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POLÍTICA URBANA E MOVIMENTO DE FAVELAS

EM BELO HORIZONTE (1947-1964)


Samuel Silva Rodrigues de Oliveira1

(...) se tudo isso é verdade e constitui uma pauta de graves


problemas a serem solucionados, é preciso notar que é nessa
evidência mesma que reside à opacidade da favela, pois ela
produz a certeza de que já se conhece as favelas, sem que
seja preciso conhecê-la efetivamente (...).2
A categoria social “favela” constitui parte do senso comum dos habitantes de
várias cidades brasileiras. Essa representação homogeneíza vários espaços urbanos
do ponto de vista de suas características físicas, classificando-os como “ocupações
irregulares”, “cujas construções são toscas e feitas de forma desordenada”,
“desassistidas e privadas de infraestrutura” e por “se localizarem em áreas de risco”
3
. Do ponto de vista dos grupos sociais reforça-se com a classificação o estigma
da pobreza dos moradores, normalmente identificados como “classes perigosas”,
ligadas a crimes e contravenções no meio urbano. Como nota Dulce Chaves Pandolfi
e Mário Grynspan, esta “certeza” sobre as favelas constitui a própria “opacidade”
desses territórios, pois a diversidade e as diferenças são excluídas de nosso campo de
visão, em favor de uma representação homogênea que se apresenta como evidente
e transparente para os cidadãos.
O intuito de complexificar essa ótica estreita do senso comum tem marcado uma
das principais tendências da produção das ciências humanas. As pesquisas que se
debruçam sobre o tema buscam duas estratégias para alargar essa visão sobre as
favelas. Apresentam como o substantivo “favela” foi inventado culturalmente no
século XX; observam seu uso na literatura, no urbanismo, nas ciências médicas, na
literatura de ciências sociais e questionam os interesses políticos e sociais embutidos
nessas produções intelectual. Ou, então, através de pesquisas sociodemográficas ou
do trabalho de campo antropológico, representam a diversidade dos grupos sociais
que constituem as favelas e a forte relação que esses territórios têm com outros
espaços da cidade4.
1
Doutorando em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).
Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Autor de O movimento de favelas
de Belo Horizonte (1959-1964) (Rio de Janeiro: e-Papers, 2010). Bolsista da Fundação Carlos
Chagas de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro. E-Mail: <samu_oliveira@yahoo.com.br>.
2
PANDOLFI, Dulce Chaves & GRYNSPAN, Mário (orgs.). A favela fala: depoimentos ao CPDOC.
Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 23.
3
PANDOLFI & GRYNSPAN, A favela fala..., p. 21.
4
Para uma visão ampla dessa produção e dessas estratégias de pesquisa cf. VALLADARES, Licia
do Prado. Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1978; VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito
de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005; ZALUAR, Alba. A máquina e a Revolta. 2ª ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994; ZALUAR, Alba & ALVITO, Marcos. Um século de favela. Rio de Janeiro:
FGV, 1998; PERLMAN, Janice. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1977; SILVA, Luiz Antonio Machado da. “A Política na favela”. Cadernos
Brasileiros, ano IX, n. 41, mai./jun. 1967, p. 35-47.

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O esforço analítico para problematizar o senso comum e ampliar a representação
da favela tem recebido investimentos distintos dos vários campos das ciências
humanas. Na bibliografia analítica sobre as favelas do Rio de Janeiro, Lícia Prado
Valladares e Lídia Medeiros salientaram que apenas 3% do conjunto dos 668
títulos levantados pertenciam à disciplina história. A contribuição mais evidente era
proveniente da sociologia urbana (19%), planejamento urbano/arquitetura (18%),
antropologia urbana (14%) e as produções institucionais do poder público (9%)5.
Ou seja, a história pouco tem contribuído, deixando de se apropriar de um dos
objetos de pesquisa mais evidentes das ciências sociais no Brasil. O resultado disso
é que as reflexões desenvolvidas no âmbito da historiografia ficam a margem de um
debate, para o qual podem contribuir de forma decisiva, observando como alguns
problemas enfrentados nesta bibliografia se constituíram em estruturas temporais e
durações mais amplas.
Nesse artigo, recuperamos uma perspectiva do debate da cidadania na
historiografia, analisando as estratégias de participação dos moradores de favelas
em Belo Horizonte. O eixo central é a análise da experiência da Vila São Vicente de
Paula em 1949 e a forma como esta luta tornou-se referência política no movimento
social organizado pela Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte
(1959-1964).
Ao escolher essa temática, estamos lidando com um tema clássico da cultura
política: como indivíduos e grupos mobilizam-se para participar da vida da política
num Estado? A resposta da pergunta envolve a história do desenvolvimento dos
partidos, do voto, das classes e dos movimentos sociais e a maneira como os atores
articularam o sentido dessas práticas. Ao observar os testemunhos que atribuem
sentidos a essas práticas, analisamos as “gramáticas do poder e do consentimento
que impõem aos atores regras de inteligibilidade e de legitimação, lhes indicando as
margens de manobra e de transação, delineando constrangimentos e oportunidades”
e gerando orientações quanto às formas de lealdade e de aliança6. Ou seja,
analisamos a cultura política.
Daniel Cefaï definiu cultura política como gramática da vida pública, aproximando-
se de Clifford Geertz e de suas críticas ao modelo cultural de explicação da vida
política desenvolvido por Gabriel Almond e Sidney Verba7. Cefaï citou o texto de
Geertz “A ideologia como sistema cultural” como uma resposta ao modelo cultural
dos autores de The Civic Culture8. Neste texto, Geertz definiu a ideologia como
um “arcabouço simbólico em termos dos quais se possa formular, pensar e reagir a
problemas políticos”, ligada aos “interesses” formados na estrutura de personalidade
do indivíduo e na estrutura social. Portanto, a ideologia não falseia a realidade, mas

5
VALLADARES, Licia do Prado & MEDEIROS, Lídia. Pensando as favelas do Rio de Janeiro (1906-
2000): uma bibliografia analítica. Rio de janeiro: Relume Dumará /FAPERJ, 2003, p. 17.
6
CEFAÏ, Daniel (ed.). Cultures politiques. Paris: PUF, 2001, p. 116.
7
ALMOND, Gabriel A. & VERBA, Sidney. The civic culture: political attitudes and democracy in
five nations. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1963; ALMOND, Gabriel A. “The
intellectual History of the civic culture concept”. In: ALMOND, Gabriel A. & VERBA, Sidney. The
civic culture revisited. Newbury Park, London; New Delhi: Sage Publications, 1980, p. 1-36.
8
Introdução do livro Cultures politiques, organizado pelo autor. Cf. CEFAÏ, Cultures politiques.

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esta vinculada às situações e às experiências individuais e coletivas9.
A definição da ideologia como sistema cultural e a própria noção de representação
na historiografia francesa conduziram Daniel Cefaï a uma análise pluralista da cultura
política. Tornou-se importante à compreensão dos grupos que lutavam pelo poder e
os diferentes projetos e visões de mundo que estruturavam a percepção do político,
criticando o “modelo geral e normativo” que estruturou a comparação dos sistemas
políticos na ciência política americana. Não era mais o quantum de modernidade
e identificação com os valores da democracia liberal que definia a cultura de uma
comunidade política, mas sua história e experiências10.
A compreensão da noção de cultura política desenvolvida por Daniel Cefaï
conduziu a análise dos recursos sociais e simbólicos mobilizados pela Vila São Vicente
em 1949 e sua relação com o movimento de favelas organizado pela Federação
dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (FTFBH). Assim, estamos também
nos afastando das análises dos movimentos sociais que trazem a expectativa de que
grupos populares deveriam se transformar em “uma classe de tipo revolucionária”.
Refiro-me a teoria marxista-leninista que orientou a visão de parte da intelectualidade,
e levou às classificações dos movimentos entre “inteligentes” (racionais, orientados)
e “alienados” (irracionais, espontâneos). A visão dos grupos sociais é mais complexa
que essa representação constituída nos meios intelectuais de “vanguarda”.
O presente artigo também rejeita a visão da história política que priorizou a
ênfase no Estado como ator político, em detrimento dos grupos que compõem a
sociedade. Para compreender a experiência da Vila São Vicente e sua relação com
a FTFBH, vamos lançar mão das noções de repertório de ação coletiva. O conceito
de repertório de ação tem como objetivo tornar inteligível a maneira como um
ator social usa de certas “performances relativamente familiares e modulares” para
estabelecer confronto com o Estado (e outros grupos) e para propor reivindicações
no espaço público11. Pressupõe-se que as performances existam em número limitado
e não são inventadas a cada novo contexto de luta, organizam-se como rotinas de
protesto e constituem-se num grupo social através de um processo de aprendizado,
escolha e legitimação de um conjunto de formas de ação tendo em vista certas
demandas12. As “gramáticas da vida pública” dos movimentos surgem como parte
9
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
10
Essa visão “pluralista” é comum a vários autores que trabalham com a noção de “cultura política”
no Brasil. cf.GOMES, Ângela de Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas
reflexões. In: SOIHET, Rachel, BICALHO, Maria Fernanda Baptista, GOUVÊA, Maria de Fátima
Silva. Culturas Políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de
Janeiro: FAPERJ/ MAUAD, 2005, p. 27-33; DUTRA, Eliana R. de Freitas. “História e Culturas
Políticas: definições, usos, genealogias”. Varia História, Belo Horizonte, PPGH-UFMG, n. 28, dez.
2002, p.16. MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Culturas políticas na história: novos estudos. Belo
Horizonte: Argvmentvm, 2009, p. 20.
11
Para discussão e observação do uso do conceito de repertório de ação coletiva cf. TILLY, Charles.
“Contentious Repertoires in great Britain, 1758-1834”. In: TRAUGOTT, Mark (ed.). Repertoires and
cycles of collective action. Durham: Duke University Press, 1995; TRAUGOTT, Mark. “Barricade
as repertoire: continues and discontinuites in the History French contention. In: TRAUGOTT,
Repertoires and cycles…; ALMEIDA, Juniele Rabelo de. Farda e protesto: policiais militares de
Minas Gerais em greve. Belo Horizonte: SEGRAC Editora, 2008.
12
TILLY, Clarles & TARROW, Sidney. “Contentious Politics and Social movements”. In: BOIX,

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dessas performances, numa clara releitura dos símbolos e representações do mundo
social e político com o intento de deslocarem essas significações para construírem
seu lugar e seus interesses na comunidade política.
Destarte, em nossa análise, assumimos o pressuposto de que o “núcleo do que
hoje denominamos ‘cidadania’, na verdade, consiste em múltiplas negociações
elaboradas” no curso dos conflitos sociais e políticos13. Ainda que seja assimétrica
a relação entre o Estado e os diferentes segmentos da sociedade, cada qual faz uso
de seus recursos e de seus repertórios para tentar inventar, constituir ou fazer valer
seus direitos e interesses14.
Os repertórios do movimento de favelas são compreendidos como parte da
política urbana entre 1947 e 196415. Esse período qualificado pela forte relação
das elites políticas com o meio urbano, criou-se meios institucionais e políticos
que possibilitaram a manifestação de diversos atores, entre eles os movimentos de
favelas. Não obstante os movimentos fazerem uso de recursos extra institucionais
para se representar politicamente, saindo do padrão de representação admitida
através de partidos políticos, eles não deixaram de travar um embate com o Estado,
alargando e colocando em pauta a dimensão do legal e do ilegal, do legítimo e
ilegítimo, a noção de cidadania. Nesse sentido, observamos que as estratégias de
ação dos moradores de favelas foram inventadas com forte interação com a forma
de organização do poder municipal.

A “Capital de Minas” e a Política Urbana

O caráter elitista da Proclamação da República (1889) foi analisado por José


Murilo de Carvalho. Se a marca dos regimes republicanos americanos e franceses
foi a ampliação da participação popular, a pergunta do autor em Os Bestializados
é onde esteve este sentido de república no Brasil. Através da análise de dados
demográficos, de jornais e de textos literários, tendo como palco o Rio de Janeiro,
sua conclusão é que a “república faltou ao encontro”. O início da institucionalização
Charles & STOKES, Susan Carol (eds.). The Oxford handbook of comparative politics. Oxford:
Oxford University Press, 2007, p. 440-442.
13
TILLY, Charles. Coerção, capital e estados europeus. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 164.
14
Para os autores que tem trabalhado a cidadania como algo negociado entre cidadão e estado,
numa via de mão dupla cf. FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1996;
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987; GOMES, Ângela de Castro. A invenção do Trabalhismo. 3. ed.
Rio de Janeiro: FGV, 2005.
15
A análise que proponho está marcada por algumas observações da tradição sociológica e histórica
que usou o conceito de populismo. Contudo, distancio-me dessa tradição política no que toca a
qualificação da ação dessas lideranças como sendo manipulativas, por identificar um pacto de
classe em que não haveria predomínio de operários, burgueses ou latifundiários. Entendo que
a política é uma via de mão dupla, uma relação. Para observar a crítica da noção de populismo
na historiografia. Cf. FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; FERREIRA, Jorge. “Queremismo, trabalhadores e cultura
política: soberania popular e aprendizado democrático. Varia História, n. 28, dez. 2002, p. 69-84;
GOMES, Ângela de Castro. “Reflexões em torno de populismo e trabalhismo”. Varia História, n. 28,
dez. 2002, p. 55-68.

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do regime no governo de Prudente de Morais (1894-1898) e Campos Sales (1998-
1902), após dois governos militares de Marechal Deodoro (1889-1892) e Floriano
Peixoto (1892-1893), caracterizou-se na afirmação de um sentido elitista e liberal ao
republicanismo brasileiro. “Governar o país acima das multidões”, este era o objetivo
da elite política que se institucionalizava, levando à exclusão dos pobres, negros,
imigrantes e operários da “política oficial”, conduzindo-os à “apatia”, “revolta”, ou
uma participação “informal” (contatos pessoais e favores, não previstos como rotina
nos mecanismos políticos-institucionais)16.
Num outro aspecto, o autor identificou um vínculo entre espaço urbano e
republicanismo no Brasil. As cidades que foram sede e representação desse poder
receberam as marcas do ideário elitista. Belo Horizonte pode ser considerada
como um caso do possível dessa relação entre cidade e republicanismo brasileiro.
Planejada e construída para ser sede do governo de Minas Gerais em substituição à
Ouro Preto, capital de Minas desde o século XVIII, Belo Horizonte foi a expressão da
“modernidade” republicana. O calculo político que balizou a escolha e planejamento
da cidade tinha em vista o distanciamento do “antigo” – no plano do imaginário isso
significou a oposição a “Ouro Preto” e também a “barbárie”. Belo Horizonte deveria
se impor como símbolo da “civilização”, do domínio da “técnica” sobre a natureza
– afinal, se fundaria uma “capital” em um povoado de pouco desenvolvimento,
Curral D’el Rey.
Os cálculos políticos que precederam a organização da cidade garantiriam
o equilíbrio oligárquico. Sendo Minas Gerais um estado de grandes dimensões
territoriais, com elites divididas e que disputavam o poder entre si, a escolha
de Belo Horizonte como sede do novo governo foi orientada por se identificar
em Curral D’El Rey um território neutro. Foi escolhida a região com menos
desenvolvimento econômico e social para ser sede de um governo, para aplacar a
disputa “intraoligárquica” que transcorria em Minas no início da década de 189017.
Evitava-se que uma região e uma elite regional fossem beneficiadas pelos vastos
investimentos que seriam necessários a fundação de uma nova capital. Ademais, os
habitantes de Curral Del’ Rey foram desconsiderados no projeto e desqualificados
para habitarem a nova capital, guardada para os “funcionários do Estado” e as
“elites mineiras”.
Os direitos de municipalidade e representação local através das Câmaras
Municipais foram ampliados na Constituição de 189118, mas desconsiderados em
Belo Horizonte. A capital mineira foi administrada durante toda a Primeira República
por um Prefeito e um Conselho Deliberativo – ambos nomeados pelo governador.
A garantia do equilíbrio “intraelites” implicava a neutralização da capital de Minas,
em nome da permanência da força política vencedora nas eleições do governo do
16
CARVALHO, Os bestializados..., p. 41.
17
Para a disputa intra-oligárquica nas elites mineiras cf. VISCARDI, Claudia Maria Ribeiro. O teatro
das oligarquias: uma revisão da política do café com leite. Belo Horizonte: C/Arte, 2001, p. 73-
104.
18
Para compreensão da ampliação do poder municipal na Primeira República, veja-se: FREIRE,
Américo. Uma capital para a República: poder federal e forças políticas locais no Rio de Janeiro na
virada para o século XX. Rio de Janeiro: Revan, 2000; NUNES, Victor Leal. Coronelismo, enxada
e voto. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

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estado. Isso significou que os habitantes da cidade não tinham direito de escolher
representantes políticos, e estavam à mercê do governo estadual. A imagem da
neutralização política da capital mineira coadunou-se ao domínio de uma oligarquia
rural na Primeira República. Neutralizava-se o centro urbano que seria a sede do
poder estatal, para acomodar os interesses e os acordos forjados no interior do
estado.
A “Revolução de 1930” significou um rearranjo deste jogo político, onde os
grupos urbanos ganharam maior relevo na composição das configurações sócio-
políticas, contribuindo para a alteração da forma de governo da cidade. Em 1936,
Belo Horizonte teve pela primeira vez uma Câmara Municipal eleita pelos seus
habitantes. Nessa época, proliferaram organizações de bairros e vilas reivindicando
melhorias. Contudo, esse processo foi cerceado pelo Estado Novo (1937), que fechou
a Câmara, e o governo da cidade foi assumido por interventores19.
O fim do Estado Novo (1945) e a promulgação da Constituição de 1946
provocaram uma reviravolta na configuração política de Belo Horizonte. Em 1947,
pela primeira vez em sua história, a cidade teria representantes eleitos pelo voto
popular que completariam seus mandatos no legislativo e executivo municipal.
Segundo Regina Helena Alves, “a cidade adquiria autonomia e instituições políticas
características da democracia: uma prefeitura e uma assembléia de representantes
eleita por voto secreto dos cidadãos alfabetizados”20.
O município ganhou uma autonomia relativa para agir. Se a escolha dos
representantes não mais dependia do governador de Minas, a influência deste na
capital mineira nunca se apagou: Milton Campos (1946-1950), Juscelino Kubitschek
(1951-1954), José Francisco Bias Fortes (1955-1960) e Magalhães Pinto (1961-
1965), todos eles tiveram grande poder no jogo político da cidade e agiram na capital
tentando transformá-la na síntese de projetos políticos. Belo Horizonte ainda seria
vitrine para o Estado de Minas, tendo centralidade nos projetos que integrassem as
várias regiões.
Entretanto, a emergência do poder municipal foi uma grande oportunidade
para mobilização política e a barganha de benefícios. A mudança institucional que
perduraria entre 1947 e 1965 fez eclodir na cidade vários movimentos de bairros,
vilas e favelas. Estimulava-se a formação de associações civis e comícios em bairros
como um repertório de ação dos moradores para lutarem por melhorias, para
garantirem as “promessas” de benefícios. Destarte, essas associações civis de bairros,
vilas e favelas ganhavam força por vocalizarem demandas aos políticos que, agora,
dependiam do voto para terem seus mandatos perpetuados.
A política de troca de benfeitorias urbanas por votos foi um traço que marcou
a ação nos subúrbios de Belo Horizonte que estavam em franca expansão. O
adensamento da população de Belo Horizonte entre 1940 e 1960 levou à forte
ocupação da área suburbana da cidade (Ver tabela I). Nesse período, as Avenidas
19
GUIMARÃES, Berenice Martins. Cafuas, barracos e barracões Belo Horizonte, cidade planejada.
Tese (Doutorado em Ciências sociais). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro,
Universidade Cândido Mendes. Rio de Janeiro, 1991, p. 195.
20
SILVA, Regina Helena Alves da. O legislativo e a cidade: domínios de construção do espaço
público. Belo Horizonte: Câmara Municipal, 1998, p. 49.

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Amazonas, Antônio Carlos e Dom Pedro II, e os trilhos da Central do Brasil eram eixos
de integração desses subúrbios à região central e comercial da cidade, direcionando a
expansão da cidade. Em 1954, Belo Horizonte era dividida em três distritos eleitorais:
12º, 12ºB e 12ºC. Os dois últimos representavam o subúrbio e, tomando como exemplo
o ano eleitoral de 1954, teríamos uma ampla vantagem dessa região em relação ao
centro da cidade. A geografia eleitoral que conduzia os cálculos dos políticos era marcada
pela oposição entre os eleitores dos subúrbios e os eleitores do “asfalto”, moradores da
região central e urbanizada21.

Tabela I - População de Belo Horizonte22


ANO NÚMERO DE HABITANTES
1940 177.004
1950 338.585
1960 642.912
1970 812.000

As lideranças políticas urbanas organizaram máquinas partidárias para conquistar o


voto nos subúrbios e propagar o carisma individual de alguns políticos. Este fenômeno
não foi característico apenas de Belo Horizonte, reproduziu-se também em outras cidades
brasileiras. Como observaram Paulo Fontes e Adriano Duarte, no caso de Adhemar
de Barros e Jânio Quadros em São Paulo, foi “essa teia de organizações locais que, no
cotidiano dos bairros periféricos, muitas vezes deu forma e conteúdo a essas lideranças
que então se constituíam. E, nos períodos eleitorais, era o acionamento dessa rede
que desencadeava e fornecia o suporte para as campanhas”. Nessa relação, tentava-
se articular uma troca: eram reconhecidos a “dignidade” e os direitos do povo, e, por
outro lado, legitimava-se o representante e seu discurso23.
O contexto de ascensão do poder municipal, a ampliação da participação popular,
e a formação de uma geografia política em que se evidenciava a composição do
voto nas áreas suburbanas estiveram diretamente relacionados com a ascensão dos
associativismos de favelas. As favelas estavam em franco crescimento na cidade na
década de 1950 e seria também um lugar de interesse e preocupação das classes
políticas (ver Tabela III). A estratégia de formar uma associação civil para lutar pelo
direito de moradia e por melhorias urbanas ganhou forte significado nessa conjuntura
de democracia política, sendo um dos vetores da compreensão e explicação da
difusão da associação civil em favelas no período de 1947 a 1964. A eleição municipal
21
“As eleições para a prefeitura de Belo Horizonte”. Estado de Minas, Belo Horizonte, 4 out. 1954,
p. 3.
22
Fontes: Censo IBGE, apud. PATARRA, Neide L. “Dinâmica populacional e urbanização no Brasil:
o período pós-30”. In: FAUSTO, Boris (org.). O Brasil Republicano: economia e cultura (1930-
1964). Vol. 4. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 247-268, p.262; MINAS GERAIS.
Levantamento da População Favelada de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1966,
p. 18.
23
DUARTE, Adriano, FONTES, Paulo. “O Populismo visto da periferia: adhemarismo e janismo
nos bairros da Mocca e São Miguel Paulista (1947-1953)”, Cadernos Arquivo Edgard Leuenroth,
Campinas, UNICAMP, v. 11, n. 20/21, 2004, p. 87, p. 119.

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e o interesse da classe política na conquista do voto nas áreas suburbanas influíram
de forma decisiva na formação das associações civis.

Tabela II – Moradores em Favelas em Belo Horizonte24

ANO NÚMERO DE HABITANTES


1955 36.432
1958 41.303
1961 70.000
1965 119.799

O Despejo da Vila São Vicente como um Fato da Política Urbana

Um dos repertórios de ação apreendidos e difundidos nas favelas de Belo


Horizonte para luta pela moradia foi a organização de “associações de defesa
coletiva”. Em 1949, a Vila São Vicente25, localizada nas proximidades da região do
Bairro Gameleira e do Seminário Coração Eucarístico, na Zona Oeste da cidade,
enfrentou um processo de despejo. O processo foi movido pelos herdeiros de Antônio
Alves Martins e de Francisca Alves Martins e os interesses da Empresa Mineira de
Terrenos contra os moradores. Os moradores organizaram uma “Associação de
Defesa Coletiva” para evitar o despejo.
A estratégia dos moradores não se estabeleceu deslocada da política urbana, mas
atrelada a esta. O contato com autoridades públicas e eclesiásticas para legitimar a
reivindicação fazia parte da estratégia de fundação da associação civil. A insistência
dos proprietários em denunciarem esta ligação (políticos/associação civil) demonstra
claramente o incômodo gerado pela transformação do processo de despejo em um
fato político de relevo na cidade26. No ato de fundação da entidade civil, realizou-
se um comício tendo em vista o apoio de vereadores para defenderem a causa dos
moradores. O comício contou com a participação de políticos de diferentes partidos
e repercutiu na Câmara Municipal. Um dos efeitos do comício e da fundação da
associação de moradores foi a discussão da formação de uma Comissão no legislativo
municipal que estudaria a desapropriação dos terrenos27.
24
Fontes: BELO HORIZONTE. População Favelada de Belo Horizonte em 1958, apud WATANABE,
Hiroshi. Morro do Querosene, alguns aspectos da formação de uma favela. Belo Horizonte: Diretório
Acadêmico da Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais, 1960, p. 34; MINAS
GERAIS. Levantamento da População Favelada de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1966, p. 18; Diário da Câmara Municipal. Diário da Tarde, Belo Horizonte, Caderno 2, 28
fev. 1961, p. 4.
25
Adotamos o nome Vila São Vicente, mas é importante frisar que em algumas fontes documentais
primárias encontra-se “Vila dos Marmiteiros” para se referir ao mesmo lugar.
26
[Histórico da ocupação do terreno segundo Délcio Alves Martins, s/d]. Arquivo Público Mineiro.
Fundo DOPS. Pasta 0119.
27
“Tentativa de solução para o caso da Vila dos Marmiteiros”. Estado de Minas, Belo Horizonte, 24
mai. 1949, p. 3.

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A procura pelo poder público municipal como mediador do conflito não se devia
apenas a abertura política que a cidade vivenciava, mas também ao histórico de
ocupação da Vila São Vicente. A ocupação dos terrenos aterrados nas proximidades
do da Avenida Tereza Cristina ocorreu a partir de 1941, quando a prefeitura expulsou
os moradores da Barroca, área próxima a Avenida do Contorno, que nos anos 1940
seria loteada e considerada como parte da zona urbana da cidade. A Barroca existia
como área suburbana, de ocupação operária desde a fundação da cidade e seu
desmanche deu origem à ocupação de duas regiões: o Morro do Querosene e a
Vila São Vicente – ambas incentivadas pelo poder público, com apoio da prefeitura
para a transferência para estes locais28. José Vitor, morador da Vila São Vicente,
e militante de associação de favelas entre a década de 1950 e 1960, no discurso
do comício de fundação da associação civil referiu-se à “via sacra dos moradores
daquela vila, vindos muitos deles da Barroca, sob processo de absoluta garantia e
segurança” do poder público29. A questão que se levantava para parte dos moradores
era: se a prefeitura os havia encaminhado para este local, porque haveriam de ser
despejados? Existia um sentimento de injustiça que fomentava a mobilização.
A transformação do caso da Vila São Vicente em fato político deveu-se não só
a ação e trajetória dos moradores, mas à solidariedade que surgiu de outras vilas
que estabeleciam um vínculo entre caso de despejo e uma memória operária da
ocupação do solo em Belo Horizonte. No mesmo comício de fundação, Anísio Cunha,
da “União Progressista da Vila Concordia” também foi solidário ao caso da Vila São
Vicente; o líder comunitário lembrava que também passaram pelo problema de serem
despejados30. A Vila Concordia foi criada por decreto para abrigar as famílias de
trabalhadores que concordaram em se transferirem da zona urbana da Pedreira Prado
Lopes, Barroca e Barro Preto – todas regiões de ocupação operária que datam da
construção de Belo Horizonte, no final do século XIX31. Criada como “vila operária”,
seu nome (“Concordia”) derivou do acordo feito pelos moradores de áreas que eram
“invadidas” para ocupar uma região que o poder público destinava-lhes32.
A memória cultural do lugar dos “operários” na cidade foi bastante viva entre
moradores e lideranças de associação. Era a expressão do sentimento de injustiça
no processo de depuração dos usos e da população no espaço urbano, em que se
expulsavam os operários e classes pobres das áreas centrais e urbanizadas. Essa
memória mantinha uma interdependência às vivências de despejo, a partir dos anos
1920, e as referências à própria construção e fundação da cidade. O testemunho e
a trajetória de Vicente Gonçalves demonstraram esse duplo indício. Ele chegou a
Belo Horizonte vindo de Ouro Branco, na década de 1930; tornou-se morador da
Barroca, enfrentou o processo de despejo, resistiu até 1945 e foi transferido pela
prefeitura para o Morro do Querosene. Em 1952, fundou um Comitê de Defesa
Coletiva do Morro do Querosene (Vila São José) para evitar o despejo que o Exército
28
GUIMARÃES, Cafuas, barracos..., p. 225-230.
29
“Tentativa de solução para o caso da Vila dos Marmiteiros”. Estado de Minas, Belo Horizonte, 24
mai. 1949, p. 3.
30
“Tentativa de solução para o caso da Vila dos Marmiteiros”. Estado de Minas, Belo Horizonte, 24
mai. 1949, p. 3.
31
MINAS GERAIS. Decreto nº31, 6 de setembro de 1928.
32
GUIMARÃES, Cafuas, barracos..., p. 156.

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tentava empreender, alegando posse das terras. Para ele,
(...) as favelas não foram invadidas. O pessoal veio, construiu
Belo Horizonte e foi largado as traças. Então, [esse] foi um
dos fatos que mais impulsionava os argumentos que a gente
usava de que aquilo é de trabalhador e não de bandido e
não de miseráveis. Eram trabalhadores que construíram essa
cidade, portanto nós temos direitos a participação igual aos
moradores que moram nos bairros chiques daqui33
No testemunho de Vicente Gonçalves, a referência à construção da cidade na
década de 1890 e ao fato de não ter sido reservado na cidade planejada um lugar de
moradia para os operários, levando-os a ocuparem os “subúrbios”, é extremamente
significativa de uma apropriação da história da cidade. Ele não viveu a Construção
de Belo Horizonte, mas essa referência à fundação da cidade era importante para
demarcar o direito à moradia. Essa referência articulou um contra discurso ao
enquadramento oficial das favelas como terrenos “invadidos” por “criminosos” e
“miseráveis”. Esse discurso público sobre foi desenvolvido pela prefeitura municipal
e sintetizado numa legislação de postura municipal em 1956, que definiu a favela
como área invadida e “irregular”, proibindo-se o aumento das casas, a exploração
de aluguel e a venda de lotes nesses territórios 34. As práticas do poder público
desconsideravam e colocavam à margem da legalidade várias formas de ocupar o
solo e construir moradia, classificando todas como invasão.
O despejo da Vila São Vicente vinculou-se à memória cultural da luta dos operários
para terem reconhecido o direito à moradia na cidade de Belo Horizonte. De acordo
com Berenice Guimarães, até meados do século XX, houve tentativas de envio de
cartas, memorandos e abaixo-assinados às autoridades públicas, na esperança de
um encaminhamento aos conflitos relacionados à moradia. A experiência da Vila
São Vicente de Paulo diferenciou-se dessas outras iniciativas, por estruturar uma
associação civil com o objetivo específico de luta pela moradia. A organização de
uma entidade assinalou a existência de um coletivo de representantes que falaria
pelos moradores, diferenciando-se dos encaminhamentos individuais, através de
contatos diretos com autoridades públicas.
Os políticos, ciosos dos “interesses populares” e de criar bases eleitorais urbanas,
identificaram-se com a causa dos moradores e trataram de explorar estas conotações
“populares” que o despejo da Vila São Vicente despertava. A apropriação e
exploração política dessa memória cultural levaram políticos de diferentes matizes
partidários a realizarem generalizações sobre a forma como os operários estavam
sendo oprimidos e desconsiderados da sociedade. Waldomiro Lobo, vereador pelo
Partido Trabalhista Brasileiro, que apoiou a causa dos moradores da Vila São Vicente
lembrou os despejos na Vila dos Urubus, e na favela do Jacarezinho, um distrito
ocupado por fábricas e operários na cidade do Rio de Janeiro. Na representação
política elaborada por Waldomiro Lobo e outros políticos, o que havia era a

33
GONÇALVES, Vicente. Depoimento concedido a Samuel Silva Rodrigues de Oliveira, 15 jan.
2008.
34
BELO HORIZONTE. Lei 572, 12 set. 1956.

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contraposição entre os pobres/ humildes/ operários contra a “Empresa Mineira de
Terrenos LTDA”35. Denunciando-se o interesse dos “grandes” contra os “pequenos”,
dos “interesses populares” contra a especulação imobiliária.
A repercussão na opinião pública e a politização do despejo, mostrando a causa
dos “humildes operários” contra o apetite imobiliário da Empresa Mineira de
Terrenos, foi um traço que permaneceu na representação do fato político durante
toda a década de 1950. Analisando a peça de argumentação jurídica produzida por
volta de 1956, fica claro que isso era o que mais incomodava os proprietários do
terreno. O mote principal da argumentação articulada por Délcio Alves Martins, o
advogado da demanda de despejo, baseou-se na refutação da forma como o evento
era tratado na política urbana. Primeiro, quem representava a causa na justiça não
era a empresa imobiliária, mas os “herdeiros de Antônio Alves Martins” que tiveram
seus direitos de propriedade esbulhados na invasão dos terrenos. Segundo, faziam
questão de denunciar a “demagogia” dos “políticos e autoridades eclesiásticas”
que faziam com que os moradores acreditassem que tinham direitos, ferindo a
Constituição Brasileira. Terceiro, mostravam-se dispostos a pagar uma indenização
aos moradores que se dispusessem a sair do terreno, mostrando que não eram
desumanos como o discurso político sobre o despejo fazia crer36.
Em 1956, a prefeitura comprou o terreno e garantiu o direito dos moradores
permanecerem no local; tal fato foi reconhecido como fruto da luta dos moradores.
A formação de uma associação civil e a realização de comícios foram repertórios
de ação dos moradores na Vila São Vicente, apreendidos no contexto da abertura
política que a cidade vivenciava. Estiveram, portanto, diretamente relacionados à
emergência de uma política urbana na cidade. Contudo, esse evento figurou no
imaginário político do movimento de favelas como deslocado da experiência da
política urbana, fruto da ação direta e da solidariedade dos moradores.

A “luta da Vila São Vicente” como utopia de


autonomia política dos “favelados”

Em torno da luta da Vila São Vicente houve um investimento na construção de


memórias e representações políticas. Se há um ponto de concordância sobre essas
representações é o fato de realizarem uma leitura do passado tentando estabelecer
uma continuidade dos “interesses das favelas” com perspectivas de futuro imaginadas.
Quase sempre se realizou uma leitura parcial das forças políticas que concorreram
para transformação do despejo em um fato da política urbana da cidade.
A repercussão do despejo da Vila São Vicente e a eficácia de sua estratégia política
constituem dois dos motivos para esse esforço de construção de memória37. Nesse
35
“Tentativa de solução para o caso da Vila dos Marmiteiros”. Estado de Minas, Belo Horizonte, 24
mai. 1949, p. 3; “Desolação na Vila dos Marmiteiros”. Estado de Minas, Belo Horizonte, 27 jun.
1949, p. 6.
36
[Histórico da ocupação do terreno segundo Délcio Alves Martins, s/d.] Arquivo Público Mineiro.
Fundo DOPS. Pasta 0119.
37
Entendemos que memória é uma construção social e política que tem como principal função a

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sentido, o exemplo do caso da luta da Vila São Vicente transcende o próprio período
que analisamos, chegando como uma referência nos anos 1980. Em 1984, num
debate sobre o despejo e a possibilidade de conquista do direito à moradia na Cabana
do Pai Tomás, um dos debatedores lembrou-se da “luta da Vila São Vicente”:
Foi a primeira e grande luta dos favelados em Belo
Horizonte. Foi da Vila São Vicente de Paula, antiga Vila
São Vicente. Foi uma luta que durou de 1948 a 1957. Oito
anos de luta para disputarem a posse do terreno, porque
eles foram pra lá e depois descobriram que os terrenos
eram de particulares. Eles lutaram, lutaram, perderam a
causa em todas as estâncias, foram até o Supremo Tribunal
Federal. Que eu acho que isso também é um caminho que
tem a percorrer38
Esse testemunho representa ao mesmo tempo o motivo do investimento na
construção de uma memória política e também um dos enquadramentos do evento
feito através da Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (FTFBH),
entre 1959 e 1964. A fala representada acima foi de Francisco Farias Nascimento
líder da associação da Vila Nosso Senhor dos Passos desde sua fundação em 1956,
secretário geral da FTFBH entre 1959 e 1960, e depois presidente da mesma
entidade entre 1961 e 1964. A Federação agregou várias associações que tinham
como objetivo a luta por melhorias urbanas, contra a remoção e pela regularização
da posse da terra para os moradores de favelas. A “luta da Vila São Vicente” na
fala dessa liderança e de outras apareceu como um exemplo a ser seguido e como
representação da possibilidade de terem suas demandas atendidas pelo poder
público.
Observe que o desenlace do sucesso do caso da vila São Vicente não aparece
ligado à política urbana e ao vínculo que os moradores estabeleceram com as
autoridades públicas. Esta ausência remete à crença que a “união dos favelados” seria
o principal elemento para modificar a situação em que viviam. A grandiloquência
e exaltação da “primeira grande luta dos favelados de Belo Horizonte” dão o tom
do testemunho de Francisco Nascimento, indicando a necessidade da solidariedade
e persistência dos moradores para regularizar a posse da terra – tema discutido
no evento. Esse testemunho é solidário a outros que estão prontos a reconhecer a
importância da luta da Vila São Vicente como exemplo de “união”. Em 1964, na
fundação da associação da Vila Frei Josafá, Luiz Francisco de Souza39

formação e garantia da identidade dos grupos. Cf. POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento e
Silêncio”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15; POLLACK,
Michel. “Memória e Identidade”, Estudos históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, v.5, ano 10,
1992, p. 200-212; PORTELI, Alessandro. “O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de
junho de 1944): mito e política, luto e senso comum”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO,
Janaína. Usos e abusos da História Oral. 7. ed. – Rio de Janeiro: FGV, 2005, p. 103-130.
38
MINAS GERAIS. Aglomerado Cabano do Pai Tomás, Levantamento Histórico. Belo Horizonte:
Secretaria do Trabalho e Ação Social, 1984, volume 3.
39
Diretor da associação da vila São Vicente, que representava o “presidente” da Federação dos
Trabalhadores Favelados na fundação da UDC da Vila Frei Josafá.

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fez um ato de louvor aos moradores da vila [Frei Josafá] pela
iniciativa que tiveram em organizar uma Diretoria para dirigir
os destinos desta. Dizendo que em Belo Horizonte foi que
marcou esta iniciativa daqui da Vila São Vicente, partiu até
mesmo na O.N.U. Contando hoje a Federação com adesão
de 52 favelas associações que foram [englobadas] pela
Federação, que é constituída de um Conselho Consultivo
e uma Comissão Executiva. Tendo porem cada UDC livre
autonomia sobre sua direção (...)40
Essa representação grandiloquente do movimento afirmava a “união” e a
autonomia das favelas em relação às elites políticas, representando um movimento
de base deslocado das estruturas de poder político e partidárias. A expectativa de
autonomia lastreava-se nas experiências de rápida adesão das associações à FTFBH
(fundada em 1959 com 9 entidades; no início de 1962 já contava com 31 associações,
e em 1964 com 55 entidades). O crescimento da Federação fomentava a crença que
a “união” das favelas produziria transformações na realidade social.

Tabela III – O crescimento do número de associações ligadas a FTFBH41

ANO NÚMERO DE ASSOCIAÇÕES


1959 9
1960 -
1961 27
1962* 31/ 41
1963 55

A tentativa de estabelecer uma identidade política em continuidade com a


luta da vila São Vicente tinha como objetivo demarcar um sentido político de
solidariedade entre as várias favelas que não estivesse em estrita dependência com
as contingências das “promessas” das elites políticas urbanas. Assim, ainda que nem
todas as entidades tivessem o mesmo nome, muitas se reconheciam publicamente
como sendo uma União de Defesa Coletiva (UDC). A sigla “UDC” aparecia em
vários jornais que noticiam ações do movimento social e como símbolo do jornal
O Barraco, representando a unidade das favelas em torno de uma entidade e um
tipo de associativismo que teria programa e objetivos próprios. A realização do I
Congresso dos Trabalhadores Favelados (1962), do jornal O Barraco – órgão oficial da
40
[Ata de Assembléia Geral da Vila Frei Josafá, 19 jan. 1964]. Arquivo Público Mineiro. Fundo
DOPS. Pasta 0121.
41
Fontes: “O Barraco”. Binômio, Belo Horizonte, Caderno 3, 20 ago. 1962, p. 3. “Federação dos
Favelados começou lutando contra Amintas de Barros”. Última Hora – edição de Minas, Belo
Horizonte, 17 nov. 1961, p. 2; Diário da Tarde, Belo Horizonte, 11 jan. 1962, p. 5; [Ata da
Assembléia Geral dos Moradores da Vila Carlos Josafat, 19 jan. 1964] Arquivo Público Mineiro.
Fundo DOPS. Pasta 0121; SOMARRIBA, Maria das Mercês G.; VALADARES, Maria Gezica &
AFONSO, Mariza Rezende. Lutas urbanas em Belo Horizonte. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 42.

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Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (1962-1964), a conquista
de uma sede para a Federação na Rua Rio de Janeiro (1963), tudo isso estimulava
a percepção de que havia a construção de uma representação política das favelas
autônoma à política urbana.
Essa expectativa de autonomia política difundida pela Federação dos
Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte foi também reforçada pelo contexto de
forte mobilização política e social no Brasil. Na passagem dos anos 1950 para os
anos 1960, houve largo esforço para renovação dos pactos políticos e sociais que
definiam a cidadania. Para Lucília Neves de Almeida, o fio que uniu a representação
da “euforia dos anos dourados” de JK com o “conflito aberto na sociedade civil
e política” do início dos anos 1960 foi a modernização da sociedade brasileira: a
“palavra ‘renovar’ estava presente nos corações e mentes da população”. Brasília,
expansão do consumo de carros e eletrodomésticos, a renovação estética com o
Cinema Novo, a Bossa Nova e os grupos de teatro Arena e Oficina eram símbolos
dessa “nova era” que se inscreveu na memória nacional42. Havia uma percepção e
um anseio de transformação social em vários campos da vida cotidiana. A noção
de modernização tinha como particularidade a mobilização dos partidos políticos
e a cotidiana manifestação da sociedade civil, questionando o lugar do “povo” na
“nação” e os pactos que instauravam a cidadania na estrutura social brasileira.
Era o tempo da cultura engajada, sobretudo nacionalista. A
idéia de mobilização e conscientização passou a predominar
entre os segmentos da sociedade que apostavam na
superação da condição de subdesenvolvimento do país
mediante adoção de políticas econômicas nacionalistas e
programas de reformas sociais. Era preciso “mobilizar o
povo”, “conscientizá-lo”, e apoiá-lo em sua organização.
Essas eram condições entendidas pelas vanguardas culturais
e políticas como necessárias à construção, no Brasil, de uma
democracia social e de uma ordem política e econômica
emancipada.43
Contudo, devemos lembrar que o limite dessa expectativa era a baixa participação
nos movimentos associativos. Reclamações quanto à “falta de interesse” e a
“alienação” dos moradores em relação à luta das favelas apareceram em diversos
momentos, pondo em xeque a solidariedade das favelas. Essa permaneceu como
um elemento que conduzia principalmente a ação de lideranças, que demonstravam
com o discurso um poder de mobilização e a autonomia em relação às classes
políticas.

42
NEVES, Lucília de Almeida. “Trabalhadores na crise do populismo: utopia e reformismo”. In:
TOLEDO, Caio Navaro (org.). 1964: visões críticas do Golpe. Campinas: Editora da UNICAMP,
1997, p. 56.
43
NEVES, “Trabalhadores na crise...”, p. 56.

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Considerações Finais

As estratégias de ação do movimento social apareceram várias vezes dependentes


do jogo das políticas partidárias e do fluxo da ação desenvolvida na prefeitura
municipal. Como exemplo, cito o caso da conquista da sede para a Federação dos
Trabalhadores Favelados. Em 1963, uma sala para sede da FTFBH na Rua Rio de
Janeiro para sede da Federação começou a ser pago por Raimundo Tinti, diretor
do Departamento de Bairros e Habitações Populares, órgão que concentrava as
demandas e ações de melhoria nas favelas. A sede era fruto de um acordo das
lideranças das favelas com o prefeito Jorge Carone Filho, no governo que iniciava.
Era também o reconhecimento por parte do prefeito do trabalho de alguns líderes de
associações que atuaram como seus cabos eleitorais. Conferindo o balanço financeiro
do DBP, observa-se que, entre 1963 até 1964, mensalmente registrava-se a despesa de
um auxílio de 50 mil cruzeiros44.
O movimento social foi profundamente marcado pelos desenlaces da política
urbana. Todavia, através da memória, da autonomia e da solidariedade dos
moradores em favelas conseguia-se reunir forças para negociar o direito à moradia e
a conquista de melhorias urbanas. Assim, resistia-se à representação dominante que
os enquadrava como território da marginalidade e um espaço transitório da cidade,
demarcando a luta pelo direito a moradia dos pobres. O movimento participava da
construção da cidadania e da gramática da vida pública de Belo Horizonte nos anos
1947 e 1964, enfocando seus direitos sociais e políticos na cidade.
Em 1964, o movimento associativo de favelas de Belo Horizonte sofreu uma
intervenção militar. Após o Golpe, foi nomeado um coronel da Polícia Militar para
ocupar a Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte. O patrimônio
da FTFBH foi apreendido, várias UDCs foram fechadas e algumas lideranças foram
presas. No Inquérito policial que justificava estes atos, o delegado do Departamento
de Ordem e Política Social (DOPS-MG), expressou sua perplexidade diante do “direito
de morar”, alegado pelo movimento social para justificar suas práticas e ações. Este
discurso foi em grande parte constituído em relação à experiência da política urbana
e da memória da luta da Vila São Vicente, fatos que o delegado desconhecia como
legítimo. A luta das favelas era vista como a subversão da “Constituição Brasileira” e
do direito de propriedade.

44
APCBH. Fundo Secretaria de Fazendo. Sub-fundo Documentos Operacionais. Livro n. 0176 –
Departamento de Bairros Populares – Caixa Geral; APCBH. Fundo Secretaria de Finanças. Sub-
fundo Documentos Operacionais. Livro 082 – Departamento de Bairros Populares – Livro de
Razão.

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RESUMO ABSTRACT
O artigo analisa a história política de Belo The article analyzes the political history of
Horizonte e as performances de luta pelo direito Belo Horizonte and performances for the
de moradia entre 1947 e 1964. Na primeira right of residence between 1947 and 1964.
parte, observa como a constituição da autonomia The first part looks at how the constitution of
municipal abriu espaço para as mobilizações dos municipal autonomy gave way to the emergency
moradores na ampliação de seus direitos. Em mobilization of residents to expand their rights. It
seguida, analisa-se a formação da Associação de then analyzes the formation of the “Associação de
Defesa Coletiva da Vila São Vicente de Paula na Defesa Coletiva da Vila Sao Vicente de Paula” in
luta contra o despejo e a leitura deste evento como the fight against the dump and reading this event
uma referência para o movimento organizado as a reference for the movement organized by the
pela Federação dos Trabalhadores Favelados. As “Federação dos Trabalhadores Favelados”. The
práticas de luta pelos direito de moradia são vistas practice of struggle for housing rights are seen as
como partes do repertório e da gramática da vida parts of the repertoire and the grammar of public
pública constituídas pelo movimento de favelas de life established by the movement of the favelas
Belo Horizonte. Para contar essa história, usam-se (precarious and poor neighborhoods) of Belo
jornais, testemunhos orais e fontes jurídicas. Horizonte. To tell this story, they use newspapers,
Palavras Chave: Favelas; Política Urbana; oral testimony and legal sources.
movimento social. Keywords: Favelas; Urban Policies; Social
Movement.

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