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Rio de Janeiro
2019
ARIANA KELLY DOS SANTOS
Rio de Janeiro
2019
FICHA CATALOGRÁFICA
FOLHA DE APROVAÇÃO
Aprovada em 25 / 02 / 2019.
___________________________________________
Profª Draª Lilia Guimarães Pougy – UFRJ
____________________________________________
Profª Draª Maria Celeste Simões Marques -UFRJ
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Profª Draª Tatiana Dahmer Pereira –UFF
Seremos Muitas Marielles’s
(...)
(...)
Por Kamilla Valentim
Primeiramente gostaria de agradecer a todas as mulheres negras de luta que vieram antes
de mim e que abriram o caminho para que hoje eu pudesse ocupar um espaço que historicamente
tem sido negado a população pobre, em maioria negra. Dentro dessas está a minha mãe, Gilza
dos Santos, que com muito suor, luta, esfregando muito chão de madame, proporcionou que eu
pudesse acessar a escola, a graduação e hoje a Pós-graduação, algo que ela foi impedida por
seu pai, mais também pelas próprias condições materiais que a vida e a estrutura de opressões
lhe impusera. Sua filha vai ser Doutora dona Gilza!!!! Mas, mais do que título, a verdade é que
nós somos doutoras da vida! Porque para sobrevivermos nesse mundo, a gente luta todo dia!
Agradeço com um carinho especial as mulheres residentes em Manguinhos, que
contribuíram na formação de quem eu sou hoje, que desde o meu nascimento, com suas ações
me ensinam o que é a solidariedade feminista das mulheres negras residentes em favela. Um
agradecimento especial a Darcília, Jane, Turia, Patrícia, Severina, mas conhecida como
neguinha, Gerônima, Dona Aninha in memória.
À Lilia Pougy, minha orientadora, gratidão e afeto! Os dois anos do mestrado, foram de
muitas mudanças e de descobrimentos em minha própria vida, o que me causou reboliços
internos. A própria escrita da dissertação contribuiu para que eu pudesse conhecer um pouco
melhor a minha própria história, me aceitar enquanto mulher negra, um processo que não é
fácil, e que trouxe muita dor, dor por compreender que a minha história foi/é negada, mas que
afirma-la é necessário para que eu possa continuar existindo, não só eu, mas as que virão depois
de mim. Lilia, feminista, acolher outras mulheres de luta faz parte do nosso ideal, e foi isso que
ela fez comigo. Obrigada pela acolhida, paciência, olhar atento e por compartilhar comigo seu
conhecimento e experiência, eles foram fundamentais para a construção desse trabalho.
Agradeço ao Professor Marildo Menegat, que de forma muito atenciosa e solidária, no
início da escrita da dissertação, a meu pedido, indicou-me várias bibliografias sobre a temática
do estado de exceção, o que contribuiu significativamente para a pesquisa e contribuirá para
futuras análises. A Professora Tatiana Dahmer, que considero uma parceira para as lutas em
prol de uma sociedade sem opressões. Obrigada pelo olhar aguçado e pela significativa
contribuição na análise desse trabalho. À Professora Maria Celeste, minha gratidão pelo aceite
em participar da banca, pelas contribuições tão importantes e pela direção tão competente do
Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos Suely Souza de Almeida-NEPP-
DH/SSA, unidade da UFRJ que pode ser considerada uma das pioneiras na implementação da
política afirmativa de cotas na pós-graduação na UFRJ, colaborar e lutar com a classe
trabalhadora requer ação. Em seu nome, também agradeço ao programa de pós-graduação!
À Monique Cruz, amiga de infância, Assistente Social, pesquisadora, gratidão pelas
trocas e reflexões cotidianas, por compartilhar a vida e as lutas comigo, pelo conhecimento
compartilhado e por toda solidariedade diária, sem você essa vida seria bem mais dura. À
Rachel Barros, amiga querida, inspiradora na luta cotidiana contra o racismo e o patriarcado,
agradeço por toda ajuda no compartilhamento de relatórios, livros para a construção deste
trabalho.
À Fase e ao Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro pelo importante trabalho executado
nos territórios de favela, que possibilitou através dos relatórios com a sistematização das
atividades realizadas, dar visibilidade a vida e as lutas das mulheres residentes em favela.
Às mulheres do Zacimba, coletivo de mulheres afroindígenas que faço parte, obrigada
pelas contribuições, afeto e exemplos diários de luta, vocês são incríveis!!! Às mulheres da
Rede Estadual de Enfrentamento à Violência Institucional contra Mulheres, obrigada por todo
aprendizado e luta. Às mulheres do LIEIG da UFRJ, grupo de estudos de gênero, coordenado
pela Profª Lilia Pougy, obrigada pelas tardes de terça, por todo aprendizado compartilhado e
experiência vivenciada. Um agradecimento especial a Lilian Barbosa, Beth, Dayana e Rosária.
Agradeço também a Silvia Carvalho, Assistente Social, pesquisadora, que representa
um desses encontros inesperados, mas que na luta sempre é possível de encontrarmos. Sua garra
me inspirou!!! Obrigada por compartilhar um pouquinho dessa força comigo!
Gratidão ao meu querido Mestre da vida Dr. Daisaku Ikeda, que contribuiu com seus
incentivos e com a construção da Soka Gakkai, para que eu e muitos outros jovens pudessem
ter alternativas para o futuro, criar uma vida de valor e construir um eu inabalável. Só dá para
lutar pela justiça se conseguimos suportar e vencer os intempéries que aparecem a nossa frente,
para isso, antes de tudo é preciso vencer a nós mesmos! Aos Jovens da BSGI, especialmente do
Rio de Janeiro, gratidão por toda luta conjunta, sofrimentos, sonhos e alegrias compartilhadas.
A vida de vocês me inspira diariamente!
Por fim e tão importante, agradeço ao meu companheiro, Wellington Federico, pela
humanidade, solidariedade e amor que exala. Em tempos de ódio, viver ao lado de alguém como
você pode ser considerado privilégio.
SANTOS, Ariana Kelly dos. Violência de gênero em exceção: o acesso às políticas públicas
de enfrentamento à violência pelas mulheres residentes em favela. Rio de Janeiro, 2019.
Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas em Direitos Humanos) – Núcleo de Políticas
Públicas em Direitos Humanos Suely de Souza Almeida, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
RESUMO
O trabalho examina como vem sendo implementada a Política Nacional de
Enfrentamento à Violência Contra às Mulheres-PNEV (2011) para as que residem em territórios
de favela. O campo escolhido para a investigação foi o território de Manguinhos, que em 2010,
através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), fundou a Casa da Mulher de
Manguinhos, primeiro Centro de referência de atendimento à mulher em situação de violência
do governo estadual em um território de favela. A metodologia utilizada foi a análise
bibliográfica, documental, de organizações governamentais, não governamentais, movimentos
sociais e matérias de jornais. O caminho percorrido iniciou na busca para identificar como se
configuram os territórios de favela, apreendendo a partir de uma perspectiva decolonial como
se desenvolveu na história a concepção dos sujeitos sem humanidade, o que contribui para que
na atualidade a população negra, moradora em maioria nas favelas, seja tratada pelo Estado
como não cidadãos. Procura apreender quais são as relações de dominação-exploração que
estruturam as desigualdades que atingem as mulheres desses territórios. Para obter dados sobre
a violência de gênero contra às mulheres em Manguinhos foi preciso recorrer aos relatórios
construídos por movimentos sociais ou instituições de direitos humanos, pois não foram
encontrados essa produção por órgãos governamentais, o que evidencia uma subnotificação e
invisibilidade dos casos de violência contra as mulheres nesse território. Sobre a PNEV(2011),
identificou-se que ela prevê o enfrentamento as várias formas de violência contra às mulheres,
fundamentando-se na compreensão de violência de gênero expressa pela Convenção de Belém
do Pará (1994), bem como reconhece que as opressões de raça e classe articuladas com as de
gênero, imprime a parte das mulheres maior condição de desigualdade, mas sua implementação
não é operacionalizada, o que proporciona a invisibilidade da condição sócio histórica das
mulheres residentes em favela, assim como as formas de violência de gênero que as atinge. A
exceção é a regra nos territórios de favela, sendo o Estado implementador de políticas públicas
intrusivas que não levam em consideração a realidade e as demandas dessa população, o que
contribui para reconfigurar as relações nos territórios, colaborando na piora da condição de vida
dessa população. Mesmo dentro do contexto desumanizador, de violação e de ataque aos
direitos sociais conquistados na Constituição de 1988, nas favelas encontra-se luta e resistência,
são apresentadas as diversas formas de organização das mulheres nesses territórios, suas lutas
e experiências, que vem proporcionando a coletivização das lutas, politizando e mostrando que
o pessoal é político, negando a dicotomia entre público e privado, demandando das políticas de
enfrentamento à violência contra às mulheres que o enfrentamento à violência de gênero requer
também o enfrentamento do racismo e do capitalismo, ou seja, apontam que uma luta inclui a
outra, assim a luta dessas mulheres, já se constitui como resistência ao projeto de desmonte de
direitos que está em curso no Brasil, sendo uma potência para rearranjar o campo político das
lutas sociais em prol de um novo projeto societário de emancipação humana.
ABSTRACT
The paper examines how the National Policy for Combating Violence Against Women
-NPCV (2011) has been implemented for those living in favela territories. The field chosen for
the investigation was the territory of Manguinhos, which in 2010, through the Growth
Acceleration Program (GAP), founded the Manguinhos Women's House, the first Reference
Center for care of women in situations of violence of the state government in a favela territory.
The methodology used was the bibliographical and documentary analysis of governmental,
non-governmental organizations, social movements and newspaper articles. The journey started
in the search to identify how the favela territories are configured, seizing from a decolonial
perspective how the concept of subjects without humanity developed in history, which
contributes to the fact that at present the black population, favelas, be treated by the state as
non-citizens. It tries to apprehend what are the relations of domination-exploitation that
structure the inequalities that affect the women of these territories. In order to obtain data on
gender violence against women in Manguinhos, it was necessary to resort to reports made by
social movements or human rights institutions, since this production was not found by
government agencies, which evidences an underreporting and invisibility of violence against
women in that territory. Regarding NPCV (2011), it was identified that it foresees facing the
various forms of violence against women, based on the understanding of gender violence
expressed in the Convention of Belém do Pará (1994), and recognizes that oppression of race
and class articulated with those of gender, the women share a greater condition of inequality,
but their implementation is not operationalized, which provides the invisibility of the socio-
historical condition of women living in the favela, as well as the forms of gender violence that
hits them. The exception is the rule in favela territories, where the state is implementing
intrusive public policies that do not take into account the reality and demands of this population,
which contributes to reconfiguring relations in the territories, contributing to the worsening of
the living conditions of this population. Even within the dehumanizing, violation and attacking
social rights conquered in the 1988 Constitution, there is struggle and resistance in the favelas,
the various forms of women's organization in these territories, their struggles and experiences
are presented, collectivization of the struggles, politicizing and showing that the personnel is
political, denying the dichotomy between public and private, demanding from the policies of
coping with violence against women that the confrontation with gender violence also requires
confronting racism and capitalism, point out that one struggle includes the other, so the struggle
of these women is already a resistance to the project of dismantling rights that is underway in
Brazil, being a power to rearrange the political field of social struggles for a new project society
of human emancipation.
Siglário.....................................................................................................................................12
Introdução...............................................................................................................................13
1. Motivação pelo tema.............................................................................................................14
2. Percurso Metodológico.........................................................................................................18
3. Estrutura Geral......................................................................................................................20
Considerações Finais.............................................................................................................101
Referências Bibliográficas....................................................................................................110
SIGLÁRIO
Introdução
A análise focaliza o estudo a partir do ano de 2010, tendo como campo de investigação
o território de Manguinhos, onde foi fundado no ano em questão o primeiro Centro de
Referência de Atendimento à Mulheres em Situação de Violência em um território de favela
coordenado pelo governo estadual, a Casa da Mulher de Manguinhos, que surge como um dos
equipamentos sociais construídos no escopo do Programa de Aceleração do Crescimento-PAC.
teórica que concebe as relações de gênero como categoria histórico-analítica, para ser
implementado em Centro de Referências de Atendimento às Mulheres em Situação de
Violência.
Nesse mesmo ano tomei posse como servidora pública efetiva na Prefeitura Municipal
de São Gonçalo, iniciando profissionalmente na equipe técnica como Assistente Social, no
Centro Especial de Orientação a Mulher - CEOM Zuzu Angel, uma instituição municipal
especializada para atendimento à mulheres em situação de violência. Paralelo ao trabalho na
instituição anterior, em 2015, retornei a trabalhar no território de Manguinhos, agora como
Coordenadora da Casa da Mulher de Manguinhos (CAMM), a primeira instituição estadual
voltada para atender casos de violência contra as mulheres em um território de favela. O
exercício profissional nas duas instituições, CEOM e CAMM, somados a minha experiência
como moradora de território de favela, me fez questionar como vinham sendo implementadas
as políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres, para
as que residem em favela e decidir realizar a pesquisa sobre a temática.
Me lembro como se fosse hoje do principal caso atendido em que me fez aprofundar o
desejo de estudar sobre o tema: estava atendendo uma usuária negra, pobre, residente em favela,
que possuía quatro filhos, todos menores de 12 anos, ela foi atendida em uma sexta-feira por
uma colega Assistente Social e conforme avaliação de risco, a mesma foi encaminhada para o
abrigo de segurança previsto na PNEV (2011), após o fim de semana ela decidiu sair, foi quando
eu a atendi, uma vez que não era dia da profissional de referência, e ela manifestou o desejo de
ir para um abrigo assistencial de porta aberta, naquele dia não se conseguiu vaga no abrigo
esperado, nessa condição a usuária foi encaminhada para um abrigo provisório de família, da
assistência social, voltado para mulheres e crianças, com a promessa de que no dia seguinte ela
iria retornar para atendimento e a equipe presente iria dar encaminhamento a solicitação.
No dia seguinte segundo a Coordenação não teve profissional para atende-la, a usuária
permaneceu na instituição sem informações. No dia posterior chegando a instituição eu recebo
a orientação que a usuária deveria ser levada para o Conselho Tutelar, visto que a rede de
atendimento não tinha abrigo para ela, e o único abrigo que ela ficou nas noites passadas ela
não poderia retornar, porque a dona do abrigo (a instituição era privada, e em casos
encaminhados pela Secretaria de Assistência Social se realizava a entrada da usuária por
convênio) não queria mais sua presença na instituição, pois na noite anterior ela teria brigado
com outra interna. Essa situação era inconcebível: a mulher estava sendo atendida no serviço
que deve ser de proteção e assistência a ela e a Coordenação estava atuando de uma forma
16
culpabilizadora, suscitando a necessidade dos filhos serem levados para o Conselho Tutelar
para o equipamento decidir se aquela mulher tinha ou não o direito de ficar com os filhos, pois
a percepção da Coordenação era que a mãe por não querer ficar no abrigo de segurança estava
expondo os filhos ao risco.
Esse caso me angustiou profundamente, marcando o início de uma construção teórica
que até então eu não levava em consideração, que era a reflexão sobre as desigualdades sociais
a partir da articulação das opressões de gênero, raça e classe. Se aquela mulher fosse branca,
sem estar em condição de miserabilidade, o direcionamento para o Conselho Tutelar haveria
ocorrido? Além disso em todos os casos atendidos que as mulheres residiam em favela o inciso
IV do Art. 11 da Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006, não era cumprido. Informei numerosas
vezes as mulheres que a polícia não iria garantir esse direito a elas, pois o argumento dos
policiais eram que as favelas eram áreas de risco, que tinham questões mais importantes para
cuidarem, que para implementar esse artigo da Lei eles precisavam organizar todo um aparato
policial, que a situação não necessitava, nesse contexto, a hipótese desse trabalho emergiu.
O discurso feminista branco traz a retórica de que a violência contra as mulheres é
democrática, que ocorre com todas as mulheres, no que se concorda, mas esse discurso pode
ocultar que as mulheres são diversas e mascarar a forma como isso se dá, que não é uniforme e
nem homogênea para todas as mulheres.
Em 1851, participando da Convenção dos Direitos da Mulher em Ohio-Estados Unidos,
Sojourner Truth, mulher negra, nascida em um cativeiro em Nova York, abolicionista, escritora
e ativista dos direitos da mulher, já apontava a necessidade de uma concepção interseccional
das opressões vivenciadas pelas mulheres, colocando em cheque a universalização da categoria
mulher, através do seu discurso conhecido como “E eu não sou uma mulher?”, nele ela disse:
Bem, minha gente, quando existe tamanha algazarra é que alguma coisa deve estar
fora da ordem. Penso que espremidos entre os negros do sul e as mulheres do norte,
todos eles falando sobre direitos, os homens brancos, muito em breve, ficarão em
apuros. Mas em torno de que é toda essa falação? Aquele homem ali diz que é preciso
ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam
um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me
ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar!
E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu
plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou
uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando tinha
o que comer – e também aguentei as chicotadas! E não sou uma mulher? Pari cinco
filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de
mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher? E daí eles falam
sobre aquela coisa que tem na cabeça, como é mesmo que chamam? (uma pessoa da
plateia murmura: “intelecto”). É isto aí, meu bem. O que é que isto tem a ver com os
direitos das mulheres ou os direitos dos negros? Se minha caneca não está cheia nem
17
pela metade e se sua caneca está quase toda cheia, não seria mesquinho de sua parte
não completar minha medida? Então aquele homenzinho vestido de preto diz que as
mulheres não podem ter tantos direitos quanto os homens porque Cristo não era
mulher! Mas de onde é que vem seu Cristo? De onde foi que Cristo veio? De Deus e
de uma mulher! O homem não teve nada a ver com Ele. Se a primeira mulher que
Deus criou foi suficientemente forte para, sozinha, virar o mundo de cabeça para
baixo, então todas as mulheres, juntas, conseguirão mudar a situação e pôr novamente
o mundo de cabeça para cima! E agora elas estão pedindo para fazer isto. É melhor
que os homens não se metam. (RIBEIRO, 2017, P.13)
Assim como Truth, o feminismo negro vem realizando o debate em uma perspectiva
interseccional, questionando a existência de um sujeito mulher único, universal, como a bell
hooks1, Audre Lorde, Lélia Gonzalez, produzindo também insurgências contra o modelo
dominante, mas o que ocorre é a invisibilização dessa produção, dessa retórica, por que existe
uma produção epistemológica hegemônica que nega a existência de outras experiências.
Gonzalez (1984) aponta que quem possui o privilégio social, possui o privilégio
epistêmico, ou seja, se quem possui o privilégio social é a população branca, a forma de
produção do conhecimento se dará da mesma forma. A retórica produzida como dominante será
a do discurso que tem como base a experiência da população branca, que se desenvolveu a partir
de uma explicação epistemológica eurocêntrica, as demais serão negadas, invisibilizadas,
ocultadas e combatidas.
Pela experiência vivenciada, compreendo que o feminismo tradicional baseado em uma
perspectiva eurocêntrica não responde as necessidades das mulheres residentes em favela, que
conforme a pesquisa evidencia são em maioria de mulheres negras e pobres. Por isso, busquei
referências teóricas de mulheres negras, de mulheres que vem realizando uma produção
acadêmica em uma perspectiva decolonial, pois mais do que compartilhar experiências
baseadas na escravidão, no racismo e no colonialismo, essas mulheres, partilham processos de
resistência (RIBEIRO, 2017).
Junto a isso, opto por realizar a escrita em primeira pessoa, pois falar de mulheres
residentes em favela, também é falar da minha história, significa ter fala própria como dizia
Gonzáles (1984), é enfrentar o processo de infantilização que nós negras/os residentes em favela
sofremos, falar em terceira pessoa, me distancia da minha realidade, me ilude tentando fazer
com que eu assimile que estou falando do outro e não da minha própria história e das histórias
1
A autora escreve seu nome em letra minúscula, argumenta que o mais importante é o conteúdo de suas
obras e não o seu nome, por isso, não realiza a grafia em letra maiúscula. Disponível em:
<http://grafiasnegras.blogspot.com/2013/10/personalidades-negras-bell-hooks.html> acesso em 02 de fevereiro de
2019.
18
2. Percurso Metodológico
2
Lugar de fala é um conceito desenvolvido pela autora Djamila Ribeiro (2017) que refuta a existência de
uma epistemologia universal. Aponta a importância de se entender que quando se desenvolve um discurso, no
sentido da produção do conhecimento, o autor precisa reconhecer de que local na estrutura social ele fala.
Significa reconhecer que existem diversos saberes, diversas perspectivas de produção do conhecimento e não
somente uma única fala. Por exemplo, a branquitude é um lugar de poder, o homem branco fala a partir do seu
lugar, ou seja, o lugar do homem branco na estrutural social, o que não significa que esse discurso se adeque a
outros, como por exemplo ao homem negro, que está em condição inferior a este na estrutura da sociedade.
Assim não existe uma epistemologia universal, as epistemologias são localizadas, elas se constroem a partir do
local que ocupamos na estrutura social, e podem ser diversas. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=IcyFgc_DmxY>, acesso em 05 de fevereiro de 2019.
19
3
Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar as causas da violência contra as
mulheres no Estado. Disponível em: < http://www.deputadamartharocha.com.br/wp-
content/uploads/2016/03/Sum%C3%A1rio-Relat%C3%B3rio-CPI.pdf>, acesso em 05 de fevereiro de 2019.
20
somente uma pesquisa no Rio de Janeiro que fizesse a discussão (DAMASCENO, 2014), mas
que não contribuiu significativamente para a perspectiva de trabalho desejada.
Também não encontrei dados sobre à violência contra as mulheres a nível territorial
ou regional em bases estatísticas como o Sistema de Informação de Agravos de Notificação
(SINAM), Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), isso evidencia a invisibilidade das
experiências vivenciadas pelas mulheres residentes em favela, nesse sentido o trabalho em
questão se mostra ainda mais relevante, uma vez que conseguiu identificar como se configuram
os territórios de favela, as relações de dominação-exploração que estruturam as desigualdades
que atingem às mulheres residentes em favela, as formas de violência de gênero vivenciadas,
os limites da implementação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra às
Mulheres (2011) para esse público, os serviços que podem se aproximar e contribuir para
responder as necessidades dessas mulheres, identificar e apresentar formas de organização das
mulheres residentes em territórios de favela às violações de direitos humanos, que se constituem
em formas de resistência à intervenção estatal genocida que vem sendo implementada nos
territórios de favela pelo Estado Republicano, ou seja, foi possível atingir a maioria dos
objetivos específicos almejados no projeto de pesquisa e construir um material bibliográfico
para futuros pesquisadores sobre a temática.
3. Estrutura Geral
“Tem sempre três, quatro mais nervosos e mais abusados e a gente mulher sofre mais
com isso. Minha filha estava tomando banho, dois policiais saíram entrando na minha
casa olhando tudo, um foi no banheiro e abriu a cortina com ela pelada dentro. Ela
gritou e ele disse “cala a boca sua piranha!” (Relatório do circuito de favelas por
direitos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, 2018, P. 6)
O fragmento acima é o relato de uma mulher que reside em uma das 30 favelas do Rio
de Janeiro na qual a Defensoria Pública em 2018 percorreu para a realização do circuito no
período da Intervenção Federal no estado, com o objetivo de se fazer presente nesses territórios
sendo um braço para a promoção e defesa dos direitos humanos, de forma oposta à atuação dos
agentes de segurança, como o exército, que nesse período estavam realizando e defendendo a
violação de direitos como forma de intervir nesses territórios4.
A implementação de políticas públicas que possibilitem o acesso a direitos, só se realiza
na modernidade quando se concebe a existência de um sujeito que tem humanidade, que é
detentor de uma cidadania. O Estado democrático enquanto instância prevista na Constituição
de 1988 se destina a assegurar o exercício dos direitos5, mas a ação Estatal nos territórios de
favela no Rio de Janeiro, desde a sua origem, vem sendo marcada por uma ação de negação
e/ou de violação de direitos a essa população, fortemente caracterizada por ações violentas, que
4
O próprio Ministro da Defesa no período, Raul Jungmann, fez a afirmação da necessidade de se utilizar
mandados coletivos para entrar nas residências dos moradores de favela, o que viola os direitos individuais,
descritos no Art. 5º, inciso XI da Constituição de 1988. Disponível em: < https://g1.globo.com/rj/rio-de-
janeiro/noticia/ministro-da-defesa-diz-que-operacoes-no-rio-vao-precisar-de-mandados-de-busca-e-apreensao-
coletivos.ghtml> , acesso em 10 de fevereiro de 2019. Identificou também o cerceamento da liberdade de ir e vir
em ação na Vila Kennedy, na qual militares do exército estavam impossibilitando as pessoas de saírem da favela
se estivessem sem documentos, pois para saírem era necessário realizar um fichamento dos moradores,
disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/02/moradores-deixam-comunidades-apos-
serem-fotografados-em-acao-do-exercito.shtml> , acesso em 05 de fevereiro de 2019.
5
Trecho identificado no preâmbulo da Constituição Federal de 1988.
24
6
No período da Intervenção Federal no Rio de Janeiro entre fevereiro e dezembro de 2018 foram
contabilizados 1375 mortos por intervenção de agentes do Estado. Número que aumentou em 33% com relação ao
ano de 2017. Disponível em: < https://drive.google.com/file/d/1QI8bwWWsGllautm_Dz4f-
fcF0QwCcQMY/view> , acesso em 25 de janeiro de 2019.
7
De acordo com Quijano (2009, p. 73), o termo difere de colonialismo, pois esse se refere estritamente a
uma estrutura de dominação/exploração em que uma população domina outra de diferente identidade e cujas sedes
centrais estão localizadas em outra jurisdição territorial. Essa estrutura de dominação/exploração, nem sempre e
25
Portanto, a ideia de raça relacionada aos traços fenotípicos foi uma invenção dos
“conquistadores” para legitimar as relações de dominação necessárias para a conquista dos
territórios e dos povos que aqui existiam. Os dominados foram situados na condição de
inferioridade, assim como seus traços fenotípicos, suas descobertas mentais e culturais. Com a
construção da Europa como nova identidade após a constituição da América e a ampliação do
colonialismo europeu ao resto do mundo, se conduz a uma: “elaboração da perspectiva
eurocêntrica do conhecimento e com ela a elaboração teórica da ideia de raça como
naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus”
(QUIJANO, 2005, 118). Deste modo, para o autor, raça se converte como primeiro critério
fundamental para a distribuição hierárquica da população na estrutura de poder da nova
sociedade.
Outro elemento importante, que se imbrica com a raça na configuração do capitalismo
mundial é a nova estrutura de controle do trabalho. Para Quijano (2005), no processo de
constituição da América, todas as formas de controle e exploração do trabalho, assim como, de
controle da produção-apropriação e distribuição dos produtos, foram articuladas em torno do
capital e do mercado mundial. Todas as formas de controle do trabalho (escravidão, servidão,
pequena produção mercantil, reciprocidade e o salário) para ele eram históricas e
sociologicamente novas, porque foram organizadas para produzir mercadorias para o mercado
mundial, porque existiam simultaneamente no mesmo espaço/tempo e se articulavam com o
capital e com o seu mercado e por esse meio entre si. Para o autor estabeleceu-se uma nova e
singular estrutura de relações de produção na história:
e reduzida a índios, assim também ocorreu com os povos trazidos involuntariamente da África,
foi criada uma nova identidade racial, colonial e negativa.
Para o autor os Europeus criaram uma nova perspectiva temporal da história,
reescrevendo a história da cultura e dos povos colonizados no passado, em uma trajetória em
que o futuro destes culminava na cultura Europeia. Os povos colonizados eram raças inferiores
e por isso anteriores aos europeus. Desse ponto de vista as relações culturais entre a Europa e o
resto do mundo foram relidas a partir de novas categorias: Oriente-Ocidente, primitivo-
civilizado, mágico/mítico-científico, irracional-racional, tradicional-moderno, Europa e não-
Europa. Nessa classificação entre europeu e não-europeu, raça é uma categoria básica, a única
categoria que foi reconhecida como o outro da Europa ou “Ocidente”, foi o “Oriente”, os índios
da América e os negros da África foram simplesmente considerados primitivos. Nesse sentido,
essa perspectiva binária do conhecimento, se impõe de forma hegemônica simultaneamente a
expansão do domínio colonial da Europa sobre o mundo (QUIJANO, 2005). Dessa forma, se
constrói uma compreensão evolutiva da história da civilização humana, tendo início em um
estado de natureza e culminando na Europa, somado a isso, dá sentido as diferenças entre
Europa e não-Europa como diferenças de natureza racial e não de história de poder.
A perspectiva eurocêntrica da modernidade, tendo fundamento no dualismo, separa o
“corpo” e o “não-corpo”, dois elementos que eram concebidos anteriormente como duas
dimensões não separáveis do ser humano. O processo de separação entre esses elementos faz
parte da história do mundo cristão, sobre o fundamento da ideia de primazia da “alma” sobre o
“corpo”. Quijano (2005) traz à baila que essa primazia da “alma” surge entre o século XV e
XVI, a partir da cultura repressiva do cristianismo, resultado dos conflitos entre muçulmanos e
judeus, no período da inquisição, em que o corpo foi o objeto da repressão e a alma pôde
aparecer quase separada das relações intersubjetivas do interior do mundo cristão. Mas essa
questão só vai ser debatida posteriormente, por Descartes, que culmina no processo de
secularização burguesa do pensamento cristão.
Descartes, altera a coexistência da abordagem dualista sobre "corpo" e "não-corpo", a
converte numa radical separação entre "razão/sujeito" e "corpo". A razão não é somente a
secularização da ideia de "alma" no sentido teológico, mas uma transformação para uma nova
identidade, a "razão/sujeito" é a única entidade capaz de conhecimento racional, o corpo se
torna "objeto" de conhecimento. A partir desse prisma, o ser humano é um ser dotado de "razão"
mais esse dom se localiza exclusivamente na alma.
29
de todos os aspectos das relações de gênero. Para ela, existe uma descrição de gênero que não
se é questionada e é hiper-biologizada, o que pressupõe o dimorfismo sexual, a
heterossexualidade, a distribuição patriarcal do poder e outras pressuposições capitalistas
eurocêntricas.
Para a autora as sociedade do mundo-aldeia não eram organizadas pelas relações de
gênero, não existia uma classificação sexual binária, uma dicotomia entre homem/mulher,
assim indivíduos intersexuais eram reconhecidos sem serem classificados binariamente, essa
classificação sexual segundo a autora só ocorre com a colonização; somado a isso, existia uma
compreensão do gênero em termos igualitários, não existia subordinação e nem produção do
conhecimento sobre tal assunto, o que só passa a existir a partir de uma visão eurocentrada.
Lugones (2014) aponta que é importante considerar as mudanças que a colonização traz,
para entender o alcance da organização do sexo e do gênero sob o colonialismo e o interior do
capitalismo global e eurocentrado. Para a autora o sentido de gênero introduzido pelo ocidente
é uma ferramenta de dominação que designa as categorias sociais que se opõem de forma
binária e hierárquica, assim o surgimento de mulher como uma categoria reconhecível, definida
anatomicamente e subordinada ao homem em todo tipo de situação, resultou em parte, da
imposição de um Estado colonial patriarcal. Para elas a colonização foi um processo duplo de
inferiorização racial e subordinação de gênero.
Portanto, Quijano em suas obras, utiliza os termos hegemônicos do sistema de gênero
colonial/moderno, não questionando-os, o que excluem as mulheres colonizadas da maioria das
áreas da vida social em vez de pô-las em evidência, nesse sentido, suas análises são limitantes
para apreender a organização social que também são estruturadas pelas relações de gênero.
O destaque da autora se faz necessário, porque identifica a não visibilidade pelo autor
de uma das relações de opressão que é fundamental para refletir sobre o trabalho descrito, mas,
existem outras autoras que discordam de Lugones (2014), apontando que mesmo nas tribos
indígenas existiam uma estrutura organizacional de gênero, embora com um patriarcado de
baixa intensidade (SEGATO, 2014). O importante a ressaltar é que existiam formas de
organização social de gênero diferentes no mundo-aldeia, que no mundo moderno são
inconcebíveis, mas que só se tornam “impossíveis” a partir de uma ação colonial violenta e
dominadora.
O período de reformas8, estruturadas por fundamentos eurocêntricos influencia
diretamente na construção do liberalismo político do século XVII, que tem como premissa
8
Reforma protestante e o movimento renascentista que ocorrem no século XVI.
31
homens, conferir-lhes descendência, gerir e cuidar dos afazeres domésticos e educar os filhos
(LIMA, 2010).
Lima (2010) aponta que essa concepção de que pela vontade de Deus os homens eram
os seres dominantes e as mulheres os seres que deviam obediência, torna-se hegemônica a partir
do século IV, com o domínio espiritual da igreja católica sobre o mundo ocidental. Os manuais
de inquisição que contribuíram para executar inúmeras mulheres, se baseavam na concepção
judaica do mundo, concebendo o corpo da mulher como impuro, como um obstáculo para o
exercício da razão, Lima (2010) destaca:
9
Concebidos nessa relação conjugal.
33
homens, ou seja, já existia o que hoje denominamos de relações de gênero, mas, embora
existisse o reconhecimento desses papéis, existia um transito entre essas posições10, o que na
modernidade ocidental é obstruído.
A autora evidencia que também é identificado nesses povos, a dimensão de uma
construção de masculinidade que tem acompanhado a humanidade ao longo do tempo e da
espécie, que ela denomina “pré-história patriarcal de la humanidade” (SEGATO, 2014, p. 78).
Para a autora essa masculinidade se caracteriza pela construção de um sujeito que tem que
passar a vida atravessando provações e enfrentando a morte, tem que provar suas habilidades
de resistência, agressividade, capacidade de domínio, para poder apresentar aos seus pares sua
potência: bélica, política, sexual, dentre outras, somente assim ele poderá ser reconhecido como
sujeito masculino.
Assim, quando ocorre a colonização tendo como eixos centrais a
colonialidade/modernidade, as relações de gênero são fortemente modificadas, e esse
patriarcado que antes era de baixa intensidade se torna de alta intensidade e os homens dos
povos vencidos começam a exercitar uma ação entre dois mundos, sendo leais a sua gente por
um lado, mas também sendo leal ao mandato de masculinidade por outro. Se introduz no
mundo-aldeia11 a lógica eurocêntrica de humanidade universal, que pertence aos homens, assim
como sua relação com a esfera pública, e o espaço doméstico, relacionado as mulheres, se
transforma em adjetivo de íntimo e privado, se esvazia do seu valor político e dos vínculos
corporativos que tinha na vida comunitária, se transformando no resto da política. Essa mutação
no espaço doméstico fragiliza a vida das mulheres, aumenta sua vulnerabilidade e letalidade
(SEGATO, 2014).
Portanto, a mulher ideal dessa sociedade eurocêntrica, é a mulher que põe em prática os
valores assentados na cultura judaico-cristã apresentada anteriormente, valores que serão
reforçados e cobrado das mulheres na história, e para manutenção do poder patriarcal, pode as
mulheres sofrerem todos os tipos de dominação-exploração.
Assim, acredito que os dois eixos apresentados por Quijano (2005; 2009) do novo
padrão de poder, articulados com as reflexões trazidas por Lugones (2014) e Segato (2014) tem
10
“es sabido, pueblos indígenas, como los Warao de Venezuela, Cuna de Panamá, Guayaquís [Aché] de
Paraguay, Trio de Surinam, Javaés de Brasil y el mundo incaico pre-colombino, entre otros, así como una cantidad
de pueblos nativo-norte-americanos y de las primeras naciones canadienses, además de todos los grupos religiosos
afro-americanos, incluyen lenguajes y contemplan prácticas transgenéricas estabilizadas, casamentos entre
personas que el occidente entiende como siendo del mismo sexo, y otras transitividades de género bloqueadas por
el sistema de género absolutamente enyesado de la colonial/modernidad.” (SEGATO, 2014, P. 78)
11
Mundo-aldeia para Segato (2014) representa as relações sociais antes da ação colonial no território em
que hoje é denominado de América.
34
O debate realizado nessa pesquisa se origina a partir de uma perspectiva das relações de
gênero, compreendendo gênero como uma categoria histórico-analítica que permite apreender
a complexidade das relações sociais (ALMEIDA, 2007).
Compreendo que as mulheres são diversas, e que historicamente o feminismo de origem
branco, ocidental falhou em compreender a sua heterogeneidade, solicitando que todas as
mulheres do mundo não brancas e pobres apoiassem as suas bandeiras, mas não levando em
consideração a realidade social dessas mulheres, invisibilizando suas condições sociais e suas
lutas (CARNEIRO, 2011; DAVIS, 2013, 2017; SAFFIOTI, 1992, 1997, 2004; POUGY, 2018).
Segundo Gonzalez (2011) tal fato ocorreu a partir da inclinação eurocentrista do
movimento, universalizando os valores de uma cultura específica, a ocidental, para o conjunto
de mulheres, sem articular com a questão racial, esquecendo a resistência e luta das mulheres
negras, e das mulheres pobres que lutavam contra a exploração dos patrões, o que proporcionou
por um tempo uma invisibilização da condição social dessas mulheres.
Falar em população residente em favelas na atualidade, necessariamente é falar de uma
maioria de mulheres negras e empobrecidas. Segundo o Data Favela (2015) residem em favelas
12,3 milhões de pessoas, sendo 67% destas negras/os, mais da metade, 6,3 milhões sendo de
mulheres, dessas 69% são de mulheres negras.
Corroborando com tais dados, o perfil das 509 mulheres que realizaram o primeiro
atendimento na Casa da Mulher de Manguinhos no ano de 2014, 74% eram negras, 35%
35
recebiam menos que um salário mínimo que era de R$ 724,00, 33% não tinham renda e 30%
recebiam de 1 a 3 salários mínimos, nenhuma mulher atendida naquele ano recebia mais que 3
salários mínimos (Subsecretaria de Políticas para as Mulheres do Estado do Rio de Janeiro,
2015). A condição da renda e cor das mulheres atendidas nesse Centro difere do perfil das
mulheres atendidas no CIAM Márcia Lyra, Centro que se localizada no bairro do Centro do Rio
de Janeiro.
O perfil das mulheres atendidas no mesmo período no CIAM Marcia Lyra, estabelece
37% de mulheres brancas e 46% de mulheres negras, sendo que 37% das mulheres atendidas
recebiam entre 1 e 3 salários mínimos, 11% recebiam acima de 3 salários e se tinha 9% das
mulheres atendidas sem renda alguma (Subsecretaria de Políticas para as Mulheres do Estado
do Rio de Janeiro, 2015). Com essa apresentação evidenciamos, que o território de favela tem
um gênero, uma cor e uma classe, que se apresenta como um território habitado por uma maioria
de mulheres, negras e empobrecidas.
Por isso, opto em realizar nessa pesquisa uma análise que busque apreender a
complexidade das relações sociais a partir de uma perspectiva de gênero que se entrelace com
as categorias de classe e raça. Entendendo que a vida das mulheres residentes em territórios de
favela perpassa, especialmente, pelas opressões de classe, gênero e raça.
As relações de gênero fundamentam a organização da vida social, historicamente, os
espaços societários vêm sendo estruturados com lugares sociais demarcados sexualmente a
partir de dicotomias, sejam elas entre público x privado, produção x reprodução, entre outras.
Diante disto, um dos fatores importantes a se ressaltar é que a dimensão da vida que se constitui
de forma subordinada tem sido tendencialmente atribuída à mulher. Assim, a categoria relações
de gênero visa analisar as relações sociais através do estudo da constituição dos papéis sexuais
construídos socialmente, buscando desvendar a hierarquização, a subalternidade e as relações
de poder constituídas na vida social (Almeida, 2007).
É preciso entender que o significado “moderno” atribuído a raça, o sentido biológico
que se remete a raça (QUIJANO, 2005) é uma conotação preconceituosa, que compreende as
pessoas negras e não brancas como uma população biologicamente inferior ao modelo de ser
humano que se constituiu como universal, o homem branco, europeu e rico.
Dessa forma, o racismo se constitui como uma crença que existem raças e hierarquias
entre elas, e essas hierarquias se desenvolvem a partir da inferioridade natural de umas raças
sobre as outras, assim, “as características fenotípicas são utilizadas como justificativas para
36
não por conta dessa reivindicação de amor divino e sim por ódio à escravidão, a condição que
seus filhos eram colocados ao nascer, a separação do filho da mãe através da venda como
escravo, não levaram em consideração a concretude da vida dessas mulheres, a desumanização
do sistema escravista.
Ribeiro (2017) nos chama a atenção de que é necessário perceber os lugares de fala, ou
seja, quer falar sobre a mulher negra escravizada sendo uma mulher branca burguesa, fala, mas
a partir do seu lugar nessa hierarquia social, compreendendo todos os seus significados. As
mulheres brancas da época não compreenderam/ ou não desejavam compreender esse lugar, se
colocaram como um sujeito universal, como se todas as mulheres fossem e vivessem em
condições iguais e se utilizaram, neste caso, de um argumento que não fazia sentido para a
mulher negra e nem para seus opressores, afinal, elas não lutavam pelos filhos devido a
existência de uma amor divino e natural e nem seus opressores a viam como sujeitos que tinham
essa humanidade, ou seja, seus argumentos não contribuíram para o apoio social para a abolição
da escravidão.
Um outro ponto importante que Davis (2013) expressa, é que a luta do movimento
feminista pelo direito ao sufrágio se apoiou inicialmente na luta do movimento abolicionista,
quando essas mulheres ainda não tinham voz, homens negros ativistas abolicionistas as
apoiaram, mas por uma lógica capitalista, em que os maiores interessados eram a burguesia do
norte, os novos industriais capitalistas, contra os donos de escravos do sul, não significando
propriamente o reconhecimento da humanidade dos homens e mulheres negras, os homens
negros do sul conquistam o direito ao voto e para as mulheres brancas isso significa estender
ao homem negro todos os privilégios da supremacia masculina branca, com isso, ocorre um
racha nessa incipiente aliança entre o movimento negro e o movimento feminista.
A falta de percepção da manobra capitalista para seus próprios interesses e a falta de
compreensão de que os direitos políticos para o homem negro também significava a defesa de
suas vidas, o que não significava propriamente melhores condições econômicas, segurança ou
status social, fragmenta a aliança desses dois movimentos, e corrobora para o início de ataques
racistas promovidos pelo movimento feminista tradicional.
A década de 1860/1870 é marcada por um forte movimento das mulheres trabalhadoras,
muitas já trabalhavam em indústrias e começavam a se organizar em sindicatos. A bandeira do
direito ao sufrágio feminino ainda estava em cena, mas ainda era protagonizada pelo movimento
feminista de base burguesa, as mulheres trabalhadoras não viam o direito ao voto como um
39
meio para sua emancipação, pois seus companheiros tinham direito ao voto e suas vidas
continuavam sendo exploradas pelos patrões.
Para o movimento feminista burguês a opressão dos homens sobre as mulheres era a
mais importante, por isso não conseguia reconhecer que as mulheres trabalhadoras e as
mulheres negras estavam ligadas aos seus companheiros pela exploração de classe e pela
opressão racial, que não diferenciava os sexos. As mulheres trabalhadoras só passam a lutar
pelo direito ao voto, quando compreendem a necessidade para suas vidas, pois passam a
compreender que necessitavam de leis para melhorar suas condições de trabalho, o sufrágio
feminino passa a fazer sentido ao ser compreendido como uma arma para a luta de classes.
Davis (2013) mais uma vez estabelece como o sexismo reforça o racismo que fortalece
o capitalismo, trazendo a discussão de como a construção racista do mito violador do homem
negro, na construção das Leis contra violência sexual nos EUA não contribuiu para a proteção
das mulheres.
As mulheres trabalhadoras, nem todas negras, por exemplo, não foram protegidas por
essas legislações, na grande maioria dos julgamentos os homens brancos não eram condenados,
entre 1930 a 1967 de 455 homens condenados por violência sexual, 405 eram negros. A autora
chama a atenção de que as mulheres negras não apoiaram o movimento contra a violência
sexual protagonizado pelas mulheres brancas, por que ele reforçou o racismo.
Se construiu um imaginário em que os homens negros, por serem negros, eram
propensos a realização do crime sexual, esse pensamento é o mesmo quando se relacionava as
mulheres negras, quando elas eram violentadas sexualmente pelos senhores, sendo
culpabilizadas, pois pela condição “biológica” de ser negra, ela estava propensa a
promiscuidade. A partir desse imaginário, se iniciou uma cultura de linchamento no país, onde
a população negra, em maioria os homens negros eram seu alvo. Assim, toda vez que se
necessitava promover o terror e a violência contra a comunidade negra esse imaginário era
revivido.
Nas três décadas seguintes após a guerra civil no ano de 1865, ocorreram mais de 10
mil linchamentos, sendo que a grande maioria dos homens negros linchados não tinham
cometido violência sexual, a realidade é que se tinha muito poucas denúncias de relatos de
tentativas ou de violências sexuais perpetradas por homens negros, a justificativa real para os
linchamentos segundo Davis (2013) era outra.
O capitalismo necessitava do medo da população negra para superexplorá-los, e
necessitava que os trabalhadores brancos perdessem de vista quem eram realmente seus
40
mulher, faziam o aborto pela miserável condição material em que viviam, que não permitia que
elas trouxessem novas vidas ao mundo.
Na campanha pelo direito ao aborto também foi assumido que ele seria uma alternativa
para a pobreza, como se ter menos crianças contribuísse para o aumento do número de empregos
ou para se ter melhores salários. Para além disso reforçavam que as famílias pobres deveriam
ter o compromisso moral de restringir o tamanho de suas famílias, por que famílias grandes de
pobres criavam muitos gastos de caridade para os ricos, além de não serem parecidas com as
crianças de raça “superior” (DAVIS, 2013).
O movimento pelo controle da natalidade não se colocou contra a esterilização forçada
das mulheres pobres e negras, a partir de 1975 se reduziu o financiamento dos abortos legais e
com isso as mulheres que mais morriam com o aborto ilegal foram privadas desse direito, só
restando a elas a esterilização e a impossibilidade permanente de ter filhos biológicos. Nota-se
então, como o racismo perpassa esse movimento, na defesa pelo controle da natalidade se
reproduzia a lógica da não proliferação das “classes baixas” e consequentemente negras.
Davis (2013) denuncia que o movimento do controle de natalidade foi fortemente
influenciado pelo movimento eugenista, prática utilizada para legitimar a dominação da Europa
sobre outros povos não-europeus, que concebiam a sociedade burguesa europeia como o padrão
de civilização humana e tudo que divergisse desta ou não servisse a legitimar esse poder era
considerado inferior (GÓES, 2018), assim, as mulheres pobres, negras, que não estavam no
escopo de civilidade tendo como modelo o padrão europeu, poderiam ser esterilizadas, era uma
forma de não multiplicar seres considerados de uma raça inferior. Assim, para a autora se
roubou o potencial do movimento de controle da natalidade de lutar pelos direitos reprodutivos
das mulheres, se tornando uma política racista que serviu ao governo imperialista dos EUA.
Davis (2013) evidencia historicamente como a primazia a uma opressão pode reforçar
as outras opressões, em acordo com esse olhar Ribeiro (2017), expressa sobre a pensadora
feminista, negra, caribenha e lésbica Audre Lorde, que destacava a dificuldade de ter identidade
com algum movimento, pois em cada movimento se defendia a sua primazia, no movimento
feminista, apontavam a questão de gênero, no movimento negro a questão racial, no movimento
LGBTT a orientação sexual, como participar de somente um movimento ou lutar contra
somente uma opressão, se ela era alvo de todas essas opressões? Para ela, não tinha como negar
uma identidade para afirmar outra, pois fazer isso seria reformismo e não transformação real.
Lorde (2013) aponta que as mulheres devem reconhecer suas diferenças e não encará-
las como algo negativo, é preciso reconhecer que temos pontos de partidas diferentes, que as
42
mulheres brancas e negras experenciam o gênero de forma diferente, não reconhecer isso leva
a legitimação de um discurso que é excludente, que não viabiliza outras formas de ser mulher
no mundo. Para a autora o fracasso das feministas acadêmicas12 em reconhecer as diferenças
como uma força importante para o movimento anti-sexista é um fracasso para ultrapassar a
primeira lição da lógica patriarcal. Para ela dividir e dominar precisam se tornar definir e
empoderar.
Vivemos na contemporaneidade em uma ordem social democrática no plano
legal/formal, com novas roupagens, mas que mantém intactas as relações de gênero, raça e
classe construídas há séculos, estruturando as desigualdades entre homens e mulheres. Temos
assim o desafio ainda presente em refletir sobre as relações sociais a partir de uma perspectiva
do entrelaçamento dessas opressões, compreendendo que as desigualdades não são produtos
naturais e sim histórico sociais, o que nos leva a afirmar que são possíveis de serem superadas.
12
A autora quando realiza o discurso está participando de uma conferência na Universidade de Nova York
em 1979.
43
Com o medo de que essas resistências criassem uma condição para a abolição por si
mesmas, fazendo com que os proprietários de terra perdessem seu poder, uma vez que desde
1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, estava proibido o tráfico atlântico de escravos no Brasil
e em outros países já tinham abolido essa prática, alguns políticos começam a reivindicar a
abolição da escravidão.
Para abolir era necessário também excluir, com isso, o incentivo à imigração,
especialmente, da população europeia, vista como a população “superior” a partir da produção
científica eugênica, era um meio para também “embranquecer” e “melhorar” a população, pois
para as elites da época, os negros eram inferiores, selvagens, vagabundos, haviam se tornado
escravos por uma condição inferior ao branco e não pela dominação e violência que sofreram
(AZEVEDO, 1987).
Com o início da República o Rio de Janeiro buscava a modernização econômica, tendo
o interesse de atrair novos capitais para as incipientes indústrias, para isso necessitava adequar
o espaço às necessidades do capital construindo a cidade e sua infraestrutura para esse
propósito.
Segundo Campos (2012) em 1866, se desenvolveu a ideologia higienista, no qual a
adoção da postura municipal foi a de proibir a construção de novos cortiços na área central da
cidade, que existiam desde 1850, no qual residiam mais de 50% da população, pois era o local
em que se tinham mais oportunidades trabalho.
A ideologia higienista, discriminatória e criminalizatória, difundia argumentos que
caracterizavam os cortiços como locais insalubres e transmissores de doenças e que sua
população exercia costumes danosos a sociedade “as habitações coletivas seriam focos de
erradicações de epidemias, além de, naturalmente, terrenos férteis para a propagação de vícios
de todos os tipos” (CAMPOS, 2012, P.60), por isso era necessário destruí-los e expulsar seus
habitantes. O fato mais relevante é que a maioria da população moradora de cortiços, era negra,
os alforriados do período. A política da remoção tomou força a partir de 1873,
concomitantemente, entre 1870 a 1880 foram os anos nos quais mais se concederam alforrias,
o que liberou uma quantidade considerável de trabalhadores escravos, o que preocupou as elites
associando-os a formação das “classes perigosas” devido ao acelerado aumento.
Com a lógica da abolição sem reformas, os imigrantes foram utilizados como mão-de-
obra assalariada no lugar do negro, os privilégios das elites foram conservados, o ideal de
embranquecimento e de democracia racial foram desenvolvidos, e o negro, ex- escravo, foi
atirado como sobra na periferia do sistema do trabalho-livre (MOURA, 1992).
44
Em 1893 foi destruído o cortiço “cabeça de porco” na área central, que deixou mais de
4 mil pessoas sem abrigo, o prefeito da época, Barata Ribeiro, autorizou então o deslocamento
dos moradores para as encostas. Em 1897 foi no morro da favela13, conhecido hoje como morro
da providência que os soldados egressos da guerra de canudos foram se estabelecer com a
autorização dos chefes militares (CAMPOS, 2012), portanto, com a destruição dos cortiços essa
população se deslocou para as encostas, dando origem as primeiras favelas.
De modo similar, a gentrificação de hoje teve início na República, com o deslocamento
forçado que visava somente o lucro, a valorização da área ocupada para futuros
empreendimentos públicos ou privados. O uso do solo na sociedade capitalista sempre foi
apropriado pelas classes dominantes em benefício do capital, assim a luta pelo direito à cidade,
envolve às disputas da terra para moradia, o direito ao trabalho e a mobilidade. A permanência
das favelas na cidade hoje, assim como dos quilombos, no período imperial, se contrapõe a uma
lógica de uso do espaço para investimento e acumulação de capital e se constitui como foco de
resistência da população negra, aquela que foi destituída de todos os seus direitos mesmo após
a escravidão, e que será sempre vista como uma ameaça para as classes dominantes desse país.
As favelas nas cidades se configuram como espaços historicamente desiguais, com
destaque para a combinação das mais diferentes formas de violência, seus cidadãos são
indispensáveis ao funcionamento da cidade integrados economicamente a ela, porém excluídos
dos direitos de cidadania (SOARES, 2010), vivenciando diversas formas de opressão.
Na obra “Quarto de Despejo” a autora Carolina Maria de Jesus descreve alguns aspectos
do que era ser mulher vivendo em uma favela na década de 1950:
Cheguei em casa, aliás no meu barracão, nervosa, exausta. Pensei na vida atribulada
que eu levo. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua o dia todo.
(...)
Trabalhei apreensiva e agitada. A minha cabeça começou a doer. Elas costuma esperar
eu sair para vir no meu barracão expancar[sic] meus filhos.
O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa
confortável, mas não é possível.
13
Etimologicamente a palavra favela é: “o nome popular de uma planta da espécie Cnidosculos
Quercifolius. Em 1897, este vegetal encobria o morro que posteriormente passaria a se chamar Morro da
Providência, mas que à época, era conhecido como Morro da Favella, justamente pela abundância da tal planta.
Apenas na segunda década do século XX, a palavra passou a nomear todas os locais onde eram erguidas habitações
precárias sobre morros no Rio de Janeiro.” (MALHEIRO, 2014, p.15)
45
Tenho que levar a minha filha Vera Eunice. Ela está com dois anos, e não gosta de
ficar em casa. Eu ponho o saco na cabeça e suporto o peso da Vera Eunice nos braços.
Os meus filhos estão sempre com fome. Quando eles passam muita fome eles não são
exigentes no paladar.
Surgiu a noite (...) o barraco está cheio de pernilongos. Eu vou acender uma folha de
jornal e passar pelas paredes. É assim que os favelados matam mosquitos.
Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Quem nos
protege é o povo e os Vicentinos. Os políticos só aparecem aqui nas épocas
eleitoraes[sic].
(JESUS, 1960, p. 9)
14
Bauman(2004) compreende o conceito de refugo humano, como pessoas refugadas, aquelas excessivas e
redundantes, que não tem função para o sistema capitalista moderno.
46
marcado pela precária condição de infraestrutura urbana e de acesso às políticas sociais sendo
cada vez mais criminalizado, tendo sobre sua população a ampliação de um estado de exceção
(AGAMBEN, 2004) que tem causado altos índices de homicídios15, em sua maioria de homens
jovens negros, e encarceramento em massa da população, que tem também produzido o
aumento do encarceramento feminino16.
Tendo como base o perfil das mulheres residentes em favela apresentado, temos um
cenário em que, as mulheres negras, tem menor expectativa de vida se comparadas as mulheres
brancas; as famílias chefiadas por mulheres aumentaram, incluindo as famílias de mulheres
negras, mas no que diz respeito a renda dessas famílias são as de piores índices, 69% das
famílias chefiadas por mulheres negras em 2009 possuíam renda familiar de até um salário
mínimo (MARCONDES et al, 2013). No que diz respeito ao mercado de trabalho, devido a
segmentação racial, os espaços reservados as mulheres negras continuam ainda a serem os
espaços reservados as negras após a abolição da escravidão, como o trabalho doméstico ou a
atuação como serventes, cozinheiras e lavadeiras, evitando sua atuação em espaços nos quais
necessitará lidar com o público direto, como em funções de vendedora, recepcionistas,
secretárias, nos quais se requerem atributos “estéticos” ou como cita Carneiro (2011) “Exige-
se boa aparência”17, além da dificuldade do acesso em outras ocupações de maior relevância
como em áreas técnicas, científicas e artísticas (BENTO,1995).
No que diz respeito à violência contra às mulheres, tema do nosso estudo, segundo dados
do Atlas da Violência 2017, produzido pelo IPEA, em 2015, 4.621 mulheres foram assassinadas
no Brasil, entre 2005 à 2015 os índices de mortalidade de mulheres não negras reduziram em
7,4%, enquanto no mesmo período o número de mulheres negras assassinadas aumentou 22%;
se identificou ainda que o total de mulheres vítimas de homicídio por agressão aumentou no
caso de mulheres negras, de 54% em 2005 para mais de 65% em 2015, ou seja, 65,3% das
mulheres mortas no Brasil em 2015 eram negras.
Quando falamos de feminicídios, estamos abordando sobre os crimes que são cometidos
contra às mulheres pela sua condição de ser do sexo feminino e envolvem: violência doméstica
e familiar e/ou menosprezo, discriminação à condição de ser mulher, conforme a Lei 13.104,
15
De acordo com o Dossiê do Comitê popular da copa e olimpíadas do Rio de Janeiro(2015), os autos de
resistência nas favelas subiram em 2012 para 2013 de 381 para 416, em 2014 para 584 e somente na primeira
metade de 2015 já tinha ocorrido 349 mortes no Rio de Janeiro.
16
Segundo dados do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate a Tortura do Rio de Janeiro (2016), a
população carcerária feminina aumentou de 2000 para 2015 567%, hoje as mulheres são quase 7% da população
prisional brasileira.
17
Disponível em <https://www.geledes.org.br/enegrecer-o-feminismo-situacao-da-mulher-negra-na-
america-latina-partir-de-uma-perspectiva-de-genero/>, acessado em 10 de junho de 2018.
47
de 09 de março de 2015. No ano de 2017 no Rio de Janeiro segundo o Dossiê Mulher (2018)
foram registrados nas delegacias 68 feminicídios e 187 tentativas de feminicídios, o que
representa 17,8% de mulheres vítimas de homicídio doloso e 27,4% das mulheres vítimas de
tentativa de feminicídio.
Se analisarmos o local em que ocorreram os feminicídios, o documento indica que
60,3% dos casos de assassinatos ocorreram no âmbito doméstico e familiar, e o perfil racial
demonstra que 58,8% eram mulheres negras. Nas tentativas de feminicídio essa porcentagem
aumenta, sendo ocorridas no âmbito doméstico e familiar 86,1% dos casos e no perfil racial das
mulheres 57,7% eram negras.
Com esses dados, como tem sido implementadas as políticas públicas de
enfrentamento à violência para às mulheres, para às que residem em favela? Procurarei
responder, tendo como base sua implementação em um território de favela, Manguinhos, que
em 2010, teve inaugurado a Casa da Mulher de Manguinhos, um Centro de Referência de
Atendimento à Mulheres em situação de violência18.
18
Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL1423391-5606,00-
LULA+INAUGURA+OBRAS+DO+PAC+NO+COMPLEXO+DO+ALEMAO+E+MANGUINHOS.html>,
acesso em 05 de janeiro de 2019.
48
aos direitos: Conferência Mundial sobre Direitos Humanos em Viena em 1993, IV Conferência
Mundial sobre as Mulheres em Pequim em 1995, Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra à Mulher- conhecida como Convenção de Belém do Pará
de 1994, I Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação racial, Xenofobia e as formas
conexas de intolerâncias em 2001, entre outras.
A ratificação desses tratados pelo Brasil, implica que o Estado brasileiro realize
estratégias para o enfrentamento da violência contra às mulheres, desenvolvendo a criação de
mecanismos, legislações e ações governamentais para esse fim.
No fim da década de 1970 e início de 1980 o tema da violência contra as mulheres ganha
maior visibilidade no país, o assassinato de duas mulheres da elite brasileira19 por seus
companheiros chocam a sociedade e impulsionam as primeiras campanhas públicas contra a
violência de gênero exigindo ações interventivas do Estado no enfrentamento a esse fenômeno.
Em resposta a esses movimentos, na década de 1980 se cria o Conselho Nacional de Direitos
da Mulher, através da lei 7.353 e ocorre a criação das primeiras Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher- DEAM, que respondia em um primeiro momento à demanda da criação
de um espaço na polícia, que não fosse hostil à mulher agredida (PINTO, 2003 apud SANTOS,
2011).
Em 1988 temos a Carta Magna do Brasil, Constituição conhecida como “Constituição
Cidadã”, um marco para os direitos das cidadãs brasileiras, organizando os deveres do Estado
e garantindo diversos direitos, sendo alguns de ordem civil, política e social.
As mulheres participaram ativamente no processo da Constituinte. Em 1987 elas
enviaram a Assembleia Nacional Constituinte um documento denominado “Carta das Mulheres
aos Constituintes”, no qual reivindicaram a igualdade legal perante os homens e elencaram suas
demandas em várias áreas, como saúde, trabalho, educação, cultura, dentre outros 20. O
documento foi fruto da participação das brasileiras através da atuação do Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher, que percorreu o Brasil, ouvindo as mulheres e ampliando os canais de
comunicação com os movimentos sociais.
A constituição de 1988 leva em consideração reivindicações importantes das mulheres
propostas nesta carta, o art.5º e o art. 226º são exemplos, expressam importantes conquistas das
19
A Socialite Ângela Diniz em 1976 e a cantora Eliane de Grammont em 1981.
20
A Cartas das Mulheres aos Constituintes está disponível em <http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/a-constituinte-e-as-
mulheres/Constituinte%201987-1988-Carta%20das%20Mulheres%20aos%20Constituintes.pdf > acesso em 05
de outubro de 2018.
50
mulheres, o primeiro por que declara a igualdade entre os sexos, o segundo prevê mecanismos
de assistência a cada pessoa da família através de mecanismos que coíba a violência no âmbito
das suas relações. O Estado passa a intervir nas relações que eram vistas como privadas, mas
que são públicas, uma vez que geram problemas sociais e que se desenvolvem de forma
estrutural e não individual. Também são resultados dessa luta as políticas de seguridade social
usufruídas na atualidade, que prevê a articulação entre o tripé assistência social, saúde e
previdência social e estão regulamentadas respetivamente pelas seguintes legislações: Lei 8.742
de 07 de dezembro de 1993, Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990 e Lei 8.213 de 24 de julho
de 1991, onde a saúde e a assistência social são políticas não contributivas, sendo a saúde um
direito universal, todos independente de renda podendo acessá-las e a assistência social um
direito de todos, mas que prevê necessidades específicas para seu acesso
A segunda metade da década de 1990 pode ser caracterizada como um período de
desmobilização dos movimentos sociais, com a introdução da ideologia neoliberal no país com
a privatização de diversas instituições estatais, cortes financeiros para as políticas sociais. No
âmbito das políticas para a igualdade de gênero, ocorre a retirada de orçamento próprio do
CNDM e a inclusão de mulheres que nada tinham a ver com lideranças feministas, reduzindo o
caráter de pressão e de atuação desta esfera de controle frente as demandas feministas de
esquerda (SANTOS, 2011).
Até 2003 as DEAMs e as Casas-abrigo foram as principais políticas públicas de
enfrentamento à violência contra às mulheres, sendo a intervenção quase restrita ao campo da
segurança pública (CARVALHO, 2015). Essa forma de enfrentamento só se altera a partir de
2003, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, através da Lei 10.683 de 28 de maio de 2003
que cria a Secretaria Especial de Políticas para às Mulheres com status de Ministério e
orçamento próprio, que inicia um planejamento mais articulado, integrado e vigoroso para
desenvolver políticas públicas para às mulheres no país.
Mas o governo Lula ficou conhecido como o governo de conciliação de classes, embora
sem transformações profundas, promoveu reformas importantes e a ampliação do acesso a
políticas públicas para parcela significativa da população, assim como a implementação de
políticas afirmativas que contribuíram para melhorar a condição de grupos oprimidos
historicamente como mulheres e negros; mas, tais ações não foram capazes de ultrapassar a
lógica neoliberal que compreende o mercado como um mecanismo auto regulador da vida
econômica e social, como resultado, o cidadão se torna cada vez mais um consumidor,
afastando-se de preocupações com a política e com os problemas coletivos (CARVALHO,
2002).
No governo “Lula” se ampliou os espaços formais de participação social, ocorre a
expansão dos Conselhos e Conferências Nacionais, de acordo com a Secretaria de Governo
foram realizadas no Brasil entre 1941 à 2013 138 conferências, das quais 97 foram realizadas
entre 2003 e 2013, mais de 70% das conferências foram realizadas entre o governo Lula e os
anos iniciais do governo de Dilma Rousseff (OLIVEIRA, 2016).
Na área das políticas públicas para às mulheres, ocorreram 04 principais conferências,
em 2004, 2007, 2011 e 201621, sendo envolvidos na última mais de 150 mil pessoas22. O ano
de 2004, se torna significativo para a área de políticas para às mulheres, é decretado pelo
Presidente como Ano da Mulher instituído pela Lei nº 10.745, de 9 de outubro de 2003,
estabelecendo que o poder público realizaria com a participação da sociedade civil, ações para
divulgação e comemoração das conquistas das mulheres visando estabelecer condições mais
igualitárias na inserção das mulheres na sociedade. Nesse sentido vemos o redimensionamento
da construção de uma política, com fundamento na igualdade de gênero, pautando melhores
condições de vida para às mulheres.
Os processos de participação social já se inscreviam no cotidiano das mulheres ativistas
e militantes. Foram participativas no processo da Constituinte em 1988, realizaram diversos
encontros de mulheres e feministas em diferentes unidades federativas do Brasil nos anos de
1997, 2000, 2002 e 2003; em 1997 e 1999 em Conferências Internacionais. As conferências de
políticas para às mulheres que ocorreram a partir de 2004 reforçaram essa bagagem de discussão
e pautas, evidenciaram as diferenças e diversidades existente entre as mulheres brasileiras, mas
21
Essa conferência deveria ter ocorrido em 2015, ocorre no início de 2016 com a justificativa de crise
financeira.
22
Disponível em < http://www.spm.gov.br/4cnpm/noticias/toda-a-jornada-da-4a-cnpm-em-videos-fotos-
audios-textos-e-e-book> acesso em 20 de junho de 2018.
52
23
Ver MARX (2013).
54
24
Disponível em < http://www.sembarreiras.jor.br/2018/03/09/a-invisibilidade-da-mulher-com-
deficiencia/> acesso em 22 de junho de 2018.
25
Estava previsto no inciso VII do Art. 107 do código penal brasileiro.
55
11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que é fruto da punição
do País por não cumprir os tratados internacionais assinados26.
A Lei Maria da Penha, traz em sua redação conceitos importantes apontados pela
Convenção de Belém do Pará, como por exemplo a definição expressa do que é violência contra
à mulher e suas diferentes formas. Isso se torna importante porque anterior a legislação somente
violência física era considerada violência. A Convenção de Belém do Pará destaca em seu Art.
1º que violência contra a mulher é “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte,
dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera
privada”; com a lei esse tipo de crime sendo no campo da violência doméstica e familiar sai do
rol dos delitos de menor potencial ofensivo e se torna uma grave violação de direitos humanos.
São criados Juizados especiais para julgar os casos de violência doméstica e familiar contra as
mulheres e proibi o uso de medida alternativa de penas pecuniárias como punição. Se reconhece
a violência doméstica e familiar em qualquer relação íntima de afeto independentemente de
orientação sexual, e também abrange as mulheres trans, o que evidencia o reconhecimento da
diversidade das mulheres.
Essa legislação é uma das mais avançadas do mundo no campo, construída na
perspectiva de integração dos poderes e dos entes federativos, que passa pelas áreas de
prevenção, assistência, acesso à justiça, medidas de urgência, dentre outros aspectos, na
perspectiva de que o Estado possa incidir no fenômeno da violência doméstica e familiar contra
as mulheres.
No âmbito dos órgãos e mecanismos institucionais, no fim de 2010 existiam Secretarias
de Políticas para às Mulheres em 23 estados brasileiros; no que diz respeito aos serviços
especializados de atendimento a mulheres em situação de violência, entre 2003 a 2014 ocorreu
um aumento de mais de 300%, crescendo de 332 para 1256 serviços, sendo ainda as Delegacias
os serviços com maior percentual de aumento (CARVALHO, 2015).
Embora tenha ocorrido um aumento significativo de serviços, isso não representou a
existência desses nem em 2% dos municípios brasileiros, uma vez que se tem 5.570 municípios
e os serviços estão concentrados majoritariamente nas capitais e regiões metropolitanas, o que
26
Com a articulação da Maria da Penha, - mulher, de classe média, que sofreu violência doméstica e familiar
perpetrada pelo companheiro e não obtinha respostas satisfatórias do poder público- com organizações de
movimentos de mulheres feministas, o Brasil foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, foi
punido, e obrigado a constituir legislação específica para coibir a violência contra às mulheres no País.
56
revela a distribuição geográfica desigual e a dificuldade das mulheres que vivem em regiões
mais distante terem acesso à política (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, 2012).
Com a SPM se iniciou um processo de fortalecimento das políticas públicas de
enfrentamento a violência contra às mulheres, com a elaboração de conceitos, diretrizes,
normas, definição de estratégias e ações, com isso se criou vários documentos que puderam
servir como diretrizes nacionais contribuindo para que os demais entes federativos construíssem
ações na área do enfrentamento a violência contra as mulheres.
Em 2007 é lançado o primeiro Pacto nacional de enfrentamento à violência contra às
mulheres, que visou descentralizar ações por meio de um acordo federativo entre o governo
federal e os outros entes da federação. Teve como objetivo principal reduzir os índices de
violência contra às mulheres e foi composto por quatro eixos: implementação da Lei Maria da
Penha e fortalecimento dos serviços especializados de atendimento; Proteção dos direitos
sexuais e reprodutivos e enfrentamento da feminização da aids; Combate à exploração sexual
de meninas e adolescentes e ao tráfico de mulheres; e promoção dos direitos humanos das
mulheres em situação de prisão (Pacto Nacional, 2007).
Esse documento se baseou na compreensão de que à violência contra às mulheres é um
fenômeno multidimensional, que necessita de políticas públicas amplas que se articulem nas
diferentes esferas da vida social, como no trabalho, educação, saúde, dentre outras. Nesse
sentido, não basta atuar somente nos efeitos da violência, é necessário atuar também em outras
dimensões como na prevenção, atenção e proteção. Esse Pacto fez parte da agenda social do
governo federal de 2007, sendo suas ações executadas entre 2008 a 2011 pelos atores
comprometidos com a proposta, um deles foi o Rio de Janeiro, que foi o primeiro Estado a
assinar o Pacto, o que significou receber recursos financeiros do governo federal para
implementar as políticas27.
Com isso os serviços especializados de atendimento à mulher mais que duplicou no
estado do Rio de janeiro entre 2007 a 2014, os Centros de atendimento à mulheres em situação
de violência/núcleos saltaram de 16 para 34, foram criados 10 novos juizados específicos para
tratar dos crimes de violência doméstica e familiar contra às mulheres, as DEAMs aumentaram
de 11 para 14, os órgãos de gestão aumentaram de 4 para 22, o que pode ter contribuído para
reduzir o número de homicídios de mulheres no estado entre 2007 a 2013 (Mapa da Violência,
2015).
27
Disponível em: <http://www.spm.gov.br/area-imprensa/ultimas_noticias/2007/11/not_primeiro_estado_rio> ,
acesso em 20 de janeiro de 2019.
57
Foram criados também neste período em âmbito federal, documentos importantes para
o direcionamento do eixo do enfrentamento à violência contra às mulheres previsto no PNPM
(2004; 2008): a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra às Mulheres (2011),
Rede de Enfrentamento à Violência contra às Mulheres (2011), Diretrizes Nacionais para o
Abrigamento de Mulheres em Situação de Risco e de Violência (2011), Pacto Nacional pelo
Enfrentamento à Violência contra às Mulheres (2011) e desde 2006 existe a Norma Técnica de
Uniformização dos Centros de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência.
A Política Nacional de Enfrentamento à Violência- PNEV (2011) é resultado do I PNPM
que a tinha como um de seus objetivos em 2004, tem por objetivo estabelecer conceitos,
princípios, diretrizes e ações, conforme legislações nacionais, normas e instrumentos
internacionais de direitos humanos, nos eixos de prevenção, combate, assistência e na garantia
dos direitos humanos das mulheres (Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres, 2011).
Um dos tratados e convenções importantes em que se baseia a PNEV (2011) é a
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,
conhecida como a Convenção de Belém do Pará, adotada em 9 de junho de 1994.
Essa Convenção é histórica pois exige dos Estados um compromisso na erradicação da
violência de gênero contra às mulheres, categoria importante para apontar as desigualdades
sociais entre homens e mulheres nessa sociedade e propor políticas públicas como forma de
intervenção e alteração da realidade. Somado a isso, se compreende que violência de gênero
contra as mulheres, não abrange somente mulheres cis 28, mas todas as formas de ser mulher,
concebendo a diversidade como ponto importante no enfrentamento a esse tipo de violência, e
aponta também a existência de várias formas de violência contra às mulheres além da violência
física.
O conceito de violência contra as mulheres expresso na PNEV (2011) fundamenta-se
nesta Convenção que compreende violência contra as mulheres como: “qualquer ação ou
conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual, psicológico à
mulher, tanto no âmbito público como no privado” (Art. 1º), e suas formas se expressam como:
28
Mulheres que tem congruência entre seu sexo biológico feminino, o sentimento subjetivo do sexo
feminino nascido e o gênero feminino designado. É a mulher que é politicamente vista como “alinhada” dentro do
seu corpo e de seu gênero. Disponível em: < https://www.geledes.org.br/o-que-sao-pessoas-cis-e-cissexismo/>,
acesso em 10 de janeiro de 2019.
58
A violência perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que
ocorra (violência institucional). (Art. 2 da Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, 1994)
(...)
No capítulo III desta Convenção estabelece os deveres dos Estados que a ratificam, e
aponta que na adotação de medidas e políticas para prevenir, punir e erradicar a violência contra
à mulher os Estados deverão levar em conta a situação:
Assim, esse documento compreende as diversas opressões que as mulheres sofrem, bem como
suas interseccionalidades, apontando expressamente que deve se levar em consideração a
violência de gênero, que se articula com a raça e a classe. Nesse sentido a PNEV (2011) se
59
funda como meio para implementar os conceitos e fundamentos adotados pelo Brasil com a
ratificação dessa Convenção.
Nos eixos que se propõe a atuação, no campo preventivo destaca ações que contribua
na desconstrução de estereótipos de gênero que transformem os padrões sexistas, que
perpetuam desigualdades de poder. Abrange não só ações educativas, como ações culturais que
propague condutas igualitárias e valores éticos de respeito às diversidades de gênero.
O combate se refere a ações que abranja e estabeleça o cumprimento de normas penais
que garantam a punição e responsabilização do agressor/autores de violência contra às
mulheres.
No eixo da garantia dos direitos humanos das mulheres devem ser realizadas ações que
promovam o empoderamento das mulheres, o acesso à justiça e o resgate das mulheres como
sujeito de direitos, conforme previsto nas recomendações dos tratados internacionais da área de
violência contra as mulheres assinados pelo Brasil.
O último eixo se refere a assistência as mulheres em situação de violência, que prevê o
atendimento humanizado, a criação de serviços especializados e constituição/fortalecimento de
uma rede de atendimento as mulheres, que se articule as diferentes esferas de governo e a
sociedade civil, para constituir parcerias que possa enfrentar o fenômeno da violência contra às
mulheres de maneira onde se realize um atendimento mais integral e menos fragmentado.
A PNEV (2011) prevê ainda a conceituação da rede de atendimento, que surge como
um meio de dar conta da complexidade que é a violência contra às mulheres e das várias
dimensões que tem o problema e que perpassa por diferentes áreas, como a saúde, a assistência
social, a educação, a segurança, a cultura, dentre outras. A existência de uma rede de
atendimento qualificada, que deve ser articulada, pode minimizar o caminho que a mulher
percorre em busca de uma solução para a questão da violência vivenciada, que muitas das vezes
faz a mulher ir e vir sem soluções, contribuindo para seu desgaste emocional e revitimização.
No âmbito governamental essa rede de atendimento é composta por: Centro de
Referência de Atendimento à Mulher- CRAM, Núcleos de Atendimento à Mulher, Casas-
Abrigo, Casas de Acolhimento Provisório, DEAMs, Núcleos ou Postos de Atendimento à
Mulher nas Delegacias Comuns, Polícia Civil e Militar, Instituto Médico Legal, Defensorias da
Mulher, Juizados de Violência Doméstica e Familiar, Central de Atendimento à Mulher – Ligue
180, Ouvidorias, Ouvidoria da Mulher da Secretaria de Políticas para às Mulheres, Serviços de
Saúde voltados para o atendimento dos casos de violência sexual e doméstica, Posto de
60
ligue 180 atingiu a marca de 3 milhões de atendimento desde a sua criação até 2013 (PNPM,
2013).
Vemos um avanço no campo especialmente do enfrentamento à violência doméstica e
familiar, sexual e algumas ações e encaminhamentos ainda incipientes no enfrentamento ao
tráfico, exploração sexual de mulheres e exploração sexual comercial de mulheres,
adolescentes/jovens, mas quais são as regulamentações, normas, para os casos de violência
institucional contra às mulheres? De acordo com a PNEV (2011) Violência Institucional é:
aquela praticada, por ação e/ou omissão, nas instituições prestadoras de serviços
públicos. Mulheres em situação de violência são, por vezes, ‘revitimizadas’ nos
serviços quando: são julgadas; não têm sua autonomia respeitada; são forçadas a
contar a história de violência inúmeras vezes; são discriminadas em função de
questões de raça/etnia, de classe e geracionais. Outra forma de violência institucional
que merece destaque é a violência sofrida pelas mulheres em situação de prisão, que
são privadas de seus direitos humanos, em especial de seus direitos sexuais e
reprodutivos. (Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres,
2011, p. 23)
Essa forma de violência parecer ser ainda pouco discutida e visibilizada, bem como ter
poucos instrumentos para seu enfrentamento, uma pergunta que se faz necessária é: de que
forma está ocorrendo o enfrentamento deste tipo de violência no Brasil? Como os serviços que
atendem as mulheres em situação de violência vem encaminhando esses casos?
A SPM foi o resultado da luta das mulheres para garantir políticas públicas que
promovessem a igualdade de gênero no país. Através dela se regulamentou o CNDM inserindo
a participação da sociedade civil, integrando-o a essa Secretaria; a transversalidade de gênero
foi uma perspectiva almejada importante, pois evidenciou para as outras pastas a importância
da temática e de construção de ações em todas as áreas para que as mulheres tenham melhores
condições de vida. Mas identifica-se que o campo mais estruturado foi o do enfrentamento à
violência contra às mulheres, ficando os demais com baixo alcance e ações (BRITO, 2013).
62
Essa fato evidencia que embora tenha ocorrido ações importantes para o campo da
igualdade de gênero, essa ainda não é uma prioridade do governo, e isso se explicita por
exemplo pela quantidade apontada anteriormente de municípios que foram atingidos, e nos faz
refletir o quanto o patriarcado é estruturante em nossa sociedade.
Ocorreram avanços no que diz respeito a estrutura dos serviços, produção de referenciais
teóricos, mudança de legislações, mas se pode notar que a política para às mulheres não se
estabeleceu como uma política de Estado e sim de governo, mantendo a sua condição de
precariedade. A partir do processo eleitoral de 2014, com a formação de um congresso nacional
mais conservador da história desde 196429 inicia-se um ataque aos poucos direitos conquistados
pela classe trabalhadora desde 1988, que atinge profundamente as políticas para às mulheres.
No estado do Rio de Janeiro, desde 2014 conforme aponta Pougy (2017) os serviços
para as mulheres vem sendo desmantelados:
Nesse contexto a pasta da mulher passa por inúmeras trocas de gestoras e profissionais,
em quatro anos passando pela pasta 07 gestoras, entre o fim de 2014 à 2016 às profissionais
dos serviços de atendimento à mulheres em situação de violência receberam seus salários
atrasados, chegando ao ápice de ficarem mais de cinco meses sem receber qualquer valor
remuneratório, e dos quatro CEAMs coordenados pelo governo estadual, três foram fechados
por algum período nesses meses, sendo a Casa da Mulher de Manguinhos a única que não foi
reaberta30, e um ficando funcionando em sistema de rodízio de profissionais31.
29
Disponível em < https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho/nota-das-promotoras-legais-
populares-sobre-a-extincao-da-spmpr/>, acesso em 24 de janeiro de 2019.
30
A Casa da Mulher de Manguinhos não foi reaberta, seu espaço foi invadido, roubado e vandalizado; em
2018, ano eleitoral, se noticiou a abertura do serviço, que pode ser lido em: <http://www.riosolidario.org/governo-
inaugura-nova-sede-da-casa-da-mulher-de-manguinhos-para-atender-vitimas-de-violencia/ > , acesso em 10 de
janeiro de 2019. Mas o que ocorreu na verdade foi a abertura de uma sala dentro do Centro de Referências de
Juventude-CRJ de Manguinhos para atendimento, sendo que os de violência são encaminhados para os serviços
especializados da rede, e o espaço sendo utilizado somente para orientações e informações.
31
Carta dos profissionais da Secretaria aos veículos de comunicação informando a situação das
63
Nesse cenário já nefasto e que dava indícios de como as forças políticas estavam se
rearticulando, em 2015 ocorre a fusão das pastas da SPM, Secretaria de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial-SEPPIR e Direitos Humanos formando um único Ministério, o das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, o que é um retrocesso e não contribui
para manter a coalisão do governo com os demais partidos32. Em seguida ocorre a destituição
da primeira mulher no Brasil a ser eleita para a Presidência da República, realizado através de
“um golpe jurídico, parlamentar e midiático com conteúdo misógino” (POUGY, 2017, P.11).
Nesse cenário as taxas que expressam o assassinato de mulheres no Brasil regressam, tendo em
2016 o maior aumento de dez anos, sendo 4.645 mulheres vítimas de homicídio no país
(ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2018).
Segato (2016) aponta que está em curso no Brasil o retorno do discurso moral da política
dos proprietários, construindo um novo tempo de moralismo cristão familista, destaca que o
impeachment da primeira presidenta eleita ocorreu no congresso nacional com uma maioria de
votos declarados publicamente em nome de Deus e pelo bem da família.
Esse ponto é importante, pois também se relaciona com o que apontamos no primeiro
capítulo, qual foi o paradigma de mulher construído na sociedade moderna, reforçado com a
colonialidade/modernidade? Em seguida tivemos a aprovação da Emenda Constitucional 95 em
dezembro de 2016, que congelou os gastos nas políticas sociais pelos próximos 20 anos, tendo
o propósito claro de limitar os gastos na área de saúde e educação que estavam vinculados à
evolução da arrecadação federal, conquistas garantidas pela Constituição de 1988 que tinham
como objetivo preservar e priorizar os gastos nessas áreas, identificadas como fundamentais,
independentemente do governo que estivesse no poder33.
Vimos pautas ressurgindo no Congresso Nacional que visavam atingir os direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres, como o Estatuto do Nascituro e o aborto previsto em Lei34,
tais propostas incluíam a retirada do direito ao aborto em caso de estupro e o atendimento
humanizado no Sistema Único de Saúde- SUS das mulheres que sofreram violência sexual,
impossibilitando o acesso a medicação para prevenir possíveis consequências dessa violência
35
Disponível em < https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho/nota-das-promotoras-legais-
populares-sobre-a-extincao-da-spmpr/>, acesso em 24 de janeiro de 2019.
36
Para os defensores do projeto ultraconservador a homossexualidade é patologia, ou seja, doença.
Disponível em < https://outraspalavras.net/direitosouprivilegios/a-farsa-que-sustenta-a-cura-gay/>, acesso em 24
de janeiro de 2018.
65
da parte empresarial contrária, a contribuição sindical anual passa a não ser mais obrigatória, o
que fragiliza as organizações sindicais já desmontadas em décadas anteriores.
A questão econômica é um quesito importante para a promoção da autonomia das
mulheres, pois é um aspecto fundamental para prover sua subsistência (DAVIS, 2017), após a
reforma trabalhista, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE (2018) informa que
possui 27,5 milhões de pessoas em situação de subutilização, que abrange, as pessoas
desocupadas, subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas e a força de trabalho
potencial, ou seja, mais de 10% da população brasileira está nessa condição, acrescentado a
isso, o número de pessoas fora da força de trabalho é de 65,4 milhões de pessoas, o que significa,
mais de 30% da população, somados esses dois grupos, se tem 45% da população brasileira em
2018 sem trabalho digno.
Oferecendo um recorte de gênero, o IBGE(2018) aponta que o desemprego atinge mais
as mulheres. A taxa de desocupação de mulheres é de 14,2%, maior que a dos homens, que está
no nível de 11%; além disso 64,9% da população fora da força de trabalho são de mulheres.
Isso significa que o Brasil tem em 2018 mais de 42 milhões de mulheres fora da força de
trabalho, que estão sem trabalho ou sem perspectiva concreta de consegui-lo, se hoje a
população feminina é mais de 50% da população, sendo mais de 100 milhões de mulheres
brasileiras, temos mais de 40% de mulheres brasileiras em condições difíceis para promover o
seu sustento e consequentemente de suas famílias.
Vimos no Brasil mesmo antes do golpe de 2016 o crescente discurso de ódio das massas
e a construção fantasiosa de um bode expiatório responsável pelas crises cíclicas do capital,
assim como aponta Arendt (2008), através do conceito de antissemitismo, é necessário um
objeto para direcionar o ódio dessa perda. Para ela essa prática se encontra na raiz da cultura da
modernidade, se traduzindo na não aceitação da existência do outro e sim da sua superioridade
em relação ao outro, esse outro pode existir desde que longe de mim, ou desde que ele não se
localize em espaços sociais que não são para eles, assim, para as saídas das crises estruturais se
implantam governos totalitários que reproduzem e reforçam essa prática.
A autora dá como exemplo a época do nazismo na Alemanha, que se utilizou do povo
Judeu, mas aponta que esse bode expiatório se altera de acordo com a época, com a história. Na
crise sentida mais fortemente pelo Brasil a partir de 2015, trouxe com ela o Pária comunista 37,
37
Se puxarmos na memória houve um período que as pessoas não podiam nem sair na rua de camisa vermelha que
estavam correndo risco de serem agredidas, podemos dar como exemplo as seguintes notícias veiculadas na
época: https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/03/25/cardeal-de-sao-paulo-e-agredido-durante-
missa-e-chamado-de-comunista/ e
66
o inimigo do povo, da economia, aquele que levou o país a miséria, que criou os vagabundos
com o programa Bolsa família38, que acabou com o ensino colocando pobres e negros para
entrar nas Universidades, ou seja, a crise econômica vivenciada no Brasil é fruto dos ditos
comunistas que contribuíram, de forma muito aquém do esperado eu diria, para a população
pobre acessar alguns direitos e não propriamente da estrutura intrínseca do modo de produção
capitalista.
Segundo dados da Organização Não Governamental Oxfam (2019) o número de
bilionários dobrou desde a grande crise econômica de 2008, no Brasil o crescimento foi de 18
para 42. Aqui segundo a ONG, as pessoas 10% mais pobres pagam mais impostos do que as
10% mais ricas. Os recursos da metade mais pobre do planeta tiveram redução de 11% 39. Em
outro relatório apresentado em 201740 a ONG destaca que mais de 80% da riqueza criada nesse
ano foi para a mão dos mais ricos que representam 1% da população no mundo, ocorreu um
aumento histórico dos multimilionários e dentro dos 2.043, 9 em cada 10 são homens. Assim,
a ideologia fomentada pela extrema-direita é uma fantasia que oculta a verdadeira causa da
piora das condições de vida de grande parte da população.
As mulheres parecem entender toda essa escalada de desmonte de direitos, e terem a
certeza que o lado mais atingido, serão os das nossas vidas, as vésperas das eleições mais
acirradas entre campos políticos polarizados, utilizam as redes sociais para se organizar e vão
as ruas levando mais de 3 milhões de pessoas com o grito ELE NÃO41, lutando e se colocando
como resistência no caso de um Presidente da República que representa a ultradireita.
Há 20 dias do segundo turno das eleições em 2018 se formou um campo progressista
em torno do apoio à candidatura de Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores-PT, com
o slogan “todos pela democracia” partidos progressistas e sociedade civil se alinham para
realizar a campanha “Vira voto”, criando espaços nas ruas para dialogar com a população e tirar
dúvidas sobre a campanha presidencial, na tentativa de reverter o segundo turno das eleições e
o candidato do PT se eleger42. Em uma sociedade que produz uma estrutura política sem
https://www.google.com.br/amp/s/www.pragmatismopolitico.com.br/2016/08/leticia-sabatella-e-agredida-em-
curitiba-comunista-cria-vergonha.html/amp , acessados em 23 de abril de 2018.
38
Crítica de Maia ao programa Bolsa Família, disponível em <https://istoe.com.br/maia-reitera-critica-ao-bolsa-
familia-e-diz-que-programa-precisa-ir-alem/>, acessado em 23 de abril de 2018.
39
Disponível em < https://www.poder360.com.br/economia/relatorio-da-oxfam-aponta-crescimento-de-12-da-
fortuna-de-bilionarios/> , acesso em 24 de janeiro de 2019.
40
Disponível em < https://www.dn.pt/mundo/interior/mais-de-80-da-riqueza-gerada-no-mundo-em-2017-nas-
maos-de-1-da-populacao---ong-9064363.html>, acesso em 24 de janeiro de 2019.
41
Disponível em < http://www.justificando.com/2018/10/04/a-politica-da-violencia-e-a-violencia-politica-
mulheres-nas-eleicoes/> , acesso em 26 de janeiro de 2019.
42
Disponível em < https://www.brasildefato.com.br/2018/10/27/artistas-aderem-a-campanha-vira-voto-e-vao-as-
67
Brasil somente pelo fato de exporem nos prédios, pelos coletivos estudantis universitários,
bandeiras com frases antifascismo47, ou seja, temos um contexto eleitoral com a violação de
direitos básicos.
As indicações para Ministros do seu governo ilustra como este se desenvolverá, sendo
composto majoritariamente de homens, brancos, passando dos sete militares a teóricos
conservadores tanto da área econômica como da educação, as duas mulheres que integram esse
escalão, uma sendo líder da bancada ruralista no Brasil, que não por acaso assumiu a pasta da
Agricultura e já no primeiro dia de governo recebeu para seu comando a responsabilidade da
demarcação das terras indígenas e quilombolas48 com a compreensão do Presidente de que com
isso irão “integrar” os índios49, pelo que parece a expulsão desses de suas terras significa
inclusão para o novo presidente; a outra mulher a fazer parte desse grupo, é Advogada, Pastora,
nomeada como Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, que não esconde o viés
ideológico conservador, defensora da família burguesa, dos valores cristãos patriarcais e dos
“bons costumes”, costumes esses que na história relegaram as mulheres a apêndice dos homens,
a uma condição de subalternidade e escravidão perante a sociedade patriarcal, que fizeram com
que nós pudéssemos sermos mortas em defesa da honra do homem e da família.
A configuração do atual governo, parece pretender aprofundar os elementos da
colonialidade/modernidade (QUIJANO, 2005) que constituem o padrão de poder em que
vivemos. A construção liberal dos sistemas de direitos, reforçam uma perspectiva colonizadora
de igualdade e liberdade, o que contribui para o fortalecimento do patriarcado, do racismo e do
capitalismo, dessa forma os movimentos feministas/mulheres devem ter como norte a crítica a
colonialidade/modernidade constitutivo das políticas públicas atuais e que impõe um padrão
eurocêntrico na agenda das mulheres (POUGY, 2017).
47
Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/politica/censura-as-universidades-brasileiras/>, acesso em 10
de janeiro de 2019.
48
Na reestruturação dos órgãos da Presidência da República o governo Bolsonaro em seu primeiro ato com a
criação do Ministério da Agricultura, transfere para esse Ministério a responsabilidade de demarcação das terras
indígenas, que antes era responsabilidade da Fundação Nacional do Índio(FUNAI), quilombolas, antes era
responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o serviço florestal, antes
vinculado ao Ministério do meio ambiente.
49
Disponível em < https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/02/bolsonaro-transfere-para-a-agricultura-as-
atribuicoes-sobre-demarcacao-de-terras-indigenas-e-quilombolas.ghtml>, acesso em 24 de janeiro de 2019.
69
Esse capítulo pretende trazer para o debate elementos que contribuam para a
compreensão da importância de pensar o território quando da implementação de políticas
públicas para as mulheres, uma vez que essas relações impactam diretamente em como essas
políticas irão se operacionalizar e atingir as mulheres residentes nas favelas. Junto a isso,
pretende-se evidenciar o papel das mulheres na conformação e organização das relações nas
favelas, na luta por direitos e na proposta de alternativas para o enfrentamento de violações,
especialmente das práticas que contribuam para enfrentar à violência contra às mulheres.
Para isso utilizo como metodologia a análise de fontes bibliográficas, documentos
publicados por instituições governamentais, não governamentais, movimentos sociais e
matérias de imprensa sobre o território de Manguinhos a partir de 2010, ano em que se funda a
Casa da Mulher de Manguinhos, um Centro de Referência de Atendimento às Mulheres em
Situação de Violência dentro do território de favela, no escopo de implementação do Programa
de Aceleração do Crescimento-PAC e que três anos depois, em 2013, recebe também a
implantação do projeto de Unidade de Polícia Pacificadora-UPP, o que reconfigura as relações
no território impactando a vida das mulheres e de suas famílias.
50
Disponível em <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-07/chacina-de-acari-completa-hoje-25-
anos-de-impunidade-segundo-ong> acesso em 05 de outubro de 2018.
70
que foram assassinadas 21 pessoas moradoras da favela por policiais militares, ação que seria
um troco dos policiais pelo assassinato de quatro policias no território, supostamente atacados
por traficantes (DUTRA, 2003).
Em ambos os casos você tem o direito à vida, sendo violado, muito claramente por
agentes estatais. Desde a sua gênese os territórios de favela se constituem pela violação de
direitos da população perpetrados pelo Estado, e como vimos no primeiro capítulo a função era
excluir esse grupo. Mas, assim como os quilombos no período imperial, as favelas na
atualidade, são espaços de resistência ao poder hegemônico constituído (CAMPOS, 2012).
Se apontou no primeiro capítulo que simultaneamente ao desenvolvimento do sistema
capitalista em sua forma mundializada a partir da Europa também ocorria o massacre de milhões
de índios na América e de negros na África (QUIJANO, 2005), o que evidencia que a barbárie
e a violência são intrínsecos a modernidade em que vivemos. Nesse sentido, embora se constitua
a partir da revolução industrial na Europa um direito positivado, que visa regular os direitos,
esses direitos não são para todos e sim somente para quem se enquadra no projeto liberal, que
tem como base a propriedade privada, fundamentado em um ideário iluminista moderno, que
se torna inaplicável na sociedade capitalista, afinal a lógica da ampliação de direitos é
contraditória com a existência de classes sociais produzidas pelo capitalismo (YASBEK, 1997
apud POUGY, 2017).
Quando os marcos regulatórios se expandem especialmente a partir de 1948, com a
Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, embora ocorram pela luta dos
movimentos sociais, não há a exclusão das ações de exceção, pois a existência do Estado de
exceção é a única forma de manter a acumulação de capital (MENEGAT, 2017). Para esse autor
o Estado pode ser considerado uma máquina de guerra, máquina essa que vem servindo para
contribuir e manter o desenvolvimento da acumulação de capital, sendo o Estado de exceção o
meio pelo qual se garante a valorização do dinheiro.
Menegat (2017) traz a importante reflexão sobre como o poder bélico tem sido um
mecanismo para exterminar parte da população e que esse mesmo poder cumpre uma função
econômica importante no sistema capitalista, permitindo a circulação do dinheiro e a
acumulação de capital. Como exemplo é possível citar os Estados Unidos no ano de 2010,
quando o país passava por uma crise econômica sistêmica do modo de produção capitalista, o
setor bélico arrecadou 150 bilhões de dólares, sendo somente o “Pentágono responsável por
75% desse faturamento”51 ou seja, 112 bilhões de dólares foram gastos pelo governo norte
51
Disponível em https://exame.abril.com.br/revista-exame/a-industria-de-150-bilhoes-m0051720/ , acessado em
71
Mas como alguns profissionais e acadêmicos indicaram a UPP tem relação com projeto
de cidade53, criadas na relação direta com os megaeventos e as remoções, formando áreas
militarizadas protegendo as regiões que teriam grandes investimentos, ou seja, tem relação com
um projeto de cidade que é voltado para a mercadorização do espaço urbano e não para o
desenvolvimento social e econômico como seus autores indicaram.
Apesar da UPP se manteve a falta de políticas sociais básicas para essa população: a
inexistência de acesso a equipamentos de cultura, educação, políticas de saúde, saneamento
básico, coleta de lixo regular, quantidade de profissionais nos serviços públicos para
atendimento à população, mas, se fortaleceu a entrada de empresas de TVs por assinaturas,
empresas de telefonia nas favelas, aumentou a especulação imobiliária no entorno das regiões
desses territórios, saindo de 24% de valorização dos preços dos imóveis para 104%54, ou seja,
com o projeto inicialmente as grandes empresas puderam ter a população da favela também
16 de abril de 2018.
52
Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Censo_dos_Estados_Unidos_de_2010 , acessado em 16 de abril de
2018.
53
Disponível em < https://www.revistaforum.com.br/marcelo-freixo-globo-e-socia-de-um-projeto-autoritario-de-
cidade/> acesso em 22 de junho de 2018.
54
Pode ser visto em: <http://construcaomercado17.pini.com.br/negocios-incorporacao-construcao/127/o-efeito-
upp-a-pacificacao-de-favelas-no-rio-282612-1.aspx>, acesso em 27 de janeiro de 2019. Disponível também
em: < http://www.upprj.com/index.php/acontece/acontece-selecionado/proprietarios-de-imoveis-em-areas-
com-upp-estaeo-rindo-a-toa-com-a-valoriza/www.youtube.com/embed/TCmfbDcVUSc> acesso em 24 de
janeiro de 2019.
72
55
O cerceamento através do controle militar foi legalizado pelo uso da Resolução SESEG 013 de 23 de Janeiro
de 2007. Informação que pode ser confirmada pela publicação: < http://rioonwatch.org.br/?p=5388> acesso
em 20 de junho de 2018.
56
No Relatório do Fórum de Juventudes(2015) Jovem de Manguinhos relata: “ não podemos ser jovens, andar de
boné ou namorar no Colégio Luiz Carlos da Vila, que eles vem nos dar dura” (p.22)
73
Nesse contexto, se supunha que as UPPs teriam um fim, e o governo federal necessitava
de uma saída para responder a crise em que vivia, uma vez que não estava conseguindo articular
as bases políticas para realizar reformas profundas, como a reforma da previdência. A
intervenção federal no Rio ocorre com um cunho político e que permite o governo federal
abandonar, sem muitos prejuízos, a proposta da reforma da previdência, pois de acordo com a
Constituição de 1988 é proibido a votação de emendas constitucionais durante período de
intervenção (Observatório da Intervenção, 2018).
Os dados da intervenção evidenciam mais violência e barbárie perpetrada pelo Estado
no período, em um mês, entre fevereiro e março ocorreram 940 homicídios, 209 pessoas mortas
pela polícia, 19 policiais mortos, o número de tiroteios aumentou de 1299 para 1502, ocorreram
12 chacinas com 52 vítimas. Junto a isso os líderes do poder público, como o Ministro Raul
Jungmann relataram publicamente que o exército poderia realizar ações que violam direitos
constitucionais, como o uso de mandatos coletivos de busca e apreensão e até de prisão nas
favelas (Observatório da Intervenção, 2018).
Em sucessão várias foram as violações realizadas pelo exército nas favelas denunciadas
por diferentes órgãos e instituições:
Embora essa forma de intervenção seja uma medida de exceção, que deve ser usada
somente em situações extremas, pode-se identificar que no Rio de Janeiro tem se utilizado de
mecanismos, como a Lei de Garantia de Lei e Ordem para se intervir militarmente nos
territórios de favela de forma frequente, de 2010 a 2012 o exército ocupou o Complexo do
Alemão, de abril de 2014 a junho de 2015 permaneceram na Maré e a partir de setembro de
2017 passaram a ocupar a Rocinha, e a consequência disto são os altos números de “autos de
74
resistência”, que são a morte de civis pela polícia justificadas em decorrência de possível
resistência, o ano de 2017 atinge o mais alto número de 1124 casos de morte pela polícia, um
retrocesso de 10 anos57.
Somado a isso, existem denúncias de que a polícia vem se utilizando de helicóptero
blindado para atirar na população nesses territórios58, o discurso da violência para combater a
barbárie é fomentado pelo atual governador do Rio de Janeiro, que antes de sua posse já
defendia a utilização de snipers para atingir supostos criminosos que estivessem com fuzil em
favelas59, e em janeiro deste ano já se tem as primeiras denúncias de tal ação60, embora a
Secretaria de Segurança afirme não ter autorizado esse tipo de prática.
O Relatório Final do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro (2015) apontou como a
militarização da vida da população da favela vem trazendo inúmeras violações de direitos
humanos, que não ocorre somente pela circulação dos agentes do Estado fortemente armados
com aparatos de guerra como caminhões tanques, caveirões ou fuzis apontados na direção dos
moradores, mas pela presença militarizada do Estado diariamente com:
cada xingamento racista e/ou machista, em cada casa invadida com chave mestra, em
cada laje feita de esconderijo sem autorização, em cada equipamento de comunicador
comunitário apreendido por um policial ou por um soldado. A militarização dos
territórios é alimentada pela lógica bélica que constrói a ideia de que os moradores de
favelas, especialmente os jovens, são inimigos que precisam ser eliminados. É essa
mesma lógica que pauta toda a racionalidade estatal que elabora as políticas públicas
direcionadas pra esses territórios e pauta também as subjetividades das pessoas que
não moram nas favelas e que demandam mais e mais policiamento, que investem em
equipamentos de segurança privada e que legitimam as ações genocidas dos agentes
de Estado. O processo de militarização das favelas e das periferias do Rio de Janeiro
é uma das peças principais do funcionamento de uma engrenagem governamental de
controle de corpos dos jovens negros(as)em especial e territórios, através da qual o
Estado se reinventa cotidianamente. (Fórum de Juventudes do RJ, 2015, p. 6)
De acordo com o relatório esse processo de ocupação dos territórios de favela viola,
vulnerabiliza e coloca em maior risco a vida dessa população, especialmente da juventude negra
e mulheres, em especial das mulheres negras. Em uma lógica em que as/os moradoras/es
residentes em favela são o alvo inimigo de uma falsa guerra as drogas, as violações às mulheres
57
Segundo o OBSERVATÓRIO DA INTERVENÇÃO (2018) em 2008 foram mortos pela polícia 1137 pessoas,
o maior número há 10 anos.
58
Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/20/politica/1529519369_464493.html> , acesso em
20 de janeiro de 2019.
59
Disponível em < https://oglobo.globo.com/rio/witzel-quer-usar-snipers-para-abater-criminosos-com-fuzis-em-
favelas-23199100> , acesso em 20 de janeiro de 2019.
60
Disponível em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/parentes-afirmam-que-morto-em-manguinhos-foi-
baleado-por-sniper-da-policia-civil-23414399.html> , acesso em 31 de janeiro de 2019.
75
também são vistas como armas de repressão e a violência sexual como uma prática institucional
de minar a força dessas mulheres à resistência de tantas violações sofridas61.
No relatório Circuito de Favelas por Direitos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro
(2018), expressa as violações de gênero sofridas pelas mulheres residentes em favela com a
intervenção militar:
“Mora lá em cima uma senhora cega. Ela contou que um PM entrou na casa dela já
agredindo ela com um tapa na cara, ela guardava R$700,00 em casa. Eles pegaram o
dinheiro dela.”
“Uma senhora de 68 anos, já tendo sofrido 3 infartos e 1 AVC, estava sentada na porta
de casa e nos relatou vários episódios de invasão do seu domicílio por policiais
militares. Uma vez, ela estava sentada na porta de casa quando um policial insistiu
para entrar, mas a casa tem dois cachorros bravos. Como a senhora idosa estava
sozinha e não tinha forças para prendê-los, o PM começou a insultá-la. Eles fizeram-
na se levantar de sua cadeira para subir nela e, assim, subir no muro. Quando o PM
fez isso, o cachorro quase pulou em cima dele, fazendo com que desistisse da
empreitada. Em uma outra vez, eram 6h da manhã e seu neto foi acordado com um
fuzil na cara e PMs revirando coisas na casa. Infelizmente, essa senhora possuía
muitas outras histórias de violação de domicílio que não fui capaz de anotar tudo. É
uma ação que se repete inúmeras vezes e não importa se é uma senhora idosa.”
(Relatório do circuito favela por direitos da Defensoria Pública do estado do Rio de
Janeiro, 2018, p. 5-6)
Jovem Vidigal: “os policiais tentam sair conosco, vivem convidando nós para ir fazer
sexo. E as vezes quando não conseguem, chegam na boca e nos entrega dizendo que
estamos vendendo o tráfico e X novando, aí o próprio tráfico vem bate, esculacha e
até pode matar.”
Jovem Manguinhos: “a toda hora ficam nos chamando para sair e dizendo que se fosse
alguém da boca sairíamos”.
Jovens Jacarezinho: “na troca de plantão, tem upp que sai e vai na Cracolândia ver as
mina mais bonitinha para comprar uma trepada em troca de grana ou crack.”
Jovem da Vila Kenedy: “quando estamos andando em nossas Honda Bis pela favela
somos parada toda a hora, e na averiguação aproveitam para falar gracinhas e nos
apalpar, escrotos, fdp...”
61
São realizadas denúncias de violência sexual contra policiais na favela do Jacarezinho em 2014 após a ocupação
da polícia, disponível em: < http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/08/pms-de-upp-suspeitos-de-
estupro-no-jacarezinho-estao-presos-diz-policia.html> , acesso em 29 de janeiro de 2019. Os três suspeitos
foram condenados a 56 anos de prisão pelo crime: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/justica-condena-
tres-ex-pms-56-anos-de-prisao-por-estupros-no-jacarezinho-21501175.html> acesso em 29 de janeiro de
2019.
76
Jovem da Maré: “já vimos policiais xingando outras mulheres de piranha. Vermes.”
(Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro, 2015, P.13)
Nesses relatos nota-se a objetificação dos corpos das mulheres da favela, o seu
tratamento como não-sujeito, evidencia-se a violência de gênero física, psicológica, moral,
patrimonial, sexual, exploração sexual e institucional perpetrada por agentes estatais da
segurança pública à esse grupo, assim como várias medidas de exceção, que são cotidianas
nesses territórios.
Essas são as configurações dos territórios de favela na relação com o Estado, por isso,
aponto que uma das características peculiares dos territórios de favela, são a existência de
práticas de exceção perpetradas pelo Estado, ou seja, a existência de um Estado de exceção, em
que configura-se como uma ideia de “suspensão da Constituição”. O “estado de exceção
apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal” (AGAMBEN, 2004,
P.12), ele permite realizar ações que não estão nas leis, por que se concebe que ocorram
situações inusitadas que a lei não se aplica, mas ao mesmo tempo, a criação da possibilidade de
um estado de exceção está na lei, ou seja, é legitimada pelo direito público.
Carl Schmitt é o autor que estabelece a relação entre estado de exceção e soberania. Para
ele soberano é “aquele que decide sobre o estado de exceção” (SCHIMITT, 1922, apud
AGAMBEN, 2004). O autor se opusera aos princípios do pensamento político liberal
hegemônico de sua época, ressaltando a importância do soberano em contrapartida das
legislações, constituições, afirmava que em momentos de anormalidade institucional quem
decidiria seria o soberano e não a lei, para ele a constituição não poderia ser um obstáculo à
soberania e ao desenvolvimento da nação, e para isso era preciso valer-se de uma autoridade
soberana com poder de decisão. Nessa perspectiva, para salvar o Estado o soberano pode ter o
poder de não realizar a norma constitucional, assim, o soberano está simultaneamente, dentro e
fora do ordenamento jurídico, pois ao empregar o seu poder de suspender a validade do direito,
coloca-se legalmente fora da lei (SOUZA, 2010).
O Estado de exceção se justifica segundo esse autor pela situação de ameaça à unidade
política, e por isso, não pode ser limitado; a decisão é um elemento fundamental da forma
jurídica desse Estado e faz parte de todo o processo de criação do direito. Em síntese Schmitt é
um teórico que realiza a crítica a teoria do Estado moderno liberal, segundo ele, a decisão
política antecede a racionalidade de sua normalidade objetiva, sendo a unidade política
soberana, se possuir qualidade para decidir em casos fundamentais, mesmo que seja casos
77
62
Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/11/politica/1513002815_459310.html> acesso em 20
de janeiro de 2019.
63
Disponível em https://direitos.org.br/mulher-mantida-em-cela-com-20-homens/ , acessado em 23/04/2018.
64
Disponível em https://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/08/mulher-que-deu-luz-algemada.html , acessado
em 23/04/2018.
65
Disponível em: < https://www.revistaforum.com.br/juiz-e-procurador-ordenam-esterilizacao-de-mulher-em-
mococa/> , acesso em 20 de janeiro de 2019.
78
ou seja, política da morte, que significa como os governos fazem a administração das vidas das
quais o extermínio em nada afeta a ordem social, ou seja, a gestão dos refugos humanos
(BAUMAN, 2005), daqueles que são excessivos para esse sistema social.
Para banalizar a violência perpetrada para essa população é necessário separá-la, dividi-
la entre os corpos matáveis e não-matáveis, entre razão e natureza, assim como ocorreu na
colonização da América e África. Os corpos matáveis, os possíveis de serem escravizados,
foram os corpos negros, aqueles considerados destituídos de humanidade pelos colonizadores,
e a invenção da raça relacionada aos traços fenotípicos uma ação para legitimar as relações de
dominação dos territórios conquistados.
Na atualidade ainda se faz a separação dos corpos matáveis e não-matáveis, aqueles que
podem ser considerados humanos e os que não podem, ou seja, aqueles que podem exercer
direitos e os que não podem. Há quase um ano foi brutalmente executada no Rio de Janeiro a
vereadora Marielle Franco, uma liderança política, que enfrentou no espaço legislativo do
município do Rio de Janeiro a predominância masculina, branca e conservadora, com pautas
políticas que vislumbravam ampliar o acesso aos direitos às mulheres e aos grupos oprimidos
socialmente.
Marielle ousou e conseguiu ocupar um espaço que socialmente não era destinado a ela
como mulher negra e favelada, e que embora tenha conseguido vencer as estatísticas sociais
dos jovens moradores de favela após a adolescência quando foi mãe, a ascensão a esse status
não contribuiu para que ela conseguisse ultrapassar as estatísticas da grande maioria de jovens
negros e negras de favela desse país, que é prematuramente perder a vida sendo barbaramente
assassinado/a. O fato dela ser uma vereadora, não lhe retirou a condição de igualdade com
outros sujeitos negros pobres, que tiveram a vida ceifada seja pelo homicídio ou pelo
aprisionamento, como Amarildo, ajudante de pedreiro, assassinado pela polícia, como Cláudia
Ferreira, mulher negra assassinada com um tiro que teve o corpo arrastado pela polícia em uma
via pública ou como Rafael Braga, jovem negro pobre, que dentre tantos jovens brancos presos
com ele, foi o único condenado, com o argumento de porte de aparato explosivo, isso por que
carregava com ele pinho sol e água sanitária (ARAÚJO, 2018)66.
Um dos maiores horrores do assassinato de Marielle é constatar a existência de “fake
news” relacionando a vereadora a bandidos, traficantes, porque esta é a única relação possível
nessa sociedade para a população negra, pobre, residente em favelas. Esses são os indivíduos
66
Disponível em: <https://www.geledes.org.br/o-que-branquidade-tem-haver-com-o-caso-de-marielle-franco/ >,
acessado em 18 de junho de 2018.
79
sem humanidade nessa sociedade, os que podem sofrer qualquer tipo de violação e violência.
Essa narrativa colonizadora sobre os corpos dos favelados, que tem cor, gênero e classe, é
crucial para que a sociedade banalize e aceite como usual o processo de violência perpetrado
pelo Estado contra a população desses territórios, como se as práticas de exceção fossem
necessárias para “civilizar” os “selvagens”; não é à toa que periodicamente ouvimos discursos
de governantes e população justificando o aceite de possíveis “balas perdidas” contra os corpos
favelados devido à “necessidade” das incursões policiais que supostamente trazem “segurança”
a população e à cidade, isto é, o uso de práticas de exceção para garantir a “paz social” para
parte da população.
O Estado intervém nos territórios de favela de forma colonizadora, para isso é
importante compreender que a ordem jurídica europeia só compreende uma guerra legítima,
regulada, como uma guerra contra Estado “civilizado”, ou seja, contra o outro que seja
considerado civilizado, nesse sentido as colônias possuem “selvagens”, não são organizadas de
forma estatal, assim não possuem um mundo humano e por isso não existe a mobilização de
sujeitos soberanos, ou seja, cidadãos. Nesse sentido as colônias, ou as favelas, apontadas por
mim, são:
zonas em que guerra e desordem, figuras internas e externas da política, ficam lado a
lado ou se alternam. Como tal, as colônias são o local por excelência em que os
controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a
violência do estado de exceção supostamente opera a serviço da “civilização”.
(...)
Por todas essas razões, o direito soberano de matar não está sujeito a qualquer regra
nas colônias. Lá, o soberano pode matar em qualquer momento ou de qualquer
maneira. A guerra colonial não está sujeita a normas legais e institucionais. Não é uma
atividade codificada legalmente. Em vez disso, o terror colonial se entrelaça
constantemente com fantasias geradas colonialmente, caracterizadas por terras
selvagens, morte e ficções para criar um efeito de real.
(MBEMBE, 2015, P. 133)
segregação da população negra com relação aos direitos. Assim, a necropolítica, a política da
morte, a soberania aqui trazida pelo autor, tem a ver com a decisão de quem pode morrer, quem
é descartável, e essa parece ser a forma de gestão dos territórios de favela pelo Estado, pautada
no racismo articulando a classe e consequentemente o gênero, se lembrarmos que a maioria da
população desses territórios são de mulheres, negras, empobrecidas.
A política da morte, não é realizada somente com o assassinato físico dos indivíduos,
mas também com a construção do terror nesses territórios, que segundo Mbembe (2015) se
expressa como:
2015, p.146), assim, concebo que a necropolítica e o necropoder são as formas na qual o Estado
faz a gestão dos territórios de favela e de sua população, “criando formas novas e únicas da
existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes
conferem o status de ‘mortos-vivos’ ” (MBEMBE, 2016, P. 146).
67
A Enseada abrangia a área que hoje compõe diversos bairros distantes entre si como Cascadura, Riachuelo,
Manguinhos, dentre outros (OLIVEIRA, 2016).
82
removidos de cortiços da zona central da cidade, a partir das reformas urbanas pautadas em
visões eurocêntricas/eugenistas, como a Reforma Pereira Passos iniciada em 1903 e o plano
Agache desenvolvido entre 1927 a 1930.
Nessas reformas cada região da cidade tinha uma função específica, Manguinhos teve a
função de fornecer espaço físico e mão-de-obra necessárias para o desenvolvimento industrial,
o que aglutinou diversas empresas e gerou novas ocupações.
A década de 1980 em Manguinhos é marcada pela desativação de várias indústrias e
fábricas, os gestores públicos justificaram essa mudança com o argumento do aumento da
violência e reorganização do crime, mas ocultam, que esse período converge com os processos
de reestruturação produtiva e crise econômica em que o país passava. Paradoxalmente o Brasil
vivia um cenário de acirrada luta política, com as diretas já, com a luta pela Constituinte e a
abertura política com o fim do bipartidarismo e a insurgência dos partidos de esquerda.
Entre os anos 1990 e 2000 ocorrem novas ocupações que são incorporadas ao que hoje
é denominado de Complexo de Manguinhos, mas, com alterações a partir da implementação do
Programa de Aceleração do Crescimento- PAC68 realizado a partir de 2007 a 2010 na região.
Como apontado anteriormente os territórios de favela se configuram pela existência de
práticas de exceção perpetradas pelo Estado; a população tem cor, classe e gênero. Segundo
dados da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca-ENSP (2011) residiam em
Manguinhos 19.794 mulheres enquanto o número de homens era de 16.605, o que corrobora
com a afirmação de que as mulheres são maioria nas favelas. Embora os dados da Estratégia de
Saúde da família apontem para a existência de aproximadamente 36 mil pessoas residentes em
Manguinhos, estimativas feitas por grupos de pesquisa no território, apontam que existem cerca
de 50 mil (OLIVEIRA, 2016). A população feminina representa 53%, sendo maioria nas faixas
etárias, exceto na faixa dos 10 a 14 anos, além disso 56% das mulheres são chefes de família
(Plano de Desenvolvimento Sustentável de Manguinhos, 2011).
Em um contexto de práticas de exceção perpetradas pelo Estado, nós mulheres somos
protagonistas para a transformação social, somos as que mais ocupam espaços de participação
social nas favelas visando contribuir para a melhoria dos serviços no território. Em Manguinhos
por exemplo, mais de 70% dos conselheiros/as do Conselho Gestor Intersetorial-CGI do Teias
Escola Manguinhos são mulheres69, somos em maioria as que lutam por mais e melhores
68
Antes da implementação do PAC o complexo de Manguinhos era constituído por 11 favelas, após essa
intervenção passa a ser constituído por 15 (Plano de Desenvolvimento Sustentável de Manguinhos, 2011).
69
Disponível em: < http://andromeda.ensp.fiocruz.br/teias/conselhos>, acesso em 27 de janeiro de 2019.
83
serviços para nossas crianças, segundo dados do IBGE (2010) Manguinhos possuía 3110
crianças de 0 a 4 anos e segundo dados da prefeitura do Rio de Janeiro, esse território possui
duas unidades de Espaço de desenvolvimento infantil70 e três creches comunitárias que são
conveniadas com o órgão71, o que se tornou possível com os processos de mobilização
comunitária em torno do PAC72
Diante ao número de crianças existentes é visível que esse número de equipamentos não
responde a demanda existente, dessa forma é necessário ter acesso as outras redes e recursos
para o estabelecimento do cuidado e da divisão do trabalho reprodutivo, como contar com as
avós, parentes, vizinhas, fazendo surgir assim uma família extensa, ainda que as pessoas não
convivam na mesma casa (FREITAS, 2013).
A solidariedade das irmãs da periferia colaboram para a criação de uma rede alternativa
de proteção entre as mulheres e seus filhos que as políticas públicas não respondem, seja por
que atendem as crianças em tempo parcial, fora da realidade do horário integral de trabalho das
mulheres ou pelo não atendimento.
Em Manguinhos pode se identificar várias formas de organização de mulheres para
enfrentar as violações de direitos: Organização Mulheres de Atitude – OMA, uma organização
não governamental criada em 2010 por mulheres negras, com o trabalho direcionado para a
garantia e promoção dos direitos das mulheres com enfoque interseccional73 ; o Projeto Marias,
criado há quinze anos, que visa realizar ações para crianças com deficiência e suas famílias,
criado pela moradora Norma, um mulher negra, que foi vítima de violência obstétrica 74, tendo
a consequência de seu filho ter uma anoxia perinatal com sequelas severas que o deixou com
deficiência, sem assistência estatal de qualidade. Percebendo que não era a única mulher desse
território nessa condição, se articulou com as outras mulheres e criou o projeto, no qual
atualmente tem várias ações: uma sala de recursos para atendimento a crianças que tem
dificuldades de aprendizado, atividade esportiva para melhorar a coordenação motora,
atividades de artesanato para gerar renda mínima para a mãe uma vez que o recurso obtido da
família é o Benefício de Prestação Continuada-BPC que é direcionado para o cuidado com o
70
Disponível em:
<http://webapp.sme.rio.rj.gov.br/jcartela/publico/pesquisa.do?palavraChave=manguinhos&cmd=listPorBairr
o> , acesso em 03 de novembro de 2018.
71
Disponível em <http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/7901166/4213516/Crechesconveniadas2018.pdf> ,
acesso em 03 de novembro de 2018.
72
Para informações específicas acessar OLIVEIRA (2016).
73
Disponível em: < https://www.facebook.com/omamanguinhos/?ref=br_rs> , acesso em 11 de fevereiro de 2019.
74
Segundo a Fundação Perseu Abramo (2010), uma em cada quatro mulheres são vítimas de violência obstétrica
no Brasil e 60% das mulheres vítimas de morte materna são negras.
84
filho com deficiência e que é de apenas um salário mínimo, atividades culturais. Todas essas
ações são realizadas por pessoas voluntárias ou familiares de pessoas com deficiência que
residem no território de Manguinhos75.
Um sujeito político que tem a marca da forte organização das mulheres de favela, são
as “Mães de Manguinhos” que surgiram em 2013, movimento social que reúne as mulheres
desse território que tiveram familiares, em maioria são filhos, assassinados por agentes estatais
ou que estão no sistema prisional, elas lutam por justiça e para que as condições de vida nas
favelas se modifiquem. Assim como elas, são diversas as organizações desse cunho pelo Brasil,
temos as Mães de Acari que surgiram em 1993; Mães de Maio em São Paulo que surgiram em
2006 e muitas outras que compõe a Rede de Mães Contra à Violência do Estado76.
Existem outras ações, como o Fórum Social de Manguinhos, que na atualidade é um
espaço que reúne hegemonicamente moradores, mas em outros momentos também reuniu
instituições que atuavam no território e que teve um protagonismo para que minimamente
alguma demanda da população de Manguinhos fosse incorporada no Programa de Aceleração
do Crescimento-PAC, criado a partir de 2007 no território (OLIVEIRA, 2016), esse espaço
também é ocupado predominantemente por mulheres.
Quando a Casa da Mulher de Manguinhos é criada já existiam a maioria das formas de
organizações citadas, e quando da inserção do equipamento no PAC, nenhuma dessas
instituições ou movimentos foram consultados. Dessa forma esse programa pode ser
considerado uma política intrusiva, assim como aponta Segato (2014), no qual o Estado
Republicano intervém nas relações sociais constituídas por grupos, povos, que constituíram
formas de viver diferenciadas do padrão hegemônico burguês, através de ações invasivas,
desconsiderando as estruturas de relações e às formas de viver desenvolvidas pelo grupo,
reconfigurando-as, mudando os sentidos ao introduzir uma ordem que é regida por normas
diferentes da anterior.
A autora destaca que o Estado através das políticas públicas para esses grupos “les da
com uma mano, lo que y ales sacó com la otra” (SEGATO, 2014, p. 86), isto é, dá com uma
mão e tira com a outra, fazendo uma relação, tais políticas reproduzem essa lógica.
75
Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=m3VteYa9XKU> , acesso em 15 de outubro de 2018.
76
Podemos perceber o caráter de gênero e a luta das mulheres de favela nesses movimentos e no enfrentamento
das diversas violações cotidianas, para isso pode-se acessar o link da entrevista com um das mulheres que
compõe o movimento no Rio de Janeiro, disponível em <http://rioonwatch.org.br/?p=18634>, acesso em 22
de junho de 2018.
85
O PAC Manguinhos foi marcado pela ausência de um projeto técnico voltado para a
execução das suas obras sendo realizado a partir de um anteprojeto apresentado pelo governo
estadual baseado no Plano de Desenvolvimento Urbano do Complexo de Manguinhos de 2004
encomendado pela Prefeitura, tal ação permitiu aos gestores aumentar orçamento de algumas
intervenções, inviabilizar e postergar obras, incluir e retirar localidades do escopo das obras, ou
seja, alterar a forma inicial prevista no projeto de acordo com a vontade política e econômica
dos entes governamentais e dos interesses privados e escusos dos envolvidos (OLIVEIRA,
2016).
É nesse cenário que surge a Casa da Mulher de Manguinhos, instituição não prevista no
conjunto de equipamentos sociais no projeto inicial do PAC (OLIVEIRA, 2016), criada em um
espaço físico de 50m², divididos em uma cozinha, um banheiro e uma sala, sendo a sala
organizada com os móveis para se tornar dois espaços, um de recepção e acolhimento e o outro
para atender as usuárias, sendo que um armário e dois arquivos dividiam o espaço.
De acordo com o projeto inaugural a instituição tinha como objetivo: “Promover a
expansão dos espaços de atuação das mulheres da comunidade de Manguinhos, melhorando sua
situação social, econômica e política” (PEIXOTO, Jaqueline. Projeto Conquistando Espaços-
86
Casa da Mulher de Manguinhos. 2009). De forma geral o projeto tinha como premissa promover
e fortalecer a cidadania das mulheres, tendo uma atuação para informação, orientação e
encaminhamento das mulheres para a rede de equipamentos que executam as políticas sociais77
e articulação dos serviços que pudessem contribuir na garantia de seus direitos.
Embora em 2009 Dilma Rousseff, no cargo de Ministra da Casa Civil participar da
inauguração oficial das obras do PAC com o então Presidente Lula e discursar sobre a
importância da Lei Maria da Penha argumentando que a Casa da Mulher de Manguinhos era
uma das ações que o governo estava efetivando para acabar com o descaso do poder público
nas favelas (DORES, 2017, p.38), com a estrutura física já se percebia os limites dessa
concepção.
Além disso a instituição foi fundada sem equipe técnica, tendo somente uma
Coordenadora, que era formada em Pedagogia e uma Assistente Social, vinculada à Secretaria
de Assistência Social e Direitos Humanos, embora no projeto estivesse previsto também uma
Advogada, uma Auxiliar Administrativa e uma Recepcionista.
Mesmo sem estrutura de recursos humanos a instituição abriu campo de estágio para
estudantes de Serviço Social e do Ensino Médio. Assim, as atividades iniciaram com cinco
estagiárias de Serviço Social e uma estagiária de ensino médio. Nessa inauguração podemos
observar qualquer coisa menos prioridade do poder público no atendimento a mulheres em
situação de precarização ou risco social, menos ainda a prioridade no enfrentamento à violência
contra essas mulheres.
A Casa da Mulher de Manguinhos, assim como outras instituições do escopo do projeto
do PAC Manguinhos, como serviço público já nasceu precarizada, sem orçamento para sua
manutenção e sem estrutura de recursos humanos, que possuía em maioria estagiárias, o que
configurava o uso da modalidade de formação como meio para baratear a mão-de-obra, o que
consequentemente promovia a fragilização da execução das ações. Para além disso, a instituição
foi identificada como um local para prender homens, uma delegacia, o que inicialmente afastou
e dificultou o acesso das mulheres do território78.
Contraditoriamente, após seis anos de sua existência, era a segunda instituição
coordenada pelo governo estadual, que mais realizava atendimento nesse campo, só ficando
77
Compreende-se política social de forma ampliada, como instrumentalizadora de direitos que se situa no campo
das lutas sociais, no qual os direitos humanos são sempre conquistados (COUTINHO, 1995 apud POUGY,
2017).
78
Historicamente as formas de atuação da segurança pública nas favelas, principalmente de policiais militares,
não tem sido formas de proteção a essa população e sim de violação de direitos.
87
atrás do Centro Integrado de Atendimento à Mulher-CIAM Márcia Lyra, que existia desde o
início de 2000 no Rio de Janeiro e que é referência para a área em todo o Estado (Subsecretaria
de Políticas para as Mulheres, 2015). Isso demonstra a importância que esse equipamento teve
para o território e suas mulheres, e que mesmo não previsto no escopo de projetos do PAC,
provavelmente contribuiu para que essas mulheres tivessem acesso aos direitos e à condição
cidadã.
Embora tenha sido divulgado na inauguração pela Ministra da Casa Civil que a Casa da
Mulher de Manguinhos era um Centro Especializado de Atendimento a Mulheres em situação
de violência, inicialmente ela não tinha esse status, atuava em uma perspectiva de orientação,
informação e encaminhamentos, a instituição só se torna um Centro especializado a partir de
2012 quando passa a ter equipe técnica/administrativa completa conforme Norma Técnica dos
Centros de Referência de Atendimento à Mulher em situação de Violência (2006). O governo
estadual carece de documentos e regulamentações das instituições de atendimento à mulher no
estado do Rio de Janeiro, nesse sentido os serviços existentes sempre se pautavam pela Norma
Técnica Federal.
Quando se fala de políticas de enfrentamento a violência contra as mulheres, se fala a
respeito de:
Essa função parece ter sido compreendida pelas equipes da Casa da Mulher de Manguinhos e
por outros CRAMs existentes em territórios de favela como no Centro de Referência de
Mulheres da Maré- CRMM Carminha Rosa, projeto integrante do Núcleo de Estudos em
Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH) da Universidade Federal do Rio de
Janeiro –UFRJ, situado na Vila do João, no bairro da Maré, que atua a partir do exercício
interdisciplinar, através de atendimento e acompanhamento jurídico e psicossocial, com
orientação sobre as desigualdades de gênero, promove o fortalecimento da cidadania as
mulheres em situação de violência; realiza debates, estudos e propostas sobre a realidade social
brasileira, produz indicadores sociais, desenvolve e testa metodologias de formulação,
execução, monitoramento e avaliação de políticas sociais79.
Nas duas instituições são encontradas várias ações além do atendimento individual às
mulheres que visam fortalecer a cidadania em uma perspectiva de integralidade, como oficinas
temáticas, oficinas sociais80, cursos de qualificação, fomento a participação social81, parcerias
com empresas e instituições para acesso a vagas de trabalho82, parceria com serviços de saúde83.
Embora não seja exclusivamente função dos CRAMs, identifica-se a atuação do
equipamento na área do eixo de prevenção da PNEV (2011), que se realiza através de oficinas
educativas para a população em geral, ações sociais para informação e orientação, fomento a
seminários; no eixo do combate a atuação dos CRAMs se relaciona de forma integrada,
79
Disponível em: <http://www.nepp-dh.ufrj.br/crmm/apresentacao.html> , acesso em 10 de janeiro de 2019.
80
Disponível em: < http://www.nepp-dh.ufrj.br/crmm/projetos.html> , acesso em 05 de fevereiro de 2019.
81
Realização da Conferência Livre de Políticas para as Mulheres em Manguinhos, realizada pela OMA em parceria
com a Casa da Mulher de Manguinhos e outras instituições, disponível em:
<https://portal.fiocruz.br/noticia/pre-conferencia-livre-mulheres-de-manguinhos-discute-politicas-para-
mulheres> , acesso em 10 de janeiro de 2019.
82
É possível identificar várias ações realizadas pela Casa da Mulher de Manguinhos nessa perspectiva, disponível
em < https://www.facebook.com/Casa-da-Mulher-de-Manguinhos-180655578713386/> acesso em 10 de
janeiro de 2019.
83
Em 2015 a Casa da Mulher de Manguinhos realizou parceria com o projeto Apolônias do Bem, que oferece
tratamento odontológico gratuito para mulheres que vivenciaram situações de violência e tiveram a dentição
afetada, disponível em <http://turmadobem.org.br/br/nossos-projetos/apolonias-do-bem/> , acesso em 10 de
janeiro de 2019.
89
84
Disponível em: < http://portalsinan.saude.gov.br/dados-epidemiologicos-sinan> , acesso em 20 de janeiro de
2019.
85
Nesse documento parece existir uma subnotificação na região, que se evidencia como o não acesso as mulheres
residentes em favelas as Delegacias.
86
Disponível em: < http://andromeda.ensp.fiocruz.br/teias/situacao_de_saude>, acesso em 20 de janeiro de
2019.
90
Isso significa desconsiderar tudo que apontamos anteriormente que, constitui e faz parte das
relações nesses territórios.
Nesse sentido reforço a afirmação de Segato (2014) de que o Estado Republicano atua
na contemporaneidade de uma forma intrusiva, baseado na colonialidade/modernidade e que o
fracasso das estratégias para se intervir nas questões de gênero se deve a um olhar universalista,
tendo como modelo uma concepção eurocêntrica de gênero e as relações que o organiza. Existe
uma falta de compreensão para perceber as categorias próprias dos contextos para os quais os
projetos são formulados.
No eixo garantia de direitos humanos das mulheres, os CRAMs em territórios de favela
também colaboram na sua implementação, a articulação com empresas/instituições para
conseguir parcerias que possam promover a empregabilidade feminina, parcerias com
instituições educacionais para a realização de cursos de qualificações, a realização de grupos
de convivência, grupos de reflexão, todas essas ações podem fazer parte desse eixo, e tanto a
Casa da Mulher de Manguinhos conforme apontado anteriormente, como outros CRAMs
localizados em territórios de favela, promoviam essas ações87.
A compreensão universalista do sujeito mulher, que desconsidera as configurações da
região/ território em que as mulheres atendidas residem, sua cor ou classe, que imprime as
mulheres diversas formas de desigualdades e violência, consequentemente leva ao fechamento
desse serviço nos territórios, cito como exemplo o Centro Especializado de Orientação a
Mulher- CEOM Patrícia Acioli, do município de São Gonçalo, que era localizado no Jardim
Catarina, um bairro periférico do estado e que não conseguiu ampliar as ações e as formas de
acolher as mulheres residentes em favela, atuando somente na concepção do atendimento
individual e que está fechado desde o ano de 2016, com a justificativa dos profissionais de que
o território é um local de risco para o trabalho.
Já se apresentou que o território de favela possui em maioria mulheres, negras e pobres,
dessa forma pensar em políticas públicas para as mulheres desses territórios, necessariamente
requer que se compreenda as intersecções das opressões que as atingem, e as várias formas de
violência vivenciadas. Quando se analisa as políticas públicas para as mulheres construídas
desde 2003, se identifica que existe uma preocupação no campo teórico da construção das
87
Disponível em:
<http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1439848501_ARQUIVO_TextoANPUHNacionalFinal.p
df> , acesso em 10 de fevereiro de 2019.
91
políticas que relaciona a questão da raça e da classe, mas quando se volta para as ações na
implementação se nota a incompletude.
No II PNPM, lançado em 2008, no capítulo quatro que aborda o enfrentamento de todas
às formas de violência contra às mulheres, dentre às sessenta e nove ações distribuídas para
concretizar as prioridades desse eixo, somente duas ações abordam a questão racial, sendo
somente em nível de formação/capacitação. Como algo inédito, o Plano traz um capítulo
específico sobre o enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia, mas não tem nenhuma ação
específica para concretizar suas prioridades, indicando que as ações referentes a esse eixo estão
distribuídos em outros capítulos do plano.
Uma das metas desse capítulo é reduzir a taxa de analfabetismo das mulheres negras, de
13,38% para 11% no período entre 2006 e 2011, quando voltamos ao capítulo que fala sobre
educação inclusiva, uma das suas ações para ampliar o acesso e a permanência na educação de
mulheres é: “2.6.1. Promover a alfabetização de mulheres jovens e adultas; 2.6.2. Promover e
ampliar alfabetização de mulheres jovens em situação de prisão” (II PNPM, 2008, p. 68),
notamos então que se perdeu a perspectiva racial. Em todos os demais capítulos, quando se tem
nomeado, permanece somente a inserção da perspectiva racial em processos formativos.
O III PNPM traz o importante aspecto da transversalidade das políticas de gênero,
colaborando com a direção de que a política para a igualdade de gênero, não pode ser setorizada,
deve ser um esforço de todas as esferas seja em seu nível hierárquico com os governos estaduais
e municipais, seja em seu nível horizontal entre os diferentes ministérios. No que diz respeito a
inserção do recorte racial, permaneceu um capítulo específico sobre o tema do enfrentamento
do racismo, sexismo e lesbofobia, criando ações a partir das linhas de ações elencadas para
atuação, embora abrangendo mais aspectos, ainda permanece com uma perspectiva de
enfrentamento ao racismo a partir de processos formativos e educacionais. No capítulo do
enfrentamento à todas as formas de violência contra às mulheres, somente se percebe uma ação
nomeada explicitamente que relaciona a perspectiva racial, e também diz respeito a processo
de formação/capacitação.
Assim, identifica-se no arcabouço central das Políticas para às mulheres uma
perspectiva incipiente para enfrentar às desigualdades de forma interseccional, não dando a
devida relevância por exemplo à questão racial, que no Brasil se estruturou há mais de 300 anos
pelo sistema escravista de produção. Isso nos faz lembrar de Gonzales (1984) que debate sobre
a neurose cultural brasileira, que se constitui por uma cultura que não aceita falar sobre a
produção do seu racismo, que tenta se afastar mas que com isso reproduz a lógica do dominador,
92
diverso, nesse sentido é equivocado pensar uma política para esse grupo se baseando no
universal, porque nessa sociedade capitalista-patriarcal-racista, o ser universal é homem,
branco, heterossexual e rico. Se basear nesse ser universal é se basear na condição do
dominador, do colonizador, que é o padrão hegemônico branco, eurocentrado.
Na atualidade falar de pessoas em condição de pobreza, é falar de mulheres e de
mulheres negras, assim como também aponta Costa (2017) 73,88% dos titulares do Programa
Bolsa Família são negras/os, sendo que dos beneficiários titulares do programa, 93% são
mulheres e 68% são de mulheres negras. Dessa forma a maioria atendida pelo Sistema Único
de Assistência Social-SUAS é composta por mulheres, negras, empobrecidas, e a maior
surpresa identificada na pesquisa da autora é constatar que mesmo tendo esse perfil de público
as/os profissionais (Assistentes Sociais e Psicólogos/as) dos Centros de Referência de
Assistência Social-CRAS não esboçavam as opressões de gênero e raça como estruturantes das
desigualdades sociais que atingiam o público atendido, ressalta ainda que tanto na questão de
gênero como na raça, este último quando era lembrado, faziam referência a questões biológicas
e naturalizadoras.
Isso demonstra a importância do debate realizado nessa pesquisa para a categoria
profissional, uma vez que somos nós os principais profissionais que atuam nas políticas sociais,
especialmente na ponta, diretamente com as/os usuárias/os, e necessariamente de acordo com
os princípios do Código de Ética Profissional de 1993, precisamos compreender a realidade
histórico social do público que atendemos, a fim de não reproduzir práticas autoritárias,
policialescas e discriminatórias, assim como ocorriam no início da profissão. Costa (2017)
chama ainda a atenção, da importância do Serviço Social que atua em uma perspectiva de defesa
de direitos estar atento a essas questões, uma vez que sob o viés da defesa dos direitos em uma
perspectiva formalista legal, pode desconsiderar a realidade desigual como a vivenciada pela
população negra, com mais profundidade a das mulheres negras e reforçar condutas que
reproduzam as opressões de classe, gênero e raça.
Essa dificuldade apontada por Costa (2017) dialoga com Carneiro (2011) que aponta
que a defesa de políticas universalistas88 no Brasil, assume os mesmos propósitos, que o mito
da democracia racial, eles realizam a difícil tarefa de ocultar com o manto “democrático e
igualitário”, os processos de exclusão racial e social que preservam privilégios, adiando o
enfrentamento das desigualdades que moldam a pobreza e a exclusão social no país.
88
Lembrando que o conceito de universalidade que emerge com o Estado moderno tem base em um paradigma
de cidadão, ou seja, não são todos que são considerados cidadãos e que possuem direitos.
94
89
Pode-se observar as várias edições do Dossiê Mulher produzido pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de
Janeiro, que abrange em grande medida somente as formas de violência doméstica, familiar e sexual. Somente
nas duas últimas edições isso vem se alterando por que vem acompanhando também a mudança nas legislações
penais, na qual estabeleceu a importunação ofensiva ao pudor e o ato obsceno como crime. Na apresentação
realizada pela Subsecretaria de Políticas para às Mulheres do Estado na Audiência Pública da ALERJ em 2015
também não apareceu a violência de gênero institucional como uma das formas de violência contra as
mulheres.
95
tipo de reparação com a abolição, e continua sendo negada sua condição de cidadã/ão pelas
múltiplas formas de exclusão social (CARNEIRO, 2011).
Em uma perspectiva colonizadora não existe a concepção e o interesse estatal de
valorizar e potencializar as relações existentes nos territórios de intervenção em uma
perspectiva emancipadora, nesse sentido, a Casa da Mulher de Manguinhos, se tornou mais um
equipamento em territórios de favela que não recebeu manutenção, e assim como outros
equipamentos construídos no escopo do PAC, em 2015, uma grande parte fechou ou
funcionaram com profissionais voluntários90. Esse período se relaciona com o momento em que
as forças políticas se rearranjam, as forças conservadoras se articulam, em nível nacional a
primeira mulher eleita, sofre o processo de impeachment, que tem como resultado em 2016 a
sua destituição do cargo e a emergência de um projeto de sociedade conservador, onde as
políticas sociais são atacadas, estando as políticas para as mulheres no alvo da bancada da
bíblia91.
Com toda a conjuntura, a Casa da Mulher de Manguinhos fecha definitivamente as
portas em abril de 2016, por descaso do governo estadual, que permitiu a retirada de vigilantes
noturno da instituição, assim como, pela falta de pagamento por seis meses das profissionais
que realizavam o atendimento na instituição92, a instituição foi vandalizada, retirando das
mulheres do território o precário, mas único equipamento que vinha se construindo em uma
perspectiva de pensar e problematizar as relações de gênero, articuladas com a questão de classe
e racial, contribuindo para que as demais instituições que atendiam às mulheres nas adjacências
iniciassem uma reflexão sobre o campo e ações para o enfrentamento da violência contra as
mulheres93.
90
Disponível em < http://www.jb.com.br/rio/noticias/2018/04/24/legado-do-pac-manguinhos-sonho-frustrado-da-
rambla-falta-de-saneamento-e-predios-deteriorados/> acesso em 20 de junho de 2018.
91
Conjunto de deputadas/os, em parte evangélicos/as, organizados/as para pautar no congresso temas morais a
partir dos valores cristãos, tendo Deus e a família tradicional nuclear burguesa como argumento de defesa. Eles se
organizam na Frente Parlamentar Evangélica, embora 105 deputados/as dos 182 indicam possuir outra religião,
para aprovar projetos favoráveis a sua plataforma e barrar os que se opõe. Em torno de suas pautas, as que tem
prioridade são: impedir a realização do aborto, o debate sobre identidade de gênero nas escolas, o casamento entre
pessoas do mesmo sexo, a legalização das drogas. Disponível em: <
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/08/12/interna_politica,700090/cultos-alertas-e-
chamados-movem-a-bancada-da-biblia-no-congresso.shtml> , acesso em 02 de fevereiro de 2019.
92
Disponível em < https://blogueirasfeministas.com/2016/02/16/cartaabertadostrabalhadoresdaseasdh/> , acesso
em 10 de janeiro de 2019.
93
No fechamento temporário da instituição em dezembro de 2015, a Conselheira de Saúde do Segmento de
Mulheres e usuária da instituição grava um vídeo reivindicando a reabertura da instituição e aponta alguns
serviços importantes realizados pela Casa, disponível em:
<https://drive.google.com/file/d/0B7v0YV57auaCYXN4OEtIUU5OX3c/view> , acesso em 15 de janeiro de
2019.
96
3.3 A resistência das mulheres residentes em favela às violações dos direitos humanos
94
Disponível em < http://www.riosolidario.org/governo-inaugura-nova-sede-da-casa-da-mulher-de-manguinhos-
para-atender-vitimas-de-violencia/>, acesso em 10 de janeiro de 2019.
97
A violação dos direitos tem sido a marca da atuação do Estado nos territórios de favela
e essa ação atinge diretamente as mulheres, seja no que diz respeito a uma ação realizada
diretamente contra ela, ou contra suas famílias; nacionalmente 44% das mulheres residentes em
favelas são responsáveis pela família e 21% dos lares são formados por mães solteiras (DATA
FAVELA, 2015). Esse último dado pode informar alguns aspectos, sendo dois deles possíveis,
a existência do “aborto paterno”, caracterizado pela não responsabilização dos homens na
paternidade e cuidado dos filhos. No Brasil 5,5 milhões de crianças não tinham o nome do pai
na identidade95, esse é um efeito do patriarcado, que impõe à mulher a responsabilização pelo
cuidado dos filhos, não obrigando o homem a realizar o mesmo, mas também pode apontar,
como o alto índice de assassinatos de homens jovens, em maioria negros, nas favelas impactam
diretamente a vida das mulheres, ou seja, como o racismo que se articula com o patriarcado,
também causa grave impacto na vida das mulheres residentes em favela, sobrecarregando-as no
âmbito do trabalho, quando se veem obrigadas e cobradas socialmente a se responsabilizarem
pelo cuidado dos filhos sozinha, quando esse companheiro é assassinado96.
Dessa forma a violência de gênero é a divisão da sociedade em classes, que na sociedade
capitalista, separa os meios de produção da força de trabalho, faz com que os capitalistas se
apropriem do resultado do trabalho para acumular e enriquecer as custas do empobrecimento
de parte da população; é a inserção da especialização do trabalho, produzindo um trabalho
generalizado alienante; é a retirada do valor produtivo do âmbito doméstico, tentando confinar
as mulheres ao espaço reprodutivo privado e subalternizado. É o racismo que mata e encarcera
jovens negras e negros das favelas e periferias do Brasil de forma cada vez mais acelerada,
arrancando das mulheres desses territórios parte de si. É a violência doméstica contra às
mulheres, que assassina cada vez mais mulheres negras. É o sexismo, que tenta confinar as
mulheres aos lugares subalternos dessa sociedade; é a objetificação dos seus corpos. As
ideologias e projetos conservadores que negam o debate sobre gênero nas escolas e em
95
Disponível em: < https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2018/08/23/aborto-masculino-por-que-nao-
falamos-sobre-abandono-paterno.htm> , acesso em 27 de janeiro de 2019.
96
Segundo dados da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (2018), em 2017 ocorreram 1124 homicídios
decorrentes de intervenção policial em operações em favelas e bairros periféricos do Rio de Janeiro.
Disponível em: < http://sistemas.rj.def.br/publico/sarova.ashx/Portal/sarova/imagem-
dpge/public/arquivos/Relato%CC%81rio_Final_Circuito_de_Favelas_por_Direitos_v9.pdf> , acesso em 27
de janeiro de 2019.
98
possibilitar que meninas e meninos construam outro mundo possível, no qual a diversidade
exista de forma respeitosa.
São esses esquemas de dominação-exploração que estruturam as desigualdades que
atingem as mulheres residentes em favela, elas apresentam a vivência do que é existir sobre
processos de violação de direitos humanos, mas também nos trazem elementos para pensar a
possibilidade de projetos alternativos, uma vez que as formas de intervenção e de gestão do
Estado nesses territórios se caracteriza preponderantemente pela necropolítica e o necropoder,
não identificando-as como cidadãs, como pessoas com humanidade. O Estado Republicano atua
de forma intrusiva, não levando em consideração as relações e vivências dos territórios de
favela, reconfigurando suas práticas sociais, piorando a condição de vida das mulheres e de suas
famílias.
Mesmo nesse contexto de extermínio em que mulheres e homens da favela vivenciam,
a luta das mulheres residentes em favela se constitui como práticas de resistência aos processos
de violação perpetrados pelo Estado. Elas acabam por formar uma rede de proteção as mulheres,
suas famílias e sua comunidade.
O movimento Mães de Manguinhos, tem sido um importante movimento que tem
conseguido reunir as mulheres que tiveram os filhos assassinados pelo Estado. Essa organização
se torna relevante, pois é o local de encontro das mulheres e suas histórias de vida que se
fortalecem através da dororidade (PIEDADE, 2017), isto é, dores vivenciadas pelas mulheres
negras, que são em maioria as que perdem os filhos/companheiros pela política de extermínio
do Estado, e que juntas passam a atuar por justiça e por melhores condições de vida em seu
território (BRITO, 2017).
Algumas mulheres residentes em favela também tem se unido através do trabalho
reprodutivo para enfrentar as violações de direitos perpetradas pelo Estado 97, como a violação
do Art. 205 da Constituição Federal de 1988, que preconiza a educação como direito de todos
e dever do Estado. A autora Federici (2014) nos oferece um conceito denominado “políticas do
97
Projeto Escola Arco íris, desenvolvido por uma mulher, negra, pobre, com deficiência, moradora do Jockei,
território periférico de São Gonçalo, que através da sua própria condição, que era ter duas filhas bebês e não ter
aonde ou com quem deixa-las para poder trabalhar, devido a inexistência de vagas nas creches e nas escolas do
bairro para outras crianças, resolveu utilizar a sala de seu apartamento para inicialmente oferecer aula de reforço
para atender algumas crianças e criar o projeto Escola Arco íris, com a ajuda dos vizinhos conseguiu comprar o
material e adequar o espaço para receber crianças do território, atualmente atende mais de 100 crianças, e as
professoras são jovens do próprio bairro. Disponível em:
<https://www.facebook.com/pg/peaij/about/?ref=page_internal> , acesso em 10 de outubro de 2018; e o Projeto
Marias em Manguinhos citado anteriormente.
99
comum”, que aponta como o trabalho reprodutivo de mulheres na história serviu como um meio
de organização e consciência política do comum, criando práticas de resistência a violações de
direitos. A autora aponta:
Bem comum é “a repartição dos bens materiais e o mecanismo pelo qual se criam o
interesse coletivo e os laços de apoio mútuo” (FEDERICI, 2014, p. 153), pode-se dizer que é a
repartição comum da riqueza socialmente produzida. Para a autora a produção dos comuns
necessita antes de tudo de uma transformação no modo de vida cotidiano, visando rearticular o
que foi separado pela divisão social do trabalho no capitalismo. A alienação do trabalho
(MARX, 2013) não permite enxergar a que custos a vida social capitalista é produzida, o que
significa que a “produção da nossa vida se transforma, inevitavelmente, na produção da morte
para outros” (FEDERICI, 2014, 154).
Para Federici (2014, p. 154), “se o comum tem algum sentido, este deve ser a produção
de nós mesmos como sujeito comum”; é necessário pensar a relação dos comuns como relações
baseadas em princípios de cooperação e de responsabilidade: entre uns e outros e em relação
aos bens naturais.
Se na modernidade a criação do trabalho reprodutivo como esfera desvalorizada,
relegada ao espaço privado foi o meio pelo qual o capitalismo se apropriou do trabalho das
mulheres tentando enfraquecê-las e superexplorá-las, tem sido também através desses trabalhos
que as mulheres residentes em favela vem se unindo, apontando que o pessoal é político,
negando a dicotomia entre público e privado, se organizando e resistindo às mazelas do
capitalismo.
As mulheres residentes em favelas nos trazem pistas da importância de reconhecer as
motivações que nos une, algumas foram as mortes e encarceramento dos filhos/companheiros,
100
outras a falta de acesso a políticas de educação, outras a necessidade da participação social, mas
todas se entrelaçam pela necessidade de enfrentar as violências de gênero institucionais que se
articulam com as opressões de classe e de raça, dificultando ainda mais seu enfrentamento.
Na atualidade esse tipo de violência de gênero contra as mulheres não tem tido
visibilidade, mas, dentro do escopo da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra
as Mulheres, os CRAMs são os serviços que mais podem apontar a ocorrência desse tipo de
violência, a partir da identificação nos relatos das usuárias dos serviços, e potencializar com
isso a necessidade do seu enfrentamento; também são os serviços que mais podem responder
as necessidades das mulheres residentes em favela, uma vez que seu acesso independe de
registro de ocorrência em delegacia policial, contato este que afasta a mulher residente em
favela do serviço98, e que deve atuar em uma perspectiva de acolhimento das mulheres em
situação de vulnerabilidade pela condição de gênero, contribuindo para a superação da situação
de violência e para o fortalecimento e resgate cidadania feminina, além de realizar ações de
articulação para a formação de um rede de atendimento as mulheres (Norma Técnica de
Uniformização dos Centros de Referência, 2006).
Pougy (2010) chama a atenção para a urgência da articulação do campo das políticas de
gênero à dimensão das lutas sociais, que embora exista na macro política, se perde na esfera
micro. Diante a todo exposto sobre a luta e experiência das mulheres residentes em favela,
acredito que nós trazemos na prática a rearticulação do campo dos direitos humanos, não
permitindo que a violência de gênero se compreenda como parte segmentada das diversas
violações existentes, mas seu enfrentamento requer “unificar e restaurar o projeto de uma
sociedade sem desigualdades” (POUGY, 2010, P. 2), que vise a emancipação de mulheres e
homens, compreendendo que a ampliação da cidadania das mulheres é uma ação indispensável
para consolidar a democracia no Brasil.
98
A relação do morador de favela com a polícia deve ser feita através de várias mediações, nesse sentido a mulher
que opta por essa ação, deve fazê-la de forma autônoma, ciente do que isso causa para a vida cotidiana dela
no território em que vive.
101
Considerações Finais
de violência para as mulheres brancas, mas que não conseguem responder a demanda das
mulheres negras, que na atualidade são as que mais vem morrendo no Brasil.
Com a pesquisa foi possível identificar que os territórios de favela, são territórios negros
e femininos, eles possuem um gênero, uma cor e uma classe, são habitados em maioria por
mulheres, negras, empobrecidas, ou seja, são territórios ocupados em maioria por sujeitos que
são considerados não cidadãos a partir da epistemologia dominante. Não à toa é a essa
população que são direcionadas as práticas de exceção, constituídas como violações de direitos
perpetradas pelos próprios agentes do Estado, desde a sua origem. O Estado, em comparação
com o período colonial, atua de forma violenta e genocida com essa população da mesma forma
que os colonizadores atuavam com a população africana escravizada que foi trazida à força para
a América e com os povos originários que aqui encontraram.
Identifico que o Estado compreende os territórios de favela como uma colônia na qual
podem atuar de forma violenta contra sua população. Os relatos de violações das mulheres
apresentados evidenciam claramente um estado de exceção, já se imaginou uma mulher
moradora de um condomínio na Vieira Souto99 ser surpreendida em seu banho com um policial
abrindo a porta do seu box? Com certeza não, mas na favela isso acontece, e grande parte da
sociedade legitima essa prática, assim como legitimam a polícia militar realizar revistas em
passageiros em maioria negros/negras, nos ônibus que saem da zona norte ou baixada para a
zona sul da cidade, prendê-los caso necessário, na tentativa de impedir que essa população
acesse a zona rica do estado100.
Assim como na colonização, o argumento da pseudo civilização se faz presente na
atualidade quando o Estado atua com a população residente em favelas, não importa se uma
criança a caminho da escola será baleada devido a uma incursão policial101, o que importa é que
o Estado está ali para civilizar os selvagens! A necropolítica e o necropoder são as formas como
o Estado realizam a administração dos territórios de favela, o Estado soberano decide quem
deve morrer, quem é descartável nessa sociedade, e a produção desse ser descartável é realizada
no nosso cotidiano com ações de desumanização e da transformação de seres humanos em
coisas. As experiências do PAC e da UPP em Manguinhos, evidenciam-se como políticas
intrusivas, que não levaram em consideração as reais necessidades da população residente,
99
Rua da orla do bairro de Ipanema, uma das mais caras para se morar no Rio de Janeiro.
100
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/jornal-espanhol-afirma-que-rio-veta-pobres-negros-em-praias-
da-zona-sul-17333845>, acesso em 15 de janeiro de 2019.
101
Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/22/politica/1529618951_552574.html>, acesso em
15 de janeiro de 2019.
103
contribuíram muito mais para uma agenda econômica do que para um agenda social,
impactando a vida das mulheres com fortes violações de direitos humanos e com a ampliação
da precarização da vida na favela.
Se identifica nos relatos trazidos das mulheres, as intersecções entre as opressões de
classe, gênero e raça nas violações cometidas por agentes Estatais, assim como eram realizadas
pelos senhores no período escravocrata. O que significa a fala do ex-governador do Rio de
Janeiro, no período em que estava em exercício no poder executivo, preso por corrupção, Sérgio
Cabral, quando defende a legalização do aborto como meio para diminuir a violência no Rio de
Janeiro, alegando que os territórios de favela eram fábricas de produzir marginais? Quem gere
essa vida que ele diz ser marginal? São as mulheres residentes nesses territórios. Somado a isso
relaciona os territórios de favela à países africanos no qual a população vive em condições sub-
humanas e regiões da zona sul da cidade comparando com países europeus102.
As mulheres africanas escravizadas foram utilizadas como reprodutoras de mercadorias,
sendo seus filhos, as mercadorias. Elas foram obrigadas a reproduzir o tanto quanto
conseguissem para aumentar a população de escravos no período que a abolição do tráfico
internacional estava afetando o lucro dos senhores. Além de serem consideradas mercadorias,
sofriam as violações devidas a sua condição de ser mulher. A fala do ex-governador demonstra
que às mulheres residentes em favela para ele são reprodutoras de “marginais”, “bandidos”, de
“bichos”, assim como as mulheres negras escravizadas eram consideradas no período colonial.
Nessa concepção a legalização do aborto não passa pelo conceito do direito sexual e reprodutivo
dessas mulheres, na verdade é uma prática racista, sexista e classista contra as mulheres negras
residentes nas favelas brasileiras, bem como a esterilização forçada que vem sendo uma das
práticas de exceção perpetrada por vários agentes estatais incluindo o sistema judiciário,
conforme apontado na pesquisa.
Identifica-se na pesquisa que até 2003 às políticas públicas para o enfrentamento da
violência contra às mulheres eram incipientes e desarticuladas, com a criação da Secretaria de
Políticas para às Mulheres no governo “Lula” foi possível iniciar um processo de fortalecimento
dessas políticas, com a elaboração de diretrizes, conceitos, normas, articulação dos entes
federativos estaduais e municipais, ocorreu uma ampliação do número de serviços para
atendimento à mulheres em situação de violência, mas, a construção de diretrizes e o
102
Disponível em: < http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00-
CABRAL+DEFENDE+ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html> , acesso em
30 de janeiro de 2019.
104
fortalecimento das políticas públicas para as mulheres no governo petista não se consolidou
como política de Estado e sim de governo, mantendo sua precarização e facilitando o seu
desmantelamento, o que ocorre de forma mais avassaladora com o impeachment da Presidenta
Dilma Rousseff em 2016.
A PNEV(2011) construída tem uma concepção do enfretamento da violência contra às
mulheres a partir de uma perspectiva baseada na definição da Convenção de Belém do Pará
(1994), na qual é necessário compreender que enfrentar à violência contra as mulheres no
Brasil, é enfrentar todas as condições que dificultam ou impossibilitam que as mulheres
exerçam sua cidadania e acesse direitos. Nela contém a concepção de que as relações sociais de
gênero se articulam com as relações raciais e as relações de classe, intersecção que imprime
consequentemente maior desigualdade a vida de parte das mulheres, mas quando se analisa a
implementação da política a partir dos serviços de atendimento à mulheres em situação de
violência, se identifica que ela não tem conseguido abarcar as mulheres negras, empobrecidas,
residentes em favelas, não por acaso, o índice de assassinato de mulheres negras aumentou e o
de mulheres brancas diminuiu, a violência institucional de gênero que atinge essas mulheres
não tem sido reconhecida e os tipos de violência de gênero vivenciado por elas tem sido
invisibilizados, negando a elas que a sociedade enxergue sua realidade e condições e promova
ações para o enfrentamento.
Nesse sentido, se no escopo teórico da política se prevê reconhecer a diversidade das
mulheres brasileiras, na prática isso não tem se operacionalizado, o que significa que a sua
implementação está comprometida com um olhar universalista, como se existisse uma mulher
universal, que no imaginário social é reconhecida como a mulher branca, heterossexual e rica.
No caso das mulheres residentes em favela, podemos apontar que o racismo estrutural e a
criminalização da pobreza, não permite que essas mulheres possam ser enxergadas, que suas
vidas, condições sociais e lutas possam ser visibilizadas, por que na verdade sua existência é
negada e por isso não são reconhecidas como um grupo que necessitam de políticas públicas
para que possam ter acesso a direitos.
A história e a imagem social das mulheres negras estão fortemente relacionadas à
violência, o grau de destituição material, física e simbólica que o período escravocrata
representou para elas foi invisibilizado ou naturalizado nas narrativas hegemônicas da formação
social brasileira. Na atualidade, a condição das mulheres negras pouco se alterou, podemos
dizer que as mulheres negras residentes em favela apresentam graus extremos de destituição
material, política e simbólica, o que requer respostas mais profundas e estruturais do Estado.
105
103
Nesse documento parece existir uma subnotificação na região, que se evidencia como o não acesso as mulheres
residentes em favelas as Delegacias.
106
favelas que tiveram os filhos mortos pelo Estado, isso se chama violência institucional e recusa
a implementar a PNEV (2011) e colocar em prática o conceito de violência de gênero definido
pela Convenção de Belém do Pará (1994).
Mas ressalto que o atendimento por esses Centros à essas mulheres devem partir de um
pressuposto que as considerem como sujeitas de direitos e cidadãs, que levem em consideração
a história de vida dessas mulheres e as configurações dos territórios nos quais elas residem, e
não a partir de uma perspectiva colonizadora, com um olhar universalista, que tem como
modelo uma perspectiva eurocêntrica de mulher e das relações de gênero e de sua organização.
Dessa forma as mulheres negras residentes em favela demandam que o enfrentamento
da violência de gênero contra as mulheres requer também o enfrentamento do racismo e do
capitalismo, ou seja, apontam que uma luta inclui e se relaciona com a outra, não compreender
essa dimensão é fragmentar e segmentar a luta por uma sociedade sem opressões, mantendo
cada vez mais a vida das mulheres precarizada e vulnerável.
A PNEV (2011) possui quatro eixos estruturantes, a partir do trabalho na Casa da
Mulher de Manguinhos, foi possível identificar que se conseguiu executar ações no eixo
preventivo, pois várias ações educacionais, culturais, campanhas, foram realizadas visando
descontruir estereótipos de gênero e promover novos valores de combate à violência de gênero
contra às mulheres.
É possível dizer que o eixo de combate é pouco acessado pelas mulheres residentes em
favela, isso é possível analisando os dados apresentados pelo ISP, em que o número de registros
de ocorrência realizados nas delegacias que abrange a região de Manguinhos praticamente se
equiparam ao número de registros realizados nas delegacias que abrange a região dos bairros
do Rio de Janeiro com maior IDH, ou seja, em uma região com alto índice de violência e
pobreza difundidos por pesquisas e amplamente pela mídia, como pode a violência contra às
mulheres praticamente se equiparar a regiões que abrange por exemplo o bairro da Urca, em
que a população tem acesso a diversos serviços públicos com qualidade? junto com isso tem as
diversas violações realizadas por agentes estatais, como policiais da UPP, apresentadas na
pesquisa que foram perpetradas contra mulheres nas favelas, o que contribui para que às
mulheres não confiem nos serviços da segurança pública e não o acessem.
O eixo de garantia dos direitos humanos prevê cumprir as recomendações previstas nos
tratados internacionais especialmente as contidas na Convenção de Belém do Pará e CEDAW,
e como já apresentado, não é implementado para essas mulheres, pois a visão universal
eurocêntrica ainda se sobrepõe e invisibiliza as nossas experiências e lutas, não nos
108
reconhecendo como sujeitas de direitos, não é à toa que quando ocorre a construção da Casa da
Mulher de Manguinhos nenhum coletivo de mulheres existente no território é consultado.
É importante ressaltar que os CRAMs, de todos os serviços da rede especializada, é o
equipamento que as mulheres residentes em favela podem ter maior acesso, pois não dependem
do acesso à delegacia policial para realizar seu atendimento, o que afastaria essas mulheres, e
são os que devem atuar em uma perspectiva para a promoção e a ampliação da cidadania das
mulheres sendo serviços de porta aberta104, o que imprime uma importância a esses serviços,
podendo ser esse o primeiro equipamento em que a mulher em situação de violência busque
orientação, podendo realizar um trabalho que vá para além da perspectiva punitivista105,
podendo contribuir de forma mais aprofundada para a deslegitimação da sociedade patriarcal
em que vivemos.
Embora a Casa da Mulher de Manguinhos atendesse todas as formas de violência de
gênero que eram apresentadas pelas mulheres do território, desde a violência doméstica e
familiar como por exemplo a orientação à mulher sobre como oferecer assistência aos
filhos/companheiros que tinham sido encarcerados e elas não sabiam como acessar os presídios
que os familiares estavam, isso não é uma prática estrutural dos CRAMs, isso foi específico da
Casa da Mulher de Manguinhos por compreender que a violência de gênero é toda e qualquer
condição que inviabilize as mulheres a serem sujeitas de direitos, compreensão apontada na
Convenção de Belém do Pará (1994). Para atender as mulheres residentes em Manguinhos, foi
necessário reconhecer as configurações da vida dessas mulheres, dessa forma afirmo que para
diminuir o genocídio das mulheres negras que vem ocorrendo no Brasil, é necessário que os
CRAMS atuem colocando em prática o conceito de violência de gênero definido na Convenção
de Belém do Pará (1994), se não cada vez mais a Política de Enfrentamento à Violência Contra
às Mulheres se tonará fragilizada, desvalorizada, diminuindo as possibilidades de realizar
qualquer enfrentamento ao fenômeno.
O último eixo, a assistência, em 2015 a Casa da Mulher de Manguinhos estabeleceu
parcerias para o enfrentamento da violência contra às mulheres visando garantir integralidade
no atendimento, foram realizadas parcerias para atendimento às mulheres na área de saúde,
104
Porta aberta significa que a mulher pode acessar o serviço sem precisar de encaminhamento da rede de
atendimento.
105
Importante ressaltar que a maioria dos homens presos no sistema penal brasileiro são pobres e negros, ou seja,
temos um sistema penal que é seletivo, que contribui para aprofundar o racismo e a questão de classe no Brasil,
nesse sentido as políticas para as mulheres que vislumbrem uma mudança social não podem dar primazia ao
sistema penal como meio de resolver a questão do enfrentamento à violência contra as mulheres no país, isso
na atualidade é contribuir para o aprofundamento do racismo e da criminalização dos pobres, o que
contraditoriamente também atinge a maioria das mulheres residentes em favela.
109
empregabilidade, cursos de qualificação, dentre outros. Mas esse eixo também se relaciona com
o atendimento humanizado e qualificado às mulheres por meio da formação continuada de
agentes públicos e comunitários, dentre outros aspectos que se relaciona com outras instituições
especializadas no atendimento à mulheres em situação de violência, como a Defensoria Pública
e os Juizados de Violência Doméstica, que não são possíveis aqui de apontar análises pela falta
de dados.
Mesmo em um contexto de violações de direitos humanos, a pesquisa identificou várias
formas de organização de mulheres residentes em favela, que podem ser consideradas
resistências aos processos de violações perpetradas pelo Estado. Foram organizações a partir
do trabalho reprodutivo como o cuidado com os filhos que possuem deficiência enfrentando a
violação do direito à educação, a organização para a participação social embora se negue às
mulheres o direito de dizer como e de que forma querem a implementação dos serviços públicos
nesses territórios, a organização para a enfrentar o poder bélico e o extermínio das/dos jovens
desses territórios que mata cada vez mais as filhas e filhos das mulheres desses territórios. Essas
mulheres vem se organizando através das violações que vem sofrendo, trazendo a importância
de identificar o que nos une e como é possível coletivizar as lutas que muitas vezes aparentam
serem individuais, elas vem politizando e mostrando que o pessoal é político, negando a
dicotomia entre público e privado, se organizando e resistindo as mazelas desse sistema
capitalista global eurocêntrico, racista e sexista.
Assim, acredito que reconhecer iniciativas concretas em que o luto se transforma em
luta é tarefa fundamental no enfrentamento do desmonte do projeto de Nação em curso desde
o impeachment sofrido pela Presidenta eleita Dilma Rousseff (POUGY, 2018). Identificar nas
experiências e lutas das mulheres residentes em favela características que se assemelham as
políticas do comum, que utilizadas no passado em uma perspectiva feminista, possibilitaram as
mulheres o enfrentamento a violações de direitos humanos perpetradas pelo Estado, bem como
violações individuais perpetradas pelos homens (FEDERICI, 2014), me sinalizou como a nossa
luta, já é uma resistência ao projeto de desmonte de direitos que está em curso no Brasil, sendo
uma potência para rearranjar o campo político das lutas sociais em prol de um novo projeto
societário de emancipação humana.
110
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