;
• Analisar as contribuições do uso de fanzines em diversas disciplinas e etapas
de ensino;
• Aplicar o conceito “faça você mesmo”, propondo atividades em que alunos e
professores articulem texto e imagem utilizando técnicas de ilustração em
suas produções;
• Analisar a relação entre o fanzine e o processo formativo do aluno e do
professor enquanto autores, buscando entender como os mesmos se
constituem e se reconhecem como sujeitos quando experienciam a função de
autoria através da produção de fanzines.

3. Metodologia e execução do projeto


A metodologia utilizada nas ações do projeto possui um enfoque qualitativo já
que tem por base uma lógica e um processo indutivo, explorando e descrevendo para
depois gerar perspectivas teóricas. Neste caso, sendo o professor o pesquisador, o

sumário 1602
VII Seminário Vozes da Educação

mesmo construirá o conhecimento junto aos participantes, seus alunos, consciente de


que é parte do fenômeno estudado.
Segundo Tripp (2005), a pesquisa-ação no campo educacional é uma estratégia
para o desenvolvimento de professores e pesquisadores de modo que eles possam
utilizar suas pesquisas para aprimorar seu ensino e, em decorrência, o aprendizado de
seus alunos. Logo, a metodologia empregada é a pesquisa-ação. Justifica essa escolha o
fato deste tipo de pesquisa ter como finalidade a resolução de problemas cotidianos e
imediatos, a fim de melhorar práticas concretas. Assim, pode-se afirmar que um dos
pressupostos é investigar para intervir.
A pesquisa-ação é caracterizada por ser um processo que segue um ciclo no qual
se aprimora a prática pela oscilação sistemática entre agir no campo da prática e
investigar a respeito dela. Após a identificação do problema, planeja-se uma solução,
implementa-se o que foi planejado, descreve-se todo o processo e avalia-se os
resultados da ação, aprendendo mais no decorrer do processo, tanto a respeito da prática
quanto da própria investigação (TRIPP, 2005). Esse processo pode se repetir, uma vez
que no momento da avaliação outros problemas poderão surgir levando a uma nova
reflexão sobre a prática e a um novo ciclo, por esse motivo afirma-se que esse é um tipo
de pesquisa com passos “em espiral”.
Segundo Minayo (2009), o ciclo de pesquisa não se fecha, já que toda pesquisa
produz conhecimento e gera indagações novas. Mas a ideia de ciclo se solidifica não em
etapas estanques, mas em planos que se complementam. Essa ideia também produz
delimitação do processo de trabalho científico no tempo, por meio de um cronograma.
Desta forma valoriza-se cada parte e sua integração no todo. E pensa-se sempre num
produto que tem começo, meio e fim e ao mesmo tempo é provisório.
Durante todo o processo várias ferramentas são utilizadas para obter e registrar
informações: entrevistas semiestruturadas, gravações em áudio e vídeo, anotações em
um caderno e registros fotográficos. Além disso, são providenciados documentos de
autorização de uso de imagem, texto e voz.

3.1 Etapas do plano de trabalho:


Etapa 1 - Após pesquisa e estudo sobre tradição e Literatura Oral e o uso
pedagógico do fanzine, os alunos das turmas participantes pesquisam em sua família
uma história contada há várias gerações. Depois são agrupados de acordo com o
município de residência. Acompanhados de alunos bolsistas, localizam moradores

sumário 1603
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

antigos para coletar as histórias contadas há várias gerações naquela localidade. O


roteiro de entrevistas é construído previamente assim como o planejamento do material
de uso (gravadores, filmadoras, celulares e demais produtos). Nesse período, os alunos
bolsistas junto a servidores do setor de comunicação produzem cartazes e folder para
divulgação do projeto, tanto na escola como na comunidade. No material produzido
constam a página do projeto nas redes sociais e o endereço de e-mail.
Etapa 2 - O material recolhido durante a primeira etapa é socializado nas turmas
participantes. Após essa socialização, os alunos bolsistas e voluntários, sob a orientação
dos professores, recolhem e selecionam as histórias que passarão pela transposição. Os
critérios utilizados no processo de seleção são previamente definidos pelo grupo
envolvido. Nesse momento, também é avaliado o processo de gravação e a qualidade.
Se após essa avaliação for verificado que a gravação da história selecionada não
apresenta a qualidade necessária ao desenvolvimento da transcrição, uma nova gravação
(da mesma história) é feita pelos alunos bolsistas.
Etapa 3 – De posse das histórias selecionadas, os alunos bolsistas, sob a
orientação dos professores participantes, iniciam o processo de conversão do código
oral para o escrito. No primeiro momento, o grupo deve optar pela simples transcrição,
obedecendo à fidelidade possível da gravação (incluindo perguntas, termos e
construções que não estejam de acordo com a linguagem formal, barulhos, ruídos...).
Terminado esse processo, inicia-se a “transcriação”, ou seja, a “edição”, o processo de
eliminação de perguntas (textualização) e finalização com o texto arrumado. Esses
textos finalizados são submetidos à avaliação e autorização das pessoas entrevistadas
que devem se identificar com os mesmos. Caso algum entrevistado sugira mudanças, o
texto passa por um novo processo de edição, dessa vez, contando com a presença do
entrevistado além dos alunos bolsistas e/ou voluntários e professores.
Etapa 4 – Chegou a hora de editar mais uma edição do fanzine Traços de
Memória. Para isso, são feitas oficinas de fanzine com as turmas que recolheram as
histórias. Essas oficinas são ministradas em parceria com o projeto IFanzine com base
na revisão de literatura feita pelos bolsistas. Durante as oficinas e edição do zine, os
bolsistas, sob orientação do coordenador, aplicam os instrumentos para coleta de dados
sobre o uso do fanzine como uma ferramenta pedagógica nas aulas.
Etapa 5 – Após a edição da revista artesanal, o grupo define outras formas de
uso do material (histórias recolhidas): um livro reunindo todas as histórias, vários
pequenos livros agrupados por localidade, um CD com as histórias contadas, um DVD

sumário 1604
VII Seminário Vozes da Educação

com as histórias e trechos editados das entrevistas ou um documentário, por exemplo.


Deverá ser feito o levantamento de custos para o desenvolvimento do(s) produto(s)
escolhido(s) e meios para conseguir o financiamento.
Etapa 6 – Nessa etapa é feita a socialização do material produzido com as
comunidades pesquisadas, sendo definida a melhor maneira de apresentação (círculos
de leitura, rodas de contação de histórias, lançamento de livro...) e ainda o local (IFF,
associações, bibliotecas, ponto de leitura, escolas...).
Etapa 7 – São realizadas oficinas e minicursos sobre resgate de textos de
Tradição Oral, contação de histórias e fanzines tanto no IFF campus Macaé (abertos ao
público interno e externo) como nas comunidades (universidades, escolas, ponto de
leitura, bibliotecas...). Paralelo a essa etapa também são produzidos artigos visando a
divulgação no meio acadêmico dos resultados alcançados com as atividades
integradoras de ensino, pesquisa e extensão realizadas pelo projeto.
Concomitante à última etapa, é hora de realizar a avaliação final, com base nos
registros feitos durante todo o processo e nos objetivos propostos inicialmente. O
“caderno de campo” é utilizado no acompanhamento das entrevistas e no registro da
evolução do projeto. Nele constam os contatos, os estágios para se chegar à pessoa
entrevistada, como ocorreu a gravação, eventuais incidentes, as impressões e hipóteses
levantadas entre as entrevistas. Também é registrada qualquer reflexão teórica
decorrente de debates que porventura venham surgir. Ao final de cada etapa, o grupo
verifica se os resultados esperados foram alcançados, se houve dificuldades e o que
precisa ser revisto para a etapa seguinte. Após a etapa final, a avaliação externa é feita a
partir de entrevistas ou questionários com uma amostra do público alvo. Já a avaliação
interna tem como referência o cumprimento dos objetivos propostos, a análise dos
cadernos de campo, relatórios e as reuniões com os participantes. Os alunos bolsistas
são avaliados por meio de relatórios e reuniões tendo como referência o grau de
envolvimento, iniciativa, responsabilidade, pontualidade, assiduidade e impactos das
atividades para sua formação pessoal e profissional.

3.2 Ensino, pesquisa e extensão


É indiscutível a importância do tripé ensino, pesquisa e extensão. Entretanto
promover essa integração não é fácil. As atividades de pesquisa são essenciais para a
produção de conhecimentos e a extensão é a forma de levar o conhecimento produzido
pelo ensino e pela pesquisa à comunidade. Manter alunos da graduação e do técnico nas

sumário 1605
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

condições de bolsistas PIBIC, ICJ e de extensão, respectivamente, de um mesmo projeto


integrador permite buscar caminhos que propiciem desenvolver a visão extensionista na
pesquisa desenvolvida fazendo chegar à sociedade os conhecimentos produzidos e, ao
mesmo tempo, traz para o meio acadêmico a demanda de necessidades reais da
comunidade, produzindo uma troca de saberes a fim de promover a transformação da
realidade social.
A indissociabilidade é um princípio orientador do projeto já que há, durante o
período de execução, a produção de conhecimento científico, essa produção
proporciona a intervenção nos processos sociais assim como a transmissão de
conhecimentos na formação profissional e acadêmica de todos os envolvidos,
pesquisador, alunos das turmas envolvidas, alunos bolsistas e membros da comunidade
pesquisada.

4. Resultados e discussão:
Em cada ciclo do projeto, após várias reuniões com a presença de
coordenadores, bolsistas e voluntários dos projetos “Em cada canto, um conto”, “Em
cada conto, um encanto!” e “IFFanzine”, a seleção de histórias coletadas através de
pesquisas escritas e entrevistas orais é publicada no zine Traços de Memória. O
lançamento de cada edição da revista tem sido um momento especial, marcado por
muita emoção. Realizados no auditório do IF Fluminense campus Macaé conta com a
participação da comunidade externa, das equipes dos projetos parceiros e de alunos e
servidores. Nesse evento, além da socialização do referido zine, há visitas de contadores
de histórias e a participação de servidores aposentados e membros da comunidade
pesquisada, com apresentação de relatos de memória. A revista já está em sua terceira
edição, divulgando as histórias coletadas, de forma original e criativa, em todo o país.
Importante destacar, também, a colaboração de servidores do IFF campus
Macaé, em especial dos setores de comunicação e audiovisual, auxiliando a equipe com
os equipamentos utilizados durante todo projeto e as gravações produzidas.
O público envolvido durante o processo contou com a participação de
servidores, alunos do curso Médio Integrado e do Proeja, familiares desses alunos e
outras pessoas das comunidades onde residem, alunos e professores de escolas
municipais e estaduais. Considerando as atividades internas e externas, o projeto já
atingiu cerca de 500 pessoas.

sumário 1606
VII Seminário Vozes da Educação

Dentre os participantes, destacamos um segmento que, na maioria das vezes, fica


excluído de muitas atividades desenvolvidas nas Unidades Escolares: o PROEJA. Quem
atua na Educação de Jovens e Adultos depara-se com a multiplicidade de pessoas de
diferentes gerações. Múltiplas identidades e diversidades que, muitas vezes, são
deixadas de lado no mundo acadêmico, não são levadas em consideração no projeto
político da escola, no currículo, nos projetos de ensino, pesquisa e extensão. Poder abrir
espaço, dar voz a esse grupo, foi muito produtivo, tanto do ponto de vista acadêmico
(para alunos e professor) quanto pessoal. É prazeroso participar de rodas de "contação
de histórias" nessas turmas (quando socializam a pesquisa realizada em suas famílias e
comunidades). É gratificante ouvir depoimentos informando que, por causa da pesquisa
proposta, há um diálogo maior na família: os maisnovos procurando os mais velhos, os
mais velhos "puxando" da memória as histórias contadas pelos seus avós e pais, e
recontando-as aos filhos e netos.
O projeto também possibilita a troca entre culturas de diversas partes do nosso
país. A comunidade escolar é composta de pessoas oriundas não só de Macaé e Rio das
Ostras, devido à intensa migração, há pessoas de Minas Gerais, da região Sul e de várias
cidades do Nordeste. Oportuniza-se, então, discussões a respeito da diversidade cultural,
oferecendo ao aluno recém chegado a possibilidade de conhecer o lugar em que vive, as
culturas produzidas, assim como mostrar um pouco de suas raízes, contando as histórias
da cidade de onde veio. Podemos dizer que "encaramos" um desafio no conhecimento e
respeito à diferença cultural e heterogeneidade de experiências sociais no âmbito
escolar.
A participação dos alunos bolsistas e voluntários tem sido fundamental para o
sucesso do projeto. Os mesmos desenvolvem o trabalho com responsabilidade,
seriedade, autonomia e iniciativa. Destaca-se o empenho no produto final, a revista
Traços de Memória. Depois de muitos recortes, fotografias, desenhos, pinturas..., de
forma artesanal, a revista vai nascendo, e vê-se o empenho de cada um, na produção.
Além dos resultados relatados, destaca-se também:
• Edição de vários fanzines;
• Formação continuada de professores da Educação Básica.
• Formação inicial de alunos do curso Normal e alunos de licenciatura.
• Maior participação dos alunos nas aulas que envolvem produção textual
quando se utiliza o fanzine.

sumário 1607
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

• Desenvolvimento de estratégias facilitadoras da aprendizagem de leitura e


escrita.
• Contribuição para o desenvolvimento do processo de autoria.

5. Considerações e perspectivas:
Dentre várias ações do projeto, continuarão sendo desenvolvidas atividades de
ensino relacionadas ao resgate da Literatura Oral e de relatos de memória e ao uso do
fanzine no meio educacional, assim como as oficinas e minicursos destinados aos
alunos do curso de Formação de Professores e professores da Educação Básica.
O trabalho com os conteúdos ligados à literatura de forma prazerosa, vinculando
a memória do povo a propostas curriculares e didáticas, tem despertado interesse na
comunidade acadêmica. A prática efetiva da indissociabilidade ensino-pesquisa-
extensão constitui-se em instrumento primordial no que diz respeito tanto à formação
continuada dos professores quanto à formação acadêmica de todos os alunos
envolvidos. A equipe dará continuidade à pesquisa sobre Literatura e Tradição Oral e o
uso de fanzines como ferramenta pedagógica, divulgando os resultados através de
publicações de artigos, edições de revistas e participações em eventos.

Referências
ANDRAUS, G. Minhas experiências no ensino com os criativos fanzines de histórias
em quadrinhos e outros temas. In: SANTOS NETO, E. dos; SILVA, M. R. P. da (Org.).
Histórias em quadrinhos e práticas educativas. Volume I: o trabalho com
universos ficcionais e fanzines. 1 a ed. São Paulo: Criativo, 2013.

ANDRAUS, G.; SANTOS NETO, E. Dos zines aos biograficzines: compartilhar


narrativas de vida e formação com imagens, criatividade e autoria. In: MUNIZ, C.
(org.). Fanzines: Autoria, subjetividade e invenção de si. Fortaleza: Edições UFC,
2010.

BUSATTO, C. Contar e encantar: pequenos segredos da narrativa. 7. ed. Petrópolis,


RJ: Vozes, 2011.

GUIMARÃES, E. Fanzine. 3ª edição. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2005.

MAGALHÃES, H. Fanzines de histórias em quadrinhos: conceito e contribuições a


educação.In SANTOS NETO, E. dos; SILVA, M. R. P. da (Org.). Histórias em
quadrinhos e práticas educativas, volume I: o trabalho com universos ficcionais e
fanzines. 1 ed. – São Paulo : Criativo, 2013.

MINAYO, C. de S. (organizadora). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade.


28. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

sumário 1608
VII Seminário Vozes da Educação

Parâmetros Curriculares Nacionais: Pluralidade Cultural, Orientação sexual / Secretaria


de educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.

SISTO, C. Textos & pretextos sobre a arte de contar histórias. 3. ed. rev. e ampl. –
Belo Horizonte: Aletria, 2012.

TRIPP, D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação & Pesquisa. São


Paulo, 2005.

ZUMTHOR. Permanência da Voz. Correio da UNESCO. A palavra e a escrita. Ano


13. Nº 8, 1985.

sumário 1609
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

AS LINGUAGENS INSERIDAS NA PRODUÇÃO DE VÍDEOS COM CELULAR


DE CRIANÇAS DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Bernadete Collares Barroso Bento240


UERJ FFP
bernadetebento@gmail.com

A turma de 3º do ensino fundamental, onde lecionava em 2017, passou por uma


experiência de preconceito racial que deu origem a um vídeo elaborado pelas crianças,
levando a um resultado que vou tentar descrever neste artigo. A ideia de produzir vídeos
com as crianças surgiu de minha trajetória profissional anterior à da educação, na área
de comunicação social, da qual eu sou impregnada, de forma que se torna muito difícil
separar as duas áreas em minhas ações.
Ao chegar à escola e me deparar com o que se chama de “dificuldades de
aprendizagem”, percebi que precisava tornar a experiência escolar um pouco mais
fluida e agradável, incorporando, assim, o uso de vídeos com celular nas nossas aulas,
trazendo uma prática social que já faz parte da rotina de boa parte das crianças.
Os acontecimentos do cotidiano invadem as salas de aula e, muitas vezes, nós
professoras, não sabemos bem como lidar. Percebi que este era mais um ponto em
comum com a comunicação, e como para mim já era uma rotina lidar com o factual e
transformá-lo em pauta, foi quase natural dar ao momento presente mais importância do
que aos conteúdos definidos por quem não fazia a menor ideia de quem éramos nós,
nossos gostos e valores, nossos dramas e alegrias. E foi a partir daí que realizamos
diversos vídeos com o celular sobre temas que emergia no dia a dia.
Esta foi uma maneira que encontrei para tentar reinventar nossas dinâmicas em
sala de aula porque percebia que a grande dificuldade das crianças era ter que aprender
aquilo que não faz sentido para elas. Aqueles conteúdos cheios de dígrafos, encontros
vocálicos, tritongos, ditongos, nomes que precisavam ser memorizados, estranhezas,
inutilidades para crianças tão pequenas e tão vivazes, cheias de capacidade e

240
Mestrado Acadêmico Processos Formativos e Desigualdades Sociais Formação de Professores,
História, Memória e Práticas Educativas

sumário 1610
VII Seminário Vozes da Educação

curiosidades, e tantas vezes cravadas com o conceito de incapazes. Conceito muitas


vezes reforçado quando se compara os filhos dos trabalhadores com os filhos da classe
média, que recebem estímulo desde que ainda estão no útero materno. Que aprendem a
linguagem escrita pela interação social ao qual estão inseridas, porque ouvem histórias,
frequentam cinemas e teatros, ganham livrinhos de presente, enfim, cultivam em si o
desejo de aprender e veem na escola o lugar para tal. Tão diferente das crianças que
estão nas escolas públicas de nosso país, que são extremamente habilidosas no trato
com o meio geográficos, afinal andam a pé e não sempre de carro, desenvoltas
fisicamente porque muitas vezes sobem em árvores, brincam na rua, mas tão pouco
inseridas no mundo da leitura e da escrita, e por isso, não entendem bem o que estão
fazendo na escola. Daí a necessidade se fazer com que a criança se torne um sujeito
ativo em sua aprendizagem, trazendo conhecimentos e experiências que elas vivem em
seu cotidiano.
Surge assim, a ideia dos vídeos com o celular. Uma das vantagens da
elaboração de vídeos é justamente por demandar pela participação de um grande
número de pessoas, e assim, proporcionar a possibilidade de tarefas para todas,
inclusive daquelas que tem a tal “dificuldade de aprender”. As próprias crianças vão se
organizando, com a mediação é claro, afinal, “professora e crianças são parceiras no
processo de aquisição do conhecimento” Zaccur (2012, p.32).
A produção vai exigir conhecimento do tema, abordagens de estética, de
organização, de definição de papeis que vão contribuindo para o desenvolvimento de
todos nós envolvidos, o que vai se configurando com um processo que diminui o
sentimento de desigualdade entre as crianças, fortalecendo a autoestima individual e do
próprio grupo. A interação social vai dando conta de ampliar nosso conhecimento
intrapessoal, vai nos aproximando cada vez mais, dando lugar, ainda à necessidade de
registro, da escrita tão almejada pela escola. Mas não mais uma escrita copiada,
desenhada, mas uma escrita funcional, aquela nascida da situação real, vivida.
Pude perceber que além deste rico processo comunicacional da produção do
vídeo tão intimamente ligado ao processo educacional, esta experiência nos mobiliza
para a utilização de outras linguagens, as corporais, imagéticas, musicais, orais, enfim,
são muitas as formas de expressão que estão implícitas num vídeo. A possibilidade de
expandirmos nossas experiências proporcionam igualmente novas possibilidades para as
crianças, afinal somos um grupo de muitas potências, muitas faces e universos.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Paulo Freire nos leva a perceber que a escola, antes de ser feita de tijolos e
paredes, é um lugar de gente. E por isso precisa de vida, interação, discussão e troca, e
que o ato de educar não pode ser mecânico, antes precisa ser um processo criativo e
prazeroso. Freire diz que “a curiosidade do(a) professor(a) e dos alunos, em ação, se
encontra na base do ensinar-aprender” (2016, p.113).
Outra questão que precisamos ressaltar é que a escola costuma priorizar a
linguagem escrita, e quando fala sobre a oralidade é muitas vezes para ensinar às
crianças que a gente escreve o que se diz. Mas nem sempre é assim, a linguagem oral
tem características impossíveis de serem transcritas, mesmo com todo o aparato das
modernas tecnologias. O olhar, as expressões, os tons da fala necessitam da presença
para serem compreendidos.
A narrativa sobre esta experiência pretende demonstrar o quanto é possível
transformar os momentos vividos em sala de aula em momentos significativos para
todos nós. Basta que estejamos abertos a ver, ouvir, sentir o que se passa no cotidiano
de nosso dia a dia.
Percebo, então, que posso ser uma professora pesquisadora da minha prática,
buscando a reflexão nos processos vividos para dar continuidade à minha trajetória,
considerando que as crianças são agentes diretos de minha formação.

Reconhecer a professora como capaz de teorizar sobre a sua prática é para


nós um princípio teórico-epistemológico que alicerça nossa postura política e
que nos faz considerar a escola como um espaço de teoria em movimento
permanente de construção, desconstrução e reconstrução. (GARCIA, R. L.
2001, p. 21)

Desta forma podemos atualizar aquilo que aprendemos na teoria, todos os dias,
na relação com as crianças em sala de aula e com as colegas com quem convivemos na
escola.

Alguns passos que me trouxeram até aqui


Importante ressaltar que esta forma de trabalhar em sala de aula era resultado de
minha história de vida. Seria impossível pesquisar sem pesquisa-me. Sem rever minha
trajetória de formação.
Tornei-me professora aos cinquenta e quatro anos e ainda hoje me pego tentando
compreender como isso aconteceu. Buscando explicações nos recantos de minhas
memórias, experimento viver “um processo de pôr-se a caminho, nessa busca de

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VII Seminário Vozes da Educação

compreensão de si, de componentes de nossa história, de tomada de consciência do que


nos move, nos interessa, nos guia, nos atrai” (JOSSO, 2006, p.7).
Aceitei assim, o convite de Morais e Araujo (2013) para iniciar minha
dissertação fazendo da escrita um exercício de autorreflexão.

Escrever é uma tentativa. Um exercício de autorreflexão e, portanto, de busca


de autoconhecimento... Escrever é, portanto, um ato criador. Se constitui
como um exercício de transformação pessoal, de ressignificação de
memórias, experiências e sentidos - daqueles tecidos na própria vida e no
mundo. (p.145)

Achei que o jornalismo daria conta da minha inquietação sobre as desigualdades


sociais. Hoje penso que junto com a semente do jornalismo veio junto a semente da
docência, na perspectiva trazida por Frigotto (2017)

A função docente no ato de ensinar tem implícito o ato de educar. Trata-se


de, pelo confronto de visões de mundo, de concepções científicas e de
métodos pedagógicos, se desenvolver a capacidade de ler criticamente a
realidade e constituírem-se sujeitos autônomos. (p.31).

Essa semente foi sendo cultivada num trabalho social realizado por anos através
de um Grupo Espírita que atende crianças em situação de vulnerabilidade social,
momentos em que pude exercer a prática docente de forma um tanto improvisada e que
me motivou a estudar pedagogia, a princípio só para me dedicar melhor a esta tarefa.
Mas, ao longo curso foi despertando em mim uma euforia que pode ser comparada a de
uma adolescente descobrindo sua vocação.
Foi assim que no ano seguinte ao término do curso a partir de uma experiência
bem sucedida em um concurso, me encontrava diante de uma turma de segundo ano do
fundamental de uma escola pública da cidade de Maricá, cidade onde moro.
Embora muito envolvida com a sala de aula, não parei mais de estudar,
acreditando ser este o caminho do diálogo com meus pares que me possibilitaria ter
êxito na tão esperada tarefa que assumira.
Cursei a pós-graduação em Alfabetização das Crianças de Classes Populares na
UFF, com o GRUPALFA, coordenado na época por Regina Leite Garcia. E depois o
mestrado em Processos Formativos e Desigualdades Sociais, na Faculdade de Formação
de Professores da Uerj, com a orientação da professora Mairce Araújo.
O exercício autorreflexivo de rememoração a partir da escrita, confirmando que
“escrever sobre si permite rever e resignificar experiências vividas”, foi me

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

possibilitando tomar a palavra e lutar contra o esquecimento, como defendem Araujo e


Morais (2017).

A defesa que fazemos da escrita docente representa tanto uma luta contra o
esquecimento quanto uma defesa pelo direito à palavra e ao dizer, aspectos
que merecem atenção nestes tempos modernos. Benjamin mais uma vez nos
alerta sobre a necessidade de desenvolvermos sobre as experiências vividas
uma atenção sensível, já que elas se perdem quando as histórias não são
mais conservadas. (1985: 205). Portanto, é preciso (e possível) assumir a
narrativa como um direito ético e estético, como uma forma de olhar a
contrapelo o que se vive e se viveu. E uma das formas de conservar o vivido
é escrevendo. (p. 216)

E assim me sinto mais a vontade de escrever sobre as situações vividas em


minha curta trajetória de professora da escola pública, com a segurança de quem já
pisou neste chão antes. Da possibilidade de me colocar no lugar de meus alunos porque
eu já fui aluna e já senti, o que eles muitas vezes, estão sentindo.

Atenção, gravando!
A narrativa de um dos episódios dos diversos vídeos gravados por nós em sala
de aula, e tem como objetivo de, humildemente, oferecer algumas possibilidades de
enfrentamento dos momentos em que ficamos sem saber o que fazer para nos aproximar
de nossos alunos para sensibiliza-los sobre a importância da construção de
conhecimento na escola.
Acredito que nós professoras precisamos nos encorajar umas as outras, porque
nem sempre é fácil avançar neste lugar que ocupamos, por isso, embora impotentes em
muitos momentos, temos nossos momentos de vitória que precisam ser trocados.
Precisamos fazer ouvir a nossa voz também na academia, foi o que aprendi com Regina
Leite Garcia:

Nós também pesquisadoras de carteirinha, aprendemos com o que ensinamos


para as professoras. Aprendemos a identificar as vozes que falam através das
falas das professoras, nós que antes só ouvíamos uma voz na fala de cada
interlocutor com que dialogávamos. Muda a nossa aluna/professora
alfabetizadora em processo de se tornar pesquisadora do que acontece em sua
sala de aula, mudamos nós professoras/pesquisadoras que, vindo da
universidade, investigamos o que acontece na sala de aula de nossas alunas,
mas que também investigamos o que acontece em nossa sala de aula no
diálogo entre nós e as nossas alunas/professoras, agora pesquisadoras.
(GARCIA. 2001, p.23)

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VII Seminário Vozes da Educação

Sendo assim, vamos para a narrativa. O vídeo Cabelo Crespo começou com
uma criança chorando:

- Tia, quero ir pra casa, e nunca mais


quero voltar nessa escola!

Vou falar com a minha mãe, e nem


adianta que ninguém vai me obrigar!

A afirmativa me pegou de surpresa no momento em que a turma voltava da aula


de Educação Física. Já tinha percebido que Estefany, 9 anos, não tinha uma boa relação
com seu cabelo. Negra, com cabelo crespo, a menina sentia vergonha porque já tinha
passado por uma situação constrangedora em séries anteriores, quando seu prendedor
arrebentou e ela ficou com o cabelo solto, sofrendo forte discriminação por parte dos
colegas. Daí por diante, segundo ela, nunca mais iria ficar com seu cabelo solto
novamente. Uma decisão difícil de ser cumprida, uma vez que os imprevistos poderiam
voltar a acontecer. E foi isso mesmo que ocorreu, depois da aula de educação física, a
aluna ficou com o cabelo bem despenteado e começou a chorar.
Não solicitei ajuda, preferi tentar uma conversa com a menina, o que e deu certo,
porque ela se acalmou. Conseguimos um novo prendedor, e ela foi ficando mais
animada. Sugeri para as crianças da sala, que todos pensássemos sobre o sentimento da
Estefany, tentei sensibilizá-los. Fomos todos para casa com aquela questão mal
resolvida, e voltei no dia seguinte com uma vasta pesquisa sobre cabelos crespos para
compartilhar com a Estefany e a turma.
A leitura de Frantz Fanon (2008) me ajudou a perceber que a dificuldade de
aceitação do cabelo poderia ser somente a ponta de um iceberg. A questão central é a
cultura de sujeição imposta pela colonização. A partir daí pude perceber com mais
nitidez o que se passava com a Estefany, questões que não enxergava pelo fato de não
ser negra e estar protegida pelo meu fenótipo branco. Posso empaticamente me
solidarizar com ela e tentar me colocar em seu lugar. Posso supor, mas não posso
realmente sentir o que ela sente. Principalmente, porque não vivo o que ela vive.
Começamos a realizar um trabalho de valorização do cabelo crespo envolvendo
também as famílias, e assim surgiram sugestões de vídeos com adolescentes e crianças,

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

youtubers, relatando como cuidam e gostam de seus cabelos crespos, ensinando a fazer
lindos penteados, falando sobre os produtos que valorizam os cachos e como lidar com
isso de forma natural. O tempo foi passando e nossas atividades em aula giravam
sempre em torno deste tema, elaboramos textos, fizemos um dia da beleza, enfim,
conversamos bastante sobre as diversas opiniões e as crianças puderam colocar
livremente seus preconceitos, sendo ouvidas e convidadas a refletir sobre isso.
E logo iniciamos o processo de elaboração do vídeo. Já tínhamos bastante
conhecimento sobre o tema e começamos um roteiro. Teríamos o depoimento da
Estéfany, entrevistas com professores negros, e dicas de cuidados com o cabelo crespo.
Raquel foi a entrevistadora de um dos grupos, com sua folha na mão se
preocupava em seguir o roteiro que elaboraram juntos.

Raquel – Seu cabelo é liso ou


crespo? Raquel: Você já sofreu
bullying?

Prof. Ruttyê – Crespo.


Prof. Ruttyê – Já sofri bullying por causa do
cabelo, na escola, no terceiro ano, na idade
que vocês estão. As pessoas gostam de falar
Raquel: Sua mãe é
negra? de quem é diferente né?

Prof Ruttyê –Não, minha mãe é


branca.

Professora Ruttyê – Sim, quando eu


era menor meu cabelo era muito cheio,
cheio. Eu não sabia cuidar do meu cabelo.
Raquel – Alguém já falou mal de
Eu queria alisar ele, e eu queria soltar o meu
você por causa do seu cabelo
cabelo, as crianças soltavam, todo mundo ia
crespo?
para a escola de cabelo solto, eu queria ir de
cabelo solto também. E ele ficava muito
cheio porque eu tenho muito cabelo.

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VII Seminário Vozes da Educação

Outro entrevistado foi o mestre da Banda da Escola, Julio Cesar Avelino:

Raquel - Você já sofreu


bullying por ser negro?

Júlio – Já, quando eu tinha meus dez anos de idade, eu estudava na


Escola Municipal Clotilde, no município de Saquarema, onde havia alguns
alunos mais velhos que eu e praticavam bullying sim por causa da minha
cor. Mas não chegou a me afetar muito porque eu sempre fui muito
maduro e sabia que não passava de uma brincadeira de mau gosto, mas eu
sofri bullying até os meus 15 anos. Mas consegui superar e estou aqui
trabalhando na escola Maurício Antunes do que eu muito me orgulho.

Era muito bom perceber o quanto esses pequenos vídeos realizados com o
celular da professora, estavam possibilitando as crianças a explorar novas possibilidades
na escola, onde elas vão se colocando como protagonistas de suas próprias histórias,
descobrindo sentido na troca de experiências e no debate de ideias.
Como foi o caso da discussão do racismo, que não estava planejada, mas surgiu
no cotidiano da sala de aula. E não podia ser desprezado, como tantas vezes fazemos
por não ser o “assunto da aula”.
O efeito era muito mais surpreendente do que podia imaginar no início. A
possibilidade de discutir a temática do racismo encorajou diversas outras crianças, que
não se reconheciam negras, a se colocarem e a perceberem o que tinham em comum
com Estefany. Quase todas as meninas chegavam à escola com seus penteados cheios
de trancinhas e birotes. Isso foi demais!
Sem falar da própria Estefany, que a partir do enfrentamento da situação chegou
um dia à escola com seu cabelo solto, bem penteado, com uma linda tiara, sem ter
vergonha e sem sofrer assédio dos colegas, que acharam bacana a novidade. Ela ganhou
o respeito de todos e virou referência para seus colegas.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Tia, descobri que meu cabelo solto fica


parecendo uma coroa, e agora eu me sinto
uma rainha!

Ela estava na verdade plagiando uma das afirmações ouvidas na internet de uma
youtuber, mas não importava, o importante foi o importante passo dado na direção da
construção de sua identidade.
Pude perceber que tratar destas questões na sala de aula foi muito importante
para que as crianças pudessem refletir sobre a sociedade em que vivemos, onde ser
branco é sinônimo de privilégios e de valorização, especialmente, considerando que
cerca de 80% das crianças de nossa sala são afrodescendentes, mas com grande
dificuldade de se reconhecerem como negras.
Acredito que seja na verdade por pura defesa, em busca de escapar do
preconceito cruel, que de forma bem velada muitas vezes, ainda tenta colocá-los em
uma situação de subalternidade, herança de um longo período de escravidão a nossos
descendentes foram submetidos. Longe de ser uma situação isolada, a nossa sala de aula
serviu de palco para uma situação social grave em nosso país. E como todo problema
social, é responsabilidade de todos,
As entrevistas se consolidaram como uma continuidade de nossas rodas de
conversa, oportunidades de novos diálogos, de novas experiências. As muitas palavras
vão se tornando uma voz coletiva, vai se constituindo como diálogo. Como nos diz
Barbero (2014) dialogar é arriscar uma palavra ao encontro não de uma ressonância, de
um eco de si mesma, mas sim de outras palavras, da resposta de um outro. (p.33).
Através das entrevistas tudo o que já tinha sido dito em sala, os vídeos que assistimos,
os textos que lemos faz muito mais sentido, ganha um aspecto mais humano, mais real.
Barbero (2014) nos fala sobre a importância do diálogo por consolidarem nossas
identidades:

Dialogar é descobrir na trama de nosso próprio ser a presença dos laços


sociais que nos sustentam É lançar as bases para uma posse coletiva,
comunitária, do mundo. A palavra não é um mundo à parte, mas faz parte da
práxis do homem: “a justiça é o direito “a palavra”, pois é a possibilidade de
ser sujeito em um mundo onde a linguagem constitui o mais expressivo lugar
no “nós”. (BARBERO, 2014, p.33/34)

sumário 1618
VII Seminário Vozes da Educação

Dessa forma, as palavras pronunciadas se tornavam também palavras escritas, e


ao escrever surgem as dúvidas ortográficas, - Tia como se escreve crespo mesmo?
perguntava Marcela enquanto elaborava as perguntas para a entrevista sobre cabelos
crespos. Dúvidas que iam sendo esclarecidas pela professora ou por outra criança do
grupo, naturalmente, sem a rigidez do errado repete. Palavras encarnadas, como diria
Freire, que possibilita ao sujeito expressar-se, criar e recriar. Sem necessidade da
bendita caneta vermelha que tantas vezes destrói as possibilidades das crianças de
aprender com suas dúvidas e erros.
Os cabelos crespos, a cor da pele, o formato dos lábios, características
fenotípicas, que, tantas vezes, são ridicularizadas, ampliando as dificuldades em ser
negro na sociedade, experiência comum para a maior parte do grupo, dava à produção
daquele vídeo um significado especial para as crianças. Aprender a escrever a palavra
crespo fazia muito sentido. “A leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura de
mundo, mas por uma certa forma de escrevê-lo ou de reescrevê-lo, ou seja, de
transformá-lo a partir de uma prática consciente” (Freire, 1982, p. 13).
A revolta de Estefany com seu cabelo, bem como os desdobramentos
provocados pela situação, nos levou ao que Freire definia como tema gerador e palavra
geradora, ou seja, um evento que representava uma das “situações locais que abrem
perspectivas para análise dos problemas regionais e nacionais” (Freire, 1979, p. 43).
Quando a situação emerge do cotidiano tem uma potência muito maior do que
tratamos sobre este tema simplesmente porque era mês da consciência negra, por
exemplo. Ou porque ele estava nos conteúdos mínimos do trimestre. O tema surge a
partir de uma situação real do cotidiano, que teve espaço para se expandir e se
transformar em escuta atenta para todos. Uma questão que a principio poderia ser
tratada como disciplinar, encerrada ali mesmo com medidas punitivas ou até ser
encaminhada para a Orientação Educacional, tomando dimensões punitivas ainda
maiores, se transforma numa oportunidade para a construção do pensamento crítico e
para a elaboração de ideias novas.
Escutar a criança em sala de aula é trazer sentido para a própria aula, é também
oportunizar o conhecimento uns aos outros, deixando fluir nossos sentimentos, nossas
opiniões, que também vão sendo construídos com essa prática. Para Cecília Warschauer
(1993) a escola é um mundo de contrastes, habitado por outras histórias além da
documentada, saberes que são trazidos de outros ambientes, que pertencem às histórias

sumário 1619
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de vida dos sujeitos presentes, num cruzamento que constrói e reconstrói os sujeitos
diariamente.

Registrar o não-documentado passa a ser de grande interesse para a


compreensão da complexidade da escola. Da mesma forma, uma única sala
de aula também é um mundo complexo, cheio de contrastes. Penetrar em seu
interior, registrando sua(s) história(s) é também caminhar no sentido de um
aprofundamento da compreensão das relações ali estabelecidas entre seus
habitantes e o conhecimento. A organização de seus espaços e tempos
obedece a uma certa lógica, que corresponde ao compromisso que se
estabelece ali com o conhecimento. (WARSCHAUER, 1993, p.31)

Entrecruzando essas histórias o aprendizado vai se tornando mais significativo


porque vai ter relação diretamente com a vida de cada um, e deixa de ser uma sucessão
de conteúdos que precisam ser memorizados porque não faz nenhum sentido.
A incorporação do acontecimento do cotidiano como conteúdo de estudo e de
aprendizagem favoreceu novas disposições para o enfrentamento das possíveis
dificuldades com a leitura e a escrita. O projeto do vídeo sobre a discussão em sala
provocou a necessidade de vários materiais escritos.
Mas o que precisa ser ressaltado é que para a elaboração do vídeo as crianças
não se limitavam a escrever, exercitavam outras habilidades que vão além do
tradicionalmente se aprende na escola, como o a articulação necessária entre elas para
convidarem professores e funcionários negros da escola para serem entrevistados,
atividades que provocaram a necessidade de muita negociação, posicionamentos,
exercícios de liderança, distribuição de tarefas, entre outras, criando condições
favoráveis à formação “de pessoas críticas, de raciocínio rápido, com sentido de risco,
curiosas, indagadoras” (Freire, 2000, p. 100).
Para Freire, a leitura de mundo é a dimensão política da educação. Portanto
possibilitar situações onde as crianças se expressem é trabalhar esta dimensão política,
sua formação cidadã. É possibilitar uma educação para além da codificação e
decodificação, onde a criança deixa de ser objeto para se transformar em sujeito.

sumário 1620
VII Seminário Vozes da Educação

Bia tinha um cabelo diferente

A história é de uma menina


chamada Bia que tinha um cabelo
diferente. Todos zombavam dela por
causa de seu cabelo. Um dia ela viu
que tinha um cabelo maravilhoso
para tirar foto e todos queriam ter o
cabelo igual ao dela.

Raquel, 8 anos

Desta forma a professora se torna uma mediadora no processo, e isso não é


possível quando pensamos numa educação que privilegia a transmissão de
conhecimento em detrimento da capacidade investigadora das crianças. Deixando de
fora “possibilidades de conhecer de diferentes grupos sociais que beberam em outras
tradições, desprezando suas formas de aprender, colocando à margem outros
conhecimentos e outros processos cognitivos” (Perez, 2009, p.114). Pensar nestas
outras possibilidades é considerar que existem outras formas de compreensão e
percepção.
Ao estudar o uso de tecnologias na educação, percebemos que os artefatos
tecnológicos podem ser utilizados para alienar as crianças, quando deveriam ser
instrumentos para libertá-las, ao serem colocados a serviço do diálogo, da troca e da
construção coletiva. Se o uso das tecnologias estiver somente voltado para o consumo e
para a recreação vai contribui para alienar, mas se tivermos intencionalidade educativa
elas podem se tornar potentes mecanismos de crescimento. Primeiramente porque
estimula o trabalho interativo, multidisciplinar e mais significativo para as crianças.
Freire nos diz que: “De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem
nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude
de tudo isto, terminam por se convencer de sua incapacidade” (FREIRE. 1987, p.50).
Penso que a escola e os sistemas educacionais precisam pensar sobre como
estamos trabalhando, e eu estou me incluindo porque pertenço a este lugar. Trazendo
Freire (2011) para esta reflexão podemos inserir as novas tecnologias como ferramentas

sumário 1621
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de diálogo, afinal ele nos ensinou que ensinar não é transferir conhecimentos, mas criar
possibilidades para a sua própria produção ou construção.
Privar as crianças das escolas públicas destas tecnologias é privá-las do próprio
acesso à cidadania e ao mundo do trabalho, dois eixos que fundamentam a própria
escola.

Pois, enquanto os filhos das classes favorecidas entram em interação com o


ecossistema informacional e comunicativo a partir de seu próprio lar, os
filhos das classes populares - cujas escolas públicas não têm, em sua imensa
maioria, a menor interação com o ambiente informático, escolas que são para
eles o espaço decisivo de acesso às novas formas de conhecimento - estão
ficando excluídos do novo espaço laboral e profissional que a cultura
tecnológica propõe. Vemos, portanto, que há uma carência de demandas de
comunicação no espaço educativo e que o acesso a elas não é democrático.
(BARBERO, 2000, p.109)

Múltiplas concepções e práticas circulam na escola, e por lutarmos por estar na


contramão de uma prática mecanicista, conseguíamos finalmente compreender que se
aprende a ler, lendo, e a escrever, escrevendo. Importante aqui colocar uma questão: de
onde vem tanta dificuldade em se percorrer novos caminhos na prática alfabetizadora se
reflexões, pistas, propostas inspiradas em novas concepções estão presente na escola?
Pergunta complexa para respostas complexas, que não pretende colocar nas costas das
professoras e suas metodologias todo o peso do fracasso escolar, nem reafirmar a
primazia da teoria sobre a prática, mas que continua a nos desafiar cotidianamente.
Temos aprendido que a tarefa da professora não é a de repassar conteúdos, mas
sim de organizar condições para o aprendizado desses conteúdos, e levar as crianças a
perceberem que estes conteúdos são importantes para a compreensão e a intervenção na
realidade em que vivem. (Araújo, 2001) Para isso a metodologia utilizada deve ser
capaz de fazê-las perceber a necessidade desses conhecimentos.
Até porque os saberes não são propriedades das escolas, eles chegam até as
crianças por diversos meios, e não obedecem a uma ordem temporal, a criança aprende
o tempo todo, aliás todos aprendemos o tempo todo, mas o uso tão intenso dos meios de
comunicação é algo novo. Trata-se de uma nova relação com o conhecimento para a
qual a escola precisa estar mais bem preparada. Para Barbero (2014) estamos diante de
uma reformulação de ofícios e profissões, o que não significa o desaparecimento do
espaço-tempo escolar.
Mas as condições de existência desse tempo, e de sua particular situação na
vida, se veem transformadas radicalmente não só porque agora a escola tem
que conviver com saberes-sem-lugar-próprio, mas porque inclusive os

sumário 1622
VII Seminário Vozes da Educação

saberes que nela se ensinam encontram-se atravessados por saberes do


ambiente tecnocomunicativo regidos por outras modalidades e termos de
aprendizagem que os distanciam do modelo de comunicação escolar.
(BARBERO. 2014, p.83).

A escola precisa se colocar neste novo espaço/tempo de forma a demonstrar que


tem um papel fundamental na formação do olhar crítico sobre tantos saberes circulantes
nesta diversidade de ambientes em que as crianças circulam. E assumir como
protagonista de seu papel mediador destes conhecimentos.

Uma conversa que não se encerra


A experiência de fazer vídeos com as crianças foi me ensinando sobre a
importância do protagonismo na construção do conhecimento. Como professora
alfabetizadora, pude observar uma participação mais ativa das crianças no processo
pedagógico, talvez por uma quebra na hierarquia dos saberes, na medida em que elas se
sentiram potencializadas para revelar suas lógicas e visões de mundo. Crianças que,
anteriormente, pouco se expressavam participavam de forma ativa, uma vez que seu
conhecimento era bem-vindo para o sucesso de nossos projetos. E assim, ao oportunizar
a participação, as crianças se sentiam mais pertencentes ao grupo, ficavam mais
confiantes e seguras.
A minha atenção de início era refletir sobre a dificuldade de alfabetizar as
crianças das classes populares e chego aqui certa de que a dificuldade está em mim, de
como eu enxergava as crianças como sujeitos passivos neste processo. Fui caminhando
e hoje posso falar o quanto esta experiência com os vídeos me ajudou a refletir sobre a
prática alfabetizadora. E que contribuições isso pode trazer para pensar uma
alfabetização das crianças das classes populares, em que elas se assumam como sujeito
na perspectiva freiriana, que elas tenham espaço para falar, pra pensar e mostrar o que
elas sabem sobre o mundo e sobre a sociedade.

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Leite Garcia (org.) São Paulo: Cortez, 2012.

sumário 1624
VII Seminário Vozes da Educação

MULHERES SEM LEITURA E SEM ESCRITA NA REPÚBLICA


“DEMOCRÁTICA”

Aline Bernar
UFF/ CAPES
alinebernar@yahoo.com.br

Pode constituir para alguns leitores um grande escândalo ler a obra O ódio à
Democracia, de Jacques Rancière (2014). Um escândalo que o próprio Rancière explica
pela insociabilidade natural e original dos homens. Segundo ele, as razões que levaram
os homens a fundar governos teriam vindo depois da chamada “democracia” – que
rompe com a lógica de que os que têm títulos exercem autoridade sobre aqueles que não
têm.
Consoante a esse raciocínio, a chamada “democracia” não é uma forma de
sociedade porque além de ser fantasiosa a expressão “sociedade democrática”, da
mesma maneira, as sociedades sempre foram organizadas pelos jogos das oligarquias –
exercidos por uma minoria sobre uma maioria.
O que conhecemos como “democracia” também não constitui uma forma de
governo, sendo esta afirmação mais esclarecida pela distinção entre “democracia direta”
e “democracia representativa” ou ainda “realidade” e “utopia”, respectivamente.
A “democracia direta” era adequada para as cidades gregas antigas porque
apenas uma minoria representava os homens livres. As mulheres e escravos não
estavam aptos a escolherem seus representantes e, dessa forma, essa função estava
diretamente nas mãos de poucos. A eleição direta, segundo Benjamin Constant,
constitui, como assinala Rancière (2014), o único e verdadeiro governo representativo.
Contudo, quando se fala em “democracia representativa”, não se considera que a
representação tenha vindo sanar as dificuldades talvez enfrentadas pela “democracia
direta” no que tange ao crescimento populacional daqueles sujeitos aptos a eleger um
representante. Desde a sua história, todo e qualquer tipo de representação foi a
representação de estados, ordens ou instituições, quer pelo título que é conferido a
poucos, quer por um poder soberano que lhes consulta.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Diferentemente do que se pensa, a eleição, como ensina Rancière (2014), não


configura em si uma forma democrática pela qual o povo faz ouvir sua voz. Na
verdade, a eleição é “a expressão de um consentimento que um poder superior pede e
que só é de fato consentimento na medida em que é unânime”. Evidencia-se que os
traços que ligam e identificam a chamada “democracia” à forma de governo
representativo pelo processo da eleição são recentes na história da política.

O Primeiro escândalo: a democracia como oximoro:


É então que se ouvem ecos dos primeiros traços do escândalo apresentado por
Rancière (2014): “A representação é, em sua origem, o exato oposto da chamada
“democracia”. Segundo ele, esta encerra nela mesma uma grande contradição: Se o que
se conhece como “governo representativo” sugere aquele governo pelo qual, através de
uma eleição, uma minoria representa os principais interesses da grande maioria
conhecida como “povo”, esta não é senão, o oposto ao que deveria ser identificada
como “democracia”.
Tendo como princípio que “democracia” e “representação” estão em
relação exata de oposição, mais lógico seria que esta, a qual se chama “democracia
representativa”, tivesse um outro nome, pois que não está fundada nos interesses do
“povo”, mas sim em uma manutenção dos privilégios das elites.
Se as formas jurídico-políticas das constituições e das leis do Estado não
repousam jamais sobre uma única e mesma lógica, isto quer dizer também que o poder
conhecido como “poder do povo” está sempre aquém e além dessas mesmas formas.
Isto é: o “poder do povo” é o poder dos incompetentes que tenta negar o poder dos
competentes.
Pensando nas esferas dos que se acham ou são tidos como competentes
para governar a maioria e a dos julgados ou sabidos incompetentes por essa mesma
minoria, aparece a relação ou encontro entre o público e o privado. A função mais
recorrente de todo governo é exatamente estreitar a esfera pública e transformá-la em
assunto privado. Contudo, longe de ser uma forma de vida de indivíduos empenhados
em sua felicidade privada, conforme assinala Ranciére (2014), a democracia seria
exatamente o processo de luta contra essa privatização.
Outra contradição ou equívoco é pensar que “ampliar a esfera pública” – e essa é
uma expressão usada de forma corrente na política, ao longo da história - seria tentar
sanar os problemas e exigir uma maior intervenção do Estado na sociedade, ou seja, ser

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VII Seminário Vozes da Educação

democrático. Pelo contrário: a democracia é essencialmente um processo de luta contra


essa ampliação, é uma luta contra a divisão do público e do privado, o que acaba por
favorecer uma dupla dominação, exercida obviamente, entre ambas as partes.
Contudo, essa ampliação trouxe alguns ganhos: embora não significasse
intimamente uma resolução de problemas, essa ampliação da esfera pública conseguiu
fazer com que fosse reconhecido o caráter público de tipos de espaço e de relações que
antes estavam exclusivamente à mercê da riqueza e das oligarquias.
Esses ganhos significaram lutas para incluir, por exemplo, os eleitores que a
lógica política excluía naturalmente: aqueles que não possuíam títulos para participar da
vida pública e que estavam delegados apenas à vida doméstica e reprodutora, como as
mulheres – pessoas que, por seu trabalho, pertenciam a um senhor (ou pai quando
solteiras) ou a um esposo (quando casadas) e que eram, sobretudo, incapazes de vontade
própria.
Esses ganhos significaram ainda algumas lutas contra a lógica natural do sistema
eleitoral – na tentativa de transformar em “representação legítima”, aquela que era a
representação apenas dos interesses dominantes. Esse tipo de luta foi descrito
posteriormente como “movimento social” por conta do teor das discussões propostas.

Representação como uma literatura “menor”?


Na obra “Kafka – Por uma Literatura Menor”, Deleuze e Guattari explicam que
uma literatura considerada “menor” não é aquela pertencente a uma língua menor, como
o alemão de Praga, no caso de Kafka, mas uma literatura que uma minoria de falantes e
leitores constrói em uma língua considerada maior. Esse aspecto significativo foi
também visto por outro ângulo quando Jacques Rancière (2014), na obra Ódio à
Democracia, abordou sua concepção de “sociedade democrática” – um poder que se
exerce também por uma minoria sobre uma maioria.
Relembro aqui da conversa como metodologia – cujo princípios adotei na
dissertação de mestrado – e coloco-a em contato neste texto com a sociedade
democrática, pois acredito que ambas se relacionem. No Projeto “Vida em Movimento”,
mantido pela prefeitura de Itaboraí, Estado do Rio de Janeiro, essa literatura, dita
“menor”, trazida por Gilles Deleuze e de Félix Guattari (2003), ganha vida aos olhos
daqueles que tentam percebê-la e discuti-la. A justificativa para essa afirmação pode
estar na percepção de que aquelas mulheres, sujeitos da pesquisa e não sujeitadas a ela,

sumário 1627
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

apresentam e reúnem diversas condições que as colocam em uma posição de


subalternização dentro de sociedade reconhecidamente excludente desde suas origens.
Quando Gayatri Spivak (2010) pensou a condição do subalterno em sua obra
Pode o Subalterno Falar?, foi o sujeito feminino – recorrentemente subalternizado pela
história das humanidades a invocar ainda maior reflexão: “Se no contexto da produção
colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno
feminino está ainda mais profundamente na obscuridade” (SPIVAK, 2010: 67).
O pensamento trazido por Spivak (2010), a respeito da obscuridade e
subalternidade do sujeito feminino faz reconsiderar e olhar novamente questões que não
couberam na dissertação de Mestrado intitulada “Criança sem escola, terceira idade na
escola – conversas e lembranças sobre cotidiano escolar”241 e que avançaram para a tese
de Doutorado.
Em primeiro lugar, os sujeitos de ambas as pesquisas são todas mulheres e essa
é, por si só, uma questão que abarca séculos de submissão; em segundo lugar, são todas
pobres; em terceiro, são todas negras em quarto, são todas idosas e, em quinto, são
analfabetas em fase de alfabetização. Elas são, assim como coloca Spivak (2010),
sujeitos subalternos femininos e carregaram durante anos todo o peso que essa
“bagagem especial” pode ou deve suportar.
A partir dessa mesma perspectiva, subalterna e feminina, surge a diferença entre
o conceito de “menor” e o conceito de “minoria”. As categorias relatadas sobre esses
sujeitos não constituem em si uma questão de minoria, pelo contrário, esses sujeitos
estão inseridos em grandes maiorias, contudo, maiorias historicamente subalternizadas e
sem voz: mulheres, negros, pobres, idosos e analfabetos. E essa maioria pode ser ainda
mais significativa para a pesquisa doutoral em andamento: quando essas maiorias
subalternizadas têm seus discursos categorizados como ilegítimo e sem razão, assim
como o discurso da criança, do idoso e do louco. São discursos sem credibilidade, seja
porque são realizados por sujeitos “incompetentes” segundo a ordem política ou
incoerentes (como no caso das crianças, dos loucos e dos idosos) ou ainda porque esses
mesmos sujeitos não podem falar, são subalternizados historicamente por excelência.
Os sujeitos que compuseram a pesquisa realizada no âmbito do Mestrado em
Educação reúnem todas as condições para ocupar o lugar de uma minoria excluída
dentro de uma maioria excludente. Mas fato é que essa composição é exatamente

sumário 1628
VII Seminário Vozes da Educação

oposta: São sujeitos que representam uma maioria, mas uma maioria tida como
incompetente e subalternizada por uma minoria que se julga ou é tida como superior e
competente sobre os demais.
Sendo mulheres idosas, esses sujeitos, hoje, enfrentaram durante anos, o
machismo de seus pais e maridos (muitos hoje já falecidos) e sendo pobres e negras, só
hoje encontram espaço em um projeto mantido pela prefeitura para realizarem o sonho
de toda uma vida: a aquisição da leitura e da escrita.
Ao a refletir sobre a subalternização, silenciamento ou ocultação do Outro, uma
importante contribuição surge com o texto “Ciencias Sociales, violência epistemica y el
problema de la invención del otro” em que Santiago Castro- Gómez fala da “invenção
do outro”. O autor explica que ao falar em invenção, não está apenas fazendo referência
ao modo como um certo grupo de pessoas se apresentam mentalmente a outras, mas sim
nos dispositivos de poder a partir dos quais essas representações são constituídas.
Santiago Castro-Gómez (2005) traz para a discussão a pesquisa de Beatriz
Gonzáles Stephan que identificou três práticas disciplinares que contribuíram para forjar
a cidadania dos latinos americanos do século XIX, a saber: as constituições, os manuais
de urbanidade e as gramáticas da língua. E ainda coloca: “Beatriz Gonzáles constata que
estas tecnologías de subjetivación poseen un denominador común: su legitimidad
descansa em la escritura” (CASTRO-GÓMEZ, 2005).
Este último fator apontado por Beatriz Gonzáles pode contribuir em muito para
elucidar a reflexão proposta neste presente texto, pois Santiago Castro-Gómez explica
que escrever era um exercício que, no século XIX, respondia à necessidade de ordenar e
instaurar a lógica da civilização. A palavra escrita escrevia leis e identidades e
organizava a compreensão do mundo em termos de inclusão e exclusão.
Se o projeto de fundação de uma nação se faz, como lembra Santiago Castro-
Gómez (2005), mediante a implementação de instituições legitimadas pela letra, como
escolas, hospícios ou prisões e de discursos hegemônicos, como mapas, gramáticas,
constituições, manuais ou tratados de higiene, esta fundação se faz pela regulamentação
da conduta dos sujeitos. São demarcações que estabelecem ou reafirmam a fronteira
entre uns e outros e, como salienta ainda o autor, “transmitem a certeza de existir o
dentro e o fora dos limites definidos por essa legitimidade escrituraria”.
Santiago Castro-Gómez e Beatriz Gonzáles Stephan (2005) ajudam a ver que
essas mulheres, sujeitos ativos que são na realização da referida pesquisa, não
realizaram apenas o sonho de terem seu processo de alfabetização iniciado, pois

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

considerar o movimento feito por esses sujeitos apenas como a realização de um mero
sonho seria torná-lo ainda menor, provavelmente.
Essa busca pela escola na “terceira idade” não se trata apenas de realização de
um sonho, pois é bem maior que isso. Essas mulheres, hoje na faixa etária dos setenta
ou oitenta anos de idade, trazem em si as marcas não só da subalternização de uma
mulher, empregada doméstica, negra, pobre e analfabeta, mas ainda permanecem nelas
a negação de uma cidadania ambientada e normatizada também e principalmente pela
ausência da escrita. Sem a escrita, sem saber escrever, elas não poderiam sentir-se
cidadãs autorizadas a intervir e atuar socialmente.
Com isso, a importância de se tentar entender a dimensão do saber escrever para
aqueles que não o fazem na infância, quando ainda não são capazes de antever essas
questões. Essas mulheres buscaram a escrita durante toda a vida, sentiram vontade de
conhecer as primeiras letras na infância e viram-se impossibilitadas por inúmeras
circunstâncias políticas e sociais. Umas eram proibidas pelos pais de frequentarem a
escola, outras na vida adulta pelos maridos, outras ainda porque todos diziam que escola
não era lugar para elas.
Não satisfeitas, outras tentativas ainda vieram, mas sem êxito por conta de tantas
objeções. Mas mesmo depois de idosas, ainda que conseguissem gerir suas vidas com
ou sem ajuda de terceiros, sentiam a necessidade de integrar-se à vida social e política
de sua comunidade e a chave para adentrar esse mundo não poderia ser outra:
precisavam saber escrever, precisavam inscrever-se socialmente, precisavam da
escritura e da leitura.
Assim como a chamada “democracia representativa”, aos olhos de Jacques
Rancière (2014), a escrita pode também ocupar esse lugar paradoxal diante daquilo que
oferece, parece oferecer ou rejeitar.
Assim, Freire (1989) e Spivak (2010) revelam, com a questão da subalternidade
e da leitura de mundo, respectivamente, as duas faces da escritura vistas em Foucault e
politicamente relacionada em Castro-Gómez (2005). A primeira questão, a
subalternidade, é sempre favorecida quando a justificativa é a ausência de conhecimento
sobre o uso das letras. A segunda questão, a leitura de mundo, traz para a discussão não
apenas a leitura que essas mulheres fazem do mundo, pois é, principalmente, ao
olharem para si mesmas e para suas condições subalternas que puderam, finalmente,
construir uma perspectiva de ruptura.

sumário 1630
VII Seminário Vozes da Educação

Não é tarefa fácil romper com a subalternidade e é exatamente isso que essas
mulheres mostram ao encarar um processo de alfabetização na terceira idade. Elas
perceberam o que muitos não percebem, elas tentaram romper com o ciclo quase que
vicioso da subalternidade e com as vozes dos grupos dominantes em um ciclo em que o
sujeito subalterno está sempre tentando sair, mas muitas vezes sem êxito.
Diante da falta da escrita, a subalternidade se acentua e as faltas se acumulam:
falta o emprego, falta a cidadania, falta o voto, etc. Então, o sujeito busca a escrita
(mesmo diante de tantas vozes dizendo que nunca vai conseguir) e, quando finalmente
pensa que conseguiu, a subalternidade volta a aparecer e as justificativas também se
acumulam: é tarde demais, nunca poderá competir com os demais, já não precisa votar
para eleger seus representantes, ou foi tudo em vão.
O sujeito subalterno corre sempre contra o prejuízo que acha ter sido culpado e,
quando pensa que finalmente acabou, verifica que ainda está longe da linha de chegada.
É uma ilusão criada, um jogo de espelhos para deixar que o sujeito pense que pode vir a
ser, mas ao sair do jogo, a ilusão criada pelos espelhos desfaz-se em cacos que podem
cortar.
Outros pensadores a que recorremos na busca por compreensão e reflexão
também abordam a escritura como documento e maquinário de poder. Além de Jacques
Derrida (2001) que aborda filosófica e politicamente o poder da escritura e Michel
Foucault (2007) aborda, por sua vez, a escritura como manipulação de poder, pois ela
fornece material documental para que esse poder seja exercido com mais legitimidade.
Assim, mais uma vez, reaparece a discussão iniciada com Deleuze e Guattari
(2003) e Santiago Castro-Gomez (2005) neste texto, pois se a escrita é a forma de
expressão legitimada pela sociedade e a constituição de um cidadão como “sujeto de
derecho” passa pela escrita, percebe-se precisamente o que se chama de “invenção da
cidadania”. Sim, pois a cidadania não é dada, mas precisou ser inventada a partir de um
molde, um campo de identidades homogêneas, um projeto do qual algumas pessoas
estariam inevitavelmente fora, assim como a chamada “democracia representativa.”
Não saber escrever significa estar fora da inscrição da própria cidadania que não
é dada e retirada por questões políticas como foi no caso dos Argelinos, como aconteceu
a Jacques Derrida, por exemplo, mas uma tal cidadania que nem mesmo abre a
possibilidade de ser realizada ou reclamada. Analfabetos simplesmente não existem
socialmente, pois não podem atuar nem responder politicamente por seus direitos.

sumário 1631
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Um exemplo que pode estreitar a relação entre cidadania e escritura, é o caso do


próprio Jacques Derrida (2001), que como Argelino, relata sua experiência monolingue
de cidadão francês sem cidadania francesa na obra O Monoliguísmo do Outro. Derrida
consegue abrir ainda mais o leque quando mostra que mesmo sendo alfabetizado e
dominando a língua imposta pelo Outro (a língua francesa, no seu caso) a cidadania
pode ser concedida e retirada por acordos ou decisões de ordem política. Talvez porque
o estrangeiro se assemelhe ao analfabeto (pois este não dominaria perfeitamente uma
língua imposta politicamente) ou talvez porque o analfabeto é estrangeiro à noção de
escritura, - assim como também se colocou Sócrates em relação à linguagem do Direito
em momento de sua condenação.
Com essa questão, Derrida (2001) aponta para uma outra cada vez mais urgente
no pensamento Pós-Colonial. Ele promove uma reflexão, juntamente como Deleuze e
Guattari faz, no caso de Kafka e da língua Alemã de Praga, de uma língua, a mesma
língua com a qual se diz as primeiras palavras, a mesma pela qual se diz e se é dito aos
outros, pode surpreender ao ser tão violenta e excludente.
Da mesma forma, para os sujeitos dessa pesquisa, para estas mulheres, negras,
pobres e idosas a Língua Portuguesa (também imposta pela violência colonial) significa
aquilo que elas podem e não podem usar, ou melhor, podem valer-se marginalmente na
forma oral, mas não podem dela usufruir. Essa língua, na qual elas estão
subalternamente inscritas, oferece risco e nunca amparo, pois essa mesma língua
escreve e prepara aquilo que virá delimitar e restringir o acesso desse mesmo falante ao
modelo de cidadania.
Segundo Santiago Castro-Gómez (2005), a aquisição da cidadania é uma espécie
de peneira pela qual só passarão aquelas pessoas cujo perfil se ajuste ao tipo de sujeito
requerido pelo projeto da modernidade, a saber: homem, branco, pai de família,
católico, proprietário, letrado e heterossexual. Os sujeitos desta pesquisa certamente
não passaram pela peneira, pois representam o polo oposto do que foi previamente
concebido no projeto de cidadania e de modernidade. Elas são as que sobraram
socialmente, são mulheres, são negras, não possuem propriedades, portanto, são
consideradas pobres, são idosas, são evangélicas em sua maioria e, como se não
bastasse, são analfabetas. É importante frisar que elas não configuram uma minoria
dentro do Brasil, mas estão inscritas minoritariamente dentro do que uma hegemonia
preestabeleceu e invalidou como tal.

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VII Seminário Vozes da Educação

Deleuze e Guattari (2003) na obra Kafka – Por uma Literatura Menor,


apresentam três características para explicar a atuação de uma literatura considerada
“menor”. Conceito que pode e deve ser expandido a outros recortes e moldes e reflexão.
A primeira característica de uma literatura dita “menor” é que ela é afetada por
um forte coeficiente de desterritorialização. Assim como a língua alemã de Praga era
conveniente a usos menores, as conversas transcritas na pesquisa de Mestrado também
apresentaram um discurso que não tinha lugar, um discurso totalmente fora do lugar, um
discurso estrangeiro ao discurso das elites dominantes.
Essas mulheres, negras, pobres, idosas e analfabetas são o próprio retrato da
desterritorialização, não somente pelo que dizem, mas pelo que sentem e,
principalmente pelo que pensam. Seus discursos, não só configuram uma literatura dita
“menor”, como também são silenciados e encobertos.
A segunda característica das literaturas “menores” é que nelas tudo é político.
Ao contrário das literaturas ditas “maiores” ou dominantes, onde tudo gira em torno da
questão individual, na literatura considerada “menor”, mesmo as questões individuais
apontam para uma perspectiva política. Assim como os autores colocam: “A questão
individual, ampliada ao microscópio, torna-se muito mais necessária, indispensável,
porque uma outra história se agita no seu interior.”
A terceira característica das literaturas “menores” é que nelas, tudo toma um
valor coletivo, pois “o campo político contaminou o enunciado todo”.

Conclusão
Os sujeitos dessa pesquisa são especiais ao extremo, pois conseguem reunir
várias possibilidades de exclusão e vencê-las. Em uma sociedade que se quer
homogênea, o sujeito idoso, mesmo que reúna todas os traços idealizados pelo projeto
da modernidade (branco, heterossexual, proprietário e alfabetizado) já destoa dos seus
por ter passado da juventude, da época em que poderia intervir socialmente. O idoso é
aquele que não serve mais, já perdeu suas forças físicas, sua capacidade de agir e
raciocinar rapidamente e, por esta razão, passa a ser aquele que só dá trabalho aos
demais.
Vive-se diante de uma sociedade não só excludente e malvada, mas
principalmente ignorante quando descarta aquilo que parece não mais servir da mesma
forma que antes.

sumário 1633
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Referências
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. “Ciências Sociales, violencia epistemica y el problema
de la invención del otro” in: La Colonialidad del Saber: eurocentrismo y ciências
sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de
Ciências Sociales – CLACSO, 2005.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka Para Uma Literatura Menor.
Tradução: Rafael Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003

DERRIDA, Jacques. O Monolinguismo do Outro ou a Prótese de Origem. Tradução:


Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2001.

FREIRE, Paulo. A importância do Ato de Ler. 23ª ed. São Paulo: Cortez, 1989.

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Tradução: Salma Tannus Muchail. São


Paulo: Martins Fontes, 2007.

RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. Tradução: Mariana Echalar. 1ª ed. São


Paulo: Boitempo, 2014.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno Falar? Tradução: Sandra Regina


Goulart Almeida. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

sumário 1634
VII Seminário Vozes da Educação

A NARRATIVA DO PASSADO COMO DESJEJUM DAS VOZES

Aline Bernar
UFF/CAPES
alinebernar@yahoo.com.br

Outrora escutei os anjos,


As sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente
Em verdade sou muito pobre.
Carlos Drummond de Andrade in: Sentimento do Mundo.

Envolvida pelas palavras de Carlos Drummond de Andrade, reflito sobre


algumas questões que trabalho em minha tese de doutorado em Educação. No poema
supracitado, passado e presente coexistem no mesmo trecho pelos verbos “escutei” e
“sou”, assim como nas narrativas orais que trago para o seio da discussão que
desenvolvo. Elas me contam sempre sobre tempos e espaços diferentes, tempos
passados, vividos na infância ou tempos do presente, vividos na velhice. Contudo,
ambos, tempos de escassez, de ausência e de falta, principalmente, de escolarização.
No poema, eu lírico de Drummond apresenta ao leitor as vozes que outrora
escutou: dos anjos, das sonatas, dos poemas; mas se dá conta, logo depois de dizer, que
nunca escutou “voz de gente”. É neste ponto que entram alguns elementos pertencentes
também à pesquisa que realizo: são vozes de “gente” que vou tentando ouvir a cada
passo desse caminho e, junto dessas mesmas vozes, colocando outras vozes além da
minha. Uma dessas vozes, é a voz de Dona Vera: “Comecei a trabalhar com nove anos
de idade e, nessa idade, ainda não tinha pisado na escola.”
Enquanto o eu lírico de Drummond se reconhece “em verdade”, “muito pobre”
por nunca ter escutado “voz de gente”, sou capaz de entender e com ele dialogar, pois
assim como o eu lírico, eu também, outrora, penso não ter escutado “voz de gente”, pelo
menos não como deveria. Acredito ter me dado conta do que é escutar “voz de gente” a
partir das vozes dessas mulheres cujas narrativas trago para minha pesquisa.
Foi ainda no mestrado em Educação, durante a pesquisa de campo, que pela
primeira vez ouvi tais vozes. Contudo, com o fim do mestrado, elas continuavam a

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

ecoar. Voltei a pensar nas vozes que ouvia, tentei dar-lhes atenção, mas o som já não era
mais o mesmo. Percebi que eram vozes vindas de outros tempos e espaços que insistiam
em estar presentes, em fazerem-se ouvidas. Só que, no âmbito da pesquisa doutoral não
me encontrava mais diante dessas mulheres, pois eu não estava realizando um trabalho
de campo, não me encontrava mais diante de “gente”, mas sim diante de suas vozes
transcritas no papel.
As vozes vindas dessas narrativas me fizeram enxergar não mais as mulheres
idosas em fase de alfabetização que conheci, mas os retratos que traziam de uma
infância sem escola e seus contornos. E passei a debruçar-me sobre as narrativas orais
de mulheres idosas que têm em comum uma vida inteira de negação. O que aqui chamo
de negação consiste nos traços de um desenho social que não foi pintado por elas. Elas
foram inseridas em um desenho que já existia e, uma vez de dentro dele, essas mulheres
perceberam que tinham poucas cores para colorir a sua infância, uma infância longe da
tão sonhada escolarização.
Mesmo não sendo a negação social o ponto crucial da minha tese,
inevitavelmente passo por ele e julgo ser é necessário dizer que essa mesma negação
ocorreu pautada em algumas categorias, pressupostos ou estereótipos. Sua condição
naquele momento não era apenas ser uma criança do sexo feminino, condenada
socialmente a cuidar, limpar, cozinhar e, principalmente, a realizar tudo aquilo que
quisessem fazer, somente após os irmãos (mais velhos e homens) ou ter seus desejos
ignorados simplesmente.
Entretanto, essas mulheres, impedidas de estudar na infância e ao longo da vida,
carregavam também outras implicações para a negação que sofriam: eram meninas
negras, pobres, trabalhadoras e que não dominavam a leitura e a escrita; pois “não
conheciam escola”, conforme dizem em suas narrativas. O fardo de ser mulher em uma
sociedade patriarcal e machista pesava já sobre a infância dessas meninas, obrigando-as,
inevitavelmente, à obediência do pai, dos irmãos mais velhos e, mais tarde, dos
maridos.
Foi assim com as mulheres cujas narrativas me encontro dentro da tese, mas é
assim também com inúmeras meninas e mulheres, ainda hoje subjugadas ao legado
masculino e a uma sociedade patriarcal e machista. Todavia, essas mulheres não
desistiram e, mesmo aos setenta ou oitenta anos, não se permitiram abrir mão de mais
essa luta: aprender a ler e a escrever independentemente da idade. Quem sabe

sumário 1636
VII Seminário Vozes da Educação

conseguiriam realizar seus sonhos de menina: obter o mínimo de escolarização possível:


a alfabetização.
Paro para refletir sobre esse sonho de alfabetização. Um direito, aos olhos de
muitos, uma aquisição tão fácil e tão primária para outros, levada ao patamar de sonho
para essas e tantas outras pessoas que nunca puderam enxergar algo além de símbolos
estranhos ou desenhos em letras grafadas no papel.
O meu reencontro com as narrativas dessas mulheres na tese de doutorado tem
me ajudado a vislumbrar maiores possibilidades de entender os meandros de uma
infância sem escolarização. Além do trabalho de “descoberta” (tirar mesmo a coberta ou
cobertura social) quando revisito as memórias que elas têm das inúmeras vezes que
tentaram algo relacionado à escolarização; suas experiências vividas no analfabetismo
ou inventadas na hora do relato das mesmas narrativas (agora transcritas), ou ainda,
simplesmente o prazer de conhecer outras histórias e personagens por trás das histórias
a mim contadas agrega valores nunca antes pensados.
Com as questões que se apresentavam nas narrativas, eu sentia que ainda
precisava aprender mais e mais sobre aquelas mulheres. Senti que havia muito mais a
ser pensado e trabalhado nas narrativas orais que dividiram comigo. Desta forma,
redobrei minha atenção para ouvir melhor suas histórias e comecei a perceber, nas
mesmas narrativas, uma série de outras possibilidades para trabalhar as questões que se
apresentavam no cotidiano narrado dessas mulheres. Contudo, eu sabia que não seria
uma inserção pacífica no cotidiano delas, pois eu deveria fazer mais, eu deveria
mergulhar fundo e sem reservas neste cotidiano apresentado em suas narrativas.
Cotidiano este que, além de todas as dificuldades sociais, econômicas e familiares, foi
principalmente marcado pela ausência de escolarização. Com Nilda Alves (2010), leio a
importância que as narrativas possuem nos estudos nos/dos/com os cotidianos:“...para
que possamos reforçar a ideia da importância das narrativas – e das imagens e dos sons
e dos sabores – nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos e porque consideramos
personagens conceituais nessas pesquisas e não simplesmente fontes” (ALVES,
2010:68).
Embora esta tese faça parte do campo de estudo dos Cotidianos da Educação
Popular, preciso, no entanto, refletir sobre os contornos que estes cotidianos trazidos
pelas narrativas orais apresentam particularmente. E, aos poucos, ir vendo esse
cotidiano peculiar sendo desenhado diante dos meus olhos.

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Peculiar porque, para início de conversa, eu estudo e manuseio narrativas que


contam o passado de mulheres negras, pobres e que apenas hoje, na chamada terceira
idade, estão em fase de alfabetização. Essas narrativas orais, orientadas pela memória,
voltam sempre e, inevitavelmente, ao passado. Pode parecer óbvio, já que estou
trabalhando com mulheres idosas e estas possuem toda uma vida para ser lembrada;
contudo, percebi que essas narrativas montavam quase sempre o mesmo cenário: o da
infância sem escola. O impedimento da escolarização na infância parece ter marcado
mais do que qualquer outro para essas mulheres que, perto dos oitenta anos de vida,
ainda encontram forças para frequentar um espaço improvisado de escolarização. É
recorrente, em todas as histórias que essas mulheres dividiram comigo, o caminho que
as palavras fazem até o lugar marcado, o lugar em que deixaram seus pedidos e anseios
para obter a chance de serem escolarizadas. Sim, suas falas voltam até a infância, mas
todas elas localizam suas histórias em um momento específico desta mesma infância: os
momentos em que imploravam sem êxito para que os pais lhe permitissem estudar.
Em segundo lugar, o cotidiano que vislumbro hoje pelas narrativas orais e que
pensava pertencer ao passado é inteiramente reinventado e renovado no momento
presente, a cada vez que as histórias são elaboradas. Reconheço a ilusão, que em mim
habitava, de pegar nas narrativas de mulheres idosas que contam sua infância e trabalhar
com o tempo passado. Quanta ilusão! Percebi, depois e não sozinha, que esse passado
que parecia ter ficado no passado, não se tratava de um tempo morto, pois que ainda
soltavam suas faíscas, as mesmas faíscas que elas utilizam para acender novamente a
fogueira das suas narrativas no tempo presente. Elas poderiam recriar e recontar suas
histórias quantas vezes fosse preciso e, como mágica, poderia eu ver que as mesmas
histórias ganhariam novas cores, até mesmo caso elas resolvem pintar a mesma tela.
Seria essa a magia da recordação? O passado viveria mesmo por um certo tempo, tempo
suficiente para fazer saltar faíscas?
Disse anteriormente que o passado não está morto porque consegue ainda
provocar mudanças e recriações no presente, mas Aleida Assmann (2011) promove um
pensar dessa provocação usando a palavra faísca como conceito:

A tarefa da memória que reanima cabe também ao leitor dos autores do


passado, que na Renascença foram inclusive erigidos à normatividade
clássica. Essa nova hermenêutica faz do leitor um animador do passado; é à
força espiritual e ao carisma mnemônico do leitor que os mortos devem a
vida. O pano de fundo dessa tarefa extenuante cria uma nova consciência
sobre o caráter efêmero do passado. Para resgatar o que passou e torná-lo

sumário 1638
VII Seminário Vozes da Educação

presente requer uma força necromântica de revivificação, cujo símbolo é a


faísca. (ASSMANN, A., 2011:186).

Posso, então, tentar pensar junto com Assmann (2010) a faísca citada como
símbolo. É a faísca que promove a possibilidade de reacender o fogo, é ela também que
surge das cinzas em brasa, às vezes quando menos se espera, às vezes por causa de um
vento ou sopro ou ainda quando se revira as cinzas com algum objeto. Se as cinzas
configuram o material que sobrou depois da destruição pela ação do fogo, a faísca é
aquilo que pode oferecer a vivacidade do fogo novamente. Contudo, a faísca em estado
latente reside, até que se revire os restos de brasa, no meio das cinzas. Brasas, cinzas e
faíscas alegóricas com certeza, mas também símbolos que me auxiliam a refletir.
Segundo Walter Benjamin (1992): “As alegorias são, no âmbito do pensamento, o
mesmo que a ruína no âmbito das coisas”.
Assim, volto a pensar esse novo cotidiano, um cotidiano recriado pelas
reminiscências do passado, daquilo que ficou de toda uma vida. Surge em mim a
pergunta: seriam essas reminiscências como as cinzas da metáfora exposta acima? Não
estou interpretando o passado como morte, contudo, estou pensando no que resta
quando o fogo se acalma, quando queima lentamente, mas ainda se mostra ali, mostra
sua presença em meio às cinzas, moribundo talvez, mas não morto. Sua cor é fascinante
e seu calor ainda queima, mas estão apenas a espera, aguardam que alguém os faça
reviver, não da mesma forma, mas com ainda mais força e pronto para fazer queimar
novamente. As ruínas, que ao mesmo tempo podem significar restos, também são
representantes de algo que existiu ou ocorreu. Talvez essa também possa ser parte da
associação feita por Benjamin (1992) ao tratar as experiências como ruínas.
Como professora e eterna estudante da Literatura, me pego com frequência
pensando por metáforas; contudo, estou ciente de que elas podem tornar a compreensão
do exemplo mais fácil, mas nem por isso deixar o texto mais claro. Dentre as metáforas
existentes para memória, lembrança, esquecimento, passado e presente, acredito que a
metáfora da faísca com as cinzas possa constituir uma delas, seja por seus elementos
aparentemente paradoxais, seja porque reside na aparente morte, mas também porque
poderá vir a ser chama, uma chama viva e nova. Entretanto, da mesma forma, penso
também no conceito de memória e suas possíveis metáforas, naquilo que ficou do que se
viveu, sentiu ou experienciou. Se uma faísca metafórica reacende o fogo ou a brasa
dentro das cinzas do passado e se torna uma composição narrativa nova criada no

sumário 1639
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

momento presente, sinto-me da mesma forma convocada a pensar também naquilo que
pode configurar o estado latente dessa memória: o esquecimento.
Penso se existiria na memória dessas mulheres a noção de esquecimento, ainda
em estado de fogo brando, de brasa, uma espera de vir a ser faísca, a partir do árduo e
imprevisto exercício de rememorar. Enquanto escrevo, penso no que acontece com a
memória de um sujeito enquanto ele não sente a necessidade de revirar os escombros de
seu passado. Será o estado de latência da memória uma espécie de sono profundo? Seria
o movimento de recordar, um acordar ou despertar das lembranças? Busco nos escritos
de Benjamin (1992) mais pistas:

“Uma tradição popular adverte para que não se contem sonhos de manhã, em
jejum. (...) Neste estado, o relato de sonhos é fatal, porque o homem,
semiconluiado ainda com o mundo onírico, o trai com as suas palavras, pelo
que tem de contar com a sua vingança. Numa expressão mais moderna, dir-
se-ia: ele trai a si mesmo. (...) Porque só da outra margem, em pleno dia, é
que o sonho poderá ser interpelado, numa recordação sobranceira. (...)
Aquele que está em jejum, fala do sonho como se falasse de dentro do sono.”
(BENJAMIN,1992:38).

O que seria então o desjejum? O ato de fazer o desjejum, segundo Benjamin


(1992), cortaria os laços com o momento noturno para que o estado de vigília pudesse
atuar. O estado de jejum, consoante Benjamin, “faz falar do sonho como se estivesse
dentro do sono”. O desjejum configuraria dessa forma combustível para fazer a máquina
mental rodar, é o calor necessário para esquentar as turbinas e causar a explosão certeira
e disparar o início de uma nova narrativa. Não seria também esse o papel da faísca?
Promover o reacender, o relembrar por meio de um calor que não pega fogo no mesmo
local, (já que se encontra em meio as cinzas), mas que tem o potencial suficiente para
começar tudo novamente.
Sigo buscando entender melhor esses processos e para isso, preciso fazer
associações, enxergar relações, comparar definições e não descrever apenas o que já
existe. Antes de partir para outras concepções dos mesmos conceitos, deixo aqui uma
outra frase retirada da obra Espaços da Recordação: “A memória temporariamente
inerte, até que seja resgatada ou reconstruída, mantém a forma do esquecimento”
(p.187).
Sobre o que se chama de esquecimento, penso não só no que foi deixado no
passado, em estado latente, de forma natural, pela ação do tempo. Estou também
inclinada a pensar em outros tipos de esquecimentos, como, por exemplo, os

sumário 1640
VII Seminário Vozes da Educação

esquecimentos propositais, pois acredito que há momentos do passado que devem


permanecer em forma de esquecimento. Outros momentos que são afastados da mente
cada vez que aparecem sem avisar e, ainda, outros que não devem nunca entrar na
narrativa que se conta no presente. Quase todas as pessoas têm algo no passado que
preferia não ter vivido ou que não deseja relembrar com detalhes. Pelo menos uma das
opções costuma compor a trajetória de vida de uma pessoa, mesmo que não se admita
de imediato. Entretanto, como posso não pensar que em narrativas do passado,
recordado e despertado de seu estado latente e reinventado no presente, não tenha
também traços de esquecimento?
Segundo Susan Sontag (1992) m Introdução à obra Rua de Sentido Único, de
Walter Benjamin, o pensador alemão considerava tudo aquilo que decidia recordar no
seu passado como profético do futuro, porque o trabalho da memória (a leitura que
fazemos de nós próprios, às avessas, como ele classificou), anula o tempo. Por esta
razão, diz Sontag (1992), não existe nas reminiscências benjaminianas um ordenamento
cronológico porque para ele, o tempo não tem importância.
Assim também observo nas narrativas pesquisadas, elaboradas no presente e nas
idas ao passado, pelo viés da memória, um desordenamento cronológico ou até mesmo a
impossibilidade de datar os fatos. Esse ordenamento dos fatos também não se revela
importante nas narrativas das parceiras desta pesquisa. Cada uma delas, a seu modo,
viajaram para o passado, recolheram elementos e dividiram comigo as histórias que
elaboravam naquele momento. A marcação do tempo nunca foi mencionada e talvez os
elementos estivessem embaralhados às histórias de outros, irmãos, filhos e maridos. Um
outro traço que observei nas narrativas dessas mulheres idosas: percebi que elas têm a
necessidade de narrar suas histórias, querem contar como é a sua vida ou foi a sua
infância, mas não exigem de si mesmas nenhum traço de lembrança filiada à
verossimilhança. Pouco importa se o fato se deu ou não assim, pois o mais importante é
falar, é contar sua história pessoal, sentir-se protagonista de sua história, uma história
quase sempre contada pelos outros e que nos momentos em que atuaram em outras
histórias, tinham sempre um papel secundário, irrelevante e submisso.
Quebrar o jejum pode tanto ser compreendido como o ato de ingerir algum
alimento ao acordar assim como o ato de dizer, pronunciar, falar ou travar algum
diálogo. Mas ainda podemos entender o jejum como falta, carência ou ausência de algo.
A sala de desjejum de Benjamin (1992), em nossa leitura, seria o local onde se
quebraria o silêncio e o relato (do sonho) poderia acontecer.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Entretanto, notamos que sem fazer o chamado desjejum, conforme o pensamos,


o relato não poderia apresentar a complexidade inerente ao processo de rememorar. O
momento do relato seria assim, em nossa leitura, momento do encontro do sonho
(trabalho onírico ou produção imaginativa) com a realidade. A conversa como
metodologia viabiliza essa passagem ao trazer fatos improváveis para o espaço da
possibilidade, o caráter finito para o infinito, ou ainda promover a travessia da vivência
para a experiência.
A conversa, como metodologia para uma pesquisa, - em cujos aportes me apoiei
na dissertação de mestrado em Educação - possibilita à memória ser o veículo, a chave,
o acesso ao mundo noturno e, na presente leitura, ao período infantil, período de desejo
ardente pela escritura e de negação ao contexto escolar para os sujeitos da pesquisa. A
conversa surge como metodologia quando permite a visualização de um cotidiano
passado, de um cotidiano que se materializa apenas pela lembrança e pela voz daquele
que volta ao porão de suas vivências e permite ao pesquisador não só adentrar esse
terreno, mas carregar junto com esse Outro suas bagagens mais pesadas. Juntos, eles
remontam no espaço presente esse cenário passado, repensam e revivem cada um dos
fatos ocorridos. Esse transporte do que foi vivido, percebido ou sentido apenas pelo
Outro no passado faz com que ambos experimentem no presente algo que os atravessa e
os apela a essa experiência.
Proponho pensar a conversa como metodologia como um desjejum, pois ambos
acontecem sem programação prévia, sem preparo. Não há nada antes do desjejum, não
existe algo que o anteceda, exceto o momento do sono, do trabalho onírico. Assim como
o desjejum, a conversa deve acontecer sem artifícios, sem questionários, sem caminhos
pré-estabelecidos. Não estamos afirmando, contudo, um caminho sem responsabilidade
com a pesquisa, muito menos com o Outro da pesquisa. Mas não podemos prescindir do
caráter imprevisível e movediço que lhe é inerente.
O momento do desjejum reúne dois mundos, o mundo noturno e o mundo
diurno. Da mesma forma, a conversa como metodologia promove uma escavação do
passado, quando propõe que o adulto de hoje encontre a criança de antes. Quando a
conversa acontece, aquele que relata não está nem aqui e nem lá, encontra-se em um
espaço entre dois mundos, um espaço onde se sente estrangeiro em suas próprias
memórias. Não é mais aquele e, quando se esforça para reviver as emoções e
lembranças do passado, também não é mais o mesmo. Ele torna-se estrangeiro de si

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VII Seminário Vozes da Educação

mesmo, um hóspede de um hospedeiro desconhecido, a alteridade do Outro que porta


dentro de si.242

Imensa, Incandescente Abobada


Com o enxame da negra constelação que se busca
Uma via de saída, de partida:
Na fronte silicificada de um carneiro
Eu marco a fogo esta imagem, entre
Os cornos, lá dentro,
No canto das circunvoluções, incha
O miolo dos mares
De coração coagulado.
Contra
O que
Não carrega ele?
O mundo acabou, eu tenho de te portar”

No âmbito do projeto para Doutorado em Educação, quando percebi que o fim


do Mestrado deixou o porte do Outro ainda em nós, dissemos que o mundo do Outro
trazido apenas a partir de seu discurso envolve e abraça, mas que quando o abraço vai
afrouxando, o Outro parece escapar, distanciar-se de nós cada vez mais e, a isso,
associamos o fim, “o fim do mundo do Outro” do qual partilhamos e pelo qual nos
sentimos também acolhidos.
Entretanto, o presente texto mostra que o fim do mundo trazido pelo discurso do
Outro não significa o fim do Outro em nós. Ele ainda se faz presente e, assim, a segunda
parte do mesmo verso celaniano parece fazer todo sentido: “eu tenho de te portar.”
Posso ver que a presença do verbo (ter) no verso citado não deixa espaço para
alternativas ou escolhas. Uma vez sem opção, temos de portar o Outro, pois o Outro
está em nós, como um hóspede para o qual abrimos nossas portas incondicionalmente.
Assim também está o pesquisador diante de sua pesquisa, escolhido por ela, responsável
por ela e obrigado a portar o diferente em si. E é desta forma que percebemos os
sujeitos da pesquisa, são mulheres que ao escavarem seus passados encontram um Outro
que estão obrigadas a portar: a criança que um dia foram, seus gritos e suas
questões.243Escuto Dona Maria de Fátima: “Eu sempre trabalhei na roça e chegava a
chorar quando via alguém lendo e escrevendo.”
Os teóricos da Literatura fazem uma distinção que consideram importante no
exercício de análise literária: a distinção do tempo cronológico do tempo da narrativa. O
tempo cronológico é o tempo do relógio, da linearidade, dos fatos ordenados, do início,

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

meio e fim nas devidas posições. Já o tempo da narrativa dispõe de outras maneiras de
ser notado. Esse tempo especial pode ter seu início pelo meio (in media res – do latim
“no meio das coisas”), como uma técnica literária em que a narrativa começa pelo meio
da história, em vez de no início (ab initio); ou pelo fim (in ultima res ). Isso é possível
porque um narrador pode começar a sua história de qualquer ponto da narrativa, do
meio da história ou do fim da história, voltando depois ao início ao fazer um grande
flashback.
Aqui vejo surgir a complexa, mas não menos interessante questão da
experiência. Mas antes de percorrer os caminhos de qualquer outra análise, tento pensar
junto com a frase de Benjamin (1992), pois as narrativas com as quais trabalho trazem
acontecimentos do passado, voltam ao período da infância em que o desejo pela
escolarização tinha força, mas não suficiente para vencer todos os interditos impostos a
essas mulheres. Ao tocar na possibilidade de encontrar significado nos acontecimentos
do passado, Benjamin os define como um eufemismo que se conhece com o nome de
experiência.
A experiência, seria então, para Benjamin, a suavização de algo equivalente a
“acontecimentos do passado”. Talvez por ser um conceito impreciso e difícil de definir;
ou ainda porque a palavra experiência possa também apontar para algo associado à
experimentação e pode mudar de acordo com o pensamento de cada autor. São
hipóteses apenas, mas a partir delas, caminho para uma questão que, neste momento, se
coloca diante de mim: Benjamin diz que a experiência é um eufemismo, uma
suavização para “acontecimentos passados”. Pode ser que usar a palavra experiência
seja mais abrangente, menos específico do que “acontecimentos”, mas preciso de mais
do que isso, preciso relacionar experiência e narrativa, que também pode conter os
acontecimentos passados. Penso em mais uma hipótese, aparece em forma de pergunta,
mas é apenas mais uma tentativa de entender um conceito tão complexo: Seria, a
narrativa, o local da experiência por excelência, assim como o poema é o local do
encontro?
Assim como Benjamin (1992) e outros teóricos problematizam o conceito de
experiência e a escassez do trabalho narrativo; Jacques Derrida (2003) também pensa e
faz pensar no poema como local do encontro com o outro. Se eu puder seguir esse
raciocínio, posso pensar a narrativa como local da experiência e também como local do
encontro do narrador com ele mesmo. Assim como um poeta, segundo Paul Celan
(1996) , deixa parte de si no papel onde escreve seu poema e se lança ao desconhecido,

sumário 1644
VII Seminário Vozes da Educação

a um encontro com o Outro, a um possível e provável leitor; a narrativa também parte,


também vai a caminho, vai ao encontro provavelmente de si mesmo transfigurado pelo
papel do Outro.
Derrida (2003) também discorre sobre a questão da experiência e diz que ela, a
experiência, é outra palavra para viagem, ou uma “incursão aleatória num trajeto.”
Assinala que o poema é um evento, inesperado, mas desejado, que se expõe e se
protege. Ele cria a metáfora do ouriço enrolado em bola na beira de uma estrada que, ao
pressentir o perigo, tenta se proteger, mas seus espinhos eriçados o expõem ao acidente:
Ele cega-se enrolado em bola, voltado para o Outro e para si ao mesmo tempo. Assim,
protegendo-se do Outro fora dele, ele também acertaria o Outro dentro dele, tão
desconhecido e estrangeiro como o primeiro.

“O poema pode enrolar-se em bola, mas fá-lo ainda para voltar os seus signos
agudos para fora. Ele pode, sem dúvida, refletir a língua ou dizer a poesia,
mas nunca se refere a si mesmo, nunca se move por si como estes engenhos
portadores da morte. A sua ocorrência interrompe sempre, ou desvia, o saber
absoluto, o ser junto de si na autotelia. Este demônio do coração jamais se
congrega, antes se perde (delírio ou mania), expõem-se à sorte, preferiria
deixar-se despedaçar por aquilo que sobre ele avança.” (DERRIDA,
2003:10).

Para entender melhor o que vem a ser o conceito de experiência, e ver quando e
se a mesma ocorre nas narrativas trabalhadas, parto de Walter Benjamin (1992), mas
encontro outros pensadores e teóricos pelo caminho que também oferecem suas
concepções à análise, como Giorgio Agamben (2014), por exemplo, que ao pensar sobre
a pobreza em experiência comunicável, trazida por Walter Benjamin, reflete sobre a
destruição da experiência:

“Todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de


que ela não é mais algo que ainda nos seja dado a fazer. Pois, assim como foi
privado de sua biografia, o homem contemporâneo foi expropriado de sua
experiência: aliás, a incapacidade de fazer e transmitir experiências talvez
seja um dos poucos dados certos de que disponha sobre si mesmo.”
(AGAMBEN, 2014:21)

Giorgio Agamben (2014), assim como Benjamin, acredita na ausência de


capacidade narrativa. Para Benjamin (1992) a guerra foi uma responsável muito
importante, pois os homens voltavam emudecidos: contudo, para Agamben o homem
moderno, muita das vezes, não deseja ter a experiência e foge dela, não precisa de uma

sumário 1645
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

catástrofe como uma guerra, porque o homem estaria, segundo ele, “expropriado de sua
experiência”. Os eventos nunca se tornariam experiências porque tudo é vivido de
forma efêmera e superficial, quase nada hoje teria elementos traduzíveis em
experiência. Os gêneros do discurso Máxima e Provérbio, por exemplo, praticamente
não existem mais. Agora é a vez do slogan mostrar que ali não é o lugar a procurar pela
experiência.
A princípio, ao estudar o conceito de experiência para esta tese, pensava que a
mesma se relacionasse diretamente ao aspecto narrativo das histórias de vida com as
quais eu trabalhava. Não necessariamente na volta ao passado para recordar os fatos
vividos, mas na confecção da própria história com a reminiscências de muitos
sentimentos e emoções misturadas, os silêncios, os espaços vazios e com as criações
improvisadas na hora ou decoradas. Assim, achava eu ter exemplos do conceito de
experiência com as narrativas orais outrora produzidas por essas mulheres diante de
mim. Mesmo no papel, esperava encontrar nas palavras e nas frases, mas também nas
entrelinhas, aquilo que não é visível no papel, mas que se experimenta ao criar e ao
ouvir.
Entretanto, ao reler a leitura de Agamben (2014) sobre a obra de Benjamin
(1992), percebi que o que ele, Agamben, chama de expropriação da experiência, já
estava implícita no projeto da ciência moderna. Esta nasce desconfiada em relação à
experiência e, ao enumerar os pensadores, suas teses e projetos, é notório que quando se
fala em ciência moderna, não se fala de confiança, mas de dúvida. Se a experiência
ocorresse espontaneamente, ela seria chamada de “acaso”, se fosse buscada, se
chamaria de “experimento”.
Ao pensar no conhecimento separado da experiência, vejo que em seus escritos,
Agamben recorre a Aristóteles, Montaigne e Platão e pensa junto deles para dizer que
ambos sempre foram assim:“O conhecimento não possuía nem mesmo um sujeito no
sentido moderno de um ‘ego’, mas, ao contrário, era o próprio indivíduo o ‘sub-jectum’
no qual o intelecto agente, único e separado, realizava o conhecimento.” (AGAMBEN,
2014:26).
O conceito de experiência apresenta diversas leituras e interpretações,
entretanto, não era assim tão simples também pela disputa entre os autores, inclusive os
seguidores do pensamento aristotélico. A separação do conhecimento da experiência vai
bem mais além. O intelecto representado como inteligência (nous) e a experiência
representada pela alma (psyché) diziam desde a era medieval que o intelecto não era

sumário 1646
VII Seminário Vozes da Educação

uma faculdade da alma. Encontram totalmente divorciados, mas, segundo o pensamento


de Aristóteles, eles se comunicariam apenas para realizar o conhecimento. A
experiência chamada de tradicional considera o limite que separa os dois lados.
O inteligível e o sensível, o humano e o divino, o uno e o múltiplo, apontavam já
que o saber humano como um (páthei máthos) é um aprender que se dá somente através
ou após um tipo de sofrimento. E essa consideração eu julgo importante se puder
considerar que o aprender que passa pela escola ou mesmo em outros locais, - sem
generalizar nem particularizar nenhum lado -, vem sim carregado de sofrimento. A vida
escolar é recheada de ritos que os estudantes precisam passar, contudo, esses rituais
escolares não valorizam ou engrandecem o estudante. Tais rituais podem mais
ridicularizar, expor, silenciar etc., do que o contrário.

“Em sua busca pela certeza, a ciência moderna abole esta separação e faz da
experiência o lugar – o ‘método’, isto é, o caminho – do conhecimento. Mas,
para fazer isto, deve proceder a uma refundição da experiência e a uma
reforma da inteligência, desapropriando-as primeiramente de seus sujeitos e
colocando em seu lugar um único novo sujeito.” (AGAMBEN, 2014:28)

O que Agamben (2014) está dizendo é que experiência e ciência, que até então
se referiam a dois sujeitos distintos, agora se reúnem em um sujeito único e dá origem
ao (ego cogito) cartesiano, ou seja, a consciência. O sujeito que une experiência (nous) e
conhecimento (psyché) é apresentado hoje como uma substância (eu substantivado),
mas diferente da substância material, a quem é atribuído tudo que caracteriza a
psicologia tradicional e, inclusivamente, a sensação.
Se a finalidade da experiência era conduzir o homem à maturidade é porque
antes ela tinha um caráter finito, algo que se podia ter e fazer. Entretanto, quando essa
experiência está referida ao sujeito da ciência, a experiência move-se ao contrário e
adquire um caráter infinito, algo que se pode fazer, mas nunca ter. Significa que o velho
sujeito da experiência não existe mais. Em seu lugar existem dois sujeitos o do
conhecimento que pode apenas fazer experiências e o sujeito da experiência que pode
ter a experiência, sem jamais fazer. Para Agamben os personagens de Cervantes, Dom
Quixote e Sancho Pança personificariam os dois tipos de sujeito: o do conhecimento e o
da experiência, respectivamente.

sumário 1647
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Walter Benjamin (1992), no texto “O Narrador”, vai explicar que a arte de narrar
está em extinção porque as pessoas perderam sua capacidade de trocar experiências.
Mas explica ainda que não está falando de qualquer troca de experiência, mas da
experiência que “anda de boca em boca”, onde os narradores da tradição oral vão beber.
A essência da narrativa para Benjamin é a utilitária, moralizante, de dar conselhos ou
orientações aos seus ouvintes. O narrador da tradição oral, ao contar suas histórias, teria
nelas sempre um ensinamento a dividir, mas, hoje esse tipo de prática que comunica e
aconselha ou troca experiências está morrendo. A explicação que Benjamin (1992)
oferece é que para pedir um conselho, em seu sentido mais amplo, é preciso,
inicialmente, saber narrar a sua própria história. Ao solicitar uma orientação, instrução
ou conselho é preciso que o narrador saiba contextualizar a sua narrativa, expor
abertamente a sua situação crítica para aí sim abrir-se ao recebimento do que configura
o conselho: a sabedoria.
Essa sabedoria que Benjamin (1992) fala está ligada à tradição oral, não aos
livros escritos. A tradição oral, bem como seus narradores, ao dividir suas histórias,
trazia de forma inerente o compartilhamento de experiências individuais ou coletivas. O
próprio momento da narração que configura um momento de criação, está também
relacionada a essa troca com os demais, com os ouvintes que dividem aquele espaço e
tempo da narrativa com outros. No momento da narrativa, cada um, à sua maneira,
levará consigo a experiência ou sabedoria compartilhada que mais se aproximar das
suas necessidades e com elas terão oportunidade de recontar em outro momento e local
a “mesma” história que nunca será a mesma.
Sendo atemporal, a narrativa não perde nunca sua atualidade e pode perpassar
várias gerações diferentes, trazendo ainda sua contribuição para as dúvidas ou mazelas
inerentes à essência do sujeito. Essa narrativa, chamada de artesanal por Benjamin, é
uma espécie de mergulho na experiência do narrador que a vive como ofício. Esse
ofício não é apenas o dom de narrar, mas também de ouvir e de recontar. Nas rodas de
contações de histórias que temos notícia da tradição oral, o ouvinte estava com as mãos
ocupadas, tecendo, costurando ou mesmo limpando as ferramentas de trabalho para o
dia seguinte e, ao esquecer de si, ocupado com as mãos, o dom de ouvir fazia com que
ele adquirisse o dom de narrar.

sumário 1648
VII Seminário Vozes da Educação

Referências
ALVES, Nilda et alii. Pesquisar o cotidiano na lógica das redes cotidianas. Texto
disponível na homepage do GT Currículo http://cfch.ufrj.br/gtcurriculo/,1998.

AGAMBEN, Giorgio. Infância e História – Destruição da experiência e origem da


história. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação – Formas e Transformações da


Memória Cultural. Tradução: Paulo Soethe. Campinas/SP: Editora UNICAMP, 2011.

BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Tradução: Maria


Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio d’Água editores,
1992.

BERNAR, Aline. Infância sem escola, terceira idade na escola – conversas e


lembranças sobre o cotidiano escolar - dissertação de Mestrado, defendida em 26 de
fevereiro de 2014 na Universidade Federal Fluminense (UFF).

CELAN, Paul. O meridiano e Outras Textos. Tradução: João Barrento. Lisboa:


Cotovia, 1996.

DERRIDA, Jacques. Béliers. Le dialogue ininterrompu: entre deux infinis, lê


poème. Paris: Galilée, 2003.

FERRAÇO, Carlos Eduardo, PEREZ, Carmen Lúcia Vidal & OLIVEIRA, Inês Barbosa
de (Orgs.) Aprendizagens Cotidianas com a pesquisa – Novas reflexões em pesquisa
nos/dos/com os cotidianos das escolas. Petrópolis: DP et Alii, 2008.

sumário 1649
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

UMA APOSTA NO TEATRO COMO CUIDADO DE SI, EM COMPANHIA DE


FOUCAULT E STANISLAVSKI

Líbia Busquet
FFP/UERJ, mcpessin@gmail.com

Rosimeri de Oliveira Dias


FFP/UERJ, rosimeri.dias@uol.com.br

Introdução
Este artigo é efeito da dissertação em andamento - “Teatro e saberes em cena: o
que há no fazer teatral no chão de uma escola pública de ensino médio? ” - de uma das
autoras, cujo objetivo é conversar com o fazer teatral numa escola básica de ensino
médio, o Colégio Estadual Walter Orlandini (CEWO). Há outro contexto de discussão
que pauta este trabalho, o encontro com o livro “Hermenêutica do Sujeito”, de Michel
Foucault (2010), no decorrer da disciplina Sujeito e Sociedade, ministrado por uma das
autoras, no PPGEdu Processos Formativos e Desigualdades Sociais, no primeiro
semestre de 2019. Tal encontro produz problematizações para pensar o fazer teatral
como cuidado de si. E, neste contexto de análise e de intervenção, problematizamos,
aqui, o teatro e o exercício pedagógico teatral por meio do trabalho realizado pelo ator
como uma forma possível de lançar-se além da criação artística, de modo que esta possa
reverberar em seu corpo e em sua vida. Para tanto, o artigo se constitui das seguintes
partes: Um exercício de pensar o teatro com Foucault e Stanislavski: o trabalho do ator
sobre si mesmo e A Pedagogia Teatral de Gilberto Icle (2010): uma conversa com
Foucault e Stanislavski.
Icle (2010), em seu livro, trata dos processos de construção que ocorrem na
prática do teatro, afirmando que talvez possa ser uma escrita de si (FOUCAULT, 2006).
Nas palavras do autor, “uma maneira de me fazer homem de teatro e escrever sobre o
presente, sobre o meu entorno, sobre o meu trabalho”. Algo próximo do que uma de nós
realiza com a produção da referida dissertação. Para dar materialidade a esta tessitura
escrita, o artigo trará, inclusive, relatos de estudante-atriz do CEWO para conversar com
o tema proposto, o teatro como cuidado de si.

sumário 1650
VII Seminário Vozes da Educação

Em seus últimos anos de vida e de trabalho Foucault busca dedicadamente um


encontro com a filosofia antiga que lhe permitiu, de modo outro um encontro consigo
mesmo e com seus estudos (DIAS, 2017). Por que dizemos isto? Porque suas pesquisas,
que se iniciam com uma arqueologia da vontade de saber, o projeto originário da
História da Sexualidade previa 6 volumes, assim anunciados: A carne e o corpo; A
cruzada das crianças; A mulher, a mãe e a histérica; Os perversos e Populações e raças.
Nenhum destes livros jamais foram publicados. Em 1976, foi publicado o primeiro
volume A vontade de saber. Após oito anos de silêncio, em 1984, ano da morte de
Michel Foucault, foram publicados os volumes dois e três, O uso dos prazeres e O
cuidado de si. No início deste ano de 2019, foi publicado o quarto volume, organizado
por Frederic Gros, Les aveux de la chair.
E, a propósito da sexualidade, se intensificam finalmente na problematização da
relação entre subjetividade e verdade. Na medida em que é ele que sai transformado,
como já dito anteriormente, na introdução do segundo volume da História da
sexualidade. Nós o citamos, “um exercício filosófico: sua articulação foi a de saber em
que medida o trabalho de pensar sua própria história pode liberar o pensamento daquilo
que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente” (FOUCAULT,
1994, p. 14). Os encontros que Michel Foucault realizou com a filosofia antiga são
diversos, como nos mostra Blanchot (2011, p. 157-159):

Ele vai procurar e encontrar uma saída [...], distanciando-se dos tempos
modernos e interrogando a Antiguidade[...]. Com que objetivo?
Aparentemente, para passar dos tormentos da sexualidade à simplicidade dos
prazeres e para lançar uma nova luz sobre os problemas que, contudo,
suscitam, ainda que ocupem muito menos a atenção dos homens livres e
escapem à delícia e ao escândalo do proibido. Mas não posso impedir-me de
pensar que, com A vontade de saber, com as críticas veementes que esse livro
suscitou, uma espécie de caça ao espírito [...] que se seguiu e talvez uma
experiência pessoal que só tenho como supor e com a qual acredito que ele
mesmo tenha ficado surpreso, na ignorância do que ela representava [...],
modificam profundamente sua relação com o tempo e com a escrita. Os
livros que vai escrever sobre temas que lhe são muito próximos são, à
primeira vista, livros de historiador estudioso mais do que obras de
investigação pessoal. Até o estilo é diferente: calmo, apaziguado, sem a
paixão que queima em tantos de seus outros textos. Entrevistado por Hubert
Dreyfus e Paul Rabinow e interrogado sobre seus projetos, ele exclama, de
repente: ‘Oh, eu vou primeiro cuidar de mim!’ Declaração que não é fácil de
esclarecer, mesmo se pensarmos um pouco apressadamente que, seguindo a
Nietzche, ele estivesse inclinado a fazer de sua existência – daquela que lhe
restava viver – uma obra de arte. É assim que será tentado a pedir aos antigos
a revalorização das práticas de amizade, as quais, sem se perder, não
voltaram a encontrar, a não ser entre alguns de nós, sua elevada virtude. A
philia que, entre os gregos e até entre os romanos, permanece o modelo do
que há de mais excelente nas relações humanas [...], talvez acolhida como
uma herança ainda capaz de ser enriquecida.

sumário 1651
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Aqui neste trabalho, levamos a sério os ensinamentos do filósofo Foucault e,


junto com ele, problematizamos se as artes da existência teriam, nesse sentido, a
capacidade de transformar o sujeito, ou ao menos de abrir a possibilidade para que um
sujeito possa se modificar, se tornando outro. Para problematizar as artes da existência,
ouçamos o filósofo;

Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais
os homens são somente se fixam regras de conduta, como também procuram
se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra
que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de
estilo. [...] Tal é a ironia desses esforços feitos a fim de mudar-se a maneira
de ver, para modificar o horizonte daquilo que se conhece e para tentar
distanciar-se um pouco. Levam eles, efetivamente, a pensar diferentemente?
Talvez, tenham, no máximo, permitido pensar diferentemente o que já se
pensava e perceber o que se fez segundo um ângulo diferente e sob uma luz
mais nítida. Acreditava-se tomar distância e, no entanto, fica-se na vertical de
si mesmo. A viagem rejuvenesce as coisas e envelhece a relação consigo.
Parece-me que seria melhor perceber agora de que maneira, um tanto
cegamente, e por meio de fragmentos sucessivos e diferentes, eu me conduzi
nessa empreitada de uma história da verdade: analisar, não os
comportamentos, nem as ideias, nem as sociedades, nem suas ‘ideologias’,
mas as problematizações através das quais o ser se dá como podendo e
devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações
se formam (FOUCAULT, 1994, p. 15)

A interseção entre o pensamento de Foucault (1994; 2010) e a reflexão que


ocorre na atividade artística está presente quando se considera a arte como um campo
que aposta em um jogo com as possibilidades de o artista vir a se reinventar, podendo
deste modo contagiar ou vir a convidar o público a compartilhar da própria experiência
com a arte.
Outro intercessor de nosso artigo é o diretor e teórico teatral Constantin
Stanislavski (1988), que fala em sua obra a respeito da forma pela qual o ator deve
reaprender as ações que aprendeu no seu cotidiano, para possibilitar construir outra
“natureza corporal”, que são como que as formas que nosso corpo imprime ao realizar
determinadas ações. Como dito anteriormente, conversaremos aqui também com A
Pedagogia Teatral de Gilberto Icle (2010), para poder forçar nossas análises e
intervenções com o fazer teatral entre Foucault e Stanislavski, problematizando com o
autor russo e seu modo de buscar a preparação do ator.

sumário 1652
VII Seminário Vozes da Educação

1. Um exercício de pensar o teatro com Foucault

Ocupar-se consigo não é, pois, uma simples preparação


momentânea para a vida, é uma forma de vida
(Michel Foucault).

A Hermenêutica do Sujeito foi um livro produzido após o curso ministrado por


Foucault no Collège de France, em 1982 e o contato com este livro fez emergir reflexão
sobre o cuidado de si e a arte teatral. Foucault (2010), já nos últimos anos de sua vida e
produção se aprofundou nos séculos iniciais da era clássica. Foram livros, tratados,
escolas e ideias filosóficas que produziram uma estética da existência, numa procura de
fazer da própria vida uma matéria a se produzir de alguma forma.
Neste curso, Foucault nos mostra que nas antigas práticas gregas do cuidado de
si (epiméleia heautoú) a filosofia, tomada como uma ascese (áskesis) – exercício de si
por si mesmo - permite ao sujeito adquirir e dizer o discurso verdadeiro (parresia). A
verdade, escutada e recolhida como se deve, incorpora-se no sujeito, tornando-se regra
de conduta. Assim como é necessário uma arte (tékhne) para falar a verdade, é
necessário uma experiência de si sobre si mesmo para constituir uma estética da
existência. Para viver como se deve, como uma estética da existência, para que a alma
acolha a palavra que lhe é endereçada, é fundamental uma economia dos gestos e
palavras, um ensaio – que é uma experiência modificadora de si – que se opõe ao
conhece-te a ti mesmo platônico.
Na aula do dia 17 de fevereiro de 1982, Foucault nos diz que só se pode chegar a
si percorrendo o grande ciclo do mundo. Trata-se de uma busca por meio das coisas do
mundo percorrendo o próprio mundo e não sobre a forma da reminiscência da alma. Ao
nos trazer os cínicos, estoicos, a Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio como parte dos seus
estudos sobre o cuidado de si, Foucault nos mostra que os escritos filosóficos antigos
eram tecidos de perto, para provocar ensinamento. “Suas frases, livros ou cartas não
eram destinados a transmitir uma informação, mas tendiam a uma formação” (DIAS,
2017, p. 103). Gregos que eram filósofos que se debruçaram sobre os exercícios de si
sobre si mesmo, buscando problematizá-los, na sua subjetividade, no seu modo de se
constituir a si mesmo, enquanto corpo que está sendo atravessado por práticas e na
mudança total de um estilo de vida. Para Dias (Idem, p. 105), “a filosofia antiga e seus
exercícios acontecem não como uma construção teórica, mas como uma formação, uma
maneira de viver e de ver o mundo atrelada ao esforço de transformação da existência”.

sumário 1653
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Próximo do que temos com o filósofo, “Ocupar-se consigo não é, pois, uma
simples preparação momentânea para a vida: é uma forma de vida”. (Foucault, 2010, p.
446). O cuidado de si, portanto, traduz-se também numa atitude (ethos), uma maneira de
estar no mundo. Também é um modo de agir, de produzir relações com os outros, de
encarar as coisas.
O cuidado de si é um fio condutor que está sendo tecido por todo trabalho do
ator. Neste contexto, esse cuidado é assim expresso por Foucault: “é preciso que te
ocupes contigo mesmo, que não te esqueças de ti mesmo, que tenhas cuidado contigo
mesmo” (FOUCAULT, 2010, p. 6). Ainda na aula do dia 17 de fevereiro, o filósofo se
pergunta como a noção de cuidado de si, que vigorou desde a antiguidade até o século
IV-V d.C., tendo percorrido toda a filosofia grega e romana, bem como a espiritualidade
cristã, foi excluída do pensamento filosófico moderno, privilegiando-se o conhecimento
de si (gnôthi seautón). Para Foucault, o “momento cartesiano” em muito contribui para
a desqualificação e a exclusão do cuidado de si como preocupação filosófica da
modernidade, postulando o conhecimento como único meio de acesso à verdade.

Como, por que e a que preço, temos nos empenhado em sustentar um


discurso verdadeiro sobre o sujeito, sobre o sujeito que não somos, enquanto
sujeito louco ou sujeito delirante, sobre o sujeito que, de modo geral, nós
somos enquanto falamos, trabalhando, vivemos, e enfim sobre o sujeito que,
no caso particular da sexualidade, nós somos direta e individualmente para
nós mesmos? (FOUCAULT, 2004, p. 308)

Seria, então, o cuidar de si um movimento que nos impulsiona a deixar de


sermos nós mesmos, na perspectiva de tomar distância daquela que seria a nossa
identidade pré-concebida? Em Foucault, não há uma essência humana que teria sido
reprimida ou alienada ao longo da história por diferentes práticas repressivas e que, tão
logo fossem suspensas, fariam aparecer a verdadeira natureza humana em festa,
recolhida consigo mesma. Não que Foucault negue a existência e a importância de
processos históricos e culturais de liberação. Apenas não os confunde com as práticas
de liberdade. Talvez, por isto, aqui caiba perguntar: Seria possível pensar que o
“cuidado de si” é muito mais próximo atualmente da atividade artisticamente
desenvolvida do que da filosofia, tomada como uma busca pela sabedoria?
Estudar a história do cuidado de si e das técnicas de si foi a estratégia que
Foucault adotou para fazer uma história da subjetividade, trazendo esse como um

sumário 1654
VII Seminário Vozes da Educação

objetivo do curso de 1982, que começa com a retomada da questão da subjetividade e


verdade, o que nos fez ver aproximações com o fazer teatral.

E esse “fazer teatral”, o que seria? Pensando em como ocorrem as ações em


ensaios e apresentações teatrais, tudo que é feito no teatro não ocorre
aleatoriamente, mas é “executado”. E as ações realizadas, executadas, com e
no teatro é que vão compor esse fazer teatral. (BUSQUET, s/d)

Contudo, sentimos que o fazer teatral se aproxima do “cuidado de si”, a partir


das noções de exercícios, treinamento e modificações do cotidiano, como proposto por
Stanislavski (1986), ou seja, de um tipo de saber que ocorre na prática, mas que pode
desencadear uma experiência de determinada intensidade.
Gilberto Icle (2010) é um dos autores que produziu reflexões a partir do
pensamento de Foucault, procurando exercitar o próprio pensamento, para
problematizar a relação do teatro com o cuidado de si, buscando as ideias de Foucault a
partir do “cuidado de si” na Antiguidade.
Percebemos uma proximidade bem maior ao verificarmos que os artistas não
investem na construção de mundos de ficção, mas buscam se concentrar nas mudanças
ocorridas no próprio corpo e seus hábitos, gestando assim ações como performances.
Inúmeras vezes intervindo de modo mais direto na realidade, conforme apontado por
Stanislavski (1986).
Vemos assim, que a pesquisa genealógica de Foucault não busca uma verdade a
ser desvelada pelo cuidado de si, mas pode se constituir em forte aliada para
analisarmos como as diferentes práticas do fazer teatral na escola básica se articulam
com as experiências que fazemos de nós mesmos no contemporâneo. E há nessas
análises um ponto de convergência com o autor russo Stanislavski (1986) e seu método
de preparação do ator.

2. Stanislavski e o trabalho do ator sobre si mesmo

É preciso admitir, no ator, uma espécie de musculatura afetiva que


corresponde a localizações físicas dos sentimentos. [...] O ator dotado
encontra em seu instinto o modo de captar e irradiar certas forças; mas essas
forças, que têm seu trajeto material de órgãos e nos órgãos, ele se espantaria
se lhe fosse revelado que elas existem, pois nunca pensou que pudessem
existir (Antonin Artaud).

sumário 1655
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Na processualidade das análises e intervenções deste trabalho, há outros


intercessores para nos ajudar a pensar em que sentidos o teatro pode tomar a dimensão
de um cuidado de si. Artaud nos dá pistas do que Stanislaviski desenvolveu com seu
método, onde o trabalho corporal consciente e a memória emotiva são algumas bases.
Pois o conceito fundamental de Stanislavski é o da Memória Emotiva, em que o
ator usa das suas experiências pessoais para viver determinada circunstância em cena.
Todo mundo sente emoção e Stanilasvski tenta apresentar que o teatro não é a barreira
intransponível de que alguns falam. Com um método participativo aonde o diretor e o
ator ‘jogam’ juntos, em seu livro A preparação do ator (1986), o teatrólogo nos mostra
que a preparação do ator ‘por dentro’ nos permite sentir que o teatro é para todos.
Como dizia Stanislavski (1986, p.38) “[...] a coisa melhor que pode acontecer é
o ator se deixar levar pela peça inteiramente. Ele então vive o papel [...]”. O diretor
russo analisou e acompanhou os grandes atores de seu tempo, além de contar com a
própria experiência. Stanislavski (1988) deu a ver que aqueles intérpretes de sua época
agiam de forma natural e intuitiva – mas que nada havia capaz de traduzir suas atuações
em palavras, que fosse capaz de perpetuar aquele conhecimento.
O núcleo deste sistema desenvolvido por Stanislavski está na chamada “atuação
verossímil”, uma série de técnicas e princípios que hoje são considerados fundamentais
para o desempenho do ator. Tais como buscar em seus sentimentos um episódio de
tristeza, alegria, decepção, etc, para trazer ao seu momento de viver o personagem.
A partir deste ponto, suas práticas criativas passam a fomentar tensões entre arte
e vida, aproximando-se da problematização do cuidado de si, ideia investigada na
última fase dos estudos de Michel Foucault, como dito anteriormente. Trata-se de
estabelecer um conjunto de práticas e exercícios teatrais que se tornam mediadores do
encontro do sujeito com o desconhecido, com o outro. Ocupar-se de si corresponde, no
sistema de pensamento stanislavskiano, a uma técnica ou arte que nos une à noção de
cuidado de si, a partir do questionamento estético da existência. Mas onde se inicia esta
prática?
Dias (2014, p.33) nos ajuda a pensar nesta aproximação quando nos diz que
“não interessa mais precisar onde inicia ou acaba uma ou outra, mas, sim, o que
acontece entre”. E ao que nos remete esse entre?

sumário 1656
VII Seminário Vozes da Educação

E a palavra “entre” não é simplesmente um termo ingênuo ou uma


preposição que indica o espaço de um lugar a outro. É essencial por indicar
uma relação entre territórios distintos[...] suas dimensões, tempos, modos de
funcionamento se constituem de maneiras afins e diferentes (DIAS, 2014,
p.34).

Os atores e seu diretor experimentam, então, no seu fazer teatral, dia a


dia, no presente, no ensaio e nas discussões sobre o que compõem, um entre composto
por trocas e atravessamentos múltiplos. Seus corpos estão inteiros ali, articulando-se
enquanto constroem seu espetáculo.
Stanislavski (1986) propõe um modo outro do ator de estar em cena, com uma
atenção peculiar a humanidade que há nesse ator. Icle (2010) nos ajuda a pensar quando
diz que: “Essa pretensão ocupou os objetivos de Stanislavski, constitui, portanto, um
fundamento para diversos procedimentos, correspondendo a um movimento de
apreensão e compreensão dos processos poéticos, não os reduzindo mais ao acúmulo de
técnicas” (p. 79).
Ainda conforme Icle (2010), a dimensão teatral em Stanislavski está impregnada
de humanidade, o que impulsiona o diretor-pedagogo tanto quanto a pedagogia e a
cultura do teatro, na busca pelo humano. E essa busca pelo humano aparece em relatos,
quando em oficinas teatrais, como a que acompanhei no fazer teatral do Colégio
Estadual Walter Orlandini (CEWO) e da qual trago fragmento de um relato, de
estudante atriz que chamarei de Bia: “É na troca com os meus colegas que percebi,
durante as aulas da oficina de teatro da escola, que é importante exercitar a voz, o corpo,
leituras das peças, mas também é muito importante saber a sintonia do grupo que é
bacana, é ela que liga todo mundo” (BUSQUET, s/d).
Conversando com o que nos disse “Bia” e, de acordo com a ética stanislavskiana
explicitada por Icle (2007), a atenção que se tem está sobre: si mesmo; ao próprio
corpo; ao universo interior; aos companheiros; a toda obra teatral com que se trabalhe,
implica numa transformação de si, buscando o que vivencia no teatro, procurando se
exercitar dentro de seus possíveis, para uma melhor atuação enquanto estudante ator.
A transformação que a prática teatral stanislavkiana gera, provoca, em alguns
sujeitos envolvidos com o teatro, sob determinados acontecimentos, um modo de
constituir-se, de configurar-se como em uma prática. E essa prática provoca um modo
de agir sobre o mundo, de estabelecer e afirmar que se relaciona com a alteridade. Essa
transformação extrapola a individualidade do ator, porque atravessa a atuação de um
sujeito enquanto criador, e não somente como um indivíduo artista.

sumário 1657
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

3. A Pedagogia Teatral de Gilberto Icle: uma conversa com Foucault e Stanislavski


E, nesta parte do artigo, tratamos da Pedagogia Teatral Como Cuidado De Si,
obra escrita pelo autor citado mais acima, Gilberto Icle (2010), onde este dialoga com
Foucault (2010) e Stanislavski (1988), entre outros autores.
Na formação, de uma de nós, no mestrado em educação ocorreu a oportunidade
de um encontro potente com o autor Flávio Desgranges (2017) e, através deste, cheguei
ao autor Gilberto Icle que em algumas de suas obras e artigos realizou uma conversa
com o cuidado de si de Michel Foucault.
O cuidado de si é um exercício espiritual (HADOT, 2014) irredutível por uma
escolha de existência livre. Stanislavski (1988) em sua trajetória considerou seu método
como uma espécie de realismo espiritual, um despojamento de falsas convenções e a
criação sobre o palco de uma vida mais verdadeira e mais emocionante. Há nesse
pensamento stanislavskiano um fio que nos faz lembrar do pensamento de Foucault
(2010), quando este nos coloca os ensinamentos gregos também como os que nos
conduziriam a uma vida inconformada, bela e livre. E, de acordo com aquilo que nos
coloca o autor, que reuniu em sua obra Stanislavski e Foucault:

A busca por tentar inventariar as condições de emergência que possibilitaram


a instauração de um campo de saber denominado Pedagogia Teatral me
levaram a procurar relações entre a ideia de cuidado de si e a pedagogia
teatral de Constantin Stanislavski. Para essa articulação, busquei as ideias de
Michel Foucault, especialmente no seu estudo do cuidado de si na
Antiguidade, com o intuito de desfraldar meu pensamento e poder
problematizar a Pedagogia Teatral como uma espécie de cuidado de si.
(ICLE, 2007, p. 1)

Icle (2007) nos coloca que o teatro com suas diversas práticas tem sido um
instrumento na forma de se conduzir a vida como convém. E, em sua obra, afirma
Gilberto Icle (2010, p. 23) ”Eis a promessa do discurso teatral: a sua prática, do teatro,
ofereceria um caminho para a humanização do homem “[...], o que tenho observado na
vida atravessada pelo teatro.
Durante a vida implicada de uma de nós pelo fazer teatral, surgiu a oportunidade
de conviver e sentir mais proximamente como se constitui o trabalho do diretor e do
professor de teatro, Fernando Mattos, que conhecemos a anos e desenvolve oficinas de
teatro no CEWO em São Gonçalo. O trabalho do Fernando e seus estudantes é da ordem
da criação, pois “[...] professor – artista suporia um professor – criador, um artista na
escola, uma escola com arte, uma aula com arte, antes que uma aula sobre arte”. (ICLE,

sumário 1658
VII Seminário Vozes da Educação

2012, p. 18). E o animador cultural com o grupo de estudantes atores constrói uma
relação pautada na troca e diálogo.
O coordenador e animador cultural Fernando Mattos atua como mediador
quando interage com seus grupos, fazendo com que sejam produzidas tanto ideias
quanto práticas que pretendam modificar sua realidade. E para conversar um pouco com
o conceito de intelectual específico:

[...] um intelectual destruidor das evidências e das universalidades, aquele


que localiza e indica nas inércias e restrições do presente os pontos frágeis, as
aberturas, as linhas de força, aquele que, incessantemente, se desloca, não
sabendo mais ao certo onde estará nem o que pensará amanhã, por estar
completamente atento ao presente. (Foucault, 1999, p. 200)

E o Fernando é um intelectual que se coloca em uma posição específica, onde


sua atuação é local, com um engajamento de alguém que interage com e no grupo em
que está inserido. Ele age sobre problemas práticos, locais. Graças à sua relação com o
conhecimento de um campo específico, opera com uma visão crítica determinada.
Então, as oficinas do CEWO por ele coordenadas, pelo que foi possível acompanhar,
são pensadas como ações, práticas de pensamento, onde cada participante se coloca
como protagonista no fazer teatral durante os encontros.
Nas oficinas de teatro do CEWO as ações são discutidas e realizadas no entre,
pois, “É preciso falar da criação como traçando seu caminho entre impossibilidades”
(DELEUZE, 2013, p. 171), com participação de todos os sujeitos envolvidos nestas
ações, vencendo dificuldades e pensando e recriando muitas vezes até o que se
consideraria impossível. No entanto, não há um professor ensinando, mas um professor-
artista trocando com seus pares. E o coordenador e animador cultural Fernando Mattos
transparece sentir que:

Apenas se emancipando, exercitando a si mesmo, o educador poderá estar


apto para um processo de subjetivação que insista em que cada um eduque-se
a si mesmo. O jogo da construção da liberdade só pode ser jogado como um
jogo coletivo de mútuas interações e relações, em que o Cuidado de Si e do
Outro seja a base recíproca de uma ação ética, pois as ações de uns implicam
em ações de outros. Um jogo em que uns se fazem livres aprendendo da
liberdade dos outros, em que uns se fazem livres na medida em que ensinam
a liberdade aos outros. (BOY, 2008, p. 228)

Com as análises e intervenções dizemos que os estudantes atores e seu


coordenador diretor jogam com liberdade, como colocado por Boy (2008) e, nas

sumário 1659
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

oficinas do CEWO, podem perceber como o teatro e seu fazer contribuem com seus
processos socializadores, estéticos, cognitivos, de subjetivação e construção artística,
exercitando essa liberdade nas ações individuais e no coletivo. Nesses encontros do
fazer teatral no CEWO são feitas não apenas leituras dos textos das peças, mas da
realidade em que estes estudantes atores estão inseridos.
Ainda, conforme colocado por Icle (2012), é necessário que o professor artista
(teatro) possa “produzir arte” e, portanto, “ser artista”, possibilitando uma prática-
pedagógica, aliás uma aprendizagem (experimentação) como processo de criação-
investigação junto aos estudantes atores, desse modo, possibilitando a estes serem
também estudantes diretores, estudantes dramaturgos, estudantes iluminadores, etc.

Conclusões e aberturas possíveis

A ideia de problematização, em Foucault, se constitui a partir daquilo que se


dá a ver no campo discursivo; ou seja, o dito e o não dito, de algo que está
em jogo, que se apresenta, que se diz sobre, algo que encerra o visível e o
enunciável. No jogo de verdades das práticas discursivas se encontra um
modo particular de pensar o discurso (Gilberto Icle).

Em dado momento, durante a escrita deste artigo, surgiram algumas análises


sobre a obra de Gilberto Icle, atravessada por Stanislavski e Foucault. Onde suas
práticas de cuidado de si passaram a fomentar tensões entre arte e vida, aproximando-se
da problematização do cuidado de si, ideia investigada por Michel Foucault.
Observamos tratar-se de um conjunto de práticas e exercícios que, no contexto da
antiguidade, tornam-se mediadores do encontro do eu com o desconhecido. Tanto para
Foucault e Stanislaviski como para Icle, ocupar-se de si corresponde, neste modo de
experimentação, a uma técnica ou arte que nos une à noção do pensamento e
questionamento estético da existência. Fonte de tantos mal-entendidos, como nos diz
Gros (2010, p. 643- 644)

O que Foucault encontra no pensamento antigo é a ideia de inscrever uma


ordem na própria vida, mas uma ordem imanente, que não seja sustentada por
valores transcendentais ou condicionada do exterior por normas sociais. [...]
A elaboração ética de si é antes o seguinte: fazer da própria existência, deste
material essencialmente mortal, o lugar de construção de uma ordem que se
mantém por sua coerência interna. [...]. Esta ética exige exercícios,
regularidades, trabalho; porém sem efeito de coerção anônima. A formação,
aqui, não procede nem de uma lei civil nem de uma prescrição religiosa [...]
não é uma obrigação para todos, é uma escolha pessoal de existência.

sumário 1660
VII Seminário Vozes da Educação

Numa perspectiva de pensar em grupo teatral e sentir nos corpos de cada um, e
no grupo, o atravessamento de diversas práticas sensíveis ao se vivenciar situações no
teatro, na vida. E essa espécie de sistema tem fios, que traduzem certa inquietude, e que
são inerentes ao sujeito, não são fáceis ou dóceis, mas que estabelecem a relação deste
mesmo sujeito com o mundo e com as práticas da filosofia, levando-o a buscar o
cuidado de si, por meio de uma reorganização progressiva do próprio ser.
Nesse contexto os atores, ao terem contato com o teatro, potencializam as
relações com os próprios corpos e os dos colegas, e com o professor – artista – diretor,
envolvidos por uma liberdade, segundo Boy. Seus corpos têm dimensões de movimento
e de pausa, oscilando a potência das ações, experimentando sentimentos diversos,
levando os efeitos a reverberarem em suas vidas, para além da experimentação no
teatro, em uma verdadeira humanização dos sujeitos que são atravessados por este.
E, em seus estudos, Foucault nos mostra a constituição dos indivíduos através do
assujeitamento em nossa sociedade e, talvez, a nossa aposta aqui foi a de mostrar que a
experiência do trabalho coletivo de um fazer teatral, pode descortinar uma possibilidade
de experiência de si sobre si mesmo com outro modo de constituição, onde o cuidado de
si se faz presente.

Referências
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BUSQUET, Líbia. Teatro e Saberes em cena: o que há no fazer teatral no chão de uma
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sumário 1661
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. 7ª ed. Rio de


Janeiro: Edições Graal, 1994.

GROS, Frederic. Situação do Curso. In: FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do


Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

ICLE, Gilberto. Pedagogia Teatral como Cuidado de si. São Paulo: Hucitec, 2010.

_______, Gilberto. Pedagogia Teatral como cuidado de si: problematizações na


companhia de Foucault e Stanislavski. Rio de Janeiro: ANPED, 2007.

_______, Gilberto. Pedagogia da arte: entre-lugares da escola. Porto Alegre, 2012.


Editora da UFRGS.

STANISLAVSKI, Constantin. Manual do ator. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

_______, Constantin. A preparação do ator. 7ª ed. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1986.

sumário 1662
VII Seminário Vozes da Educação

CAMINHANDO, PENSANDO, CRIANDO COM OS MOVIMENTOS


MIGRATÓRIOS E AS REDES EDUCATIVAS

Marcelo Machado
Proped/UERJ
mar_chado@hotmail.com

Maria Cecilia Castro


Proped/UERJ
mcecilias.castro@gmail.com

A história da humanidade foi/é marcada por travessias. Nossos antepassados


mais fortemente, tinham como característica o nomadismo. Essa prática justifica-se pela
necessidade de sobrevivência às dificuldades apresentadas por diferentes fatores, seja
ambiental ou social.
Entretanto, com o passar dos tempos outros desafios, como a violação de direitos
humanos, garantidos inclusive por acordos internacionais desde a Segunda Guerra
Mundial, possibilitam que as migrações sejam reconhecidas a favor da manutenção da
vida, segurança e liberdade.
De acordo com o relatório da Organização Internacional para as migrações, o
Brasil aumentou em 20% sua população de migrantes de 2010 a 2015. Este dado se
reflete através de inúmeras reportagens divulgadas pelas mídias sobre a vinda de
haitianos e venezuelanos para o Brasil.244
Menezes e Reis (2013), analisam documentos de organismos internacionais que
abordama discussão sobre a garantia dos direitos humanos, mais especificamente o
direito de crianças e adolescentes. Estes documentos compreendem a necessidade de
assegurar o acesso à saúde e educação. Neste sentido, nos propomos a discutir a questão
de um desses direitos: a educação.

244
https://nacoesunidas.org/populacao-de-migrantes-no-brasil-aumentou-20-no-periodo-2010-2015-
revela-agencia-da-onu/

sumário 1663
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Apesar de apresentarmos esses dados, nossas pesquisas não se restringem aos


refugiados, tão amplamente apresentados nas mídias atualmente. Nosso foco de
interesse está nos movimentos migratórios. Nas experiências de deslocamento feitas por
inúmeros e diferentes sujeitos ao longo dos tempos. Muitas são as justificativas desses
deslocamentos. Nossas ancestralidades são as evidências desses movimentos. Fomos e
somos constituídos por travessias, passagens que trazem rastros, marcas e pegadas.
Somos andarilhos nos ‘espaçostempos’245 em que nos constituímos.
Neste sentido, faz-se importante mencionar quais as redes que nos constitui
enquanto pesquisadores. Estamos vinculados ao campo teórico-epistemológico das
pesquisas nos/dos/com os cotidianos e desta forma conversamos com autores que nos
permitem pensar as práticas cotidianas e a complexidade da vida para além das questões
macro políticas e econômicas. Destacamos aqui as contribuições de Michel de Certeau
(2014) para nosso campo teórico e propomos redimensionar suas ideias a partir de
nossas próprias redes de ‘conhecimentossignificações’.
Luce Giard aponta que em Certeau:

São sempre perceptíveis um elã otimista, uma generosidade da inteligência e


uma confiança depositada no outro, de sorte que nenhuma situação lhe parece
a priori fixa ou desesperadora. Dir-se-ia que, sob a realidade maciça dos
poderes e das instituições e sem alimentar ilusões quanto a seu
funcionamento, Certeau sempre discerne um movimento browniano de
microrresistências, as quais fundam por sua vez microliberdades, mobilizam
recursos insuspeitos, e assim deslocam as fronteiras verdadeiras da
dominação dos poderes sobre a multidão anônima. (2014, p.17)

Assim, acreditamos que somos constituídos a partir de inúmeras e diferentes


redes de ‘conhecimentossignificações’ 246 que se dão em diversos e complexos
‘espaçostempos’. Tanto os deslocamentos geográficos, quanto as escolas, portanto, se
constituem como alguns desses ‘espaçostempos’. Garantir o direito de crianças e jovens
ao acesso à educação, é possibilitar que experiências de reinvenção de si e do mundo
aconteçam.

245
O desenvolvimento das pesquisas, nos/dos/com os cotidianos, nos fez compreender que as dicotomias
herdadas do modo de construção do pensamento na Modernidade significavam limites ao que
precisávamos tecer quanto aos pensamentos necessários às redes educativas que estudávamos. Por esse
motivo, adotamos essa forma de escrever os termos antes dicotomizados: juntando-os, grafando-os em
itálico, entre aspas simples, pluralizando-os com frequência e, algumas vezes, invertendo o modo como
escutamos serem ditos e escritos (ex práticateoria em lugar de teoria-prática; aprendizagemensino e não
ensino-aprendizagem; dentrofora das escolas etc).
246
Ao criar estes termos, assim reunidos, Oliveira (2012), partindo do pensamento de Certeau (2012) que
os chama “praticantes”, vai além dele, mantendo-se coerente com o pensamento deste autor que os vê
criando ‘conhecimentossignificações’ permanentemente.

sumário 1664
VII Seminário Vozes da Educação

Neste sentido, os currículos escolares necessitam estabelecer diálogos com estes


‘praticantespensantes’. Alves (2019) define que os currículos são:

a articulação entre problemas sociais e ações e experiências desenvolvidas


nas escolas, buscando compreender a multidão de seres que nisto está
envolvida, numa tentativa de pensar junto EDUCAÇÃO e ENSINO, este
‘entrelugar’ ocupado pelos currículos oficiais e aqueles criados nos
cotidianos escolares, em conjunto com as propostas a eles feitas pelos
‘praticantespensantes247’ das diversas redes educativas.

Desta maneira, faz-se necessário problematizar como os ‘praticantespensantes’


tecem os currículos com diferentes questões - dentre elas, os movimentos migratórios -
nos/dos/com os cotidianos escolares a partir de múltiplas relações ‘dentrofora’ destes
‘espacostempos’.
Entendemos, em nossas pesquisas, a importância da criação de artefatos
culturais que potencializem e articulem narrativas sobre as questões que surgem nos
cotidianos escolares. Este trabalho pretende dialogar com um desses artefatos: o cinema.
Segundo Deleuze, o cinema cria realidades que nos permite pensar acerca de
temas produzidos, tecendo inúmeros ‘conhecimentossignificacões’, contribuindo na
formação dos ‘praticantespensantes’ em seus cotidianos, inclusive as escolas. Não
estamos falando que, através do cinema, levamos realidades para as escolas. Alguns
consideram o cinema como ‘janelas da realidade’, o que pensamos não ser.
Concordamos com Deleuze, que a realidade é questionável. Todavia, quando assistimos
a um filme, somos transportados para outra dimensão, observamos o mundo de outro
lugar. As imagens e sons do cinema não devem obedecer aos limites do quadro, mas
fazer vibrar intensidades outras.
Nessa mesma perspectiva, Certeau (2014) apresenta argumentos sobre a
historiografia que também nos ajuda a refletir sobre o cinema quando diz que ao
pretender relatar o real, ela o fabrica. Ela é performática. Ela torna crível o que diz e
faz agir por essa razão. Ao produzir crentes, ela produz praticantes. (p.53).
Assim, em nossas práticas pedagógicas, exibimos filmes que nos possibilitem
conversar sobre temas relevantes para a formação dos estudantes. Vale ressaltar, que
entendemos o cinema como um artefato cultural e tecnológico, que rompe com práticas
pedagógicas engessadas muitas vezes apresentadas nos currículos “oficiais”. Para nós, o
cinema permite questionamentos que ampliam saberes e conhecimentos gerando outras

sumário 1665
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

criações e aprendizagens. Permite inclusive o encontro com o mundo, abordando


dimensões da existência, jorrando na tela potências de vidas.
Neste texto escolhemos falar sobre dois filmes que apostamos serem
desencadeadores de discussões relevantes para nossos discentes. Desejávamos retratar
narrativas de mulheres protagonistas de suas próprias vidas. `La noire de...` (Senegal,
1966) e ‘Que horas ela volta? ’ (Brasil, 2015) contam as histórias de Diouana e Val, que
saíram da sua terra natal para trabalharem como empregadas domésticas em outra
região, inclusive outro país.
Os filmes foram escolhidos por se tratarem de obras de ‘espaçostempos’ tão
distintos mas que existiam alguma similaridade entre ambos. Como a narrativas de
mulheres migrantes que vão trabalhar de domésticas. E são justamente, nessas
entrelinhas, que nossa observação se aguça: por que em tempos tão diferentes sofreram
tanto com as mesmas questões? O que enquanto sociedade fizemos para modificar isso?
Essas indagações, na maioria das vezes, não existiriam nem resposta. No entanto, nos
faz pensar sobre esses múltiplos caminhos possíveis que tomamos enquanto sociedade.
Faz-nos pensar o papel do feminino nas relações familiares, nos faz observar a migrante
feminina que também busca o seu ‘lugar sob o sol’.
Em sua dissertação de mestrado, Lopes (2014) afirma que nos últimos anos, o
cinema ficcional norte-americano passou a retratar, de forma muito mais significativa
que em anos anteriores, temáticas que exploravam a condição dos imigrantes latinos
vivendo no país. Além disso, grande parte destas produções cinematográficas as
mulheres têm um papel de destaque, sendo, frequentemente, as protagonistas. (p.61).
Entretanto ela pondera que:

Todavia, enquanto o herói masculino é definido por seu trabalho, ações, e/ou
princípios, a heroína é usualmente definida por sua beleza ou sex appeal.
Interessa-nos, neste momento, assinalar que na maior parte dos filmes
hollywoodianos este herói/protagonista é um homem branco e solteiro à
procura de riqueza ou poder, isto é, uma figura inserida no WASP. De acordo
com Griffin e Benshoff, este fato não deve ser encarado como uma surpresa,
uma vez que esta representa a ideologia do status quo da sociedade norte-
americana. (p.62)

Consequentemente, reservavam-se às mulheres, com frequência, trabalhos


considerados “femininos”, como os de secretárias, assistentes e recepcionistas.
Os filmes analisados por nós, revela a forma como essas mulheres conseguem
subsistir utilizando sua força de trabalho numa perspectiva de cuidado com o outro,

sumário 1666
VII Seminário Vozes da Educação

muitas vezes faz com que elas abram mão de suas próprias vidas. Fizemos uso dessas
narrativas para sensibilizar os sentidos a partir do que já mencionamos serem as
múltiplas redes de ‘conhecimentossiginificacões’ que nos formam e somos formados
cotidianamente.
A metodologia consistiu no que denominamos em nosso grupo de pesquisa
como ‘cineconversas’. Dialogamos com Alves e Ferraço (2018) ao propormos as
conversas como metodologia de nossas pesquisas. Estes autores afirmam que as
conversas são situações que insurgem nas redes de relações que estabelecemos com as
pessoas em nosso dia a dia, sujeitas às indeterminações e aos acasos que fazem das
nossas vidas uma permanente abertura diante do imprevisto. (p.42)
Primeiro exibíamos os filmes com nossos estudantes da rede pública do estado
do Rio de Janeiro, mais especificamente no município de Duque de Caxias. Em seguida,
conversamos acerca dos afetos produzidos por estes filmes.
Nesse modo, os ‘conhecimentossignificações’ produzidos são, sem dúvidas,
importantes nos processos formativos dos ‘praticantespensantes’, que nesses processos,
‘fazendopensando’’ os mesmos, os percebem como inseridos e entrelaçados nos
movimentos da pesquisa. Isto se estende, nesta pesquisa que realizamos, nos ajudando a
compreender e pesquisar o caráter multifacetado das redes que nos formam e nos
ajudam a formar os jovens dentro dos nossos cineclubes e conversas. Oliveira (2008)
reafirma nosso movimento com os cotidianos, dizendo:

Isso significa compreender concretamente essas múltiplas e diversas


realidades que são nossas escolas reais, com seus alunos, alunas, professores
e professoras reais, nos coloca diante do desafio de mergulhar nestes
cotidianos, buscando neles mais do que marcas das regras gerais de
organização social e curricular, outras marcas da vida cotidiana, dos acasos e
situações que continuem a história de vida dos sujeitos pedagógicos que, em
processos reais de interação, dão vida e corpo às propostas curriculares.
Compreendê-los em suas complexidades e articulações, para nelas buscar
intervir de modo mais consoante com as especificidades locais e individuais,
respeitando a importância desses elementos frequentemente negligenciados,
por sua irrelevância científica ou, o que é mais grave, por sua irrelevância
social e política é um trabalho de pesquisa que escapa às possibilidades das
metodologias clássicas. (p. 52)

Através dessa metodologia de pesquisa, acreditamos permitir que os


‘praticantespensantes’ e os estudantes se conectem através das suas falas e das
possibilidades que se criam. Assim, é muito importante percebemos as redes em que
esses alunos circulam e que passam por eles. Concordamos com Oliveira (2008) quando

sumário 1667
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

entendemos que esse tipo de pesquisa nos/dos/com os cotidianos foge das pesquisas
clássica onde se busca a separação entre o objeto e o cientista. Afirmamos e
reconhecemos as negociações entre os elementos envoltos na tessitura dessas pesquisas.
A validade da ciência está em sua conexão com a vida cotidiana (MATURANA,
2001, p. 30 apud OLIVEIRA, 2008, p. 29). Através dessa escrita do autor chileno,
podemos observar o quanto ciência e cotidiano não podem ser tratados de modo
dicotômico, muito pelo contrário, é possível e fundamental que encontremos respostas
científicas nas nossas atividades cotidianas, que nos usemos desses caminhos para
movimentar ações nos mais diversos ‘espaçostempos’, inclusive os escolares.
Nesse pensamento, Maturana (1997) aponta os diferentes aspectos de uma
mesma situação, como a existência de caminhos diversos que os observadores podem
ter trilhado para chegar naquela visão. Assim, concordamos com os pressupostos de
Alves (2012-2017) quando descreve a importâncias das nossas redes que nos entrelaçam.
De acordo com as redes em que estamos inseridos, formando e sendo formado, cada
indivíduo compreende os filmes de forma diferente, e nem por isso estão errados ou
incompreendidos, apenas estão observando a uma situação por um ângulo distinto.
E justamente neste aspecto que torna essas leituras tão importantes para nossas
pesquisas, pois compreende que todas as ações que se concretizam no/dos/com os
cotidianos nos ‘espaçostempos’ escolares são possibilidades de tessitura de reflexões,
saberes e ‘conhecimentossignificações’. Sendo ainda possível a compreensão de modo
coletivo, realizada através das ‘conversas’.
Entendemos as conversas de Maturana (2001) como um possibilitador que
fomentam e enriquecem as relações humanas, lemos o que o autor escreve:

Chamo de conversação nossa operação nesse fluxo entrelaçado de


coordenações consensuais de linguajar e emocionar e chamo de conversações
as diferentes redes de coordenações entrelaçadas e consensuais de linguajar e
emocionar que geramos ao vivermos juntos como seres humanos.
Como animais linguajantes, existimos na linguagem, mas como seres
humanos existimos (trazemos nós mesmos à mão em nossas distinções) no
fluir de nossas conversações, e todas as nossas atividades acontecem como
diferentes espécies de conversações. Consequentemente, nossos diferentes
domincios de ações (domínios cognetivos) como seres humanos (culturas,
instituições, sociedades, clubes, jogos, etc) são constituídos como diferentes
redes de conversações, cada uma definida por um critério particular de
validação, explícito ou implícito, que define e constitui o que a ela pertence.
A ciência, como um domínio cognitivo, é um domínio de ações, e como tal é
uma rede de conversações que envolvem afirmações e explicações validadas
pelo critério de validação das explicações cientificas sob a paixão de explicar.
(MATURANA, 2001, p. 132)

sumário 1668
VII Seminário Vozes da Educação

Nessas conversas então é possível uma maior aproximação entre


‘docentediscente’, tornando a relação de maior confiança, que facilita o diálogo. Os
alunos se sentem mais à vontade e livres para falar sobre seus pensamentos. É
perceptível, para alguns adolescentes, é muito difícil se expressar em público
formalmente, no entanto, entendemos justamente que as conversas podem contribuir
para essa ‘quebra’, deixando os alunos mais ‘à vontade’ para expor opiniões, narrarem
ou trocarem as experiências. Larrosa (2003) escreve sobre isso:

Nunca se sabe aonde uma conversa pode levar... Uma conversa não é algo
que se faça, mas algo no que se entra...e, ao entrar nela, pode-se ir aonde não
havia sido previsto...e essa é a maravilha da conversa...que, nela, pode-se
chegar a dizer o que não queria dizer, o que não sabia dizer, o que não podia
dizer...
E, mais ainda, o valor de uma conversa não está no fato de que ao final se
chegue ou não a um acordo...pelo contrário, uma conversa está cheia de
diferenças e a arte da conversa consiste em sustentar a tensão entre as
diferenças... (p. 212)

Assumimos que ao analisarmos as conversas após as sessões dos filmes estamos


passíveis de encontrar os mais variados assuntos e podemos chegar as mais diversas
conclusões ou a algumas ‘inconclusões’... As narrativas podem conter histórias de vida,
fatos relacionados às redes que os alunos estão inseridos, pensamentos e reflexões,
enfim diversas manifestações, o que tentamos dizer é que as possibilidades são amplas e
diversas quando se permite que o (s) outro (s) fale também. Para nós, professores, é
comum falarmos o tempo todo em sala de sala e, devido à extensão dos conteúdos
programáticos, não permitimos os alunos de falar ou que apenas falem pouco. E nesse
movimento de ‘verouvirpensar’ os filmes e ‘conversar’ sobre ele, podem abrir novas
perspectivas e concepções, incentivando que falem mais e ouçam os outros alunos
também.
Essas tessituras permitidas pelas conversas nos ‘espaçostempo’ escolar são
existencialmente o nosso principal proposto na pesquisa, é uma confecção de escrita que
acontece nos ‘entres’ das formações, essas trocas permitem ‘fazeressaberes’ diversos e
múltiplos. Onde buscamos sempre compreender os Personagens Conceituais tecidos
nessas relações. Para Deleuze, essas personagens não são necessárias uma pessoa física,
mas sim ideias e pensamentos que podemos criar a cerca do que estamos
‘vendoouvindopensando’.
Ainda com Deleuze (1992) compreendemos que:

sumário 1669
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

o personagem conceitual não é o representante do filósofo, é mesmo o


contrário: o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem
conceitual e de todos os outros, que são intercessores, os verdadeiros sujeitos
de sua filosofia. Os personagens conceituais são os “heterônimos” do filósofo,
e o nome do filósofo, o simples pseudônimo de seus personagens.
(DELEUZE; GUATARI, 1992:78 apud ALVES, 2018).

Desta forma, os personagens conceituais são intercessores do pensamento,


permitindo questionamentos que levem a criação e ampliação em torno de questões
outras. Assim, em nossas conversas, pudemos destacar algumas problematizações
apresentadas pelos estudantes. Muitos se reconheceram nessas histórias, como filhos,
irmãos e amigos de mulheres migrantes que lutam por seus sonhos e/ou melhores
condições de vida. Muitas delas tiveram sua liberdade de alguma forma cerceada. Ao
mesmo tempo, precisaram abrir mão do cuidado de si, em prol do (s) outro (s).
Ainda nesses relatos, uma das questões mais discutidas, foi à concepção
de trabalho. Apesar de serem remuneradas por seu trabalho, elas trabalhavam
ininterruptamente, estabelecendo uma linha tênue entre o trabalho remunerado e as
relações pessoais. Nessas conversas, grande parte dos estudantes relacionaram esse
trabalho como uma analogia à escravidão.
As conversas permitiram os alunos a dialogar sobre a vida das protagonistas que
eram mulheres, imigrantes, pobres e buscavam uma condição de vida melhor. No
entanto, tiveram percalços nos seus caminhos e uma história de vida de muita coragem e
determinação. Os filmes produzidos em ‘espaçostempos’ completamente diferentes
refletiam um traço social atemporal, que precisa ser discutido no ‘dentrofora’ das
escolas.
Importante ressaltar, que apesar dos aspectos bem semelhantes em algumas
passagens dos filmes, os eixos principais das histórias são bem diferentes: ‘La noire
de...’ trata diretamente da relação de Diouana com seus empregadores franceses,
enquanto “Que horas ela volta? ” busca dar luz a relação de possibilidade de mobilidade
social existente na personagem de Jéssica e no que ela significa para sua mãe
(esperança) e para seus patrões (ameaça).
Mesmo assim, foi possível em nossas conversas apontarmos diversas
características que vão ao encontro nos dois filmes, especialmente quando abordamos o
comportamento dos patrões em relação à forma de lidar com suas empregadas. Observo
na fala dos alunos o quanto ainda é um fato presente em nossa sociedade e quão é
necessária a sua discussão e criticidade.

sumário 1670
VII Seminário Vozes da Educação

Ademais, entendemos com Deleuze, o cinema como potência do real,


possibilitando pensarmos a respeito de complexas e múltiplas temáticas existentes. Por
estes motivos, acreditamos na relevância do cinema nos currículos escolares, pois
através deste, é possível a reinvenção de si e do mundo.
Ao narrar nossas experiências fílmicas, podemos nos remeter a ideia de
resistência dos vagalumes, conforme Didi Huberman nos indica. A cultura do
espetáculo muitas vezes nos impede de sentir, ver quando a noite é mais profunda,
somos capazes de captar o mínimo clarão, e é a própria expiração da luz que nos é
ainda mais visível em seu rastro, ainda que tênue. (p. 27)
Com a leitura de Huberman, nos identificamos como esses pequenos seres de luz
própria, que lutam e resistem para ainda permanecer brilhantes, pra permanecerem
levando luz a outros ‘espaçostempos’ e sobrevivendo nesse mundo de clareiras e
espetacularizações, em que as forças hegemônicas, em todos os lugares, permanecem
exercendo suas relações de poder, inclusive agindo dentro das salas de aulas e nas
relações tecidas entre ‘docentesdiscentes’. Ao ponto que subvertemos o currículo
mínimo exigido, achamos espaços na agenda de um calendário tão sufocado e
externamente decidido, exercemos nosso papel de vagalume, levando para o ‘dentrofora’
escolar outras possibilidades, outras maneiras, outras ideias... indo além daquelas pré-
definidas e determinadas.
Apesar dos pesares, apesar das fiscalizações, do controle, das exigências, do
cansaço e de muitas outras coisas, continuamos cumprindo o obrigatório e vistoriado e
fazendo e criando o “ mais! ”. Nossas ‘práticasteorias’ vão sempre ao encontro do que
acreditamos enquanto professores e cientistas.

Referências
Alves, N. & Ferraço, C. E. Conversas em redes e pesquisas com os cotidianos – a força
das multiplicidades, acasos, encontros, experiências e amizades. In: RIBEIRO, T.,
SOUZA, R. & SAMPAIO, C. S. Conversa como metodologia de pesquisa: por que
não? Rio de Janeiro, Ayvu, 2018.

Certeau, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução: Ephraim Ferreira Alves.


21. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

______. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Tradução: Guilherme João de


Freitas Teixeira – 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

sumário 1671
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Deleuze, G.; Guattari, F. Os personagens conceituais. In: DELEUZE, Gilles’


GUATTARI, Felix. O que e filosofia? Tradução: Bento Prado Junior e Alberto Alonso
Munhoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

GUÉRON, R. Da imagem ao clichê, do clichê à imagem: Deleuze, cinema e


pensamento. Rio de Janeiro: Nau editora, 2011, 272 páginas.

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência.Revista


Brasileira de Educação. Rio de Janeiro/RJ: ANPED (Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação), jan-abr 2003, (19). Disponível em:
<http://www.anped.org.br/rbe/edicoes/
numeros-anteriores>. Acesso em: 10 mar. 2017.

LOPES, Mariana Franco. Mulheres, imigração e cinema: as imigrantes latinas nas


produções fílmicas norte-americanas a partir do ano 2000. (Dissertação de Mestrado
em História). UFRJ, 2014.

MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana / Tradução: Cristina


Magro, Victor Paredes – Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001

OLIVEIRA, Inês Bragança. Certeau e as artes de fazer: as noções de uso,


táticatrajetória na pesquisa em educação. In: Nilda Alves e Inês B. Oliveira (Orgs.)
Pesquisas nos/dos/com os cotidianos das escolas – sobre redes de saberes.
Petrópolis/RJ: DP et Alii, 2008: 49-64

Filmes
La noire de... (Senegal, 1966 - Tradução: A negra de...). Direção: Ousmane Sembene.
Preto e Branco. Drama. 55 minutos.

Que horas ela volta? (Brasil, 2015). Direção: Anna Muylaert. Colorido. Drama. 114
minutos.

sumário 1672
VII Seminário Vozes da Educação

CONVERSAS E ESCRITAS DIARÍSTICAS: ENCONTROS ENTRE


PROFESSORAS DE APOIO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO

Jussara Silva Cavalcante


FME/Niterói
jussarascavalcante@gmail.com

Sara Busquet
FME/Niterói e FFP/UERJ
sarabusquet@gmail.com

Introdução
Este artigo é efeito do encontro entre duas professoras entre Universidade
e Escola Básica, conversas e escritas diarísticas de ambas. Em 2013, iniciamos, na
mesma turma, o curso de graduação em Pedagogia na Faculdade de Formação de
Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ). Durante nossa
trajetória no curso, vivenciamos momentos juntas, mas ainda nada havia se passado
entre nós.
Sara foi bolsista de Iniciação a Docência do Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) no Subprojeto PIBID/CAPES/FFP/UERJ do
Curso de Pedagogia248, coordenado, na época, pela Professora Doutora Rosimeri Dias e
pela Professora Doutora Anelice Ribetto. Permaneceu durante os anos de 2014 e 2015,
também no início de 2016. Jussara também foi bolsista de Iniciação a Docência do
mesmo projeto, mas em 2016 e 2017, e, na época, era coordenado pela Professora
Doutora Rosimeri Dias e pela Professora Doutora Mairce Araújo.
Sem termos vivido, no mesmo período, o Subprojeto PIBID de
Pedagogia da FFP/UERJ, encontramo-nos, mesmo que sozinhas e em experiências
248
Na época em que participamos (2014-2015 e depois 2016-2017), o Subprojeto de Pedagogia articulava
professores e estudantes na perspectiva da pesquisa intervenção e da cartografia, para uma análise
micropolítica das práticas, dos aprendizados, dos acontecimentos, das políticas de cognição, da formação
inventiva de professores e das relações que constituem o cotidiano da Escola Básica e da Formação inicial
e continuada de Professores. Disponível em http://www.ffp.uerj.br/index.php/2-uncategorised/81-grupos-
de-pesquisa-do-dedu Acesso em 21/09/2019.

sumário 1673
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

distintas, com o método da cartografia (DELEUZE; GUATARRI, 1995), com o grupo


de estudos e com o dispositivo249 do diário de campo.Segundo Barros e Kastrup (2009),
a cartografia tem como finalidade desenhar a rede de forças à qual o objetivo ou
fenômeno em questão se encontra conectado. Há no que foi experienciado, segundo
Parnet e Deleuze (1998), uma solidão povoada:

Quando se trabalha, a solidão é, inevitavelmente, absoluta. Não se pode fazer


escola, nem parte de uma escola. Só há trabalho clandestino. Só que é uma
solidão extremamente povoada. Não povoada de sonhos, fantasias ou
projetos, mas de encontros. Um encontro é talvez a mesma coisa que um
devir ou núpcias. É do fundo dessa solidão que se pode fazer qualquer
encontro. Encontram-se pessoas (e às vezes sem as conhecer, nem jamais tê-
las visto), mas também movimentos, idéias, acontecimentos, entidades.
(PARNET; DELEUZE, 1998, p. 14)

Em 2016, fizemos o concurso para o cargo Professor I de Apoio Educacional


Especializado da Fundação Municipal de Educação (FME) de Niterói. Para este cargo,
foram inicialmente criadas 50 vagas e, em 2017, tivemos a chamada destas mesmas
vagas. Os dias, as semanas, os meses foram se passando e não houve a convocação de
mais concursados. Este foi o primeiro concurso para professor de apoio educacional
especializado do município de Niterói. Antes, estas professoras eram contratadas pelo
município ou eram professoras regentes concursadas desviadas de função.
Apenas em fevereiro de 2019, após ações no Ministério Público e após muita
luta das concursadas não convocadas, das e dos já servidores públicos do município e
diversas mobilizações do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (Sepe) de
Niterói em defesa da Educação pública e gratuita e de qualidade socialmente
referenciada, foram criados mais 403 cargo de Professor I de Apoio Educacional
Especializado. Nesta última chamada para este cargo, nós fomos convocadas.
Coincidentemente, ficamos alocadas na mesma escola e acompanhando
estudantes diagnosticados com deficiências que são acolhidos em um abrigo público.
Durante os dois meses iniciais de nosso trabalho, fomos ao abrigo nos encontrar com
estes estudantes para termos um momento de adaptação. A aposta foi a de produzir um
espaço de encontro e conversa entre nós – professoras de apoio educacional
especializado e estudantes diagnosticados com deficiências – para que depois
frequentássemos juntos a escola.

249
Segundo Deleuze (1990), dispositivos são máquinas de fazer ver e fazer falar.

sumário 1674
VII Seminário Vozes da Educação

Também, em fevereiro deste ano, cursamos juntas a Disciplina Sujeito e


Sociedade, ministrada pela Professora Doutora Rosimeri de Oliveira Dias, do Programa
de Pós-graduação em Educação – Processos Formativos e Desigualdades Sociais
(PPGedu) da FFP/UERJ. Jussara participou como ouvinte da disciplina e Sara como
estudante do Mestrado em Educação do PPGedu e membro do Coletivo Diferenças e
Alteridade na Educação250.
Estar juntas, nesses dois espaços, entre Universidade e Escola Básica,
conversando, nos encontrando, escrevendo nos diários de campo, problematizando as
experiências tecidas entre nós têm sido um movimento contínuo de inquietude.
Movimento esse (a inquietude) que “começa no cérebro e mina nossa relação com o
espaço, destruindo sua familiaridade e suas certezas” (LARROSA, 2016, p. 104).
Assim, inquietamente, problematizamos, em nossas escritas diarísticas, o que emerge do
encontro entre nós: a noção de encontro, questões sobre corpo, docilização dos corpos,
norma e disciplina na escola. Encontro, pensando com Skliar (2017), que não é
consenso apenas, mas “también de fricción, conflictos, dificultades para conversar, para
comprendernos” (p. 75).

Encontros

se o que eu estou chamando de pedagogia (em uma generalização abusiva e


sem dúvida brutal) não é capaz de nos dar coisas que sejam válidas como
reais e, inclusive, contribui para a desrealização do real e a correlativa
desvitalização da vida, talvez fosse preciso começar a problematizar a sério
nossas formas de olhar, de dizer e de pensar o educativo, nossas formas,
definitivamente, de habitar esses espaços (não só de estar neles). Para que
esse modo de olhar, de dizer e de pensar nos faça encontrar talvez uma
realidade que mereça esse nome e na qual nos sintamos viver (Jorge
Larrosa).

O autor nos convida a olhar, a dizer e a pensar de formas outras o espaço


educativo e assim o habitarmos. Durante os dois primeiros meses de trabalho, forjamos
o espaço educativo para nos encontrarmos com os estudantes no abrigo público em que

250
O Coletivo Diferenças e Alteridade na Educação foi criado em 2011. No coletivo desenvolvemos
projetos de pesquisa, de ensino e de extensão vinculados ao Departamento de Educação e ao Programa de
Pós-Graduação em Educação, Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Faculdade de Formação
de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Também nos vinculamos ao Núcleo de
Pesquisa Vozes da Educação Memória(s), História(s), Formação de Professores(as). O Coletivo
Diferenças e Alteridade na Educação, coordenado pela professora Anelice Ribetto, atualmente, reúne
professoras da escola básica, professoras e estudantes da FFP/UERJ, gestoras das redes públicas de
ensino e famílias – principalmente mães – de estudantes ditos “pessoas com deficiências”.

sumário 1675
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

moram. Encontramo-nos com os estudantes que estávamos “destinadas” a acompanhar,


mas também produzimos encontros com outras pessoas acolhidas neste abrigo.
Antes de conhecê-los e de chegarmos ao abrigo para trabalharmos com eles,
muito nos foi dito, na escola que trabalhamos, sobre estes estudantes diagnosticados
com deficiências. “Fala-se da invenção do sujeito, e não do sujeito. Fala-se da
fabricação de um corpo, e não do corpo.” (SKLIAR, 2003, p. 152). Falaram-nos que os
estudantes eram “agressivos”, “homens grandes”, “perversos”, “fortes”, “difíceis”.
Jussara inicialmente se sentiu insegura e com medo de não saber se conseguiria
trabalhar com o estudante, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista e
Deficiência Intelectual Severa, que iria acompanhar. Sobre o estudante que Sara iria
acompanhar, foi dito que era extremamente agressivo e que seu diagnóstico era de
Cegueira e Deficiência Mental Grave.

Pois há um outro, em meio a nossas temporalidades e a nossas


espacialidades, que foi e ainda é inventado, produzido, fabricado,
(re)conhecido, olhado, representado e institucionalmente governado em
termos daquilo que se poderia chamar deficiente, ou então, ainda que não
seja o mesmo, um outro anormal, uma alteridade anormal. (SKLIAR, 2003,
p. 152)

Essa insegurança e esse medo tencionaram muitas conversas entre nós duas. Há
rótulos, estigmas, signos, saberes sobre os estudantes. Pensando com Skliar (2017), nos
questionávamos: como habitar o encontro com estes estudantes se já se tem um saber
sobre eles? Foi preciso que fizéssemos o exercício de desconhecer o que deles foi
produzido, para então nos encontrarmos com eles. Conversando entre nós, percebemos
com Skliar (2017) que para habitarmos o encontro, precisamos tentar sempre voltar ao
início, ao não saber, ao começo, a não fabricação do outro.

Como gesto pedagógico, conversar se dirige não tanto àquilo que as coisas
são, mas àquilo que há nas coisas. Conversa-se não tanto sobre um texto, mas
sobre seus efeitos sobre alguém, mas sobre suas ressonâncias em nós,
conversa-se não para saber, mas para manter tensas as dúvidas essenciais: o
amor, a morte, o destino, o tempo. (SKLIAR, 2018, p. 12)

Durante muitos dias, nossas conversas eram tecidas com um questionamento que
nos atravessava: O que fazer ao perceber que aquele corpo, naquele momento, não
suporta a medicação dada?

sumário 1676
VII Seminário Vozes da Educação

Olho para ele e penso, o que fazer se ele não me responde? Não responde a
nenhum estímulo que ofereço. E quando contrariado, me bate e deita no sol
novamente. Lagartixando, tão gostoso que até me dá vontade de ficar assim
também, ao seu lado. Ao mesmo tempo, penso no que irão pensar de mim? Já
devem pensar que não faço nada, porque todos querem me dar “dicas” do que
fazer... (Escritos de diário de campo – abril/2019)

Essas angústias desestabilizam e nos deslocaram. Rolnik (1999) nos diz ser
necessário enfrentarmos o caos, repensá-lo, reposicionarmo-nos diante dele. Essa
sensação é de tamanha impotência que, às vezes, toma conta de nossa “alma”. A
insegurança de um fazer, por vezes, nos entorpece, nos deixando operar não por lógicas
modelares com passos a seguir, mas de experienciação do que acontece no encontro
com o outro.
Rolnik (1999) nos faz pensar, quando nos questiona sobre que mudanças se
estariam operando nas subjetividades, hoje, para levá-las a revisar seu conceito de caos
e de ordem, assim como da relação entre ambos?

Hoje foi meu primeiro dia no abrigo. Estou feliz! Aparentemente não é como
me descreveram. No meu imaginário, era um lugar feio, sem infraestrutura
adequada. Confesso que me deixei impregnar por falas de outros. Não
conseguia me sentia capaz de trabalhar com estes rapazes. Além de ser uma
pessoa muito emotiva, minha insegurança gritava tão alto dentro de mim, que
eu mesma não conseguia me reconhecer. Um misto de sensações e
sentimentos, que me desestruturou e só me fazia chorar. (Escritos do diário
de campo – 12/03/2019)

Essas frustrações nos fazem recordar da pergunta que a Professora Doutora


Rosimeri de Oliveira Dias sempre nos lançava, nas discussões em nossas aulas da
disciplina Sujeitos e Sociedade: O que estamos ajudando a fazer daquilo que vem sendo
feito de nós? Relembrando Leila Domingues (2010).
Ainda com Domingues (2010), a partir de um ponto de vista ético-estético-
político que nos faz sempre retomar a esta pergunta, pois mesmo que estejamos
conseguindo os resultados pretendidos em planejamentos, ao pronunciá-la, confessamos
uma atroz ignorância, no sentido de que cada um é um nós, como saber o que realmente
estamos fazendo em relação ao outro?

Corpo, norma e disciplina


Em nossa atuação, como professoras de apoio educacional especializado, nos é
pedido, por exemplo, para não pegarmos os estudantes no colo. Para tentarmos, segundo
estas pessoas que nos pedem isso, manter certo distanciamento, para que possam obter a

sumário 1677
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

autonomia desejada do estudante. Entretanto, com estes estudantes, nem todas as


atividades a serem realizadas estão a priori definidas. Estas ações são construídas e
decididas a cada momento, no decorrer dos acontecimentos. No entanto, isso não
significa um fazer sem fundamento e sem sentido.

Estamos começando a adaptação dos estudantes na escola. Ficamos até este


mês acompanhando-os, conhecendo-os, desconhecendo-os na instituição em
que moram. Já sei que o estudante L. não gosta de ficar muito tempo sentado
a mesa para realizar alguma atividade de iniciação ao código Braille, por
exemplo. Já sei que ele gosta de caminhar pelos espaços depois de ficar
muito tempo em uma sala de aula. Tenho percebido que a adaptação não é
apenas dos estudantes a escola, é nossa também a este espaço outro que não
habitávamos antes. Com isso, percebo também as cobranças, que muitas
vezes vem em forma de sutis frases em reuniões pedagógicas: ele não
consegue ficar na sala de aula? Ele não consegue aprender conteúdos que os
outros estudantes aprendem? Ficar no pátio faz parte do seu trabalho? Ele
não consegue ficar sentado pra fazer atividade?
Ao ser questionada porque o estudante que acompanho não consegue ficar
sentada na sala de aula, penso: a escola é só ficar sentado na sala? Será que a
escola é para todos mesmo? O que vou fazer então para não cair nessa lógica
de docilização do corpo do estudante que acompanho? (Escritos de diários de
campo – 04/06/2019)

São procedimentos constituídos e realizados pela instituição, que buscam a


docilização destes corpos, à ordem no ambiente e eficaz. Assim, como diz Foucault
(2004, p.115):

[...] no início do século XVII se descrevia a figura ideal do soldado. O


soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe; que leva os sinais
naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho: seu corpo
é o brasão de sua força e de sua valentia; e se é verdade que deve aprender
aos poucos o ofício das armas - essencialmente lutando - as manobras como a
marcha, as atitudes como o porte da cabeça se originam, em boa parte, de
uma retórica corporal da honra: Os sinais para reconhecer os mais idôneos
para esse ofício são a atitude viva e alerta, a cabeça direita, o estômago
levantado, os ombros largos, os braços longos, os dedos fortes, o ventre
pequeno, as coxas grossas, as pernas finas e os pés secos, pois o homem
desse tipo não poderia deixar de ser ágil e forte.

É a descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Um corpo que se


manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se
multiplicam (FOUCAULT, 2004, p.116). Um conjunto de regulamentos militares,
escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir
as operações do corpo. Com momentos de submissão e utilização, e momentos de
funcionalidade e explicação, como revela Foucault (2004), corpo útil, corpo inteligível.

sumário 1678
VII Seminário Vozes da Educação

Entretanto, ao mesmo tempo há uma redução da alma e uma teoria do


adestramento, no qual opera a noção de "docilidade" que unifica o corpo analisável ao
corpo manipulável. Um corpo dócil pode ser submetido, pode ser utilizado, pode ser
transformado e aperfeiçoado (FOUCAULT, 2004, p.117). São imposições de
limitações, proibições ou obrigações. Em primeiro lugar, em relação ao controle: não se
trata de cuidar do corpo, como se fosse uma unidade inseparável, mas de trabalhá-lo
minunciosamente. Exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível
mesmo da mecânica — movimentos, gestos atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o
corpo ativo (FOUCAULT, 2004, p.117). O comportamento ou linguagem do corpo, a
economia e a eficácia dos movimentos, e a coação se faz mais sobre as forças
constantes, que reprimem todos os processos de atividades.
Assim, esses métodos permitem o controle minucioso dos corpos, que realizam a
sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, é
o que podemos chamar de as "disciplinas":

Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos


exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer
dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da
escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos
corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e
violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes.
Diferentes também da domesticidade, que é uma relação de dominação
constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma
da vontade singular do patrão, seu "capricho". Diferentes da vassalidade que
é uma relação de submissão altamente codificada, mas longínqua e que se
realiza menos sobre as operações do corpo que sobre os produtos do trabalho
e as marcas rituais da obediência. (FOUCAULT, 2004, p.117)

Em termos políticos é uma pluralidade de recursos que se recordam, se repetem,


ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se, entram em convergência e
esboçam aos poucos a fachada de um método geral (FOUCAULT, 2004). Estes
métodos são encontrados em funcionamento em colégios, desde escolas infantis,
chegando ao ensino superior e outras modalidades, seja hospitalares, empresariais e em
abrigamentos. Foucault (2004, p.119) ainda afirma que:

[...] Não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições


disciplinares, no que podem ter cada uma de singular. Mas de localizar
apenas numa série de exemplos algumas das técnicas essenciais que, de uma
a outra, se generalizaram mais facilmente. Técnicas sempre minuciosas,
muitas vezes íntimas, mas que têm sua importância: porque definem um certo
modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova "microfísica"
do poder; e porque não cessaram, desde o século XVII, de ganhar campos

sumário 1679
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro.
Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de
aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem
a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são
eles, entretanto que levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da
época contemporânea. Descrevê-los implicará na demora sobre o detalhe e na
atenção às minúcias: sob as mínimas figuras, procurar não um sentido, mas
uma precaução; recolocá-las não apenas na solidariedade de um
funcionamento, mas na coerência de uma tática. Astúcias, não tanto de
grande razão que trabalha até durante o sono e dá um sentido ao
insignificante, quanto da atenta "malevolência" que de tudo se alimenta. A
disciplina é uma anatomia política do detalhe.

Partindo de questões como os princípios de uma formação pontuada por


discursos e práticas que entendem uma percepção de si e de mundo, podemos
compreender que a pedagogia e a política se cruzam, se atravessam e se complementam.
Conversando com o que nos acontece, pensamos: Como a pedagogia e a política,
obrigatoriamente atravessadas entre si, estão presentes nos espaços de atuação das
professoras de apoio educacional especializado? Seria possível olhar para estes
estudantes, conviver, ver, sentir, cheirar e ver, sem se deixar provocar? Para isso, é
necessário tomarmos a ação como uma prática implicada, que atua na potência política
da vida.

Hoje fiquei extremamente comovida com C; Ela estava triste e brigando com
B, porque todo mundo estava seguindo para a escola e ela não. Chegou
chorar! Me cortou o coração! Quase chorei também! Ela quer sair daquele
ambiente deprimente. Quer rir, conversar e fazer novos amigos. Geralmente,
é uma das mais animadas e carinhosas. Ela anda com cadeiras de rodas e é
extremamente ativa. (Escritos do diário de campo – 05/04/2019)

Esse relato do diário de campo nos remete as palavras de Butler (2017, p.25)
quando diz que “a formulação do sujeito em questão ressoa com uma dificuldade
cultural e política maior, a saber: como assumir uma relação de oposição ao poder que
esteja reconhecidamente implicada no próprio poder ao qual nos opomos.”. Ainda neste
contexto, transcrevemos mais um trecho de diário de campo:

W.J. não estava bem hoje. Chorando todo tempo, xingando a todos e
relembrando toda a sua história de vida. Nos contou da sua mãe, seu pai e diz
não querer sair dali. Aqui é minha casa e não quero embora (disse ele). “Eu
preciso ser um bom menino, né?! Eu sou bom, né? Assim vão me deixar
ficar. Diz sou bom!” Não gosto de vê-lo assim, sofrendo... (12/04/2019)

É a afirmação da internalização das normas sociais. Butler (2017, p.28)


questiona se a norma existe primeiro “no exterior” para depois entrar num espaço

sumário 1680
VII Seminário Vozes da Educação

psíquico previamente dado, entendido como um tipo teatro interior? Ou a internalização


da norma contribui para a produção da internalidade? Além disso, se as normas não são
internalizadas mecanicamente ou previamente, como explicar a dependência do poder
de sujeição existente? Desejar a condição de subordinação é assumir a forma de poder:
regulação, proibição e supressão, pois é através da subordinação que há a existência da
própria formação.

Conclusões provisórias...
Inquietamente, a aposta neste artigo foi a de produzir com as escritas dos diários
de campo, conversas, problematizações com aquilo que nos acontece dia a dia como
Professoras de Apoio Educacional Especializado no encontro entre nós e estudantes
diagnosticados com deficiências.
Em uma tentativa de fechamento provisória deste artigo, pensamos um exercício
talvez nos seja preciso nos espaços educativos que habitamos: nos desafiar todo o
tempo, fugindo de uma forma preestabelecida de agir e de fazer aprendizagens.
Encontros “entre”. (DIAS, 2012) diz, que é um desafio trazido pelo deslocar-se do
“sobre”, do “com”, do “em”, para se movimentar [...] sem roteiro prévio, mas com
muitas questões. Apontar os sentidos e não os lápis, para fugir dos registros certeiros.
Como continuamos a nos desafiar e tentar fugir das normas e fabricações do
outro? Skliar (2015) aponta, que necessitamos ter “pequenos gestos”, “gestualidade
mínima”. A olhar sem julgamento, nem condenação prévia, a olhar para a possibilidade
de outras existências diferentes da nossa, a fazer uma saudação disponível, a dar as boas
vindas, a perguntar, a dar vazão, a permitir, a possibilitar, a deixar fazer, a dar o que
fazer, a sugerir, a conversar, etc.

Referências
BARROS, L. P.; KASTRUP, V. Cartografar é acompanhar processos. Porto Alegre:
Sulina, 2012, p. 52-75. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (orgs.) Pistas
do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto
Alegre: Sulina, 2009.

BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogério Bettoni.


1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2017. – (Filô)

DELEUZE, G. ¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona:


Gedisa, 1990, pp. 155-161. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento.

sumário 1681
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

DIAS, R.O. Formação inventiva de professores/ Rosimeri de Oliveira Dias


(organização) – Rio de Janeiro, Lamparina. 2012.

MACHADO, Leila. À Flor da pele: Subjetividade, clínica e cinema no contemporâneo.


Edição: 1ª. Editora Sulina. Porto Alegre, 2010.

FOUCAULT, M. Os corpos dóceis. In: Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução


de Raquel Ramalhete. 29ª Edição. Editora Vozes. Petrópolis 2004, p. 117-137.

LARROSA, Jorge - Tremores: escritos sobre experiência I; traduçao Cristina Antunes,


Joao Wanderley Geraldi. 1ª. ed. -·Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2014, p.110 -
Coleção Educação: Experiência e Sentido.

ROLNIK, S. Novas figuras do caos mutações da subjetividade contemporânea. In Caos


e Ordem na Filosofia e nas Ciências, org. Lucia Santaella e Jorge Albuquerque Vieira.
Face e Fapesp, São Paulo, 1999; pp. 206-21.

SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí?


Tradução Giane Lessa. DP&A. Rio de Janeiro, 2003.

______. Incluir as diferenças? sobre um problema mal formulado e uma realidade


insuportável. In: Revista Interinstitucional Artes de Educar. Rio de Janeiro, V. 1 N. 1 –
pag 13-28 (fev - mai 2015): “Artes de educar” 13.

______. Pedagogías de las diferencias: notas, fragmentos, incertidumbres. 1ª ed. Ciudad


Autónoma de Buenos Aires: Centro de Publicaciones Educativas y Material Didáctico,
2017.

sumário 1682
VII Seminário Vozes da Educação

CRIANÇAS EM MOVIMENTO – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS


ESPAÇOS DE CUIDADO E RECREAÇÃO PARA AS CRIANÇAS NA
CSP – CONLUTAS

Ticyane Madeira Cavalcanti


GEPAEP – UFF
ticyanemadeira@gmail.com

Introdução
Com as mudanças ocorridas no capitalismo no decorrer dos séculos XIX
(predominantemente na Europa e Estados Unidos) e no século XX (no Brasil), ocorreu
uma crescente inserção da mulher no mercado de trabalho. Essa conjuntura, sem dúvida,
estimula as mulheres a pensarem o papel que desempenham na sociedade. As mulheres
se organizam e passam a buscar uma situação de protagonismo nos movimentos sociais
em geral onde travam também suas lutas específicas. A questão da emancipação
feminina está ligada a resistência ao capitalismo.
A CSP-Conlutas, Central Sindical e Popular – Conlutas onde foi desenvolvida
essa pesquisa, que organiza mulheres socialistas, que debatem e seguem na luta por
reivindicações históricas, como a divisão do trabalho doméstico, do aborto ou das
creches, infelizmente ainda não possui um projeto claro para as crianças. No que diz
respeito às crianças o capitalismo tem um plano claro de estímulo frequente ao consumo
de bens para uns, genocídio de outros. E dentre o largo espaço que surge entre os que
podem adquirir bens e serviços de ponta e os que podem ser executados a qualquer
tempo por uma polícia que serve a um governo que incita o ódio e ignora estas
arbitrariedades, aqueles que se adéquam aos programas de governo, se beneficiam de
programas de ONG’s – Organizações Não Governamentais, um longo etc. Um lugar
para cada criança, de cada região, gênero, cor e sobretudo possibilidades econômicas, a
necessidade de incorporar as crianças as nossas lutas, de pensarmos inclusive em como
acolhê-las em nossos de organização e na importância de sua formação é o que faz com
que eu me lance neste trabalho.
Estas reflexões são anteriores a elaboração do meu TCC – Trabalho de
Conclusão de Curso sobre o tema, na minha graduação em Serviço Social. Se iniciam

sumário 1683
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

com a minha experiência de mãe e militante. E se desenvolvem ao longo do meu curso


de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal
Fluminense. O tipo de espaços de cuidado e recreação temos para nossas crianças na
Central e o tipo de espaço poderíamos/precisávamos ter é uma questão para mim desde
então.
Isso se relaciona não só com nossas ideias sobre a condição feminina e a
necessidade de nos organizarmos para lutar contra a opressão, mas se estende até sobre
a nossa compreensão da condição da necessidade da libertação humana, no sentido
ontológico e ao fato de estarmos excluindo as crianças desta possibilidade de libertação
junto conosco. Observando ações, estudando documentos, entrevistando ou
conversando pessoas acabamos por perceber que a relação opressiva que nós
identificamos em instituições que pretendemos intervir, subverter, colocar a serviço dos
trabalhadores, pode ser mais visível do que a que exercemos em casa com nossas
crianças, no trabalho quando estamos ligadas diretamente a elas ou ainda quando as
acolhemos de qualquer maneira, da mesma maneira de sempre ou da maneira que
queremos. O que importa fundamentalmente é tê-las “guardadas”, “protegidas”,
“alimentadas”, “distraídas”. Parte dessas reflexões, que já se insinuavam no meu TCC,
são desenvolvidas na minha dissertação de Mestrado e é disto, que neste trabalho,
apresento breve recorte.
A CSP-Conlutas, uma Central Sindical e Popular surge nos marcos de uma
maior transformação dos movimentos sociais que começou a ocorrer desde o fim do
século passado e que se intensifica nos anos 2000. Na dissertação em questão nos
aventuramos num mergulho que tem por objetivo começar a compreender como nesta
Central as questões do feminismo, da transformação social e do lugar das crianças se
entrelaçam e como isso pode resultar numa possibilidade de ação de educação popular
com as crianças que transitam pelos espaços onde se organizam as atividades deste
movimento.
Na dissertação a reorganização do movimento sindical, na perspectiva da
implantação das políticas neoliberais no Brasil desde meados dos anos 1990 é discutida
a partir do início da implementação do “receituário neoliberal”, nos marcos da crise do
capitalismo no fim do século XX. Falamos do processo propriamente dito de
surgimento, primeiro da Conlutas, e depois da CSP-Conlutas, onde relacionamos tal
surgimento com as contradições pelas quais passaram os movimentos sociais em geral e
movimento de mulheres especificamente nos governos do PT e como este se inseriu no

sumário 1684
VII Seminário Vozes da Educação

processo de organização da CSP-Conlutas, especialmente no que toca a reflexão sobre e


a organização dos espaços de cuidado e recreação para as crianças que vivem no âmbito
da Central.
Fazemos na dissertação um passeio por todas essas questões e chegamos a
necessidade de direcionarmos nosso olhar para estes espaços. Aqui, em função espaço
que temos para trazer as questões, nos deteremos sobre o “Por que pesquisar esses
espaços?”. Como estes surgem e se organizam, utilizamos uma metodologia trabalhada
no campo dos Estudos do Cotidiano da Educação Popular e sob a perspectiva de uma
educação popular libertadora coerente com os princípios políticos e organizativos da
central em que pesquisamos.

Os espaços de cuidado e recreação para crianças na csp-conlutas


As atividades da CSP-Conlutas promovem espaços de cuidado e recreação que
acolhem, cuidam e entretêm crianças em idades diversas, por períodos variáveis. Num
Congresso ou Encontro Nacional (como os de Negros e Negras ou de Mulheres) esse
número pode chegar a 90 crianças. Muitas vezes a organização opta por contratar uma
empresa que presta este “serviço”. A Central estabelece com a empresa um contrato.
Uma recente experiência num espaço de cuidado e recreação da CSP-Conlutas
se deu no II Congresso Nacional da Central, realizado em Sumaré, interior de São Paulo,
em junho de 2015, e que reuniu 2.639 delegados e aproximadamente 90 crianças. Foi
contratada uma empresa que trabalhava com recreação em resorts para equipar e gerir o
espaço destinado as crianças na Estância em que se realizavam as atividades. Muitos
dos monitores eram estudantes universitários de diversos cursos. Alguns deles da
Educação Física, mas dentre os com quem conversei não encontrei quem desenvolvesse
estudos específicos com/sobre crianças. A formação do proprietário da empresa é em
Educação Física e a recreação estava voltada, sobretudo, para atividades com o corpo.
Como tenho acompanhado há algum tempo o trabalho realizado com as crianças
nesses espaços, venho observando a interação possível e até as “pequenas”
aprendizagens que se realizam no local. Mesmo considerando as características tão
específicas de cada espaço, vem se colocando como uma questão para mim porque ele
não se constitui um espaço de formação/fortalecimento político dessas crianças. Ao
observar jogos de meninos contra meninas, por exemplo, me pergunto: por que não
realizamos aqui brincadeiras ou jogos que fujam ao padrão da reprodução ideológica

sumário 1685
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

dos padrões de gênero e comportamento? As brincadeiras, a reprodução do espaço


escolar, a paparicação, estão sempre a me provocar.
Essa observação e as muitas perguntas que fui me fazendo ao longo do tempo,
foram me levando (ou trazendo a nós) às questões que passaram a orientar meu trabalho
de construção de uma pesquisa em diálogo com experiências anteriores. O “erro”, a
contradição, me cutucam. Possivelmente muitas vezes turvaram a minha visão e me
impediram de ver coisas bastante importantes ou bonitas. Mas muitas vezes as vi. E
reconheço não só a importância da sua existência para as mulheres e para as crianças
que lá estão em segurança, como que ali, a despeito do que podíamos fazer em matéria
de planejamento, organização, execução e avaliação dos trabalhos realizados e não
fazemos, na maior parte das vezes as crianças estão se divertindo nas relações que ali
estabelecem. Produzindo desenhos, trabalhando habilidades diversas, contando histórias
da sua vida, habitando aquele espaço e, sem dúvida, tornando mais belo, colorido e rico.

Por que pesquisar esses espaços?


Minha relação com os espaços de cuidado e recreação para crianças nos
movimentos sociais existe pois no movimento estudantil, tanto quanto dentro da
estrutura partidária na qual eu militei durante alguns anos, essa era uma questão nossa
(minha, das demais mulheres com filhos e da organização, para garantir NOSSA
militância). Uma luta que tem relação direta com uma necessidade objetiva e material.
Esses espaços determinaram muitas vezes a nossa possibilidade de participar ativamente
de atividades de formação política teórica ou mesmo de disputar políticas de entidades
das quais eu fazíamos parte.
Quando minha filha ingressa na Creche UFF 251 aos 2 anos e 8 meses começo a
ter acesso aos debates que estão sendo travados na Educação Infantil naquele momento.
A instituição a todo tempo nos colocava questionamentos que apontavam para
concepções de infâncias muito diversas da que a maioria de nós, responsáveis,
havíamos tido contato. Na participação nas reuniões do Grupo Gestor da Creche UFF 252

251 A Creche UFF surge a partir da luta de professoras no intuito de construir um espaço de pesquisa e
extensão sobre/para as crianças voltado para a prática e para a formação profissional. Tendo funcionado
durante a maior parte da sua existência sem ligação institucional com qualquer departamento da
Universidade, hoje é parte do COLUNI (Colégio Universitário Geraldo Reis) como sua Unidade de
Educação Infantil.
252 Grupo composto por representantes dos professores, funcionários e responsáveis que tinha a
atribuição de administrar a instituição.

sumário 1686
VII Seminário Vozes da Educação

na Comissão de Pais 253 , fui compreendendo a importância do debate acerca das


infâncias. A partir da relação com a Creche UFF, passo a reivindicar espaços que
funcionassem para nós, para mim e para minha filha. Começar a encarar as crianças
como “sujeitos plenos em sua especificidade infantil; dotados de sentimentos,
percepções, críticas, desejos e razão, principalmente no que diz respeito às suas próprias
vidas” (ARENHART, 2007, p. 26), capazes e merecedores da mesma participação
(inclusive na tomada de decisões acerca dos “seus” espaços), foi uma contribuição da
Creche UFF à minha formação.
A combinação, ou ainda o desenvolvimento, da questão primeira, minha e da
minha filha, e uma avaliação com base nas experiências e nos conhecimentos que
possuía a época, de que os espaços de que dispúnhamos estavam longe de ser adequados,
me levaram a refletir sobre o tema e provocaram o desejo de estudar mais para poder
contribuir na construção de uma outra possibilidade para “as nossas” crianças.
Elaboro então um TCC, na Escola de Serviço Social da Universidade Federal
Fluminense, que falava sobre as “creches” nas reuniões da Coordenação Nacional da
CSP-Conlutas. A questão da necessidade das mulheres e a importância da existência de
espaços para as crianças para que possamos nos organizar politicamente são questões
abordadas neste primeiro trabalho e a sua justificativa. Embora destaque no TCC a
necessidade de alimentos saudáveis, espaços amplos, ventilados e limpos, já me
incomodavam os aspectos ideológicos, o tipo de música, de literatura, de brincadeiras e
brinquedos em uso nestes espaços e isto aparece como questão naquele momento, e
sempre. Foram realizadas entrevistas, visitas aos espaços para observações e pesquisa
bibliográfica.
Não compreendendo ainda que a “defesa das ‘nossas’ pedagogias pode fechar
esses encontros ao reconhecimento das ações coletivas e dos movimentos sociais atuais
como produtores de outras pedagogias” (ARROYO, 2009, p. 15), inicio no mestrado
um processo que me leva a crer que “reconhecer essa diversidade pedagógica e colocá-
la em diálogo será uma das funções dos encontros de conhecimento recíproco entre
movimentos sociais e cientistas, pesquisadores, artistas, na diversidade de espaços de
diálogo”. Um movimento de desconstrução que busca

253 Espaço de organização dos responsáveis com funcionamento ordinário onde os problemas da
instituição eram discutidos e as questões das famílias também eram apresentadas. Era um espaço de
articulação dos responsáveis que trabalhava em articulação com o Grupo Gestor.

sumário 1687
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

reconformar o próprio campo de conhecimento e das teorias e das pedagogias


socioeducativas que se configuram nessa forma de pensá-los e de pensar-se.
Uma contribuição de extrema relevância trazida pelas ações e presenças
afirmativas dos coletivos: para repensar-se as teorias e pedagogias
socioeducativas dos Outros terão que repensar as formas como tem sido
pensados os Outros, os diversos e diferentes em classe, gênero, campo,
periferia. (ARROYO, 2009, p. 4)

Dito de outra forma: não se trata apenas de entender qual é o lugar das crianças
no movimento social que estudamos, no caso a CSP-Conlutas; é entender se ele se
conforma como um motivo para reflexão política – se fazer espaços de cuidado e
recreação nos encontros, congressos e demais fóruns serve apenas para liberar as
mulheres militantes para as reuniões e atividades ou se, considerando o que Arroyo nos
diz, poderíamos pensar um projeto socioeducativo para as crianças, famílias e
organizações. Estudar esses espaços pode nos permitir avançar para que as políticas de
gênero que versam sobre os espaços de cuidado e recreação da CSP-Conlutas possam,
para além de atender a demandas das mulheres mães, iniciar uma reflexão sobre o papel
das crianças nesta Central e se pode ser gestada uma ligação entre este movimento
sindical e popular e uma pedagogia de classe afinada com seus princípios.

Metodologia
Não apenas pelo caráter não-escolar das creches da Central, mas também por
conta da minha experiência como militante, como alguém que esteve na construção da
CSP-Conlutas desde sua fundação, minha pesquisa exige uma metodologia específica.
Meu lugar como pesquisadora é influenciado pelo que penso como militante, uma vez
consideramos que em quaisquer pesquisas existe uma inegável troca entre pesquisador e
objeto de pesquisa, aqui o problema é um pouco maior: um dos meus objetivos no
trabalho foi devolver ao movimento o conhecimento produzido ali, integrar sujeito e
objeto num todo, onde o que foi elaborado não responda apenas ao que compreendi ser
e o que consegui elaborar a partir do que vi/vivi nesses espaços, mas que esse produto
seja fruto de uma elaboração coletiva sobre algumas das questões que emergem neste
contexto.
A construção de espaços para nossas crianças, na CSP-Conlutas, me levou a
entender que devemos refletir sobre os espaços em que deixamos as nossas crianças, e
fazendo isso com quem faz uso deles – crianças e adultos – e em diálogo com aqueles
que decidem sobre eles, na tentativa de fazer com que não reproduzam as tão perversas
ideologias que circulam em nossa sociedade atualmente. Ideologias essas, que através

sumário 1688
VII Seminário Vozes da Educação

da militância cotidiana, buscamos combater. As especificidades dos espaços


onde realizo minha pesquisa são sua itinerância (já que ocorre em diversas cidades e
estados), a fugacidade (tem duração de dias ou horas), a diversidade (em relação a idade,
sexo, raça, etnia…). Espaços de cuidado e recreação são parte do cotidiano da
instituição – como uma demanda dos adultos a ser atendida a cada atividade planejada
pela Central, para que possam desenvolver suas atividades sem interrupções e também
geram expectativas nas crianças, expectativas que quase sempre têm relação com a
experiência imediatamente anterior num desses espaços.
No II Congresso da CSP-Conlutas (2015), consolidou-se a minha opção pelas
metodologias de pesquisa com o Cotidiano. As pessoas que abordei neste primeiro
momento responderam não apenas às minhas questões, mas começaram a me/se
questionar sobre o papel nosso/delas como mulheres, militantes, mães de crianças que
circulam no movimento fugindo completamente do meu roteiro semiestruturado. As
conversas informais – tão fluidas – me geraram grande angústia pela certeza de que
parte importante do que me é dito se esvai nesse processo. Foi desesperadora a tentativa
de fazer esse registro. Ao fim de um primeiro dia de muita correria, tentando assegurar
o preenchimento de termos, percebi que estava desperdiçando meu tempo com a tarefa
menos importante naquele momento. Uma tarefa que naquele universo se mostrava,
inclusive, impossível de realizar. Gostaria de ter conversado um pouco com tod@s @s
responsáveis e me aproximado mais de cada uma das crianças. Mas não consegui nem
mesmo que todos os responsáveis assinassem os termos de autorização.

No dia seguinte, logo no início do dia pude observar uma mãe brincando com
uma criança, num parque em que estavam outras crianças. Aproximei-me e
perguntei por que a criança não brincava com as demais, por que ela não
estava na creche. A mãe me disse que gostaria muito de estar nas atividades,
mas não estava participando porque sua filha havia se recusado a ficar na
creche pois a menina estava no alojamento com uma amiga com quem brinca
desde sempre e elas têm meses de idade de diferença. Ela não aceitava ficar
num outro grupo e a monitora informou que de outro modo não seria possível.
Perguntei se gostaria que falasse com o responsável e ela aquiesceu. Antes de
falar com ele expliquei como funcionava a creche, que os monitores estavam
subordinados a coordenadores e que o dono da empresa estava no local quase
que durante todo o evento. Disse que ela podia e devia questionar qualquer
situação em relação à creche junto à organização. Procurei o responsável pelo
espaço de cuidado e recreação e a criança foi integrada imediatamente.
(CAVALCANTI, 2017, p. 46)

sumário 1689
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A conversa com a mãe, a conversa com o responsável pela empresa, o diálogo, elas
vão me propiciar,

no processo de construção do conhecimento, possibilidades para os sujeitos


se compreenderem em constante aprendizado e se assumirem responsáveis
por ações que garantam atitudes e vozes. Portanto, que rompam com as
diversas formas de opressão vigentes em nossa sociedade e também revelem
a diversidade cultural, étnica e de gênero (BRANDÃO, 2009, p. 99)

Mas nem sempre uma “boa conversa” resolve todas as nossas questões. Em
meio ao “caos organizado” que é um Congresso Nacional de uma Central Sindical e
Popular, encontro o Augusto254.

Cada grupo de crianças usava um colete de cor diferente. Augusto chega à


creche se recusando a vestir a peça. A mãe pediu na recepção para levar o
colete e negociar com ele. Não foi permitido pela monitora e não
conseguimos localizar o responsável. A monitora disse que a mãe podia ficar
e tentar fazer com que ele vestisse o colete. Mas ele não queria fazer o que
todo mundo estava fazendo. Não queria entrar na fila. Não se interessava
pelos gritos de guerra. Eu disse a mãe que ficaria com ele. E fui tentando
aproximá-lo do grupo da sua idade. Ele exigia que os adultos o chamassem
pelo nome completo. Anotei na capa do meu diário, para não errar. Cada vez
que ia falar com ele, abria para consultar. Ele era, ali, “Augusto Vieira
Andrade Werneck”. Mas queriam chamar-lhe Guto e isso o revoltava. Andei
com ele. Fizemos desenhos. Conversamos. Disse a ele que assistia
Backyardigans com minha filha. Apostei que sabia os nomes dos
personagens. Ele achou uma pinha no chão e ela foi o elemento para ele
começar a se aproximar de um dos meninos do grupo durante o almoço.
Avisei aos monitores que pretendia observar outras “turmas” após o almoço.
E fui informada que, mesmo começando a se integrar no grupo, por uma
questão de segurança ele não podia permanecer no grupo sem o colete. Sem
muito jeito tentaram obrigá-lo a vestir o colete. Ele começou a chorar. Um
homem enorme disse a ele: “Vamos conversar”. Levou-o para a recepção e o
sentou numa cadeira, enquanto argumentava. Ele choramingava enquanto
parecia levar uma “lição de moral”. Eu não ouvi o teor da “conversa”, não
estava perto o suficiente. Os pais chegaram logo em seguida e o levaram. No
alojamento, o quarto deles era ao lado do nosso e conversamos algumas
vezes durante o evento. Eles se revezaram nos cuidados do menino, mas
ficaram muitos frustrados com a postura da creche em ser tão rígida com o
colete. A mãe não se conformava com o fato de não poder ter levado o colete
e tentado ela mesma vestir a criança. (CAVALCANTI, 2017, p. 47)

Experiências minhas, das crianças, duas mães e um pai. Quatro responsáveis e


duas crianças que produzem no diálogo conhecimentos e ações. A Educação Popular em
seus princípios e métodos vai se mostrando como chave para mim assim, como no dizer
de Brandão:

254 Nesse momento, após conversar com seus pais, com a sua autorização, faço, excepcionalmente, a
opção por usar não apenas o nome da criança, mas também seus sobrenomes, pela importância que os
nomes têm em nossa história.

sumário 1690
VII Seminário Vozes da Educação

Ela se realiza em todas as situações em que, a partir da reflexão sobre a


prática de movimentos sociais e movimentos populares (as “escolas” em que
têm sentido uma educação popular), as pessoas trocam experiências, recebem
informações, criticam ações e situações, aprendem e se instrumentalizam
(BRANDÃO, 2009, p. 35).

Eu fiquei com o Augusto porque ele era como a minha filha e a mãe dele era
como eu mesma. São laços de solidariedade que são mantidos pelas classes
subalternizadas, muitas vezes assegurando sua existência, desde sempre.
Nesse trabalho se misturam militância, maternidade, cuidado, amorosidade e
política. O cuidado materno na minha pesquisa aparecerá com “um sentido político, de
compromisso de ‘cuidado’ do cidadão com a pólis, da participação assumida para a
construção de seu mundo de vida cotidiana e, por extensão, da história do seu tempo”
(BRANDÃO, 2009, p. 84). Por isso, o cuidado e o amor que tenho pela minha filha, e o
encantamento por tudo que esses espaços podem representar para essas mulheres e
crianças, constroem ligações entre nós, enquanto protagonistas da história e do cuidado
com o outro.
Para desenvolver minha pesquisa, nesse cotidiano no qual estou radicalmente
envolvida, utilizo-me de alguns procedimentos da pesquisa-ação255. A pesquisa-ação é
um método que entende que há não apenas uma ligação indissociável entre pesquisador
e tema, mas que essa ligação lhe dá um sentido político transformador. Os métodos de
pesquisas clássicos não dão conta de uma pesquisa como esta. Esta já seria
comprometida com uma militância feminista, mesmo que no diálogo com os outros os
meus olhos não brilhassem tanto e a experiência com minha criança e as possibilidades
de outras mulheres vivenciarem algumas das experiências positivas que tive (e por que
não melhores?!) não me tocassem e animassem tão profundamente. E é reconhecendo o
meu papel de mulher, mãe, militante e pesquisadora que realizei uma pesquisa
utilizando métodos que se propõem a ajudar a transformar efetivamente a nossa
realidade, senão o mundo, ao menos na Central em que atuamos, nas questões que nos
dizem respeito. Com todo esse envolvimento emocional, atuo nessa pesquisa, nesta
instituição, numa tentativa de colocar essas ciências

255 5Tendo como referência BONILLA et al, uso os termos estudo-ação, pesquisa-ação e pesquisa-
militante como sinônimos

sumário 1691
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

[...] a serviço da causa popular, como um esforço de conter a dominação


imperialista e a exploração oligárquica tradicional, por um lado, e por outro,
como meio de afiançar e dinamizar as organizações autenticamente populares,
equipando-as ainda melhor para atingirem seus objetivos (BONILLA et al,
2006, p. 137).

Com essas bases teórico-metodológicas, desenvolvi pesquisa bibliográfica sobre


educação popular, pesquisa-ação, metodologias utilizadas no cotidiano, movimentos
sociais e infâncias. Pesquisei os documentos da CSP-Conlutas, revi seu Programa,
Estatuto, Resoluções Congressuais e também documentos dos Encontros Nacionais
realizados pelo GT de Mulheres da CSP-Conlutas e pelo MML, já que na Central o
primeiro reivindicou e o segundo segue reivindicando e garantindo os espaços de
cuidado e recreação. Conversei com responsáveis pelas crianças e pela organização,
estive na organização de um desses espaços, realizei uma oficina com as crianças na
expectativa de estimular a participação política de crianças e responsáveis e buscar
entender que concepções de sociedade, de família, de infância e de educação as pessoas
dessas famílias têm.

E para onde nos levaram todas as histórias que partilhamos enquanto


conversamos?
As histórias nos levam a muitos lugares todo o tempo, e os relatos que logramos
fazer podem nos mostrar o desenvolvimento dessa pesquisa e a transformação
germinando nas pessoas e lugares. As conversas que tive com as mulheres nos fez
pensar um pouco esse espaço que é criado para nos atender. O assunto que inicia e vai
atravessando nossas conversas são as nossas crianças, a minha, as delas, as da Central,
mas sabemos todas que essa política não é elaborada para as crianças e sim para nós.
Penso que podemos começar a pensar que Educação queremos que as nossas
crianças tenham acesso nas escolas. É apenas nas escolas que se dá a Educação das
crianças? A “expansão privatista” tem quais características que afetam às nossas
crianças? Os nossos espaços estão se contrapondo a essa lógica? Quando falamos de
mulheres – que são as protagonistas do processo de libertação de si mesmas –,
pensamos no quando as nossas meninas começam a ter que enfrentar as questões de
gênero e em quais espaços podemos com elas já começar a debater essas questões?
Propostas como o “Escola sem Partido”, ou a questão do debate de gênero nas escolas,
por várias vezes discutidas nos fóruns da CSP-Conlutas – que claramente se opõe à
primeira e reafirma a necessidade da segunda –, são trazidas para dentro das reflexões

sumário 1692
VII Seminário Vozes da Educação

da Central quando se trata dos espaços de cuidado e recreação? Quando citamos o ECA
para debater o direito à educação e a necessidade de atender uma demanda, por que não

reivindicamos também o seu 16o artigo, que fala sobre o direito à liberdade e cita os
aspectos que lhe são inerentes, como os direitos à opinião e expressão e à participação
na vida política? Relacionando-se com o mundo adulto, as crianças estão sujeitas às
mesmas opressões que nós, no mundo em geral e também nos espaços que lhes são
“próprios”.

Uma característica importante a ser destacada é que as culturas infantis não


são independentes das culturas adultas, das relações de poder, das opressões e
desigualdades presentes na sociedade. Assim o racismo, a opressão de classe,
a homofobia, o machismo também podem estar presentes nas inúmeras
relações produzidas pelas crianças. (GEPEDISC, 2015, p. 93)

Essas relações é que criam a necessidade de direcionar o meu olhar para as


crianças – que surge quando a minha filha começa a frequentar instituições de Educação
Infantil – vai se desenvolvendo e toma corpo nas reuniões do nosso grupo de pesquisa,
onde posso perceber que é necessário pensar nas questões das crianças de modo geral,
antes mesmo de pensar essa relação de modo particular, no grupo que estou
pesquisando.
Quando converso com as mães e me relaciono durante toda a pesquisa com elas
e as crianças, tenho sempre em mente que estamos imersas não em uma cultura, mas em
algumas, e que as nossas crianças se formam também em meio a um ambiente peculiar,
o ambiente da militância, e que neste ambiente não percebemos que estamos
reproduzindo a história que usualmente não reconhece as suas culturas, reproduzindo as
lógicas que o ideal hegemônico de família preconiza e que é, todo o tempo e de diversos
modos, reforçado pelas diversas outras instituições sociais. Como diz Arroyo, todo
“processo educativo, formal ou informal tanto pode ignorar como incorporar as formas
concretas de socialização, de aprendizagem, de formação e deformação a que estão
submetidos os educandos” (ARROYO, 2003, p. 33).
Em seu artigo “Infâncias e crianças: O que nós adultos sabemos sobre elas”, Ana
Cristina Cool Delgado faz uma boa reflexão sobre a relação entre infâncias e família.
Partindo de uma recuperação histórica, afirma que o sentimento de infância, “de
preocupação e investimento da sociedade e dos adultos sobre as crianças, de criar
formas de regulação da infância e da família, são ideias que surgem com a modernidade”
(DELGADO, 2003, p. 1)

sumário 1693
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Nisso, o desenvolvimento do capitalismo tem papel crucial, ao incorporar – a


seu modo – a família à sua estrutura tanto produtiva quanto ideológica. Embora as
crianças passem nesse momento a ocupar certa centralidade no núcleo familiar, é
importante ressaltar que parte considerável, possivelmente a maioria, teve participação
efetiva na implantação do novo modo de produção através do trabalho nas recém-
instituídas fábricas. Ou seja, “a particularidade da infância não será reconhecida e nem
mesmo realizada para todas as crianças. Na prática, esse caráter universal vai perdendo
sua extensão com as diferenças de classe, de gênero e de raça. (DELGADO, 2003, p. 4)
Quando, mais acima, dizemos que precisamos reconhecer as crianças como
sujeitos e dar-lhes oportunidade de serem partícipes das determinações em relação a sua
própria vida, é porque compreendemos que precisamos reconhecer que elas têm saberes
que constituem uma identidade e que precisamos superar. É preciso parar para ouvir,
como nos aponta Reinaldo Luiz Damázio em “O que é criança?”: “Ser sujeito não quer
dizer deixar que a criança se mantenha sozinha e por sua própria conta, mas sim deixá-
la ser como é, respeitá-la como sujeito e tentar dialogar com ela. O que de saída
pressupõe ouvi-la” (DAMÁZIO, 1994, p. 30). Ouvir os que elas têm a dizer, se esforçar
para compreendê-las, deixar que “pronunciem sua palavra” não é mais que respeitá-las.
Da mesma forma que nos interessa que as crianças nos compreendam enquanto
militantes, precisamos parar para saber o que elas pensam disso tudo. O que este
“universo” representa para elas? Afinal de contas, se o pensamento pode ser construído
através do diálogo, ao buscar ouvir a voz das crianças, nossas próprias ideias sobre elas,
sobre nós e sobre o mundo vão se modificando. No entanto, nossas tarefas, a ideologia
dominante que reproduzimos de diversos modos no nosso cotidiano, ou mesmo nosso
desinteresse – que se liga a ideologias que se calcificaram sobre a infância que lhes
imputam características como “ingenuidade”, “incapacidade”, “fragilidade” etc. –, faz
com que não o façamos. Tendo em conta que grande parte disso tem a ver com o modo
como enxergamos as crianças hoje e o lugar que reservamos a elas em nossa sociedade,
de acordo as necessidades criadas pela vida “moderna”, que o capitalismo
contemporâneo estabelece, identificamos que há, ainda, uma barreira ideológica a ser
superada e que existe um descompasso entre o que queremos (ou dizemos querer) e o
que fazemos. E não nos faltam ideias de experiências em curso na América Latina de
formas de participação (inclusive institucionais) que possam nos inspirar a produzir as
nossas próprias pedagogias.

sumário 1694
VII Seminário Vozes da Educação

A pedagogia se nutre do ser humano como problema de si mesmo, ou da


problematização do sermos, do fazer-nos, do formar-nos humanos. Seu
objetivo de teorização é a trágica descoberta de nós mesmos. A pedagogia
acompanha ao longo da história as indagações de fazer-nos problema e nós,
mesmos, como formar-nos. Quando descobrirmos como educadores quão
pouco sabemos dos sujeitos da ação educativa, poderemos talvez repensar-
nos (ARROYO, 2003, p. 34).

Como nos diz Paulo Freire, a nossa perspectiva de educação popular e de


compreensão das infâncias precisa ser ligada indissoluvelmente “ao processo
revolucionário [tendo em conta] o seu caráter eminentemente pedagógico”; partindo de
“uma pedagogia problematizante e não uma ‘pedagogia’ dos ‘depósitos’, ‘bancária’”
(FREIRE, 1987, 134-135). É necessário dialogar. Entender as infâncias parte,
fundamentalmente, de aceitar o lugar das crianças como protagonistas de seu próprio
destino. Ou ainda no dizer de Freire: “O seu quefazer, ação e reflexão não pode dar-se
sem a ação e reflexão dos outros, se seu compromisso é da libertação” (FREIRE, 1987,
p. 122).
Como já colocamos, a CSP-Conlutas luta contra uma ideologia que se pretende
hegemônica. Isso inclui discutir e elaborar propostas tanto sobre questões de gênero
quanto sobre Educação; temas que em tempos de Escola Sem Partido e de tentativas de
proibir o debate de gênero nas escolas encontram-se tão imbricados. A solidariedade de
classe e os nossos demais valores devem orientar nossas ações no que diz respeito não
só a educação nas instituições, mas também nos nossos espaços formativos, incluindo-
se aí os espaços de cuidado e recreação da Central buscando sempre:

uma pedagogia emancipatória [que] há de ser includente, contrapondo-se ao


projeto neoliberal, comprovadamente excludente. Enquanto a pedagogia
neoliberal se pauta nos valores do mercado _ individualismo, competição,
consumismo _ e se apresenta como a “única alternativa”, mostrando – se por
consequência extremamente autoritária, a pedagogia emancipatória é
direcionada pelos valores da solidariedade dos despossuídos e dos
inconformados, que se propõe a mudar o mundo. (GARCIA, 2000, p.14-15)

O debate sobre a existência dos espaços poderia avançar para essa reflexão. Pois,
no dizer de Freire:

Não é possível à liderança tomar os oprimidos como meros fazedores ou


executores de suas determinações; como meros ativistas a quem negue a
reflexão sobre o seu próprio fazer. Os oprimidos, tendo a ilusão de que atuam,
na atuação da liderança, continuam manipulados exatamente por quem, por
sua própria natureza não pode fazê-lo. (FREIRE, 1987, p.122)

sumário 1695
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Além disso, precisamos ter em mente o entrecruzamento entre as questões de


Gênero, Infâncias e Educação na sociedade capitalista. Podemos afirmar que as crianças
têm um lugar no mundo. Levando em conta não apenas suas histórias pessoais, delas e
de suas famílias, mas também a que parte da sociedade pertencem, desempenham
determinados papéis sociais, que, em grande parte, reforçam as ideologias hegemônicas.
No que toca as infâncias, também já dissemos que é preciso pensar em como as
crianças podem ser levadas/estimuladas a refletir sobre seus espaços e, de alguma
maneira, questionar a “bagagem que trazem de fora” – isto é, as ideologias que trazem
consigo. Não queremos, com isso, determinar, ou que a CSP-Conlutas tenha um projeto
de espaço e recreação que determine, o que as crianças devem ou não pensar, mas que
considere a possibilidade de usar esses espaços para tentar refletir com elas sobre o que
pensam a respeito das suas e das “nossas” questões. É por meio do estímulo a sua
participação – esta compreendida como elas poderem fazer parte dos processos de
decisão e elaboração dos lugares em que elas convivem – que pensamos ser possível
construir espaços de cuidado e recreação que sejam, ao mesmo tempo, criativos,
questionadores e democráticos, que se coloquem nos marcos de uma educação popular
libertadora. E para isso temos que começar a trabalhar imediatamente, pois “Ainda será
necessário considerar a dimensão técnica da participação das crianças (Como fazer?
Que questões éticas? Que avaliação?), assim como questões de organização e
metodologia de trabalho com as crianças e a mediação dos adultos” (TOMAS, 2008, p.
14).
Já dissemos que não há um entrecruzamento entre as questões de gênero,
infância e Educação nos textos e resoluções da Central. Nas conversas realizadas no
curso destes dois anos e na observação de diversos espaços neste mesmo período em
nenhum momento essa relação é explicitada. Além disso, a forma como a CSP-Conlutas
pensa tais espaços é, claramente, mais voltada a resolver uma demanda de gênero – as
mulheres terem onde deixar seus filhos – do que estes serem pensados como um espaço
educativo sequer, menos ainda como um lugar de reflexão e/ou questionamento das
mesmas ideologias que a Central combate. O que pensamos aqui é que é interessante
que essa lógica seja subvertida: exatamente porque os espaços de cuidado e recreação
podem ser lugares de construção de uma proposta de educação popular libertadora é que
isso ajuda a desenvolver práticas de combate às ideologias hegemônicas, aos
preconceitos etc. Isto é: ao construir uma proposta revolucionária para tais espaços,

sumário 1696
VII Seminário Vozes da Educação

seria possível não apenas combater as ideologias hegemônicas, mas pensar uma
proposta contra hegemônica de sociedade, no que toca a esse entrecruzamento entre
gênero, infâncias e educação.
Como uma das mães que conversamos mesmo afirma, falando desses espaços,

Eu não consigo ser a favor da legalização do aborto, eu que sou ateia, eu que
defendo o amor entre duas pessoas do mesmo sexo e não dar leituras a meu
filho que vão nesse sentido. Não consigo não dizer para o meu filho que ele
tem um tio e padrinho que são namorados, eu não sou uma pessoa no meu
espaço privado e outra no espaço coletivo, porque o meu espaço privado é
parte do que sou no espaço coletivo. (CAVALCANTI, 2017, p.114)

Essa pesquisa no Cotidiano lança mão de alguns instrumentos da pesquisa-ação


na tentativa de devolver aos envolvidos nesse processo o conhecimento que produzimos
juntos. Como outra das mulheres com que conversamos nos diz:

Mas é isso, Ticyane, eu acho que o trabalho vai dar frutos importantes,
assim….
Entendeu? Eu acho que é isso, ele ajudou a fazer uma reflexão. É aquele
negócio, por exemplo, quando a gente for pro próximo espaço, pra mim ter
essa preocupação que sempre existiu pra mim, mas que ela vai se concretizar
em outra forma de querer discutir com a […] e.... “E aí, como foi?” E coisa e
tal…. Esse negócio, ter algum elemento, uma forma de…. Por que, no final
das contas, o que é que acontece? O registro que significou aquilo lá, aquele
espaço, no caso pra mim, a partir da tua pesquisa… (CAVALCANTI, 2017,
p. 114)

Longe de simples constatação desses problemas, esse trabalho é fruto da crença


que nós, revolucionári@s, devemos, pelo nosso compromisso de transformar o mundo,
nos dispor a viver em permanente e corajosa reflexão (FREIRE, 1987). Precisamos
superar esse problema que é não termos ainda refletido sobre esses espaços, sobre as
minúcias dessa política: seu financiamento, organização, ações pedagógicas. Ao não
fazê-lo, esbarramos numa contradição em relação a nos mesmos enquanto
revolucionários: precisamos trabalhar com cuidado e dedicação na tentativa de superar
essa contradição.

Referências
ARENHART, Deise. Infância, Educação e MST: quando as crianças ocupam a cena.
Chapecó: Argos, 2007.

ARROYO, Miguel G. Ações Coletivas e Conhecimento: Outras Pedagogias? 2009.


Disponível em: http:

sumário 1697
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

//www.universidadepopular.org/site/media/leituras_upms/Acoes_Coletivas_e_Conheci
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ARROYO, Miguel G. “Pedagogias em movimento – o que temos a aprender dos


Movimentos Sociais?”. In:Currículo sem Fronteiras, v.3, n.1, p. 28-49, Jan/Jun, 2003

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Cultura Rebelde: escritos sobre educação popular


ontem e agora. São Paulo:Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009.

CAVALCANTI, Ticyane Madeira. Crianças em movimento – Um estudo sobre os


espaços de cuidado e recreação para as crianças na CSP – Conlutas. 2017. 119 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação,
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https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewT
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DELGADO, Ana Cristina Cool. Infâncias e crianças: o que nós adultos sabemos sobre
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crianças nos orçamentos participativos. In: CONGRESSO PORTUGUÊS DE
SOCIOLOGIA, 2008, Lisboa. Mundos sociais: saberes e práticas. Disponível em:
http: //www.aps.pt/vicongresso/pdfs/477.pdf

sumário 1698
VII Seminário Vozes da Educação

LINGUAGEM ESCRITA: REFLETINDO SOBRE A PRODUÇÃO


ACADÊMICA NO CONTEXTO DE UMA FACULDADE DE FORMAÇÃO DE
PROFESSORES

Victoria Wilson da Costa Coelho


FFP/UERJ
vicwilsoncc@gmail.com

Ana Caroline Viegas


FFP/UERJ
viegas.carol@yahoo.com

Introdução
Esse trabalho discute as práticas da escrita na universidade no campo dos Novos
Estudos do Letramento (STREET, 2004; GEE, 2004). A leitura e a produção de textos
acadêmicos pelos alunos é tema de estudos nesta área (LEA&STREET, 1998;
CARLINO, 2005; IVANIC, 1998; ZAVALA, 2010; FIAD, 2011; MARINHO, 2010,
WILSON, 2017, 2016, 2006, WILSON&CARMO, 2017) e vem apontando origens e
causas para as dificuldades encontradas pelos alunos quando se debruçam sobre
atividades de leitura e escrita de gêneros acadêmicos, sobretudo artigos, ensaios,
projetos e monografias.
Há uma ideia de que os alunos chegam à universidade prontos para responder às
demandas que o ambiente acadêmico exige, porém, as experiências escolares anteriores,
os conhecimentos e culturas de origem se tensionam em contato com as novas
linguagens e outros conhecimentos, moldando o desempenho dos alunos em sua
trajetória na graduação. Portanto, não há garantia de que os estudantes estejam
preparados, muitas vezes de acordo com as expectativas prévias dos professores, para
vivenciar o letramento acadêmico. Novos modos de pensar, dizer, sentir e se expressar
são exigidos e muitas vezes entram em conflito com formas mais padronizadas e/ou já
alicerçadas e assentadas em paradigmas distintos (pois dominantes) daqueles
conhecidos. Daí, surgem desafios tanto para professores quanto para alunos em suas
respectivas atividades acadêmicas.

sumário 1699
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O objetivo de abordarmos as práticas de escrita na universidade, em estudos e


pesquisas, no contexto de uma faculdade de formação de professores, é tentar entender a
complexidade que envolve a construção de textos acadêmicos escritos e a relevância
desta modalidade de letramento, já que os professores em formação terão de lidar, no
futuro, com a leitura e a língua(gem) escrita em seus diversos gêneros, registros e
modalidades em suas respectivas salas de aula.
É fato que produzir textos acadêmicos é uma atividade complexa não só por
exigir rigorosa pesquisa sobre determinado tema, mas também por requerer a escrita de
uma linguagem elaborada e especializada de acordo com o campo de cada disciplina e
com padrões específicos em função dos gêneros do discurso exigidos: conteúdo
temático, estilo e estrutura composicional (os três elementos que constituem os gêneros
do discurso, segundo Bakhtin, 2003).
O trabalho visa discutir questões que subjazem às dificuldades dos alunos,
professores em formação, da área de Letras, em relação à escrita acadêmica. Apesar de,
durante a graduação, praticarem a leitura de textos científicos/especializados e a escrita
formal, os temores e as queixas dos alunos em relação à escrita acadêmica se faz sentir,
especialmente, quando precisam desenvolver a escrita do projeto de monografia, e,
posteriormente, a monografia, como trabalho de conclusão de curso.
A relevância deste estudo reside em tratar o letramento acadêmico como um
fenômeno multifacetado e integrado a diversos fatores. Discutiremos o fenômeno do
letramento não somente como um conjunto de práticas discursivas no âmbito
educacional, mas também pensando como fenômeno integrante das e integrado às
práticas sociais, como parte de um processo de [re]construção da identidade dos
estudantes, permeando as esferas da cultura, das crenças, dos valores. Deste modo,
serão apresentados conceitos de letramento e reflexões articuladas ao contexto
acadêmico. Além disso, refletiremos acerca da produção científica e as suas implicações
no processo de formação dos professores, procurando contribuir para a reflexão das
práticas docentes neste processo.

Letramentos acadêmicos: conceitualização e problematização


Os “Novos Estudos do Letramento” nos levam a pensar o letramento como
práticas de leitura e escrita, bem como uma forma de se olhar e de se comportar perante
o mundo, desvinculando-se de debates sobre escrita boa ou ruim. Os autores Lea&Street
(1998), baseando-se em teorias de leitura, escrita e letramento como práticas sociais (os

sumário 1700
VII Seminário Vozes da Educação

chamados “Novos Estudos do Letramento” – em inglês, New Literacy Studies (NLS);


Barton, 1994; Gee, 1996; Street, 1984), defenderam uma nova abordagem para a
compreensão da escrita e do letramento. A perspectiva dos “Novos Estudos do
Letramento” se configurou como um movimento que fez parte da chamada “virada
social”, um marco que desviou o foco das pesquisas sobre a língua escrita, mais restrita
à aquisição de tecnologia, para a interação e para a prática social (Gee, 2000). O
“modelo autônomo” de letramento gerou duas linhas principais de ação: a primeira está
relacionada às consequências da leitura e da escrita com ênfase nas atividades e nos
processos individuais e cognitivos; a segunda estuda a operação funcional do letramento
dentro de instituições modernas específicas. Entretanto, nenhuma dessas abordagens
enfatiza a importância do caráter social e ideológico do letramento. Ou seja, em uma
sociedade que exige cada vez mais das pessoas o aperfeiçoamento e uso social da leitura
e da escrita como, inclusive, condição de sobrevivência no meio social, ao se privilegiar
o modelo autônomo sobre o ideológico corre-se o risco de levar os alunos, no caso, a
uma mecanização do conhecimento ou a de encapsulá-los em ações mais
individualizantes e menos integradas a outras formas de conhecimento e experiências.
Podemos considerar, então, o modelo autônomo como um modelo que privilegia
o individual sem conceber a natureza social do letramento e o caráter plural de suas
práticas. Street (1998), ao propor, em oposição ao “modelo autônomo”, um “modelo
ideológico”, concebe o letramento em termos de práticas sociais concretas sujeitas às
ideologias locais. Contrariando o modelo autônomo que nos leva a crer que as práticas
de leitura e escrita e sua aprendizagem são neutras e universais e que contribuem para o
silenciamento das culturas e das ideologias afetadas pelas práticas de letramento, Street
(2012) reflete sobre os efeitos do letramento na vida das pessoas. A esse respeito
declara: “[...] uma de suas consequências é que disfarça os pressupostos culturais e ideológicos que
sustentam; para que possa então ser apresentado como se fosse neutro e universal e que o letramento terá
efeitos benignos256” (STREET, 2012, p. 28, tradução das autoras).
O letramento – qualquer seja a sua modalidade – só apresentará consequências
benignas para as pessoas quando concebido e praticado em conjunto e integrado às
culturas de cada grupo social, aos seus interesses e em atenção às ideologias locais.
Seguindo o modelo ideológico, não se trata de negar as habilidades técnicas ou os
aspectos cognitivos da leitura e da escrita, como sustentado pelo modelo autônomo de

256
O texto em língua estrangeira é: “[…] one of its consequences is that it disguises the cultural and
ideological assumptions that underpin; so that it can then be presented as though such are neutral and
universal and that literacy will have benign effects.”

sumário 1701
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

letramento, mas sim, de entendê-las em totalidades culturais, considerando-se estruturas


e relações de poder e as dinâmicas de cada contexto em que ocorrem os eventos de
letramento.
Como podemos compreender, o letramento, antes de tudo, é de natureza
essencialmente social e ideológica, e pode gerar tanto efeitos positivos quanto negativos
sobre os indivíduos, dependendo do modo como se estruturam as relações sociais de
cada comunidade e suas respectivas interrelações. Ou seja, não há práticas de
letramento que sejam neutras ou descontextualizadas e é desse modo que será
concebido neste trabalho.
Em suma, os letramentos são realizados em eventos mediados por textos escritos
e desenvolvidos como práticas sociais, existindo diferentes letramentos, cada um
associado a um âmbito da vida social (BARTON & HAMILTON, 2004). Os autores
criam a expressão “práticas de letramento” ou “práticas letradas” para explicar como
estão situadas historicamente e são modeladas pelas instituições sociais e pelas relações
de poder e como estão sujeitas a mudanças e renovações e são influenciadas por meio
257
de processos informais de aprendizagem e de construção de sentido.
(BARTON&HAMILTON, 2004, p. 113).
As práticas de letramento, portanto, afetam os eventos de letramento, que se
configuram como situações específicas em que a leitura e a escrita integram esses
eventos, como é o caso em estudo neste trabalho. Assim, os eventos são influenciados
pela diversidade e heterogeneidade de práticas de letramento das quais alunos e
professores participam, de acordo com suas respectivas experiências e vivências,
crenças e valores. Na universidade, essas práticas se tornam explícitas ou implícitas, são
acolhidas ou não, porém atuam como forças organizadoras e reorganizadoras dos
eventos de letramento. É certo que o professor tem um impacto na vida dos alunos, por
isso se faz necessário entender melhor os processos de aprendizagem dos alunos, as
suas necessidades, refletir sobre os contextos do quais eles fazem parte, e
descondicionar-se, sempre que possível, de suas crenças e certezas, a fim de contribuir
para o crescimento pessoal, acadêmico e profissional dos alunos.
257
O texto em língua estrangeira é: “La literacidad se comprende mejor como un conjunto de prácticas
sociales que pueden ser inferidas a partir de eventos mediados por textos escritos. Existen diferentes
literacidades asociadas con diferentes ámbitos de la vida. Las prácticas letradas están modeladas por las
instituciones sociales y las relaciones de poder, y algunas literacidades se vuelven más dominantes,
visibles e influyentes que otras. Las prácticas letradas tienen un propósito y están insertas en objetivos
sociales y prácticas culturales más amplios. La literacidad se halla situada históricamente. Las prácticas
letradas cambian y las nuevas se adquieren, con frecuencia, por medio de procesos informales de
aprendizaje y de construcción de sentido.”

sumário 1702
VII Seminário Vozes da Educação

Desse modo, é necessário ultrapassar a concepção de que os letramentos se


restringem à apreensão de técnicas e habilidades, como já assinalado, e reforçar a crítica
de Zavala (2010) aos professores que pensam que os seus alunos estarão prontos para
responder às demandas dos gêneros acadêmicos ao longo de sua trajetória na graduação.
A autora critica a ideia de que o “bom estudante” é aquele que ingressa com um
desempenho esperado pela universidade, o que anula todas as experiências prévias dos
alunos, e que acaba reduzindo a leitura e a escrita a uma técnica que pode ser adquirida
rapidamente. Acerca dos modos de apropriação do letramento, Wilson (2016)
complementa:

Os modos de apropriação do letramento acadêmico nem sempre ocorrem do


modo previsto pelos professores (nem sempre as regras do jogo são claras ou
são tornadas explícitas para os alunos). Ao contrário, esses modos de
apropriação do letramento são atravessados por conflitos, imprecisões,
contradições, resistências, normas, valores e características culturais, bem
como pessoais. (WILSON, 2016, p. 2-3).

Nesta perspectiva, as apropriações de práticas discursivas orais e escritas


desenvolvem-se de acordo com as experiências dos estudantes no processo de sua
socialização acadêmica, sendo esta a razão pela qual o letramento além de estar
vinculado a formas de pensar também está vinculado a formas de sentir e valorizar a si
mesmo (ZAVALA, op. cit., p.). Podemos dizer então que o processo de apreensão, ou
melhor, de experiência com os letramentos relaciona-se à [re]construção da identidade
dos alunos (ou self para alguns autores), não estando relacionado somente a textos
escritos, mas também a tudo o que acontece em torno e à volta dos textos, o que nos
leva a concluir o quanto as práticas letradas estão sujeitas a mudanças permanentes,
uma vez que: “[...] a identidade não é socialmente determinada, mas socialmente construída. Isso
significa que as possibilidades para o “self” não são fixas, mas abertas à contestação e à
mudança258”(IVANIC, 1998, p. 12, tradução das autoras).
Segundo argumenta Ivanic, não é somente a decisão de viver as práticas de
letramento na universidade que afeta a vida acadêmica do aluno, mas também a forma
como o letramento é realizado, uma vez que é culturalmente situado:

O texto em língua estrangeira é: “[...] identity is not socially determined but socially constructed. This
258

means that the possibilities for the self are not fixed, but open to contestation and change.”

sumário 1703
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Não é somente a decisão de viver o letramento, mas também o modo pelo


qual o letramento é praticado, culturalmente moldado: imbuído de valores,
crenças e relações de poder que existem no contexto cultural. […] Valores,
crenças e relações de poder estão em constante processo de contestação e
mudança.259 (IVANIC, 1998, p. 65-66, tradução das autoras).

De fato, há uma ideia de que os alunos chegam ao ensino superior prontos para
responderem às demandas de letramento que esse nível de escolaridade exige, porém, os
problemas relacionados à produção e recepção de textos acadêmicos vão além dos
aspectos puramente linguísticos, sendo resultados de falta de familiaridade com
discursos acadêmicos, conforme Wilson (2006). Zavala complementa, pontuando que o
letramento não é algo que possa ser ensinado formalmente devido ao fato de que as
pessoas se tornam letradas observando e interagindo com outras pessoas, com a
comunidade acadêmica, até que as formas de falar, atuar, pensar, sentir e valorizar
comuns a esse discurso se tornem naturais a elas. Neste sentido, a escrita e a leitura são
concebidas como sistemas simbólicos enraizados na prática social, inseparáveis de
valores sociais e culturais, e não como habilidades descontextualizadas e neutras,
utilizadas para a codificação e decodificação de símbolos gráficos, sendo assim, o
letramento se adquire como parte da identidade das pessoas (ZAVALA, 2010).
Carlino (2005) também problematiza o conceito de letramento acadêmico (por
ela denominado alfabetización académica) e argumenta a favor da diversidade de
letramentos, sendo o letramento acadêmico um de seus tipos, mostrando que se trata de
uma questão complexa, e que, mesmo tendo sido adquirido algum tipo de letramento em
certo momento, não se completa totalmente: “Pelo contrário: a diversidade de temas,
aulas de texto, propósitos, destinatários, reflexões implícitas e contextos em que se lê e
se escreve sempre colocam para aqueles que iniciam neles novos desafios e demandam
continuar aprendendo a ler e escrever260” (CARLINO, 2005, p. 7, tradução das autoras).
A autora acredita na força do conceito de alfabetización académica, pois
questiona a ideia de que ler, escrever, elaborar e comunicar sejam atividades iguais em
todos os contextos, e que aprender a produzir e interpretar textos seja um assunto
concluído quando o aluno ingressa no ensino superior. Pelo contrário, a diversidade de
gêneros textuais, de temas e propósitos, de leitura e escrita, além dos contextos em que

259
O texto em língua estrangeira é: “It is not only the decision to use literacy but also the way in wich it is
used wich is culturally shaped: imbued with values, beliefs and power relations wich exist in the cultural
context. […] Values, beliefs and power relations are in a constant process of contestation and change.”
260
O texto em língua estrangeira é: “Por el contrario: la diversidad de temas, clases de textos, propósitos,
destinatários, reflexiones implicadas y contextos en los que se lee y escribe plantean siempre a quien se
inicia en ellos nuevos desafios y exigen continuar aprendiendo a leer y escribir.”

sumário 1704
VII Seminário Vozes da Educação

são praticados promove novos desafios, e a exigência de continuar aprendendo a ler e a


escrever.
Entretanto, para a autora, o conceito “alfabetización académica” resulta
produtivo, ainda que arriscado. Produtivo por designar e, ao mesmo tempo, pensar sobre
um campo de problemas de uma forma inovadora, porém, com o risco de ser tratado
somente como mais um nome para uma questão antiga que acontece em sala de aula.
Por isso, Carlino (2005) enfatiza que alfabetización académica implica a ação dos
professores em prol da inserção dos alunos na “cultura” de cada disciplina, a fim de que
os estudantes provenientes de outras culturas consigam ingressar em cada contexto
específico de aprendizagem.
Nos processos de constituição acadêmico-científica, os alunos (re)produzem
suas experiências subjetivas com a linguagem e o conhecimento, vivenciando e
incorporando neste processo outros modos, outras práticas discursivas, uma vez que
estão imersos no Discurso – com D maiúsculo –, conforme definido por Gee (1996). O
Discurso, segundo o autor, é:

Associação socialmente aceita entre modos de usar a linguagem e outras


expressões simbólicas, de pensar, sentir, acreditar, avaliar e agir, bem como
usar várias ferramentas, tecnologias que podem ser usadas para identificar
um indivíduo como um membro de um grupo socialmente significante ou
uma ‘rede social’ para assinalar um ‘papel’ socialmente significativo ou para
sinalizar que alguém preenche de modo reconhecivelmente distintivo um
nicho social (GEE, 1996, p. 161)

Pertencer e sentir-se integrado à comunidade acadêmica é parte do que significa


ser letrado neste contexto e contribui significativamente para a atenuação das
dificuldades encontradas pelos alunos, pois o processo de letramento vai além das
habilidades de leitura e escrita de textos. O letramento faz parte da vida acadêmica e
(inter)social do estudante e do professor também e o modo de pensar a educação, o
ensino e a aprendizagem na universidade não deve mais se concentrar em
características prototípicas da cultura escrita e do fazer científico, uma vez que
diferentes linguagens, conhecimentos e racionalidades configuram uma outra dinâmica
em termos dos modos de dizer e fazer na universidade.

sumário 1705
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A produção científica e a formação do estudante universitário: a escrita esperada e


a escrita realizada
Bakhtin (2003, p. 262) define gênero do discurso como“cada enunciado
particular e individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados”. Uma determinada função, como por exemplo, a
função científica, e determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de
cada campo, geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados
estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis, sendo o estilo
indissociável de determinadas unidades temáticas, e de determinadas unidades
composicionais (tipos de construção do conjunto, tipos do seu acabamento, tipos da
relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva).
E, se tratando de um gênero acadêmico e sua maior rigidez estilística em relação
a outros gêneros, esta estabilidade acaba gerando desafios para os estudantes do ensino
superior. Em gêneros com ato grau de normatização, dificultam-se ou se tornam
restritas transgressões estilísticas muito salientes. Como afirma Wilson (2017): “

O alto grau de padronização e coerção do gênero acadêmico se, por um lado,


garante certa estabilidade e normatividade, mais fáceis de serem captadas,
por outro lado, inibe as livres escolhas e maior criatividade, pois nesse
universo, muitas vezes, “‘manda quem pode, obedece quem tem juízo’”.
(WILSON, 2016a, p. 3).

Ou seja, embora seja necessária a familiaridade com os estilos dos gêneros para
que o processo de aprendizagem se torne menos “doloroso”, as convenções dos gêneros
também atuam como forças reguladoras no processo de aprendizagem somadas às
experiências subjetivas com os letramentos acadêmicos.
O relato a seguir explicita a angústia de uma aluna em relação à sua experiência
com a escrita acadêmica mais complexa. A aluna 261 narra a sua experiência de
letramento acadêmico ao longo de sua trajetória nas aulas de projeto de monografia:

Totalmente sem norte, acredito que é dessa forma que os alunos chegam ao
último período da faculdade para fazer a monografia. Pelo menos comigo foi
assim, mesmo participando de pesquisa há algum tempo. Agora, me
questiono como os alunos que não tem a oportunidade de pesquisar se
sentem, pânico? Logo, é totalmente justificável e indispensável que esse

261
Thalita T. A. do Carmo, aluna da disciplina Projeto de Monografia, cujas aulas eram ministradas por
Victoria Wilson C. Coelho, professora da disciplina. Era, na época, bolsista de Iniciação à Docência
(UERJ) participando de projeto de pesquisa, de extensão, vinculado à bolsa sob orientação da professora
Dra. Marcia Lisbôa Costa de Oliveira.
vii
Trata-se de material trabalhado nos aulas de Projeto de Monografia e cedido pelos alunos.

sumário 1706
VII Seminário Vozes da Educação

processo comece mais cedo com disciplinas que ajudem a trilhar o caminho,
como um empurrão. (WILSON&CARMO, 2017, p. 853).

Diante desse relato, é preciso que professores se questionem sobre seu papel na
construção da linguagem e do conhecimento especializados pelos alunos. Em geral, as
práticas docentes e o conhecimento produzido na universidade estão “alojados” em
modos de compreensão prototípicos do paradigma dominante dos usos da ciência,
negligenciando-se ou mesmo desprezando-se culturas e saberes locais, experiências
subjetivas com a língua(gem) e conhecimentos outros que modelam nossas experiências
com a língua escrita. O silenciamento de saberes e linguagens outros repercute nas
produções dos alunos e nas formas de sua expressão “acadêmica” – a adequação ao
saber-fazer científico muitas vezes sufoca modos de dizer que poderiam ser expressos e
integrados à cultura acadêmica se fossem sentidos e observados como modos de
conhecimento legítimos.
Sabemos que a leitura e a escrita dos gêneros acadêmicos como artigos, teses, e
monografias são práticas realizadas principalmente nas universidades, pois, não são
conteúdos trabalhados em escolas de ensino fundamental e médio (MARINHO, 2010),
o que nos leva a crer que o espaço em que estes gêneros devem ser compreendidos é em
uma instituição de ensino superior. Neste sentido, as atividades realizadas em uma
universidade devem abranger e abordar práticas necessárias para que os alunos
desenvolvam as suas habilidades também, seus conhecimentos e ativem suas
experiências relativas à produção de textos.
Pensando sobre o contexto da faculdade de formação de professores da UERJ, a
qual disponibiliza como disciplina obrigatória para os alunos de Letras a disciplina
projeto de monografia, entendemos que a referida disciplina atua como forma de
preparar os alunos para a elaboração do produto final – a monografia- e tem uma função
relevante neste sentido, ainda que seja oferecida nos últimos períodos do curso.
Durante o processo de apropriação do letramento, os alunos têm de lidar com
questões pessoais e acadêmicas que podem interferir negativamente na produção dos
textos, têm de lidar com a insegurança, e ainda, com o temor de não conseguir produzir
a monografia da forma esperada e/ou almejada. Além disso, os alunos precisam de um
professor que os orientem desde o projeto de monografia até a monografia, cuja tarefa
necessita de comprometimento de ambas as partes. E as dificuldades que surgem neste
processo não serão somente as do aluno, como salientam as teorias do déficit, mas
serão problemas de ambos, pois, entendemos que se trata de um processo e de um

sumário 1707
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

trabalho co-construído entre professores (orientadores) e alunos e que ambos devem se


reconhecer neste processo.
É neste momento que os eventos de letramento devem ser (re)pensados, podendo
se constituir em momentos singulares para a experiência com a escrita em três planos: o
acadêmico como experiência de formulação e reformulação de metodologias e
paradigmas; o pedagógico, para se pensar a formação docente; o subjetivo: para
professor e aluno avaliarem suas próprias experiências subjetivas com a língua, em
termos de normas e usos sociais; ao fato de o letramento não estar apenas “vinculado a
formas de pensar, mas também a formas de sentir e valorizar a si mesmo” (ZAVALA,
op.cit.,p,81) Cabe aos professores, contrariando “os discursos de déficit acerca da falta
de lógica e de racionalidade nos aprendizes” (ZAVALA, op.cit., p. 91), entender que as
práticas já tácitas e naturalizadas entre eles não são nem naturais e nem tácitas para os
alunos, por isso precisam se tornar explícitas para eles (cf. WILSON, 2017).
Marinho (2010) atenta para o fato de que é necessária uma mudança de postura a
fim de que sejam pensadas propostas que auxiliem os estudantes a enfrentarem as
adversidades, muitas vezes decorrentes da própria falta de explicação por parte dos
professores, no processo de produção acadêmica:

As constantes queixas de professores universitários (e dos próprios alunos)


de que os alunos têm dificuldade na leitura e na produção de textos
acadêmicos nos alertam para a necessidade de transformar essas queixas em
propostas de ensino e de pesquisa. (MARINHO, 2010, p. 364).

Desse modo, observa-se como a construção e a elaboração da linguagem


acadêmica extrapolam os processos cognitivos propriamente ditos ou como os
processos cognitivos não se desvinculam de emoções e expressões subjetivas e de como
estas influenciam a construção do conhecimento e a produção da escrita. Portanto, é de
suma importância que sejam realizadas pesquisas para entender a prática de produção
acadêmica, para saber se estas dificuldades se aplicam a todos os alunos,uma vez que ao
adentrarem em um novo espaço educacional se deparam com um processo de um novo
letramento, e como afirma Fiad (2011, p. 362), “não há uma correspondência entre o
letramento do estudante e o letramento que lhe é exigido na universidade”, o que refuta
a ideia de que os alunos chegam preparados para lidar com a produção acadêmica em
uma universidade, conforme já destacado.

sumário 1708
VII Seminário Vozes da Educação

Estas pesquisas podem nos ajudar a aprofundar o nosso conhecimento relativo às


inquietações e interpretações dos alunos no que diz respeito ao processo de produção de
textos dos gêneros acadêmicos, e a entender os significados desta aprendizagem para
eles. A monografia não é somente um requisito para concluir a graduação, é um gênero
que pode auxiliar em futuras pesquisas referentes a determinado tema, e é da mesma
forma, um gênero acadêmico que provoca uma mudança de comportamento linguístico,
acadêmico e social na vida dos graduandos, especialmente se são professores em
formação.
O projeto de monografia e a monografia têm a sua importância a partir do
momento em que exigem do aluno uma postura crítica e reflexiva para a produção de
textos científicos relativos à sua área acadêmica, além de proporcionar o
desenvolvimento da escrita de gêneros acadêmicos. Porém, o papel do letramento como
práticas de leitura e escrita, atua, na formação acadêmica dos futuros professores e no
processo de [re]construção da identidade destes, como bem demonstra o trecho abaixo
em que podemos observar a opção pela narrativa autobiográfica como projeto de
monografia: “O presente trabalho tem como objetivo descrever minha trajetória de vida,
unindo o entrelaçamento da literatura infantil no processo de aprendizagem e minha
escolha de ser um profissional do curso de Letras (...)”.
Optar pela narrativa autobiográfica no universo de racionalidades científicas
mais duras, ainda que parte das Ciências Humanas, é um desafio, tanto para a aluna
como para o professor/orientador. Mas essa opção inscreve-se, segundo a nossa
perspectiva, na assunção do Discurso, como propõe Gee (1996), já citado: a voz da
protagonista para marcar seu lugar no universo acadêmico, lugar de pertencimentoe não
de exclusão; lugar para a expressão de outras racionalidades que possam dialogar com
as racionalidades dominantes: “Construí este trabalho de forma histórica e descritiva,
procurando apresentar um conjunto de fatos e reflexões com o objetivo de tecer uma
análise sobre o processo de minha formação e de toda produção até o presente
momento”.
A construção dos gêneros acadêmicos, nas Ciências Humanas, é um amálgama
de vozes e conceitos, é o próprio dialogismo de raiz bakhtiniana em ação. O letramento,
do ponto de vista do modelo ideológico, leva-nos a compreender o quanto, no processo
de aprendizagem, os textos dos alunos são expressivos em salientar o jogo das forças
centrípetas e centrífugas da língua (cf. Bakhtin, 1993) e das normas e convenções,
revelando manifestações discursivas em busca da institucionalização e valorização da

sumário 1709
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

linguagem e do conhecimento. Nesse sentido, “os textos produzidos pelos alunos, ao


projetarem as expectativas do contexto, ainda que de modo incerto, acabam por projetar
também uma pluralidade (divergente) de vozes/identidades” (WILSON, 2016).

Considerações finais
Na aprendizagem dos gêneros acadêmicos, são muitos os esforços a serem feitos
e não há nada de familiar e natural neste sentido. É preciso que o professor reconheça
esse fato e não naturalize as dificuldades como se essas fossem inerentes aos alunos,
porque também ele não se costuma reconhecer no tempo que demorou para “adquirir as
atitudes e valores que se associam com o modelo de aprendiz ideal” (HAGGIS, 2003,
apud ZAVALA, 2010, p. 89).
Acreditar que o processo de letramento se desenvolve de forma linear e sem
nenhum obstáculo é crer em uma utopia, pois, as próprias experiências dos alunos
relativas às diferentes tipos de gêneros e linguagens, o letramento escolar anterior ao
ingresso na faculdade que pode ou não favorecer de imediato a aprendizagem de outros
gêneros, a motivação pertinente à escrita vinculada à sua finalidade acadêmica, as
práticas de escrita de textos acadêmicos desenvolvidas e estimuladas pelos professores
em suas aulas, as expectativas dos professores, dentre outros, são fatores que
influenciam o modo como ocorre o processo de letramento acadêmico. E presumir que
o processo de letramento acadêmico não seja algo complexo significa ignorar as
dificuldades existentes durante o processo de aprendizagem e de saber lidar com uma
nova e intricada etapa de estudos.
Em vista disso, se faz necessário que adotemos uma postura aberta e flexível
para que outras possibilidades de metodologias, outras interpretações e ideias possam
ser sugeridas e debatidas, visando a um bem maior, visando tornar o momento de
formação de professores uma fase significativa para que reverbere de forma positiva na
vida dos estudantes. Portanto, as contribuições deste estudo estão centradas na
compreensão dos diferentes letramentos já adquiridos pelos alunos que estão em
processo de letramento acadêmico, nas dificuldades referentes (mas não inerentes) ao
processo de produção de textos acadêmicos, especificamente os gêneros projeto de
monografia e monografia, que são trabalhos decisivos para a conclusão da graduação, e
sobre o quê e como a comunidade docente acadêmica, em diálogo com a comunidade
discente, pode auxiliar a minimizar o estranhamento e os conflitos dos alunos com
relação à produção de escrita acadêmica.

sumário 1710
VII Seminário Vozes da Educação

A partir dessas considerações, podemos inferir que a experiência com a


língua(gem) é única e subjetiva, repercutindo assim, nos diferentes modos de ser
letrado, pois, no processo de socialização acadêmica, as pessoas procuram encontrar e
dar sentido à sua experiência (ZAVALA, 2010).

Referências
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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 1712
VII Seminário Vozes da Educação

RELATO DE PRÁTICA DOCENTE: O TRABALHO COM A METODOLOGIA


DE PROJETO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Jéssica Caroline P. Da Silva Costa- UFRJ


Email: jessi_kroline@hotmail.com

Resultado de muitas lutas, pesquisas e estudos na área da primeira infância, a


Educação Infantil passou a ser compreendida como a primeira etapa da Educação
Básica pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB/1996). Atualmente, o documento que
norteia o trabalho da Educação Infantil no Brasil são as DCNEI (Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil) que entende

a criança como sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e


práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva,
brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa,experimenta, narra,
questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo
cultura (BRASIL, 2010, pag.12).

O Currículo da Educação Infantil deve ter como princípio o conjunto de práticas


que articulem as “experiências e saberes das crianças com os patrimônios cultural,
artístico, ambiental, científico e tecnológico da sociedade na qual está inserida”
(BRASIL, 2010, pag.12). As diretrizes preveem ainda que, o trabalho na primeira
infância seja orientado “sobre dois eixos principais: as brincadeiras e as interações”
(pag.25).
Apresento neste trabalho o relato de prática que aconteceu na Escola de
Educação Infantil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEI-UFRJ), no ano de
2018. Vale ressaltar que no ano de 2019, a escola foi integrada ao Colégio de Aplicação
(CAp) da mesma instituição, resultado de muitas lutas e manifestações das famílias e
funcionários da escola. Com essa integração as crianças poderão dar continuidade aos
seus estudos até o final do Ensino Médio dentro da instituição. A escola oferece
atendimento integral de 10 horas. O grupo de crianças da turma relatada foi composto
por oito meninas e três meninos. A docência era compartilhada com quatro professoras
que se dividiam nos turnos da manhã e da tarde, todas formadas em Pedagogia.

sumário 1713
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A escola tem registrado em seu Projeto Político Pedagógico (PPP) que o


trabalho com projetos na Educação Infantil é um modo de entrelaçar saberes. O PPP
compreende que é através da linguagem que as diversas experiências se concretizam.
Assim, o currículo da escola se orienta em cinco eixos, a saber:

ARTES (artes visuais, música, dança, literatura); CORPO (psicomotricidade


relacional); BRINCADEIRA (faz de conta, jogos de regra, atividade lúdica);
MATEMÁTICA; NARRATIVA, LEITURA e ESCRITA (letramento);
EXPERIÊNCIAS COM A NATUREZA (PPP EEI UFRJ, 2012, pag.15).

O trabalho pedagógico baseado na Metodologia de Projetos envolve partilhar o


que já sabemos e nos faz assumir uma postura investigativa sobre o assunto que se
pretende pesquisar.
Maria Fernanda Nunes afirma que “falar de crianças e adultos remete-nos a
pensar a pluralidade, ou seja, lidar com diferenças e percebê-las como marcas de nossa
condição humana” (2009, p.41). Estar em grupo é partilhar o encontro das diversas
formas de ver o mundo. A escola é um espaço coletivo importante para a troca de ideias
e sentimentos. Um lugar de encontro de diferentes culturas, ou seja, um campo fértil de
variedades de saberes e vivências. Para que essas diversidades de experiências
conversem entre si, por meio das diferentes linguagens, espaços dialógicos precisam ser
potencializados e mediados pelos professores. Andrade (2010) afirma que: “A
concepção discursiva de relações de socialização inscreve os sujeitos numa rede de
relações que se realiza cotidianamente que dinamicamente os altera, se alterando, ao
reforçar proximidades ou afastamentos, rompendo ou refazendo certos ‘nós’” (p. 10).
Andrade chama a atenção para a relação entre os sujeitos, que nessa interação
permitem se modificar, produzindo na troca de conhecimentos, uma reflexão que resulta
na alteração do indivíduo.
Partindo do pressuposto que a criança é um sujeito ativo na produção do seu
próprio conhecimento e produtora de cultura, Corsino (2012) define o trabalho com
projeto como o desejável que ainda não foi realizado “uma ideia para ser transformada
em ato. No trabalho com projetos, as pessoas mobilizam-se e envolvem-se para
descobrir algo novo, procurando respostas a questões ou problemas e necessidades
reais” (pag.101).
Com o objetivo de relatar a experiência vivida no projeto Animais em Extinção,
tema que surgiu a partir da curiosidade das crianças em querer descobrir “O que são

sumário 1714
VII Seminário Vozes da Educação

animais em extinção?”, o texto aqui apresentado se estrutura a partir da seguinte


divisão: a) fundamentação teórica, onde farei uma breve exposição sobre a Metodologia
de Projetos no âmbito da Educação; b) um breve diálogo sobre a relação teoria e prática
na Metodologia de Projetos por meio do relato de experiência.

Metodologia de Projeto na Educação Infantil


A Metodologia de Projetos na escola parte do pressuposto de que a curiosidade
por algo que faz parte da realidade das crianças e professores pode ser expressa pelo
desejo de conhecer mais sobre um assunto. Confome explicam Barbosa & Horn:

A pedagogia de projetos é uma possibilidade interessante em termos de


organização pedagógica, porque entre outros fatores, contempla uma visão
multifacetada dos conhecimentos e das informações. Todo projeto é um
processo criativo para alunos e professores possibilitando o estabelecimento
de ricas relações entre ensino e aprendizagem. Para construir um projeto na
prática escolar, é importante refletir sobre uma situação, o problema global
dos fenômenos, a realidade factual, e não sobre a interpretação teórica já
sistematizada nas disciplinas (BARBOSA&HORN, 2008, pag. 53).

Trabalhar com projetos na escola, é valorizar os olhares, observações, interesses


e preocupações das crianças e relacioná-las com conhecimento escolar. Corsino
defende que:

Os projetos vão além dos limites do currículo, pois os temas eleitos podem
ser explorados de forma ampla e interdisciplinar, implicando pesquisa, busca
de informações, experiências de primeira mão como visitas e entrevistas,
além de possibilitarem a realização de inúmeras atividades de organização e
de registro, feitas individualmente, em pequenos grupos ou com a
participação da turma toda (CORSINO, 2012, p.101).

Conforme expressado acima, são inúmeras as possibilidades de pesquisa para


desvendar as curiosidades sobre o assunto pesquisado. O trabalho com projetos permite
uma integração de diversas áreas do conhecimento e de diferentes fontes de pesquisa e
linguagens, como afirma Corsino (2012) ao expor que “o trabalho com projetos por
abordar um determinado assunto de forma contextualizada, amplia consideralvelmente a
gama de conhecimentos que podem ser ancorados ao tema eleito, permitindo não só a
interdisciplinaridade, mas também a transversalidade” (pag. 110).
Além disso, o trabalho com projetos possibilita ao professor ser um pesquisador
e não um mero reprodutor de livros didáticos e atividades prontas, que não fazem

sumário 1715
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

sentido para ele, e muitas vezes nem para os pequenos. Essa metodologia, envolve
crianças e professores na construção do conhecimento. Segundo Corsino (2012):

O professor torna-se alguém que também está na sua busca de informações,


que estimula a curiosidade e a criatividade do grupo e, sobretudo, que
entende que as crianças não são receptores passivos, mas sujeitos, que têm
interesses, que têm uma história, que participam ativamente do mundo
construindo e reconstruindo a cultura na qual estão imersos (pag.102).

Para que o trabalho com projetos seja desenvolvido de maneira integradora com
a instituição, é muito importante a parceria com os outros sujeitos da escola como
gestores, pais e toda a comunidadede escolar. Segundo Corsino (2012), “a duração de
um projeto é variável. A possibilidade de planejamento seria determinar um início, meio
e fim do projeto mesmo que este fim seja provisório e que deste surjam outros projetos”
(pag.103).
Portanto a culminância é necessária para apresentar todo o resultado da pesquisa
à comunidade escolar, dar visibilidade ao trabalho desenvolvido pelas crianças e
professores, além de abrir possibilidades de, por meio dos conhecimentos produzidos,
gerar novas propostas de estudos e projetos. Existem algumas maneiras de apresentar o
produto final através de dramatizações, danças, livros etc. Embora seja necessária uma
“finalização” no trabalho com projetos, o processo ou caminho percorrido da pesquisa é
o mais importante.

A narrativa do projeto “Animais em extinção”


Como o projeto surgiu...
O início do ano letivo foi recheado de histórias que nos levaram a um mundo
cheio de emoções. Em alguns momentos, nos espantamos e tivemos medo, rimos, enfim
experimentamos uma mistura de sentimentos e, assim fomos percorrendo diferentes
mundos e caminhos com a Chapeuzinho Vermelho e tantas outras cores. Um passeio
pelas diversas versões das histórias das Chapeuzinhos: “Chapeuzinho Amarelo”, de
Chico Buarque. “A Verdadeira história da chapeuzinho”, de Sagnese Baruzzi e Sandro
Natalini e “Chapeuzinhos Coloridos” por Jose Roberto Torero e Marcus Aurelius
Pimenta. Essa última versão, a cada dia levou mais entusiasmo e aventura para nossas
manhãs e tardes com finais surpreendentes para todos nós. A literatura Infantil “
Chapeuzinhos Coloridos” apresenta seis chapeuzinhos coloridos com seis histórias
distintas.

sumário 1716
VII Seminário Vozes da Educação

Problematização...
Durante a história da “Chapeuzinho Verde”, que apresentava a história da
menina e da vovó que tinham o hábito de comer carne de lobo. Na parte da história
“Quando o caçador chegou na casa da vovó e viu as duas comendo lobo assado,
prendeu-as pois o lobo que elas estavam comendo era de uma espécie rara e estava em
extinção”. Nesse momento, uma das crianças perguntou:
- O que é extinção?
- Alguém sabe o que é extinção? Uma das professoras retornou com a
pergunta para o grupo.
- É quando os animais somem ou morrem! Uma criança prontamente
respondeu.
Com esse diálogo registramos em um cartaz o que as crianças sabiam sobre os
animais em extinção e o que gostaríamos de descobrir sobre eles e o por que da
investigação.
Com isso, vale a pena pensar no que Maria Angela da Silva Monteiro nos leva a
refletir:

[...] sobre a necessidade de fazermos da sala de aula um espaço que, contrário


à visão monológica, autoritária ou paternalista, venha impulsionar o
desenvolvimento da autonomia e do senso crítico dos alunos. Respeitando o
espaço de fala das crianças, poderemos percebê-los como seres interativos,
envolvidos nos processos históricos e socialmente determinados e, portanto,
humanizantes (MONTEIRO, 1996, pag. 177).

Foi proposta uma pesquisa para ser feita em casa e pensamos juntos sobre as
diversas fontes onde poderíamos encontrar informações sobre o assunto, pois
acreditamos com Corsino que:

Os projetos exigem cooperação, interesse, curiosidade, desenvolvimento de


estratégias para sua execução e diferentes tipos de registros. Ao professor
cabe a mediação de cada etapa por meio da organização de propostas,
questionamento, pesquisa em diferentes fontes, observação, reflexão,
flexibilidade e conhecimento dos conteúdos e habilidades que devem ser
trabalhados (CORSINO, 2012, pág. 109).

Como já relatado, a questão sobre os animais em extinção, surgiu a partir de uma


leitura literária apresentada pelos professores. Barbosa & Horn (2008) apontam que a
definição do tema/problema pode advir das experiências anteriores das crianças e
também do professor.

sumário 1717
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Daí em diante, diversas atividades aconteceram: as crianças trouxeram suas


pesquisas, observamos os animais que estavam extintos e elaboramos um cartaz com as
variedades de animais que as crianças trouxeram. Esse movimento de pesquisar
envolveu os pequenos, suas famílias e os professores da turma.
Com o levantamento de animais em extinção no Brasil, listamos muitos bichos.
Resolvemos, então, nos dedicar a alguns e para isso fizemos uma votação para
escolher o animal que iríamos investigar primeiro, pois acreditamos que a convivência
na Educação Infantil deve ser um exercício de democracia. Com o resultado da
votação a Borboleta Monarca foi a vencedora.

Figura 1- Escolha democrática


Fonte: Registro da professora

Fizemos origami de borboleta e aproveitamos para conversar sobre a cultura


japonesa, que é de onde vem a história do “Origami”. Gostamos muito das borboletas e
decoramos a porta de entrada da sala de referência com o inseto feito de dobradura.
Realizamos desenhos de observação da imagem da borboleta a partir das fotos
que conseguimos na pesquisa. Assistimos vídeos encontrados na internet e observamos
como elas voam e interagem com a natureza. Descobrimos a importância das
borboletas na pulverização do pólen, como elas nascem, onde moram e o porquê estão
em extinção. Aprendemos que isso se relaciona em muito com o desmatamento e o lixo.

sumário 1718
VII Seminário Vozes da Educação

Figura 2- Perguntas e respostas da pesquisa das crianças

Fonte: Registro da professora

Problematizamos com as crianças que quando o lixo é jogado em lugares


indevidos como rios, mares e florestas podem ser muito prejudiciais aos animais e
consequentemente à vida humana. Registramos toda a discussão através de um texto
coletivo.
Pensamos em diversas maneiras de como poderíamos fazer a nossa parte.
Começamos a recolher os lixos encontrados no pátio na escola e listamos os diversos
tipos de materiais encontrados. Daí surgiu a ideia de apresentarmos as obras do Vik
Muniz, um artista plástico, fotógrafo e pintor brasileiro, que é conhecido por usar
materiais inusitados em suas obras, como lixo, açúcar e chocolate.
Através das rodas de conversa, que era uma prática muito importante da nossa
rotina, em que crianças e adultos conversavam, dialogavam e narravam suas histórias e
faziam os combinados do dia, apresentamos as obras do artista. As crianças observaram,
e fizeram suas interpretações sobre as obras.
Após todo esse caminho percorrido, resolvemos construir o nosso livro de
Chapeuzinhos. Conversamos sobre o que é ser autor e ilustrador e que todo o grupo iria
ocupar essa posição para a construção do livro. Individualmente cada criança desenhou
a sua personagem e criou suas novas versões de chapeuzinhos, surgiram Chapeuzinho
Preto, Colorido, Listrado, Florido entre outras.

sumário 1719
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Figura 3- Cada criança criou uma nova versão de


“Chapeuzinho” para compor o livro

Fonte: Registro da professora

Compartilhamos na roda os desenhos, apreciamos, rimos e trocamos ideias sobre


as novas chapeuzinhos. As crianças explicaram sobre as cores que utilizaram para
compor o desenho. Em outro momento, elaboraram o seu próprio enredo da história e os
professores foram os escribas desse processo. Depois que o livro estava pronto,
apresentamos e lemos para o grupo as histórias criadas por eles. Todos ficaram felizes e
orgulhosos com o resultado do trabalho, que foi um processo demorado que nos exigiu
dedicação, envolvimento e compromentimento.

Figura 4- Cada criança criou uma nova versão de


“Chapeuzinho” para compor o livro

Fonte: Registro da professora

sumário 1720
VII Seminário Vozes da Educação

O registro de cada etapa foi fundamental para nortear o trabalho, pois


acreditamos que “cabe ao professor a mediação de cada etapa por meio da organização
de propostas, questionamento, pesquisa em diferentes fontes, observação reflexão,
flexibilidade e conhecimento dos conteúdos e habilidades que devem ser trabalhados”
(CORSINO, 2012, pag.109). Para que um projeto seja conduzido, ações como a
dedicação, o interesse, a cooperação e o envolvimento de crianças e professores se
apresentam como “fio-condutor” no desenvolvimento de todo o processo. Barbosa &
Horn afirmam que:

[...] é papel dos educadores auxiliá-las ampliando as possibilidades de


conhecerem mais sobre o tema desejado, encontrarem outros pontos de vista
sobre o assunto, construírem desvios e criarem um ambiente que estimule os
novos conhecimentos. (BARBOSA&HORN, 2008, pag. 81).

O professor assume a postura de instigador, no sentido de incentivar as crianças


a buscar além do que já sabem, com o objetivo de ampliar o conhecimento em
construção, sendo um espaço que tem como eixo principal as brincadeiras e interações.
Através dos estudos dos autores que ajudaram a embasar a escrita desse relato,
pude elaborar pontos importantes e fundamentais para que a Metodologia de Projetos
na Educação Infantil se concretize.
É fundamental que no PPP da escola esteja claro qual é a concepção de
infância defendida pela instituição e quais tipos de relações entre adultos e crianças
são construídas no cotidiano. O processo de construção de um projeto precisa
envolver todos os sujeitos da escola de forma colaborativa e coletiva.
Conforme apresentado por Moreira e Tadeu (2013), “o currículo está
implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e
interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares”
(MOREIRA;TADEU, 2013, pag.14), portanto, é necessário afirmar através do Projeto
Político Pedagógico a prática pedagógica, pensando a escola que se quer e as relações
estabelecidas nela. Corsino afirma que:

Uma proposta pedagógica é, portanto, um caminho a ser trilhado


coletivamente. Uma aposta que contém uma concepção de infância, de
homem, de educação, de conhecimento e de cultura fundamentada em
referenciais teóricos que se articulam com a prática” (CORSINO, 2012,
pag.108).

sumário 1721
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O trabalho com projetos é uma prática pautada no diálogo e nas interações entre
os sujeitos. O ouvir, o escutar e o observar são fundamentais nessa proposta para a
construção de um diálogo sensível e vivo entre os sujeitos que se permitem afetar pelo
outro. Barbosa & Horn (2008) destacam que, “o ponto de partida do trabalho com
projetos será sempre o diálogo” (pag.84).
Desta forma, deixo com esse trabalho, a minha contribuição para as reflexões
sobre a Pedagogia de projetos na Educação Infantil buscando refletir sobre a
importância do desenvolvimento de um trabalho que seja produzido numa perspectiva
dialógica na Educação Infantil, o que permite que as diferentes vozes sejam escutadas
de forma que o espaço e o tempo da Educação Infantil sejam também o espaço de uma
educação democrática.

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populares pela visão de docentes na escola pública. Projeto de Pesquisa
CAPES/OBEDUC 2010.

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estudo etnográfico. In: Kramer, S. (org) Infância: Fios e desafios da pesquisa.
Campinas, SP: Papirus, 1996.

sumário 1722
VII Seminário Vozes da Educação

ENSINO DE GEOGRAFIA NA UNIVERSIDADE PARA DEFICIENTES


VISUAIS: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Vanderlei Balbino Costa


UFG
vanderleibalbino@gmail.com

Barbara Priscila Gomes Policarpo


FFP

Notas Introdutórias
O mundo global, pós-moderno, ligado por redes, conectado por meio da
comunicação áudio visual imagética, vive atualmente grandes dilemas sociais, abrigar
em diferentes espaços culturais seres humanos oriundos de várias regiões nos mais
longínquos continentes.
Da arte rupestre, à computação gráfica; das cavernas a chegada a marte; da pedra
lascada ao voo em um avião supersônico, enfim, dos pergaminhos à era digital,
passamos pelas mais diversas fases de desenvolvimento tecnológico.
Crianças, adolescentes, jovens, adultos, pessoas da e na melhor idade estão hoje
vivendo em um mundo globalizado pelas comunicações em todos os níveis. Só para
exemplificar, com um aparelho de celular nas mãos, conseguimos nos comunicar com o
mundo, vendo imagens e ouvindo pessoas nas mais variadas partes do planeta.
Hoje, em plena era da globalização, em que as fronteiras se tornaram meras
linhas imaginárias, cujo poder das comunicações ultrapassam barreiras, nos
encontramos frente alguns dilemas sociais: como educar, neste emaranhado universo de
transformações, indígenas, negros, quilombolas, menores de rua, homossexuais,
estrangeiros, pessoas com deficiência dentre outros, se a nossa escola ainda está ladeada
de preconceitos, discriminação, estereótipos e estigmas sociais que reduz, diminui e
impossibilita de lutarmos pela nossa igualdade social, econômica, cultural e por assim
dizer política.
No contexto da escola, ladeada pelas mais variadas transformações, estamos na
atualidade frente algumas encruzilhadas: o que fazer para educar diferentes sujeitos
sociais que estão presentes na sala de aula? como incluir esses novos indivíduos que

sumário 1723
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

estão adentrando nas escolas se a nossa formação inicial não nos possibilitou base para
isso? Enfim, o que devemos fazer para abrigar nos espaços escolares, desde o ensino
fundamental a pós-graduação, estes novos grupos sociais que batem as nossas portas,
adentram as escolas, clamam por justiça social, direito a cidadania, enfim, respeito a
diversidade.
É óbvio que vivemos em um mundo conectado e interconectado pelas redes. É
obvio também que as pessoas em todos os continentes precisam acompanhar essa lógica
transformação que ocorre a cada minuto. E a escola brasileira em suas diversas
instâncias vem acompanhando essas transformações tecnológicas?

Problema de pesquisa
A presente reflexão teórica resulta das nossas inquietações pedagógicas em sala
de aula, em especial, nos cursos de formação de professores nas licenciaturas onde
atuamos formando os novos docentes que futuramente irão atuar na educação básica
ministrando aulas para diferentes sujeitos sociais com e sem deficiência. Partindo dessa
premissa, a questão de pesquisa que suleou essa reflexão foi: Por que, em pleno século
XXI, na era digital, avançada, em que as tecnologias ultrapassam continentes em
questão de segundos, indagamos como ensinar/mediar saberes e difundir conhecimentos
às pessoas com deficiência se a nossa formação inicial é precária, se nas universidades
ainda não estão valorizando os processos inclusivos, enfim, se a nossa prática
pedagógica é excludente nos processos de escolarização das pessoas com deficiência?

Objetivos
Se considerarmos que a educação pode emancipar cidadãos. Se levarmos em
conta que nossas escolas podem se tornar espaços de libertação. Finalmente, se
reassumirmos nosso papel de educador, mentor do conhecimento, formador da
consciência política nesse novo século que ora se inicia, pretendemos alcançar nesse
ensaio de reflexão os seguintes objetivos:
• Analisar as razões pedagógicas, pelas quais, a formação de professores de
geografia no ensino superior é muito abstrata;
• Conhecer os principais desafios pedagógicos enfrentados pelos professores
de geografia, para tornar o ensino mais inclusivo aos alunos com deficiência
visual nas universidades;

sumário 1724
VII Seminário Vozes da Educação

• Discutir a formação de professores de geografia, procurando identificar as


causas, pelas quais os estudantes com deficiência visual sentem dificuldades
para aprender os conteúdos dessa conceituada ciência.

Método
Nossa opção nesta reflexão teórica foi pela pesquisa qualitativa. Para tanto
apoiamo-nos em Lüdke e André (1986, p. 11), ao assinalar que: "a pesquisa qualitativa
tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu
principal instrumento".
Nossas reflexões se balizaram em mapeamentos bibliográficos referentes ao
ensino de geografia, principalmente, considerando que nossa intenção foi destacar nesta
ciência o quanto ela pode se tornar inclusiva aos estudantes com deficiência visual, uma
vez ensinada de maneira concreta. Neste sentido, a pesquisa bibliográfica é entendida
por Severino (2007, p. 123) como: "nas investigações bibliográficas o pesquisador parte
das pesquisas já existentes para fundamentar seu trabalho".
Procuramos dar ênfase nos documentos legais que embasam o ensino inclusivo.
Desse modo, lançamos mão de alguns documentos como a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN) nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996); na Resolução N°. 2, de 1
de julho de 2015 (BRASIL, 2015). Estes documentos nos fizeram perceber que é
necessário tornar em todos os níveis o ensino mais inclusivo, bem como o currículo
acessível a todas as pessoas, não importando se essas são ou não deficientes.
Se considerarmos que nossa reflexão utilizou-se também documentos para
fundamentar essa investigação, apoiamo-nos em Piana (2009, p. 122) ao assinalar que
"a pesquisa documental apresenta algumas vantagens por ser fonte rica e estável de
dados, não implica altos custos, não exige contato com os sujeitos da pesquisa e
possibilita uma leitura aprofundada das fontes".

Algumas Reflexões Teóricas


Nas últimas décadas do século XX e, mais precisamente nos primeiros anos do
século XXI, movimentos de caráter nacional e internacional borbulharam frente às
discussões sobre educação inclusiva. Só para exemplificar, tivemos em Jomtien,
Tailândia, a declaração Mundial de Educação Para Todos (UNESCO, 1990); A
declaração de Salamanca, Espanha (UNESCO, 1994); Ao se referir ao Brasil, tivemos
pela primeira vez na história da educação brasileira um capítulo especifico sobre

sumário 1725
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

educação especial na Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional LDBEN, (BRASIL


1996).
Não é nossa intensão conceituar aqui inclusão escolar, até porque, há dezenas
de conceitos que podem ser atribuídos a essa prática educativa. No entanto, pensamos
ser relevante acentuar que inclusões pressupõem o ingresso, sucesso e permanência dos
estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, altas
habilidades/superdotação no espaço escolar. Para tanto, alguns princípios precisam ser
observados. Frente a essa assertiva, Nascimento (2012, p. 154) assinala que: todos os
alunos sem exceção, deve frequentar salas de aula próximas às suas residências; todos
os professores devem assumir a responsabilidade pela aprendizagem, independente da
condição cultural, social, econômica, física ou sensorial de cada aluno; os currículos e
Os procedimentos de ensino devem ser reestruturados, visando assegurar o
acesso, a permanência e o sucesso de todos os alunos; deve haver oferta de rede d apoio
aos alunos e aos professores. No ensino superior, em especial, nos cursos de formação
esses princípios ainda não se efetivaram, uma vez que grande parte dos docentes alega
não estar preparados para incluir em sua sala de aula alunos com deficiência.
Ao longo da história da educação, vemos as mais diversas mudanças no cenário
brasileiro. Neste sentido, é profícuo assinalar que à educação praticada hoje no País não
atende determinados grupos sociais, ainda despossuídos desses direitos conquistados a
duras penas. O fenômeno ora em questão ocorre quando nas últimas décadas do século
XX e mais precisamente nos primeiros anos do atual século vemos perfilar discursos da
escola para todos. Isso pode ser vivenciado nos escritos de Chaves (2010), citado por
Feitosa e Silva, (2012, p. 87), ao assinalar que: "quando ocorre à universalização da
educação e o acesso à escola para todas as pessoas, inclusive para os deficientes que
outrora eram excluídos deste ambiente, estes passam a frequentá-lo da mesma forma
que os demais". A indagação que fazemos é: a escola atual, os professores no ensino
superior estão aptos para incluir nas aulas de geografia física, por exemplo, alunos com
deficiência visual total, diante de um ensino meramente visual?
Ao se referir a prática docente em sala de aula em relação às pessoas com
deficiência visual, os recursos didáticos, os procedimentos metodológicos, as estratégias
de ensino utilizadas e, por conseguinte, os processos avaliativos tornam-se excludente,
uma vez que esses são pensados, propostos e executados de forma homogenia, como se
nosso processo ensino aprendizagem ocorresse do mesmo jeito, da mesma forma,
enfim, ao mesmo tempo. (COSTA, 2016).

sumário 1726
VII Seminário Vozes da Educação

Não obstante, é relevante acentuar que em relação ao ensino de geografia para


os estudantes com deficiência visual, os recursos didáticos tem sua importância no
processo de inclusão em todos os níveis. A luz da literatura, Almeida e Sampaio (2009)
enfatizam que a geografia é uma ciência um tanto quanto abstrata e o conhecimento dos
conteúdos por meio do aluno com deficiência sensorial requer adoção de recursos
concretos em seu processo de apreensão do saber elaborado e do conhecimento
científico.
No ensino superior as aulas de geografia são muito abstratas. Talvez pela
formação inicial, continuada ou mesmo pela falta de habilitação na educação especial,
os docentes ministram suas aulas lançando mão de artigos, livros impressos, mapas,
escalas e globos ilustrados inacessíveis à percepção dos estudantes com deficiência
visual, seja ela, total ou parcial/baixa visão.
Nos cursos de formação docente, em especial, quando se refere ao ensino de
geografia, as aulas são em via de regra expositiva, utilizando apenas o livro didático,
explicando os conteúdos de forma verbal. De acordo com os escritos de Moreira (2004),
prática de ensino dessa natureza está ultrapassada, em relação aquilo que o aluno quer
aprender neste inicio de século.
O conhecimento geográfico é da maior relevância no processo de escolarização
das pessoas com deficiência. Notadamente, ao se referir ao ensino de geografia, esta
prática se faz necessária, uma vez que nas representações cartográficas, gráficos,
tabelas, mapas.
Em relevo, maquetes... Se configurarem como instrumentos pedagógicos
capazes de aproximar o conhecimento científico aos alunos, com e sem deficiência,
visto que, utilizando desses materiais, o professor irá tornar o saber sistematizado mais
agradável e acessível aos alunos.
Não é pela falta de legislação educacional que a inclusão nas escolas em todos
os níveis tem dificuldades para se efetivar. Não é pela ausência de alunos com
deficiência nos espaços escolares que esta prática é precária. Pensamos nessas reflexões
teóricas que nos diversos componentes curriculares falta formação inicial, (nas
licenciaturas) e na (formação continuada).
Não temos dúvidas em afirmar que a disciplina de geografia se configura em
um dos componentes curriculares mais críticos. Não temos dúvidas também em
acentuar que esta disciplina é uma das mais abstratas no processo de inclusão escolar do
aluno com deficiência visual, principalmente se o professor utilizar de mapas,

sumário 1727
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

cartografias, globos, escalas... Os alunos com deficiência visual seguramente irão ficar
alheio aos conteúdos expositivos que estão sendo ministrados em sala de aula. Partindo
dessa premissa, Venturini, (2009), assinala que os documentos cartográficos táteis, os
mapas em relevos, o globo adaptado, dentre outros auxiliam de forma eficaz os alunos
com deficiência visual. Isso se evidencia na medida em que ao tocar nesses recursos, o
conhecimento científico e o saber sistematizado se torna mais fácil, considerando que
nosso processo de ensino é, precisa ser e deve ser pensado de forma concreta.
A luz da literatura que enfatiza o processo de escolarização dos deficientes
auditivos, os recursos didáticos mencionados acima não precisam ser concretos,
ilustrados para os alunos surdos, por exemplo, até porque, esses sujeitos são
excensialmente visuais, não necessitando, portanto, tocar, sentir e perceber de maneira
concreta esses recursos utilizados em seu processo de inclusão. Nesse aspecto, é
profícuo esclarecer que o estudante com deficiência auditiva precisa é de linguagem
clara, fácil, comunicação não rebuscada e tradução e interpretação dos conteúdos das
ciências geográficas que estão sendo ministrados pelos professores em sala de aula do
ensino comum.

Percepção de Alguns Resultados


Ao longo dessas narrativas os resultados nos fizeram perceber que não é
possível incluir os alunos com deficiência na geografia se os professores não
flexibilizar/ adaptar/ adequar os conteúdos e recursos didáticos nas aulas. Tornar esses
recursos concretos são procedimentos imprescindíveis, pois requer um esforço
intelectual e criativos dos docentes que precisam entender que os estudantes com
deficiência aprende em ritmos e tempos diferentes aos demais alunos.
As reflexões brevemente narradas se configuram em um grande desafio, até
porque, escolas não estão adaptadas, professores não estão qualificados para a tarefa de
incluir com qualidade os estudantes com deficiência na escola comum. Partindo dessa
premissa, Mantoan (2007, p. 45), observa que "a inclusão é um desafio que, ao ser
devidamente enfrentado pela escola comum, provoca a melhoria da qualidade da
educação básica e superior". A autora nos alerta que esses desafios só podem ser
enfrentados se nos professores em especial no ensino superior, locus onde formamos os
novos docentes empenharmos para que nosso ensino torne cada vez mais inclusivo para
todos que estão presentes na escola.

sumário 1728
VII Seminário Vozes da Educação

Ao longo dessa análise foi possível constatar que a escola brasileira em todos os
níveis precisa passar por modificações intensas em sua estrutura física, quando se refere
ao direito e autonomia dos sujeitos com deficiência em ir e vir; na sua estrutura
pedagógica, eliminar a homogeneização de conteúdos e currículos inflexível que
dificultam e/ou impossibilita o processo inclusivo; finalmente, romper com a barreira
atitudinal, talvez seja essa uma das mais difíceis para ser eliminadas, uma vez que
depende do nosso comportamento e vontade de mudar.
Enquanto sujeito com deficiência sensorial, e, agora nos últimos dez anos
atuando no ensino superior, em especial, nas licenciaturas percebemos que há em
muitas disciplinas conteúdos abstratos, quase imperceptíveis aos olhos e aos ouvidos
das pessoas com deficiência visual e deficiência auditiva.
No contexto da educação especial em uma perspectiva inclusiva, não é mais
possível ensinar em uma sala de aula caracterizada como homogênea. Na escola atual
registramos neste novo século diferentes sujeitos com anseios e expectativas diversas no
interior da sala de aula. Frente ao exposto, cumpre-nos indagar: e a geografia enquanto
ciência como pode contribuir neste processo inclusivo? De acordo com Silva e Azevedo
(2016, p. 299) "o ensino de geografia se destaca, pois possibilita uma visão crítica e
verdadeira da realidade tal qual ela é, como um processo histórico permeado por
conflitos de interesses". Os autores querem nos alertar é que a geografia, uma vez
ministrada de forma crítica, recheada de recursos didáticos acessíveis seguramente pode
contribuir para o processo ensino aprendizagem de todas as pessoas, sejam elas, com e
sem deficiência.
O processo ensino aprendizagem para todas as pessoas pode se tornar mais
acessível quando ministrado de forma concreta. Crianças, adolescentes, jovens e adultos
também aprende melhor se a elas forem dada a oportunidade de sentir, tocar,
pegar...objetos. Ao se referir à geografia física apresentada na sala de aula por meio de
mapas, globos, escalas etc., essa pode se tornar concreta para aqueles cuja visão é
normal, ou pode se tornar abstrata se na sala de aula, se fizer presente alunos com
deficiência visual por exemplo.
Tornar o ensino mais inclusivo, possibilitar acesso à aprendizagem dos
conteúdos que estão sendo ministrado, facilitar a comunicação visual para todos os
alunos não se configura uma tarefa fácil, pois requer do professor preparação, adaptação
e adequação dos recursos que vão ser apresentados na sala de aula, em especial, se nesta
se fizer presente alunos com deficiência visual. Frente essa assertiva, Venturini, (2009)

sumário 1729
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

assinala que, no que se refere a geografia, destacamos a importância de se trabalhar os


recursos didáticos adaptados, que auxiliam de forma eficaz os alunos cegos, uma vez
que possam formar seus esquemas espaciais do ambiente, sendo possível identificar os
locais, características dos objetos e tamanho dos mesmos que estão ao seu redor. Isso
de acordo com o autor pode ser percebido por meio do tato pelos estudantes cegos em
todas as fases do desenvolvimento humano.
No decorrer dessa análise, conseguimos aferir que ainda vivemos em uma
sociedade que delimita padrões, impõe modelos, determina comportamentos, enfim,
quer decidir pela construção de nossa identidade, como se vivêssemos em uma casta
homogênea. Essa postura homogeneizante pode ser observada nos escritos de Ropoli
(2010, p. 7), ao assinalar que "na perspectiva da inclusão escolar, as identidades são
transitórias, instáveis, inacabadas e, portanto, os alunos não são categorizáveis, não
podem ser reunidos e fixados em categorias, grupos, conjuntos, que se definem por
certas características arbitrariamente escolhida". Se pensarmos nesta reflexão,
seguramente teremos a certeza que não é possível conceber, neste mundo atual
globalizado, que há uma sociedade homogênea, planejamento uniforme e ensino igual
para todos, até porque, ninguém aprende do mesmo jeito, da mesma forma, enfim, ao
mesmo tempo, afinal, temos ritmos de aprendizagem diferenciados.
Ao se referir ao ensino de geografia em uma perspectiva inclusiva, é notório
acentuar que esta ciência, se por um lado, pode ser vista como uma das mais críticas e
emancipadora; por outro, pode se tornar excludente em relação ao processo de
apreensão dos conhecimentos pelos alunos com deficiência visual. Neste sentido,
defendemos com muita veemência que quando nos referimos às pessoas com
deficiência no espaço escolar, é fundamental que os professores se preocupem com as
adaptações curriculares, com adoção de recursos didáticos pedagógicos apropriados e
com avaliações que não objetivam comparar os estudantes com deficiência, mas sim,
avaliá-los de acordo com seu desenvolvimento e desempenho intelectual.
Essa análise nos fez perceber que a geografia é uma ciência plural e, portanto,
deve ser, pode ser e precisa ser inclusiva. Frente a essa assertiva, Ramos (2009),
assinala que por meio de aulas ao ar livre, jogos didáticos, brincadeiras, representações
cartográficas, através de maquetes, saídas de campo, por exemplo, [...], contribui para
que os alunos com deficiência visual possam participar livremente das aulas, uma vez
que estão incluídos aos demais alunos nos mesmos espaços.

sumário 1730
VII Seminário Vozes da Educação

As percepções que tivemos ao longo desta narrativa são as de que aprender os


conceitos geográficos é muito importante, uma vez que os mesmos nos possibilita fazer
uma leitura do mundo que está a nossa volta. No entanto, ao se referir a inclusão escolar
dos estudantes com deficiência visual, adequar o currículo, construir recursos didáticos,
estratégias de ensino diferenciadas, dentre outros, significa dizer que estamos
construindo no espaço escolar uma geografia inclusiva para todos os alunos,
independente se esses são ou estão em situação de deficiência, pois o conhecimento
científico e o saber elaborado se configuram em direitos sociais para todas as pessoas.

Notas Conclusivas
Nessas reflexões que não tem a pretensão de ser finais, até por que, não
acreditamos no pronto e acabado, defendemos que nos processos inclusivos deve haver
respeito às diferenças entre os diversos ritmos de aprendizagem dos alunos, pois
sabemos que ninguém aprende no mesmo ritmo, do mesmo jeito enfim, da mesma
forma. Nesse sentido torna-se primordial o respeito a diversidade.
Nossas reflexões nos fizeram perceber que quando se trata dos processos
inclusivos nas escolas em todos os níveis, esses ainda são deficitários, pois falta aos
professores formação inicial e continuada especifica para que o ensino possa se tornar
mais inclusivo.
Consideramos ao longo dessas reflexões que as nossas escolas não estão
adaptadas para receber o diferente/deficiente. Identificamos que as escolas estão
escassas de recursos didáticos pedagógicos para incluir com qualidade os alunos com
necessidades educativas especiais, em especial, aqueles com deficiência visual que
necessita de materiais concretos, uma vez que nas ciências geográficas há muitos
conteúdos abstratos que requer do professor na escola comum, algumas adaptações.
Na nossa trajetória enquanto aluno com deficiência visual encontramos muitas
dificuldades para se manter na escola comum, visto que os conteúdos eram sempre
ministrados essencialmente visuais. Hoje, em plena era da globalização, do mundo
moderno, ligado por redes, essas barreiras podem ser superadas, na medida em que os
professores busquem recursos adaptados e materiais concretos que possam facilitar o
processo de inclusão de todos os alunos, neste caso em especial, os alunos com
deficiência visual.
Nas escolas em todos os níveis, pensamos ser necessária a remoção de muitas
barreiras que dificulta o processo ensino aprendizagem. Pensamos que uma das

sumário 1731
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

barreiras Que muito dificulta a apreensão do saber pelos alunos com deficiência é a
sistêmica, presente na falta de adaptação do currículo, na adequação dos conteúdos e na
flexibilização das avaliações.
Finalmente, enquanto educador com deficiência sensorial, percebemos que entre
as barreiras que mais dificulta nosso acesso ao saber sistematizado é a barreira
atitudinal, uma vez que essa depende de nós, do nosso comportamento, da nossa
mudança de atitude frente à inclusão escolar dos diferentes/deficientes.
Essas reflexões ao longo deste ensaio teórico nos fizeram perceber que em todas
as ciências, em especial na geografia, quando nos referimos à inclusão do deficiente
visual, a meta é romper com os pressupostos do conservadorismo que ainda se faz
presente nas escolas em todos os níveis. Essas ações conservadoras também estão
presentes nas universidades, nos cursos de formação, inicial e continuada, na postura
arcaica de muitos professores que não acreditam na inclusão dos diferentes no espaço
escolar.

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sumário 1732
VII Seminário Vozes da Educação

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sumário 1733
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A MEMÓRIA DA DOR DA COLONIALIDADE


À DECOLONIALIDADE DO SER

Eliane Almeida de Souza e Cruz


SEERJ/UFRRJ/GPMC
hexlili@hotmail.com

Se alguém falar “aquele escurinho” ou coisa do tipo,


vão ouvir um enorme discurso, e que a conscientização
seja feita massivamente, para que não se naturalize o
racismo (Entrevistado/alunx 2).

O propósito desse texto foi o de refletir sobre a construção da negação do corpo


negro, em sua dimensão ontológica, histórica, social e cultural; e que possa contribuir
para que alunxs, professorxs e a Comunidade Escolar desconstruam a ideia de que
existe um grupo social e cultural que é superior e outro inferior, respectivamente, por
conta de seus aspectos étnico-raciais, principalmente, em relação aos africanos ou aos
nativos de áreas dominadas após o século XV. Acrescentando a essas informações a
compreensão do quanto à negação e invisibilização que tanto contribui para uma dor
psicossocial262. Dor é um fenômeno sensitivo de lesão dos tecidos, funciona como um
mecanismo de defesa a esse tecido lesado, já dor psicossocial provocada no corpo negro
que sofre racismo, está além de uma sensação ou da defesa do tecido corpóreo; ela é um
mecanismo de uma inculcação de que é “sub-gente”, da busca do Ideal de Ego263 para
ser aceito como cidadão “eu sinto o problema racial como uma ferida. É uma coisa que
penso e sinto todo tempo. É um negócio que não cicatriza nunca” (Souza,1983). O
racismo provoca uma divisão da sociedade onde, de um lado existem os dominantes,
letradas e de outro lado, as classes subordinadas, ou seja, a primeira coisa que o negro/
negra aprende e apreende, “é ficar no seu lugar, não ultrapassar os limites” (Fanon,

262
Segundo a Sociedade Brasileira de Estudo da Dor, a dor significa: experiência sensitiva e emocional
desagradável associada ou relacionada a lesão real ou potencial dos tecidos. Disponível em:
http://www.sbed.org.br/materias.php?cd_secao=76. Acesso em: 21 de jun. 2016.
263
O Ideal de Ego representa uma identificação positiva em relação ao outro.
http://www.portaleducacao.com.br/psicologia/artigos/40593/o-ideal-de-ego. Nesse estudo, o ideal de ego
representa uma identificação positiva do “[para] o negro, há apenas um destino. E ele é branco” Fanon
(2008, p.28)

sumário 1734
VII Seminário Vozes da Educação

1968), por certo, se determina a cada grupo, o seu papel social, o seu “lugar” 264 na
estrutura socioeconômica e política.
A legitimidade mitológica e científica do racismo, nas áreas onde houve a
escravidão negra, provocou/a naquelas/es que possuem mais melanina na sua
epiderme, o seu lugar na sociedade, “a escravidão produziu efeitos sobre o território
negro, que afetou sua própria possibilidade de se constituir como indivíduo social”
(Nogueira,1998), passou a corroborar ações de violência ao corpo negro, tanto no
âmbito escolar quanto o seu desdobramento no cotidiano. Essa escrita, também está em
consonância com a “escrevivência”265 de Souza (1983) e dos relatos por parte do corpo
discente pesquisado, a autora nos faz compreender como a negação do território negro,
na sua dimensão ontológica onde “Saber-se negra é viver a experiência de ter sido
massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida às
exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas (...) de comprometer-se a resgatar
sua história e recriar-se em suas potencialidades”. Houve um massacre do território
negro ontológico, a partir de um racismo mitológico e científico, e, tem um custo
emocional da negação de sua identidade histórico-existencial do território negro.
Assim, através de questionário aplicado a um grupo de ex-alunas/os do Colégio
Estadual Nilo Peçanha (SG/RJ), usamos esse instrumento com a finalidade de conhecer
um pouco das/dos entrevistadas/os, e, também, obter respostas a
questões Goode e Hatt (1977) que pudessem nos auxiliar no desenvolvimento deste
trabalho com o objetivo de perceber como foi imputado a elas/es uma afirmativa que
negasse a sua condição de ser do corpo negro, do racismo e das situações do racismo,
no cotidiano dessxs alunxs e como se comportaram diante dessas situações. Além de
apresentar algumas práticas pedagógicas que contribuíram para fomentar uma outra
lógica, a Decolonial, Quijano (2010), Castro-Gómez (2005), Maldonado-Torres
(2010), Dussel (2005), Mignolo (1996), Walsh (2006; 2009), Santos (2010), são ações

264
O conceito de lugar pela Geografia Tradicional estava associado à uma abordagem descritiva de uma
região e da paisagem geográfica. A partir dos anos 70, a Geografia Humanística e Geografia Crítica tem à
ideia de que o lugar é uma inter-relação entre o ser humano e seu ambiente. Para Santos (1988), o
geógrafo está condenado a errar em suas análises, se somente considera o lugar, como se ele tudo
explicasse por si mesmo, e não a história das relações, dos objetos sobre os quais se dão as ações
humanas, já que objetos e relações mantêm ligações dialéticas, onde o objeto acolhe as relações sociais, e
estas impactam os objetos. Assim, compreendemos que um corpo/território ocupa um lugar
dialeticamente imbricado nas relações sociais, econômicas, políticas e seu ambiente.
265
Conceito desenvolvido pela escritora e professora Conceição Evaristo, que consiste na escrita a partir
das experiências que o autor obtém ao longo de sua vida.

sumário 1735
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

do desmonte de uma hegemonia de um racismo epistêmico266. Essas ações que fizemos,


auxiliam a compreensão dos caminhos da criação do racismo (Mitológico e Científico)
para a inferiorização do negro, tanto na sociedade brasileira quanto no pensamento
mundial. O pensamento Decolonial possibilita visibilizar as contribuições positivas
das/os negras/os na formação da nação brasileira Souza (2015).
Enviamos o questionário que poderia nos dar subsídios para refletir sobre a
violência simbólica de que seus corpos negros sofreram e como superaram tais
situações. Somente cinco nos devolveram o questionário respondido, sendo duas
mulheres e três homens. Esse material nos auxiliou no desenvolvimento e análise desse
texto, como um instrumento de/para uma luta antirracista que interpele uma história de
negação ao corpo negro e um desmonte desse racismo epistêmico e ontológico.
Primeiro através da observação do material pedagógico disponível em sala de aula
(livros didáticos) e em segundo ampliamos para o cotidiano. A conclusão que chegamos
foi a de que na maioria dos livros, principalmente, de História e Geografia demostram
que a presença do corpo negro nesses materiais está sempre ligada às atrocidades da
escravidão, chicoteamento, corpos nus, sendo objeto de escambo, ao trabalho pesado e
degradante, de ludicidade, ou seja, de tudo que tenha referência a um território de uso; e
depois de uma profunda discussão enfocando quais são os espaços sociais que estão
presentes o corpo negro, na contemporaneidade; espaços de que esse corpo está atrelado
à fome, favelização, banditismo, erotização, trabalhos pesados, etc. Como desconstruir
tais assertivas? Como quebrar paradigmas de um saber focado numa única informação
epistêmica? Como fazer com que um corpo que sempre foi negado como ser ontológico,
se perceba como ente positivo na História da humanidade? São enfrentamentos diários
dessa barreira, ou da fronteira entre gente e sub-gente (Souza, 2015) construída e
fortemente, ainda essas ideias permeiam na sociedade brasileira. Os
relatos dxs discentes nos possibilitam aferir se houve mudanças/contrarreação ou
manutenção desse constructo no grupo pesquisado.
Franz Fanon (1968, p. 26-30) desenvolve também o seu pensamento de que a
violência é um processo da subordinação, do extermínio ou silenciamento cultural do
outro. Para ele, quando o corpo negro passou a ter o primeiro contato com o corpo

266
Operação teórica que, por meio da tradição de pensamento e pensadores ocidentais, privilegiou a
afirmação de estes serem os únicos legítimos para a produção de conhecimento e como os únicos com
capacidade de acesso à universidade e à verdade. O racismo epistêmico considera os conhecimentos não
ocidentais como inferiores Oliveira (2012, p.79).

sumário 1736
VII Seminário Vozes da Educação

branco, durante o processo de fortalecimento das bases econômicas capitalistas do


século XV em diante; aquele corpo é submetido a uma violência de ser colonizado e
caracterizado como não humano, e buscar uma outra lógica de ser, se espelhando no
colonizador. E assim, se desdobra numa relação de poder, que através da violência,
o ethos e corpo branco passa a exercer um fetichismo ao corpo negro, ou seja, “para o
negro, há apenas um destino”. E ele é branco (idem, 2008, p. 28). Comungo do
conceito fanoniano, pois o tipo de violência que ele descreve produz uma relação
complexa entre ações materiais/físicas, quanto às psicológicas/ontológicas, e que se
desdobra numa relação de subordinação e de inculcamento do ethos do dominador,
provocando uma baixa autoestima desse corpo negro e de qualquer elemento cultural
que se refira aqueles africanos escravizados 267 que vieram compulsoriamente como
mão-de-obra e que exerceram uma grande contribuição cultural nacional.
Algumas pesquisas revelam que a violência ao corpo negro se constitui em
marcas indeléveis profundas, tanto no espaço escolar Cavalleiro (2000); Trindade
(1994); Rosemberg (1991), quanto na vida psicossocial cotidiana Sousa (1983) e
Ferreira (2004). Para Cavalleiro, a escola ao silenciar o racismo, ela produz e reproduz,
inferioridade, desrespeito e desprezo de uns, e, consequentemente, a superioridade e a
valorização de outros. Já para Trindade, a escola é um espaço legitimador das
desigualdades raciais, burocráticas, hierárquica/ autoritária machista, elitista,
racista. Rosemberg (1991) constata em sua pesquisa Raça e Educação Inicial que as
oportunidades educacionais oferecidas pelo sistema público às crianças negras são de
pior qualidade. Portanto, passa a ser indispensável e urgente uma educação antirracista
que possa desconstruir esses fundamentos negativos ao ser negro, e que faça ressurgir
um novo ser (Fanon,1968) e que busque compreender como se deu a construção
ideológica da violência racial desenvolvida em nossa sociedade. Souza (1983)
nos possibilitou um diálogo que viabilizasse um discurso do negro sobre o negro, no
que tange à sua emocionalidade, a experiência de ser negro numa sociedade branca ou
com um racismo dissimulado como o nosso, deixa marcas imperceptíveis na
memória; relata as dificuldades emocionais de negros que rechaçam a própria imagem
introduzindo em si um fetiche do branco, da brancura que assegura uma ideologia racial

267
O vocábulo 'escravo' termo que traz implícita uma conotação de condição imutável e subtrai a
identidade de origem da pessoa referida. Uma outra expressão, 'africano escravizado' restitui a identidade
étnica e humana, transmitindo a noção da liberdade cassada pelo progresso escravista. Nascimento
(2008:228)

sumário 1737
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de que o branco “como ser rico, como ser bonito, como ser inteligente” (Fanon, 2008,
p.60), ele é o símbolo da perfeição e da racionalidade universal. Souza (1983) faz uma
análise, através de entrevistas, de um discurso da negação e do massacre da identidade,
dos fatores psicológicos e emotivos do corpo negro, que fala sobre si mesmo; de como é
viver no mundo da alienação de seu corpo, de sua identidade de seu ser. Sobretudo, da
baixa autoestima dxs negrxs, como analisa Jurandir Freire no prefácio do livro Tornar-
se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social de
Neusa Santos Souza, que a violência racista pode submeter o sujeito negro a uma
situação cuja desumanidade nos desarma e deixam perplexos, mesmo assim a autora
defende a necessidade de prosseguir lutando na construção de uma identidade positiva
do negro brasileiro.
Existe uma interrelação com o outro na construção de uma identidade permeada
por crenças, padrões, ações e normas que determinam uma sociedade específica. Nós
construímos a nossa identidade com o outro, possibilitando transposições positivas ou
negativas para essa construção identitária. O processo de negação dos valores e das
referências do território negro provocou nefastamente a desvalorização que esse corpo
negro dá a si próprio, ou seja, nega-se a si mesmo, e busca no outro, e aqui na
identidade branca, o Ideal do Ego268. Fanon (2008) e Souza (1983) discorrem em seus
textos a grande problemática da construção da identidade e da existência do negro, que
é o seu embranquecimento “ a civilização branca e a cultura europeia, impuseram ao
negro um desvio existencial” Fanon (2008).
No livro Tornar-se Negro, o conceito Ideal do Ego, discutido pela autora para
caracterizar o desvio existência que (Fanon, 2008, p.30) denuncia se constitui como
elemento de signos (valores estético, moral e comportamental/ontológico) marcados no
imaginário como algo idealizado de uma representatividade, e aqui, portanto é uma
representatividade que “o negro de quem estamos falando é aquele cujo Ideal do Ego é
branco” (Souza, 1983, p. 34).
Me permitam falar agora em primeira pessoa, pois se trata de
uma escrevivência docente de longos anos de trabalho em sala de aula na Educação
Básica (1987 - até hoje), sempre procurei encarar a Educação como um vetor político,

268
Para Souza (1983, p. 32-33) não podemos confundir Ideal do Ego com o Ego Ideal. O Ego Ideal é uma
instância regida pelo signo da onipotência e marcada pelo registro do imaginário e caracteriza-se pela
idealização das representações fantasmáticas. Já o Ideal do Ego é o domínio do simbólico, ou seja, é uma
instância que estrutura o psíquico, é o lugar do discurso. O Ideal do Ego para o negro, é o branco, assim,
passa a negar de qualquer referência ontológica negra.

sumário 1738
VII Seminário Vozes da Educação

para quebrar o círculo da hegemonia epistêmica de matriz cultural europeia no


Currículo Escolar, que é uma construção social (Goodson, 1998), um campo de
contestação (Silva, 2003), vinculado entre a reprodução cultural (relação estrutural entre
economia, educação e cultura) e a reprodução social (sociedade capitalista e dominação
de classe) (Idem). Existe uma conexão entre a organização econômica e o currículo. Ao
invés do quê e como ensinar, a pergunta é, por quê e para quê ensinar tais
conhecimentos em detrimento a outros? Para que servem e de quem são tais
conhecimentos a serem transmitidos/aprendidos? Tanto a Escola quanto o Currículo
continuam a reproduzirem as mazelas (preconceitos, discriminações e racismo), a
hierarquização de saberes e as contradições da sociedade. Reestruturar o currículo
escolar é permitir a valorização de uma identidade coletiva das heranças culturais de
origem africana e visibilizando seus feitos históricos, consequentemente, irá valorizar
uma identidade individual, a autoestima e o reconhecimento social de uma grande
parcela de nosso corpo discente. Essas são propostas de uma educação decolonial,
antirracista e de Pensamento-Outro, tão necessária neste momento.
As ações pedagógicas Decoloniais desenvolvidas têm o objetivo de buscar
Pensamento-Outro, de provocar no corpo negro um sentimento de autoestima; alguém é
capaz de nutrir por si mesmo e por outros, o reconhecimento e a valorização das
qualidades e de seus atributos físicos, mentais e intelectuais. Portanto, é uma atitude de
respeito ao Outro. Numa sociedade que passou a descaracterizar o outro (primeiro o
nativo e depois o africano escravizado) como ser humano. Como exercer a autoestima
em nível positivo? Se as referências que temos em nossos bancos escolares sobre o
corpo negro, é de um corpo que “só sofreu e não fez nada”, como ainda ouvimos nos
corredores dos espaços de conhecimento; ou o silenciamento dos saberes dessa
população.
A violência da baixa autoestima não só se destaca em ações materiais, ela
também se destaca por atos não visíveis, a violência ao corpo negro tem sua dimensão
na sua negação da condição de ser humano. Segundo Souza (1983), em sua pesquisa, a
população negra teve e recebe ainda, um custo muito alto pelo racismo no campo
emocional pela sujeição, negação e massacre de sua identidade histórico-existencial. A
violência impera com o seu poder, a sua força e a sua autoridade num patamar absoluto
e em várias escalas, pois o outro passa a ser objeto dessa violência. Assim, a violência é
cindida em duas escalas: exterior, onde a marcas da violência poderá ser “apreciada” e
uma outra, a interior, que se estabelece com marcas profundas no ser, o psicológico e o

sumário 1739
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

emocional, que se manifestam em melancolia, autodesvalorização, timidez, submissão,


“é um negócio que não cicatriza nunca” (Idem 1983, p. 42).
O fato de sermos uma sociedade desenvolvida a partir do binômio
Modernidade/Colonialidade, portanto, a Colonialidade tem suas bases em quatro eixos,
que foram determinantes para uma negação e uma subordinação daqueles que foram
colonizados pelos europeus: 1- Colonialidade do Poder, que estabelece num sistema de
classificação racial e sexual, numa formação e distribuição de identidades sociais de
grupos superiores e inferiores, ou seja, delimita uma hierarquização da
formação identitária entre homem/mulher e entre brancos/negros/indígenas/mestiços.
Ocasionando um conflito que permanece imbricado nas estruturas contemporâneas em
várias sociedades. Por certo, a manutenção desta hierarquia se configura pela
homogeneidade dos centros de poder, de um poder branco/homem/europeu e na
negação de outras formas de identidade mulher/negro/indígenas; 2- Colonialidade do
Saber determinando uma posição de que existe uma única perspectiva de conhecimento:
Eurocêntrica, e descarta qualquer existência ou visibilidade de outras racionalidades
epistêmicas. Esta colonialidade se evidencia, principalmente, no sistema educativo,
desde a escola básica (Educação Infantil, Fundamental e Média) até nas universidades,
locais que sempre estão evidenciando os saberes e a ciência europeia como padrão
científico-acadêmico e intelectual, e, num grande silenciamento de outros diferentes
saberes e realidades de outros espaços geoepistêmicos; 3- Colonialidade do Ser que
estabelece todo um constructo discriminatório e preconceituoso para descaracterizar
outros povos, principalmente negros e indígenas, como bárbaros, não civilizados, não
gente, os sem almas, ou seja, o não ser; são grupos impermeáveis de ética, ausência de
valores e também negação de valores (Fanon, 1968), imputando a eles um trato de
inferioridade, subalternização e desumanização, de uma racionalidade moderna que
assim os definiu. Este é um desenho criado para considerar esses grupos como não
humanos. Ocasionando a “Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual
nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade
cultural – toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura
metropolitana” (Idem, p.34) e 4- Colonialidade da Mãe Natureza e da Vida, a
Modernidade/Colonialidade encontra a sua base na dissociação de princípios mútuos
entre a Natureza e a Sociedade, além de uma colonialidade cosmológica. Descartando,
totalmente, a relação do Ser Humano/Natureza e vice-versa. O caráter milenar de
cultuar a Natureza (biofísico), os humanos e o espiritual, incluindo a ancestralidade, foi

sumário 1740
VII Seminário Vozes da Educação

esquecida; a quebra destes princípios, o mágico-espiritual e social, que sempre ocorreu


em várias sociedades, para a integração da vida entre os seres vivos e o meio
ambiente.
Esses quatro eixos da Colonialidade se espalharam pelos locais de domínio
colonial europeu, e, suplantaram suas bases epistêmicas hegemônicas, na América
Latina, na África e na Ásia, avançou com esse poder simbólico Bourdieu (1989), mas,
também, com intenso e voraz poder físico e material; e aqui nesse trabalho, a
Colonialidade do Ser desenvolveu uma inculcação da negação do corpo negro enquanto
produtor de saberes, e fazendo com que aquelxs que tem mais melanina, busquem
o embranquecimento. O Colonialismo do século XV promoveu a concreticidade da
violência, ao eliminar várias comunidades nativas, desde o Norte, à parte Central e Sul,
do continente americano. Portanto, ainda persiste nas sociedades colonizadas “a
sedução pela cultura colonialista, o fetichismo cultural que o europeu cria em torno de
sua cultura, estimulando uma forte aspiração à cultura europeia por parte dos sujeitos
subalternizados” (Oliveira; Candau, 2011, p.83).
Além, do Pensamento-Outro, buscamos na Pedagogia Crítica (Candau,2009)
reafirma uma Educação Intercultural11, que sempre foram as bases de nossas práticas
pedagógicas no fomento da construção de identidade do corpo discente e seu
protagonismo nas discussões da valorização da identidade afro-brasileira, que foi
negada, e, assim, propomos refletir e até mesmo superar a construção de uma visão
didático-psicológica de negação e da invisibilidade do outro e/ou a exaltação de outro
grupo, além de buscar encontrar um diálogo com outros saberes constituintes de uma
sociedade. A educação intercultural questiona a própria noção de identidade como
sendo algo unificado, fechado e estável; pois, tal como a identidade, a educação
intercultural está em constante mudança e tensão entre o ideal e o real do cotidiano
escolar e na construção da identidade
Ao enviarmos o questionário para vários ex-alunxs, tivemos uma boa
receptividade do corpo de ex-discente. Assim, dos quinze enviados, foram trabalhados
cinco questionários, esse foi o quantitativo dos que nos reenviaram para a análise dessa
comunicação, que são a de investigar sobre as representações de negros e brancos no
imaginário social, refletir sobre possíveis relações entre as práticas racistas à
brasileira, silenciamento do racismo e seu desdobramento em “problemas
psicossociais”, ocorridos entre as experiências e vivências desse corpo negro discente,
e, principalmente, as violências sofridas na sociedade e no espaço escolar; além de

sumário 1741
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

salientar positivamente, a valorização do corpo negro como um território de saber,


abarrotado de vários universos históricos, culturais e complexos.
Então solicitamos aos alunxs que citassem palavras que remetessem à
representação ideológica de negrxs e de brancxs, e que ainda, estão sedimentadas nas
sociedades racistas como a brasileira.

Negrx Brancx
Desfavorecido Padrão
Escravidão Privilégio
Pobreza Riqueza
Desrespeito Superior
Polícia Força

O quadro nos permite averiguar que as palavras citadas possuem conceitos de


uma dicotomia de valores positivos e negativos imputados a cada grupo, ou seja, as
palavras de positividade estão relacionadas ao corpo branco e as negativas ao corpo
negro. Conceitos que nos foram repassados naturalmente em nossa sociedade. Mesmo
depois do fim da escravatura, os padrões tradicionais das representações do negrx e
do brancx, ainda se caracterizam pela propagação de ideias calcadas numa inferioridade
estética do corpo, de saberes, e da negação do ser negro, e das representações positivas
ao branco. Visão sedimentada ainda para esse corpo discente, e, desconstruir esse
pensamento hierárquico, se faz necessário ao mexermos, massivamente, com essas
representações.
Asseguradamente são ideias que foram gestadas pelo crivo do racismo, o
constructo das representações ideológicas raciais que legitimaram dois aspectos ligados
a essa marca indelével, que é o racismo mitológico e o racismo científico (Munanga,
2010). É a negação dos negros como seres humanos e sua desumanização, expressa nas
palavras acima, é a essência do racismo. Decerto a nossa função, enquanto, professora/o
com uma pedagogia engajada, que demonstra práticas na criação de uma nova
linguagem, onde a política se torna um pré-requisito para reafirmar a relação entre
atividade, poder e luta (hooks, 2013) e que vislumbrem um Pensamento-Outro (Walsh,
2006), também, entender que o racismo é um meio de expressar a Colonialidade do
Poder, que estabelece uma hierarquização identitária de raça: de um lado o branco
considerado superior, e de outro lado o negro considerado inferior.

sumário 1742
VII Seminário Vozes da Educação

A escola é o local de discussões que devam permear a construção de ideias mais


sedimentadas numa alteridade, ela ao mostrar uma identidade negra associada, somente,
a um passado de negação, de escravização, na condição de africanx escravizadx e o
estigma de objeto de uso, e a invisibilidade das tradições africanas e de seu
território/corpo, a escola reforça uma identidade negada. A identidade individual ao ser
construída (desde pequeno) tem referência no contexto coletivo e as manifestações
concretas e simbólicas dessa sociedade. Se há relações sociais racistas, esse coletivo irá
reproduzir nessa identidade específica, e, portanto, acaba absorvendo todos esses
valores que a ela foram imputados.
Por isso é importante a compreensão e a reflexão da construção da identidade
negra em nossa sociedade. Ressaltar uma identidade positiva é fundamental para
constituir uma nova categoria de ser humano com autoestima, ou seja, um homem
novo (Fanon, 1968).
Após as ações pedagógicas realizadas, pedimos que escrevessem palavras que
fomentassem a positividade do corpo negro e do branco, temos assim:

Negrox Brancx
Resistência Domínio
Beleza Preconceito
Força Exploração
Cultura Racismo
Conscientização Indiferente

Houve uma mudança substancial nas representações que determinam o corpo


negro, palavras que ressignificam em sua estética e episteme, e, cria, assim outra
perspectiva de encará-lo como território de um sujeito histórico e social, além de
positividade de sua representação. Já a classificação do corpo branco apresenta o
inverso, pois o racismo, nos locais onde ocorreram processo de escravização ou
daqueles países europeus que escravizaram, essas palavras reforçam a relação intrínseca
da reprodução do racismo. No mesmo caminho, para uma interpretação da
representatividade negativa do outro e a positiva de nós, solicitarmos a definição do ser
negro e o ser branco, xs alunxs demarcaram as seguintes representações, o primeiro:
“por ter mais melanina, não é aceito em nossa sociedade, não tem o padrão

sumário 1743
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

estabelecido por ela.” (entrevistadx 2); “menos nível de escolaridade” (entrevistadx 1);
“maiores vítimas de homicídios” (entrevistadx 3) e “no passado e no presente
explorado e oprimido” (entrevistadx 5). Contudo, em relação ao ser branco,
expressaram as seguintes definições: “tem o padrão de beleza, e de tudo o que é
confiável, limpo, iluminado e capaz” (entrevistadx 4); “tem privilégios sociais e
econômicos” (entrevistaxs 2 e 3) e “no passado e no presente tem a hegemonia
econômica e social” (entrevistadx 5).
Alicerçados nas frases acima, verificamos, mais uma vez que, essas
representações ideológicas raciais, demarcam as qualidades negativas para o ser negro e
positivas para o ser branco, e a compreensão da espoliação a que foi submetido o corpo
negro, além dos limites sócio-econômicos entre negros e brancos, numa sociedade
calcada no racismo, nada mais comprovável que a fissura entre esses diferentes grupos
raciais pelas estatísticas. A escola é um lugar de reforçar ou desmontar preconceitos,
discriminações e racismo, quando não são trabalhados os seus conteúdos e temas que
relevem a diversidade cultural e a alteridade, como ela, também, é responsável pela
construção identitária, pode reforçar representações positivas ou negativas.
Assim, solicitamos axs alunxs que relatassem exemplos de racismo dentro do
ambiente escolar. O entrevistadx 3, contou-nos que “quando eu cursava o nono ano, fui
chamado de ‘preto, macaco’por um colega da classe. Outro entrevistado (5) relata que
“houve um furto de um celular na sala de aula. O único a ser questionado e ser suspeito
foi o colega negro.” Entrevistadx 2, “eu tenho a boca muito grande, sempre riam
de mim.” (entrevistadx 3). Como esse corpo discente reagiu ao racismo? “não fiz nada.”
(entrevistado 2); já o entrevistadx 3, “Me senti muito triste, e tenho a frase até hoje em
minha cabeça”. Essas frases corroboram em aceitar e calar-se, ou explicitam
uma escrevivência da memória da dor, e, assim podemos perceber que o racismo deixa
marcas invisíveis no território negro.
Como avaliar tais situações e seus desdobramentos psíquicos? Não temos como
aferir, o que buscamos, mas através das vivências de exclusão, de olhares, de emoções,
frases e palavras nos mostrem os efeitos psicossociais que o racismo provoca no
indivíduo uma memória da dor. Partimos da hipótese de que esse corpo discente
pesquisado traz consigo marcas e uma memória da dor que o racismo provoca.
As práticas pedagógicas que realizamos no espaço escolar (Leitura do
livro Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus (2014; 2015); documentários,
dentre eles: Racismo Científico, Eugenia e Darwimnismo Social (2009; 2010; 2011;

sumário 1744
VII Seminário Vozes da Educação

2012; 2013; 2014; 2015); Palestra com Éle Semog (2015); História dos Reinos
Africanos (2009; 2010; 2011; 2012; 2013; 2014; 2015); reflexões sobre o papel da
Mulher Negra ontem e hoje (2014; 2015); comparação entre os deuses iorubá, gregos e
romanos (2009; 2010; 2011; 2012; 2013; 2014; 2015); História da Frente Negra
Brasileira e do Teatro Experimental do Negro (2009; 2010; 2011; 2012; 2013; 2014;
2015) – citados no questionário. Contundentemente por um viés do racismo, a análise
da violência ao corpo negro é sugerida por Fanon (1968:39) como um corpo que “se
acha num estado de tensão permanente” por longos anos, o corpo negro foi submetido à
força motriz de trabalho, de exploração, de subordinação e de negação como ser, e que
está num estado de tensão permanente e de traumas, pois esse estado é fruto de uma
negação sistematicamente do outro, assim esse corpo não se vê como gente, pois o
processo de inculcação dessa negação, criada pelo racismo que recusa reconhecer ao
outro qualquer atributo de humanidade, provoca uma violência no âmbito interno, a
baixa autoestima, além de aferir-se com as ações antirracistas que desenvolvemos o
Pensamento-Outro, que possibilitou uma mudança nesse Ideal do Ego inculcado por
séculos nas sociedades que foram colonizadas e que o africano escravizado produziu
cultura.
Foram testemunhos de que através de ações decoloniais acarretam na
possibilidade da superação de uma negação de ser negro e de fortalecer a autoestima, ao
desenvolver um Pensamento-Outro, e assim, mostrar os feitos positivos da população
negra, ou seja, uma representação social de afirmação política, histórica e educacional
do negro. É uma Pedagogia Engajada (hooks,2013) que procura manifestar
em sua práxis um Pensamento-Outro; evidenciar os saberes silenciados, levar o corpo
discente negro a uma reflexão da importância que o negro tem na construção cultural de
nossa sociedade. As ações pedagógicas que em seu bojo trazem saberes de uma História
africana e da cultura afro-brasileira constroem novas identidades para o corpo discente
negro, além de que fomentam uma reflexão e uma transformação nos sujeitos e na
Educação. É uma luta antirracista.

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sumário 1747
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA COMO POSSIBILIDADE DE TROCAS DE


SABERES ENTRE A ACADÊMIA E SEU ENTORNO

Alan Navarro Fernandes


UERJ/FFP
alan.navarro08@gmail.com

Arthur Vianna Ferreira


UERJ/FFP
arthuruerjffp@gmail.com

Introdução
Ao iniciar esse ensaio, coloca-se a exposição algumas considerações quanto aos
processos formativos não-formais, ou seja, que ocorrem para além do ambiente escolar
ou universitário. A respeito do que se dispõe como educação formal, não-formal e
informal (ARANTES; GHANEM; TRILLA 2008)269, quando olhamos de modo mais
atento a educação não-formal, ou, educação em espaços não escolares, nota-se que essa
pode vir a ser uma possibilidade de formação, onde, o conhecimento pode atingir
requisitos que constroem conhecimentos relevantes, e, que estão para além da tradição
formal, como por exemplo: a cidadania, o auto-conhecimento e a convivência.
A educação social vem ganhando, paulatinamente, mais espaço no meio
acadêmico e, com isso, acaba pondo em pauta reflexões sobre uma educação não
escolar, as relações entre os indivíduos e também sobre ações que ultrapassam os muros
físicos (e sociais) em torno da universidade. Seja na dimensão de uma sala de aula, ou
fora dela, as discussões sobre o campo se fazem necessárias, uma vez que a educação
social é imprescindível para a formação do indivíduo, além de inevitável, dado que
estamos sendo formados por espaços não escolares a todo o momento. No âmbito

269
No livro, os autores procuram esclarecer as diferenças entre educação formal, não-forma e informal,
onde, a formal corresponde a ambientes escolares, no geral. Já a não formal é referente a espaços não
escolares, como exemplo, hospitais, atividades extra-curriculares e museus. Por fim, a informal, onde, a
sua diferença entre as outras se da na intencionalidade, pois, nesse processo a intenção no processo
formativo é a de ensinar algo simples e momentâneo, a exemplo de uma receita de bolo ou uma
informação.

sumário 1748
VII Seminário Vozes da Educação

universitário, a educação social está inserida, também, nos projetos, nas pesquisas e na
extensão universitária.
A extensão universitária é, basicamente, um meio pelo qual a universidade pode
partilhar tudo àquilo que é produzido na mesma através do ensino e da pesquisa para
com a comunidade, promovendo desta forma uma troca de saberes significante.
Recomenda-se que esse processo formativo não seja realizado de modo unilateral, mas,
plural, pois, compreende-se que na ação extensionista deve haver a partilha mutua do
conhecimento entre os diferentes sujeitos e não uma hierarquização do conhecimento
dos mesmos. Dessa forma, se faz importante que o docente-extensionista 270 não
reproduza um processo similar ao da educação bancária271 (FREIRE, 1987) para com o
educando-extensionista272.

O histórico da extensão e sua função social


Ao analisar a origem da extensão universitária a partir de uma pesquisa realizada
273
pelo Jornal Extensão em foco (nº14, 2013) , nota-se que a extensão tal como
conhecemos hoje passou por um longo processo. Discussões a respeito da pauta
iniciam-se na universidade de Cambridge na Inglaterra ainda no inicio do século XIX e
influenciaram de modo significativo as “Escolas de Extensão” na America do Norte.
Por conseguinte, essa proposta de diálogo entre universidade e comunidade chegaria à
America do Sul totalmente articulada com uma possível função social através das ações
de extensão.
No Brasil, a extensão inicia-se nas universidades paulistas no inicio do século
XX. Em 1931, durante o governo de Getúlio Vargas é promulgado o Estatuto das
Universidades Brasileiras e também a oficialização da extensão reconhecida pelo
Estado. Esse foi o primeiro momento na história do Brasil que a extensão universitária
foi notada formalmente. Mas foi posteriormente, nas décadas de 1980 e 1990, que a

270
Docente-extensionista: educador que promove a extensão.
271
Diferentemente da educação libertadora, essa, reproduz uma tradição escolar a qual vê o aluno como
um sujeito passivo no processo de aprendizagem e o professor como aquele que transmite o
conhecimento.
272
Educando-extensionista: educando que participa da extensão.
273
O Jornal Extensão em FOCO é uma ação de extensionista da Coordenação de Difusão e Fomento à
Extensão (CDFEX) com o objetivo de, através do olhar e percepção dos discentes, divulgar e difundir as
ações de Extensão desenvolvidas na Universidade Federal Fluminense, no intuito de apresentar e
estimular o envolvimento tanto da comunidade acadêmica como da população em geral com as atividades
extensionistas.

sumário 1749
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

mesma ganhou notoriedade e passou até a ser mencionada na constituição federal,


possuindo também, no mesmo período uma política nacional de extensão.
As ações extensionistas podem vir a ser uma prática mobilizadora no processo
formativo de seus diferentes sujeitos, uma vez que, esta é capaz de proporcionar um
diálogo efetivo entre a universidade, enquanto corpo docente, discente e técnico e a
população geral em seu entorno, ou seja, aqueles que não pertencem exclusivamente aos
grupos mencionados como o corpo acadêmico. Ao por em prática tais ações, a
universidade cumpre com a sua função social, a qual está para além do ambiente escolar
e da formação do indivíduo para o mercado de trabalho somente, mas sim, para a vida
em sociedade.
A função social da universidade não se da somente nas possibilidades que esta,
enquanto uma instituição impar no processo formativo, pode oferecer a sociedade, mas
também com aquilo que ela pode aprender. A interação entre sociedade e universidade,
quando realizada de modo prático e reflexivo, pode vir a proporcionar um encurtamento
na discussão de pautas valorosas para esses grupos sociais outrora afastados. O
conhecimento universitário regularmente possui dificuldade em ser articulado entre
estas instituições impares e, de modo semelhante, o saber popular dificilmente é
compartilhado senão pelo olhar do acadêmico.
Segundo dados da pesquisa “Research in Brazil” encomendada pela CAPES
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e produzida pela
“Clarivate Analytics” entre os anos de 2011 e 2016, é possível mensurar o impacto da
produção cientifica representa para o Brasil. O estudo afere a partir de dados como o
numero de citações em artigos. A pesquisa brasileira vem progressivamente ganhando
uma maior notoriedade e possivelmente em 2021 pode se comparar a media de mundial
onde já estão outros países emergentes como China e África do Sul em numero de
produções citadas em trabalhos.
O estudo dispõe ainda o dado de que 95% das pesquisas científicas brasileira são
realizadas por instituições públicas. Dessa forma, comprova-se que os pesquisadores
dessas instituições públicas, aos quais, são financiados por dinheiro público em sua
maioria, são responsáveis por parte majoritária do conhecimento produzido no Brasil.
Esse dado revela a importância dessas instituições e o impacto que elas vêm causando e
podem continuar causando. Mas para que elas continuem sendo relevantes socialmente,
é preciso que a população geral compreenda e experimente esse conhecimento
produzido.

sumário 1750
VII Seminário Vozes da Educação

Faz se necessário, portanto, a observação de como esse conhecimento está sendo


compartilhado com a população. Se por ventura estivermos produzindo conhecimento
cientifico apenas para os nossos pares acadêmicos, minimizamos o conhecimento
universitário há um pequeno nicho mediante a uma sociedade plural, complexa e que
possui outras instituições que também possuem relevância no processo formativo dos
sujeitos. Assim sendo, cabe a reflexão sobre os possíveis movimentos que a
Universidade pode realizar para que essas dimensões não sejam negligenciadas. Para
tanto, Luis Síveres (2013) ressalta:

A universidade, como uma entidade do complexo sistema social, pela própria


razão de ser, precisa assumir uma maneira de dialogar e, num primeiro
movimento, é toda a organização que se coloca numa atitude dialogante, e tal
esforço não se realiza de forma unidirecional, mas de maneira
pluridirecional, compreendendo a instituição como uma energia propositiva
na realidade multidimensional da sociedade. Nessa dinâmica, o diálogo dos
sujeitos acadêmicos, com a diversidade de informações, de conhecimentos e
de saberes, potencializa o projeto pedagógico institucional. (SÍVERES, 2013,
pág. 24).

Alguns autores como Luiz Síveres em suas dissertações sobre a prática


extensionista buscam enfatizar essas reflexões apontadas e com isso propor diálogo
entre acadêmicos sobre a função social das práticas extensionistas dando abertura a (re)
pensarmos como a mesma pode ser significativa no processo de formação docente
inicial e continuada, à medida que, é essencial que o docente em formação possua um
contato com uma realidade não acadêmica, ou não formal, para que este possa construir
suas ferramentas para saber lidar com o outro e suas demandas, pois, faz parte do ser
docente intervir no processo formativo com seu conhecimento de modo a conduzir o
sujeito a autonomia. (FREIRE, 1997)
Compartilhar o que está sendo produzido na universidade é de suma importância
para uma maior interação para com a comunidade no entorno da mesma.
Frequentemente é possível observar que aqueles que não partilham de maneira direta ou
indireta do ambiente universitário dificilmente conseguem preservar a instituição tal
como ela deve ser preservada. Há uma onda recorrente que ataca as universidades e tem
como pauta a real relevância dela para com o seu entorno e, cabe aqui a reflexão: Como
é possível inferir tal importância?
Dessa forma, entende-se que a função social da ação de extensão está para além
de uma demanda mercadológica ou até mesmo assistencialista. Deduz-se que há um

sumário 1751
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

compromisso ético274 em torno da ação docente que tem por sua finalidade um preparo
para a vida em sociedade, fazendo com que este sujeito possa existir no mundo de modo
efetivo e significativo com seus próprios saberes. Essa reflexão está no seio da educação
social e é importante para compreendermos qual é o seu possível alcance e objetivo.

A relevância das ações e sua justificativa


Embora exista um aparato legal, teórico e prático que justifiquem toda a sua
relevância, as ações de extensão têm sido sinônimo de resistência dentro das
universidades. Ao meditarmos sobre essa circunstância é valido resgatar elementos que
tem por sua finalidade apontar a relevância das ações extensionistas e também os seus
impactos em uma universidade pública na região periférica no Rio de Janeiro e seus
impactos na formação dos seus diferentes agentes. Ao recorrer, por exemplo, aos
documentos que abordam questões fulcrais da educação no Brasil e a autores que
articularam sobre esses itens, é possível pontuar os aspectos notam sua essencialidade.
A LDB (Lei de Diretrizes Básicas da Educação Nacional), desde 1996,
estabelece as diretrizes básicas da educação no Brasil. Todas as importantes discussões
acerca da educação brasileira perpassam pela LDB, como, por exemplo, a reforma do
Ensino Médio, o reconhecimento de práticas educativas e a obrigatoriedade de uma
diversidade étnico-racial no currículo escolar. A mesma se atualiza frequentemente de
acordo com as mudanças exigidas pelo Poder Público.
Nessa lei foi reconhecida, dentre outros pontos, a importância da extensão com
termos chave para entendermos a sua finalidade. Mas antes de chegarmos à extensão em
si, vale-se ponderar sobre o primeiro artigo do documento que fala sobre a abrangência
da educação enquanto um processo formativo plural. O artigo 1º desse documento
dispõe:

Art. 1º: A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na


vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino
e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas
manifestações culturais. (Art. 1º da Lei nº 9.394/96 - Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional).

O documento nota que a educação consiste em processos formativos e elenca


outros espaços e/ou instituições onde a prática educativa ocorre. Trabalho, convivência
274
Termo utilizado por Isabel Baptista (2005) para abordar a ação docente e sua finalidade, pois, a autora
considera que este processo se da a partir de uma ideia de colaboração do individuo para a sociedade e
para a acolhida ao outro.

sumário 1752
VII Seminário Vozes da Educação

com outros indivíduos e família, por exemplo, são configurados como espaços não
escolares onde a prática educativa acontece, e essas são instituições nas quais nós,
enquanto membro da sociedade, passamos tempo significativo do nosso cotidiano e
também somos formados enquanto indivíduo. Esse ponto é algo extremamente caro
para a nossa discussão. No campo teórico, a pedagogia social se faz importante para
entendermos mais sobre essa relação entre o educador social e o educando. Evelcy
Machado (2002) diz:

[...] têm sido considerados, como objetos da pedagogia social, dois campos
distintos: o primeiro referente a socialização do individuo, socialização
compreendida como ciência pedagógica da educação social do individuo, que
pode ser desenvolvida por pais, professores e família; o segundo relacionado
ao trabalho social, com enfoque pedagógico, direcionado ao atendimento a
necessidades humano sociais, desenvolvido por equipe multidisciplinar da
qual participa o Educador Social, como profissional da pedagogia social
(MACHADO, 2002, pág. 3).

A autora citada evidencia nesse trecho aqueles que são os objetos da Pedagogia
Social e, por conseguinte, ajuda-nos a pensar sobre a ação da educação social para os
grupos sociais. Nesse sentido, essa tem a função e a capacidade de intervir
pedagogicamente nesses espaços a fim de contribuir para o processo formativo de
acordo com a demanda social apresentado em uma determinada localidade.
Desse modo, entendemos que essas ações mediadoras são parte daquilo que está
na essência da extensão universitária, que, para além de um compromisso cientifico e
fonte de desenvolvimento para aquele que promove a extensão, a mesma surge de uma
demanda social e ajuda a romper a distância que, em diversos momentos é estabelecida
entre a universidade e a população geral. Essa se apresenta também diversas vezes com
a educação básica também. Quanto a esses pontos, a LDB é bem clara no Art. 43º,
incisos VII e VIII que falam sobre as finalidades do Ensino Superior:

VII - Promover a extensão, aberta à participação da população, visando à


difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da
pesquisa cientifica e tecnológica geradas na instituição. (Art. 43, VII da Lei
nº 9.394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.).

VIII - Atuar em favor da universalização e do aprimoramento da educação


básica, mediante a formação e a capacitação de profissionais, a realização de
pesquisas pedagógicas e o desenvolvimento de atividades de extensão que
aproximem os dois níveis escolares. (Art. 43, VIII da Lei nº 9./394/96 - Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.).

sumário 1753
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Embora a LBD por si só, se faz importante para um entendimento mais amplo
do processo educativo e reconheça a importância das ações extensionistas, a Resolução
N 2º, de 1º de julho de 2015 que dispõe as diretrizes curriculares nacionais para a
formação docente inicial em nível superior e para a formação continuada. No Art. 4º a
pauta está colocada da seguinte forma:

Art. 4º: A instituição de educação superior que ministra programas e cursos


de formação inicial e continuada ao magistério, respeitada sua organização
acadêmica, deverá contemplar em sua dinâmica e estrutura, a articulação
entre ensino, pesquisa e extensão para garantir efetivo padrão em
consonância com o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), o Projeto
Pedagógico Institucional (PPI) e o Projeto pedagógico de curso.
(RESOLUÇÃO Nº 2, DE 1º DE JULHO DE 2015).

A partir dos documentos supracitados, infere-se que aqueles que não possuírem
a experiência contemplativa de experimentar esses três pilares da formação – o ensino, a
pesquisa e a extensão – terão uma formação deficitária, ou seja, carente de certos
elementos que são fundamentais para a experiência pedagógica como: a aproximação
com realidades diversas, dialogar com práticas não escolares, promover o direito a
educação para uma comunidade que talvez não tenha acesso e dar espaço para uma
troca de saberes entre a universidade e a população ao seu entorno.
Essa experiência acaba por promover a construção tanto do indivíduo que
promove a ação, ou seja, o docente-extensionista, quanto àquele que participa da ação,
ou seja, o educando-extensionista. O sociólogo Boaventura Santos faz reflexões
interessantes sobre a Universidade do século XXI e também sobre a Extensão. “[...] No
século XXI, só há universidade quando há formação graduada e pós-graduada, pesquisa
e extensão. Sem qualquer destes, não há universidade.” (SANTOS, 2004, pág. 46). Essa
provocação feita por Santos deve estar em voga quando pensamos qual o papel da
universidade na sociedade, sua contribuição para com a sociedade e os conflitos que
podem ser mediados pela mesma.
Mediante a essa obrigatoriedade e os pontos relevantes a essa prática,
acreditamos que seja oportuno refletir o porquê que essas práticas regularmente acabam
por não terem o devido apoio por parte das instituições que financiam os projetos de
pesquisa, e também o porquê de uma cultura acadêmica que, por sua vez, faz com que
parte do corpo pedagógico e institucional universitário não só não considere, em
proporções similares a ensino e pesquisa, a importância dessas ações na formação
docente como também não as colocam em prática.

sumário 1754
VII Seminário Vozes da Educação

A Educação em espaços não-escolares em uma experiência na periferia


As discussões quanto à extensão e a educação em espaços não escolares são,
regularmente, passadas de modo superficial na formação docente. Há possibilidade de
atuação em um espaço não formal, se abordada, é abordada de modo simples e isso faz
com que o educador, uma vez que, enfrenta essa realidade se depare com algo ao qual,
de fato, este não foi formado para atuar. Neste caso, a ausência e recursos teóricos
podem ser fatídicos para a má execução a prática, todavia, entende-se que a formação
acadêmica pode vir a auxiliar com o campo teórico algo que já vem sendo produzido em
sua prática ou até mesmo que irá ser produzido. Em suma, a teoria não é mais
importante que a prática ou vice-versa, as duas tem sua a sua relevância em cada
contexto.
A Faculdade de Formação de Professores da UERJ, por exemplo, passou a
inserir em sua grade uma disciplina eletiva elaborada e ministrada hoje (em 2019) pelo
professor Arthur Ferreira Vianna275 intitulada “Educação em Espaços Não-Escolares”
que possuiu como uma das suas finalidades a de trazer a pauta intitulada para a
formação docente. Com isso, acredita-se que os alunos ampliem o horizonte de atuação
da docência e também sejam iniciados na capacitação para a atuação nesses ambientes.
Ao longo do curso são articulados os principais estudos de autores que dialogam sobre a
temática, a cargo de exemplo, são trabalhadas as bibliografias de Jaume Trilla, Xésus
Jares e Isabel Baptista.
É imprescindível que a universidade, busque fazer uma autorreflexão quanto ao
modo com que são concebidas essas práticas, quem são os sujeitos envolvidos no
processo e quais são as principais demandas requeridas pelo determinado grupo
analisado e as pautas que estão inseridas nos mesmos, pois, devido a uma ausência de
disciplinas que tratam sobre as práticas da docência fora do ambiente escolar, o estudo
sobre como estão sendo realizados nessa prática torna-se valioso à medida que, sob a
luz de uma analise, é possível notar por quais caminhos estamos conduzindo a prática.
Para tanto, o TEAR (Troca de Experiências em Ações extensionistas na Região
de São Gonçalo e Adjacentes) 276 procura observar metodologicamente as ações de
alguns grupos de extensão do departamento de extensão da Faculdade de Formação de

275
Professor Adjunto do DEDU da UERJ/FPP
276
O TEAR é um projeto de extensão pelo qual essa pesquisa é organizada. O projeto é orientado pelo
professor Arthur Vianna Ferreira.

sumário 1755
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Professores da UERJ, a universidade se localiza em São Gonçalo, região metropolitana


e com aspectos marcantes que estão presentes em várias outras regiões periférica do Rio
de Janeiro, como por exemplo a criminalidade, a pobreza e também potencialidades, ou
seja, indivíduos capazes de produzir mais do que aquilo que são condicionados. Neste
estudo de caso, faz-se necessário aprofundar em alguns aspectos da região a fim de
conhecermos a fundo esses aspectos da região.
Segundo dados do Atlas do desenvolvimento Humano no Brasil de 2013 277, que
é realizado de acordo com os sensos de 1991, 2000 e 2010 se comparada à cidade
vizinha, Niterói, que está na 7° colocação no ranking de desenvolvimento dos
municípios brasileiros, São Gonçalo, se encontra na 795º. O índice procura ponderar
aspectos como renda, longevidade e educação. Devido a fatores diversos, a região se
encontra em uma situação delicada e com perspectivas de mudança complexas com
relação a esse quadro, uma vez que, o poder público toma poucas iniciativas para
progredir nesse quadro.
Mediante a esse quadro, é necessário que o docente-extensionista busque basear-
se nesses dados e em outros, mas, esses quadros não devem servir como um empecilho
para articular algo e sim como um meio de produzir uma prática efetiva. Embora os
números tragam resultados não tão agradáveis, é importante notar que esses números
refletem uma ausência de políticas públicas e outras ações sociais e, para isso, as ações
extensionistas acabam ganhando destaque nessa região, pois, essa pode ajudar na
condução de diálogos acerca de pautas como raça, sexualidade, cultura, criminalidade,
cidadania e outras que podem ser diversificadas até mesmo em uma determinada região
da cidade.
A fim de promover esse encontro, uma das metodologias do TEAR, é a
construção de diários de campo sob a luz da fenomenologia de Hurssel278. Além disso,
teorizar sobre alguns autores do campo da pedagogia social, da História, da Sociologia e
de outras áreas do conhecimento que podem somar de modo considerável a discussão e
nos apontar possíveis caminhos para que a prática seja realizada de modo efetivo. Com

277
Com base em dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estátistica)
278
Segundo Ferreira (2015) os diários de campo são divididos baseados na estrutura do método
fenomenológico de Husserl. Dessa forma, noema, noese e variação eidética constituem o diário de campo.
O noema refere-se à parte mais objetiva do relato analisado; é a descrição do fenomeno a partir de uma
percepção mais imparcial possível. O noese, ao do contrário, seria a parte subjetiva; é aqui que o sujeito
pode escrever suas lembranças, sentimentos e percepções do fenômeno, ou seja, como esse sujeito, o
analisador, reagiu ao objeto. A variação eidética ou redução eidética, é a forma de relatar o fenômeno a
partir da visão e dos sentimentos dos outros que fazem parte da ação. O relato é feito a partir do que o
outro demonstra mediante ao fenômeno. (FERREIRA, 2015, pág. 8).

sumário 1756
VII Seminário Vozes da Educação

isso, espera-se identificar o panorama das ações produzidas pelos grupos, estimular a
troca de saberes e possíveis caminhos para desenvolvermos a boa convivência em
sociedade.
Para atingir tais reflexões, os apontamentos de Xésus Jares (2007) se fazem
oportunos. O autor irá tratar da convivência humana e sua complexidade, sugerindo que,
as relações humanas são permeadas por um conflito que é inerente a nosso desejo.
Assim sendo, o que gera o conflito proposto por Jares (2007) são as diferenças
existentes em nossa própria maneira de existir no mundo. Quando transportamos essas
noções para a prática, em especial, para o contexto que analisamos, podemos notar
alguns aspectos relevantes.
Ao realizar uma ação de extensão em uma universidade pública em uma região
periférica do Rio de Janeiro, há de se considerar que as barreiras de classe e status social
são atenuadas. O ensino superior no Brasil foi marcado por um baixo acesso de
discentes e docentes oriundos de regiões periféricas, desse modo, é possível inferir que
o afastamento de tal realidade pode ser um ponto de conflito desses grupos no momento
da atividade de extensão. Jares (2007) explicita que a Declaração Universal dos Direitos
Humanos pode servir de base para uma paz-positiva, entende-se, uma relação onde
existe o conflito e ele não é dado de modo violento.

Estabelece-se uma diferença fundamental entre violência direta e violência


estrutural, entendendo-se a primeira como agressão física direta, a violência
“tradicional”, a mais facilmente reconhecível; e a segunda, indireta e mais
invisível, presente em determinadas estruturas sociais, sinônimo da injustiça
social. (JARES, pág. 32, 2007).

Essa atitude violenta pode ser notada, por exemplo, quando um docente exerce
sua autoridade de um modo negativo, ou seja, ignorando todo o contexto, desejo, e
saberes dos alunos, transmitindo assim um conteúdo de modo imaleável e distante. Essa
distancia ocasiona em um processo formativo, onde, o docente não vai de encontro ao
outro, ou seja, buscar conhecer o contexto do outro. Pensando na formação docente,
Baptista irá trazer colocações que podem sugerir maneiras de como se preparar para
lidar com o outro. Segunda as palavras à autora:

sumário 1757
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

A forma que equacionamos a relação com os outros depende muito da


concepção de “outro” que tivermos em referência. O outro é uma ameaça, um
inimigo em potencial, alguém que simplesmente toleramos, ou pelo
contrário, é alguém que só por efeito da sua entrada na esfera da nossa
mesmidade, representa uma mais-valia, uma ocasião de enriquecimento
pessoal? (BAPTISTA, pág. 2005)

Isabel Baptista (2005) irá propor “pedagogia da hospitalidade” como um meio


ao qual o educador pode desenvolver a ação sem ferir a autonomia do aluno, o outro. A
hospitalidade tem como premissa a acolhida. Para tanto, faz se substancial meditar
sobre qual postura ética o educador social deve ter para com o educando. Uma vez
diferentes enquanto sociedade, quais movimentos precisão ser realizados para ir de
encontro a este aluno que vem de encontro, leia-se, atravessa o docente tal como
atravessa outros sujeitos da sociedade, à medida que, Baptista sugere que somos
atravessados em todas as relações sociais, nesse caso, o outro sempre irá deixar uma
marca em nós e nós nele.
Se compreendermos as demandas do outro, ou até mesmo, possíveis caminhos
para ide de encontro a mesmo, a educabilidade ou a educação para autonomia pode se
tornar algo executável. É importante que busquemos ferramentas para que essas sejam
senão solucionadas, encaminhas. Para tanto, faz parte da ação do educador o
acolhimento do outro de acordo com suas demandas. Seja a dificuldade de ler, de se
sentir incluído ou até mesmo uma necessidade especial. Imaginando a pluralidade de
situações possíveis é crucial o conhecimento do contexto e dos indivíduos antes de
qualquer outro movimento.
Jares (2007) e Baptista (2005)auxiliam de modo significante em nossa analise.
Sob a luz da teoria desses autores é possível traçar novas possibilidades. De certo, as
noções de hospitalidade, conflito e convivência dialogam para outras realidades,
tornando-se fulcrais para analisar contextos diversos, contudo, sem ignorar a
experiência de educadores sociais que atuam em diferentes contextos e possuem um
conhecimento aprofundado da prática das suas ações. Esse conhecimento teórico deve
ser usado como um complemente de uma perspectiva e não como uma regra
necessariamente.
Uma vez que é difícil aferir com plena certeza ao longo da formação docente
quais os conteúdos que serão trabalhados no ambiente não formal, fazem se necessário
que o docente esteja aberto a acolher, ouvir e dialogar com o educando-extensionista.
Dessa forma, esse estudo não procura apontar que existe uma formula para quais as

sumário 1758
VII Seminário Vozes da Educação

ações se tornam válidas ou não, mas sim, pensar analisar e traçar reflexões sobre como
essas estão sendo produzidas e seus possíveis impactos.
A partir da experiência obtida nesse primeiro momento da pesquisa proposta
pelo TEAR, é possível notar pautas plurais como raça, pobreza, formação docente,
educação infantil, cultura e dentre outras inseridas nos grupos e coletivos do
departamento de educação e cabe fazer um exercício de pesquisa mais profundos e
observar como essas pautas são tratadas, os métodos e os recursos a fim de que ao final
dessa analise seja possível identificar como a Universidade pode contribuir de modo
relevante para as discussões dessas temáticas e também dar espaço para que esses
sujeitos se apresentem no meio acadêmico.

Conclusão
Se levarmos em consideração que a experiência é algo fundamental para
construirmos um processo formativo uns para com os outros, devemos, antes de
qualquer movimento, buscar conhecer a realidade em torno do sujeito e as suas reais
necessidades com o intuito de gerar uma ação verdadeiramente mobilizadora e o mesmo
processo deve ocorrer para com aqueles que compõem a universidade hoje. Deve haver
um movimento no qual universidade, enquanto corpo técnico, docente e discente, olhem
para si e se reconheça enquanto instituição de ensino que, para além do compromisso
com a sala de aula, terá um compromisso para além da mesma.
Faz-se necessário, portanto, buscar o estreitamento teórico e prático entre os
profissionais da educação do Educação Superior, da Educação Básica e da educação
social a fim de que essas ações legais sejam cumpridas e, para mais, constituam um
compromisso ético dos educadores para com aqueles que não têm acesso à diversidade
de práticas educativas e culturais existente nos diversos espaços sociais e não somente
nas escolas e universidade.
Por isso, cremos que as práticas de extensão podem ajudar a romper com
estruturas acadêmicas conservadoras e burocráticas e dar ao outro a oportunidade de
interagir com a mesma e reconhecer a sua importância para com a sociedade como um
todo, com isso, a mesma poderá se permanecer atemporal, pois ela se comunica com os
indivíduos que habitam a localidade. O estudo sobre as ações extensionistas, a formação
docente e o impacto sobre os grupos sociais se fazem relevante nesse aspecto: de
entender como a educação não formal potencializa laços de convivência entre os seres
humanos tão distintos a partir de posturas éticas de proximidade que irão gerar formas

sumário 1759
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

de conhecimento diversas as pretendidas pelas instituições formais, porém de tão grande


relevância como as mesmas para a formação da identidade social dos sujeitos
contemporâneos.

Referências
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Pontos e Contrapontos. 1. ed. São Paulo: Summus, 2008. v. 1. 168p.

BAPTISTA, Isabel. Dar rosto ao futuro: a educação como compromisso ético. Porto,
Portugal: Profedições, 2005.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP no 02/2015, de 1º de


julho de 2015. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em
nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e
cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada. Brasília, Diário Oficial
[da] Republica Federativa do Brasil, seção 1, n. 124, p. 8-12, 02 de julho de 2015.

______. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei


n. 9.394/96.
FERREIRA, Arthur Vianna. O uso da fenomenologia nas práticas de estágio
supervisionado para licenciaturas. Rev. Brasileira de Ensino Superior. Passo Fundo,
v. 1, n. 2, p. 5-14, 2015.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997.

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Econômica Aplicada (Ipea), Fundação João Pinheiro (FJP). Atlas de Desenvolvimento
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SANTOS, Boaventura de Sousa. A universidade no século XXI: para uma reforma


democrática e emancipatória da universidade. 2. Ed. São Paulo, SP: Cortez, 2004.

SIVERES, LUIZ. A Extensão Universitária como um Princípio de Aprendizagem.


1. ed. Brasília: Liber Livro, 2013. 272p .

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - Pró-Reitoria de Extensão. Banco de


Dados da PROEX. Niterói, 1999.d

sumário 1760
VII Seminário Vozes da Educação

ENCONTROS (TRANS) FORMADORES: A CONSTRUÇÃO DE OUTRAS


PERCEPÇÕES SOBRE A DEFICIÊNCIA NA PEDAGOGIA

Jessica Damiana de Magalhães Bastos Fernandes


UERJ
jessica_damiana@hotmail.com

Caroline Moraes Silva de Lima


UERJ
carolinelimaped@gmail.com

Silvania Inocencio do Carmo Monteiro


UERJ
silvaniamonteiro315@gmail.com

Entendemos que quatro anos de uma graduação em Pedagogia são insuficientes


para que se construa uma base teórica e prática que permita à futura docente preparar-se
para agir diante dos tensionamentos que irão perpassar sua atuação. Nesse sentido, é
fundamental que discentes da licenciatura em Pedagogia procurem diversificar sua
formação, buscando elementos que possam contribuir para o enriquecimento do
percurso.
O espaço escolar se apresenta como um ambiente complexo, construído por
diversos sujeitos que são produtores e produzidos por diferentes realidades, nele
encontram proximidades e distanciamentos que os atravessarão por todo percurso
escolar e serão importantes para sua formação e atuação como sujeitos na sociedade. A
formação do profissional da educação é, por isso, nosso tema de interesse, tendo
profunda importância diante da dimensão inclusiva que emerge na prática docente.
Pensamos que um dos grandes problemas atuais está relacionado à inclusão de
alunos com deficiência nas escolas. As questões de acessibilidade, práticas pedagógicas,
sala de recursos e a mediação são alguns dos elementos para os quais a escola e a/o
professor/a deverão atentar. Mas o principal questionamento a fazer seria como
participar e realizar processos de inclusão, nos quais a deficiência não seja vista como
uma falta ou uma limitação e o aluno não seja pensado e avaliado a partir de uma lógica

sumário 1761
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

que estabelece uma normalidade e julga todos que não se enquadram nela como
deficientes por não se adequarem a uma norma previamente estabelecida.
Talvez um diferencial na formação de futuras docentes seja pensar estudantes
com e sem deficiência a partir de uma lógica não medicalizante, buscando a realização
de práticas pedagógicas e a construção de uma escola inclusiva. Para isso,
experimentamos a extensão universitária enquanto discentes de Pedagogia e futuras
docentes por meio do Projeto: “Encontros com educadoras/es na Baixada Fluminense:
diálogos a respeito de inclusão e mediação”, realizado na Faculdade de Educação da
Baixada Fluminense (FEBF/UERJ), em Duque de Caxias. Entre os objetivos do projeto
está o debate sobre concepções de deficiência a partir de uma perspectiva não
medicalizante, que possa permitir a valorização das diferenças ao invés de práticas que
criem sujeitos excluídos por não se adequarem à normalidade previamente
estabelecida.
O projeto de extensão do qual fazemos parte convida a comunidade docente
(professoras, mediadoras, agentes de apoio à inclusão, agentes de educação especial,
orientadoras pedagógicas, equipes da gestão escolar e educacional, entre outras) da
Baixada Fluminense para participar de encontros de formação continuada. Nesses
encontros, há centralidade na discussão e no compartilhar de experiências da prática
dessas pessoas na relação com a deficiência. Há espaço para escutas, escritas, leituras e
ressignificações. São propostos textos que apresentam conceitos e referenciais a partir
do modelo social de deficiência, que nos permite entendê-la “não como uma
desigualdade natural, mas como uma opressão exercida sobre o corpo deficiente”
(DINIZ, 2012, p. 19). Ou seja, a deficiência é produzida a partir do encontro com a
sociedade e suas práticas, nas barreiras sociais, no planejamento dos espaços que não se
pautam na diversidade. Com essa referência, percebemos que poderíamos registrar
nossas experiências e registros e compartilhar o que temos feito no projeto de extensão
universitária a partir do que temos vivenciado e elaborado na nossa formação e em
nossas práticas de estudo. Partimos da participação no projeto e suas contribuições na
formação discente e na prática escolar para apresentar a construção de novas percepções
sobre os alunos que se encontram em situação de inclusão, termo que nos remete à ideia
de Beyer (2006 apud KAUFMAN, TABAK, 2016, p.30) de que “os alunos em situação
de inclusão são aqueles que, no encontro com os funcionamentos da escola, produzem
uma relação com desafios, com dificuldades. ” O espaço da inclusão é apenas umentre

sumário 1762
VII Seminário Vozes da Educação

tantos outros, no qual o aluno pode estar em diferentes momentos, podendo deixar de
estar de acordo com as suas diferentes necessidades (KAUFMAN, 2016).
Dessa forma, o principal objetivo do presente trabalho é apresentar os relatos de
três estudantes de pedagogia, enquanto participantes do projeto, em diferentes posições
de fala: estudante voluntária e professora já formada em Geografia (E1), estudante
voluntária e professora com mais de 20 anos de atuação nos anos iniciais (E2) e
estudante bolsista que tem experiência familiar com a deficiência (E3). Propomo-nos a
pensar as (trans)formações que vivemos na compreensão da deficiência e das práticas
pedagógicas inclusivas, desde a nossa experiência discente.

Nossos relatos como estudantes de pedagogia: de onde partimos


Aqui identificada E1: entrei no curso de pedagogia e a busca pela questão da
inclusão e deficiência aconteceu após alguns anos de magistério como professora de
geografia. Formada pela Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, atuo como
professora há sete anos em escolas da rede privada no município de Duque de Caxias, e
também por dois anos atuei como contratada da rede estadual/RJ. A deficiência e a
inclusão atravessam minha prática pedagógica há alguns anos, e de maneira recente a
minha realidade pessoal.
A entrada na segunda graduação me permitiu o contato com o grupo de extensão
“Encontros com educadores na Baixada Fluminense: diálogos a respeito de inclusão e
mediação”, no qual fui apresentada a conteúdos sobre deficiência que transformaram
minha prática docente e a maneira como lidava com o tema até mesmo no âmbito
pessoal. Já havia atuado com alunos em situação de inclusão, e sempre me inquietava a
forma como a escola direcionava o processo inclusivo desses alunos, quase sempre sem
uma proposta sólida e dialógica, permitindo apenas que ele ocupasse um lugar na sala
de aula, mas não construísse nenhum tipo de relação com a escola e nem mesmo com
seu processo de ensino-aprendizagem.
Aqui identificada E2: Sou professora do ensino fundamental há vinte e seis anos.
Ao longo desses anos, sempre tive experiência com alunos em situação de inclusão. A
relação com esses alunos sempre foi desafiadora e demandou mais atenção. Em minha
formação, não encontrava muitos elementos que pudessem auxiliar em minha prática,
apesar de cursos e formações que procurei para me aprimorar. Ao receber uma criança
em situação de inclusão, ficava cobrando o laudo à família, pois entendia que somente
com o esse documento, conseguiria ajudá-la em suas limitações, como também na

sumário 1763
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

construção do seu aprendizado. Possivelmente, tal fato, ajudava a produzir limitações.


Na busca por novas práticas encontrei o grupo de extensão já mencionado. Ao
iniciar no projeto, achava que iria aprender técnicas para aprimorar minhas práticas
pedagógicas e trabalhar com crianças deficientes, além de manter a referência do laudo
como forma de possibilidade de inclusão. Confesso que nos primeiros encontros pensei
em desistir, pois ainda não via sentido em começar um trabalho com uma criança sem o
amparo do laudo e o uso de medicamentos. E para reforçar minhas concepções, também
existia a troca e convívio com professores que insistiam a todo momento no pedido do
laudo, assim como também na medicamentalização dos estudantes. Foi um processo
difícil de transformação da minha realidade, afinal são 26 anos de prática em sala de
aula e mudar as concepções que já estavam consolidadas demandou um grande esforço
e mudança de olhar significativo. Mesmo diante dos desafios, decidi continuar. Nos
encontros seguintes, começamos a ler os textos de Débora Diniz (2012) e
NiraKaufmanm (2016), propostos pelo grupo de Extensão. Sempre acreditei na
interação de uma criança em situação de inclusão, mas não conseguia pensar em como
realizar a inclusão sem medicalizar e limitar as possibilidades para o aluno.
Comecei a entender, através dos textos e dos diálogos que tínhamos que
a deficiência e a inclusão estão vinculadas a uma questão social e política, diretamente
relacionada a modelos hegemônicos de educação e saúde. Tais fatos permitiram o
esclarecimento de que o laudo e sua cobrança quase compulsória nas escolas estão
relacionados ao modelo biomédico hegemônico. Percebi que se faz necessário
questionar até que ponto esse documento é tão importante para determinar a vida dessas
pessoas, e que é fundamental buscar novos olhares sobre a deficiência e a inclusão.
Aqui identificada E3: Minha relação com a pedagogia e a questão da deficiência
começa a ser construída a partir do nascimento de meu irmão, Rafael, diagnosticado
com Síndrome de Down. O interesse pela pedagogia surgiu como um possível caminho
para construção de saberes que permitissem atuar, não apenas com meu irmão, mas me
qualificar para trabalhar com pessoas com deficiência.
Outro fator preponderante que justificou ainda mais a busca por formação foi a
experiência que minha família e eu vivenciamos na primeira tentativa de matrícula do
meu irmão em uma escola da rede privada, no município de Duque de Caxias/RJ,
quando ele tinha três anos de idade. Sua entrada na escola foi negada por ter Síndrome
de Down.

sumário 1764
VII Seminário Vozes da Educação

Na época o sentimento de revolta veio à tona, mas preferimos não insistir no


caso. O fato ocorrido foi um marco, eu já sabia que era errado, mesmo sem muito
conhecimento sobre as leis que protegem a pessoa com deficiência. Comecei a
questionar quais eram as impossibilidades que meu irmão possuía? Como uma criança,
diferente como todos nós somos, poderia ser recusada por alguma instituição? Percebi
então, o quanto a população e a escola não possuem conhecimentos e reproduzem
velhos hábitos preconceituosos e discriminatórios.
Decidi me aprofundar mais a respeito de inclusão escolar e as concepções de
deficiência. Como me encontrava no terceiro ano do ensino médio, prestei vestibular
para o curso de pedagogia da UERJ e fui aprovada. No decorrer do curso, participei do
processo seletivo, e hoje sou bolsista do projeto de extensão sobre mediação e inclusão,
que visa em debates sobre as concepções de deficiência, em encontros com educadores
e educadoras.

Relatos de experiências
E1: No ano de 2018, recebi em uma de minhas turmas de nono ano um aluno
diagnosticado (com laudo médico) como Asperger. A ênfase aqui dada ao diagnóstico
não tem por objetivo estereotipar o aluno, mas sim, construir uma possibilidade de
análise, que adiante será retomada e nos possibilitará entender a construção de um outro
olhar sobre o aluno.
O estudante chama-se Lucas e estava com catorze anos, era um jovem bastante
sorridente e participativo nas aulas, socializava-se de forma bem espontânea com os
demais alunos da sala. A relação com os professores era sempre de grande troca,
perguntava e questionava em todas as minhas aulas. Na semana da chegada de Lucas, a
direção da escola informou a turma e aos professores que receberíamos “um aluno
Asperger” (eu fui avisada somente depois de ter ministrado a aula na turma de Lucas), e
que ele possuía algumas dificuldades motoras. Nesse momento eu não sabia muito o
que era isso e quais as necessidades que esse futuro aluno teria. Não houve nenhuma
orientação por parte da direção sobre caminhos que pudessem facilitar essa chegada ou
qualquer coisa relacionada às práticas pedagógicas.
O primeiro contato com Lucas aconteceu de forma natural, sem saber que ele era
um aluno em situação de inclusão. Ministrei minha aula normalmente, achando que era
apenas mais um aluno. Perguntei seu nome, me apresentei, e segui a aula. Após ser
avisada, fiquei surpresa, pois esperava diante de uma apresentação que frisava o seu

sumário 1765
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

diagnóstico, que seria necessário uma grande preparação e estudos para buscar
caminhos.
No decorrer do ano letivo e da aproximação com o aluno, foi possível conhecer
um pouco mais de sua história. Lucas é apaixonado por esportes e sonha ser locutor
esportivo e realizar a narração de um jogo do Fluminense, seu time de coração. Era de
se esperar que Lucas não pudesse fazer esportes que necessitasse de movimentos ágeis
ou muita coordenação, já que seu diagnóstico indica uma maior dificuldade motora.
Como eu sei disso? Após saber que ele seria meu aluno, pesquisei um pouco sobre a
Síndrome de Asperger na internet. Bastou alguns cliques para saber do que se tratava e
que condições eu supostamente enfrentaria. Ilusões e contradições foram o que se
seguiu nessa experiência.

Lucas não amava apenas o esporte, ele praticava! E como jogava! Disputava
todas as bolas no futebol, nas aulas de educação física e no recreio. E eu me
questionava: como? Mas minhas inquietações ficavam sempre em segundo plano, pois o
tempo corrido entre as turmas nem sempre me permitia uma análise ou reflexão mais
questionadora.
Entre as explicações e os exercícios, Lucas contava alguma história de sua vida e
acabamos nos conhecendo um pouco mais. Sempre que o conteúdo lhe interessava ele
tinha várias perguntas. O ano de 2018 foi marcado por vários e intensos debates sobre a
questão política, e ele sempre tinha uma opinião para colocar. Lucas nunca realizou uma
prova diferente dos demais alunos, a direção nunca solicitou e, em minha disciplina, não
via essa necessidade. Ele as realizava muito satisfatoriamente.
No último bimestre do ano, a família de Lucas passou por problemas pessoais
relacionados à saúde de sua irmã, precisando mudar de endereço, o que inviabilizava a
frequência escolar. A escola permitiu que no último bimestre o aluno fosse avaliado
através de trabalhos, e que as avaliações finais fossem realizadas em horários
diferenciados, que se encaixassem na dinâmica que a família estava vivenciando.
No conselho de classe final, a pauta mais longa foi a aprovação ou retenção de
Lucas, devido a um resultado abaixo da média em português. O professor alegava que
ele não realizou um trabalho, e não via nele um esforço para mudar ou superar alguma
dificuldade na disciplina. O professor relatou que em outro momento havia lecionado
para um aluno com Síndrome de Down e, segundo ele, essa deficiência era muito mais
grave, e o aluno nunca havia deixado de entregar nenhum trabalho e foi aprovado por

sumário 1766
VII Seminário Vozes da Educação

mérito próprio, sem necessidade de conselho. Outros professores e eu tentamos explicar


que cada aluno é único, e que Lucas havia tido resultados acima da média escolar em
praticamente todas as disciplinas, inclusive na temida matemática. O professor não se
mostrou sensível, mas disse que se o conselho concordasse, ele o aprovaria. A escola,
por sua vez, manifestou-se dizendo que independente de nossa opinião, aprovaria
Lucas. O motivo? Seu laudo dizia que ele necessitava de um mediador em sala, e ela
não havia cumprido o seu papel, sendo assim, não poderia retê-lo, se eximindo de
qualquer possível questionamento da família.
As avaliações pelas quais Lucas passou não deram conta de refletir suas
potencialidades e aprendizagens. Suas necessidades e desejos foram substituídos por seu
diagnóstico. Aqui emerge um importante questionamento sobre as avaliações e seus
reflexos na formação escolar. Os modelos avaliativos mais empregados, através de
provas fechadas, não dão conta de avaliar as conquistas, crescimento e avanços a partir
de questões pensadas de forma padronizada e pouco flexíveis, que não permitem
demonstrar o que de fato tem feito sentido na formação do aluno.
E2: No ano de 2018 em minha turma de quarto ano recebi o aluno Pedro, que
possuía o diagnóstico de “transtorno opositivo desafiador” (TOD) e autismo. O
estudante se mostrava muito agressivo e desafiador, nos deixando a cada dia mais
intrigados. Ele batia, xingava a todos, não tinha respeito por nada e por ninguém.
A escola apresentou como solução a contratação de uma estagiária para realizar
a mediação desse aluno, não oferecendo nenhum tipo de recurso ou suporte pedagógico
para que ele pudesse ser inserido no cotidiano escolar.
A maior parte do tempo, Pedro ficava fora de sala, acompanhado da estagiária e
da equipe pedagógica da escola, pois em diversas situações ele apresentava um
comportamento difícil de contornar e demandava um grande número de pessoas para
contê-lo. Não havia, portanto, uma verdadeira inclusão desse aluno, que ficava
condicionado às ações de terceiros, tendo suas limitações evidenciadas e suas
potencialidades ignoradas.
A partir da convivência com Pedro foi possível perceber seu interesse pela
fotografia. A partir disso elaboramos o projeto: “O olhar do Pedro através das lentes”.
Com a fotografia, Pedro começou a perceber o comportamento das pessoas, ficou mais
próximo, ouviu relatos, engajou-se com outras crianças e funcionários da escola. Enfim,
passou a ter empatia pelo ambiente e ser visto pelos outros como um estudante do 4°
ano, e não pelo laudo de TOD ou autismo. Pedro entendeu que suas ações podem afetar

sumário 1767
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

os outros, e assim passou a ter um relacionamento muito mais próximo com todos os
integrantes do espaço escolar.
E3: A experiência de matrícula de meu irmão Rafael em sua primeira escola,
gerou em minha família, e por consequência em mim, uma profunda sensação de
frustração. No ano de 2014, decidimos matricular o Rafael em uma escola, para que ele
pudesse desfrutar do convívio com outras crianças e iniciar sua caminhada pedagógica.
Essa primeira tentativa acabou por terminar em uma mistura de sentimentos negativos.
No dia em que minha família foi fazer a matrícula, foi avisado que a criança
tinha Síndrome de Down e que tinha também uma condição chamada defeito do Septo
Atrioventricular (DSAV), mas que estava sendo medicado e que, até aquele momento,
não era indicada a realização de cirurgia cardíaca. No dia seguinte, a diretora chegou
apresentando duas propostas: devolver à família o valor pago pela matrícula, ou a
família ficaria responsável em arcar com as despesas da contratação de uma enfermeira
para acompanhá-lo durante as aulas. Optamos pela devolução do dinheiro. A sensação
foi de que a escola tinha comprado uma mercadoria e não tinha gostado, e parecia estar
fazendo a devolução.
A partir disso vários questionamentos começaram a surgir. Qual é o real papel
da escola no processo de inclusão? É direito de uma instituição negar a uma criança o
acesso à educação, ainda que seja uma instituição privada?
Hoje compreendo que não, já que o acesso à educação é direito fundamental do
ser humano e não pode ser limitado ou restrito. Há diferentes leis que regulamentam o
acesso à educação, como apontam alguns artigos da Constituição Federal, de 1988:

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida


e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. Art. 206. O ensino será ministrado com base nos
seguintes princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência
na escola; Art. 208. O dever do Estado com a Educação será efetivado
mediante a garantia de: III - atendimento educacional especializado aos
portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino.

Ainda assim, com toda a regulamentação, há escolas que recusam as matrículas


de alunos com deficiência e que se encontra em situação de inclusão.
Devido a questões socioeconômicas, minha família e eu nos mudamos para o
município de Maricá/RJ. Optamos por matricular meu irmão numa escola da rede

sumário 1768
VII Seminário Vozes da Educação

privada, próxima o nosso local de moradia. Novamente a experiência não foi muito
positiva.
Por várias vezes, minha mãe foi à escola para resolver questões de secretária e,
deparou-se com meu irmão sozinho pelo pátio da escola. A matrícula não foi recusada,
mas não havia um lugar ocupado por ele na escola. Refletindo melhor, havia um lugar,
o da exclusão.
Minha família sempre teve resistência em nos matricular em escolas públicas,
mas após conversas com algumas professoras na faculdade, convenci minha mãe de que
a escola pública poderia ser uma opção para o Rafael. Hoje ele se encontra matriculado
em uma escola municipal, e em alguns momentos é acompanhado por uma mediadora.
A escola atual tem diversos alunos em situação de inclusão. Frequentemente as
professoras estão presentes em palestras sobre deficiência, e os temas são levados a
salas de aula, onde os alunos debatem e fazem apresentações sobre deficiência. Tais
práticas contribuem para a formação de todos os alunos, pois construí um novo olhar
sobre as diferenças, não como anormalidade, mas como algo ordinário, comum a todos
nós.
É necessário que ocorram mudanças nas atitudes e uma conscientização no meio
escolar para que haja um maior engajamento em práticas inclusivas efetivas. Os
desafios, dilemas e barreiras encontradas por pessoas com deficiência precisam ser
expostos como uma forma de conscientização da vida humana.
As escolas têm a obrigação de incluir alunos deficientes no ambiente escolar de
forma respeitosa. Mesmo havendo a necessidade de apoio do mediador, o aluno
continua sendo responsabilidade da escola e da professora regente. É preciso repensar as
práticas pedagógicas, rever conceitos e pré-conceitos, reavaliar as necessidades de cada
aluno, pois nem sempre é necessária a intervenção de uma pessoa. A pessoa com
deficiência não necessita constantemente de cuidados, ou demanda uma enfermeira
como a primeira escola exigia. O aluno, em situação de inclusão, poder ser mediado
através de diferentes elementos, que podem ser desde mediadores até objetos com os
quais o estudante se identifica, ou seja, é possível que haja mediadores humanos e não
humanos (KAUFMAN, 2016).

Transformações
E1: Hoje Lucas frequenta uma escola da rede estadual/RJ e cursa o primeiro ano
do ensino médio. O contato com o aluno se manteve mesmo após sua saída da escola.

sumário 1769
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Lucas envia mensagens para tirar dúvidas de sua matéria, ou mesmo para contar sobre
seus romances. Mesmo sabendo de sua deficiência, Lucas nunca havia mencionado
nada em relação a ela para mim, apenas após um relato pessoal em um aplicativo de
mensagens sobre minha experiência com uma deficiência semelhante na minha família,
é que ele me procurou e contou sobre seu diagnóstico, eu também não havia tocado na
questão.
Retomo aqui a questão do diagnóstico, citado no início do relato. A escola
apresentou Lucas a partir de um olhar medicalizante, pensando sua deficiência como um
fator descritivo e definitivo de sua personalidade, de sua ação como sujeito. Era preciso
pensá-lo não como o “aluno com Asperger”, mas como um aluno com potencialidades e
dificuldades que são, afinal, comuns a qualquer discente em processo de aprendizagem.
Lucas não era isolado, não apresentava dificuldades cognitivas exacerbadas, a
sua dificuldade motora não era um impedimento, era comunicativo e participativo,
características que não foram exploradas pela escola e pelo corpo docente, pois
pensava-se no aluno a partir de seu diagnóstico e não como o sujeito que ele realmente
era.
A escola apresentou uma postura autoritária e cheia de desconhecimento sobre o
aluno. O professor de português demonstrou uma grande resistência, resistindo a uma
nova avaliação, um outro olhar sobre o aluno. Ao estereotipar, pensou-se Lucas a partir
de sua deficiência e não como um indivíduo com habilidades, vontades e afinidades
com certos conteúdos escolares. Eu sinto que pude construir propostas diferentes e que
encontrei limitações também, foi um processo que permitiu uma nova aprendizagem,
uma outra perspectiva sobre como olhar para deficiência e suas supostas limitações.
Naquela época, mesmo sem clareza, pude viver um processo importante para a minha
formação, uma aproximação de outra perspectiva para pensar e se relacionar com
deficiência e suas supostas limitações. O processo de inclusão na escola, naquele
momento, foi pouco efetivo.
Hoje eu consigo olhar para essa história e pensar diversas formas de fazer todo o
processo de inclusão de maneira diferente. A principal delas é partir da sensibilidade do
olhar - quem é meu aluno? O que ele mais gosta de brincar? Quais são as suas
curiosidades? Quais são os seus sonhos? Com o conhecimento teórico e as experiências
trocadas nos encontros promovidos pelo grupo de extensão, pude perceber que a
deficiência não está relacionada a uma incapacidade, falta ou limitação. É um fator
muito mais associado a uma sociedade pautada em uma lógica produtivista, que

sumário 1770
VII Seminário Vozes da Educação

estabelece um padrão de normalidade, onde qualquer indivíduo que dele desvie é


classificado como deficiente.
O diagnóstico não deve ser a base de um planejamento, de um projeto
pedagógico. É preciso pensar o aluno como sujeito que fala, pensa, sente, produz e é
produzido por tudo que o atravessa. A escola deve ser o local onde as diferenças sejam
valorizadas, não como algo excepcional, mas sim, como algo verdadeiramente
ordinário.
E2: Hoje, quando olho para essa situação, questiono: qual o papel do laudo e das
supostas limitações que ele impõe (através de rótulos) sobre o aluno e seus potenciais?
Posso afirmar hoje que a existência do laudo não garante uma experiência educativa
positiva, pelo contrário, pode colaborar com a (re)afirmação de esteriótipos (aqui tem
uma sugestão). Percebi que ao esquecer o laudo que o rotulava, conseguia um melhor
desenvolvimento e retorno positivo nas ações
propostas. A cada encontro com as leituras e os
debates, realizados no projeto de Extensão, minhas concepções com relação a laudos e
percepções medicalizantes foram sendo transformadas. Compreendi que esses conceitos
prévios só engessavam as minhas ações diante de alunos como Pedro.
Ver o estudante a partir do olhar do laudo nos limitava a enxergar suas
potencialidades. No momento em que se abre um leque de possibilidades,
desenvolvemos vários desafios e trabalhos, sem duvidarmos do potencial daquela
pessoa.
Atualmente Pedro está engajado na turma do 5° ano. Quase não é preciso
modificar ou adaptar suas atividades. Somente a prova de Matemática que é levemente
um pouco adaptada para ele. A cada dia mostra-se carinhoso, emotivo, disciplinado,
engajado nos projetos da escola e no bem-estar dos colegas. Enfim, um garoto feliz.
Olho para o Pedro e pergunto: O que o laudo tem feito para me ajudar? Penso: nada,
pois se ficasse presa a ele, estaria desenvolvendo outras técnicas e maneiras para
trabalhar com essa criança, que com certeza, não estaria evoluindo tanto a cada dia. A
mudança em meu olhar e nas práticas só foi possível a partir do momento em que me
abri para novas possibilidades e concepções. A participação no projeto de Extensão foi
um diferencial na minha prática, pois através das trocas de experiências e incentivo à
pesquisa, pude ampliar meus conhecimentos e reformular minhas ações.
E3: A participação no projeto de extensão universitária tem possibilitado
diferentes experiências. O preparo dos encontros, as discussões a partir das leituras, os

sumário 1771
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

debates e o exercício da escrita, tem permitido a construção de aproximações com os


desafios da escola.
Com as novas concepções, a troca de experiências com outras educadoras, me
coloco hoje a repensar a situação vivenciada pela minha família. Ainda encontro muitos
desafios na vivencia escolar de meu irmão, que apesar de estar em uma escola que
busca a realização de um trabalho pedagógico mais inclusivo, ainda é entendido a partir
de sua deficiência.
É preciso que a escola e a sociedade caminhem para uma mudança no olhar
sobre as deficiências, afinal nossas diferenças nos tornas pessoas únicas, e são essas
singularidades que nos constroem como sujeitos. A deficiência é apenas um modo de
vida, de ser e estar no mundo, como tantos outros.
Estar com diferentes pessoas, se aproximar de perspectivas diversas, tem sido de
grande valor para minha formação docente. Nos encontros, pude perceber que os
profissionais chegam com muitas inquietações, parecem experimentar certo isolamento
na escola. Ouvimos relatos de professores que não sabem o que fazer com determinada
criança, justificando as suas dificuldades com a ausência do laudo. Muitos defendem
que a inclusão só pode acontecer diante da posse de um laudo, e parecem buscar um
"manual" com prescrições que garantam a inclusão. Mas é necessário saber que cada
criança é única, e que não há como padronizar ou receitar maneiras para incluir as
crianças, muito menos tomando como base a sua deficiência ou dificuldade. Temos
insistido nos encontros que é preciso fazer o exercício de pensar, pedagogicamente, o
processo de inclusão, sem recorrer a saberes biomédicos.
A partir de minha entrada na universidade, pude perceber que temas como
inclusão, mediação e deficiência são pouco discutidas no meio acadêmico. Nas falas das
participantes aparecem com frequência conceitos do senso comum. Percebo hoje a
necessidade de aprofundamento teórico, bem como a utilização de termos mais
adequados para a discussão do tema da inclusão. Faz toda diferença entender os
questionamentos por trás do uso de termos como “criança especial”, e a opção pela
utilização do termo “criança em situação de inclusão”, tendo em vista que a necessidade
de inclusão pode ser apenas momentânea.
Diante das preocupações que inquietam a família e pela escola, percebemos a
necessidade de romper com esses estereótipos, com o modo de agir já cristalizado na
escola, tomando como base a legislação, mas também a produção recente dos campos
da educação inclusiva e dos estudos da deficiência, buscando práticas que caminham na

sumário 1772
VII Seminário Vozes da Educação

contramão de uma perspectiva medicalizante, que retiram o foco do "aluno-problema",


potencializando a discussão do trabalho pedagógico e da escola como espaço
comprometido com as aprendizagens de todos os estudantes.

Considerações finais
As experiências com as quais nos deparamos durante nossas trajetórias nos
levaram a busca por respostas. O encontro com a licenciatura em pedagogia começou a
deslocar nossas perspectivas e concepções para novos entendimentos e práticas
possíveis diante da deficiência.
A deficiência, antes entendida como uma falta, incapacidade, inadequação,
ganhou um novo significado, pois percebemos e passamos a entendê-la através do olhar
da diferença. Somos, afinal, todos diferentes, e é necessário que possamos entender as
particularidades de cada indivíduo, e buscar em suas singularidades as estratégias de
aproximação, de inclusão desse sujeito no espaço escolar e na sociedade.
Os encontros, as trocas de experiências, as leituras e os debates proporcionaram
a ressignificação de diversos conceitos e práticas pedagógica, que agora nos permite
realizar um trabalho e caminhada mais justa, pautada no aluno, pensando-o como um
sujeito de direitos, ativo em seu processo de ensino e aprendizagem. Para isso, é
fundamental que possamos olhar para as diferenças e reconhecer nelas infinitas
possibilidades de ações.
A participação no grupo de extensão tem colaborado para a realização de todo
processo de mudança que vivemos. As discussões no grupo provocam e, a partir das
inquietações experimentadas, começamos a problematizar as situações vividas com
nossos alunos e/ou familiares. As experiências descritas neste artigo reverberam fatos
que acontecem diariamente e que marcam profundamente a vida de professores em
formação. Com relação aos familiares, a sensação de não estarem sozinhos produz um
caminho para a quebra de silêncio e demonstra que cada pessoa tem a sua
especificidade e que é possível transformar silêncio em luta e resistência.

Referências
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de
1988. http://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_
205_.asp.

DINIZ, Débora. O que é deficiência. 1° edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012.

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

KAUFMAN, Nira; TABAK, Sheina. Inclusão e mediação escolar: norteadores para


uma prática ética. Revista Educação Online Rio de Janeiro, n. 22, mai-ago 2016, p.
27-42.

KAUFMAN, Nira. Cinco pistas para uma mediação escolar não medicalizante. In:
conversações ente psicologia e educação. Org. Comissão de Psicologia e Educação do
CRP-RJ 5° região. Rio de Janeiro: CRP- RJ 5° região, 2016.

sumário 1774
VII Seminário Vozes da Educação

POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS NA ESCRITA CURRICULAR


DOCENDO: UMA PESQUISA NOSDOSCOM OS COTIDIANOS

Sabrina Mendonça Ferreira


Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia Fluminense campus Campos Centro
smendonca@iff.edu.br

Considerações Iniciais
O presente texto, fragmento de uma pesquisa de doutorado em curso, busca
colocar em relevo as maneiras como os licenciandos praticantespensantes1 da vida
cotidiana (OLIVEIRA, 2012) criam suas escritas docendo2 nos espaçostempos
universitários, considerando as relações próprias e potentes com a oralidade (e a
leitura), que são interdependentes, mas guardam suas especificidades.
Trata-se de uma pesquisa nosdoscom os cotidianos que, nas palavras de Garcia
(2014, p. 82):

(...) configuram-se como vertente em desenvolvimento no campo das


pesquisas em educação que vem crescentemente sendo adotada como opção
metodológica e posição político-epistemológica nos últimos anos, trazendo
contribuições para pensar os currículos, as escolas, as práticas e a formação
docente, entre outras temáticas relevantes.

Consideramos especialmente nesse campo a centralidade das práticas e


procuramos “fazer o caminho caminhando” tendo em vista tanto quanto possível, os
movimentos das pesquisas nosdoscom os cotidianos de acordo com Nilda Alves (2008),
a saber: 1) executar um mergulho com todos os sentidos no que desejamos estudar; 2)
virar de ponta cabeça para compreendermos como limites o que nos habituamos a ver
como apoio; 3) beber em todas as fontes, incorporando fontes variadas; 4) escrever de
uma nova maneira, no intuito de alcançarmos todos a que precisamos falar, narrando a
vida e literaturizando a ciência e 5) destacar o sujeito no coração dessas produções, já
que o que interessa nas pesquisas são as pessoas.

sumário 1775
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Duas perguntas animam centralmente essa investigação na tessitura de


compreensões: 1) como é possível tematizar a escrita universitária com potencial
emancipatório na formação docente, atentando para as diferentes representações
circulantes e formas de percebersentir as produções dos licenciandos, considerando a
complexidade curricular posta? 2) que criações curriculares escritas os licenciandos
(enquanto sujeitos autores nos/dos currículos pensadospraticados nas relações que
tecem nos espaçostempos da licenciatura) fazemproduzem em seus cotidianos
inventados para usarem as regras e os produtos dados para consumo no contexto
universitário?
No sentido mais freireano possível, me disponho a caminhar, levando em
consideração: “uma pedagogia da pergunta”, que se propõe a compartilhar reflexões e
indagações; “uma pedagogia dos sonhos possíveis”, que reflete no entorno da utopia e
nos pede para ver a história como possibilidade e que compreende a “educação como
prática da liberdade”, “aprendendo com a própria história” na história do outro. Com
Freire caminhamos porque com ele aprendemos que a despeito das práticas de
reprodução e controle existentes nas escolas, seguimos resistindo, nos interessando pelo
que contraria justamente a tendência reguladora e homogeneizante nos espaços
escolares, tendo em vista que: “(...) a ideologia fatalista, imobilizante, que anima o
discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em
convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e
cultural, passa a ser ou a virar ‘quase natural’” (FREIRE, 1996, p. 21).
São centrais, na discussão proposta, as noções de escrita e de emancipação. Da
escrita, interessa a conversa cultural entre a história da escrita e a escrita da história, a
que se propõe Michel de Certeau (1982). Interessam a produção social da escrita tal
como discute Raymond Williams (2014) e o que mais se propuser a pensar em como se
relacionam as culturas do escrito e da oralidade, a oralidade na ordem da escrita e o que
vai ou não (e porque vai ou não) para o papel na nossa sociedade grafocêntrica.
Aqui pergunto-me como são as escritas curriculares propostas e criadas no
cotidiano da formação de professores de Língua Portuguesa? Como essas escritas
dialogam com o mundo? Como premissa, admito que há possibilidades emancipatórias
nas escritas dos licenciandos e que elas produzem experiência, no sentido como nos
provoca Larrosa (2017):

sumário 1776
VII Seminário Vozes da Educação

A experiência, e não a verdade é o que dá sentido à escritura. Digamos, com


Foucault, que escrevemos para transformar o que sabemos e não para
transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a escrever é a possibilidade
de que esse ato de escritura, essa experiência em palavras, nos permita
liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos para
ser outra coisa, diferentes do que vimos sendo. Também a experiência, e não
a verdade, é o que dá sentido à educação. Educamos para transformar o que
sabemos, não para transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a educar
é a possibilidade de que esse ato de educação, essa experiência em gestos,
nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que
somos, para ser outra coisa para além do que vimos sendo.

Da escrita docendo, noção que venho desenvolvendo no entendimento de que há


uma escrita peculiar desenvolvida durante a formação docente inicial dos licenciandos,
busco aspectos idiossincráticos, de valor expressivo significativo para aquele que
escreve nessa etapa da formação.
Da noção de emancipação, busco, sobretudo, convergências com o pensamento
de Santos (2011, 2013) que, procedendo a uma crítica do modelo de racionalidade
ocidental (uma razão indolente), estuda em que medida a globalização alternativa
produz “a partir de baixo” e quais são as suas possibilidades e seus limites. Com vistas a
“combater os excessos de regulação da modernidade através de uma nova equação entre
subjetividade, cidadania e emancipação”, Santos (2013, p. 278) explica que:

(...) a emancipação não é mais do que um conjunto de lutas processuais, sem


fim definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido
político de processualidade das lutas. Esse sentido é, para o campo social da
emancipação, a ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas em
todos os espaços estruturais da prática social (...).

Contra o desperdício da experiência, o mesmo autor busca esclarecer o caminho


“do conhecimento-regulação ao conhecimento-emancipação” dizendo que:

O paradigma da modernidade comporta duas formas principais de


conhecimento: o conhecimento-emancipação e o conhecimento-regulação. O
conhecimento-emancipação é a trajetória entre um estado de ignorância que
designo por colonialismo e um estado de saber que designo por
solidariedade. O conhecimento-regulação é uma trajetória entre um estado de
ignorância que designo por caos e um estado de saber que designo por
ordem. Se o primeiro modelo de conhecimento progride do colonialismo para
a solidariedade, o segundo progride do caos para a ordem. Nos termos do
paradigma da modernidade, a vinculação recíproca entre o pilar da regulação
e o pilar da emancipação implica que dois modelos de conhecimento se
articulem em equilíbrio dinâmico. Isto significa que o poder cognitivo da
ordem alimenta o poder cognitivo da solidariedade e vice-versa. (Santos,
2011, p. 78).

sumário 1777
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Proponho a tessitura de compreensões em torno dos pensamentos do referido


autor com as concepções que baseiam a percepção que Paulo Freire desenvolveu sobre
emancipação em várias de suas obras e que Adorno (1995) desenvolve em Educação e
Emancipação. Nesse sentido, que tipos de trajetórias estamos reforçando na formação
docente? Que conhecimentos estamos enfatizando nos currículos? Como se conformam,
nesse contexto, possibilidades de escritas emancipatórias? Essas são algumas das
questões que proponho problematizar nessa pesquisa.
Considerando a complexidade do cotidiano e compreendendo a necessidade de
uma abordagem também de natureza complexa para embasamentos, optamos pela
realização de conversas e as entrevistas em redes no lugar de roteiros fechados de
entrevista, indo ao encontro do proposto por Garcia (2014) sobre os encontros como
metodologia de pesquisa e formação de professores. Garcia (2014, p. 13) aponta que:

Mobilizados pelos diálogos em rodas de conversa (...) e junto ao


investimento em narrativas, entendidas também como forma de deslocamento
e ressignificação da docência, das escolas e dos cotidianos, contribui para
interrogar e desconstruir representações de docência e escola, vistas como
obstáculo à produção micropolítica e cultural das práticas educativas, dos
currículos, das possibilidades das escolas e dos possíveis da docência.

Nos processos investigativos em foco, as conversas, incluindo àquelas


partilhadas cartograficamente durante as entrevistas em rede, são entendidas como
procedimento metodológico potente, posto que dão pistas dos processos de formação
que estão em curso e neles intervêm, admitindo que, enquanto escreve, fala e lê sobre si
e sobre seu fazer, o sujeito pensa e pode reelaborar suas formas de ser, fazer e pensar. É
nessa proposição de caminho que, como Nilda Alves (2008, p. 31), me coloquei a
refletir:

(...) é possível transmitir o que for sendo apreendido/aprendido, nesses


processos e movimentos, da mesma maneira como transmitia o que
acumulava/via/observava em uma pesquisa dentro do paradigma dominante?
Ao colocar a pergunta do jeito que a fiz, significa que entendo que é preciso
uma outra escrita para além da já aprendida. Há assim uma outra escritura a
aprender: aquela que talvez se expresse com múltiplas linguagens (de sons,
de imagens, de toques, de cheiros, etc.) e que, talvez, não possa ser chamada
mais de “escrita”; que não obedeça à linearidade de exposição, mas que teça,
ao ser feita, uma rede de múltiplos, diferentes e diversos fios; que pergunte
muito além de dar respostas; que duvide no próprio ato de afirmar, que diga e
desdiga, que construa uma outra rede de comunicação, que indique, talvez,
uma escritafala, uma falaescrita ou uma falaescritafala.

sumário 1778
VII Seminário Vozes da Educação

Considera-se, por ora, que essa pesquisa que se desenha, pretendendo


compreender os matizes das escritas docendo dos licenciandos, acompanhe processos
que requerem abertura de espaço para que se construam falaescritafalas mais livres,
solidárias e coletivas, considerando os atos de criação, composição, significação e de
ficção que envolvem as narrativas.

A potência da oralidade na produção de conhecimento escrito 3


Procurando compreender a escrita como instrumento de intervenção social, a
problematizo enquanto prática corrente na universidade sem perder de vista que ela
tanto opera a infinita dinâmica nos cotidianos, quanto está intrinsecamente vinculada ao
sistema de produção por meio do poder escriturístico no domínio da linguagem.
Na complexidade do cotidiano, admito que quando há mobilização dinâmica de
escritas mais autorais, coletivas, solidárias, livres, ela ganha potencial para promover
emancipação, haja vista o reconhecimento daquilo que alunos e professores criam
juntos como sendo currículo. No entanto, não há dúvidas de que leituras e escritas
conformam narrativas nosdoscom os cotidianos escolares e, enquanto práticas escolares,
relacionam-se hegemonicamente com tentativas de estabelecimento de currículos
únicos, com fórmulas aparentemente universais de educação escolar, com o desejado
controle pelos modelos neoliberais de gestão. Nesse sentido, resistimos quando
assumimos possibilidades de praticar leituras e escritas que transgridam normas
arbitrariamente definidas quando estas não dão conta da complexidade inerente ao
cotidiano. Oliveira (2008, p. 53-54) afirma a esse respeito:

As práticas cotidianas, no entanto, para além de seus aspectos organizáveis,


quantificáveis e classificáveis, em função daquilo que nelas é repetição, é
esquema, é estrutura, são desenvolvidas em circunstâncias, ocasiões, que
definem modos de usar as coisas e/ou as palavras. Os utensílios, as formas
discursivas bem como as regras gerais do estar na sociedade são, no
cotidiano, marcados pelas operações de que foram objeto.

Admitimos inquestionável a centralidade dos usos das práticas de linguagem,


tanto orais quanto escritas, na vida cotidiana. Buscando “responder aos desafios que
produzimos para as pesquisas quando nos propusemos a afirmar os sujeitos, o vivido e o
ordinário como nossas interlocuções privilegiadas” (GARCIA, 2014, p. 89),
ressaltamos, dentro dessa temática, que não nos interessamos nem por uma visão

sumário 1779
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

dicotômica entre oralidade e escrita e nem pela noção predominante da supremacia


cognitiva da escrita no cotidiano.
Assumimos oralidade e escrita como atividades interativas, inter-relacionadas e
complementares que mobilizam a mesma língua, realizando-se, porém, de formas
diferentes e comportando variações próprias dos usos. No entanto, quando nos
aprofundamos nos estudos do campo para compreendermos os limites e as
possibilidades de ambas, nos deparamos com questões que provocam deslocamentos,
principalmente no sentido de defender a fala enquanto manifestação oral viva da
linguagem e como potência de produção de saberes coletivos, haja vista os limites que a
escrita impõe nas sociedades grafocêntricas, como a nossa.
A esse respeito, Michel De Certeau, para quem a palavra se produz no jogo do
poder, aponta questões bastante pertinentes, sobretudo quanto ao uso feito da escrita
enquanto instrumento pela classe privilegiada, que funcionou e continua funcionando
como forma de dominação. Em A invenção do cotidiano, De Certeau (1994, p. 209)
aponta:

O domínio da linguagem garante e isola um novo poder, “burguês”, o poder


de fazer história fabricando linguagens. Este poder, essencialmente
escriturístico, não contesta apenas o privilégio de “nascimento”, ou seja, da
nobreza: ele define o código da promoção socioeconômica e domina,
controla segundo suas normas todos aqueles que não possuem esse domínio
da linguagem. A escritura se torna um princípio de hierarquização social que
privilegia ontem o burguês, hoje o tecnocrata. Ela funciona como uma lei de
educação organizada pela classe dominante que pode fazer da linguagem (...)
o seu instrumento de produção.

De Certeau destaca que nossas sociedades são escriturísticas e se propõe a ouvir


as vozes perdidas e múltiplas que foram afastadas justamente pela conquista de uma
economia moderna que se titularizou sob o nome dos escritos, das escrituras. Ouvir
vozes dentro de um sistema escriturístico aponta um movimento entendido por nós
como resistência; necessário para tentar compreender a instituição dos aparelhos
escriturísticos, possibilitada sobretudo pela emergência e expansão da imprensa.
Problematizamos a escrita então enquanto prática corrente na educação, sem perder de
vista que ela tanto opera a infinita dinâmica da cotidianidade, quanto está intimamente
vinculada ao sistema de produção por meio do destacado poder escriturístico no
domínio da linguagem. De Certeauusa o termo escriturário para designar tanto as
operações da escrita quanto o momento, a partir do século XVII, em que a escrita, além
de ser uma prática de poder e uma ferramenta dos saberes modernos, constitui também

sumário 1780
VII Seminário Vozes da Educação

um novo modo de produção, que modifica e articula simbolicamente a sociedade


ocidental. Nessa direção também caminha Raymond Williams (2011) quando ressalta
que os meios de comunicação, são eles mesmos, meios de produção. Em A Produção
Social da Escrita, Williams (2014, p. 4) explica que:

(...) a escrita é distinta de muitas outras formas de comunicação pelo fato de


que suas habilidades básicas – organizar palavras em uma forma material
convencional e ser capaz de lê-las – não surgem necessariamente como parte
de um processo básico de crescimento em uma sociedade. Uma língua falada,
nos termos de uma habilidade tanto para falar quanto para entender, surge
como parte de um processo normal de crescimento em uma sociedade
específica, exceto em caso de alguma incapacidade física individual. A
escrita, ao contrário, é desde o início uma habilidade sistemática que tem de
ser ensinada e aprendida. Dessa forma, a introdução da escrita e todos os
estágios subsequentes de seu desenvolvimento são intrinsecamente novas
formas de relação social. Há uma grande variação na forma como essas
habilidades são disponibilizadas, e isso tem um efeito significativo nas
relações incorporadas na escrita em condições históricas e culturais diversas.

Pontua em seguida (2014, p. 8), que “o que se entende até hoje como
relações normais de escrita e leitura, (...), poderia ser visto agora como relações
específicas e frequentemente problemáticas, ou mesmo precárias, em uma distribuição
desigual da escrita e da leitura e nas relações incertas entre formas de escrita e formas
de fala”.
De Certeau oferece recursos para a compreensão das práticas cotidianas e
destaca a fala como prática do tipo tática. Aponta que: “essas táticas manifestam
igualmente a que ponto a inteligência é indissociável dos combates e dos prazeres
cotidianos que articula, ao passo que as estratégias escondem sob cálculos objetivos a
sua relação com o poder que os sustenta, guardado pelo lugar próprio ou pela
instituição” (ibidem, p. 47), levando-nos a compreender que a escrita é,
hegemonicamente, uma prática do tipo estratégica – o que nos impõe o desafio de
buscar potência em outras escritas e maneiras de lidar com posicionamentos
preconceituosos da oralidade, tal como destacado por Marcuschi e Dionísio (2007, p. 7)
quando afirmam que: “A distinção entre fala e escrita vem sendo feita na maioria das
vezes de maneira ingênua e numa contraposição simplista (e) as posições continuam
preconceituosas para com a oralidade”.
Concebemos que cabem às interações orais a maior parte das aprendizagens e
realizações das atividades cotidianas. As percebemos como repletas de nuances que

sumário 1781
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

circulam na sociedade; fio condutor da relação entre os sujeitos, com ele mesmo, e com
o mundo, revelando como resistimos na dinâmica da vida social, cultural, política e
econômica dos nossos espaçostempos.
Interessam-nos assim, escritas que, enquanto práticas educativas da vida
cotidiana são desenvolvidas contra-hegemonicamente. Interessam-nos os praticantes da
vida cotidiana (CERTEAU, 1994) que criam modos de escrever contrariando o
descontextualizado, o imposto autoritariamente, o retrocesso na diversidade cultural
peculiar aos espaços escolares.
Nas nossas pesquisas buscamos sinalizar pistas a partir das nossas escolhas
teóricas, práticas e epistemológicas – sempre políticas. Escolhi trabalhar com as
conversas e as entrevistas em redes, entendendo-as como metodologias convergentes e
potentes na construção de caminhos de investigação. Tanto as narrativas individuais
captadas qualitativamente nas entrevistas, quanto as conversas na pesquisa são escolhas
metodológicas de base oral e que impõem desafios. A premissa aqui é a de através da
oralidade é possível contribuir para a superação de invisibilizações e silenciamentos na
produção de discursos nos currículos. Afirmamos compreender a oralidade enquanto
meio de expandir as percepções sobre as subjetividades que emergem nos contextos
escolares através da linguagem oral, na produção/compreensão curricular e na
fabricação de saberes coletivos nos/dos espaçostempos pesquisados
Quando nos estudos com os cotidianos, nos dispomos a investigar o que “passa
quando nada se parece passar” (PAIS, 1993), é no intuito mesmo de “encontrarmos
condições e possibilidades de resistência que alimentam a sua própria rotura” (ibidem,
p. 108).
Debruçar-me então sobre os modos como produzimos nossas falaescritafalas
considerando a complexidade do cotidiano significa, para mim, mais um desafio: o de
eleger o movimento como ponto de partida e de chegada.

Entre o tudo (produtor único dos sentidos) e o nada (assujeitamento completo


a uma estrutura sem frinchas), há uma prática cotidiana em que os sujeitos
não podem ser concebidos como “autômatos sintáticos”, “monstros da
gramática” e também – e no mesmo sentido – não podem ser concebidos
como meros porta-vozes da hegemonia discursiva em seu tempo.
(GERALDI, 2013).

Assim sendo, reafirmo como escolha políticaepistemológicametodológica, o


compromisso de seguir investigando práticas emancipatórias de escrita que vem sendo

sumário 1782
VII Seminário Vozes da Educação

oportunizadas na formação docente no intuito de que ganhem visibilidade na produção


de espaços e de ações de encontros e diálogos mobilizados pela na interlocução entre os
sujeitos e seus saberes.

Referências
ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Tradução Wolfgang Leo Maar. –
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

ALVES, Nilda; OLIVEIRA, Inês Barbosa. (orgs). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos


escolares: sobre redes de saberes. Petrópolis: DP et Alii, 2008. – Cotidiana e Pesquisa
em Educação.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes;


revisão técnica de Arno Vogel. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
______. A Invenção do Cotidiano I: as artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994 (12ª
edição em 2017).

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do


oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

GARCIA, Alexandra; OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Pesquisas nos/dos/com os


cotidianos: trajetória recente e novas aprendizagens. In: Aventuras de
conhecimento: utopias vivenciadas nas pesquisas em educação / organização Inês
Barbosa de Oliveira; Alexandra Garcia. – 1. Ed. – Petrópolis, RJ: De Petrus; Rio de
Janeiro, RJ: FAPERJ, 2014.

GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 5ª ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2013. – (Coleção linguagem).

LARROSA, Jorge. Elogio da escola. Tradução Fernando Coelho –1. Ed. – Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2017. – (Coleção Educação: Experiência e Sentido).

MARCUSCHI, Luiz Antônio e DIONÍSIO, Ângela Paiva. Fala e escrita. 1. ed., 1.


reimp. - Belo Horizonte: Autêntica, 2007. 208 p.

OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Currículos e pesquisas com os cotidianos: o caráter


emancipatório dos currículos “pensadospraticados” pelos “praticantespensantes”
dos cotidianos das escolas. In: FERRAÇO, Carlos Eduardo; CARVALHO, Janete
Magalhães (Orgs.). Currículos, pesquisas, conhecimentos e produções de
subjetividades. Petrópolis: DP et Alii, 2012. p. 47-70.

______. O Currículo como criação cotidiana. Rio de Janeiro: DP&A, 2012.

PAIS, José Machado. Nas Rodas do Cotidiano. Revista Crítica de Ciências Sociais. n.
º 37. Junho, 1993.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a


política na transição paradigmática / - 8. Ed. – São Paulo: Cortez, 2011.

sumário 1783
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós modernidade. – 14. ed. – São
Paulo: Cortez, 2013.

WILLIAMS, Raymond. A produção social da escrita. Tradução André Glaser. 1. Ed.


– São Paulo: Editora Unesp, 2014.

Notas
1- Os neologismos unidos grafados em itálico apresentam-se como recursos utilizados nas pesquisas
nos/dos/com os cotidianos, propostos por Alves (2008) como modo de romper com as dicotomias do
pensamento moderno e como possibilidade de produzir novos sentidos para aquilo que fomos levados a
perceber de maneira fragmentada. A junção dos termos possui justamente o sentido de mostrar a
consciência de uma superação de limites da nossa formação.
2- O neologismo faz referência específica ao período de formação inicial dos licenciandos, futuros
professores. Compreende a noção como possibilidade potente de dar visibilidade às peculiaridades do
referido período.
3- Parte dessa seção foi usada como contribuição ao Trabalho Encomendado à minha orientadora, Prof.a
Dra. Alexandra Garcia Lima, para a Anped 2019 (As múltiplas e complexas redes educativas e as
diferentes formas de produzir conhecimentossignificação para além dos textos escritos), sob o título: A
potência de outras escritas e da oralidade na produção de conhecimentos: redes educativas de resistência
nas pesquisas com os cotidianos, com parte intitulada: A oralidade como potência de produção de saberes
coletivos.

sumário 1784
VII Seminário Vozes da Educação

PROCESSOS FORMATIVOS DISCENTES: DESDOBRAMENTOS


ACADÊMICOS E PROFISSIONAIS

Alice Pereira Xavier Lage

1. Um campo em construção
O habitus é um conceito complexo e amplo, que foi utilizado por Aristóteles,
Durkheim, entre outros estudiosos de diferentes áreas: iconográfica, linguística,
sociológica (PANOFSKY, 1986; CHOMSKY, 2006; ELIAS, 2008; WEBER 279 ;
BOURDIEU, 1996, 2007a, 2007b, 2009, entre outros). O conceito foi traduzido da
palavra grega hexis, que Aristóteles definiu como “as disposições adquiridas do corpo
de da alma” (DUBAR, 2005, p. 77). Foi no século XIII que o termo foi traduzido para o
latim (habitus) por São Tomás de Aquino e analisado na Suma Teológica, adquirindo o
sentido de “disposição durável suspensa”, situada entre a “potência” e a “ação
propositada” (WACQUANT, 2007, p. 65).
Durkheim, por sua vez, empregou o conceito para analisar a natureza do trabalho
pedagógico. No texto Évolution pédagogique em France, Durkheim discute sobre este
estado profundo da alma, sobre o qual o educador deve exercer ação duradoura (apud
DUBAR, 2005). Contudo, é Bourdieu, estando a par das abordagens filosóficas do
conceito, quem o amplia, renovando a noção de habitus e propondo-a como meio de
“romper com a dualidade do senso comum entre indivíduo e sociedade”, na intenção de
captar a “interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade”
(WACQUANT, idem).
Em um dos capítulos da obra A socialização: construção das identidades sociais
e profissionais Dubar (idem) analisa a socialização como incorporação do habitus. O
autor sistematiza as abordagens deste conceito, resumindo algumas evocações de
Bourdieu sobre suas possibilidades de aplicação, evidenciando que o habitus deve ser
tomado enquanto “princípios geradores e organizadores de práticas e de

279
Particularmente no texto Wirtschaft und Gesellschaft (1918), publicado na obra Economia e Sociedade
(2009).

sumário 1785
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

representações” 280
. Dubar, revisitando o desenvolvimento da noção de
habitusbourdieusiano também lembra que este não deve ser reduzido às influências e
determinantes (no sentido de limites) da socialização primária, compreendida, por
exemplo, pelas ações familiares e educativas (intencionais ou não), mas às próprias
trajetórias sociais. Por outro lado, tais itinerários sociais não devem ser definidos apenas
pela cultura do grupo de origem, mas, sobretudo, pelas formas como estes grupos
projetam a descendência. Nesta acepção, importa analisar a posição social e os
comportamentos típicos da posição de classe 281, sem perder de vista a influência dos
percursos individuais e suas associações a campos sociais específicos. Por isso, o
habitus enquanto constructo teóricopode ser capaz de exprimir ao mesmo tempo uma
posição e uma trajetória.
A noção de habitus em Bourdieu (2009) sempre esteve confrontada com a visão
escolástica sobre o senso prático, que dizia respeito à lógica em ação e que concebia um
sujeito dotado de consciência, capaz de observar o mundo como espetáculo e construir
uma representação sobre ele. A representação, neste caso tomada como verdade, era
estratégia de compreensão e sinônimo da lógica prática da ação – um subterfúgio
teórico insuficiente para apreender a complexidade das ações sociais, na visão de
Bourdieu. O conceito de habitus, neste sentido, parece ter sido construído como
resposta a uma tradição utilitarista e a sua insuficiência em lidar com o essencialmente
subjetivo, fora de uma lógica causal de ação e reação, consciente na sua relação com o
mundo.
A noção de habitus em Bourdieu está estruturada pela posição do agente no
espaço social. A sociedade (espaço social e campos) conforma a posição dos agentes,
sendo simultaneamente contexto para a constituição das disposições e para as tomadas
de posição. As ações práticas dos agentes estão intimamente relacionadas à sua
socialização, que assumem forma(s) corporificada(s) por meio dos habitus e que se
expressam nas atitudes, gostos, opiniões, habilidades, valores e disposições. Em
movimentos que se retroalimentam, o habitus é uma interiorização da exterioridade e
uma exteriorização da interioridade. Os habitus, convertidos em ações, retornam ao
longo do tempo, reconfigurados ao espaço social.

280
O trecho trazido por Dubar (2005) foi retirado da obra Le Sens Pratique (BOURDIEU, 1980, p. 88).
281
Como fez Bourdieu (2007c), quando analisou o habitus na perspectiva do espaço dos estilos de vida,
indicando a associação entre o princípio gerador das práticas (gostos, escolhas, valores) às posições
sociais dos indivíduos: burguês (distinto), pequeno-burguês (pretensioso) e povo (modesto).

sumário 1786
VII Seminário Vozes da Educação

A noção de habitus vem sendo utilizada como uma teoria ampla, que tem se
prestado à tradução dos processos de socialização e aprendizagem do homem, desde
Aristóteles. SETTON (2002), ao propor uma releitura da noção de habitus, faz jus a sua
origem complexa, mas flexível e a utiliza como ferramenta para a compreensão dos
novos modelos de socialização e de formação de identidades. A autora exemplifica a
possibilidade do habitus ser uma ferramenta de análise útil num contexto cultural
amplo, no qual o mundo social é confrontado por diferentes agências de socialização.
Em alguns de seus trabalhos, vimos propostas bem-sucedidas de metodologias
inspiradas pela noção de habitus em Bourdieu (SETTON, 2005).
A teorização sobre o habitus, apesar de complexa, é tomada como capaz de
orientar o trabalho de campo e direcionar o olhar do pesquisador para as nuances da
experiência social dos agentes na execução de suas atividades familiares, estudantis e
profissionais.
Em diferentes trabalhos de pesquisa empreendidos, a adoção da perspectiva do
habitus, proporcionou elencar rotinas, disposições e habilidades, caracterizando o
conhecimento prático derivado das rotinas familiares e escolares, expresso nos valores,
opiniões e percepções sobre a vivência escolar, que se exteriorizam nas ações e nos
depoimentos de estudantes (BRANDÃO, 2010; BRANDÃO, CANEDO e XAVIER,
2012; XAVIER, 2015).

2. Formação escolar e acadêmica: caminhos de pesquisa


O conhecimento e o senso prático se expressam de maneira difusa, sendo
manifestos de forma complexa durante as experiências escolares e as trajetórias
profissionais. A perspectiva de construção e manutenção de um habitus
escolar/acadêmico (disposições duráveis relativas ao estudo e engajamento acadêmico)
e posteriormente de um habitus profissional (disposições duráveis e relativas ao
desempenho e identidade profissional),incluindo as disposições culturais, linguísticas,
entre outras relativas a essas dimensões, são temas instigantes de pesquisa para a área
sociológica educacional, que ainda carecem de aprofundamento.
O senso prático escolar ao qual nos referimos pode ser representado pelo modo
de agir adequado (“esperado”) de estudantes e profissionais, por ações que ocorrem de
uma forma considerada favorável, e em momento oportuno, que permitem a estes
agentes que “façam o que deve ser feito” nos contextos que envolvem demandas

sumário 1787
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

educacionais e acadêmico-profissionais. Importa-nos a aproximação entre o “esperado”


e o “experimentado”.
Em relação ao trabalho, a posição medular que este ocupa na formação das
identidades sociais encontra-se ancorada nas diferentes relações que se constituem a
partir do pertencimento profissional e no seu papel simultaneamente organizador e
desorganizador da vida social. Um exemplo disso pode ser evidenciado nos indivíduos
que se encontram sem trabalho ou naqueles que se encontram em funções, temporárias
ou não, para as quais não se projetaram e as influências que tais ausências ou
inadequações ocasionam nos protagonismos sociais.
Sennett (2008) por meio de entrevistas, com potência generalista, caracteriza “as
consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo”, desdobrando em uma análise
histórico-social dos aspectos atuais do mundo do trabalho, ressignificando rotina, ética,
flexibilidade e fracasso no contexto do trabalho executivo de norte-americanos. Dubar
(2005), a partir de pesquisas densas e envolvendo pesquisadores alinhados à diferentes
perspectivas teórico-metodológicas constrói uma tipificação “compreensiva” sobre as
identidades sócio profissionais, resultando em uma produção de conhecimento
considerável sobre as experiências simbólicas e estruturais do mundo do trabalho
francês.
A ambição em investigações deste tipo conceberia os estudantes e profissionais
(em formação ou formados), não como sujeitos perfeitamente informados sobre as
ações e suas consequências, como fariam os adeptos da análise racional sobre as ações
sociais, mas como agentes complexamente envolvidos no jogo, a ponto de esquecerem
que jogam. Esse senso prático dos agentes sociais, bem ou mal ajustados às propostas
das instituições escolares e organizações empresariais em nosso contexto, são campos
oportunos de investigação.
Sabemos que as diferentes instituições sociais familiares, escolares,
universitárias e empresariais incidem de maneira difusa e complexa na estruturação dos
habitus acadêmicos e profissionais. Neste cruzamento de disposições, interessa-nos o
que estas estruturas e suas diferentes combinações podem gerar/engendrar.
Através das representações estudantis e profissionais seria possível descrever os
habitus, sistemas de disposições, inclinações e habilidades acionadas na experiência
acadêmica e profissional? Tais questões, alinhadas a desenhos de pesquisa voltados a
inventariar e caracterizar esquemas de percepção a partir das narrativas autobiográficas
de formação (LEJEUNE, 1996; PINEAU & MICHÉLE, 2011).

sumário 1788
VII Seminário Vozes da Educação

Nesta direção, as expectativas de futuro e experiências individuais expressam


potências e constrangimentos subjetivos e implícitos que tomam forma concreta
socialmente. A ideia de que os campos acadêmicos e profissionais apresentam
especificidades, existindo enquanto campos sociais, que se relacionam a mercados de
bens e sistemas de troca, dotados, portanto, de habitus específicos (BOURDIEU,
2007c), reforça a potencialidade desta seara de investigação e sua inter-relação.
Os comportamentos dos diferentes agentes sociais não se convergem em “ações
precedidas de desígnios premeditados e explícitos” (BOURDIEU, 2007a, p. 168). Os
habitus dos agentes, seus comportamentos e ações – as chamadas razões práticas –
consideradas naturais e aparentemente desinteressadas, são fruto de uma espécie de
cruzamento de disposições, adquirido socialmente nos espaços das diversas
organizações sociais.
O habitus possui por característica uma atuação ativa e não intencional, sendo
produto de um aprendizado inscrito no corpo. As ações as quais nos referimos são
aquelas que estão assimiladas de tal forma, que vão se distanciando de cálculos ou
intenções manifestas, mas que ao mesmo tempo, não se constituem em simples
automatismos. É, portanto, por meio da análise e observação de diferentes rotinas e
práticas e especialmente na investigação das percepções sobre as práticas que nos
aproximaremos do habitus dentro da noção bourdieusiana: uma “filosofia da ação,
chamada às vezes de disposicional”, afastada do finalismo puro e análise utilitarista
(BOURDIEU, 1996, p. 10).
O habitus está em íntima relação com o campo, pois é nele que atua e se
estrutura uma lógica da ação irremediavelmente conectada pelo contexto social em que
é experimentada (BOURDIEU, 1996). Discutimos anteriormente a respeito das
disposições escolares engendradas na escola e na família. Nas escolas e universidades,
as rotinas, hábitos e posturas são constituídos por meio de propostas, que orientam
diferentes projetos institucionais. De semelhante forma, ocorre nas organizações
empresariais. Sabemos que os agentes são dotados de habitus e capitais específicos
adquiridos ao longo de suas trajetórias e que se adequam aos campos em se circulam. A
combinação destes habitus e destes capitais em relação ao contexto produzem
comportamentos que podem se desdobrar em sucesso e insucesso. Algumas perguntas
continuam inspiram futuras investigações: “Em que medida os habitus acadêmicos
orientam as escolhas profissionais (área de interesse, função, ambições de
especialização e pós-graduação)? Quais experiências tornam-se estruturantes,

sumário 1789
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

perpassando a esfera escolar e familiar à vida profissional?” (XAVIER, 2013, p. 190).


E, sobretudo: Como a formação em nível superior pode imprimir um habitus? É
possível associar formação acadêmica à aquisição de um habitus profissional?
A diversificação do aporte metodológico (por meio da utilização de surveys,
entrevistas e observações) na investigação das manifestações do habitus objetiva
caracterizá-lo nos diferentes aspectos manifestos. Chegar à síntese de um habitus
(acadêmico, profissional ou qualquer outro) não deve ser a pretensão de nenhuma
iniciativa de investigação deste tipo, mas sim, o empenho por aproximações a respeito
destas disposições tem se mostrado possível, especialmente a partir de de tipos
inspirados pela perspectiva weberiana.
Em uma perspectiva dialógica e dialética investigar as relações entre
atuação/desempenho escolar e atuação/desempenho profissional para a construção de
conhecimentos sobre a relação entre formação superior e inserção profissional.
É necessário manter-se diligente à caracterização, dentro dos limites da
investigação, das relações entre as disposições e as experiências sociais de estudantes e
profissionais, bem como das instituições correlatas (escolas, universidades, empresas,
etc.) – contexto das experiências.
Instrumentos de pesquisa, tais como, questionários, entrevistas, estruturadas,
semiestruturadas ou em profundidade, com alunos, profissionais recém-formados
deverão ser momentos oportunos para aprofundar a caracterização das percepções e sua
relação com a vida acadêmica, vida profissional e o mundo do trabalho. Se feitas a
contento, nestas entrevistas aparecerão pormenores sobre a rotina doméstica, escolar e
profissional, simpatias, antipatias, afeições, aversões, gostos e desagrados, que se
convertem em habilidades, tendências e disposições estruturantes dos percursos
formativos acadêmicos e profissionais. As experiências objetivas do cotidiano do
trabalho, além das relações de hierarquia e projeção na carreira serão também fatores
fundamentais na compreensão das relações entre formação acadêmica e mundo do
trabalho.

3. Uma pesquisa de longa via: formação escolar, acadêmica e inserção


profissional
Vimos que os pais de instituições escolares públicas participam da vida escolar
dos estudantes e percebemos que os níveis menores de escolaridade dos pais das escolas
públicas investigadas não têm se configurado como impeditivos de uma atitude

sumário 1790
VII Seminário Vozes da Educação

empenhada na escolarização dos filhos. A este respeito, identificamos indícios de que o


monitoramento em relação às tarefas escolares, por exemplo, seja mais acentuado nas
famílias das escolas públicas investigadas. A postura dos pais das escolas públicas
denota uma relação com a escolarização dos filhos que contraria boa parte do que se
considera senso comum, como a questão da “culpabilização” das famílias sobre o
fracasso escolar. Há novos arranjos nestas relações sociais, a despeito das posições de
classe, tendo em vista que estas fronteiras são de difícil limitação no nosso contexto
social atual.
Ao entrevistarmos pais e alunos em suas próprias residências, por exemplo,
pudemos construir dados consistentes sobre o cotidiano dos estudantes e suas rotinas em
casa e na escola (XAVIER, 2013). A pesquisa foi realizada em instituições de ensino
públicas, estando envolvidos diferentes agentes (profissionais, pais e estudantes).
Com isso, flagramos algumas formas de organização do tempo, ritmos de
estudo, entre outros comportamentos dos alunos e das famílias para lidarem com as
questões escolares. Tais aspectos, por sua vez, indicavam estruturar o habitus
institucional, cuja identificação foi possível na investigação com os agentes; ainda que
de forma ambivalente, os tipos construídos extrapolassem os projetos institucionais das
escolas. Em outras palavras, evidenciou-se a essência flexível e dinâmica do habitus no
reflexo de possíveis tipos de trajetórias escolares em instituições com alta qualidade do
ensino.
No contexto da referida pesquisa, assim como em outros meios sociais, as
disposições, escolares, estéticas, culturais e familiares apresentam gradações e nuances
entre os agentes sociais, entre as organizações e entre os agentes de uma mesma
organização social.
Assim sendo, ainda que tenhamos em mente que a posição social destas famílias,
os diferentes tipos de ocupação dos pais e os níveis de escolarização que possuem,
tenham forte associação às formas de acompanhamento e participação escolar, vemos
indícios de novas relações com a escola, que estando mais ou menos ajustadas às
posições e pertencimento de classe das famílias, não deixam de apresentar nuances e
rearranjos contextuais instigantes, que merecem ser investigados à luz da mudança e
crescimento observado nas camadas médias (SOUZA e LAMOUNIER, 2010), bem
como de suas expectativas educacionais.
Tal pesquisa ilustrou como a investigação do habitus precisa ser interpretada em
relação aos contextos sociais, tendo em vista que as disposições são forjadas em

sumário 1791
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

rearranjos e nas trajetórias de agentes que guardam influências, mas que são sempre
protagonistas, demonstrando que é possível e necessária a composição de arranjos
metodológicos voltados para uma Sociologia do Sujeito e uma Sociologia de Si
(MICHEL, 2012).
A ambição da pesquisa foi a de um olhar compreensiva sobre o conjunto de
disposições escolares favoráveis (cognitivas e comportamentais, objetivas e subjetivas),
caracterizando práticas e hábitos que são base da qualidade de ensino, nos levou a
produzir um grande volume de dados. Tínhamos em mente todo o tempo a variação de
escalas de observação (REVEL, 1998) nesta investigação exploratória do habitus
escolar.
Este panorama metodológico de pesquisa poderia retratar a articulação de
perspectivas gerais (de longe) com as mais próximas (de perto). Pais e filhos foram
entrevistados em casa, na escola, numa tentativa de nos aproximarmos da
microssituação (COLLINS, 2000), concebendo a entrevista como um espaço para a
reflexão sobre as ações e como momento privilegiado para delinear as impressões
pessoais sobre as rotinas e valores constitutivos do habitus. O complexo conceito de
habitus pode funcionar neste contexto como um elo entre macro e micro abordagens, na
medida em que carrega em seu significado as disposições e valores individuais, bem
como os elementos estruturais do campo social em que foi forjado. Da análise da
sociedade a uma sociologia do indivíduo, o conceito de habitus e das disposições
cultural e socialmente herdadas ilustra a conexão entre ações individuais e coletivas.
De forma semelhante, porém ampliada, à análise das impressões
familiares, apresentamos estas sínteses, antecedidas de quadros contextuais, como o
estabelecimento de possível argumento de autoridade, emoções identificadas durante as
entrevistas (empatia, timidez, apatia), procurando destacar a linguagem do corpo –
entendido como elemento que contribui fortemente na modelagem do habitus
(BOURDIEU, 2011a: 234). Na análise das entrevistas, foi respeitada a integridade dos
textos, com ênfase às expressões nativas dos entrevistados.
O corpo socializado desenvolve propensões e aptidões, que são condições
particulares que os munem de disposições diferenciadas para entrar no jogo. Bourdieu
(2007a, p. 184-5) esclarece, dizendo que o princípio da ação está numa interseção “do
corpo no mundo social e do mundo social no corpo”. A investigação do habitus
acadêmico e profissional se articula aos indivíduos, aos pertencimentos familiares e às
instituições acadêmicas e profissionais, com seus projetos e práticas recorrentes,

sumário 1792
VII Seminário Vozes da Educação

contudo, não se deve ignorar a influência de outras importantes instâncias de


socialização, como as mídias, por exemplo. Quanto melhor nos aproximarmos dos
contextos e condições de atribuição de “significados aos objetos e eventos” (BECKER,
2007) maior precisão terão as descrições sociais desses significados.
As análises trazidas aqui, derivadas de investigações pregressas, denotam
particularidades que somente podem ser desdobradas parcialmente para outras
realidades. Ao mesmo tempo, Bourdieu (2007a, p. 191) nos recorda que “existe muito
do coletivo em cada indivíduo socializado”, o que permite caracterizar uma classe de
agentes ou classes de habitus.
A ênfase do estudo esteve sobre as narrativas dos estudantes. Com isso,
flagramos algumas formas de organização do tempo, ritmos de estudo, entre outros
comportamentos dos alunos e das famílias para lidarem com as questões escolares e
seus desafios. Na investigação chamou-nos atenção as características de seus percursos
em busca do sucesso escolar-profissional e as peculiaridades das experiências
educativas em escolas públicas. Meninos e meninas de 14 e 15 anos demonstravam
muitas estratégias nas projeções escolares e profissionais. As diferenças marcantes entre
os estudantes das escolas investigadas demarcam as peculiaridades das experiências
escolares demarcadas pelas posições sociais e de classe. Na escola pública podemos
identificar um esforço de reconversão em vista de uma herança (cultural e financeira)
escassa e com a presença de um alto capital informacional que leva alunos e famílias a
investirem nas disposições de esforço, senso de sacrifício, autonomia e valorização das
práticas escolares.
A projeção de si e gestão de si (DELORY-MOMBERGER, 2014, 2012) –
projeto de vida acadêmica e profissional dos estudantes - tomaram grande proporção na
investigação sobre o habitus escolar. O sujeito biográfico emerge na condição
institucional destas unidades escolares. Como se dá a formação para o mundo do
trabalho e a inserção neste? Quais são as relações entre o habitus acadêmico e
o habitus profissional?
Há constatação de muitos aspectos narrados outrora; atualmente alguns
estudantes estão se formando no ensino superior, outros já formados e inseridos no
mundo do trabalho. As projeções narradas acerca de sete anos atrás nos convidam a
novas investigações hoje por meio das entrevistas em profundidade e oportunidades de
construções e projeções das narrativas de dois estudantes que participaram da pesquisa

sumário 1793
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

em 2013. Os indivíduos são irmãos e concluíram os cursos de Medicina e Biologia,


respectivamente.
A partir da perspectiva do sujeito buscar-se-á compreender as relações entre
atuação/desempenho escolar e atuação/desempenho profissional para a construção de
conhecimentos sobre a relação entre formação superior, inserção profissional, mundo do
trabalho e sua relação com os processos de escolarização.

4. Um horizonte em construção
Espera-se, em futuro próximo construir um corpus de pesquisa que possa
caracterizar as relações entre formação superior e inserção profissional, aproximando
assim educação e mundo do trabalho; desenvolver instrumentos e estratégias de
pesquisa em composições metodológicas menos ortodoxas e mais aptas a captar a
complexidade do processo de formação discente e sua inserção no mundo profissional.
Almejamos estimular e ajudar a construir quadros teórico-metodológicos que
contribuam para a aproximação entre as necessidades de qualificação profissional e o
desenvolvimento de programas de formação contínua (FONTOURA, 2019; LEITE &
FONTOURA, 2018). Além disso, espera-se contribuir para análises sociais lastreadas
em pesquisas empíricas que auxiliem nos planejamentos das instituições e organizações
sociais envolvidas, de forma a impactar itinerários formativos discentes e docentes,
programas de estágio e projetos pedagógicos de formação acadêmico-profissional.
Em um mundo social, que cada vez mais se configura como líquido e fluido
(BAUMAN, 2007), no qual tantos estudos insistem, ainda, em analisar o indivíduo e a
sociedade como entidades dissociadas (ELIAS, 1994; CORCUFF, 2001), sigamos
impulsionados a construir desenhos metodológicos menos ortodoxos, humanos,
contextualizados e condizentes à complexidade da vida social em aproximação entre os
olhares, vozes e experiências de alunos e professores.

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sumário 1794
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sumário 1797
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

MAPEAMENTO DO PERCURSO HISTÓRICO DA INFORMÁTICA E


TECNOLOGIA NAS ESCOLAS BRASILEIRAS: TECENDO ALGUMAS
REFLEXÕES

Danielli Cristina Machado Lidugério


UERJ/FFP e PMN/PMM
danielilidugerio@gmail.com

Introdução
O conhecimento vem sendo o maior, senão o mais importante fio condutor do
avanço e desenvolvimento humano, estando a serviço da sociedade como construção
histórica, socioeconômica e como relação de poder, partimos do pressuposto que deter o
conhecimento, é apropriar-se de um bem cultural, que historicamente vem sendo
colonizado pelos grupos sociais de alto poder aquisitivo, induzindo as desigualdades
educacionais evidenciadas nas escolas públicas. Considerando estas premissas, o estudo
estrutura-se a partir da dualidade entre avanços e desafios das políticas públicas a
respeito das TIC implementadas na educação brasileira.
Observando o notório e extenso investimento que o Brasil vem fazendo em prol
da democratização do acesso à tecnologia e à internet, percebemos que ainda assim os
projetos não alcançaram todo território nacional de maneira adequada, satisfatória e
inclusiva, sobretudo para os integrantes das camadas mais populares.
A educação brasileira vem acompanhando o avanço tecnológico, na medida que
suas políticas apontam para a modernização dos meios numa perspectiva de prevalência
econômica.
Julgamos importante discorrer sobre as aproximações-distanciamentos entre a
tecnologia da informação e comunicação e educação afim de refletir sobre o papel de
ambas na atual conjuntura social brasileira para que as TIC não sejam reconhecidas
apenas como mero recurso instrumental potencializadora das propostas de
desenvolvimento econômico, com um fim em si mesma, contrapondo-se à sua própria
finalidade como elemento estruturante; e mesmo a educação não seja exclusivamente
um caminho para a modernização social.

sumário 1798
VII Seminário Vozes da Educação

Nesse sentido concordamos com Nelson Pretto que complementa dizendo que
“as finalidades próprias do sistema educacional têm sido relegadas a um patamar
secundário, [...] sendo utilizado como uma mera estratégia para a consolidação dos fins
propostos por outras áreas, em especial a [...] econômica e a [...] técnico-científica.
(BONILLA; PRETTO, 2000, s/p).
No escopo dessas discussões, buscamos neste recorte enfatizar o mapeamento do
percurso histórico da informática e tecnologia nas escolas brasileiras destacando as
principais iniciativas de informática educativa desenvolvidas no país.

Polifonia de vozes que constituem o panorama sobre a informática na educação


brasileira – EDUCOM
Para entendermos como estão configurados os espaços das salas de informática
nas escolas de periferia, faz-se necessário compreender o ponto de partida do projeto
instituído para a inserção da informática nas escolas do país.
Diante das perspectivas de progresso e objetivos de informatização da sociedade,
começaram a surgir iniciativas em prol da informatização particularmente na educação.
O Educom se lança como o primeiro projeto que discute a utilização de computadores
no ensino de física na USP de São Carlos. A política teve como signatários a
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), responsáveis pelas
primeiras investigações sobre uso dos computadores na educação brasileira.
De acordo com alguns registros, a Universidade Federal do Rio de Janeiro foi a
pioneira no uso de computadores. Em suas atividades acadêmicas o equipamento era
utilizado como objeto de pesquisa com uma disciplina voltada para o ensino de
informática. Em 1966 o Departamento de Cálculo Científico deu origem ao primeiro
núcleo sobre informatização no país, o Núcleo de Computação Eletrônica (NCE).
Em 1973, surgiram as primeiras iniciativas na UFRGS, com o primeiro estudo
utilizando terminais de teletipo 282 e display (que eram telas de computadores bem
diferentes das que temos hoje) num experimento simulado de física para alunos do
curso de graduação.

282
O teletipo é um sistema de transmissão de textos, via telégrafo, por meio de um teclado que permite a
emissão, a recepção e a impressão da mensagem. Ele foi inventado em 1910 e permitiu o envio de
mensagens a distância utilizando o código Baudot, criado por Émile Baudot em 1874.

sumário 1799
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

De acordo com Nascimento (2007, p.13), no ano de 1976, um grupo de


pesquisadores da Unicamp visitou o MEDIA-Lab do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts nos Estados Unidos MIT/EUA. Essa visita possibilitou o envolvimento
de especialistas das áreas de computação, linguística e psicologia educacional, dando
origem às primeiras investigações sobre o uso de computadores na educação, utilizando
uma linguagem de programação chamada Logo.
A partir de 1977, o referido projeto começou a envolver crianças sob a
coordenação de
dois mestrandos em computação, instituindo em 1983, o Núcleo Interdisciplinar
de Informática Aplicada à Educação (Nied) da Unicamp, com o apoio do Ministério da
Educação (MEC), tendo o Projeto Logo como o modelo de sua pesquisa, durante vários
anos.
Representantes da Secretaria Especial de Informática (SEI), do MEC, do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da
Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) foram os principais responsáveis pelo
planejamento das primeiras ações na busca por caminhos capazes de propiciar um
projeto nacional de uso de computadores na educação, que tivesse como princípio
relevante o respeito à cultura, aos valores e aos interesses da comunidade brasileira.
Após a realização do primeiro seminário, Seminário Nacional de Informática na
Educação, na Universidade de Brasília (UnB), em agosto de 1981, foi composto um
grupo de trabalho intersetorial com representantes do MEC, da SEI, do CNPq e da
Finep para elaboração de subsídios para um futuro Programa de Informática na
Educação que proporcionasse a implantação dos sugeridos centros-piloto e colaborasse
no planejamento dos principais instrumentos de ação, destacando a importância de se
pesquisar o uso do computador como ferramenta auxiliar do processo de ensino-
aprendizagem.
No projeto brasileiro, o computador passou a ter um papel de incentivo às
mudanças pedagógicas, imprimindo uma forma inovadora ao projeto Educom, de
acordo o livro O aprender e a Informática A arte do possível na formação do professor
(ALMEIDA, 1999).
A proposta do projeto era o uso da tecnologia pela busca, a seleção e interrelação
de informações que promovessem a construção de novos conhecimentos a fim de
propiciar a compreensão e transformação do seu contexto histórico-social. E apesar da

sumário 1800
VII Seminário Vozes da Educação

sua amplitude no que tangia as ações, a proposta limitou-se a implementar os cinco


centros-pilotos.
Na década de 80 as universidades começaram a expandir seus experimentos para
dentro das escolas, incluindo as escolas públicas. Em Campinas –SP duas escolas
receberam o Projeto Educom – Unicamp onde havia atividades extracurriculares de
informática passando posteriormente a integrá-la no currículo.
Os profissionais relatavam que inicialmente não se sentiam preparados e até
mesmo sentiam-se constrangidos por não dominar a ferramenta de interação com os
alunos, mas que os momentos de reflexões do grupo serviram para rever seus valores,
conceitos e atitudes, dando lugar a um trabalho mais colaborativo em que, tanto
professores como alunos, adotaram a postura de aprendizes.
Na UFRGS o Projeto Educom concentrou-se na preparação dos professores no
ambiente. Logo, visava propiciar aprendizagens autônomas em crianças, atuando em
três linhas: pesquisa básica, formação do pesquisador e pesquisa aplicada na formação
do educador.
O Laboratório de Estudos Cognitivos (LEC) atuava no Curso de Magistério
numa escola estadual em Nova Hamburgo e logo teve a iniciativa de envolver empresas
privadas na promoção de ações comunitárias que aliassem tecnologia e qualidade do
aprendizado no trabalho com a abordagem. Posteriormente trataram de descentralizar
suas ações, inserindo subcentros nas próprias escolas, a fim de aproximar-se da
realidade dos alunos, atendendo desde a pré-escola até 4ª série do ensino fundamental,
baseadas nas teorias de Jean Piaget283
O termo facilitador começa a ser utilizado nesse campo do fazer profissional
diante da situação de aprendiz desse professor, que cada vez mais precisava tomar
consciência da sua própria aprendizagem. Seu papel era o de ajuda a facilitar o
desenvolvimento do aluno, desafiando-o a buscar soluções alternativas e apropriadas
frente as certezas inadequadas.
Na década de 90, o LEC passa a introduzir a troca de informações entre pessoas
em ambientes de comunicação diversos via rede de computadores, e em seguida, utiliza-
se da linguagem multimídia de aprendizagem, passando também a realizar estudos sobre

283
Por meio de várias observações, com crianças, o professor e biólogo suíço Jean Piaget (1896- 1980)
deu origem à Teoria Cognitiva. Ele valorizou o potencial infantil pela legitimidade cognitiva (ligada ao
saber), social, afetiva (ligada à postura e sentimentos) e cultural. Segundo o pesquisador, existem quatro
estágios de desenvolvimento cognitivo no ser humano, relacionados com o saber: Sensório-motor, Pré-
operacional, Operatório-concreto e Operatório-formal.

sumário 1801
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

os processos de construção de apresentações e a atuar na formação de professores pela


rede.

Questões sobre a Informática na periferia: entendendo as ações do PROEM


Uma das primeiras iniciativas de trazer a informática atrelada a educação e
periferia foi a partir do programa denominado Promoção Educativa do Menor
(PROEM), criado no Distrito Federal na década de 80, mantido pela Fundação
Educacional e posto em prática na Escola Parque da Cidade, cuja clientela eram
crianças e adolescentes que viviam ou trabalhavam nas ruas. Iniciou como projeto
experimental e posteriormente se firmara como escola aberta. Permanece em
funcionamento até os dias atuais.
De acordo com o regimento interno das escolas da rede pública de ensino do
Distrito Federal, a Escola Parque da Cidade – PROEM é uma escola de natureza
especial, integrada estruturalmente a SEEDF e vinculada pedagógica e
administrativamente à Coordenação Regional de Ensino do Plano Piloto/Cruzeiro. O
regimento em seu Art. 403 reza sobre o objetivo da escola:

A Escola do Parque da Cidade – PROEM tem como objetivo geral promover


a escolarização de crianças e adolescentes em peculiar situação de risco e ou
vulnerabilidade, por meio da articulação com a rede de proteção social, com
vistas à (re)integração escolar na rede pública de ensino do Distrito Federal.
(BRASIL, 2015, p. 126).

A instituição atende ao ensino fundamental, em regime integral, estudantes entre


11 e 18 anos. Sua capacidade de atendimento em média é de 180 educandos,
funcionando em horário integral. Além de oferecer o mínimo três refeições reforçadas,
noções práticas de higiene pessoal, cursos no contraturno e passe estudantil. Foi
oficializada pela Resolução nº 453, em 18 de fevereiro de 1981.
A escola tem como missão articular a reinserção escolar e social de crianças e
adolescentes em vulnerabilidade pessoal e social, carentes, com defasagem idade-série,
buscando a reconstrução da cidadania numa perspectiva humanizada, possibilitando a
construção do conhecimento.
Nessa escola-referência a inclusão digital também é um diferencial. Ela conta
com um laboratório de informática que desmitifica o uso do equipamento e dos
softwares. Ainda que hoje as tecnologias façam parte da vida cotidiana, para muitas
crianças e jovens oriundos das periferias ou mesmo que moram nas ruas, essa

sumário 1802
VII Seminário Vozes da Educação

experiência permanece muito superficial, quando não, novidade em/para algumas


comunidades. Nelson Pretto colabora afirmando:

As TIC têm grandes possibilidades de reduzir distâncias e esta proposição


tem presidido grande parte das discussões sobre o seu uso na educação e em
especial da EAD. Por outro lado, é preciso estar atento para o fato de que ao
pensarmos nessas tecnologias como potencialmente redutoras das distancias
temos que ter sempre em mente que se isso não acontecer amplamente,
poderemos estar iniciando, mais uma vez, um perverso mecanismo de
aumento da exclusão daqueles que já são excluídos socialmente em termo das
condições mínimas de sobrevivência. Estaríamos introduzindo um novo tipo
de exclusão, a digital (PRETTO, 2001, p. 35-36).

Cabe ressaltar que a proposta pedagógica da Escola do Parque da Cidade –


PROEM é única na rede, individualizada, respeitando o ritmo de aprendizagem de cada
educando, possibilitando a aceleração dos estudos, tornando-se referência nacional.
Atualmente atende estudantes do 3º ao 9º ano, em situação em vulnerabilidade
social, todos com distorção em relação à idade/ano escolar e em situação de carência
socioeconômica. São crianças e adolescentes oriundos de famílias de baixa renda e de
baixo grau de escolaridade.
A escola se pauta em estratégias que redimensionam a vivência escolar como
uma vivência social cujas práticas pedagógicas favoreçam a reflexão e criticidade, em
consonância com a efetivação dos direitos individuais, coletivos e sociais.

O Projeto Formar
A proposta da formação era um marco na educação pública do país e foi de
fundamental importância porque disseminava as ideias de uma prática pedagógica
diferenciada com a utilização do computador, além da possibilidade de elaborar
propostas para disseminar o uso a partir dos estudos teóricos e discussões entre os
professores de diversas partes do Brasil.
O Projeto Formar fora criado a partir das recomendações do Comitê Assessor de
Informática e Educação (Caie) do Ministério da Educação (MEC), operacionalizado
como curso de especialização em Informática na Educação, em nível de pós-graduação
lato sensu, realizados na Unicamp, em 1987 e 1989. Tinha como objetivo principal
formar professores com vistas a implantação dos Centros de Informática Educativa
(CIEd) visando atingir um número expressivo de profissionais em boa parte do território
brasileiro. A proposta era propagar os conhecimentos sobre informática educativa,
ampliando as pesquisas e atividades na área para além dos centros do Educom,

sumário 1803
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

objetivando atender estudantes e professores, com possibilidade de atender também a


comunidade em geral, tornando-o um centro irradiador e multiplicador da tecnologia da
informática para as escolas públicas brasileiras.
Apesar de ter as atividades desvinculadas da prática de sala de aula na maioria
das vezes, ainda sim, tiveram a grande importância de despertar em professores e
estudantes o interesse pela Informática e de disseminar os conteúdos e metodologias
trabalhados no Projeto Formar.
Ficava claro que a introdução de computadores nas escolas públicas era uma
proposta de transformação do processo educacional, haja vista o tipo de abordagem
teórica que os grupos assumiam. Suas ações imprimiam uma perspectiva oposta à visão
tecnicista que vigorou nos anos 60.

O Programa Proninfe
Na década de 90 houve uma fase de estagnação de investimentos e mesmo de
políticas públicas na área, precedida pela inovação dos equipamentos e softwares,
ocasionando muitas baixas e até mesmo abandono das atividades e projetos. As
propostas que dependiam exclusivamente das verbas federais foram as primeiras a
pararem suas ações, enquanto outros grupos mais comprometidos e resistentes
refletiram sobre a possibilidade de continuar e buscar novos rumos para o trabalho com
a Informática em Educação, mesmo frente as grandes dificuldades do momento.
Umas das ações proposta pelo Brasil foi a realização de uma Jornada de
Trabalho Luso-Latino-Americana de Informática na Educação, que aconteceu em
Petrópolis em 89 e consistia na identificação de possíveis áreas de interesses comum
relativo à formação de recursos humanos e à pesquisa que pudessem contribuir ou
mesmo custear um futuro projeto internacional sob a chancela da OEA.
Alicerçado em todas numa gama de iniciativas anteriores, foi criado em 1989 um
Programa Nacional de Informática Educativa (Proninfe), que tinha como finalidade:

Desenvolver a informática educativa no Brasil, através de projetos e


atividades, articulados e convergentes, apoiados em fundamentação
pedagógica sólida e atualizada, de modo a assegurar a unidade política,
técnica e científica imprescindível ao êxito dos esforços e investimentos
envolvidos (MORAES, 1997, p. 11).

O Programa pretendia fomentar a infraestrutura de suporte relativa à criação de


vários centros, apoiar o desenvolvimento e a utilização da informática nos ensinos de

sumário 1804
VII Seminário Vozes da Educação

1o, 2o e 3o graus e na educação especial, consolidar e a integrar as pesquisas, bem


como a capacitar contínua e permanentemente os professores.
O Proninfe buscava a descentralização das suas ações, dando ênfase à pesquisa e
ao desenvolvimento concentrado nas universidades e escolas técnicas federais, bem
como a competência tecnológica permanentemente referenciada por objetivos
educacionais.
O Planinfe, assim como o Proninfe, destacava, como não poderia deixar de ser, a
necessidade de um forte programa de formação de professores, acreditando que as
mudanças só ocorreriam se estiverem amparadas, em profundidade, por um intensivo e
competente programa de capacitação de recursos humanos, envolvendo universidades,
secretarias, escolas técnicas e empresas como o Serviço Nacional da Indústria (SENAI)
e Serviço Nacional do Comércio (SENAC).
O Planinfe apregoava a indispensabilidade de alterações nos papéis que cabiam a
escola, ao aluno e ao professor e, consequentemente, nos “conteúdos, nos processos e
nos materiais de ensino-aprendizagem, alegando que não se poderia incorporar o novo
sem reformular o antigo.” (NASCIMENTO, 2007, p.31).
Dessa forma, foi possível verificar que o Programa Nacional de Informática
Educativa (Proninfe) definiu um modelo de organização e funcionamento para a
capacitação das atividades em todas as áreas da educação nacional, com claras
tentativas de se estabelecer programas mais completos que atendessem as demandas e
processos de informatização da sociedade e a participação da comunidade.

Programa ProInfo
O país continuava na busca pela informatização e avanços tecnológicos. Ainda
que não priorizasse a educação como principal questão para o desenvolvimento,
contraditoriamente investiam em avanço tecnológico também como uma questão
educacional que traria o tão sonhado progresso. Era de se esperar que a ocorrência das
tecnologias não se dera de maneira neutra.
O Programa Nacional de Informática na Educação criado pela Portaria no
522/MEC, de 9 de abril de 1997, como ele mesmo se caracteriza, é um programa
voltado para a expansão e democratização do acesso às tecnologias.
O objetivo central do projeto é a universalização das tecnologias da informação
e comunicação, através do estímulo à informática.

sumário 1805
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O Programa, ganhara uma nova versão instituído pelo Decreto nº 6.300, de 12 de


dezembro de 2007, intitulando-se Programa Nacional de Tecnologia Educacional
(ProInfo) e postula a integração e articulação de três componentes: a instalação de
ambientes tecnológicos nas escolas, a formação continuada de professores e outros
agente educacionais e a disponibilização de conteúdos e recursos educacionais
multimídia e digitais. (BRASIL, 2007).
O lançamento da primeira versão do programa trazia em seu bojo uma
audaciosa meta bienal entre 1997-1998: formar 25 mil professores e atender 6,5 milhões
de estudantes. Incluía nessa finalidade a compra de 100 mil computadores.
A principal diferença deste programa para os demais foi a preocupação em levar
os computadores para dentro das escolas. Sua implantação acontecera de forma
descentralizada, atendendo a rede pública de quase todos os estados brasileiros. Onde
cada centro instituído teria liberdade de atuação em colaboração com o MEC, governos
estaduais e sociedade.
O programa tem metas e diretrizes propostas de forma articulada com a
Secretaria de Educação à Distância (SEED/MEC), o Conselho Nacional de Secretarias
Estaduais da Educação (CONSED) e por comissões estaduais de informática na
educação, levando-o ao status de um projeto com forma avançada de organização.
A corresponsabilidade entre os entes federal, estadual e municipal, evita o perigo
de “ignorar peculiaridades locais, rumos já traçados e esforços desenvolvidos ou em
desenvolvimento por outras esferas administrativas, ampliando assim as possibilidades
de êxito” (BRASIL, 1997).
O programa investiu em recursos humanos, ou seja, na valorização dos
profissionais voluntários como condição fundamental para obtenção de êxito na
proposta. Instrumentalmente, o principal objetivo é distribuir nas escolas uma
infraestrutura moderna de informática e comunicações, além de disponibilizar as
condições – técnicas, pedagógicas e organizacionais - para que essa infraestrutura seja
utilizada de forma duradoura, apropriada e convincente. O objetivo final é a melhoria do
processo de ensino-aprendizado, pelo aproveitamento do potencial das tecnologias
como um instrumento.
Nessa direção, o programa ProInfo Integrado balizou suas ações em três grandes
áreas. A primeira relativa a infraestrutura, em particular a implantação de computadores
nas escolas conectados em banda larga, além de diversas ações, como o Projeto UCA

sumário 1806
VII Seminário Vozes da Educação

(Um Computador por Aluno) e Projetor ProInfo (um projetor integrado a um


computador para ser levado à sala de aula).
A segunda ação refere-se ao Programa de Capacitação de Professores no uso das
TIC na educação, dividido em dois tipos de oferta: cursos de especialização de 360
horas e cursos de atualização com aperfeiçoamento de 180 horas.
A terceira ação é relativa à oferta de conteúdos educacionais e as próprias
ferramentas de interação e comunicação aos professores e alunos em um ambiente de
convergência de mídias, onde se inserem o Canal TV Escola, o Portal do Professor e do
Aluno, o Banco Internacional de Objetos Educacionais, além de programas que visam a
produção destes conteúdos.
Tendo em vista o processo de informatização social que se apresenta, não nos
cabe mais avaliar se esta jornada tecnológica é positiva ou negativa para a sociedade,
mas cabe-nos pensar sob quais óticas estão alicerçados os objetivos dos programas
criados para inserção e inclusão das tecnologias da informação e comunicação no
espaço escolar na atual conjuntura educacional.

Laboratórios de informática nas escolas públicas


O laboratório de informática é um espaço de experimentação da teoria,
complementada nesse caso, pelo computador. Suas práticas devem ser precedidas de
aulas teóricas, sendo de grande valia para que o corpo docente e discente possa realizar
experimentações. Tornando-se deste modo, uma prática cientifica, peça fundamental no
processo de invenção e transformação humana. (CRUZ, 2009)
Podemos enfatizar a importância dos laboratórios e dos aparatos tecnológicos na
educação como imprescindíveis, desde que levem em consideração as características, os
interesses e as necessidades locais, a utilização de maneira contextualizada, adequada e
planejada para que a integração do computador ao processo educacional possa ser
efetivada de forma positiva e eficaz. Nesse sentido Tajra corrobora dizendo que:

A utilização da tecnologia computacional na área educacional é indiscutível e


necessária, seja no sentido pedagógico, seja no sentido social. Não cabe mais
à escola preparar o aluno apenas nas habilidades de linguística e lógico-
matemática, [...]. Hoje, com o novo conceito de inteligência, [...], o
computador aparece num momento bastante oportuno, inclusive para facilitar
o desenvolvimento dessas habilidades – lógico-matemática, linguística,
interpessoal, intrapessoal, espacial, musical, corpo-cinestésica, naturista e
pictórica (TAJRA, 2000, p. 42).

sumário 1807
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O site do Ministério da Educação dispõe de informações e recomendações sobre


a montagem de um laboratório de informática na escola, inclusive a elaboração de um
plano de instalação, visando facilitar um ambiente propício ao desenvolvimento de
projetos educacionais. De antemão fica claro que há liberdade em vários quesitos, mas
há também obvia preocupação com a padronização, tendo em vista a proposição ousada
do programa de atingir todo território brasileiro.
O programa divide-se em urbano e rural. Podem participar escolas de ensino
fundamental, em área rural e urbana com no mínimo 30 e 50 alunos respectivamente,
que possuam energia elétrica e não tenham laboratório de informática instalado em suas
dependências.
Segundo dados do MEC de 2008, 92% dos municípios brasileiros aderiram ao
programa. As escolas beneficiadas recebem computadores com roteador wireless
(internet sem fio), sistema operacional Linux Educacional e software livre criado
especialmente para as escolas brasileiras, incluindo diversas ferramentas de
produtividade.
Analisar criticamente sobre o projeto da inclusão da informática na escola é
pensar que sua implementação se consolida a partir de macros e micros estruturas e
categorias que se engendram. Desse modo, concordamos com os PCN quando
declaram:

A denominada “revolução informática” promove mudanças radicais na área


do conhecimento, que passa a ocupar um lugar central nos processos de
desenvolvimento, em geral. É possível afirmar que, nas próximas décadas, a
educação vá se transformar mais rapidamente do que em muitas outras, em
função de uma nova compreensão teórica sobre o papel da escola, estimulada
pela incorporação das novas tecnologias (BRASIL, 2000, p. 05).

A promoção da cultura tecnológica nas escolas é uma política à serviço da


sociedade. A continuidade das boas práticas e a revisão e melhoria das que ainda não
lograram êxito tem sido considerada ao longo desse percurso histórico de
informatização e democratização do acesso. Ainda assim, as políticas permanecem
hierárquicas, necessitando maior contato com a comunidade escolar.

Considerações finais
O levantamento sobre as iniciativas da inserção da informática ao processo de
ensino-aprendizagem no Brasil, é de extrema importância pois através deste estudo

sumário 1808
VII Seminário Vozes da Educação

torna-se possível verificar quais propostas vem sendo criadas ao longo da década de 70
e a entender como as TIC estão estruturadas nos espaços escolares, pois o percurso da
tecnológico se fundamenta nas estruturas de poder vigentes, aliada numa educação
tecnológica instrumental com fim em seus próprios meios. Dessa forma, podemos
tensionar a inclusão das tecnologias entre a educação na/para tecnologia e a tecnologia
na/para educação sob aspectos sóciotecnológicos.
Diante do exposto neste estudo, pode-se constatar o investimento que o país vem
fazendo em prol da democratização do acesso às tecnologias na educação, ainda que
seus projetos não alcancem todo território nacional e nem aconteçam de maneira
satisfatória e inclusiva, além da descontinuidade das ações.
As propostas dos programas nem sempre conseguem refletir o cotidiano dos
profissionais que encontram salas de aulas cheias de estudantes imediatistas, espaços
com equipamentos obsoletos e falta de boa vontade política. Não é raro conseguir
ponderar o dia-a-dia desses jovens, que mesmo tendo acesso aos bens tecnológicos e a
internet, não dispõe de qualidade de vida, acesso à cultura e de educação voltada para
sua emancipação. A própria falta de infraestrutura escolar e continuidade de incentivo à
formação docente são reflexos dessa ausência de entrosamento e contextualização das
políticas públicas pensadas distantes dos beneficiários.
Coexistem na dialética escola e tecnologia, uma lacuna que precisa ser
redimensionada para que as mediações apontem para a “abertura de possibilidades, não
apenas para a atratividade, interatividade, acessibilidade e universalidade”, conforme
propõe Guimarães (2010, p. 184).
Conforme mencionado por Lidugério (2019), o ambiente informatizado se
mantém um espaço desejado pela comunidade escolar, pois nele pode-se aprimorar
trabalhos, ir a lugares onde não estiveram e ampliar as possibilidades de informação, de
produção e de conhecimento. É o lugar que os transporta para outros cenários, que
muitas das vezes somente a escola possa propiciar.
Cabe ressaltar que a introdução da informática como recurso pedagógico deve
partir da própria comunidade escolar. Compete a esta verificar a necessidade de
mudança em seu processo educacional com vistas a atender as demandas sociais
vigentes. Este grupo precisa pensar como a informática impactaria suas ações e como
ela se integra ao seu projeto político pedagógico. Devem, portanto, discutir de forma
abrangente seus prós e contras, além de ponderar os pontos de vista de todos os

sumário 1809
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

envolvidos no processo educacional para que os recursos e benefícios da informática


sejam utilizados de forma eficaz, crítica, contínua e consciente.
Conforme mencionado por Carreiro o capitalismo gestor da atual sociedade, diz
muito sobre as questões tecnológicas.

Nela, impera a competitividade e o individualismo nas interações humanas.


Em diálogo com as reflexões da autora, apostamos que a formação docente
pode nos encorajar a pensar práticas educativas que se reinventem, a partir de
novas linguagens, desafiando-se a reconhecer e a valorizar a pluralidade
cultural e a constituição de relações solidárias que se pensem a partir de
conceitos ligados à justiça social. Defendemos que a educação tem um papel
transformador na sociedade. (SANGENIS, OLIVEIRA, CARREIRO, 2019,
p. 17).

Assim acreditamos que este estudo possa contribuir para incrementar as análises
críticos-reflexivas sobre os impactos do uso das TIC no âmbito educacional enquanto
ferramenta pedagógica, bem como analisar as políticas públicas vigentes e os
investimentos na área. Por esse motivo, o presente artigo se propôs a refletir acerca da
utilização dos espaços e recursos destinados às tecnologias da informação e
comunicação como elemento potencializador da educação emancipatória (FREIRE,
1987), como (re)criação da ludicidade proposta por Luckesi (2014) e como
possibilidade de (in)formação integral dos atores da escola na busca pela promoção da
equidade sociocultural.

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professor. PROINFO/SEED/MEC, Coleção Informática para a mudança na Educação,
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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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sumário 1812
VII Seminário Vozes da Educação

A GREVE DOS CAMINHONEIROS E OS SABERES INFANTIS NA ORDEM


DO DIA

Aline Lima
SME/RJ
limasnt@yahoo.com.br

Chão da escola pública: narrativas e práticas


Cinco anos como professora da escola básica, atuando na educação infantil e
anos iniciais das classes populares, faz parte dessa minha pequena caminhada narrar em
meu caderno ou na minha rede social algumas práticas que vivencio com as crianças,
responsáveis e colegas de profissão.
O que venho descobrindo, e essa descoberta não é inédita, e nem solitária, pois
há muitos pesquisadores que a defendem: é que os conhecimentos produzidos nos
cotidianos estão emaranhados a muitos outros conhecimentos, uma vez que a todo o
tempo somos seres sociais e praticantes cotidianos (CERTEAU, 2009).
Aprendi a valorizar o chão da escola (FERRAÇO, 2003) pública ao longo da
formação docente continuada e, a partir de encontros coletivos formados por professoras
e professores vinculados a universidade e a escola básica – que atuam com pesquisas no
campo teórico-epistemológico nos dos com os cotidianos (ALVES, 2008).
Nesse sentido, pensar as escolas como espaçostempos 284 de convivência, de
interação, de criação, de afetos, de solidariedade, de tessitura de conhecimento em rede
(Apud, 2008) vêm sendo um comprometimento político, uma luta por visibilizar
experiências e práticas educativas dos que vivem a escola de cada dia.
Por isso, meu objetivo como professora alfabetizadora neste trabalho é
compartilhar e refletir sobre a minha prática, uma vez que “pensando criticamente a prática
de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico,
necessário a reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a
prática” (FREIRE. p.39. 1996).
Vale ressaltar, não trarei nenhuma prática inovadora, nenhum novo método para
alfabetizar, nenhuma receita milagrosa de ensino. O que defendo e invisto é no saber da
284
Nilda Alves e muitos outros autores que desenvolvem pesquisa em educação com base nos Estudos
nosdoscom os cotidianos demarcam que a escrita conjunta está relacionada à busca de superação do modo
hegemônico de pensar.

sumário 1813
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

experiência (LAROSSA, 2002). Experiência essa de quem vive a sala de aula, suas
incertezas, seus conflitos, singularidades, mazelas, escutas, descobertas, aprendizagens,
escrita com a palavra...
Então, na tessitura deste texto compartilho alguns registros infantis referentes à
atividade desenvolvida com a turma 1304 em que atuo como regente – numa escola
municipal situada no subúrbio carioca. É importante explicar que nas escolas da
prefeitura do Rio de Janeiro os anos iniciais da alfabetização se constituem do 1º ao 3º
ano. O grupo em questão é composto por 30 crianças das classes populares com idades
entre 8 e 9 anos. Elas são criativas, inventivas e muito questionadoras.

A Roda de conversa e muitos fios...


Na educação infantil aprendi a trabalhar com a roda de conversa 285, talvez por
esse motivo faça parte da minha prática inserir essa rotina, também, nos anos iniciais da
alfabetização. Logo no início do ano letivo, as crianças da turma 1304 demonstram
timidez para falar no grupo. No entanto, com o tempo se tornou, para muitos,
importante lugar de fala.
Em nossa sala de aula, a roda de conversa acontece nas segundas-feiras ou em
dias que as crianças querem compartilhar assuntos diversos. Eis que na sexta-feira, no
vigésimo quinto dia do mês de maio de 2018, elas demonstravam agitação e interesse
em torno das notícias sobre a greve dos caminhoneiros286 - a sala de aula estava com
quantitativo reduzido de alunos, mas havia um burburinho de vozes atravessadas.
Escuto um pedido: __ Tia, a gente pode fazer a roda hoje, por favor deixa? As crianças
queriam conversar e ouvir umas às outras. Queriam saber quem conseguiu pegar ônibus.
Quem viu as reportagens.
Começamos a aula nos acomodando para a roda. Dali surgiram vários
questionamentos, curiosidades, opiniões, leituras e saberes da infância sobre a greve.
Nossa cidade estava vivendo sobre os efeitos da greve dos caminhoneiros: postos sem
gasolina, alguns alimentos em falta, diminuição drástica de circulação do transporte

285
A Roda de conversa é uma metodologia que consiste em espaços de diálogo na qual os alunos se
expressam e escutam uns aos outros. Os assuntos que vão para a roda são diversos, eles podem ser de
cunho individual ou coletivo, de vivências dentro ou fora da escola.
286
A greve dos caminhoneiros no Brasil teve ampla repercussão em âmbito nacional e internacional,
também chamada de Crise do Diesel. Foram 11 dias de paralisação e reinvindicações realizadas por
caminhoneiros autônomos que se manifestaram contra reajustes frequentes nos preços dos combustíveis,
fim da cobrança de pedágio e fim do PIS/Cofins sobre o diesel. Com base nisso e em outras lutas próprias
da categoria realizaram bloqueio de rodovias - em 24 estados e no Distrito Federal. A greve acabou por
impactar vários setores da economia.

sumário 1814
VII Seminário Vozes da Educação

coletivo e individual. Então, um registro se faz preciso! O que as crianças têm a dizer,
escrever, desenhar sobre a greve dos caminhoneiros? São nos relatos delas que esse
trabalho encontra sentido.
Separo folhas de A4 cortadas pela metade e peço que entreguem para seus
colegas. Já em seus lugares, sentados em duplas ou trios pré-estabelecidos, a proposta é
que cada um faça seus registros e depois compartilhe no coletivo sua produção. Essa
dinâmica já é familiar para a turma - quem ainda não escreve com autonomia, solicita
ajuda.
É importante lembrar que nas turmas de alfabetização das classes populares, a
prática da leitura e escrita é compreendida, em sua maioria, como um grande desafio.
Lógico que também lido com algumas inquietações; alunos e alunas desacreditados de
seu potencial de aprendizagem, a função social da leitura e escrita vivenciadas apenas
na escola, além dos altos índice de faltas “dos alunos que parecem demonstrar
dificuldade de aprendizagem”.
Não por acaso a prefeitura do Rio de Janeiro promove ações e cursos voltados
para essa temática. É inegável que uma das grandes preocupações na área educacional
está relacionada aos índices de analfabetismo (funcional) e aos elevados números de
reprovação a nível Brasil.
Sendo assim, existe uma ampla discussão histórica sobre a produção do fracasso
escolar, uso indiscriminados das cartilhas e livros didáticos como herança dos processos
de escolarização de uma sociedade excludente - pautada no pilar da produção em massa.
Smolka (2008) alerta que:

“na prática escolar: nossa sociedade traz as marcas da indústria cultural, pela
neutralização das diferenças, pela produção em massa, pela mistificação da
própria cultura como independente do processo de sua produção (e
consumo). Os processos de alfabetização e escolarização não ficam isentos
dessas marcas e, pelo contrário, as assumem e incorporam”. (Idem. p.79).

Dessa forma, a discussão política sobre o fracasso escolar é urgente! Regina


Leite Garcia (2012) provoca a pensar que é “a sociedade que produz o fracasso escolar a
fim de garantir o sucesso de um modelo de desenvolvimento excludente” (Idem.p.11). Nessa
lógica, as crianças que fogem ao padrão de aprendizado esperado para sua faixa etária
são compreendidas como incapazes ou com dificuldade de aprender.
Longe de querer romantizar o que vivencio em sala de aula, mas perseguindo
outras formas que não as já aprendidas de negar a escola e as produções de

sumário 1815
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

conhecimentos dos praticantes envolvidos, retomo as ideias de Paulo Freire de que


(1996) “ ensinar não é transferir conhecimento” (p.47) e, tento vivenciar isso na prática. Sei
bem que nem sempre é possível reduzir o volume de trabalhos padronizados que
envolvem repetições maciças de exercícios, mas também não é impossível.
Assim, retomo a fala da criança: __ Tia, a gente pode fazer a roda hoje, por favor
deixa? Nada poderia ser mais importante e urgente que sentar na roda de conversa com
as crianças e criar possibilidades de trabalho a partir da aula como acontecimento
(GERALDI, 2010), ainda na roda fica combinado que cada um fará um registro
individual, utilizando a linguagem artística e a estética sobre a greve dos caminhoneiros.
Preciso frisar que a pergunta feita pela aluna, na minha interpretação, é de
sujeito de autonomia, uma vez que busca diálogo com o outro. Lembrando que é
justamente pela linguagem que se vive o processo de ensino e aprendizagem. É através
dela que se transmite e constrói conhecimento, “ sem a linguagem, a relação pedagógica
inexiste, sem a linguagem, a construção e a transmissão de saberes são impossíveis (GERALDI.
p.19. 1997).

O registro e os saberes infantis


Nessa direção, a sala de aula precisa ser espaço de interação verbal, de
polifonias, de heterogeneidade, de conhecimentos plurais, ainda mais na turma de
alfabetização dos anos inicias em que as lógicas do pensamento infantil são múltiplas.
Segundo Smolka (2008) o pensamento da criança, “não é só lógico, a fala nem
sempre é racional, “gramatical”. (Idem, p. 62). Tentando fazer uma aproximando com essa
discussão, trago o registro de Kayo (aluno da 1304) que entrega o trabalho finalizado,
mas não era possível compreender a leitura, as letras estavam escritas de modo
aleatório.

sumário 1816
VII Seminário Vozes da Educação

Pergunto o que escreveu. Ele explica o que queria escrever, a gente pensa junto
sobre sua produção. Então, Kayo reescreve: “Tudo ta caro”. O contexto de sua escrita é
a greve dos caminhoneiros que impactou o sistema de abastecimento de várias cidades
e, com isso os preços dos produtos estavam subindo. As marcas da oralidade estão
presentes em sua escrita. É lindo como ele preocupa-se com a estética do registro –
utiliza a imitação de uma cédula para enriquecer e dar sentido ao que deseja registrar.
Nessa perspectiva, a criança vai se apropriando dos conhecimentos socialmente
construídos em relação ao processo de aquisição da leitura e da escrita, uma vez que
nessa constante interlocução com o outro vai se compreendendo o uso social da mesma.
Luis Gabriel (aluno da 1304) utiliza o seu registro para direcioná-lo ao
presidente. Sua escrita também é fruto das discussões sobre a greve dos caminhoneiros,
mas poderia ter sido produzida em vários contextos, pois dados estáticos do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística apontam para o aumento da miséria e da fome.
Entendendo que as crianças são seres sociais, seus saberes muitas vezes dialogam com
as questões sociais vigentes.

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sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Falar o que pensa, organizar o pensamento para escrever o que se pensa e


aprender a lidar com a “experiência com a palavra têm muito mais a ver com um
assombro inicial com a palavra, com um inesperado encontro com a palavra, com a
soma indecifrável de silêncios vãos e estranhas pronunciações” (SKLIAR, p.17. 2012).
Escrever é sempre arriscado quando se limita a língua a um sistema de padrões fixo e
imutáveis.
Tanto no desenrolar deste texto quanto na dinâmica da sala de aula o erro é
constitutivo de conhecimento, “enquanto escreve, a criança aprende a escrever e
aprende sobre a escrita” (SMOLKA, 2008.p. 63). Perceba que nos registros das crianças
não há correções. O combinado é pensar sobre a escrita escrevendo. É dialogar e
valorizar a escrita inicial e perceber que ela é carregada de múltiplos saberes infantis,
muitas leituras, hipóteses de escrita e variados modos de dizer.
No registro de Igor sobre a greve dos caminhoneiros é preciso uma leitura
atenta. Conversamos sobre sua produção. Nela ele expõe que “as coisas estatão muito
difíceis na nossa cidade”. A concordância verbal precisa ser aprimorada, ainda aglutina
palavras, mas Igor tem 8 anos.

sumário 1818
VII Seminário Vozes da Educação

Considerando que o aluno está vivenciando o processo inicial de aquisição da


linguagem escrita de modo autoral, nota-se que ele enriquece sua produção fazendo uso
do recurso linguísticos com balões de fala. Aqui transcrevo o que está nos balões de
diálogo para facilitar o leitor: Primeiro balão: O QUE;
Segundo balão: SÓ TEM R$80
Terceiro balão : NÃO
E AGORA
Último balão: A GASOLI
NA ACABOL

É possivel perceber que apesar de ainda não escrever de acordo com os padrões
da norma culta, a escrita de Igor deixa pistas de uma escrita fragmentada, contraditória,
complexa e por que não lúdica, uma vez que traz uma estética peculiar. Nas entrelinhas
também é possível perceber que o menino possui alguns conhecimentos já

sumário 1819
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

consolidados de escrita. Smolka (2008) defende que “a escrita inicial é indicativa de


muitas diferenças, abre espaço para muitas leituras, aponta possibilidades de muitas
mudanças (Idem, p.80).”
Meu papel enquanto professora alfabetizadora é propiciar mais experiências
envolvendo a linguagem oral e escrita, para assim pensarmos na experiência com a
palavra. O que as crianças fazem com a escrita? Quais as representações sociais estão
atravessadas em seus registros. Quais as dimensões simbólicas ? Como cada uma se
apropria da discussão sobre a greve dos caminhoneiros e registra isso no papel.
O registro de Ana Beatriz também vem para a tessitura desse texto, aluna
escreve sobre querer mais comida. Para Ana essa é questão que a motiva a escrever
sobre o tema.

Repare que há um caminhão em seu registro e uma pessoa com expressão de


reinvidicação com a placa comunicando a mensagem da menina: EU QUERRO MAIS
COMIDA. Explico que a palavra QUERO só tem um R, mas a gente não trabalha para
invisibilizar o erro.
Lidar com os “tropeços” na escrita faz parte. Concordo com Skliar (2014) que
“a escrita é ensinada na própria escrita. Para além dos métodos, das práticas, da persistente
vontade ou tentação de desistir, escrever não encontra uma trajetória simples ” ( Idem.p.126).
Com frequência, algumas, crianças relatam que não sabem o que fazer, que não
sabem escever. As ações pedagógicas desenvolvidas em sala de aula na turma 1304
contam com a mediação dos colegas e minha (professora regente). Isso de um certo

sumário 1820
VII Seminário Vozes da Educação

modo, visa contribuir para um movimento solidário envolvendo a leitura e escrita. É


preciso a interlocução com o outro para movimentar o pensamento, “não se pode pensar
a elaboração cognitiva da escrita independente da sua função , do seu funcionamento,
da sua constituição e da sua constitutividade na interação social (SMOLKA, p. 60.
2008).
Giovanna é uma dessas crianças que possui resistência para escrever. Se cobra
muito. Em seu registro sobre a greve dos caminhoneiros, é inegável que há repetição de
palavras, ausência de pontuação, escrita atravessadas, mas o foco aqui é justamente essa
escrita “apressada” e “desobediente” da infância, carregadada de marcas da oraliadade e
de suas vivências.

Giovanna tem muito a dizer sobre a greve! Sua leitura de mundo (FREIRE,
1996) mediante aos acontecimentos cotidianos suscitam uma escrita inconformada.
Assim, ela denuncia que na rua está faltando tudo, os mercados estão com prateleiras
vazias e produtos com preços elevados. Além disso, ainda cobra uma postura política
diante da greve dos caminhoneiros, se posicionando a favor das reinvindicações da
classe trabalhadora.
Leio em voz alta e na íntegra o modo como ela escreveu. Giovanna percebe que
tem questões para serem resolvidas no seu texto. Ela pergunta se tem erros. Afirmo que

sumário 1821
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

tem, mas indago o que ela quer fazer. Opta por me entregar como está. Talvez ela tenha
compreendido que sua escrita não tem por finalidade ser corrigida por mim. Há um
acordo com a turma que as escritas são para serem praticadas com autoria, com
significado e sentido para elas e, por elas.

Para concluir...?
No decorrer da minha prática, as palavras de Paulo Freire dialogam com o que
acredito: o papel do educador é de estimular o educando na “busca permanente que o
processo de conhecer implica” (Freire, p.119. 1996).
Desse modo, uma de minhas ações pedagógicas, é justamente a de promover nas
crianças o gosto pela leitura e a autoria pelos seus registros, mas confesso que apesar de
já trabalhar com as escritas infantis a pelo menos cinco anos, só nos últimos dois anos
de docência venho me debruçando sobre suas produções - elas trazem pistas sobre suas
formas de dizer, escrever e compreender o mundo.
Vale ressaltar que o uso de folhas de A4 em branco cortadas no meio, a priori,
era um recurso para economizar fotocópias. No entanto, isso sem querer favorece a
trabalhos diferenciados, estéticas diferenciadas, escritas diferenciadas.
Cada criança traz o seu olhar e suas experiências com a palavra no processo
(inicial) de aquisição da leitura e escrita. Visibilizar outras formas possíveis de escrever
o que dizem, o que pensam e como dizem, constituem momento de interlocução e
autoria infantil.
Nesse sentido, é preciso valorizar as produções infantis para no fim superar as
marcas da escolarização tradicional de corrigir tudo que se escreve. Permitir que a
criança pense sobre a escrita escrevendo e dialogando com seus pares. É isto que move
a minha prática!
Sigo com os registros de alunos e alunas das classes populares de alfabetização
para refletir sobre as implicações pedagógicas, os aspectos sociais e políticos
envolvidos no ato de ensinar e aprender com os saberes infantis.

Referências
ALVES, N. Decifrando os pergaminhos- o cotidiano das escolas nas lógicas das redes
cotidianas. In: OLIVEIRA, I. B; ALVES, N. (Org.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos
das escolas-sobre redes de saberes. Petrópolis: DP et Alii, 2008.

CERTEAU. M. A invenção do cotidiano- artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

sumário 1822
VII Seminário Vozes da Educação

FERRAÇO. C.E.Eu caçador de mim. In: GARCIA, R.L. (Org.). Método: pesquisa com
o cotidiano. Rio de Janeiro: DP& A, 2003.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia saberes necessários à prática educativa. São Paulo:


Paz e Terra, 1997.

GARCIA. R. L. Conversando sobre o lugar da escola. Rio de Janeiro:


H.P.Comunicações, 2006.

GERALDI. J.W. Aprender e ensinar com os textos de alunos. São Paulo: Cortez, 1997.

______. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.

LAROSSA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In: Revista Brasileira


de Educação, Rio de Janeiro/Anped, n.19, p. 20-28, jan./abr.,2002.

SMOLKA. A.L.B. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo


discursivo.12ª.ed. São Paulo: Cortez, 2008.

SKLIAR. C. Experiências com a palavra: notas sobre a linguagem e diferença. Rio de


Janeiro, 2012.

______. Desobedecer a linguagem: educar. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

sumário 1823
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

SOBRE A EXPERIÊNCIA DE VIVENCIAR COM CRIANÇAS E ADULTOS A


PARTICIPAÇÃO E A ESCUTA EM UMA ESCOLA DE EDUCAÇÃO
INFANTIL POPULAR

Fabiane Florido de Souza Lima287


UMEI Vinicius de Moraes
fabianeflorido@gmail.com

Maria do Nascimento Silva288


UMEI Vinicius de Moraes
marycla.maria@gmail.com

O presente trabalho apresenta algumas reflexões a partir das experiências


vivenciadas por duas pesquisadoras que desenvolvem suas pesquisas de doutorado no
município de Niterói. Tais pesquisas têm como princípios comuns buscar compreender
a participação das crianças através dos diversos modos que se utilizam para expressar
seus pontos de vista no contexto escolar, contemplando a dimensão de suas ações e suas
significações no percurso investigativo.
As pesquisas são fundamentadas a partir do referencial teórico da Sociologia da
Infância, (CORSARO, 2011; SARMENTO, 2004, 2007, 2011; FARIA & FINCO,
2011;) e do diálogo com alguns autores do campo dos estudos do cotidiano (ALVES,
2001; GARCIA, 2002; FERRAÇO, 2003).
Os pontos de diálogos entre as pesquisas são os relacionados aos desafios de
pesquisar com e não apenas sobre a pequena infância, assim sendo, nos desafia a
contemplar as perspectivas das crianças. O enfrentamento de pesquisar com as crianças
coloca nossas pesquisas em discussão com os estudos decoloniais (FARIA, 2011) que
pensam dentre tantas questões: a necessidade de reencaminhamento do processo de
produção cientifica, especialmente, a ruptura da prática de silenciamento das vozes de
tantas culturas, sujeitos e saberes, que ao longo da história da ciência foram

287
Doutoranda PPGEdu/GPPFA/Unirio.
288
Doutoranda PPGEdu/GPPFA/Unirio.

sumário 1824
VII Seminário Vozes da Educação

considerados como pouco importantes, sobretudo, as crianças pela questão do


adultocentrismo (ROSEMBERG, 1996) que (ainda) fundamenta de forma hegemônica
as relações com a(s) infância(s).
Os estudos estão sendo realizados na Unidade Municipal de Educação Infantil
(UMEI) Vinicius de Moraes, com os Grupos de Referência da Educação Infantil (GREI)
– crianças de 3 a 5 anos de idade. A escola possui atualmente onze (11) grupos de
crianças nessa faixa etária que frequentam o horário integral, totalizando 230 crianças.
Ainda assim, a UMEI atende a quatro grupos de referência (GR) de 1º ano do ensino
fundamental, em horário parcial, sendo esta uma especificidade de apenas duas escolas
de educação infantil da rede municipal de Niterói.
A pesquisa realizada pela professorapesquisadora289 (ESTEBAN e ZACCUR,
2002) Maria do Nascimento vai tratar da construção do currículo com as crianças de
cinco (5) anos do seu grupo de referência (GREI 5C). É possível construir o currículo
com as crianças?
A professorapesquisadora Fabiane Florido que está na direção da referida
UMEI pretende em sua ação investigativa ampliar seus estudos iniciados no Mestrado
sobre a participação dos sujeitos cotidianos (FERRAÇO, 2003), principalmente a
participação dos meninos e meninas de 3 a 5 anos, na gestão de uma escola de educação
infantil pública popular. É possível pensar na efetiva participação das crianças na
gestão da escola?Que desafios vivenciaríamos a partir desse movimento que se
pretende ser cotidiano? O que, no cotidiano, o trabalho pedagógico nos provoca a
pensar/fazer/conversar com as crianças e com os adultos?
Na UMEI intencionamos projetos pedagógicos que têm como pressuposto a
participação dos sujeitos que habitam esse cotidiano, acerca dos princípios da igualdade
(KOHAN, 2019) e da democracia (TIRIBA, 2018). Dessa forma, vimos nos
questionando: De que forma as crianças participam desse movimento no contexto
escolar?
O princípio da igualdade no trabalho com a educação infantil é inspirado na
leitura de Walter Kohan (2019), quando este dialoga com Paulo Freire, confrontando
uma perspectiva a qual nos faz pensar, que uma educação política envolve
necessariamente compreender que todas as vidas têm igual potência e que não há vida

289
No campo dos estudos com cotidianos, a justaposição de termos possibilita uma apropriação plural dos
seus significados, uma vez que, separados, afirmam a lógica dicotômica da ciência moderna. A
juntabilidade das palavras é uma tentativa de romper com as dicotomias e provocar sentidos outros.

sumário 1825
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

superior a outra dentro ou fora do espaço educativo. (p. 81). Compreendemos aqui a
importância da existência de uma relação dialógica e horizontal, entre adultos e crianças
no seu convívio diário na escola. O interesse aqui não é considerarmos a igualdade
como uma ideia, mas vivê-la nas práticas cotidianas com as crianças.
O ponto de vista que Tiriba (2018) nos apresenta sobre o trabalho com a
educação infantil acerca do princípio da democracia vem a dialogar com a nossa
pesquisa, pois entendemos que é necessário desconstruir relações verticais de poder
reproduzidas entre nós, adultos com as crianças e com a natureza. Com efeito, atentar
para que o foco esteja mais nas ações das crianças, para o interesse demonstrado por
elas e pela sua participação cotidianamente na UMEI.

É possível construir o currículo com as crianças pequenas?

Maria do Nascimento

Pensar um currículopraticado (ALVES, 2004; OLIVEIRA, 2003) com as


crianças tem sido desafiador tanto mim quanto para a professora 290 com a qual
compartilho a docência nesse grupo de referência. Currículo esse que possibilite
envolver a curiosidade e o interesse das crianças, como também criar condições para
elas conhecerem, descobrirem e dar novos significados para suas experiências e os seus
sentimentos, valorizando, assim, as suas culturas e ideias, como nos indica Finco
(2015).

[...] compreender que, para a criança, conhecer o mundo envolve o afeto, o


prazer e o desprazer, a fantasia, o brincar e o movimento, a poesia, as
ciências, as artes plásticas e dramáticas, a linguagem, a música e a
matemática. (FINCO, 2015, p.237)

É possível perceber, no âmbito da educação infantil, um crescente movimento de


se pensar na constituição de uma Pedagogia da infância. Trata-se de um esforço coletivo
ao refletir sobre propostas pedagógicas que busquem considerar as especificidades das
infâncias e de procurar alternativas pedagógicas que visem superar as práticas centradas
em disciplinas curriculares, atividades isoladas, ou lista prescritiva de atividades

290
No município de Niterói as Unidades Municipais de Educação Infantil - UMEI adotam a bidocência,
que consiste na atuação de duas (ou mais) professoras por grupo de referência - ambas responsáveis pela
dinâmica no e com o cotidiano das crianças.

sumário 1826
VII Seminário Vozes da Educação

planejadas para cada dia da semana sem o menor sentido para as crianças, propondo
apenas preencher o tempo do trabalho pedagógico com elas.
Em minha pesquisa, venho investigando minha prática de professora de crianças
inserida no contexto da educação infantil de uma escola pública de Niterói. Desta
forma, através das narrativas infantis, busco trazer as reflexões que venho tecendo nesse
processo de construir cotidianamente e coletivamente o currículo com as crianças. Que
pistas quentes (ZACCUR, 2008) as crianças apresentam e que me ajudam a pensar nas
propostas de trabalho a serem desenvolvidas com elas?
Inicialmente, a fotografia entrou em nosso cotidiano 291 porque pretendíamos
criar com as crianças um filme de animação. Nas primeiras oficinas realizadas, cujo
objetivo era apresentar a proposta e o funcionamento, da câmera fotográfica,
percebemos o interesse imediato delas por essa novidade. Por esse motivo, temos
incorporado esse recurso em algumas atividades com as crianças e percebido a
potencialidade que isso deu ao nosso trabalho pedagógico cotidiano com elas.
Assistir aos vídeos e registros fotográficos produzidos por elas tem se
apresentado enquanto uma possibilidade de escuta sensível (BARBIE, 1998). Tenho me
desafiado a ouvir as crianças para além de uma escuta meramente biológica, uma escuta
atenta que me ajuda a compreender as crianças nas suas inteirezas de pensamentos,
movimentos e emoções.
Inicialmente, achei que ouviria as crianças apenas nas rodas de conversa, pois,
no meu lugar de adulta, estava organizando aquele momento e ‘garantindo’ que todas as
crianças pudessem falar. Mas eu estava enganada, e foram elas, as crianças, que me
mostraram isso. Quando, por exemplo, me surpreendiam no parquinho dizendo:
- Tia, vamos conversar sobre os piores machucados que a gente já teve?
Ou quando outra me dizia:
- Vem ver tia, um monte de casulinhos!
As crianças se expressam de diversas maneiras, inclusive o silêncio constitui
uma forma de se comunicar. No mergulho cotidiano que venho vivenciando com as
crianças percebo que elas não se comunicam apenas através de palavras, mas através,
por exemplo, dos gestos, desenhos, pinturas, pela maneira que se relacionam com as
outras crianças e com os adultos, a forma como brincam e com o que brincam. Escutar
as crianças requer tempo e atenção.

291
Nas Unidades Municipais de Educação Infantil - UMEI da rede de Niterói é adotada a bidocência (duas
professoras no grupo de referência).

sumário 1827
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Quanto mais escutamos as crianças maiores são as possibilidades de criação de


vínculo e de desenvolver propostas significativas e potentes com elas e para elas.
Escutá-las na sua potência considerando sua infância em suas muitas possibilidades e
não enquanto um vir a ser.
A experiência vivenciada por nós, professoras, contribuem para um olhar mais
acolhedor com e sobre as infâncias, para suas necessidades e peculiaridades. As crianças
nos colocam em um movimento cotidiano de pensar modos outros de fazer currículo.
Um currículo em permanente construção, aberto, dialógico, construído na intensidade
das relações que produzimos na escola de educação infantil.

É possível pensar na participação efetiva das crianças na gestão da escola?

Fabiane Florido

Coloco-me no desafio de estudar e pesquisar no e com o cotidiano da UMEI


Vinicius de Moraes, onde estou como diretora da escola envolvida nas diversas questões
imbricadas nos espaçostempos dessa unidade de educação infantil. Penso que a opção
epistêmico-teórica e metodológica pelos estudos e pesquisas no e com o cotidiano me
desafiam a apostar em outros modos de fazer pesquisa. Uma pesquisa com crianças e
adultos que convivem nesse espaço.
A UMEI Vinicius de Moraes está localizada no Sapê, bairro do município de
Niterói no estado do Rio de Janeiro. O Sapê situa-se entre os bairros de Santa Bárbara,
Ititioca, Caramujo, Maria Paula, Matapaca, Badu e uma pequena parte do Largo da
Batalha, todos na região de Pendotiba. As crianças matriculadas na UMEI são oriundas
desse bairro, e grande parte, provenientes de famílias originárias do próprio local. São
crianças negras292, em sua maioria, das camadas populares, filhas e filhos da classe
trabalhadora assalariada. Muitos desempregados e alguns vivendo do Programa Bolsa
Família293. Alguns com pai ou mãe detentos. Mas, sobretudo, são crianças potentes,
criativas, curiosas, questionadoras, pesquisadoras, participativas, produtoras de cultura.

292
Uma pesquisa realizada esse ano (2019), por mim com as famílias das crianças, fui surpreendida pelo
grande número que não se reconhece como pessoa de origem negra. Muitas famílias caracterizam as
crianças, na sua grande maioria, como de origem parda e algumas outras de origem branca.
293
É um programa do Governo Federal de transferência direta de renda, direcionado às famílias em
situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o País, de modo que consigam superar a situação de
vulnerabilidade e pobreza.

sumário 1828
VII Seminário Vozes da Educação

Neste espaçotempo venho me compreendendo como professora-pesquisadora, e


me desafiando a estar, ao mesmo tempo, como pesquisadora e gestora, nessa escola de
educação infantil que vem a ser o campo de minha pesquisa de doutorado.
Os movimentos que me provocam e que venho fazendo na gestão dessa escola
de educação infantil com a intenção de dar um novo sentido à minha própria prática,
como dizem Maria Teresa Esteban e Edwiges Zaccur, estão em permanente diálogo
com a minha prática-teoria-prática. (ESTEBAN e ZACCUR, 2002). Compreendo a
prática refletida quando esta me aponta questões como: querer estar no campo da
educação infantil, buscar novos desafios em uma escola de educação infantil, fazer
novas apostas no trabalho pedagógico com a participação efetiva das crianças. A teoria,
por sua vez, me ajuda a pensar em possibilidades outras de ação na direção de uma nova
escola. Uma escola com novas indagações, que me alimentam e me mobilizam na
pesquisa e no estudo.
Um dos principais aprendizados, durante minha pesquisa de mestrado, foi o
exercício da escuta das diferentes vozes da escola procurando ser sensível a essa
polifonia. Atualmente, no curso de doutorado, além de escutar as vozes cotidianas da
UMEI, venho apostando na participação efetiva das crianças, no dia a dia, na gestão da
escola.
No exercício cotidiano de ouvir as vozes infantis venho percebendo a
potencialidade das falas das crianças, que nos apontam caminhos e (des)caminhos para
a nossa prática. Mas, até que ponto as ouvimos? Até que ponto possibilitamos que elas
participem dessa dinâmica diária?
Nesse movimento de pesquisa com as crianças, compreendo que sou o outro
sujeito da pesquisa despertada pelo desejo de pensar com, fazer junto, (com)partilhar
meu caminho com outros sujeitos do cotidiano, assim, atentando que,

[...] em nossos estudos "com" os cotidianos das escolas, há sempre uma busca
por nós mesmos. Apesar de pretendermos, nesses estudos, explicar os
"outros", no fundo estamos nos explicando. Buscamos nos entender fazendo
de conta que estamos entendendo os outros. Mas nós somos também esses
outros e outros "outros". (FERRAÇO, 2003, p. 160)

O que significa compreender o cotidiano escolar como um espaçotempo de


aprendizagens, produções, um campo potente de estudo e pesquisa? Diante dessa
questão, inspirada por Pais (2015), interrogo-me: O que se passa no quotidiano? É o
que se passa todos os dias? (PAIS, 2015, p. 30). O que se passa todos os dias me

sumário 1829
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

remete, inicialmente, a ideia de se fazer a mesma coisa, todos os dias, repetidamente e


com uma regularidade, quando nada de novo acontece... Um campo de ritualidades...
Refletindo sobre as ações cotidianas da e na UMEI, penso nas crianças
aguardando no portão na hora da entrada... Um dia, estão alegres e outros tristes,
brincando ou quietas, chorando ou não... Cada dia elas estão de um jeito diferente...
Umas crianças querendo estar na escola, outras querendo voltar para casa...
E o desjejum? Um dia é café com leite, outro achocolatado. Pão com manteiga
ou torrada com requeijão? Vitamina de banana ou mingau de aveia... Cada dia é um
dia... Cada dia uma história diferente a contar!
A criança todos os dias chega à escola, espera no hall de entrada o portão abrir
às 8 horas; vai para o refeitório fazer o dejejum e logo após sobe para a sala de
atividades - alguns grupos - ou para a quadra, parquinho ou outros espaços - outros
grupos. Aqui, entendo essa rotina obedecendo a uma normatividade, a uma ritualidade.
Poderia dizer uma rotina rotineira? Mas, vejo que cada dia é um dia para essas crianças,
para os adultos que chegam para levá-las à escola, e para nós que convivemos com elas,
diariamente.
Dessa maneira, não penso nesse cotidiano como um tempo de espera, um nada a
fazer, ou, como as próprias crianças contam para suas famílias, quando estas as
perguntam:
- O que você fez hoje na escola?
Umas respondem nada; outras contam que brincaram; desenharam; fizeram bolo
na cozinha experimental... Assim, entendemos essas ações como experiências de
aprendizagem para essas crianças que ali estão nesse espaçotempo que é também
organizado por elas, mas, no entendimento das famílias, são ações do nada a fazer
representando apenas o brincar... E o que representa esse brincar na educação infantil?
Contrapondo-se à ideia de cotidiano como rotina - ritualidade, Pais (2015)
apresenta a perspectiva de cotidiano como rota - caminho, derivada da expressão
ruptura, como ato ou efeito de romper ou interromper algo ou alguma coisa.
Nesse contexto, compreendo que a sociologia do cotidiano me faz atentar mais
para os acontecimentos, para o imprevisto - aqueles que parecem não ter relevância,
mas que justamente são significativos nos tocam e nos transformam, como uma
narrativa de criança emergida da sua curiosidade e experiência. Com efeito, o caminho
que vem sendo percorrido no meu estudo, parte da aposta que faço no cotidiano vivido
na educação infantil, como um espaçotempo potente de construção de conhecimentos,

sumário 1830
VII Seminário Vozes da Educação

de diferentes modos de habitá-lo, de existir e interagir com os outros. Dessa maneira,


penso numa liberdade gazeteira das práticas (FERRAÇO; SOARES; ALVES, 2018)
para visibilizar o que se cria diariamente na e com a escola apreendendo outras
possibilidades para fazer a pesquisa - para praticar a ciência "diferentemente" - de
forma comunicada pelos interesses e propósitos que a investigação me sinalizará.
Mobilizada a pesquisar e praticar no cotidiano da UMEI uma gestão
efetivamente participativa e democrática com os sujeitos, principalmente considerando
as ideias que as crianças nos apresentam sobre esse contexto educativo é que entendo
como o estudo com os cotidianos, como afirma Ferraço (2003), acontece em meio ao
que está sendo feito, com os sujeitos cotidianos (crianças e adultos). Diante dessa
assertiva, acredito na investigação imbricada às reflexões e discussões que emergem
com os grupos, para coletivamente praticarmos essa escola pública popular como um
espaçotempo potente de aprendizagens, descobertas e vida!
Como as crianças 'vivem' o cotidiano dessa escola? O que elas querem para
essa escola?
O cotidiano é considerado espaço rico de invenções e reinvenções, onde são
construídos com os sujeitos que o habitam conhecimentos significativos; local que se
vive experiências (LARROSA, 2002), presentes nas simples ações do dia a dia (nas
brincadeiras, nas conversas, no contar e ouvir histórias, no educarcuidar) se
contrapondo à noção hegemônica de um dia a dia vivido imerso nas repetições e
mesmices, onde não se criam e não podem ser criados conhecimentos, ou seja, nada se
inventa e nada se renova (OLIVEIRA, 2013).
O cotidiano da UMEI me aponta questões que me fazem refletir, dialogar e
avaliar minhas escolhas e concepções de educação, conhecimento, infância e criança,
dos espaços e tempos na educação infantil, me permitindo outras possibilidades de
experiências e aprendizagens com as crianças, que surgem nas imprevisibilidades do
dia.
Percebo essas questões na conversa do João Marcelo (cinco anos) com a “tia
Maria”, a merendeira:
- Tia Maria, o que vamos conversar hoje?
Ou, quando se aproxima de mim e diz que volta mais tarde para saber o que
vamos fazer no dia seguinte. Ou ainda, quando o João entra na sala que estou e me
pergunta:
- Hoje nós vamos tomar banho?

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sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

E eu imediatamente respondo e o questiono:


- Não sei João! Por que é que eu tenho que saber se o seu grupo vai tomar
banho ou não? Você já perguntou para Fernanda? (Fernanda é a professora).
- Você tem que saber, porque você é a diretora, ué.
Ou, também, quando as crianças reclamam com a tia Luciene (auxiliar de
serviços gerais) que ela nunca mais esteve na sala deles, e ainda assim, essas mesmas
crianças de 3 anos (GREI 3B) solicitam-na para ajudá-las a fazer biscoitos
amanteigados na cozinha experimental.
Percebo que as pesquisas pensadas com as crianças me revelam como elas
dialogam com o mundo social, sobre o que vivem na escola e como interagem com seus
pares, com outras crianças e adultos nesse espaçotempo.

(In) concluindo...
Temos um desafio cotidiano na UMEI Vinicius de Moraes que é a construção de
projetos pedagógicos que visibilizem as crianças na sua produção e que se contraponha
a um modelo homogeneizador tão presentes ainda nas escolas de educação infantil.
Desta maneira, buscamos tecer, tanto na interação da professora com as crianças quanto
na interação da diretora com as crianças, uma relação horizontal tendo em vista, que
essas mesmas estão inseridas em uma lógica adultocêntrica, e nós adultos, muitas
vezes, não estamos abertos às diferentes lógicas infantis, não percebendo assim, seus
modos próprios de comunicar seus pontos de vista (AGOSTINHO, 2015).
Acreditamos que as experiências trazidas por nós possam contribuir para um
novo olhar com e sobre a infância, para suas necessidades e peculiaridades. As crianças
o tempo todo nos colocam em movimento nos ajudando a pensar em outro paradigma
de escola de educação infantil, paradigma esse que surge da aposta em caminhos para
uma educação infantil pública popular que promova um cotidiano alegre e
potencializador da existência das crianças que diariamente (con)vivem nove horas
diárias de suas vidas, em interação com outros sujeitos.
Com efeito, partilhamos de nosso pensamento sobre uma escola de educação
infantil como um espaçotempo privilegiado que possibilita modos diferentes de
aprendizagens e desenvolvimento social, afetivo, pessoal e cognitivo da criança fora de
seu convívio familiar. As vivências (com)partilhadas com seus pares, com outras
crianças e com adultos são formas de conquistar uma gama de conhecimentos,

sumário 1832
VII Seminário Vozes da Educação

referências e pertencimento aprendidos com os coletivos que agora convivem no


cotidiano da UMEI.
Assim, esperamos também que nossos estudos venham a contribuir para um
debate mais ampliado sobre as práticas educativas que consideram o direito das crianças
de participar e decidir, efetivamente, sobre os rumos cotidianos da sua escola. Será isso
possível?

Referências
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algumas reflexões, da investigação às práticas, 6 (1), 69 – 86, dezembro 2015.

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FINCO, Daniela. Campos de experiência educativa e programação pedagógica na


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Ana Lúcia Goulart de. (organizadoras). Campos de experiência na escola da infância:
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Campinas, SP: Edições Leitura Crítica, 2015.

FERRAÇO, Carlos Eduardo; SOARES, Maria da Conceição Silva; ALVES, Nilda.


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sumário 1833
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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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In: Regina Leite Garcia. (Org.). A Formação da professora alfabetizadora: Reflexões
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sumário 1834
VII Seminário Vozes da Educação

EDUCAÇÃO, ARTE, INFÂNCIAS: DIÁLOGOS

Graziela Ferreira de Mello


PPGE UFF/FIAR / SEDUC
mellograzi@hotmail.com

Iasmim Cavalcanti Caballero Lira


PPGE UFF/FIAR
iasmim.caballero@gmail.com

No início: inquietações
Este texto foi feito a quatro mãos por duas educadoras e artistas que trabalham
com as infâncias, na escola e na Educação Infantil. Nosso lugar de fala parte do campo
da arte e se amplia em reflexões suscitadas pelas pesquisas e pelos estudos que estamos
fazendo nos últimos tempos, como mestrandas do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e como integrantes do Círculo de
Estudos e Pesquisa Formação de Professores, Infância e Arte (FIAR), da mesma
universidade. Nesse contexto, nosso olhar é movido para pensar a Arte e a Educação na
Infância a partir de outras óticas, além daquela que aprendemos em nossos cursos de
formação em Arte e, até mesmo, em nossa prática como educadoras-artistas.
Em nossa formação utilizamos o termo Arte-Educação ou Arte/Educação
quando nos referimos ao nosso trabalho em sala de aula; porém, na medida em que
ampliamos o contato com os estudos das infâncias, percebemos que no contexto da
educação das crianças, é necessário repensar e expandir nossa perspectiva, pois a
complexidade e as especificidades da Educação Infantil, por exemplo, demandam
fundamentos teóricos e práticos nem sempre presentes no campo da formação em Arte.
Uma das questões abordadas nos estudos que nosso grupo de pesquisa FIAR vem
realizando, diz respeito à denominação “ensino de arte” quando falamos da presença da
arte nas propostas pedagógicas voltadas às infâncias: Seria pertinente falarmos de
ensino de arte na Educação Infantil? Que concepções estão na base dessa denominação?
Haveria outras formas de definir essa relação educativa com a arte na infância? E, mais
ainda, pensando nos campos implicados: quais as relações possíveis entre Arte e
Pedagogia? Entre o professor de referência de um grupo e o professor de arte?

sumário 1835
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Sem pretender apresentar respostas a todas as questões que nos impulsionam à


pesquisa, na interface da arte com a educação, o texto argumenta sobre aspectos
conceituais, em diálogo com a artista contemporânea Anne Marie Holm e a atelierista
Vea Vecchi e mostra que é necessário aprofundar o tema, pois, ainda que complexa e
delicada, a discussão nos leva à clareza de que precisamos buscar outro caminho no
trabalho com a Arte nas Infâncias.

1. Oficinas de arte: uma proposta com arte contemporânea


1.1 Anna Marie Holm: artista e arte-educadora
Começaremos apresentando essa artista visual contemporânea dinamarquesa
chamada Anna Marie Holm (1951-2015), que ministrou oficinas para crianças de
diferentes idades em seu país, nas quais propunha desafios e, ao mesmo tempo,
investigava a relação das crianças com as materialidades dos objetos. A artista começou
trabalhando com crianças maiores, com cerca de nove anos em diante, mas em um dado
momento de sua vida resolveu dedicar-se unicamente à primeira infância, de zero a seis
anos, por considerar que esta é a fase mais importante. Diz ela:

Os bebês são muito artísticos na forma com que se relacionam com o mundo.
E eles me ensinam. Se você esquecer o que é a abordagem artística do mundo,
basta ir a algum lugar do berçário e olhar como eles se relacionam com o
mundo. São artistas de instalação desde o começo. É muito interessante ser
um artista que trabalha com crianças pequenas. Você pode ter uma pequena
ideia, algo pequeno, e eles tornam esse algo grande. Os maiores são racionais,
é difícil para eles. Então, se vou escrever mais, se vou desenvolver o meu
modo de pensar pela arte, tenho de trabalhar com zero a seis anos. (HOLM,
2015, p. 1)

Conhecida por seu caráter revolucionário no trabalho com arte para crianças, em
especial os bebês, dizia ter “grande fascínio por criar e investigar”. Ana Angélica
Albano (2005) a considerava uma agente de transformação de visões: da visão que se
tem de arte, de educação, de bebês, do trabalho de um arte-educadora e da própria vida.
Seu modo de fazer arte contemporânea reflete em seu trabalho com as crianças,
permeado por situações inusitadas e muita sensibilidade, repleto de vivacidade
(ALBANO, 2005). O Museu de Arte Moderna de São Paulo foi o responsável pela
publicação dos dois primeiros livros da arte-educadora no Brasil.
Atualmente, temos três livros de sua autoria publicados no Brasil: Fazer e
Pensar Arte (HOLM, 2005), Baby Art - Os primeiros passos com a arte (HOLM, 2007),
e Eco-Arte com crianças (HOLM, 2015), último livro traduzido e lançado aqui por ela,

sumário 1836
VII Seminário Vozes da Educação

pouco antes de seu falecimento. Seu trabalho expandiu o olhar dos educadores a
respeito do trabalho com arte nas escolas, levando a arte contemporânea para esses
espaços até então muito influenciados pelo pensamento modernista na Arte-Educação.
Seu livro Baby Art, logo após seu lançamento, tornou-se referência no trabalho com arte
na infância.
Anna Marie teve contato com a arte brasileira contemporânea e logo se
apaixonou; assim como nós brasileiros que trabalhamos com infâncias e arte também
nos apaixonamos por ela. Seus livros são registros extraídos de seus diários, contém
fotos e relatos das diversas experiências que a artista havia proposto em suas oficinas.

As crianças pequenas possuem um outro olhar para a Arte. Devemos guardar


uma certa distância quando estamos diante de uma obra. As crianças não.
Elas querem é fazer parte. Por isso a arte contemporânea é boa para elas.
Uma boa parte da produção contemporânea convida o público à interação.
Proporciona encontros e desafios entre a arte e nós mesmos. (HOLM, 2015, p.
108)

Trazer a arte contemporânea para a escola expande um horizonte do que vinha


sendo feito até então, principalmente quando pensamos especificamente no campo da
Arte-Educação. Durante muito tempo ficou arraigado neste fazer a perspectiva do
modernismo. Contudo, se fez necessário pensar fora desta caixa quando refletimos
sobre o trabalho com infâncias, pois esta perspectiva não dava conta de todas as
especificidades que as crianças pequenas nos apresentam. Por sua vez, no dia a dia do
trabalho pedagógico, com o tempo, a prática educativa vai se tornando rígida,
caminhamos pelo campo da segurança do que já é conhecido, enrijecendo nossas ações,
travando nossa sensibilidade e deixando nosso olhar embotado. Mas como mudar este
cenário? Segundo Holm “A arte é uma ferramenta maravilhosa para se explorar o
mundo” (HOLM, 2015, p. 9), pois são múltiplas as possibilidades, não há um só modo
de fazer e, com ela, podem-se experimentar, também, outros modos de pensar. Do
contato com a arte, exploramos o mundo e ampliamos a imaginação, como também
indica a pesquisadora Ostetto (2012):

[...] para abrir mais e mais os canais de expressão e produção de sentidos, é


essencial alimentar a imaginação. Sendo assim, aproximar-se da arte, um
campo de conhecimento que ronda o mistério, a incerteza, a incompletude e a
multiplicidade de sentidos, é uma boa direção a seguir [...] (OSTETTO, 2012,
p. 33).

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sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Percebemos, no caminho trilhado por Anna Marie Holm, no trabalho com as


crianças, essa perspectiva de abertura dos canais de expressão, essa proposição de
exploração de tudo que está a nossa volta, articulando com os processos da arte. Um
pouco mais de seu trabalho será apresentado a seguir.

1.2 Oficinas de arte: experimentação, corpo, arte e natureza


Em suas oficinas de arte é evidente como Holm provoca uma desconstrução-
reconstrução estética, usando a curiosidade natural das crianças, valorizando a pesquisa
feita por esses sujeitos, percebendo e acreditando que “[...] as crianças deveriam
aprender a pesquisar, a ter confiança em si mesmas e a ter coragem de se pôr a trabalhar
em coisas novas” (HOLM, 2005, p. 9).
Assim como o espaço, outros elementos têm papéis fundamentais e centrais em
suas oficinas: o corpo, o material, o tempo e o adulto. Esses fatores não devem limitar:

[o] estar num espaço desafiador;


a disponibilidade para o corpo se movimentar livremente;
a decisão pessoal da criança de onde ficar na sala;
a escolha de materiais pela criança;
a oportunidade de experimentar;
o controle do tempo;
a conversa, o bate-papo;
a liberdade da criança para ser ela mesma. (HOLM, 2005, p. 9).

Partindo dessa perspectiva, torna-se fundamental pensar o papel do adulto que


estará mediando as situações propostas. No entendimento da referida artista, o adulto
deve estar aberto, não querendo limitar as crianças, o tempo todo, enquanto ela produz.
Deve estar aberto às interações, a brincar com as crianças. Não precisa ser
necessariamente, um artista ou um professor de artes para cumprir esse papel, mas uma
pessoa aberta a essa experiência e que entenda que não se deve limitar essa fruição
artística da criança. Para a criança, esta fruição pode ser encarada como uma
simples brincadeira e, no caso, a brincadeira é tudo, é a experiência necessária!Durante
o processo, estar junto é essencial. Segundo Ana Angélica Albano (2007), no prefácio
do livro Baby-art, ao falar do processo e da valorização que Anna Marie Holm dá à
atitude de adulto/educador e crianças estarem juntos: “Para ela tudo vai depender da
disponibilidade do adulto de ouvir e acompanhar as narrativas criadas durante as
brincadeiras, e também, de sua capacidade de propor desafios e aceitar que as crianças
transgridam as propostas apresentadas criando outras” (ALBANO, 2007, p. 8)

sumário 1838
VII Seminário Vozes da Educação

Não se trata de promover essas experimentações sensoriais e artísticas


unicamente em “atividades”, com tempo pré-determinado para se encerrar, pois no
cotidiano escolar essas experiências permeiam as mais diversas situações. No diálogo
com a artista, compreende-se que o encontro da educação com a arte vai muito além da
pretensão de formar artistas, ou de necessariamente ensinar/aprender arte, pois a arte
tem o poder de nos conduzir a locais que não iríamos, ela nos interpela e nos convida a
experiências de corpo inteiro, a fazer perguntas e buscar respostas que não estão apenas
no campo da técnica, nem mesmo dos sentidos, mas no campo filosófico da existência.
Afinal,

“Estamos todos num campo de pesquisa artística. De repente me ocorre que


é a busca que nos une, pois nos ocupamos de algo em comum e
reconhecemo-nos por meio dessa ação. Simples materiais que nos permitem
fazer grandes perguntas”. (HOLM, 2017, p. 38).

Em seu último livro, Holm nos brinda com a possibilidade de trabalharmos arte
com a natureza, com a mentalidade de aprender com as crianças a necessária
simplicidade quando estamos falando de trabalhar a arte na vida.

A simplicidade é muitas vezes o maior desafio. É possível sair para um


passeio levando apenas uma pilha de jornais velhos e ainda assim construir
algo? O tempo está chuvoso hoje. O pensamento imediato de um adulto seria:
‘E agora? Não vai dar certo fazer aquilo que planejamos’. As crianças não.
Estão muito felizes de sair na chuva”. (HOLM, 2017, p. 104)

2. Ateliês: espaço de múltiplas linguagens


2.1 Vea Vecchi: atelierista
Assim como Anna Marie Holm, também Vea Vecchi nos apresenta as suas
experiências com as crianças quase como em um relato de memórias do tempo que
passou na Escola Municipal de Infância Diana, localizada na cidade italiana de Reggio
Emilia. Essa pequena cidade italiana ficou conhecida ao redor do mundo por
desenvolver uma nova forma de educação para a infância onde foram valorizadas todas
as linguagens da criança e onde o papel do atelierista na escola se tornou um diferencial
(EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999).
Vea Vecchi foi uma das primeiras atelieristas a trabalhar em Reggio Emilia, nos
anos 1970, e seguiu com esse ofício por muito tempo; por meio de seu trabalho,
registrado no livro Arte e creativitá a Reggio Emilia: esplorandoilruolo e

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sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

lapotencialitádell’ateliernell’educazione dela prima infanzia, publicado na Itália em


2010, traduzido e publicado no Brasil em 2017 (VECCHI, 2017), ela nos apresenta a
“[...] contribuição pedagógica que a presença de um ateliê e o trabalho de um atelierista
podem dar às escolas e ao trabalho educativo em geral” (VECCHI, 2017 p. 23).

2.2 O ateliê como espaço e como princípio


Uma das características principais (e originais) da pedagogia de Reggio Emilia
consiste em ter “[...] reconhecido e acolhido a estética como uma das dimensões
importantes na vida da nossa espécie e, portanto, também nas escolas e na
aprendizagem” (VECCHI, 2017, p. 27). Isso, na prática, reflete-se na criação do Ateliê,
não apenas sendo um espaço físico, mas também na metáfora que ele representa,
indicando a forma como Reggio Emilia construiu sua pedagogia totalmente voltada para
o desenvolvimento da criação e expressão estética na infância.
Nas palavras da atelierista:

Seria ingênuo pensar que somente a presença de um/uma atelierista possa


construir uma grande mudança para a aprendizagem, se a cultura do ateliê e
da pedagogia não se encontram em escuta recíproca e se ambas não são de
qualidade. Com a introdução do ateliê em uma escola, poderá crescer
facilmente a quantidade dos materiais a serem utilizados com as crianças e as
técnicas e a qualidade formal dos produtos acabados poderão melhorar; mas é,
sobretudo, a abordagem, a relação com as coisas, que deve ser colocada em
ação, por meio de alguns processos em que a dimensão estética é uma
presença importante, fundamental.(VECCHI 2017, p. 27)

A autora coloca em evidência a importância da experiência estética nesta


abordagem, que vai além da experiência artística, pois seu foco está em todos os
sentidos, como uma experiência que poderá, então, contribuir para uma “dimensão de
maior completude e humanidade” (VECCHI, 2017, p. 27).
Nos seus escritos, entre memórias e reflexões, encontramos a tentativa de definir
a dimensão estética, pois é um conceito multifacetado, que dialoga com diferentes
campos de conhecimento. Ela a define da seguinte forma:

[...] dimensão estética; talvez seja, antes de tudo, um processo de empatia que
coloca em relação o sujeito com as coisas e as coisas entre si. [...] É uma
atitude de cuidado e de atenção para aquilo que se faz, é desejo de significado,
é maravilhamento, curiosidade. É o contrário da indiferença e da negligência,
do conformismo, da falta de participação e de emoção. (VECCHI 2017, p. 28)

sumário 1840
VII Seminário Vozes da Educação

Tendo isso em vista, podemos relacionar a necessidade da presença da arte na


infância com a necessidade humana de desenvolver a dimensão estética como uma
forma de melhorar a sociedade, formando sujeitos mais empáticos, sensíveis e éticos.
Isso não se desenvolve apenas com “trabalhinhos de artes”, ou em atividades pontuais.
Vecchi e a pedagogia reggiana defendem a presença da arte de maneira integrada ao
cotidiano das crianças (e por que não dizer dos adultos?).

3. Oficinas, ateliês, arte, crianças: desafios e possibilidades


A partir dessas duas autoras, educadoras e profissionais que trabalham com artes,
podemos conceber a ideia de modificar a forma como a arte é trabalhada na educação
das infâncias. Considerando o papel e o valor do campo de estudo da arte e suas
conquistas nos últimos anos no campo da educação, compreendemos que muito ainda
há para ser estudado, sobre a relação arte e infância. Ao conhecer as experiências e
conceitos envolvidos no trabalho de Anna Marie Holm e de Vea Vecchi, fica evidente
que a infância é um campo cujas especificidades devem ser levadas em consideração
quando se trata de investigar possibilidades.
Holm e Vecchi não pretendem definir metodologias ou fórmulas do tipo receita
de bolo, muito ao contrário; buscam quebrar paradigmas em seus trabalhos, seja com a
necessidade de rever a forma como lidamos com os materiais nas propostas, seja com o
espaço destinado à criação e aos processos artísticos, ou mesmo na quantidade e
qualidade do tempo destinado às demandas das crianças.
O estudo acerca dessas autoras e as questões por elas trazidas nos fazem
perceber como olhar para a prática com arte na infância não se reduz a aulas de artes
convencionadas, pois fica claro que estas não dão conta da criança em sua totalidade.
Como avançar, a partir de suas contribuições? Seria viável propor ateliês e oficinas
como as que foram produzidas por Holm e Vecchi? Se considerarmos a proposta como
a importação de um modelo, acreditamos que não. Cada país, cada cidade, cada escola,
têm suas especificidades, que devem ser levadas em conta. Além do que, como afirmou
a própria Vecchi (2017), o ateliê é muito mais que um espaço físico; sem o
entendimento profundo da ideia da interação e relação de todos da escola com as artes,
de nada adianta uma sala repleta de materiais e possibilidades.
Por outro lado, podemos nos inspirar em suas experiências e propostas,
que nos ajudam a compreender que a forma como olhamos para as artes não deve ser
nem superficial, nem complexa demais. Concordamos com uma famosa frase cujo autor

sumário 1841
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

(a) desconhecemos: “Qualquer coisa pode ser arte, mas arte não é qualquer coisa.”
Parafraseando o autor anônimo, dizemos: qualquer coisa pode ser uma proposta de arte
na/para/com a infância, mas a arte na/para/com a infância não pode, e nem deve, ser
qualquer coisa. As propostas e os materiais podem ser simples, comuns, provindos de
descartes, recolhidos em meio à natureza, mas o que dará sentido à experiência estética
será a intencionalidade do professor que está mediando a situação de aprendizagem.
A inspiração deve começar na forma como olhamos para a arte na nossa vida. E,
nessa direção, concordamos que, nesse percurso,

[...] o encontro com a arte torna-se encontro-busca, porque envolve atitude


diante da vida, na ousadia e na coragem de correr riscos e de se afirmar autor,
criador de outros sentidos. Penso tal encontro-busca como “educação estética”
(mais do que “ensino de arte”), ou seja, uma proposta que envolva um
conjunto de vivências e experiências abertas à validação de outros modos de
conhecer, qualificando sensibilidade, sentimento e intuição. (Ostetto, 2017, p.
34).

Para finalizar…
Este artigo se apresentou para nós como um desafio. Duas educadoras, formadas
em Artes Visuais se propondo a pensar a Arte na infância, sem necessariamente estar
formatada como ensino de arte, sem, por exemplo, contemplar uma abordagem
triangular (fazer artístico; leitura da obra; e contextualização) como a proposta por Ana
Mae Barbosa (2010) que tem sido a base para o trabalho com arte em outros níveis de
ensino da Educação Básica. Quando se trata de infâncias, sobretudo da educação de
crianças de zero a seis anos, não está “em jogo apenas um fazer-saber sobre arte” como
nos diz Ostetto (2018), mas está em jogo modos de ser e estar no mundo, modos de
conhecer, explorar e expressar o mundo.
Em nosso país, são poucas as produções teóricas “[...] que evidenciam as
expressões artísticas como eixos fundamentais na educação das crianças pequenas”
(GOBBI apud DA SILVA, 2015, p. 76); devido a isso, se faz necessário o
aprofundamento acerca desta temática, por meio da pesquisa e da publicação de escritos.
Ao final deste breve texto, que foi impulsionado pelo desejo de saber mais sobre
educação, arte e infâncias, percebemos que para responder os questionamentos
levantados no início do texto precisaremos de mais pesquisa, pois localizamos, no
processo de produção da reflexão aqui apresentada, mais dúvidas do que certezas. E
serão elas, as dúvidas, que nos ajudarão a continuar neste caminho com as infâncias, na
escola, na Educação infantil, como artistas, educadoras e pesquisadoras.

sumário 1842
VII Seminário Vozes da Educação

Deixamos reverberar as palavras-geradoras de mais inquietações e, também, de


esperança para seguir redescobrindo formas de fazer e pensar arte com as crianças, de
fazer e pensar educação com inteireza, respeitando os modos próprios de ser, estar,
pensar das crianças:

Os pequenos nos convidam a experimentar.


Eles têm a arte dentro de si.
Eles criam arte.
Eles nos dizem algo.
Algo que perdemos.
Algo atraente e sedutor.
Algo que reconhecemos.
E que não podemos explicar.
Tudo é muito maior.
Para as crianças pequenas existe uma conexão direta entre vida e obra.
Essas são coisas inseparáveis. (HOLM, 2007, p. 3).

A pergunta que precisaria ser feita é relativa a quanto, e de que modo, os


processos de aprendizagem e de ensino seriam modificados, se a cultura
escolar acolhesse as linguagens poéticas e a dimensão estética como
elementos significativos da construção do conhecimento. (VECCHI, 2017,
p.43).

Referências
ALBANO, A. A. Prefácio. In: HOLM, A. M. Fazer e pensar Arte. São Paulo: Museu
de Arte Moderna de São Paulo, 2005.

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e novos tempos. São
Paulo, Perspectiva, 2010.

DA SILVA, M D N. As Artes Visuais nas práticas das professoras de uma Unidade


Municipal de Educação Infantil de Belo Horizonte. 2015. 222. Dissertação
(Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2015.

HOLM, Anna Marie. Fazer e Pensar Arte.São Paulo: Museu de Arte Moderna de São
Paulo, 2005.

HOLM, Anna Marie. Eco-Art com crianças. São Paulo: Ateliê Carambola, 2015.

HOLM, Anna Marie. Baby-Art: os primeiros passos para a arte. São Paulo: Museu de
Arte Moderna de São Paulo, 2007.

HOLM, Anna Marie, entrevista concedida a Revista Educação. Disponível em:


<https://www.revistaeducacao.com.br/novo-livro-de-anna-marie-holm-fala-sobre-a-
relacao-com-a-natureza-em-atividades-de-arte-educacao/>.
Último acesso: 18/10/2019.

sumário 1843
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

OSTETTO, Luciana. Arte e educação, crianças e adultos: diálogos para transver o


mundo. V Colóquio de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana, São Carlos,
2012.

_________. Leitura dialogada: sobre a arte na educação infantil, professores e práticas.


In: CARVALHO, L., NEVES, V. (org.). Infâncias, crianças e Educação: discussões
contemporâneas. Belo Horizonte: Ed Fino Traço, 2018. p. 63-68.

OSTETTO, L. E.;SILVA, G.D. de B. Formação docente, educação infantil e arte: entre


faltas, necessidades e desejos. Revista Educação e Cultura Contemporânea, 15(41),
2018, p. 260-287.

VECCHI, Vea. Arte e criatividade em Reggio Emilia: Explorando o papel e a


potencialidade do ateliê na educação da primeira infância. São Paulo: Phorte Editora,
2017.

sumário 1844
VII Seminário Vozes da Educação

A BUSCA PELO ÍNTIMO: DIÁLOGOS ATRAVESSADOS PELO


AUDIOVISUAL ENTRE MULHERES NEGRAS PENSANDO A EDUCAÇÃO
DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Leidiane dos Santos Aguiar Macambira


Doutoranda PPGE-UFF294

Shirley Martins da Silva Camillo


Voluntária -UERJ295

Steffanie Moreno da Costa


PIBIC - IM/UFRRJ296

LEAM: Laboratórios de Estudos e Aprontos Multimídia


O presente trabalho pretende narrar a feitura, ainda em andamento, e as reflexões
que já se colocam a partir da produção de um documentário em que principalmente as
integrantes que compõem o LEAM - Laboratórios de Estudos e Aprontos Multimídia -
estão imersas. O LEAM é um laboratório de pesquisa formado por professoras e
professores da Educação Básica e de Universidades Públicas, por estudantes da
graduação e pós-graduação, ativistas e militantes que estão envolvidos com as lutas
antirracistas. Ele está alicerçado basicamente em dois grandes fios condutores, os
estudos compreendidos na dinâmica de pesquisa do laboratório e das pesquisas de seus
integrantes e os aprontos que estão em contato constante com os nossos fazeres dos
estudos, e com a nossa disponibilidade de produção de conteúdo e recursos formativos
para a comunidade docente, são as materializações daquilo que compreendem a
pesquisa. Temos realizado estudos e aprontos no campo da Educação, por uma

294
Doutoranda em Educação pelo PPGEDU-UFF. Mestre em Educação pelo PPGEDU: Processos
Formativos e Desigualdades Sociais (UERJ-FFP). Pedagoga pela UERJ-FFP. Professora substituta no
curso de Pedagogia da FFP-UERJ. Bolsista de Demanda Social pela CAPES. Contato:
leidianesamacambira@gmail.com
295
Graduanda do curso de Pedagogia da UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Contato:
shirleymartins.sm1@gmail.com
296
Graduanda do curso de Pedagogia da UFRRJ - Instituto Multidisciplinar. Bolsista de Iniciação
Científica na UFRRJ. Contato: steffaniemoreno@gmail.com

sumário 1845
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

formação de professores que considere as desigualdades produzidas nas relações étnico-


raciais, as transformações produzidas pelas TICs e enfrente-as com outras formas de
ensinar-aprender.
O projeto nó do laboratório intitulado “Educação das relações étnico-raciais na
cultura digital”, nasce como um desdobramento dos projetos de pesquisa anteriores.
Atualmente estudamos, diferimos e conversamos sobre as desigualdades construídas,
sócio-historicamente, a partir das relações étnico-raciais no Brasil, a partir da educação
e as suas repercussões na cultura digital. Diante destas questões (e muitas outras)
estamos na busca por elementos que possam contribuir na compreensão daquilo que nos
dispomos a pesquisar nas nossas atuações com atenção principal na formação de
professores e naquilo que incide sobre tal formação: as desigualdades produzidas nas
relações étnico-raciais e as condições de lidarmos com tais desigualdades como
professores, como cidadãos. Nossos esforços de estudo, de intervenções e na produção
de material educativo toma as questões em torno da imagem e das linguagens usadas na
cultura digital. O estudo da produção do olhar e as consequentes auto-produções e a
produção dos outros e do mundo.
Na tentativa de visualidade outras, utilizamos a linguagem audiovisual para
desenvolver os nossos aprontos, dialogando com as pesquisas dos integrantes,
registrando processos formativos e estabelecendo relação com aquilo que a escrita
sozinha não dá conta. Pensar a educação como encontro entre sujeitos no espaço
educativo coloca em jogo outras demandas e desafios formativos, a linguagem
audiovisual pode possibilitar um outro olhar nas histórias de vidas, as nuances, as
tensões e as dificuldades de alguns movimentos realizados ao lidar com narrativas,
narrativas essas que estão em um campo de disputa. Histórias de vida que nos provocam
a questionar a nossa formação, os destinos que nos são reservados a partir das
instituições educativas nas quais transitamos. Na simples apreensão de uma tecnologia
de codificação e decodificação da palavra, tencionamos alargar os horizontes de
possibilidades. Lutar pela possibilidade de poder dizer a sua própria palavra em
dimensão autoral, de poder ler o mundo e as relações que travamos nele é um ato de
rebeldia na busca pela liberdade. Somos sujeitos imersos no mundo, atravessados por
questões existenciais, estéticas, éticas, políticas. Neste trabalho, portanto, trazemos
como proposta de diálogo algumas dessas questões, com as quais vimos nos
relacionando há algum tempo.

sumário 1846
VII Seminário Vozes da Educação

1. O Documentário como linguagem para o encontro


Em pesquisas realizadas no LEAM, destacamos a contribuição que Graziele
Lira297 tece com sua dissertação de mestrado sobre a Síncopa TV298 e seus efeitos na
reflexão sobre o audiovisual na educação das relações étnico-raciais para dizermos os
nossos desejos na produção deste curta. Dentre outros aspectos, a autora destaca o
audiovisual como possibilidade de tornar público ou seja, trazer para os espaços de
aparência (ARENDT, 2007) os saberes que até então são invisibilizados pelo
etnocentrismo colonial presente em nossas instituições. A escola, a família, a arte,
museus, mídias etc. Estas instituições foram construídas a partir de um pensamento
colonial (SCHWARCZ, 1993), no qual prevalece apenas uma cultura, uma raça, uma
sociedade. As mulheres negras não tem visibilidade neste cenário, e quando muito,
estão representadas nas figuras estereotipadas que vemos circulando em nosso dia-a-dia:
a escrava, a empregada, a mulata etc.

(...) ouvir e se ouvir para que a gente possa pensar em como cada um percebe
e modifica em si o que vem sendo naturalizado. As pessoas precisam falar,
contar, pensar, sentir, ver, usar a comunicação como verbo. Essa é uma
tentativa para re-inventarmos formas outras de nos relacionarmos que
transforme os pré-conceitos que estão postos como verdades históricas e
produzem desigualdades. (LIRA, 2019. P. 89)

A produção de uma narrativa audiovisual - o documentário -, neste sentido é a


expressão de um gesto de atenção para os silêncios, ou melhor, para os silenciamentos
produzidos ao longo da construção do nosso país. Trazer à tona, histórias que mostram
outras possibilidades de vida para as mulheres negras segue na aposta ético-política de
desconstruir o que se tem posto como verdades históricas, as quais contribuem para a
delimitação de espaços e produção de desigualdades sociais. Retomando o pensamento
de Arendt, habitar os espaços da aparência é também lutar pela vida.
Com esse objetivo, seguimos na produção deste filme. Um dispositivo de
linguagem que tem nos permitido fazer ver estas vidas. Vidas, que não estavam
impressas nas grandes biografias ou nas páginas dos livros de história. Mas que podem
contribuir para pensarmos as dimensões de uma educação antirracista. O que podemos
aprender com essas mulheres? Como se veem? Como, a partir destas imagens impostas
elas se inventam, na produção de uma vida possível de ser vivida? Como veem as
demais? Como veem o mundo? Como (re)inventam(se) (no)o mundo?
297
Dissertação disponível em: https://sigaa.ufrrj.br/sigaa/public/programa/defesas.jsf?lc=pt_BR&id=7554
298
Disponível em: http://sincopa-tv.estudoseaprontosmultimidia.info/

sumário 1847
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

O compromisso para esta empreitada segue no sentido que Eduardo Coutinho


traz à produção audiovisual. Não desejamos reproduzir o mundo, ou trazer “a verdade”.
Inspiradas pelo cineasta citado acima, acreditamos que Nenhum filme muda o mundo.
(FILÉ, 2000. P. 71) No entanto, fazer um filme sobre algo que geralmente as grandes
produções não estariam interessadas terá um efeito pros outros no sentido de conhecer o
mundo, só isso (Idem. P. 71). A proposta segue no sentido de produzir efeitos com
aquilo que nos toca. Um gesto, modesto de oferecer a si ao outro, uma outra
possibilidade de ver o mundo por outras lentes, diferente daquelas que já circulam nos
grandes meios de comunicação. A partir da estética que a produção dos vídeos, e suas
condições materiais, tem nos proporcionado, intentamos dar a ver histórias que, dentro
de uma lógica biográfica que interessa-se por “grande feitos” ou por “grandes heróis”
consagrados pela história oficial, buscamos fazer histórias que outros não fariam.
No entanto, como foram conduzidas as escolhas das mulheres para fazer parte
deste curta-metragem? Quais os critérios para convidá-las a fim de realizar gravações
para um possível documentário? Que perguntas elegeremos para as conversas? Como
realizar as gravações? Que suportes, estéticas usar? Estas perguntas serão melhor
refletidas em fragmento a seguir.

2. A escolha das mulheres para ouvir suas histórias


Pensar em quais mulheres convidar para compor a narrativa deste documentário,
faz-se necessário dar a volta para ver de outras perspectivas (SARAMAGO, 2001) a
história da construção do nosso país, percebendo assim os seus meandros. É de comum
conhecimento que o que caracteriza, ao menos no senso comum, uma pessoa negra é o
seu tom de pele. Sabemos também que na construção de nossa república (SCHWARCZ,
1993), houve a importação de teorias raciais (TODOROV, 1993), criaram-se projetos de
cidadania, nos quais fomos - negros e mestiços - considerados como a degeneração
racial. E por isso, precisaram a partir de práticas eugenistas, “curar” o Brasil,
significando a expurgação da população antes escravizada. Junto a estas estratégias,
temos também a teoria de branqueamento.
Na construção do Brasil república, onde o parâmetro de verdade é a ciência
moderna - ciências biológicas, a antropologia, exatas, etc - esta representação mantém-
se, agora com respaldos científicos. Neste sentido, ao negro restava a imagem do liberto,
do sub humano escravizado que precisava ser “humanizado”, higienizado, educado,
docilizado e submisso ao paternalismo branco. Aos mestiços e negros, que lograssem a

sumário 1848
VII Seminário Vozes da Educação

ascensão deste lugar social, deveriam aceitar as condições para “redenção”, um projeto,
cuja realização traria consigo a prova insofismável [de sua] inserção. Significava um
empreendimento que, por si só dignificava aqueles que o realizassem. (SOUZA, 1983.
P. 21) Dignificar-se, neste sentido é tornar-se um cidadão respeitável. E, como naquela
sociedade, o cidadão era o branco (SOUZA, 1983. P. 21), tornar-se digno à
comunidade nacional é tornar-se branco.
Fazendo grande esforço para encontrar a presença das mulheres negras neste
pano de fundo construído por historiadores e sociólogos sobre a construção do nosso
país, percebemos sua presença a partir da ausência. Num contexto de ideologia do
branqueamento a partir da mestiçagem, percebemos o corpo da mulher negra como um
instrumento de produção de seres mestiços. Sem dignidade, objetificada e assujeitada a
um plano que a desconsidera. Quantas mulheres negras não foram submetidas a serem
procriadoras de uma população em processo de embranquecimento? Quantas vezes
ouvimos histórias de nossas avós ou bisavós que foram “pegas no laço”... Neste corpo,
percebemos a violação de uma vida.
Demos esse breve passeio pela história para justificar os motivos que nos
fizeram escolher as mulheres para serem entrevistadas. Em contraposição ao contínuo
de cor, tratado por Neusa Santos Souza, contínuo a que estamos submetidas desde
quando nascemos, procuramos convidar mulheres cujas marcas corporais variam dentro
dessa escala cromática. Se ao nascermos, vindas de úteros, que foram considerados
apenas como órgãos reprodutores para a maquinaria embranquecedora… E, no decorrer
de nossas vidas somos impelidas a embranquecer, aqui, com o documentário, o convite
é perceber vidas que seguiram para o lado inverso deste contínuo. Enegreceram..
Com Lélia Gonzalez pensamos que, a gente nasce preta, mulata, parda, marrom,
roxinha dentre outras, mas tornar-se negra é uma conquista. Diante de sua fala, o que
estas mulheres conquistaram nesta disputa pela vida? Com suas histórias de vida, o que
podemos pensar sobre os processos de formação de mulheres negras em nosso país?
Como as instituições formativas contribuem para postergar esse contínuo de cor? O que
há de comum nestas histórias? Como os discursos científicos, elaborados nos gabinetes
e laboratórios acadêmicos se capilarizam nas camadas mais populares? E, como ele se
materializa na vida dessas mulheres e de outras mulheres negras? E, como elas, desde
seus lugares de fala (RIBEIRO, 2018) - educação, mídias, religião, arte, ciência, saúde
etc. - produzem outros saberes a fim de desconstruir tais discursos?

sumário 1849
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Até então, conversamos com 5 mulheres. Seus nomes, ainda permanecem


preservados. Mas traremos aqui algumas informações sobre elas. Vejamos: Uma delas,
é professora e está atuando na direção de uma universidade pública em nosso estado. De
família de classe média do Rio de Janeiro, relata as discriminações sofridas por si e por
sua família. Percebemos na sua narrativa, tamanho empenho, dentro de sua atual função,
em prol da luta antirracista.
Há também, dentre as entrevistadas, outra professora universitária, atuante nos
cursos de pós-graduação e de graduação em sua instituição - pública -. Considera-se
negra, com pele clara. Conta como cresceu sendo educada a ser embranquecida e imersa
a discursos e piadas racistas, vindas de seus familiares.
Saindo da área da educação, fomos ao campo da comunicação. Desta vez,
entrevistamos uma jornalista. Que enfatizou negar a todo tempo sua origem negra. No
entanto, esta negação e as inúmeras performances para se parecer branca, não a livrou
de sofrer preconceito nas relações profissionais.
Transitando por outras áreas formativas, fomos - não presencialmente - ao
interior da Bahia para entrevistar uma mulher atuante em um terreiro de Candomblé. O
convite a esta, foi motivado também pelo motivo de estar na pós-graduação como aluna
desenvolvendo uma pesquisa dentro de seu terreiro. Dentre muitos assuntos tratados
durante a entrevista, ela ressalta as dificuldades de transitar pelas metodologias
hegemônicas no campo da antropologia. Porque, naquele contexto, ela não é somente
uma pesquisadora, mas também o seu próprio objeto de pesquisa. Como aplicar as
metodologias e princípios científicos aprendidos em sua jornada acadêmica para uma
pesquisa que demanda outras formas de investigar?

3. Tecendo encontros possíveis


Após escolhermos as mulheres, deparamo-nos com um problema: a distância.
Algumas delas não moram no Estado do Rio de Janeiro. Como realizar, então, as
entrevistas, se as condições físicas, financeiras e de tempo não nos permitem chegar a
elas? Insistimos em conseguir recursos para viajar até lá? Ou lidamos com as condições
possíveis para, até mesmo com elas, aprendermos algo? Desde o campo em que
atuamos - a educação - estamos o tempo todo lidando com as condições possíveis. O
tempo possível, o recurso material possível, os encontros possíveis… Talvez se
esperássemos termos tudo o que fosse ideal para as nossas práticas pedagógicas e
investigativas, não seria possível trabalhar. Estaríamos sempre à espera… No entanto,

sumário 1850
VII Seminário Vozes da Educação

nos cotidianos escolares, aprendemos a aproveitar o que já temos. Bricolamos com as


condições possíveis e produzimos nossos fazeres. Por que não, então aproveitar a falta
do encontro físico, para inventar outras possibilidades de encontro e de conversa?
Decidimos, então, realizar as entrevistas a partir do uso de aplicativos de vídeo-
chamadas. Combinamos um horário para o encontro. No entanto, tivemos que lidar com
situações novas, fazendo-nos recalibrar os nossos saberes sobre a produção de um
audiovisual. No fluxo comum de uma gravação temos uma equipe que, horas antes do
encontro marcado, escolhe o local da gravação considerando o som ambiente, a
iluminação o fluxo de pessoas etc. Após toda esta avaliação, começamos a montar o
equipamento, verificamos o melhor ângulo, a distância da câmera, o tamanho do quadro,
testamos o som etc. Mas, em uma gravação à distância nada disso é possível. Temos
que contar com a disponibilidade da entrevistada para fazer esses acertos. Damos
algumas dicas, pedimos para posicionar melhor a webcam, ou a bandeja do notebook,
orientamos para não ficar contra a luz de alguma janela etc… Mas quem decide no final
das contas é ela. Como lidar com isso? Como seguir com uma produção na qual não se
tem o total controle? Não há controle sobre o outro, há sempre negociações… e
possibilidades a partir das condições que cada uma se dispõe para estar ali. E já não era
assim em outras situações? A condição posta pelo uso da tecnologia, trouxe-nos a
possibilidade de experienciar de forma muito objetiva as dimensões de um trabalho
coletivo. Nunca teremos o controle de tudo, e nunca sairá exatamente do jeito como
esperávamos, pois não se trata somente de nós, mas também da disponibilidade do outro
para que o encontro aconteça. Sem o outro, não é possível o encontro.
Dentre essas questões, temos também as condições materiais, como qualidade da
internet, insuficiência de equipamento como tripés, microfone, iluminação artificial
etc… Todas estas condições nos proporcionaram uma produção, que gostamos de
chamar de “estética do imprevisível”. Mesmo com a iluminação nada ideal, ou o ângulo
que não favorece muito a imagem, a resolução da câmera ou até mesmo o sinal da
internet que por vezes falha, ainda assim pudemos tecer uma boa conversa. Duas
pessoas a quilômetros de distância, partilhando histórias que se aproximam.
Conectando-se e tecendo redes de formação a partir das condições possíveis.
Neste entremeio de conversas e produções, somos formadas. Porque a
complexidade presente nas conversas - desde as condições materiais e simbólicas com
que lidamos no momento da gravação - faz-nos estar em constante estado de alerta.
Lançamos mão de muitas formas de unir noções/ conceitos/ teorias que se afastam

sumário 1851
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

entre si e que estão separados e catalogados em compartimentos estanques (MORIN,


1995. P. 84) (ALVES, 2008. P. 25). Dizemos formação, porque na medida que
realizamos estas gravações temos também que inventar e aprender outros modos de
produção audiovisual.
Como fazer com que as histórias de mulheres tão distintas entre si, advindas de
contextos sociais e culturais tão diversos possam se conectar e formar uma narrativa
filmográfica? Qual o fio condutor para esta histórias que desejamos compor? Talvez,
um caminho possível, no qual temos seguido sejam as puxadas de conversas, as
perguntas etc.

Para explicar melhor vou recorrer ao documentário Boca de Lixo, que foi
filmado num lixão da periferia do Estado do Rio de Janeiro. Eduardo
Coutinho faz a seguinte pergunta: “ Como é que é aqui, é bom ou é ruim ?”
Ou seja, a despeito de todas as “ certezas” que se pode ter sobre uma situação
que supostamente já está definida a priori, dar chance de que as pessoas
falem e que possamos vislumbrar para além do que a vista alcança. No caso
de Boca de Lixo, várias respostas confirmam a confiança do diretor – uma
delas responde “Trabalhar aqui é melhor do que trabalhar em casa de
madame!” (FILÉ, 2000. P. 69)

Trouxemos esta história, já narrada por inúmeras vezes pelo nosso orientador,
pois dá a ver exatamente aquilo que temos vivenciado no preparo das perguntas a serem
feitas no momento da entrevista. Elas nos são necessárias para termos alguns pontos de
conexão entre as narrativas. No entanto, as conversas seguem para rumos sobre os quais
não temos o controle. Como se estivéssemos tentando acompanhar passos perdidos
(CERTEAU, 1994) com uma lógica harmônica que não se adequa às imprevisões.
Entramos em um grau da conversa, em que as perguntas com as quais nos munimos
antecipadamente já não funcionam mais. Precisamos desfazermo-nos das nossas
certezas embutidas em nossas expectativas, para então poder ouvir depoimentos que
nossas vistas ainda não alcançam. Para cada encontro é necessário criar uma nova
organização de pensamento e de perguntas.

Eu acho que você tem que estar vazio, isso que eu acho que é o mais difícil.
Vazio é o seguinte, a pessoa tem que sentir que você não espera dela nem a
resposta sim nem não. Tem um vazio que ela tem que preencher. Então é um
vazio curioso que quer saber dela, entender o que ela tem pra dizer. (FILÉ,
2000. P. 74)

A fala de Coutinho nesta entrevista demonstra uma das dificuldades que temos
enfrentado. Dificuldade esta que pode estar na produção audiovisual, ou também, nas

sumário 1852
VII Seminário Vozes da Educação

elaborações de nossas pesquisas em educação, nas nossas práticas cotidianas com os


sujeitos da escola. Precisamos estar vazios, para que o outro preencha este espaço com
suas histórias. Para que possamos, talvez, satisfazermos nossa curiosidade por aquilo
que o outro tem a nos oferecer, a nos dizer.
Buscar este estado de espírito de estar vazio, não se trata da ilusória pretensão de
neutralidade. Trata-se de sinalizarmos com o nosso corpo, com as nossas palavras e
olhares, enfim, com as múltiplas possibilidades de linguagens que estamos disponíveis
para o encontro. Estamos vazio, porque nos colocamos como territórios de passagem
para que alguma coisa daquilo que ouvimos nos atravesse e produza efeitos.

4. Negociando desejos: a busca pelo íntimo


Ao longo da produção, em que foram acontecendo as entrevistas, grandes
transformações foram surgindo. Mudanças contextuais que estão moldando o fazimento
deste documentário. As duas primeiras tentativas de entrevistas foram feitas com uma
equipe que envolvia seis pessoas, sendo dois integrantes homens, contando também
com um aparato audiovisual muito maior em relação ao que usamos hoje.
Transformações que foram buscando a intimidade pelo diálogo, mudanças que foram
sendo articuladas e pensadas através das necessidade a qual o documentário se propõe.
As primeiras entrevistas foram realizadas com a mesma pessoa e com a mesma
equipe, ambas direcionadas pelo coordenador do Leam, Valter filé. Para o pontapé
inicial deste novo apronto, contamos com seis integrantes, câmeras fotográficas e de
vídeo, cenário previamente estudado, uma produção de escala pequena, mas que
envolvia um número grande de pessoas do nosso laboratório. Em nossa primeira
tentativa, realizamos filmagens com a entrevistada se dirigindo ao local da entrevista,
acompanhando seus passos, disponibilizando uma integrante da equipe só para realizar
esta cobertura, além de outra que já se encontrava a postos com a câmera posicionada
para o grande momento. A entrevista ocorreu em um local aberto, estrategicamente
pensado assim que a equipe se dirigiu ao ponto e estudou as possibilidades existentes de
todo o espaço para a realização de uma entrevista. Todo o material e equipamentos já
devem estar previamente montados na área escolhida, assim como a equipe pronta para
a ação. Mas isso não quer dizer que problemas não possam aparecer. E foi isso que
aconteceu, toda a entrevista não serviria como elemento audiovisual, pois a imagem
ficou desfocada.

sumário 1853
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Já na segunda visita, escolhemos um novo espaço, mudamos a locação e


preparamos uma sala que continha estantes de livros, contávamos também com novos
recursos de iluminação, equipamentos que seriam usados pela primeira vez. Assim
como na conversa anterior, a entrevista foi realizada pelo nosso coordenador. E o que
ficou dessas primeiras experiências? Poderia ter algo a mais a ser explorado nas
conversas?
Dias depois, quando a equipe reuniu-se para avaliar a atividade, percebemos que
a presença de um homem como entrevistador não funcionava muito bem. Talvez,
poderiam existir elementos novos, se a pessoa a entrevistar fosse uma mulher. Não
queremos hierarquizar, muito menos essencializar o ser mulher, como se uma mulher
fosse capaz de decifrar a outra… Como se fosse uma conversa entre os mesmos. Longe
disso.
Trouxemos esta experiência porque em outros momentos em que a equipe de
produção foi menor e sem a presença masculina, a conversa tomou rumos muito
diferentes. Estamos curiosas por entender o que acontece neste processo, por isso
trouxemos para o diálogo, a fim de agregar outras pessoas a pensar conosco.

Então, a partir dessa diferença, de que eu sou socialmente outro, superior


socialmente ao que a pessoa na frente da câmera é. Além de que você tem o
poder da câmera e ela não tem poder. A partir desta diferença bem
estabelecida pode haver uma igualdade temporária e utópica. Então isso
também funciona prá depois da filmagem. “Ah os abismos estão transpostos !”
– isso é falso. Pode haver excepcionalmente, mas é falso. Quando você se
aproxima das pessoas para fazer uma filmagem não dissolve a profunda
diferença social, econômica e cultural que existe entre você e o outro. (FILÉ,
2000. P. 72)

Como trazer questões que em algum momento pode atravessar cenas de


misoginia, machismo ou feminicídio quando temos a nossa frente a representação social
daquele que historicamente têm sido os nossos agressores? Há também algo a ser
considerado aqui: o lugar de fala. Estamos situadas socialmente em um lugar diferente
dos homens e também das mulheres negras. Este lugar nos proporciona saberes dos
quais nos capacitam a entender fenômenos que talvez, jamais poderiam ser
vislumbrados por um homem. As relações não são tranquilas, nem quando há somente
mulheres, mas ter uma equipe composta somente por mulheres foi um movimento
importante para o documentário.

Considerações Finais

sumário 1854
VII Seminário Vozes da Educação

A experiência de produzir uma narrativa audiovisual tem sido um aprendizado,


já que não somos profissionais área da comunicação. Somos mulheres negras,
professoras em constante formação que necessitam a cada encontro neste processo
formativo, recalibrar os nosso passos em nossos cotidianos formativos e também,
investigativos.
As mulheres com as quais temos nos encontrado para a gravação do
documentário têm nos ajudado a perceber e problematizar as tensões entre educação,
formação e a educação das relações étnico-raciais. A palavra aqui - dita, escrita, ouvida,
vista e sentida - como lugar de habitação e cuidado de si e do outro. Também, como
lugar de tensão e disputa. Afinal, lutar pela palavra, é lutar pela vida.

Referências
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redes cotidianas. In: OLIVEIRA, I. B.; ALVES, N. Pesquisa nos/dos/com os
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FILÉ, Valter. Os dois lados da câmera. FILÉ, Valter (org.). Batuques, Fragmentações
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DP&A, 2000. pp. 69-82.

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SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya,
2017.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro


brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

sumário 1855
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

TODOROV, Tzvetan. Nós e os Outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

sumário 1856
VII Seminário Vozes da Educação

ESCOLAS POSSÍVEIS E PROFESSORAS NEGRAS: COSTURANDO


RELAÇÕES QUE PRODUZAM UMA EDUCAÇÃO OUTRA

Rejane Lucia Amarante Macedo


UFF
reluam30@hotmail.com

Começando uma escrita-costurada


A escrita costurada deste texto surge dos desdobramentos da pesquisa realizada
por mim no Mestrado Acadêmico em Educação no Programa Processos Formativos e
Desigualdades Sociais na Faculdade de Formação de Professores da UERJ. Ao término
da pesquisa fui surpreendida pela seguinte indagação: “o ponto final conseguiria conter
o jorro de viver?”. Outros questionamentos ainda ocupavam lugar na minha vida da
pesquisadora e com isso, os movimentos de pesquisa foram ampliando o campo
problemático no qual estive inserida por anos, desenvolvendo pesquisas sobre a
inclusão e diferenças. Atualmente as pesquisas que tenho realizado buscam
problematizar as diferenças, com recortes a partir das discussões sobre as relações
étnico raciais na educação. Um deslocamento nos caminhos de pesquisa que se
relaciona com a minha trajetória de vida-formação. E por que não pensar que esse
deslocamento é imposto estruturalmente, quando sujeitos são confrontados com uma
situação que desestabiliza o seu discurso, abre uma fissura e coloca a necessidade de
novas articulações na busca da sutura. (FERREIRA, 2011, p. 17). O desejo de produzir
pesquisas no campo das diferenças viabiliza então a escrita deste texto que busca
apontar as relações entre “escolas possíveis” e narrativas de professoras negras que nos
ajudem a pensar sobre uma educação outra. Uma escrita que traz costuras de histórias
de vida. Uma escrita-costurada.
A pesquisa de Mestrado realizada cujo tema foi “Costurografando e
problematizando a educação dos (chamados) alunos com deficiências através da relação
entre mãe-professora-costureira e filho”, narra politicamente uma história de vida
atravessada pelas políticas de inclusão escolar e os processos de escolarização das
(chamadas) pessoas com deficiência. (NASCIMENTO, 2018). No caso a narrativa da

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sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

história de vida de um filho, O Victor diagnosticado pelo discurso médico como pessoa
com deficiência intelectual e a minha. É importante destacar que na pesquisa em
questão, foi feita a opção política e metodológica de usar a expressão “chamadas
pessoas com deficiências" e não *pessoas com deficiência”, pois quem as nomeia, quem
as chama dessa maneira são os discursos médico, jurídico, político, dentre outros que
determinam quem são e como são os sujeitos. Estes discursos se desdobram em
dispositivos de controle e poder (AGAMBEN, 2005). Para narrar esta história, não
conseguiria reduzir meu filho Victor ou qualquer outro sujeito a uma palavra ou
expressão que classifica as pessoas utilizando o termo “deficiência.” “Eu reduzida a
uma palavra? Mas qual palavra me representa?”(LISPECTOR, 1992, p. 94). Foi a
experiência de escrever uma autobiografia que buscou narrar politicamente um caso
individual e que também poderia ser a história de muitas outras pessoas que estão na
luta pela inclusão. Ao narrar um caso individual que reverbera no coletivo, trouxe
proposta da cartografia (PASSOS; BARROS, 2009), para narrar os processos da
pesquisa, os passos e descompassos de uma de uma pesquisa encarnada.
Tomada pela parresia, sobre as práticas de dizer sobre si mesmo, trazendo a fala
franca como modalidade que se dá pelo engajamento e pelo risco de exposição
(FOUCAULT, 2014, p. 4 e 5), a pesquisa em questão trouxe a história de vida entre
mãe e filho, apresentada através da metáfora da colcha de retalhos, costurando
elementos que compunham a pesquisa, para afirmar politicamente o campo
metodológico que aproximou os discursos das famílias ao discurso da Academia.
Trouxe também o conceito de implicação, em uma pesquisa encarnada, onde meu corpo
reagia a cada palavra escrita. Segundo Paulon (2005, p. 19) “o observador inserido em
seu campo de observação transforma, por definição, seu objeto de estudo” e com isso, a
partir do conceito de implicação deu-se a necessidade de incluir-se, portanto, no
processo investigativo.
Os movimentos da pesquisa de Mestrado tão intensos e desafiadores seguiram
cartografados (PASSOS; BARROS, 2009), até dado momento. Havia muita dificuldade
de narrar o que foi vivido entre mãe e filho. Foi uma autobiografia que produziu efeitos,
dores, trazendo a dimensão da lembrança e do esquecimento (RICOEUR, 2007), que de
certo modo me apavoravam. Estes desdobramentos encaminharam-me a encontrar outro
modo de narrar essa história e com isso, ao resgatar memórias de infância, a costura se
aproximou da escrita, começando colaborar com os caminhos da pesquisa. Sou
professora e costureira. Uma autobiografia costurada. Era um corpo implicado

sumário 1858
VII Seminário Vozes da Educação

(PAULON, 2005) com a pesquisa, de tal modo que os caminhos-descaminhos de


cartografar esses processos de vida encaminhara-me para a escolha de uma nova
proposta metodológica de pesquisa: a costurografia.(NASCIMENTO, 2018) Os
caminhos de pesquisa fizeram-me criar a costurografia para unir, juntar, costurografar
palavras sentidas de dentro unindo.(Iden)
A costura, sempre fez parte da minha história de vida, pois aprendi a costurar
com minha mãe, tias e avó materna. Fazia-mos trabalhos feitos a muitas mãos: mãos de
mulheres negras. Isso me fez questionar a cerca da minha história de vida enquanto
filha, sobrinha, irmã de mulheres negras. A “africanidade e brasilidade inscritas num
corpo, muitas vezes de maneira tão intensa e ambígua”, (GOMES, 2002, p. 42), pois por
muitos anos neguei e fugi das minhas origens. Estava apenas começando a pensar sobre
isso. Havia muitas perguntas e uma nova costura começou a ser produzida por mim.
Comecei a chulear outro modo de ser, existir e de pensar que havia muitas outras
pessoas que não estavam na escola. Victor não frequentava uma escola regular e sim
uma instituição que atende as (chamadas) pessoas com deficiências. Ele fez desta
instituição uma escola possível para ali ele compor com outros modos de aprender e de
viver a escola. Ao pensar sobre estas questões eu não pensava apenas sobre a presença
física mais também sobre o fato de que muitos que frequentavam as aulas não eram
vistos e sim excluídos. Poderiam estar na escola e não serem vistos?
A pesquisa de Mestrado trouxe em seu último capítulo a proposta de
costurografar “escolas possíveis” (NASCIMENTO, 2018), propondo apontamentos e
reflexões a partir da escola que temos, problematizando o fato de que existem alunos
que passam anos nos bancos escolares e não “aprendem” os conteúdos formais que a
educação tradicional tanto prioriza. Nela predomina um currículo que não consegue dar
conta das singularidades e que muito menos consegue lidar com a temática das
diferenças. Existem ainda professores que também se sentem perdidos, pois estão de
alguma forma com pés e mãos atados diante do que os sistemas de ensino que
determinam quais são e como são as práticas educativas. (FREIRE, 1996)
Estas questões aqui apontadas levaram-me a problematizar as relações entre
escolas possíveis e professoras negras, pois acreditava que esta costura poderia ajudar a
compor uma educação outra. Com isso, os processos de escolarização que têm
desdobramentos outros na vida das pessoas, ganham destaque, pois elas mesmas vão
compondo outros modos de viver a escola. E porque não dizer nesse momento em que:

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sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

1) Há também (provavelmente em algumas outras as “culturas”, em algumas


outras civilizações) espaços reais - espaços que existem e que são formados na própria
fundação da sociedade - que são algo como contra lugares, espécies de utopias
realizadas nas quais todos os outros lugares reais dessa dada “cultura” possam ser
encontrados, e nos quais são, simultaneamente, representados, contestados e invertidos?
Esses tipos de lugares estão fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente
apontar suas posições geográficas na realidade. (FOUCAULT, 2011)
2) A escola como um dos espaços onde os processos educativos acontecem.
Além das pessoas com deficiência, negros, homossexuais e outros grupos minoritários
também (re)existem para poder frequentar a escola? O por quê das presenças e das
ausências respectivas? Pensar sobre essas questões a tempos tão sombrios traduz-se em
ato de coragem e enfrentamento sob o risco de a própria escola tornar-se outra coisa,
outro espaço, outra perspectiva na vida das pessoas. Seria essa uma maneira de viver,
(re) existir e experimentar a escola?
Proponho então pensar a escola como uma invenção surgida na Grécia
(MASSCHELEIN, 2015, p. 54). A escola pensada a partir do conceito de “Skholé:
tempo livre, descanso, adiamento, estudo, discussão, classe, escola, lugar de ensino”
(Iden p.25), significava o momento do “tempo livre”, uma fuga da determinação do
fazer. A escola surgia como um mecanismo de usurpação do privilégio das elites
naquela época, pois independente de suas origens, todos seriam capazes de pertencer a
classe dos sábios. Inicialmente a escola suspendia privilégios e colocava as pessoas na
posição de ser capaz de, colocando alguém na posição de aluno ou estudante (Ibiden, p.
55). Ao fornecer e democratizar o tempo livre, a escola suspendia o “tempo produtivo”,
estabelecendo tempo e espaço próprio, separado da sociedade e da família. Um tempo
igualitário que fazia com que as elites a desprezassem e a hostilizassem. Suas origens
despertavam ódio e com isso, buscava de alguma forma domar a escola, impondo
limites e atacando o seu caráter inovador e revolucionário. Narrar, narrar-se e se
inventar. “Escolas possíveis” na vida dos sujeitos, como o que Gomes também propõe
ao dizer que a escola é vista “como um espaço em que aprendemos e compartilhamos
não só conteúdos e saberes escolares, mas, também, valores, crenças e hábitos, assim
como preconceitos raciais, de gênero, de classe e de idade.” ( 2002, p. 39).
Os discursos hegemônicos sobre aprendizagens determinam os modos de
aprender nas escolas tradicionais. Lugares que não conseguem dar conta das
singularidades e que muito menos conseguem lidar com a temática das diferenças.

sumário 1860
VII Seminário Vozes da Educação

Pensar a escola, a escolarização e a não-escolarização? Pensar sobre escolas possíveis


apesar de todos os ataques que a educação brasileira enfrenta na atualidade?
Desconstruir as estratégias discursivas utilizadas para afirmar hegemonicamente a
escola tradicional? Escolas? Escolas! O pensamento hegemônico e os discursos que vão
determinar quem pode ou não pode estar/permanecer/viver a escola que temos?

Costurando uma breve história de família


Trago para a escrita deste texto uma breve história de família que me ajuda a
apontar aqui como os percursos de pesquisa são costurados por mim a minha própria
história de vida. Conta-se então na minha família a história de um negro que foi uma
pessoa escravizada e sua máquina de costura. Quem era esse homem? José Amarante,
meu bisavô que foi submetido ao trabalho escravo em uma fazenda em São Gonçalo,
município do estado do Rio de Janeiro. Trabalhava dentro de casa desempenhando
serviços domésticos como cozinhar, costurar e servidão ao seu senhor. Com o término
da escravatura, saiu da fazenda e foi viver a vida nas ruas. Ganhou de seu senhor, como
recompensa pelos serviços prestados, uma máquina de costura manual que carregou
consigo juntamente com a umbanda recebida por herança de seus ancestrais.
Casou-se com uma mulher negra: Maria Preta. Os dois fizeram a vida na costura.
Tiveram 11 filhos e minha bisavó morreu no parto. Meu avô Djalma, filho do José
Amarante, foi parar no Orfanato Patronato de Menores que funcionou no mesmo
município onde fora escravo, desta vez no bairro Patronato, onde permaneceu até seus
18 anos. Aprendeu a costurar com seus pais e levou esse fazer para o orfanato. A
religiosidade ancestral ficou esquecida, pela imposição dos costumes da igreja católica
expressos pelas lideranças do orfanato.
Ao sair daí, meu avô foi trabalhar no Cemitério Municipal na condição de
coveiro, casando-se em seguida com a minha avó, Maria de Lourdes, filha de
portugueses e igualmente costureira que, nas horas vagas, desempenhava a função em
companhia de suas irmãs. Por ocasião do casamento, meu avô recebe um apelido dado
pela família da minha avó: Toco, expressão que traduzia, como diziam, sua cor: “muito
preto”, semelhantemente ao toco de madeira queimado.
Pela constituição do vínculo matrimonial, tiveram 6 filhos, três delas mulheres
que receberam de minha avó Maria de Lourdes o conhecimento prático necessário ao
desempenho do ofício de costureira. Vô Djalma deixou de costurar com o tempo e

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sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

posteriormente retornou aos terreiros de umbanda, trazendo consigo algumas das


lembranças sobre as práticas religiosas de seus pais.
Tiveram 10 netos e fui a única da minha geração que aprendi a costurar. O saber
sobre o ato de costurar foi transmitido por algumas gerações e, do mesmo modo, a
religiosidade. Seus filhos e netos frequentaram o mesmo terreiro de umbanda localizado
em Várzea das Moças, bairro do município de São Gonçalo.
Algumas lembranças de infância ainda me acompanham e lembro-me que,
quando criança, corria pelo terreiro com meus primos, participando das festas e rituais
de umbanda. A ancestralidade, a costura e a religião já se entrelaçavam desde aquela
época na vida da minha família. Esta versão da história foi contada e recontada por
muitas vezes e corresponde ao encontro de muitas vozes de mulheres negras. Minha
mãe e avó foram minhas primeiras contadoras de história e a versão que apresentam
traduzem o orgulho que sentem ao falar do lugar de origem.
A história de família que compartilho a partir deste texto, ao ser narrada,
apresenta-se como pontos de costuras iniciais: alinhavos de uma costura manual que se
inicia, articulando o simbólico da narrativa, da costura e da religiosidade, através do
resgate da ancestralidade, do que me proponho narrar.
Seria então uma narrativa que abre caminhos para outras? Reconheço-me aos 41
anos como uma mulher, negra, mãe, costureira, professora e tudo mais que vou me
tornando. (SOUZA, 1983) Retorno aos terreiros de umbanda como filha de Iansã e
Ogum. Continuo costurando. Corto meu cabelo que foi alisado desde os 4 anos de
idade. Não tinha a memória do meu cabelo crespo. (GOMES, 2008) Olho-me no
espelho e pergunto-me: o que estou me tornando?

Outros caminhos na pesquisa


Ainda narrando os caminhos de pesquisa, trago a partir daqui relatos sobre uma
fase importante da minha vida e formação, trazendo os fatos que fizeram-me pensar
sobre coisas que não pensava antes, coisas que por muito tempo neguei e tentei fugir.
Um dia estava no trabalho realiando as tarefas de costume. Era o dia seguinte ao
assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson. Estava chocada e
indignada. No trabalho o assunto era sobre o crime. Trabalhava na Secretaria de
Educação de Maricá, onde atuava na época no Setor de Projetos Intersetoriais, lidando
com muitos temas ligados à diversidade. Olhei a minha volta e comecei a perceber que
havia poucas colegas professoras, negras, trabalhando naquele órgão público. Pensei

sumário 1862
VII Seminário Vozes da Educação

também nas escolas em que atuei e não tive a lembrança de muitas professoras negras
que trabalharam comigo. Tudo isso me provocou, Comecei a indagar sobre o fato de
que poucas mulheres negras ocupavam alguns espaços educativos no município de
Maricá. “Nos cargos de gestão, por exemplo, havia pouca representatividade negra.”
(GOMES, 2005)
É inquestionável o fato de que historicamente existe uma invisibilidade da
mulher negra. Ribeiro (2016) afirma que essa invisibilidade dentro da pauta feminista
faz com que essa mulher não tenha seus problemas sequer nomeados. Essas que são
silenciadas e esquecidas por todos, inclusive pelo feminismo hegemônico, buscam
meios de sobreviver a um cenário de negação. A mulher que é desconsiderada, que
ocupa o lugar do nada e não pode ser ela mesma? A mulher que começou há tempo a
tomar consciência sobre quem ela é, tudo que pode ser e conquistar? Caminhos que
levam essas mulheres a se assumirem como sujeitos políticos. (DAVIS, 2016).

Escolas possíveis e professoras negras


A escrita de um texto que propõe problematizar as relações entre escolas
possíveis e professoras negras, traz como possíveis discussões os enfrentamentos que
estas mulheres encaram no cotidiano da escola para estabelecer e compor suas práticas.
Ser professora e ser negra? Quais desafios enfrentam para atuar como professoras? As
questões relacionadas a raça e gênero trazem quais efeitos na vida das professoras
negras. O que tem a contar sobre estas questões? No momento da escrita deste texto
encontro-me cursando o Doutorado em Educação na Universidade Federal Fluminense
– UFF. Estou vinculada a Linha de Pesquisa dos Estudos do Cotidiano da Educação
Popular. Faço parte do Grupo de Pesquisa Laboratório de estudod e Aprontos
Multimídias. Os caminhos de pesquisa se debruçam na discussão sobre as relações
étnico- raciais na educação e os desejos de pesquisa vão tomando corpo e ocupando
lugar na minha vida de pesquisadora. Pesquisar com professoras negras. Uma aposta
que traz as vozes, os relatos, como o que Foucault descreve sobre “dispositivos” que
inclui virtualmente qualquer coisa, linguístico e nãolinguístico no mesmo título:
discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de segurança, proposições filosóficas etc.
O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos.
(AGAMBEN, 2005, p. 9). Busca-se dar outros sentidos e produzir outros efeitos na
pesquisa acadêmica, sem perder o rigor metodológico importante para sustentar o objeto
de estudo.

sumário 1863
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

É na atmosfera de pensar articulação entre escolas possíveis e professoras


negras que a escola é aqui tratada como “um espaço específico de formação, inserida
num processo educativo bem mais amplo” (GOMES, 2002, p. 39), pois nela as
professoras negras se deparam com diferentes olhares que são lançados sobre elas, suas
culturas, modos de vida e as práticas educativas de que se apropriam. A escola também
pode ser considerada como um dos lugares onde as professoras constroem sua
identidade negra. É importante destacar que isso não acontece de forma pacífica. Os
diferentes olhares se entrecruzam, se chocam e se encontram e com isso, as professoras
negras precisam de alguma forma resistir para reafirmar sua identidade, combatendo na
escola os estigmas, a segregação e a discriminação racial que a afeta.
A identidade negra da qual falo aqui encontra-se mais próxima dos processos
sociais, políticos e culturais vivenciados historicamente pelos negros e negras na
sociedade brasileira como nos fala Gomes (2002, p.38). Ela é constituída nos mais
diversos espaços, dentre eles na trajetória escolar. E por que não pensar como as
professoras negras vão vivendo a escola? Uma relação que pode também ser pensada no
complexo campo das identidades e alteridade, de aproximações e estranhamentos, das
semelhanças e diferenças e de que como estas questões problematizadas nos ajudam a
compor escolas possíveis. Seria um processo amplo e complexo constituído por
diversos fatores, mas principalmente pela negociação, pelo conflito e pelo diálogo.
Por fim a questão racial quando vivida na escola pelas professoras negras podem
evidenciar uma dura realidade: existe ainda o pensamento de que a diferença racial é
algo que determina o fracasso e o sucesso dos sujeitos negros e negras. Professoras
negras que lutam para que a difereça racial não seja transformada em deficiência e
muito menos em uma marca que a isola de outras colegas professoras ou ainda que
inviabilize a experiência educativa.
Para romper com estas questões tão injustas e cruéis que ainda circundam a
escola é preciso assumir o compromisso pedagógico de repensar a educação em um
todo, superando o racismo, entendo a questão racial como algo que precisa ser
problematizado e respeitado. A realidade social e racial do país faz parte do cotidiano da
escola e com isso asprofessora negras das quais trago como sujeitos das pesquisas nas
quais me proponho atualmente a realizar, cada vez mais seguem buscando formas de
reinventar a escola que temos na atualidade. Não é fácil reafirmar a presença de
professoras negras na educação, pois certamente convivem com um imaginário
pedagógico que insiste em excluí-las pelo fato de serem negras. Diante de práticas

sumário 1864
VII Seminário Vozes da Educação

excludentes e de uma estrutura educacional que ainda discrimina cabe a nós professores
desnaturalizar o racismo e produzir escolas possíveis, aceitando o desafio de pensar uma
educação outra.

Referências
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2005, p. 9-16. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/12576/11743 Acesso em:
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FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São


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Eduardo Brandão.

GOMES, N. L. Educação e Identidade negra. Aletria: Revista de Estudos de Literatura.


Disponível em:
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Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Educação Anti-racista: caminhos abertos
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LISPECTOR, C. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.

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problematizando a educação dos (chamados) alunos com deficiências através da relação
entre mãe-professora- costureira e filho / Rejane Lucia Amarante de Macedo do
Nascimento. – 2018. 148f. Disponível em: http://ppgedu.org/ffp/teses.html

MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. 2 ed.


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sumário 1865
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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

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SOUZA, N. S. Tornar-se negro- As vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em


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sumário 1866
VII Seminário Vozes da Educação

MEMÓRIA: HISTÓRIA DE VIDA E NARRATIVAS (AUTO)BIOGRÁFICAS


SOBRE A GESTÃO ESCOLAR

Fabiana de Oliveira Machado


FFP UERJ
fabianadeoliveiramachado@gmail.com

Introdução
Este artigo apresenta o recorte de uma pesquisa em andamento sobre os saberes
necessários ao gestor escolar e sua identidade profissional, buscando refletir sobre a
memória e suas múltiplas dimensões para pesquisa narrativa em educação e como estas
podem potencializar a experiência docente. Nesta pesquisa qualitativa, percorrendo o
campo da pesquisa formação e com a abordagem narrativa (auto)biográfica, que tem se
mostrado um caminho potente para formação docente, vou pesquisando as narrativas
docentes e a importante tarefa de estar junto, ao lado de outros que lutam pelos mesmos
objetivos.
Os estudos realizados por BRAGANÇA (2009), MORAIS e ARAÚJO(2013)
utilizando a pesquisa com narrativa docente buscam através das narrativas orais e
escritas levar estes profissionais a refletir sobre a própria prática e através das memórias
individuais e coletivas promover a autoformação. Esses, por meio das histórias de vida,
relato sobre a prática, são levados a ressignificar e organizar suas vivências e
experiências que são, às vezes, positivas e outras negativas, refletindo sobre o que vai
sendo lembrado e contado/escrito. O trabalho das autoras é realizado sempre com os/as
professores/as, utilizando a pesquisa formação onde todos os envolvidos formam e se
formam em partilha.
Professores/as ao partilhar suas experiências vividas na formação e no seu fazer
profissional no cotidiano escolar refletem sobre a própria prática e levam outros a
refletir também. Contudo nem sempre nossa vivência é algo que só nos traz alegrias,
pelo contrário, encontramos muitas barreiras a serem transpostas. Vem sendo
necessário lutar para superar dificuldades, medos, preconceitos e desvalorização. Contar

sumário 1867
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

nossas histórias é uma forma de resistir e buscar valorização do nosso trabalho como
educadores superando a tentativa de destruição/desvalorização de uma profissão tão
importante na sociedade. Estar inserido dentro de um coletivo que deseja o mesmo
objetivo, fazer parte de um grupo no qual nos identificamos, partilhamos e nos
afirmamos como sujeitos históricos construtores de sua própria história nos dá força e
inspiração para continuar. No fazer pedagógico se faz necessário parar e pensar sobre
como estamos nos relacionando com as crianças, o que falamos, o que fazemos e como
fazemos, esta pesquisa sobre a própria prática se faz necessária e constante. Ao contar
um fato, relembrando através da partilha falada ou escrita podemos refletir,
ressignificar e corrigir atitudes que acreditamos serem contrárias a uma educação
libertadora.
Fico feliz e encantada ao ouvir algum docente partilhando suas experiências, são
momentos potencializados por estas narrativas formadores para quem fala e para quem
ouve. Os professores que somos hoje estão contidos na união dos vários professores que
passaram por nós.Neste sentido, percebo que ao narrarmos nossas histórias e
experiências rememoramos acontecimentos trazendo para o presente lembranças sobre o
que foi vivido.
Percebo assim como é importante ao pesquisar com narrativas estudar os
conceitos que nos levem a compreender e analisá-las. A memória é um desses conceitos
intrínsecos a pesquisa narrativa, portanto é necessário saber como esta funciona na
construção e reconstrução das lembranças. Saber como se posicionar frente ao narrador
que muitas vezes não quer lembrar fatos que trouxeram sofrimento. O pesquisador deve
estar munido de saberes que os ensine a agir frente situações dolorosas ou que o sujeito
não que falar.
Para compreender a memória e seu funcionamento ao narrarmos/escrevermos,
busquei nos estudos realizados por CANDAU (2018) e HALBWACHS (2013) refletir
sobre como a memória ´pode ser utilizada, compreendida e analisada nestas narrativas
de si. CANDAU (2018) no livro “memória e identidade” nos propõe diferentes
manifestações da memória, como memória de alto e de baixo nível, e reforçando a ideia
de indissociabilidade entre memória e identidade. Trazendo os conceitos de
protomemória e metamemória para construção narrativa da identidade HALBWACHS
(2013) em seu livro “memória coletiva” nos mostra que a memória para ser analisada
deve-se levar em consideração o contexto social dentro do tempo e do espaço. O autor
nos ajuda a compreender o funcionamento da memória e fenômenos nos quais a

sumário 1868
VII Seminário Vozes da Educação

memória pode ser reconstruída. Apresentando vários conceitos que enriquecem nossa
compreensão da memória e como pode ser analisada e compreendida. Trazendo o
conceito de memória biografia e memória social e outros conceitos como o da
lembrança. O autor nos diz que “cada memória individual é vista de um ponto de vista
sobe a memória coletiva.”
Sendo assim busco compreender o que é a memória e conceitos relacionados a
ela, tais como: as lembranças e os tipos de memórias e como ela pode ser utilizada para
reafirmar e reconhecer a identidade. Memória e Identidade são conceitos interligados ou
uma não depende da outra para existir? Com a contribuição dos autores citados acima
buscarei neste artigo refletir sobre memória, identidade e narrativa e como estas são
presentificadas/ externalizadas através das narrativas.

Narrativa de si: experiência e memória

[…] a narrativa tornou-se um caminho para o entendimento da experiência.


[…] Nessa perspectiva, experiência são as histórias que as pessoas vivem. As
pessoas vivem histórias e no contar dessas histórias se reafirmam.[…]

A pesquisa narrativa tem como conceito chave a experiência (Clandinin;


Connelly, 2015, p.30) vividas pelos indivíduos no seu cotidiano, ou seja, no contexto
pessoal ou no social. E as experiências vividas ficam no passado, só podendo ser
resgatadas através da rememoração. Para rememorar dependemos então da memória que
nos conduz ao exercício de percorrer o tempo e o espaço do passado ao presente e
futuro. Com o passado compreendemos o presente e sonhamos, planejamos com o
futuro. Neste movimento, reafirmamos identidades, damos sentidos ao que foi vivido e
compreendemos o passado dando novo significado ao que foi vivido, pois
compreendemos com um outro olhar abastecidos de novos conhecimentos e maturidade
as experiências passadas. A este exercício de refletir e analisar o que foi vivido pelo
acionamento da memória Joel Candau vai conceituar como a metamemória.
Nesta perspectiva, estudar e compreender os funcionamentos e os conceitos
sobre a memória é essencial para compreender as narrativas partilhadas que ao serem
elaboradas por seus atores apresentam suas versões de si ao apresentarem suas
narrativas a partir de suas lembranças apresentando suas histórias de vida e de
experiências.

sumário 1869
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Ao lembrar criamos uma imagem de como os fatos aconteceram, revivemos


sentimentos: “Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas
pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos
envolvidos, e com objetos que só nós vimos É porque, na realidade, nunca estamos sós”
(HALBWACHS, 2013, pag. 26).
Nunca estamos sós, objetos, lugares sempre nos lembram de algo ou de alguém
que tenhamos conhecido ou que nos disse algo. Somos constituídos de memórias
coletivas e individuais, pois ao reconstruir nossas lembranças percebemos que estas
estão dentro de um tempo e uma localização e que outras pessoas fazem parte delas,
pois estamos inseridos dentro de um contexto social. Maurice Halbwachs no segundo
capítulo do livro “A memória coletiva” nos leva a refletir sobre a memória coletiva e a
memória histórica. Pertencendo a um grupo, ou vários grupos como exemplifica o autor
no decorrer do texto, a família, a igreja, a escola, o trabalha, a nação, alguns grupos no
qual podemos estar inseridos, e que podem aumentar e diminuir ao longo da vida.
Os vários sujeitos que nos atravessam e os vários grupos sociais nos quais
estamos inseridos ao longo da nossa vida nos ajudam na formação de nossa identidade.
Nesta relação nos identificamos com os outros sujeitos pertencentes ao mesmo grupo e
vamos aos poucos nos reconhecendo, reconhecendo quem somos e o que somos capazes
de fazer.
A memória segundo Halbwachs, pode ser dividida em “memória pessoal” e
“memória histórica”, também podem ser chamados respectivamente de memória
autobiográfica e memória histórica. Em seus estudos o autor reflete sobre a memória
individual e coletiva e como estas são vivenciadas e como estão relacionadas trazendo
conceitos e exemplos para que possamos melhor compreender este estudo que é
complexo e exige leitura e estudo que demanda tempo para ser compreendido.
Candau em seus estudos faz a relação entre memória e identidade trazendo uma
discussão sobre a memória e o movimento desta na construção da identidade expondo
conceitos inseparáveis destacamos memória individual e coletiva, lembrança e
esquecimentos. Trazendo conceitos importantes para compreensão da memória o autor
apresenta estudo para compreensão desta seja para transmissão ou recepção na relação
social.
Portanto, saber como nossa memória vai sendo preenchida desde quando
nascemos, como mostra o filme divertidamente, onde a memória é mostrada a partir do
nascimento de uma criança. Aos poucos os sentimentos vão surgindo e estes são

sumário 1870
VII Seminário Vozes da Educação

representados por personagens que levam o nome das emoções: alegria, tristeza, raiva,
medo e nojo. As memórias produzidas durante o dia são armazenadas a noite. Quando
um evento com carga emocional muito grande acontece gera uma memória especial que
é enviada para ilha da personalidade. A personagem do filme tem as seguintes ilhas:
família, amizade, honestidade, bobeira e hóquei que vão moldando a personalidade,
quem é e o que é importante na vida da menina. Outras áreas da mente são demostradas
como a imaginação, memória de logo prazo, memórias esquecidas.
Assim como Halbwachs que acredita que a memória está relacionada à
identidade como demonstrado no filme, e quando perdemos uma dessas memórias
especiais também perdemos um pouco de nossa identidade. Para trazê-las de volta é
preciso recuperar as lembranças dessas memórias responsáveis por nossa identidade.
Seja através da memória de outra pessoa, que faça parte de um dos grupos que
pertencemos e que tenha estado envolvido no evento ou algum objeto ou lugar que
tenha relação com o evento.
Estudei da primeira série a oitava em uma escola municipal que foi construída de
forma provisória, era feita com blocos de encaixe e nas laterais não tinha parede na
parte que dava para fora, nas laterais, com desenhos coloridos para quem olhava de
longe parecia um circo. Supriu a necessidade de vagas na escola para muitas crianças,
inclusive para eu e meus irmão. Não era perto de casa e por isso tínhamos que pegar
ônibus sozinhos para ir e voltar da escola. Está escola marcou minha vida porque
estudei muitos anos nela e depois que fui pra o ensino médio, segundo grau na época,
sempre passava em frete e ficava relembrando e mesmo hoje que ela mudou de
endereço, foi par um bairro próximo e no lugar construiu-se um prédio comercial.
Contudo, na minha lembrança a imagem da escola continua como antes, mesmo
não existindo mais de forma física, mas na minha memória permanece viva. A comida,
os professores, os colegas, as brincadeiras e as aulas. Não lembro de tudo, mas os
eventos que marcaram ficaram registrados e o quando passo em frente a escola nova ou
onde ela existiu a minha memória é ativada. O lugar, o cheiro, um gesto podem ativar a
memória seja ela alegre ou triste, acompanhado ou sozinho e mesmo não falando sobre
o que recordamos as imagens vem na mente podendo trazer os sentimentos vivenciados
como no momento que aconteceu. Mas não são todas as lembranças que conseguimos
partilhar as que causaram sofrimentos e traumas preferimos tentar apagar da mente, não
falando sobre ela.

sumário 1871
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Como podemos observar para compreender estas especificidades da memória e


sua importância na construção da identidade e como estas são desenvolvidas pela mente
os autores citados a cima vão nos ajudar, pois suas pesquisas estão relacionadas as
nossas emoções e o significado que damos a estas. Halbwachs refletindo sobre as
crianças e sua relação com a história vivida a partir da infância apresenta a memória
como dependente da relação com acontecimentos que marcaria sua lembrança. Mas
estas não compreendem a história social. A não ser por fatos que históricos que tivesse
contato se relacionando com adultos que fazem parte do seu grupo social, a família, a
escola, a igreja.
Lembro do avô sempre com um pano amarrado na testa, tinha muitas dores de
cabeça, mas só quando adulta fiquei sabendo que era por causa disso. Faleceu quando
tinha uns três anos, pouco depois do meu pai, tenho a imagem do meu avô morto no
caixão. Por ter sido uma emoção especial, como apresentado no filme ficou registrado
em minha memória e que a medida que fui crescendo estas lembranças foram sendo
ressignificadas. Também poderia ter sido construídas por ouvir adultos contanto sobre o
acontecido, podem ter sido criadas por minha imaginação e ter sido simuladas como
memória.
As lembranças podem ser reconstruídas ou simuladas segundo Halbwachs ,

“a lembrança é reconstrução do passado com a ajuda de dados tomados de


empréstimo ao presente e preparados por outras reconstruções feitas em
épocas anteriores e de onde a imagem de outrora já saiu bastante alterada.”
(HALBWACHS, 2013, pag.91)

Conversando com pessoas que fizeram parte da nossa infância podemos


reconstruir lembranças ou reconhecer as que esquecemos ou que não lembramos,
amigos, parentes nos ajudam reconstruir lembranças. A história corresponde ao ponto
de vista do adulto. As lembranças infantis são conservadas pela memória coletiva. No
espírito da criança estavam presentes a família e a escola. A medida que se envolvem
mais no grupo as lembranças são renovadas. Duas pessoas que estejam presentes no
mesmo fato não reproduzem da mesma forma descrevem o fato tempos depois. As
memórias se enriquecem com as contribuições de fora.
Segundo Candau memória e identidade são conceitos que se completam a autora
destaca em seu estudos que a um consenso entre os pesquisadores em admitir que a
identidade é uma construção social que acontece de forma dialógica como outro, a

sumário 1872
VII Seminário Vozes da Educação

memória é “uma reconstrução continuamente atualizada do passado” (CANDAU,


pag.9) Esta memória é reconstruída com pedaços das lembranças, e com estas criamos
uma imagem dos acontecimentos vividos no passado e assim encarar de outra forma o
presente (CANDAU, pag.15)
Para Candau,

A memória ao mesmo tempo em que modela é modelada, é também por nós


modelada. Isso resume, perfeitamente a dialética da memória e da identidade
que se conjunjam, se nutrem mutuamente, se apoiam uma na outra para
produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito uma narrativa.[…]
(CANDAU, 2018 pág.16)

Somos modelados por nossa memória e ao reconstruir nossas lembranças as


modelamos de acordo como elas foram registradas ou reconstruías e aos partilhar nossas
histórias também modelamos a nossa memória. A narrativa de nossas histórias nos
ajudam a nos compreender como sujeitos, a nos aceitar ou mudar aquilo que não
gostamos. A maturidade nos leva a compreender de outra forma o que foi vivenciado na
infância, na adolescência e nas várias fases da nossa vida, Precisamos estar sempre
abertos as novas experiências e mudanças.

Pesquisa narrativa com docentes

Um olhar atento sobre a prática atual das professoras e professores nos faz
perceber em cada palavra, em cada gesto, em cada silêncio os traços daqueles
que nos antecederam, educadores/as e educandos/as que antes de nós lutaram
nossas lutas. Memória individual e coletiva fazem parte de uma teia que vai
ao longo da vida constituindo a formação do educador. (BRAGANÇA, 2001,
p.109).

Narrar sobre o fazer pedagógico, e sobre como este é realizado em seu cotidiano,
mostra como esta formação foi sendo construída na relação com os vários sujeitos que
passaram por nossas vidas ao longo de nossa própria história. Segundo Bragança
(2001), as lembranças nos levam às nossas origens e nos ajudam a reorganizar e a
ressignificar a vida trazendo novos sentidos a nossa prática e a nossa vida.
A pesquisa narrativa com docentes nos exige um aprofundamento sobre os
conhecimentos relacionados à memória para que assim possamos analisar e contribuir
de forma mais eficaz para pesquisa e para o sujeito que necessitará trabalhar sobre suas
lembranças e a relação com o passado e as pessoas que fizeram parte deste passado.

sumário 1873
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Para assim, levar quem narra a se valorizar e a valorizar o conhecimento que é capaz de
produzir.
Neste sentido Morais e Araújo (2013), com sua pesquisa buscam valorizar o
conhecimento produzido no cotidiano da educação através dos memoriais de formação.
Destacando que não é apenas no espaço da universidade que os conhecimentos são
produzidos, mas na escola, no fazer cotidiano da profissão os/as docentes também
produzem conhecimento, e podemos entrar em contato com estes/estas por meio das
partilhas de experiências.
Estas experiências partilhadas necessitam ser respeitadas, começando pela forma
como são investigadas e como são trabalhadas e partilhadas. Para Morais e Araújo:

Pensar as histórias e experiências vividas como algo a que se deve dar


respeito, com tudo que isso significa, tem nos inspirado na construção de
caminhos investigativos-formativos[…] ( MORAIS e ARAÚJO (2013), pag.
135)

Investiga sobre os sujeitos e como estes se relacionam suas lembranças e como


estas foram tecidas no sei da sociedade produzindo a identidade deste sujeito exige
respeito e sensibilidade com o possível sofrimento do outro. Fortalecidos pela
inspiração que as narrativas nos trazem produzimos formas outras de escrever e fazer
pesquisar.
Uma atividade que gosto de propor em minhas aulas sobre educação infantil é
pedir para que os participantes façam uma desenho sobre algo que tenha marcado sua
infância e depois peço que cada um que quiser explique o desenho. Assim recordam de
como é ser crianças e o que elas gostam de fazer e possam compreender e aprender a
trabalhar com as crianças. Este exercício nos leva a ressignificar práticas e atitudes
resgatando a crianças que um dia eu fui posso olhar para meu aluno e compreendê-lo
melhor. Buscando assim outra forma de ser e viver a docência pautada numa pedagogia
libertadora. Como nos ensina Paulo Freire (2011), refletindo sobre a necessidade de
uma prática docente onde “quem forma se forma e quem é formado forma ao ser
formado,” uma formação que acontece em partilha de experiências, pois cada um tem
algo a ensinar.
Ao escrever ou ao narrar sua história o sujeito vai tomando posse de sua
trajetória formativa nos ambientes em que se relaciona seja formais e informais, na
família, escola e fora da escola, no trabalho, se relacionando seu contexto sociocultural

sumário 1874
VII Seminário Vozes da Educação

que a formação acontece. O Sujeito que com suas narrativas forma e se transforma com
a descoberta de si. E escrever/falar de sua trajetória faz com que este tome posse de si e
do seu percurso formativo ressignificando fatos de sua vida escolar e transformando sua
prática como docente. A formação acontece na interação com o outro, que é importante
na vida da comunidade escolar e na sociedade como um todo, nos ambientes que
frequenta e se relaciona.
As pesquisas citadas a cima vem reafirmar a necessidade de se produzir
conhecimentos para saber lidar com as histórias e as memórias de outros sujeitos seja
para compreender ou analisar as narrativas produzidas e como estas estão carregadas de
vidas. Vivencias que nem sempre são possíveis ou fáceis de serem partilhas pois que
ainda precisam ser ressignificada compreendidas pelos sujeitos a partir deste novo ser
que não mais é o mesmo de quando as lembranças foram vividas, pois estamos em
constantes mudanças.

Conclusões iniciais
O artigo em tela voltado a refletir e tentar compreender como o sujeito se
relaciona com sua memória mostrando sua ligação com a identidade. Podemos observar
como são complexos os estudos realizador por CANDAU (2018) e HALBWACHS
(2013), contudo contribui de forma enriquecedora para a pesquisa com as histórias de
vida. Pois nos potencializa para uma escuta e analise respeitosa e consciente de sua
importância por menor que seja a história que nos contam os sujeitos pesquisados.
Estes sujeitos históricos construtores de sua própria história nos dá força e
inspiração para continuar mesmo diante das dificuldades que nos aparece. Suas
narrativas têm algo a nos ensinar. Atento a cada detalhe, a cada sentimento vamos
pesquisando para melhor compreender quem são estes sujeitos.
Neste movimento da memória nos leva a reafirmar nossas identidades e a
darmos sentidos ao que foi vivido e compreendemos o passado dando novo significado
ao que foi vivido, pois compreendemos com o um outro olhar abastecidos de novos
conhecimentos e maturidade as experiências passadas.
Nesta perspectiva estudar e compreender os funcionamentos e os conceitos sobre
a memória foi essencial para compreender as narrativas partilhadas que ao serem
elaboradas por seus atores apresentam suas versões de si ao apresentarem suas
narrativas a partir de suas lembranças apresentando suas histórias de vida e de
experiências.

sumário 1875
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Referências
CANDAU, Joel. Memória e Identidade. Tradução: Maria Letícia Ferreira. São Paulo:
Contexto, 2018.

CLANDININ, D. Jean.; CONNELLY, F.Michael. Pesquisa Narrativa: experiência e


história em Pesquisa Qualitativa.Trad. Grupo de Pesquisa Narrativa e Educação de
Professores. Uberlãndia: EDUFU, 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa.


São Paulo, Paz e Terra, 2011.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São
Paulo: Centauro, 2013.

MORAIS, Jacqueline Fátima dos Santos ARAÚJO, Mairce. A Memória que nos
Contam: Narrativas Orais e Escritas como Dispositivo de Formação Docente.
Interfaces da Educ., Paranaíba: v.4, n.10, 2013.

sumário 1876
VII Seminário Vozes da Educação

A LITERATURA DE CORDEL
NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM

Rosana da Silva Malafaia


UERJ
rosana.malafaia@hotmail.com

“Acredite no poder
Da palavra “Desistir”
Tire o D e coloque o R
Que você vai Resistir.
Uma pequena mudança
Às vezes traz esperança
E faz a gente seguir.”
Bráulio Bessa

Introdução
O presente trabalho faz parte de uma pesquisa desenvolvida no curso de pós-
graduação Mestrado Profissional em Letras (Profletras) no ano de 2017, na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/FFP). Como desdobramento e
aprofundamento deste estudo, vinculou-se à pesquisa da minha atual orientadora:
“Discussões e releituras de literatura na contemporaneidade: a transposição midiática”,
Profª. Drª Maria Cristina Cardoso Ribas, do programa de pós-graduação em letras da
UERJ, no qual sou doutoranda e pesquiso sobre a influência da literatura de cordel no
âmbito da literatura brasileira e no contexto contemporâneo numa abordagem
intermidiática.
A Literatura de Cordel juntamente com as imagens que lembram a xilogravura,
já foi por alguns anos alijada do círculo das letras, não era reconhecida como uma
literatura merecedora de estudos sistemáticos, embora, no Nordeste, tivesse sido
utilizado como leitura para desenvolver o processo de letramento de inúmeros
sertanejos que ao ouvirem as histórias de encantamento, heróis e noticiários de suas
regiões, se interessavam por estas façanhas e desejavam também ler estes folhetos. Esta
literatura servia como objeto de alfabetização e distração em tempos de lamparinas e

sumário 1877
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

lampiões, “uma vez adquiridos ou tomados de empréstimos, os folhetos eram


geralmente lidos em grupo, em reuniões que congregavam grande número de pessoas,
na casa de vizinhos e familiares” (GALVÃO, 2002, p.119). Deste modo, servia à
comunidade rural sertaneja e disponibilizava uma forma singular de inserção no mundo
letrado.
O cordel, sendo um texto de tradição oral, via de regra, é para ser lido em voz
alta. Ao ser transposto para a escrita, passou a ser um gênero literário que transita entre
o oral e o escrito. Por abarcar temáticas variadas, é uma literatura encantadora tanto
para os amantes da leitura quanto para os alunos de um modo geral. Propicia uma troca
de aprendizado entre o docente e o discente, uma vez que através da oralidade
conquistamos o nosso estudante e, neste campo, eles se sentem mais confortáveis.
Esta literatura tem mostrado, em sala de aula, que a cultura brasileira, aqui
entendida a popular e a erudita, precisa ser valorizada e reconhecida em todos os meios
de nossa sociedade. Representa nossa identidade nacional, uma vez que ao ser (re)criada
em solos brasileiros trouxe consigo um jeito próprio e singular de contar histórias e por
isso traz à cena da discussão a necessidade de manter viva a história e luta dos
nordestinos, além de propor uma leitura além-mar – europeia, africana.
O cordel é uma manifestação cultural de luta e resistência tanto para os poetas
nordestinos que até hoje batalham para ter a sua obra literária reconhecida e divulgada,
quanto para as diversas influências que esta literatura recebeu como a africana, por
exemplo. Seus poemas não permitem o apagamento da cultura afro nem tão pouco da
indígena, nele encontramos influências dos nossos negros e dos índios: histórias e
ensinamentos repassados de geração a geração através da memória. Em determinadas
sociedades africanas e nas comunidades indígenas, a memória e a oralidade são formas
de repassar os ensinamentos adquiridos. Segundo Fauvelle (2018, p. 18), “de fato, em
muitas sociedades africanas, existia outra forma de transmissão, confiada, também ela, a
especialistas, não da escrita, mas sim da fala: as chamadas ‘tradições orais'". Em relação
aos indígenas, “as sociedades tradicionais são filhas da memória e a memória é a base
do equilíbrio das tradições. A memória liga fatos entre si e proporciona a compreensão
do todo. Para compreender a sociedade tradicional indígena é preciso entender o papel
da memória na organização da trama da vida” (MUNDURUKU, 2000, p.32).
Segundo Santos (2010, p.77), “a literatura de cordel é vista à beira do abismo do
esquecimento, como uma manifestação cultural, e nunca literária, em extinção”. O
cordel, não podemos negar, teve, por várias vezes, sua decadência anunciada, fosse com

sumário 1878
VII Seminário Vozes da Educação

o surgimento da rádio, fosse com a televisão e com a expansão da internet, hoje vem se
tornando cada vez mais viva e reconhecida nos meios artístico-literários, aparecendo em
diversas mídias: televisiva, musical, fílmica, mostrando sua força e resistência lítero-
cultural.
No ano de 2018, a literatura de cordel foi declarada pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico (Iphan) como um Patrimônio Cultural do Brasil, tal
reconhecimento a faz uma literatura que possui suas peculiaridades e produções
merecedoras de estudos mais aprofundados.
Foi por estas e tantas outras questões sugeridas por estes poemas que resolvi me
aprofundar e verificar na minha prática como eu poderia (re)conquistar o prazer da
leitura dos meus alunos utilizando o cordel. Alunos estes que, como esta literatura,
resistem aos percalços de suas vidas para se fazerem presentes dentro de uma sala de
aula que por diversos motivos só os afasta dela.
Para tanto, busquei, primeiramente, conhece-los. Entender suas inquietações,
suas angústias diante do processo de aprendizagem e mostrar que estávamos ali para
conhecer a literatura de cordel, mas além de conhecer, iríamos construir um
conhecimento em conjunto, faríamos uma troca de experiências, a nossa sala de aula
possuía muitos alunos vindos da região nordeste.

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à
escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos,
sobretudo os das classes populares, chegam a ela – saberes socialmente
construídos na prática comunitária – mas também, como há mais de trinta
anos venho sugerindo, discutir a razão de ser de alguns saberes em relação
com o ensino dos conteúdos. (FREIRE, 1996, p. 30)

Pensando nesta prática educativa, os alunos foram convidados a falar de suas


experiências, do seu conhecimento de mundo e a partir deste ponto criamos
possibilidades para que o aprendizado acontecesse.

Descrevendo uma prática


Meu primeiro contato com a literatura de cordel aconteceu no ambiente escolar.
Sou professora da Rede Estadual de Ensino do Estado Rio de Janeiro no município de
São Gonçalo, no ano de 2015 precisei ensinar esta literatura a meus alunos. Senti muitas
dificuldades em recolher materiais com propostas adequadas a esta produção. Os livros
didáticos e até mesmo alguns documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares

sumário 1879
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Nacionais (PCN's) não a incluíam de maneira regular e satisfatória, não se referindo


adequadamente aos estilos e modalidades deste gênero, de forma que se pudesse realizar
um efetivo trabalho em sala de aula.
Diante desta dificuldade, considerei meu trabalho em sala de aula nada
adequado, isto me inquietava e me fazia buscar caminhos para me auxiliarem nesta
tarefa. Ao entrar para o Mestrado Profissional em Letras (Profletras), decidi pesquisar
de maneira mais sistemática esta produção literária e verificar como ela poderia tanto
estar presente na cena da literatura brasileira, quanto contribuir para o aprendizado em
sala de aula.
Leciono, atualmente, no CIEP 122 - Professora Ermezinda Dionísio Necco,
localizado no município de São Gonçalo, Rio de janeiro – e, com todas as dificuldades
que a rede pública oferece aos alunos e professores - falta de infraestrutura, insegurança,
indisciplina, desinteresse - consegui desenvolver um trabalho que destacou a literatura
de cordel e a ilustração como fontes de incentivo à leitura, estimulando a construção de
sentidos, e a produção textual dos meus alunos do oitavo ano do Ensino Fundamental.
Buscando material para fundamentar a minha pesquisa do mestrado, colegas de
profissão se mobilizavam e, sabendo da minha pesquisa, me presenteavam com algum
folheto de cordel. Foi em uma dessas atitudes que recebi alguns livros escritos em
sextilhas, livros esses, segundo a minha colega de profissão, estavam sendo descartados
na lixeira de uma escola. Eram releituras de Romeu e Julieta, A Megera Domada, Rei
Arthur e os cavaleiros da távola redonda entre outros. Fiquei muito angustiada com a
atitude de certos educadores. Eu estava desenvolvendo sequências didáticas que
encantavam meus alunos aula após aula e uma escola vizinha jogava fora tais
exemplares. Verificava na prática docente os ensinamentos fornecidos pela teoria.
Segundo Gadotti (2011, p. 72), “a educação é ao mesmo tempo, ciência e arte. A arte á a
‘técnica da emoção’ (Vygostski). O novo profissional da educação é também um
profissional que domina a arte de reencantar, de despertar nas pessoas a capacidade de
engajar-se e mudar”.
(Re)encantada pela minha prática e pelos meus alunos, senti a necessidade de
pesquisar mais essa literatura e percebi que muitos livros didáticos da educação básica
não traziam um estudo coerente para estes textos ou simplesmente nem os
mencionavam. A partir desse fato, comecei uma pesquisa mais detalhada destes poemas
e descobri um universo literário escondido nestes versos. Desde então, a cada ano,

sumário 1880
VII Seminário Vozes da Educação

apresento aos discentes este mosaico cultural – europeu, indígena, africano - que é a
literatura de cordel e nas nossas trocas literárias crescemos enquanto seres humanos.

O letramento literário no ensino fundamental


A literatura ocupa um lugar único em relação à linguagem, ou seja, cabe à
literatura “(...) tornar o mundo compreensivo transformando a sua materialidade em
palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas” (COSSON, 2006, p.
17). O letramento feito com textos literários proporciona ao aluno um modo
privilegiado de inserção no mundo da escrita, uma vez que o conduzirá ao domínio da
palavra a partir da mesma. O contato com os folhetos de cordel e sua leitura podem
proporcionar ao ambiente escolar uma aproximação dos alunos com a literatura, posto
que o cordel além de se uma manifestação cultural é uma obra literária.
Segundo Renata Junqueira e Rildo Cosson (2010, p. 102), letramento literário é
bem mais do que uma habilidade pronta e acabada de ler textos literários. Ele requer
uma atualização permanente do leitor em relação ao universo literário. Também não é
apenas um saber que se adquire sobre literatura ou textos literários, mas sim uma
experiência de dar sentido ao mundo por meio de palavras que falam de palavras,
transcendendo os limites de tempo e espaço. Permitir que os alunos tenham acesso a
este tipo de leitura e saibam lidar com ela sem medo, deixando de pensar no texto
literário como algo incapaz de ser compreendido, é tarefa da escola. A adequada
escolarização da literatura é aquela que conduz às práticas de leitura ocorridas no
contexto social, às atitudes e aos valores que correspondem ao ideal de leitor que se
quer formar.
O trabalho desenvolvido pretendeu aproximar a literatura, quase esquecida no
ensino fundamental, dos discentes através de práticas de leitura com os folhetos de
cordel, como também de atividades de construção de sentidos e escrita. Pouco tempo,
no currículo do estado do Rio de Janeiro, é destinado em sala de aula à prática da
leitura. Muitos alunos dizem não gostarem de ler simplesmente porque não têm o hábito
de ler - o meio social no qual estão inseridos contribui para não desenvolverem esta
prática - porque não aprenderam a construir sentidos para aquilo que leem.
Como estratégias de leitura a serem ensinadas, Girotto e Souza (2010, p.63),
chamam a atenção para as oficinas de leitura, momentos específicos em sala de aula
onde o docente lê em voz alta mostrando como os leitores pensam enquanto leem.
Segundo Harvey e Gouvis apud Souza e Cosson (2010, p. 104), quando lemos, os

sumário 1881
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

pensamentos preenchem nossa mente, fazemos conexões com o que já conhecemos ou,
ainda, inferimos o que vai acontecer na história. As conversas interiores realizadas no
momento da leitura permeiam nossa mente e nos ajudam a criar sentidos para o texto. A
tarefa do professor, então, é tornar visível, o invisível, ou seja, fazer os alunos
perceberem o trabalho realizado na nossa mente quando estamos trocando experiências
com o texto.
Segundo Paulo Freire (1996), ensinar exige uma prática testemunhal, o aluno
precisa reconhecer nas atitudes do professor que aquilo que ele ensina, vivencia. Por
isso, nas atividades realizadas, a leitura compartilhada é uma excelente estratégia,
porque visa intercalar professor/aluno, momentos da leitura.O aluno precisa tomar para
si este hábito, a literatura de cordel colabora e muito para esta prática, pois tem suas
raízes na tradição oral do contar histórias além de muitos folhetos permitirem a
encenação.
Como muitos discentes são pouco estimulados à leitura em casa, como dito
anteriormente, é imprescindível o professor fomentar o letramento literário de seus
alunos no ensino fundamental, buscando um trabalho cada vez mais aprofundado dos
textos literários. Os livros didáticos trazem trechos de textos, muitas vezes
fragmentados, e com eles perguntas, muitas delas mal formuladas ou superficiais, que
só fazem afastar o aluno da leitura. Ensinando estratégias de leitura, colocando o texto
literário na íntegra e com atividades lúdicas de interpretação, podemos conseguir
resultados mais favoráveis e alunos mais críticos.

Uma proposta de ensino-aprendizagem


Literatura de Cordel e a ilustração, incluindo a xilogravura – técnica milenar de
esculpir gravuras na madeira -, mostram-se como objetos de ensino que muito
contribuem para incentivar a leitura e desenvolver nos alunos habilidades de
interpretação crítica, ajudando no desenvolvimento de estratégias de acionamento de
conhecimentos prévios do leitor, visualização, conexão, sumarização, síntese e
inferência, a partir de perguntas ao texto.
Numa proposta apoiada nas sequências didáticas, observei o interesse dos alunos
em ler os folhetos e em realizar as atividades sugeridas. A descrição das atividades
apontadas a seguir tem o intuito de demonstrar como a literatura de cordel atrelada a
uma prática docente cujo foco principal é o crescimento intelectual do aluno, pode

sumário 1882
VII Seminário Vozes da Educação

mudar o curso escolar do discente. Segundo Gadotti (2011, p. 59), o aluno “só aprende
quando quer aprender e só quer aprender quando vê na aprendizagem algum sentido”.
A estrutura de sequência didática sugerida por Dolz, Schneuwly e Noverraz
(2004), prevê uma apresentação inicial do gênero a ser trabalhado e uma produção
inicial desse mesmo gênero. A apresentação inicial foi realizada através de uma
exposição de cordéis animados, filme, música e slides, pois os alunos não conheciam
muito sobre esses gêneros ligados ao cordel. Nesta etapa, os alunos demonstraram
interesse e se divertiam ao assistirem as trapalhadas de “João Grilo” e “Chicó” no filme
o Auto da Compadecida, também se interessaram pelos cordéis animados, A árvore que
dava dinheiro e Risco baloeiro. Acharam engraçadas as ilustrações, diferente das que
estão acostumados. Uma aluna, a R., sobre o cordel animado Risco baloeiro, disse: “.:
professora, já vi este comercial na TV”, expressando seu conhecimento de mundo sobre
o tema do cordel animado antes mesmo de conhecê-lo. Outro fator relevante foi em
relação às perguntas feitas pela professora-mediadora, a fim de testar a interpretação
deles. Foram desenvolvidas perguntas e respostas orais, numa forma de diálogo.

Uma das tarefas essenciais da escola, como centro de produção sistemática


do conhecimento, é trabalhar criticamente a inteligibilidade das coisas e dos
fatos e a sua comunicabilidade. É imprescindível portanto que a escola
instigue constantemente a curiosidade do educando em vez de “amaciá-la” ou
“domesticá-la”. É preciso mostrar ao educando que o uso ingênuo da
curiosidade altera a sua capacidade de achar e obstaculiza a exatidão do
achado. É preciso por outro lado e, sobretudo, que o educando vá assumindo
o papel de sujeito da produção de sua inteligência do mundo e não apenas o
de recebedor da que lhe seja transferida pelo professor. (FREIRE, 1996, p.
124)

Assumindo este papel de construtor do seu saber e animados pela escuta atenta
do professora, quase toda a turma demonstrava interesse em responder as perguntas
desafiadoras, mostrando capacidade crítica; de relacionamento com o mundo em que
estão inseridos; de analisar as imagens contidas nos filmes, ambiente e personagens;
compreensão clara e objetiva das temáticas abordadas bem como a interdiscursividade
presente entre os gêneros abordados.
Em relação aos cordéis animados A árvore que dava dinheiro e Risco baloeiro
fizemos inferências sobre os títulos como: Vocês já viram uma árvore ou planta cujos
frutos fossem dinheiro? Sabem os riscos de se soltar balão? A agitação na sala de aula
foi intensa, queriam que a professora escutasse as respostas de algum modo. Este fato
demonstrou como nossos alunos têm o que dizer, mas não possuem espaços em sala de

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Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

aula. Respostas como a citação de provérbios escutados pelos parentes em casa foram as
mais faladas: “Minha mãe diz que dinheiro não dá em árvore”, “se quisermos ser
alguém e termos algo na vida precisamos trabalhar duro”, “meu dinheiro não é capim e
nem colho no quintal de casa”, respostas que demonstraram a presença de um universo
cultural popular. Sobre os riscos de se soltar balão, as respostas que surgiram foram de
conhecerem os perigos, porém os meninos não concordavam com os riscos. Após
assistirem ao filme e interpretarem o cordel, mudaram de ideia. Essa mudança de
pensamento foi relevante porque o cordel permitiu uma tomada de atitude diferente da
inicial, causando reflexão e mudança de comportamento, caráter social de determinados
gêneros como o cordel.
Partindo para as ilustrações desses cordéis animados, fizemos interpretações das
imagens, como eram as ilustrações, os modos como se movimentavam, se elas possuíam
algo de diferente das ilustrações que estavam acostumados a ver nos desenhos
animados. Muitos alunos disseram que os desenhos eram grotescos e engraçados, se
movimentavam como se estivessem colados no papel. Respostas como essas
demonstravam a percepção dos alunos e como estavam atentos para a construção do
texto como um todo. Uma aluna, M., chamou a atenção para a imagem do coração
pintado de vermelho que aparecia sempre no cordel animado A árvore que dava
dinheiro, único elemento colorido nas imagens em preto e branco. A aluna disse que
este coração representava o símbolo do amor entre os personagens Maria e José. O
coração estava pintado para representar a intensidade deste amor. Interpretação coerente
e que revela a imagem produzindo efeito no texto. Em Risco baloeiro, as apreciações
das imagens foram parecidas com a do cordel animado anterior, porém como eram para
alertar esse perigo, os alunos acharam que elas foram mais impactantes. Estas
percepções das ilustrações foram essenciais para o conhecimento e relacionamento com
as imagens semelhantes às xilogravuras.
No filme o Auto da Compadecida, os alunos também demonstraram interesse em
responder as perguntas da professora-mediadora. Começando pelo título, não
conseguiram fazer de imediato uma interpretação, foi preciso analisar cada palavra em
separado. Iniciamos pela palavra auto, lembraram imediatamente de automóvel.
Depois, Compadecida, assimilaram ao nome de alguém por estar escrita em letra
maiúscula. A professora então, perguntou se os alunos já tinham assistido a alguma peça
teatral, alguns disseram sim, outros não.Pedimos aos alunos que deram respostas
positivas, explicassem como esta encenação acontecia. Explicaram sobre a existência do

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VII Seminário Vozes da Educação

cenário, do diálogo entre os personagens, das ações realizadas na frente do público e das
falas ensaiadas.Após esta explicação, a professora perguntou novamente se agora eles
saberiam dizer como seria um Auto. Foi impressionante, fizeram referência aos autos de
Natal das igrejas que frequentavam. Assim conseguiram construir um significado para a
palavra Auto, segundo as suas construções: um tipo de peça teatral.Ficou faltando
descobrirem o sentido da palavra Compadecida, até fizeram relações como sendo o
nome de alguma pessoa, porém não depreenderam ser esta palavra um dos nomes de
Maria, a mãe de Jesus.Como não foi apresentado o filme na íntegra, a professora-
mediadora explicou quem seria a Compadecida. Passamos a assistir aos episódios e
fomos interpretando as falas, os personagens, os cenários onde as cenas
aconteciam.Perceberam se tratar da Região Nordeste, com lugares característicos dessa
localidade e personagens com vestimentas e sotaques representativos do povo sertanejo.
Os alunos conseguiram identificar, mesmo sem conhecer o gênero xilogravura,
alguns de seus aspectos: arte artesanal, recursos limitados, pinturas em preto e branco.
Fizeram uma analogia aos poucos recursos financeiros destinados a essa região e este
tipo de produção. Reconheceram nas narrativas os ensinamentos provocados de forma
crítica levando a uma mudança de comportamento. Segundo Cosson (2011, p. 30), o
processo de letramento que privilegia gêneros literários permite ao aluno um
crescimento crítico e intelectual não contemplados por outros gêneros.
Com o intuito de elevar esse crescimento crítico e intelectual, as atividades eram
voltadas para que o aprendizado acontecesse. Respeitando o tempo de aprendizado de
cada aluno, algumas atividades eram direcionadas com o objetivo de, sem
constrangimento, tentar sanar a dúvida de determinados discentes. Para tanto,
trabalhamos letras de música, jogos e atividades onde um colega ajudava a tirar a
dúvida do outro. Verificamos na prática as palavras de Gadotti (2011, p. 60),
“precisamos aprender ‘com’. Aprendemos ‘com’ porque precisamos do outro, fazemo-
nos na relação com o outro, mediados pelo mundo, pela realidade em que vivemos.”
Após o desenvolvimento de variadas atividades, passamos para a construção dos
cordéis. Como ensinar/aprender também exige o sentimento de pertença, construímos
folhetos de cordel homenageando as pessoas que deram o nome das ruas onde cada
aluno morava. Fizeram pesquisas com o intuito de descobrirem quem foram essas
pessoas. A cada informação recolhida, percebia-se o entusiasmo e a vontade de querer
saber mais.

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sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

As atividades desenvolvidas utilizando a literatura de cordel e a ilustração com


destaque à xilogravura promoveu um amadurecimento da turma, aguçou a vontade de
conhecer o novo, de questionar a realidade onde estão inseridos, de respeitar as
diferenças e diversidades culturais. Esta prática mostrou como a tarefa de ensinar e
trocar experiências, quando respeitada a singularidade de cada educando, acontece de
forma fluida e permanente. De forma gratificante, o belo é encontrar alguns ex-alunos
que não esqueceram a experiência e afirmam que passaram a gostar desta literatura
porque tiveram a chance de conhecê-la.

Registro das atividades realizadas


No ano de 2017, fizemos a culminância da pesquisa acima descrita com uma
exposição dos folhetos animados construídos pela turma.

Folheto Animado
Produção textual dos alunos

Fonte: Arquivo pessoal da autora

No ano de 2018, os alunos do 8º ano participaram do sarau anual realizado pela


escola apresentando o folheto “O batizado do gato” de Arievaldo Viana, transposto para
uma peça teatral. Para esta atividade, foram feitas oficinas de montagem do folheto,
leitura e construção de sentidos, após a realização destas atividades, fizemos a
transposição do folheto para o teatro.

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VII Seminário Vozes da Educação

Sarau: Encenação do cordel

Fonte: Arquivo pessoal da autora

Em 2019, participamos da festa da cultura brasileira, construímos sextilhas


relacionadas a cultura de diversas regiões do Brasil. Para esta atividade, os alunos
participaram de oficinas destinadas à pesquisa sobre algumas regiões, reflexão de alguns
folhetos e a construção destes. Compreenderam também que a forma de venda destes
folhetos, aqui no Brasil, acontecia de forma diferente de Portugal. No Brasil, os poetas
dispunham de uma maleta e ali colocavam seus folhetos, esticavam um tapete e os
espalhavam pelo chão. Em Portugal, esta venda era feita com os folhetos pendurados
em cordões. Para a nossa exposição, optamos pelas duas formas de divulgação.

Cultura brasileira em cordel

Produção de sextilhas

Fonte: Arquivo pessoal da autora

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sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

Considerações finais
Um ponto chave deste trabalho foi valorizar os saberes e produções dos alunos,
para que se sentissem importantes no processo de construção do conhecimento. Para
isso, a professora, em cada oficina, deixava os alunos se expressarem, sendo coerentes
ou não, eles foram percebendo à medida que as perguntas iam sendo feitas. Eles foram
aprendendo a argumentar, explicar o pensamento de forma descontraída e sem medo de
errar, o que não acontece quando estavam respondendo questões do livro didático.
O entusiasmo no rosto de alguns alunos para assistir aos cordéis animados ou o
interesse de outros em ler os folhetos de cordel e construir sentidos para narrativas
literárias e ilustrações, ajudaram o grupo a realizar as tarefas propostas. Os próprios
alunos corrigiam-se uns aos outros e verificavam o que podiam escrever ou ilustrar
melhor. Conversavam sobre a aprendizagem, trocavam impressões de leitura sobre as
produções dos artistas consagrados e sobre as dos colegas de turma, avaliavam os
trabalhos dos integrantes dos grupos e davam sugestões sobre melhorias possíveis. A
sala de aula se tornou um verdadeiro ambiente de construção do conhecimento.
Vale ressaltar, as atividades se destinavam ao conhecimento dos gêneros em
questão, a construção de sentidos para os textos dos gêneros ligados ao cordel e a
produção escrita. Deixou-se um pouco de lado, as questões gramaticais e nos
empenhamos a entender os diversos sentidos do folheto de cordel. Alunos prejudicados
em relação a gramática? Com certeza não, alunos mais capazes de entender a sua
Língua e as diversas culturas produzidas em nosso país.
Observar o crescimento dos alunos e seu protagonismo na construção de
conhecimentos é muito gratificante, tanto na produção de suas obras escrita e de
ilustrações, quanto nas performances orais nos debates e na formulação de
interpretações. Após a troca de experiências, observamos uma turma menos agitada,
mais unida e madura, concentrada nas leituras propostas, querendo dar suas opiniões,
participativa e criativa. À professora ficou a lição que não dá mais para voltar atrás, os
alunos precisam sim de aulas mais dinâmicas, de mais autonomia e liberdade criativa,
aulas voltadas para o conhecimento do gênero, entendido como parâmetro maleável,
que orienta, mas não cerceia a criatividade dos estudantes. Aos alunos, uma lição
inesquecível: a leitura realmente transforma e a habilidade expressiva empodera.

sumário 1888
VII Seminário Vozes da Educação

Referências
BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: Língua Portuguesa. Brasília:
MEC/Secretaria de Educação Fundamental, 1997a.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2 ed. 1ª impressão. São Paulo:
Contexto, 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São


Paulo: Paz e Terra, 1996.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Oralidade e a mediação do outro: práticas de


letramento entre sujeitos com baixos níveis de escolarização – o caso cordel. Educ. Soc.
Campinas, vol. 23, n. 81, p. 115-142, dez. 2002. Disponível em
http:/www.cedes.unicamp.br

GADOTTI, Moacir. A boniteza de um sonho: ensinar-e-aprender com sentido. 2.ed.


São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2011.

GIROTTO, Cyntia; SOUZA, Renata. Estratégias de leitura: para ensinar alunos a


compreenderem o que lêem. In: SOUZA, Renata (org.) Ler e compreender: estratégias
de leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2010.

SANTOS, Luciane Aparecida Alves. Literatura de cordel e migração nordestina:


tradição e deslocamento. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 35.
Brasília, janeiro-junho de 2010, p.77-91.

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola.


Campinas, SP: Mercado da Letras, 2004.

SOUZA, Renata Junqueira; COSSON, Rildo. Letramento literário: uma proposta para
a sala de aula. Unesp. Disponível em:
<http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/pensaresemrevista>. Acesso em 29 maio
2017.

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sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

LA ESCRITURA Y LECTURA EN LOS ESPACIOS HABITADOS:


TRABAJANDO LA ESCRITURA CON NIÑAS Y
NIÑOS MENORESDE 5 AÑOS

Yajaira Terán R.
Programa Escuelas Lectoras
yajairateran_2008@hotmail.es

Antonia Manresa
Universidad Andina Simón Bolívar
antonia.manresa@uasb.edu.ec

¿Por qué promover la escritura y lectura situada en los espacios que habitamos?
Sin duda la escritura y lectura tiene un valor social y cultural situada en cada
contexto social y comunitario. Esto implica, por un lado, la habilidad de la persona para
escribir, y por otra lado conjugar esto con la necesidad y capacidad de escribir diversos
textos apropiados para cada contexto social comunicativo particular, como es la familia,
escuela y comunidad. En este sentido la escritura e inclusive la lectura están
intrínsecamente vinculadas con los espacios que habitamos, con la necesidad
comunicativa y la expresión apropiada para los diversos contextos sociales.
Si observamos en una ciudad o comunidad, existen muchos textos escritos que
son parte de la vida social y cultural de quienes las habitan, textos creados como una
necesidad de comunicación, por una necesidad de sentirse visibles ante los otros o para
crear una identidad. En educación, los procesos de enseñanza y aprendizaje de la lectura
y escritura deberian concretar este propósito desde la primera infancia. Esto rompe con
la percepción tradicionalista de tratar la escritura y lectura como algo abstracto, distante,
tanto de la colectividad social de los estudiantes como su necesidad comunicativa su
vinculo y construcción identitaria.
Este enfoque social y cultural de la escritura y lectura se ha venido debatiendo
desde los años 80, nombrados ‘nuevos estudios de literacidad’ (New Literacy Studies).

sumário 1890
VII Seminário Vozes da Educação

Esta corriente tiene sus inicios en Inglaterra con, Street (1984) y Barton y Hamilton
(1998) y Gee (1986) en Estados Unidos. Cassany (2006) en España profundiza esta
mirada desde una posición pedagógica en la escuela formal, en Latinoamérica Zavala
(2002) recoge la crítica que postulada desde los nuevos estudios de literacidad
proponiendo la concepción de literacidades para incluir practicas comunitarias
excluidas. Kalman por su lado en México (2003), enfoca sus estudios en personas no
letradas, analizando la disponibilidad, acceso y apropiación de las prácticas letradas en
contextos formales educativos. Mientras los enfoques y contextos desde donde
argumentan estos autores son diversos y el concepto de literacidad no es una sola, todos
coinciden con reconceptualizarla situada en diversos contextos socio-culturales, lo que
implica que la reconocen desde su diversidad, con relación a sus diferentes funciones y
procesos sociales complejos y diversos. En otras palabras, la literacidad se convierte en
literacidades.
Desde esta corriente se conoce a las literacidades como el cúmulo o conjunto de
prácticas letradas articuladas entre sí, que pueden asociarse a un contexto determinado,
a la familia, la escuela, los centros de salud, los supermercados, la iglesia, los museos,
entre otros. Para Street, existen muchas formas de literacidades en los espacios que
habitamos; son los usos específico que damos a la escritura y lectura en los diferentes
espacios comunitarios que nos sirven y posibilitan una interacción.
esde las nuevas literacidades se indaga las varias formas de escribir y leer de los
pueblos, porque no existe una manera única y exclusiva de hacerlo, cada grupo social
crea sus formas de literacidad dependiendo de una situación comunicativa (Salomon &
Niño-Murcia, 2011). En contextos formales educativos Judith Kalman, resalta el hecho
que no es suficiente la adquisición de la lectura y escritura para asegurar su uso, se
necesita que las personas tengan la oportunidad de dar valor a las prácticas de lectura y
escritura, conozcan las relaciones que se establecen entre lectores y escritores,
comprendan la funcionalidad de los textos escritos y sientan por qué y para qué se lee y
escribe.
En este sentido, nos abre la mirada para darnos cuenta que cada comunidad, cada
sector de las ciudades tiene diferentes formas de expresarse y usar el texto escrito. Por
ejemplo, en Quito es diferente el sector de la Carolina (centro comercial y bancario) con
el de Calderón (barrio populoso). En este último, encontramos el espacio público lleno
de afiches anunciando los conciertos de tecno cumbia, rock, lucha libre, pelea de gallos,
oferta de servicios varios e infraestructura en arrendamiento, con empapelamiento o

sumário 1891
sumário
Resistências Políticas e Poéticas na Vida e na Educação: Regina Leite Garcia, presente!

escritura en las paredes de los inmuebles vecinos o en el mobiliario del espacio público,
lo que aparentemente satura y caotiza visualmente el entorno. En contraste, la forma de
comunicación de los textos escritos en los anuncios, imágenes, rótulos, mallas
publicitarias y otros en el entorno del parque de la Carolina, son diferentes en ubicación,
organización y presentación, son más regulados, permitente unos y no otros. En los dos
casos planteados se encuentra formas de comunicación y expresión que crean y
valorizan los habitantes y usuarios de esos sectores, lo que es un claro ejemplo de las
variadas formas de literacidades en las urbes. Sin embargo estas formas de escritura no
tienen la misma legitimidad, en los sectores populares esta forma de escritura y
comunicación en muchas ocasiones ni siquiera se lo ve como una forma de literacidad y
es excluida frente a la publicidad en sectores comerciales. En la ruralidad si bien la
comunicación es mayoritariamente oral, sin embargo encontramos el uso del lenguaje
escrito en convocatorias, anuncios en casas comunales, centros de salud, iglesias, clubes
deportivos, tiendas de abarrotes, lo que rompe con el mito de la no literacidad de estas
zonas.
En los espacios escolares son muy escasas las interacciones que tienen los niños
y las niñas con las prácticas letradas situadas en relación con su propio contexto e
identidad colectiva. Las escuelas en muchas ocasiones, se vuelven espacios
deshabitados, sin identidad ni presencia de un grupo social. Desde esta concepción
teórica de los nuevos estudios de literacidades, el proceso de enseñanza aprendizaje de
la escritura y lectura debe contemplar el uso práctico en la vida cotidiana, que no solo se
limite a la estructura gramatical del lenguaje escrito, sino de una necesidad situada que
reapropie una construcción identitaria. Es en este sentido que los procesos de formación
y acompañamiento docente de los programas de Escuelas Lectoras está dirigida.
La literacidad escolar en nuestros países tiende a centrarse en la adquisición del
código alfabético o el sistema de la lengua. Esto implica que los y las docentes
desaprovechan el tiempo y recursos durante los primeros años de la educación básica,
imponiendo la adquisición de unas grafías correspondientes al alfabeto y por lo general
sistema silábico de construcción de palabras. Las palabras que se utilizan no son
necesariamente importantes ya que son preestablecidas; los espacios que se habitan, las
funciones de la lectura y escritura, y la necesidad o motivación que tengan los
estudiantes para comunicarse, además de sus formas de expresión, no están en el
horizonte de los y las docentes. Cambiar los procesos de e

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