Você está na página 1de 8

RHA, Vol. 4, Núm.

4 (2006), 87-94 ISSN 1697-3305

AS RELAÇÕES DOS ESTADOS UNIDOS COM A


AMÉRICA LATINA. UMA INTERAÇÃO
HISTORICAMENTE RECHEADA DE EQUÍVOCOS

Paulo Roberto de Almeida*


Recibido: 4 Septiembre 2006 / Revisado: 10 Octubre 2006 / Aceptado: 14 Octubre 2006

1. UM DESINTERESSE CONSISTENTE... –no início do século XX– e enquanto grande po-


tência militar –ao final da Segunda Guerra Mun-
O que mais caracteriza, essencialmente, o relacio-
namento da principal potência planetária –des-
de o final da Guerra Fria– e única potência hemisfé-
dial–, a América Latina tornou menos “negligen-
ciável”, não apenas pela própria proximidade geo-
rica –desde sempre– com seus vizinhos latino-ame- gráfica –e os problemas de segurança assim coloca-
ricanos e caribenhos é, provavelmente, um traço de dos– como também pela abundância de recursos
comportamento político que já foi identificado por naturais e pelas suas possibilidades enquanto mer-
analistas dessa própria potência há muitas décadas e cado para as indústrias americanas. Mas o conceito
que vem sendo consistentemente praticado a partir permanece relativamente válido para identificar uma
da sua emergência enquanto candidato hegemônico, postura geral em relação a uma região que, se não
regional e mundial, desde a primeira metade do apresenta caráter absolutamente estratégico ou
século XX, pelo menos: “negligência benigna”. O essencial em relação às preocupações e necessidades
benign neglect seria a tendência dos EUA a deixar de da superpotência do norte, tampouco representou
lado ou simplesmente descartar, como um incômo- alguma fonte de ameaças ou perigos reais, mor-
do menor, os problemas do continente ao sul do Rio mente durante o período da Guerra Fria.
Grande desde que eles não constituam alguma fonte Enquanto colônia inglesa precocemente autô-
de ameaça potencial para a segurança estratégica ou noma no Novo Mundo, desde o último terço do
econômica daquela potência. século XVIII, e tendo operado sua própria “revolu-
O conceito de “negligência benigna” não con- ção industrial” quase que contemporaneamente à
segue, obviamente, captar todos os matizes de um ex-metrópole, os EUA sempre olharam com certa
relacionamento rico, complexo e variado, ao longo condescendência altaneira e muita arrogância polí-
de um longo tempo histórico, que cobre diferentes tica –inclusive em vista das muitas diferenças lin-
aspectos dos interesses nacionais americanos, se- güísticas, religiosas e culturais–, para os seus turbu-
gundo a agenda e o tipo de interface que marcam lentos vizinhos do Sul, dos quais procurou manter
cada etapa de um longo itinerário de encontros e distância enquanto construíam seu próprio poder
desencontros, de relações nem sempre límpidas, nacional. O único choque em meados do século
amistosas ou destituídas de a prioris, e que se arras- XIX foi com os mexicanos, infelizes protagonistas,
tam penosamente no terceiro ou quarto escalão das como vítimas, da fase inicial da potência america-
prioridades externas dos EUA desde o período na, em sua expansão para oeste, seguindo algumas
anterior ao das independências hemisféricas. No recomendações de “manifesto destino” que então
período de construção dos estados nacionais latino- passou a marcar a irresistível ascensão da grande
americanos e, sobretudo, no contexto da emergên- nação anglo-saxã. Mais para o final do século, a
cia dos EUA enquanto grande potência econômica guerra hispano-americano marcou a fase agressiva

*
Diplomata. Professor no Uniceub, Brasilia. E-mail: pralmeida@mac.com.

© 2006 Revista de Historia Actual 87


RHA, Vol. 4, Núm. 4 (2006), 87-94 Paulo Roberto de Almeida

do nascente império, embora voltado para a sua inovador está presente do lado dos empréstimos
segurança imediata, mais do que para a construção financeiros, que passam a ser feitos igualmente a
de um império no sentido estrito do termo, no partir de Wall Street, e não apenas da City londri-
mesmo estilo que então faziam os europeus em na, como tinha sido o caso até então. Se opera, em
direção da África e da Ásia. O intervencionismo quase toda a região, a passagem da hegemonia bri-
arrogante de líderes políticos como McKinley ou tânica para a crescente supremacia americana, aliás
Theodore Roosevelt manifestou-se numa série de condizente com o enfraquecimento do Reino
desembarques e ocupações em seu imediato entor- Unido e o começo de desagregação do Common-
no geográfico, no Caribe ou na América Central, wealth que tomaria ainda mais impulso ao final da
chegando até à tolerarância com atos ainda mais Segunda Guerra Mundial.
agressivos, como pôde ser o bombardeio de Caracas
por canhoneiras européias por motivo de não paga- 2. COM ALGUNS MOMENTOS
mento da dívida contraída pela Venezuela com cre- DE ATENÇÃO
dores da Alemanha e da Itália.
Durante todo esse período –grosso modo, do
No início do século XX, com a ascensão de final do século XIX a meados do século XX– são
Theodore Roosevelt ao poder –na sequência do as- poucos os momentos de atenção que a nova potên-
sassinato de McKinley–, os EUA proclamaram o cia mundial concede à situação no hemisfério meri-
“corolário Roosevelt” à doutrina Monroe, isto é, os dional (ou seja, tudo além do Caribe e da América
países europeus deveriam abster-se de cometer atos Central, onde eram mais presentes os investimen-
de guerra e violar a soberania dos países da região, tos agrícolas e mineiro-petrolíferos dos EUA).
mas estes deveriam também honrar suas obrigações Washington havia tentado, inutilmente, unificar o
internacionais, o que compreendia o pagamento da continente nos planos comercial e monetário, por
dívida externa em boa fé. O Brasil, que tinha aban- meio da convocação de uma conferência interna-
donado uma década antes o regime monárquico e cional americana que, realizada na capital dos EUA
adotado uma constituição republicana –modifican- entre outubro de 1889 e o início de 1890, se pro-
do inclusive o seu nome oficial para “Estados Uni- punha estabelecer uma “customs union” e uma
dos do Brasil”–, buscou estabelecer com os EUA zona de “clearing monetário”, provavelmente ba-
uma relação especial, uma “aliança não escrita”, seado na prata, padrão utilizado nos EUA antes de
segundo um historiador da longa gestão (1902- sua conversão ao padrão ouro poucos anos depois.
1912) do Barão do Rio Branco à frente da chance- Da conferência não sairam resultados práticos,
laria brasileira. Obviamente, a relação especial senão a criação de um “escritório comercial” das
nunca chegou a ser concretizada em virtude, não repúblicas americanas que se converteu em União
apenas, das evidentes assimetrias de poder econô- Pan-Americana no entre-guerras, base da futura
mico e militar entre os dois países, mas também em OEA, Organização dos Estados Americanos (criada
função da disposição dos EUA de não querer em Bogotá em 1948).
melindrar o grande vizinho do Brasil, a Argentina,
ou de não pretender precipitar uma corrida arma- Washington só volta a conceder atenção ao
mentista na região. continente a partir da crise de 1929-1931 quando,
em função das crises generalizadas e da depressão
A partir da emergência econômica mundial da mundial, alguns dos países da região começam a
potência americana, as relações entre o norte e o sul flertar com os regimes fascistas da Europa, o que
do hemisfério ocidental passam a ser basicamente poderia representar uma ameaça aos negócios e
econômicas a partir de então, como aliás elas já interesses americanos. O presidente Franklin D.
eram desde o início das independências latino- Roosevelt renuncia então, embora discretamente,
americanas. O elemento inédito é que, à vertente ao recurso à intervenção unilateral e proclama a
puramente comercial que alimentava o relaciona- nova “política da boa vizinhança”, atendendo às
mento bilateral até então, se agrega o componente recomendações do secretário de Estado Cordell
dos investimentos diretos de empresas americanas Hull, que se esforçou por tecer uma rede de acor-
nas indústrias, nos serviços, nas plantações agríco- dos comerciais com os países latino-americanos,
las e nas unidades de mineração na América Cen- que nessa época estavam sendo submetidos a uma
tral e do Sul, que passam a receber transferência in- grande pressão da Alemanha para efetuar acordos
direta de tecnologia americana. Outro elemento na base de trocas compensadas, poupando as divi-

88
As relações dos Estados Unidos com a América Latina. Uma interação historicamente recheada de equívocos DOSSIER

sas escassas. Os EUA renovam propostas de com- tos estrangeiros como forma de estimular o desen-
pras garantidas de matérias primas, em troca da volvimento e aumentar a prosperidade na região.
abertura de mercados, mas não obtêm grande Os EUA foram consistentemente privatistas e
sucesso. As alianças só seriam reforçadas a partir do liberais em sua abordagem dos problemas da
início da guerra na Europa e, sobretudo, depois do região, só dignando-se a conceder alguns benefícios
ataque a Pearl Harbor, em dezembro de 1941, econômicos diretos quando seus próprios interesses
quando os países americanos, reunidos na confe- estavam em jogo. Foi o caso, por exemplo, da rea-
rência hemisférica de janeiro de 1942 no Rio de ção aos desafios da Revolução cubana nos planos
Janeiro, renovam suas promessas de solidariedade econômico, político e social (1959-1961), obrigan-
continental em face de ataques externos. Ainda do Washington a lançar a Aliança para o Progresso
assim ocorreram defecções, geralmente de cunho (1961-62), vasto programa de ajuda econômica e
neutralista, sendo a mais notável a da Argentina, de assistência técnica visando afastar os países lati-
cujas lideranças militares, sob o domínio do GOU no-americanos da miragem socialista.
–Grupo de Oficiales Unidos–, mantinham notórias
simpatias pelas ditaduras fascistas da Europa.
3. COMPONENTES DO RELACIONAMEN-
O continente vivia então a chamada onda na- TO EM PERSPECTIVA HISTÓRICA
cionalista-populista, ao abrigo da qual líderes polí-
ticos reformistas –como Cárdenas, no México, Var- No final dos anos 1950, a situação hemisféri-
gas, no Brasil, e Perón, na Argentina– empreende- ca apresentava alguns motivos de preocupação para
ram projetos de modernização nacional e de capa- os EUA, num contexto geopolítico no qual a
citação econômica que todos envolveram a nacio- União Soviética pós-Stalin –com a aparente conso-
nalização de ativos estrangeiros e o envolvimento lidação de Nikita Krushev no poder– apresentava
ativo do Estado nos processos de industrialização alguns atrativos para os países em desenvolvimento,
via substituição de importações, com várias restri- em especial para aqueles recentemente chegados ao
ções protecionistas aos interesses comerciais e de status independente: taxas de crescimento alegada-
investimentos de Washington. Ocorreram fricções mente superiores às das economias capitalistas,
ao longo desses processos, mas nada que colocasse consolidação da vocação industrial por obra e força
em cheque a supremacia dos EUA enquanto prin- dos estados nacionais e das virtudes do planeja-
cipal investidor, mercado e fornecedor de capitais mento centralizado (ou indicativo, em alguns
–investimentos diretos e vários tipos de financia- casos), indução do desenvolvimento via políticas
mento, inclusive os multilaterais, sob a égide das estatais fortemente dirigistas, controles dos fluxos
duas principais instituições controladas de perto de capitais e restrições às atividades de emprsas mul-
pelo Tesouro, o FMI e o Banco Mundial– para tinacionais (vale dizer, americanas). Nessa época,
todos os países da região. mesmo economistas “social-capitalistas”, como por
exemplo John Kenneth Galbraith, ou cientistas
No início da Guerra Fria, Washington voltou políticos declaradamente liberais, como Raymon
a tratar de sua própria segurança, constituindo um Aron, acreditavam numa possível convergência
esquema consolidando militarmente o princípio da entre os sistemas capitalista e socialista, com base no
solidariedade hemisférica: foi o TIAR, Tratado crescimento dos elementos “planificadores”, tecno-
Interamericano de Assistência Recíproca, assinado cráticos e gerenciais das sociedades ocidentais e a
em Petrópolis (Rio de Janeiro) em 1947, e que partir de um suposto “padrão uniforme” de políti-
constituiria, quase que ipsis litteris, a base concei- cas públicas que estaria sendo imposto por uma
tual do seu equivalente bem mais importante para aparentemente indistinta “civilização industrial”. O
o Atlântico Norte, o Tratado de Washington, de pensamento econômico latino-americano, sistema-
1949, que criou a OTAN. No mesmo momento, tizado pela Cepal com base em teorias não compro-
entretanto, os EUA recusavam o princípio mesmo vadas sobre a deterioração dos termos de intercâm-
de um equivalente ao Plano Marshall para a Amé- bio dos países periféricos, sob inspiração do econo-
rica Latina, tal com reclamado insistentemente pe- mista keynesiano Raúl Prebisch, estimulava políti-
los países latino-americanos reunidos em Bogotá cas setoriais –inclusive comerciais – de industriali-
–abril de 1948–, recomendando que esses países, zação à la List e promovia experiências de integração
em lugar de esperar por ajuda econômica oficial, com fortes componentes protecionistas (para fora) e
abrissem suas economias aos capitais e investimen- dirigistas (para dentro e reciprocamente).
89
RHA, Vol. 4, Núm. 4 (2006), 87-94 Paulo Roberto de Almeida

Os EUA continuavam a promover as virtudes mistas é justamente aquele no qual antigas situaçõ-
da abertura ao comércio e aos investimentos, mas es conservadoras são colocadas à prova num pro-
as políticas preconizadas passam a encontrar fortes cesso de transformação gradual, despertando tensõ-
resistências mesmo entre as elites da região, que es entre os grupos e alimentando expectativas que
continuavam a reclamar da falta de assistência dire- não conseguem ser realizadas de imediato. Foi o
ta e da escassez de capitais públicos. Uma viagem que ocorreu na América Latina naquela conjuntu-
do vice-presidente (de Dwight Eisenhower) ra, sobretudo a partir do desafio cubano à hegemo-
Richard Nixon pela América do Sul, no início de nia americana. No seu imediato seguimento, diver-
1958, se solda por um desastre, com manifestações sos movimentos guerrilheiros, inspirados nos
violentas em várias capitais, entre elas Caracas. Em modelos castrista e guevarista, tendaram reprodu-
face das insatisfações com o tratamento de “segun- zir, em países da região, a experiência vitoriosa da
da classe” reservado à região, o governo brasileiro Sierra Maestra –como nas nações andina– ou se
resolve patrocinar uma iniciativa de integração e de engajaram em tentativas de guerrilha urbana –co-
cooperação hemisférica, baseada no conceito de mo no Brasil– que levaram a um endurecimento da
solidariedade econômica, chamada “Operação Pan- reação conservadora, geralmente de cunho militar.
Americana”. Depois de alguma resistência da parte Com o agravamento da crise econômica e o
americana, a iniciativa resultou na criação, em aprofundamento da instabilidade política em di-
1960, do Banco Interamericano de Desenvolvi- versos países latino-americanos, uma onda de regi-
mento, que colocava os grandes países da região mes militares varreu a região, vários deles a pretex-
mais próximos do poder decisório, o que obvia- to de “salvar” seus países da “ameaça comunista”,
mente nunca foi o caso dos empréstimos concedi- que estaria sendo representada pelo aumento da
dos no âmbito do Banco Mundial. presença soviética na região via Cuba. O Brasil em
Enquanto o BID estava sendo constituído, Fi- 1964, a Argentina em 1966, a Bolívia logo em se-
del Castro já tinha tomado o poder em Cuba e guida, Equador, Uruguai e Chile mais adiante, di-
começava sua caminhada em direção ao socialismo versos países latino-americanos –com as exceções
e de uma aliança com a União Soviética. Essa opção da Colômbia e da Venezuela– rumaram para regi-
recolocou a América Latina no olho do furacão, do mes autoritários de base militar, alguns mais arbi-
ponto de vista dos “falcões” de Washington e pas- trários do que outros, mas todos comprometidos
sou a determinar a política dos EUA para a região com a visão anti-comunista que encontrava forte
pelos próximos quarenta anos. Como desdobra- apoio nos setores mais conservadores do establis-
mento imediato, ela obrigou os EUA a redobrarem hment americano.
os esforços em prol da modernização econômica da Pelo resto dos anos 1970 e até o início dos
região, com base no reformismo moderado –sob a 1980, a América Latina conheceria regimes milita-
égide de líderes políticos de inspiração social-de- res de claro corte autoritário –alguns deles de cun-
mocrática– e apoiando-se na promoção de novas ho nacionalista, como no Peru e, em alguns mo-
modalidades de ajuda econômica, desta vez prota- mentos, na Bolívia–, quase todos de inspiração
gonizada em uma iniciativa inteiramente patroci- anticomunista, sendo alguns com fortes propósitos
nada pelos EUA: a Aliança para o Progresso. modernizantes, como no caso do Brasil. A despeito
Concebida pelo presidente da universidade de Har- de que esses diferentes regimes autoritários tenham
vard, Lincon Gordon –que seria depois designado manifestado uma vontade inicial de colaboração
embaixador no Rio de Janeiro–, e movida a capitais com os EUA, as preocupações da grande potência
concessionais, cooperação técnica e fortes donati- com eventuais projetos de proliferação nuclear,
vos de alimentos, materiais para infra-estrutura com o respeito aos direitos humanos e a dissemina-
social e equipamentos ligados à saúde e habitação ção, nesses países, de políticas econômicas naciona-
popular. As ações da Aliança para o Progresso sujei- lizantes e protecionistas criaram as sementes de
taram-se, de todo modo, a critérios políticos, o que conflitos políticos, diplomáticos e comerciais,
continuou alimentando as desconfianças dos países geralmente de natureza bilateral, em outros casos
latino-americanos nas intenções de Washington. extravasando para o GATT ou redundando em re-
Como teorizado por Tocqueville mais de um taliações unilaterais –e ilegais, da perspectiva do
século antes, em relação à situação pré-revolucioná- GATT– dos EUA contra o país envolvido. Foi o
ria da França, o pior momento dos regimes refor- caso, por exemplo, do Brasil, cujos contenciosos

90
As relações dos Estados Unidos com a América Latina. Uma interação historicamente recheada de equívocos DOSSIER

comerciais bilaterais –a propósito de têxteis, do Chile, que iniciou um amplo programa de liberali-
café solúvel, de calçados– foram ainda mais agrava- zação e de abertura comercial desde o início dos
dos pela tentativa da grande nação sul-americana anos 1980, deu a direção que seria adotada logo em
de implementar um ambicioso programa nuclear seguida por diversos outros países da região. O
que não deveria ficar necessariamente limitado à México adere ao GATT em 1986, a tempo de par-
sua utilização civil ou sob a forma puramente ener- ticipar da Rodada Uruguai, o mais ambicioso pro-
gética. cesso negociador até então conduzido sob a égide
Os dois choques do petróleo, em 1973 e do sistema multilateral de comércio, que atendia
1979, e o aumento dos juros nos EUA, nesse últi- inclusive a diversas demandas dos EUA por maior
mo ano, tiveram forte impacto sobre vários países abertura internacional (como, por exemplo, nos
latino-americanos que eram importadores líquidos campos da propriedade intelectual, dos serviços e
do combustível e que tinham acumulado grandes dos investimentos). O novo padrão de reformas
dívidas externas na fase de bonança dos petrodóla- logo ficaria conhecido como “consenso de Was-
res. Vários deles, a começar pelo México e o Brasil hington”, pelo fato de incorporar receitas de ajustes
em 1982, foram obrigados a declarar inadimplên- setoriais e de administração das políticas macroeco-
cia de suas obrigações externas, negociar emprésti- nômicas nacionais que eram recomendadas pelas
mos-ponte de emergência com os mesmos bancos instituições mais importantes da capital americana,
credores –em sua grande maioria americanos– e a o FMI, o Banco Mundial e o próprio Tesouro dos
socorrer-se no FMI. As conseqüências foram desas- EUA.
trosas em termos de crescimento econômico pífio,
estrangulamento externo e aumento da inflação, 4. ELEMENTOS POLÍTICOS E ECONÔMI-
gerando forte descontentamento em amplos setores COS DO RELACIONAMENTO RECENTE
sociais. O desgaste dos regimes militares levou-os a No decorrer dos anos 1990, afastada a supos-
“cair em desgraça” em face de diversos erros acu- ta ameaça de sovietização da região, com o desmo-
mulados, entre eles o de uma suposta submissão ronamento da patria-mãe do socialismo –e a con-
aos ditames dos FMI ou subserviência aos desíg- seqüente “orfanização” de Cuba, cuja economia
nios de Washington. entra em crise profunda–, os EUA introduzem no-
Nos anos 1980, as relações dos EUA com a vos elementos no relacionamento com os países la-
região foram ainda colocadas sob tensão em virtu- tino-americanos. O problema da dívida começa a
de do zelo militante da nova administração Reagan ser resolvido mediante a aplicação de esquemas de
de afastar quaisquer ameaças de “expansionismo desconto do valor-face e de emissão de novos títu-
soviético” pelo combate direto –via invasão arma- los, com garantias do Tesouro, como evidenciado
da, como ocorreu em Granada, em 1983– ou por nas propostas feitas pelos funcionários do Tesouro,
mercenários interpostos –como ocorreu no caso da a exemplo de James Baker e de Nicholas Brady. Em
guerrilha anti-sandinista na Nicarágua, objeto de junho de 1990, o presidente George Bush (pai)
um embargo absoluto por parte dos EUA em 1985. propõe um novo padrão de relacionamento, que
Os EUA também descontentaram a junta militar não mais se limitaria aos velhos esquemas de assis-
argentina, em 1982, ao apoiarem o Reino Unido, tência econômica ou militar, mas se propõe unifi-
no caso da retomada do arquipélago das Malvinas, car, na esteira do acordo bilateral de livre-comércio
invadida por tropas argentinas numa desastrada com o Canadá (1988), todo o continente pela via
operação de “reconquista da soberania perdida”. Os do comércio, dos investimentos e da promoção dos
EUA também invadiriam o Panamá em 1989, mas direitos humanos e do desenvolvimento sustentá-
isso se deu no contexto da luta contra um ditador vel.
militar, Noriega, associado ao tráfico de drogas, A “Iniciativa para as Américas” de Bush pai,
mas ex-informante da CIA. que se inicia pela incorporação negociada do
Com o fracasso das políticas nacionalistas e México ao acordo de livre-comércio da América do
desenvolvimentistas na região, vários países empre- Norte (Nafta), se desdobra, logo depois, na pro-
endem um lento e difícil caminho em direção à posta feita pelo presidente democrata Bill Clinton
ortodoxia econômica e à estabilização monetária, de uma área hemisférica de livre-comércio (Alca),
empreendendo reformas que contribuiriam para extremamente ambiciosa, pois que não se limitan-
sua inserção mais afirmada à economia mundial. O do à liberalização do comércio mas estendendo-se a
91
RHA, Vol. 4, Núm. 4 (2006), 87-94 Paulo Roberto de Almeida

áreas tão amplas como as de compras governamen- Exchange Stabilization Fund –mecanismo criado
tais, da concorrência, dos serviços, dos investimen- durante a crise dos anos 1930 para socorrer o siste-
tos diretos e da propriedade intelectual. O proces- ma bancário dos EUA– com vistas a montar um
so, iniciado em Miami em 1994, desdobrou-se por enorme pacote de sustentação do México (US$ 48
quatro cúpulas presidenciais, diversas reuniões bilhões) que, ademais de créditos do FMI, teve
ministeriais e incontáveis reuniões técnicas de como contrapartida os recursos petrolíferos desse
negociação, mas logo encontrou formidáveis obstá- país. No caso do Brasil, o apoio dos EUA foi deci-
culos protecionistas, evidenciados na própria má- sivo para a montagem de dois pacotes preventivos
vontade do Congresso americano em liberalizar o de ajuda financeira –em 1998 e em 2001, por US$
comércio agrícola e em eliminar o subvencionismo 41 e 15 bilhões, respectivamente – que permitiram
extensivo nessa mesma área, ademais da relutante ao país saldar obrigações com seus credores exter-
disposição de diversos países da região –ente eles, nos, a maior parte dos EUA, justamente, sem
em especial, o Brasil– em abrir seus setores indus- precisar decretar insolvência –como o México–
trial, de serviços e as regras de investimentos e de ou moratória – como no caso da Rússia, em
propriedade intelectual segundo as exigentes 1998.
demandas dos EUA. A crise final, em 2001, do modelo argentino
As preocupações de Washington com a região, de conversibilidade e de paridade cambial –pelo
ao longo de todos esses anos, se situavam bem mais qual um peso argentino era equiparado a um
na questão do tráfico de drogas do que nas ameaças dólar– não recebeu a mesma atenção das autorida-
de natureza política, mesmo se ficava cada vez mais des financeiras de Washington, provavelmente por
evidente que os poucos grupos guerrilheiros rema- elas já considerarem inviável o recurso continuado
nescentes passaram a estar intimamente vinculados ao endividamento externo como opção de susten-
à produção e à comercialização de cocaina em dire- tação econômica. Na díficil conjuntura vivida pela
ção dos mercados avançados. Em virtude de uma Argentina, a partir da desvalorização e da flutuação
abordagem que privilegiava o “supply-side econo- do real brasileiro, em 1999, até o afundamento dra-
mics” da droga, os EUA começaram a dar apoio mático do país na crise econômica generalizada, na
financeiro e militar às operações de erradicação dos queda do presidente De La Rua, no final de 2001,
cultivos e de combate aos grupos guerrilheiros, em e na moratória de suas obrigações externas, foi por
especial às Farc, na Colômbia, país com o qual foi diversas considerada a opção da dolarização com-
concebida uma enorme e custosa operação de pleta da economia, como tinha ocorrido de manei-
repressão às fontes do comércio de ilícitos de todo ra igualmente dramática no caso do Equador e, de
gênero (envolvendo, também, lavagem de dinheiro forma bem mais administrada, em El Salvador. A
ilegal nos próprios bancos americanos). Bolívia e dolarização, que representaria provavelmente um
Peru também foram objeto da atenção especial dos crise irremediavel para o Mercosul, não foi adota-
serviços de inteligência e militares dos EUA, com da, inclusive por não interessar aos EUA, mas tam-
extensos programas de conversão de cultivos, ao pouco Washington se mostrou cooperativa no
passo que outros países recebiam apoio logístico e enfrentamento conduzido nos anos seguintes pelo
financeiro no plano das polícias especializadas. presidente Kirchner com a comunidade financeira
A última década do século XX foi ainda mar- internacional, confrontada ao calote quase comple-
cada por turbulências financeiras, no bojo do to dos empréstimos concedidos. O Brasil, em con-
intenso processo de globalização nessa área, a traste, ainda viveu, no decorrer de 2002, momen-
começar pela crise do México, em dezembro de tos difíceis em razão da crise argentina mas tam-
1994, que voltou a repetir-se na Ásia em meados de bém em virtude do seu próprio processo eleitoral,
1997, para logo estender-se à Rússia e ao próprio o que precipitou nova ameaça de instabilidade
Brasil no ano seguinte. As diversas crises ensejaram financeira e a montagem, pela terceira vez, de um
complicadas operações de salvamento, pré ou pós- plano preventivo de sustentação financeira, com o
insolvência, segundo os casos. Na crise do peso apoio político dos EUA, prevendo a disponibilida-
mexicano, a desvalorização descontrolada e a ame- de de US$ 30 bilhões do FMI em caso de necessi-
aça de perdas ainda maiores para os investidores dade. Foi o último grande pacote de ajuda oficial
americanos na economia do país vizinho determi- do grande ciclo de crises financeiras iniciado sete
naram que o Tesouro mobilizasse recursos do anos antes pela insolvência do México.

92
As relações dos Estados Unidos com a América Latina. Uma interação historicamente recheada de equívocos DOSSIER

5. O 11 DE SETEMBRO E O NOVO INTE- demonstrar o compromisso comum dos países


RESSE AMERICANO PELA REGIÃO americanos com o repúdio aos atos terroristas e em
No dia 11 de setembro de 2001, toda a favor da adoção de medidas conjuntas para preve-
América Latina (à exceção de Cuba) se encontrava nir e evitar esse tipo de ação inaceitável no contex-
reunida com os Estados Unidos (mais o Canadá) to do mundo civilizado. A Carta Democrática, que
em Lima, num evento que parecia representar uma se destinava a ampliar o alcance da Decisão 1080
etapa mais avançada do relacionamento político no adotada em Santiago do Chile em 1990, ficou tem-
hemisfério: se tratava da 18a Assembléia Geral da porariamente esquecida, tanto que o próprio
Organização dos Estados Americanos, durante a Secretário-Geral da OEA não foi muito rápido em
qual foi aprovada a “Carta Democrática Inte- invocá-la quando, poucos meses depois, irrompia
ramericana”, introduzindo oficialmente nos meca- em Caracas o movimento civil-militar que preten-
nismos da OEA a chamada “cláusula democrática”, dia derrubar o governo democraticamente eleito do
cujo texto reza que “A ruptura da ordem democrá- presidente Hugo Chavez, golpe, por sinal, muito
tica ou uma alteração da ordem constitucional que bem recebido em Washington.
afete gravemente a ordem democrática em um A partir de então, o panorama mudou signifi-
Estado-membro constitui, enquanto persista, um cativamente na América Latina, com uma deterio-
obstáculo insuperável para a participação de seu ração geral das condições econômicas, políticas e
governo nas sessões da Assembléia Geral”. sociais, mas também com a eleição de novas lide-
Naquela mesma manhã, os ataques terroristas ranças políticas, a começar pelo coronel Hugo Chá-
em Nova York e em Washington provocaram a vez, na Venezuela. A indiferença dos EUA em rela-
saída precipitada do Secretário de Estado Colin ção aos problemas econômicos e sociais de uma
Powell dessa reunião e, de fato, a partir de então, região que notoriamente não se situa no eixo prin-
uma outra série de prioridades políticas passou a cipal de suas preocupações, assim como a mini-
presidir essa nova etapa o relacionamento hemisfé- recessão provocada pelos ataques terroristas de 11
rico. O mundo ficou menos diversificado, os países de sembro se aliaram para deixar o continente
foram classificados em amigos ou inimigos e a luta entregue à sua própria sorte. Argentina entrou em
contra o terrorismo foi elevada ao primeiro escalão crise terminal e o efeito contágio não deixou de
das preocupações dos Estados Unidos. O México, abalar o Brasil e o Uruguai, obrigando a ambos a
cujo presidente acabava de fazer uma visita de esta- recorrerem a empréstimos emergenciais do Fundo
do aos EUA e que esperava colher frutos em termos Monetário Internacional. A taxa de crescimento
de facilidades imigratórias e de incremento das das economias latino-americanas, que tinha se
relações econômicas bilaterais, viu-se rudemente situado na faixa de 2,5 a 3% durante toda a segun-
tratado como possível fonte de perigos políticos, ao da metade dos anos 90, voltou a cair para cerca de
manter com o gigante do Norte uma fronteira 1% desde 2001. No Mercosul, que responde por
porosa através da qual todos os tipos de tráficos –de mais da metade do produto e do comércio regio-
pessoas, de drogas e de dinheiro– tenta se insinuar nais, a tendência para a baixa foi ainda mais impor-
nos EUA. Vicente Fox, aliás, tinha acabado de tante, com a redução à metade dos volumes de
anunciar no Congresso americano e na própria intercâmbio entre os países membros; o Mercosul
OEA que o TIAR (Tratado Interamericano de voltou a crescer nos anos recentes, mas ainda não
Assistência Recíproca, de 1947) era um instrumen- recuperou seu antigo dinamismo econômico. Os
to da Guerra Fria, merecendo, como tal, ser jogado preços dos produtos primários, que constituem,
na lata de lixo da história. ainda, a principal fonte de renda na região, volta-
ram a conhecer os patamares mais baixos das últi-
Nesse momento, quando não se tinha ainda mas duas décadas, e o nível das exportações deve
concebido uma estratégia hemisférica de resposta a ainda cair mais um pouco em 2002.
esses bárbaros atentados terroristas contra os EUA,
coube ao governo brasileiro, oportunamente relem- No plano político, o recrudescimento da agi-
brado pelos mexicanos desse anacrônico tratado de tação social e política atingiu quase todos os países
defesa conjunta contra as ameaças do comunismo, da América do Sul, em especial os andinos, com as
tomar a iniciativa de coordenar um movimento de exceções notáveis do Brasil e do Chile, ao passo que
solidariedade continental, mobilizando justamente a Colômbia, a Venezuela, a Bolívia e o Paraguai
esse vetusto tratado da Guerra Fria, como forma de voltaram a conhecer novos patamares de suas crises

93
RHA, Vol. 4, Núm. 4 (2006), 87-94 Paulo Roberto de Almeida

políticas respectivas, com perda de vidas humanas e 2002, a Argentina passou a viver oficialmente em
uma infeliz demonstração de incapacidade de suas regime de flutuação, sistema que também tinha
lideranças políticas em equacionar duravelmente a sido adotado pelo Brasil (junto com o sistema de
profunda divisão em que essas sociedades se encon- metas de inflação) em janeiro de 1999, no segui-
tram mergulhadas. O sistema político venezuelano, mento de mais uma crise cambial, logo após seu
já desmantelado pelas suas próprias mazelas e pelo primeiro acordo “stand-by” com o FMI, em
ariete populista do chavismo, encontrava-se total- novembro de 1998. O pacote montado então equi-
mente fraturado e incapaz de responder às necessi- valia a 41 bilhões de dólares, dos quais só a metade
dades de ajuste econômico e de relance do diálogo foi efetivamente sacada. O Brasil realizou mais dois
político. Depois do Peru, o país caribenho também acordos desse tipo, um em setembro de 2001, por
teve de passar pelos bons ofícios da unidade de um montante equivalente a 15 bilhões, e o mais
democracria da OEA para tentar restabelecer uma recente, em agosto de 2002, envolvendo a soma
aparência de consenso. A Colômbia, que elegeu um inédita de 30 bilhões de dólares, um dos mais
presidente de direita, Alvaro Uribe, adotou uma importantes pacotes de apoio financeiro na história
perspectiva militar, com o forte apoio de Was- do FMI.
hington, para forçar uma solução política a um A tradicional fragilidade financeira e o igual-
conflito de duas gerações. mente tradicional temor da abertura econômica
Não obstante, os países que estavam em Lima continuavam a caracterizar a América Latina no
no dia 11 de setembro de 2001, eram também os início do século XXI, como já tinha sido o caso no
mesmos que, desde dezembro de 1994, estavam final do século XIX quando os EUA propuseram
engajados no processo negociador de uma área de pela primeira vez um esquema de liberalização
livre comércio hemisférica, a Alca, iniciativa dos hemisférica. A Alca não conseguiu converter-se em
EUA e que corresponde aos desejos do “big busi- realidade em 2005, de acordo com o cronograma
ness” americano desde pelo menos a primeira con- original, em virtude da complexidade natural do
ferência internacional americana, realizada em processo negociatório e da dependência de vários
Washington em 1889/1890, e que já pretendia temas inscritos na agenda (ditos sistêmicos, ou nor-
constituir no hemisfério uma “customs union” e mativos) de resultados favoráveis que deveriam ser
uma “clearing union” (que devereia ser baseada na alcançados no âmbito da Rodada Doha da OMC.
prata, então a base metálica da moeda americana). A despeito da aprovação do mandato negociador
Muito pouco se fez desde aquela época, a des- pelo Congresso americano –agora chamado de
peito de tentativas recoorentes por parte do Im- Trade Promotion Authority– as pressões protecio-
pério, mas, nos tempos que correm, a fragilidade nistas setoriais sobre o Executivo parecem ser mais
visível da maior parte das economias latino-ameri- fortes do que os interesses das grandes empresas em
canas constitui uma oportunidade única para o favor de uma real abertura comercial, em especial
aprofundamento dos laços com o gigante do Norte nas áreas sensíveis de produtos agrícolas e labor-
e, talvez, até para um processo semi-voluntário de intensive industries, o que inviabiliza acordos mais
dolarização. Com exceção do Panamá, poucos paí- equilibrados. Ambos os processos redundaram em
ses, até o final do século XX, tinham feito do dólar impases negociadores e como tal foram paralisados
sua moeda nacional. Desde então, o Equador, em pelas desavenças.
catástrofe, e El Salvador, com um pouco mais de Em outros termos, nada no panorama social,
organização, optaram por abandonar suas moedas político ou econômico da América Latina parece
nacionais e adotar em seu lugar o bilhete america- distanciá-la de um passado tão distante quanto
no como meio circulante. Na Argentina, o ex-pre- atual: crise econômica, fragilidade financeira e
sidente Menem vivia ameaçando o Brasil e o dependência externa, concentração das exportações
Mercosul com a dolarização completa da economia em produtos tradicionais, aprofundamento da
nacional, na qual o dólar já desempenhava de fato pobreza, da instabilidade política e da insatisfação
o papel de moeda básica desde o Plano de social. De inédito mesmo, só a relutância dos mili-
Conversibilidade introduzido pelo ministro Do- tares em assumir um papel protagônico nessas cri-
mingo Cavallo em 1991. A partir de janeiro de ses recorrentes.

94

Você também pode gostar