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2 CANNABICA

Editorial
As associações cannabicas se organizam em todo o país e
esperamos que esse jornal contribua com esta tomada de consciên-
cia coletiva. A Cannabica, fiel à missão original de cultivar e flo-
rescer o associativismo traz para você um número especial, focado
no passado, no presente e no futuro destas organizações. Aqui
você poderá encontrar informações sobre cultura, ativismo, política,
humor, arte e acesso à saúde, reunidas aqui para esclarecer de-
finitivamente aos desavisados o que são e ao que se dedicam as
associações de usuários e pacientes de cannabis. Esperamos que
ao ler este jornal, converse com seus amigos e discuta sobre as
possibilidades de formarem em sua cidade uma associação e se
conecte às nossas iniciativas para com isso favorecer uma mu-
dança de mentalidade que priorize a liberdade ao próprio corpo, a
igualdade de acesso e a fraternidade entre caretas e maconheiros!
Desejamos uma excelente leitura!

J O conteúdo dos artigos é de responsabilidade de seus autores.


Direção Editorial Conselho Editorial

Sumário RAFAEL MORATO ZANATTO


Direção de Arte
CÂMO CRIATIVA E J.R. BAZILISTA
ARMANDO LACERDA
Artífice e professor de Humanidades

J ASSOCIAÇÕES CANNÁBICAS:
ÉDER CAPOBIANCO
Assessoria Jurídica Mestrando em Letras UNESP - FCL Assis
PASSADO, PRESENTE E FUTURO ........................... PÁG. 3
FERNANDO SILVA ”PROFETA VERDE”
J MACONHA TERAPÊUTICA: FABIANO CUNHA DOS SANTOS
Doutor em Antropologia UFBA
ALGUMAS ORIENTAÇÕES PARA OBTER A PLANTA NO Design Editorial
BRASIL .................................................. PÁG. 5 FREDERICO POLICARPO
Doutor em Antropologia - UFF
J DO LETRAMENTO AO CARNAVAL:
MACONHEIROS, FUMONS E GROWERS NO RIO DE JANEIRO JÚLIO DELMANTO
Doutorando em História USP
E EM BUENOS AIRES ................................... PÁG. 6

J QUER MONTAR UMA ASSOCIAÇÃO LEILANI ASSUNÇÃO


Doutora em História UFRN
CANNÁBICA?
ORIENTAÇÕES DA REFORMA DE COMO MONTAR LUANA MALHEIRO
Mestre em Antropologia - UFBA
UMA ASSOCIAÇÃO CANNÁBICA .................... PÁG. 7
LUCAS MAIA
J ASSOCIATIVISMO: Doutorando em Psicobiologia UNICAMP
BREVES NOTÍCIAS SOBRE AS ASSOCIAÇÕES CANÁBICAS
NO BRASIL ............................................. PÁG. 8 WWW.BOCADOLIXO.COM.BR LUCAS ALMEIDA PEREIRA
Doutor em História UNESP - FCL Assis
J ARROZ COM FEIJÃO ................ PÁG. 9 Capa
Câmo Criativa LUCIANO SIQUEIRA
J AS LOAS DE MACONHA: Desenvolvedor tecnológico e psicólogo
USP / UNESP FCL Assis
TROVAS, RITOS E CONTROLES SOCIAIS ................ PÁG. 10 Agradecimentos
J ESTRANHOS SINAIS NO CAMPO: ACUCA-SP; CULTIVE; ABRACANNABIS; MARCOS VERÍSSIMO
A HERMENÊUTICA DOS SINAIS NOS CAMPOS REVELADA COLETIVO DAR; CRISTIANO MARONNA; EDWARD Doutor em Antropologia - UFF
....................................................... PÁG. 12 MACRAE; ELISALDO CARLINI; EMÍLIO FIGUEIREDO;
J O ANTIPROIBICIONISMO NO BRASIL HOJE: FREDERICO POLICARPO, HENRIQUE CARNEIRO; RENATO FILEV
OS GOLPISTAS LADRAM MAS A CARAVANA NÃO PARA
MARCOS VERÍSSIMO, RICARDO NEMER; CAIO LEMOS; Doutor em Neurociências - UNIFESP
FÁBIO, CIDINHA E CLARIÁN.
......................................... P Á G . 13 THAMIRES REGINA SARTI
J PSICODÉLICOS E SAÚDE: Contato Doutoranda em História UNICAMP
O USO DE SUBSTÂNCIAS ALTERADORAS DE CONSCIÊNCIA CONTATO@CANNABICA.COM.BR
WAGNER COUTINHO ALVES
NO CUIDADO DE QUESTÕES SOCIAIS COMPLEXAS WWW.CANNABICA.COM.BR Mestre em Antropologia - UFBA
......................................................... PÁG. 14 Ilustração: cÂmo criativa
J DROGAS E EUGENIA :
TEORIAS CIENTÍFICAS A SERVIÇO DA MORALIZAÇÃO J Dedicamos o presente número à memória de Maria Antônia Goulart, paciente de Cannabis
................................................ PÁG. 15 Medicinal, amiga, ativista e apologista à cura!

WWW.CANNABICA.COM.BR
QUEIMANDO MITOS ACENDENDO FATOS

Associações Cannábicas
PASSADO, PRESENTE E FUTURO
*Rafael Morato Zanatto

O Clube dos Haxixins


Assim como o associativismo, o consumo de cannabis em confraria re-
monta da primeira metade do século XIX, na França, ao ser fundado o Clube dos
Haxixins. No clube, fundado por J.J. Moreau de Tours, Gérard de Nerval e Téo-
phile Gautier, participavam das reuniões mensais artistas como Charles Baudelaire,
Alexandre Dumas e Victor Hugo. Trajados de indumentárias do oriente consumiam
haxixe para dar uma luz em suas produções artísticas. Gautier em seus escritos
descreve a paisagem do hotel como um ambiente decorado a partir de elementos
orientais, egípcios e europeus. Após ultrapassar escadarias e antessalas, Gautier se
vê em uma sala repleta de formas humanas ao redor de uma mesa e ao fundo,
avista um Doutor ao lado do Buffet, sobre o qual se encontrava uma bandeja cheia
de pires de porcelana japonesa. “Um pedaço de patê ou compota esverdeada, mais
ou menos grande como o polegar; foi tirado por ele com uma espátula de um re-
cipiente de cristal, e colocado ao lado de uma colher de vermeil (prata banhada a
ouro), sobre cada pires. A figura do doutor irradiava entusiasmo; seus olhos faisca-
vam, suas maçãs do rosto enrubesceram de vermelhidão, as veias de suas têmporas
se projetavam em saliências, suas narinas dilatadas aspiravam o ar com força. ‘Isto
vos será retirado de sua porção do paraíso’, me disse ele ao me entregar a dose
que me correspondia. Cada um havia comido a sua parte, e nos serviram um café
à maneira árabe, quer dizer, com borra e sem açúcar.”
Os jogos de luzes, as pinturas, as máscaras, músicas, performances, versos
e números cômicos transformavam o ambiente em uma grande algazarra. As risa-
das incessantes motivadas pelas atrações e pelos vapores do haxixe levavam seus
membros ao êxtase, quase a morrer de rir, ao verem diante de si imagens monstru-
osas e burlescas, um verdadeiro carnaval de formas e onde poderíamos ouvir seus
integrantes dizerem coisas do tipo: “Meu Deus, como estou feliz! Que felicidade!
Eu nado no êxtase! Eu estou no paraíso! Eu mergulho no abismo de delícias”.

O Clube dos Diambistas do Maranhão


No Brasil, o primeiro clube cannábico de que temos registro remonta do Renasceram na Espanha
início do século XX. Trata-se do Clube dos Diambistas do Maranhão, localizado
no vale do Mearim, próximo a Pedreiras. Esta experiência chega aos dias de hoje A partir da fusão entre o associativismo e o consumo comum de cannabis,
graças ao texto de Francisco de Assis Iglesias (1917), publicado nos Anais Paulistas as associações cannábicas aparecem no final do século XX e início do século XXI
de Medicina e Cirurgia. Segundo Iglesias, “fumando maconha em assembleia ou como possibilidades concretas para que os usuários de maconha se apropriem des-
confraria, os fumantes reúnem-se, de preferencia, na casa do mais velho ou do que, tas experiências históricas para amparar, a partir do delineamento de uma tradição
por qualquer circunstância, exerce influência sobre eles, formando uma espécie de cannabica, a legitimidade para forjar associações que reúnam em um mesmo espaço
clube, onde, geralmente aos sábados, celebram as suas sessões”. a produção, distribuição e o consumo de cannabis sem fins lucrativos.
Em roda, todos sentados em cadeiras e vestidos de branco, com ou O modelo de associação cannabica nasceu na Espanha em 1993 e após
sem camisa, exalavam os vapores da diamba enquanto cantavam canções sem uma série de batalhas judiciais que ainda não terminaram, elas prosseguem fun-
acompanhamento musical: “Ó diamba sarabamba! Quando eu fumo a diamba, cionando em todo o território espanhol. São clubes que reúnem dezenas ou cen-
fico com a cabeça tonta, e com as minhas pernas zamba”. Foi com surpresa que tenas de associados e encontram-se organizados em algumas federações, onde
Iglesias notou que, apesar de tantos anos que os separavam da escravatura, ainda se discutem diretivas comuns aos interesses de seus associados, representados
acompanhavam o vício da diamba termos vindo com ela das costas africanas. O sempre por delegados escolhidos em assembleias de sócios. Tem-se a dimensão
consumo cultural de cannabis no contexto estava associado à forma de produção, cultural que cultivar maconha individual ou coletivamente não constitui delito
distribuição e consumo, próprios da tradição africana. Em ambos os clubes, o enquanto se respeitem certos limites e regulações e que é necessária a criação
uso da cannabis inseriu-se na esfera da recreação, parte vital de nossa vida, que de mecanismos de controle preventivo que permitam fiscalizar a atividade dos
poderíamos dizer, nas palavras de Alceu Maynard Araújo, que as distintas formas clubes sem necessidade de recorrer às forças policiais, assim como a substituição
de recreação “(...) tonificam a alma, dão saúde física, promovem a sociabilidade, do encarceramento por multa e outras medidas alternativas. Em 2015, ativistas
a auto expressão, trazem a alegria de viver. A recreação está para o homem e empresários apresentaram uma Iniciativa Legislativa Popular (ILP) que regula
(para seu corpo, alma e mente) assim como o alimento está para seu organismo”. a atividade dos clubes de cannabis. Na iniciativa estava incluída a obrigatorie-
dade de um livro que certifique as datas e os cultivos programados, registre as
técnicas utilizadas, assim como as quantidades colhidas e aptas para o consumo,
dados estes que deverão ser conferidos por um agrônomo. Além disso, o projeto
previa a regulação do transporte de cannabis do local de cultivo até o local que
se produzirá a distribuição controlada, além da entrega dos dados dos associados.
Em meados do ano passado, a iniciativa foi aprovada pelo Parlamento da
Catalunha. A lei determina que esses clubes não tenham fins lucrativos, que todos
os seus usuários devem ser maiores de idade, que consumam no âmbito privado,
seja com finalidade lúdica ou terapêutica. O limite para cultivo de cada associação
foi fixado em 150 kg anuais de maconha seca e a inseguridade jurídica no ato
de transportar a maconha foi resolvida com o estabelecimento de um documento
a ser emitido pelos responsáveis pelo clube, onde figure os dados da associação,
a identidade do transportador, o destino, a data, a quantidade e o tipo de produto
que está sendo transportado. Usuários maiores de 18 anos poderão adquirir até 20
gramas mensais, e maiores de 21 anos até 60 gramas. Para usuários terapêuticos,
não há limite. No interior dos clubes, como ocorre em Amsterdam, é vedado o con-
sumo de álcool no interior das associações e todos os usuários deverão receber no
clube informações sobre os riscos e danos que podem derivar de seu consumo. Foi
aprovada também a manutenção de um livro de registro com os dados dos sócios
e informações referentes a distribuição e transporte. A publicidade foi limitada.
Apesar disso, associações cannabicas de Madrid ainda padecem de inse-
guridade jurídica, pois nenhuma decisão regulatória em seu âmbito territorial foi

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tomada diante do novo fenômeno. Nos últimos anos, como o próprio departamento
de fiscalização antidroga de Madrid admite, o número de clubes passou de 30 para 180
sem que a instituição percebesse. Apesar disso, apenas 20 locais foram fechados e repro-
duzem o mesmo fenômeno produzido na Catalunha, à época em que o funcionamen-
to dos clubes padecia da ausência de critérios objetivos para regular suas atividades.

E conquistaram o mundo
Os Cannabis Social Clubs não são exclusividade da Espanha, também existem
na Bélgica, Uruguai, França, Reino Unido, Suíça, Eslovênia, Itália, Holanda. Na América
Latina, o Uruguai foi o país que mais levou adiante estes princípios e autorizou a for-
mação dos clubes de cannabis em seu. Atualmente existem no país cerca de 120 clubes
de cannabis e reúnem de 15 a 45 membros, que podem adquirir até 480 gramas por
ano. Após a colheita, os membros que trabalham na associação entregam aos usuários,
que são responsáveis por decidir o modo como vão consumir a ervas, se vaporizada,
transformada em óleo, unguento, etc. No Uruguai, a aprovação da comercialização em
farmácias e a produção coletiva para autoconsumo tem possibilitado aos clubes tra-
balharem em segurança e atender às demandas de seus usuários, protegendo-os do
mercado negro e da falta de controle de qualidade do produto adquirido por esses
meios. Como nos atenta Frederico Policarpo, é necessário examinar duas estratégias
fiscais no caso dos empreendimentos cannábicos. No modelo de mercado do Colora-
do, Estados Unidos, os impostos gerados pela produção e distribuição de maconha é
dirigido a áreas estratégicas, como a saúde e a educação e se insere em uma estratégia
mais ampla de, ao mesmo tempo, regular a produção de cannabis e, por outro, ofere- Na Espanha, a medida que as associações foram crescendo, a pioneira
cer uma contrapartida social que ajude a combater o estigma que persegue os usuári- FAC – Federación de Asociaciones Cannábicas passou a dividir espaço com outras
os da planta. No estado americano, 300 milhões de dólares provenientes da atividade federações, como a Cat Fac, da Catalunha e a Fac-Sur, da Andaluzia. No Brasil,
foram destinados para a construção e recuperação de unidades de ensino. No caso do acreditamos já haver associações suficientes para tratar da organização de uma
Uruguai, a modelo de regulação adotado não se baseia na arrecadação de impostos, federação pautada em valores como o mutualismo e a solidariedade para levar a
mas justamente na desoneração deste com a finalidade de reduzir o preço da cannabis frente o projeto de auto regulação da cannabis. Até aqui, procuramos estabelecer
legal para combater via mercado o comercio ilegal da planta. Como resultado desta noções básicas sobre como funciona uma associação cannábica e qual sua missão.
política, o Uruguai conseguiu reduzir em 18 % o índice de crimes relacionados ao nar- A partir daqui, você poderá participar deste novo fenômeno que se desenvolverá no
cotráfico. país como alternativa ao mercado legal e ilegal. Leia abaixo algumas orientações
No mundo, os Clubes Cannábicos são uma realidade, não porque assim o da REFORMA – Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas.
quiseram as autoridades, mas pela insistência de usuários que decidiram cultivar can-
nabis para consumo próprio no interior de associações, que congregam em seu interior Da utopia à realidade
usuários medicinais e recreativos da planta, sem qualquer distinção. No Brasil, lobistas
e aproveitadores tentam diariamente atacar o modelo e utilizam de associações que Há alguns anos, a regulação social da maconha era tratada como uma possibi-
servem de verdadeiras fachadas para seus interesses comerciais. Nesse quadro, asso- lidade fora do horizonte histórico pela esmagadora maioria do planeta, entre usuários,
ciações idôneas e legitimas são atacadas através de calúnias e ameaças por defender desconhecedores e opositores preconceituosos. Após a ampliação do acesso à infor-
um modelo regulatório de cannabis que privilegie o acesso universal aos benefícios mação, o conhecimento referente aos novos modelos de gestão da cannabis experi-
da planta em todas as esferas, cujos princípios defendem uma produção sem fins lu- mentados no mundo escapou pelas frestas da torre de marfim e alcançou à sociedade,
crativos e que valorize, em seu interior, a solidariedade entre os usuários de cannabis. que de pronto passou a ansiar um mundo onde as lufadas progressistas pudessem
Diante do atraso brasileiro na questão e o grande volume de informações disponíveis, alimentar as velas de cânhamo da história. Se há alguns anos falar de legalização era
aos detratores do associativismo resta o sonho de enriquecer em um mercado regula- uma coisa de doidão imaginativo sem vínculo com a realidade, os sucessivos esforços
do enquanto que seus defensores, reunidos por interesses e objetivos comuns, man- do ânimo antiproibicionista provaram que hoje a regulação da maconha está cada vez
tém como objetivo central democratizar o acesso e os benefícios dessa planta milenar mais próxima, apesar dos antigos e íngremes obstáculos que persistem. Podemos veri-
para todos. ficar uma profunda mudança no imaginário social. Assim como a Marcha da Maconha,
Para a associação ser capaz de transformar ideias em práticas efetivas, seus as publicações cannábicas e eclosão de novos coletivos, as associações cannábicas são
membros devem ambientar os espaços de discussão das Marchas da Maconha em hoje uma realidade no Brasil. Outrora consideradas proposições fantasistas, hoje os
nível nacional. Deste modo, as associações podem favorecer nestes espaços o debate modelos autossuficientes de regulação da maconha demonstram que a brisa utópica
de ideias e práticas cooperativistas, amparada em valores como o apoio mútuo e soli- de outrora ganhou corpo e agora participa diretamente no forjar da realidade. Diante
dariedade. O modelo, em médio prazo, pode transformar-se em verdadeiro laboratório destas considerações, acreditamos ser necessário tratar de alguns aspectos referente
da prática associativa no interior das Marchas da Maconha, propondo atividades pon- à proposta utópica da REFORMA, ao mobilizar o ativismo na tarefa de formar clubes e
tuais que ampliem a difusão de ideias e práticas salutares ao desenvolvimento da provocar um fato social. O que a rede propõe é a inversão do mundo pela utopia, pela
cultura cannábica em todas as esferas, fator indispensável para o fortalecimento do força persuasiva de suas ideias e mediante a construção de associações canábicas, con-
ativismo. Ao pensarmos na expansão deste modelo seguindo a ampliação das Mar- struir um contra modelo que poderá, pelo contágio, propagar-se por toda a sociedade .
chas da Maconha, as associações podem fortalecer-se federativamente, como é o caso Ao contrário do propagado por antiutopistas liberais e desinformados, o pensamento
das associações espanholas. A formação de uma ou mais federações pode favorecer a utópico não destrói ou despreza reformas reais na sociedade, muito pelo contrário, o
disseminação de ideias e experiências que possam resultar na construção de modelos pensamento utópico leva ao aperfeiçoamento. “Reformas realistas ou mudanças soci-
adequados à singularidade de cada região do país, ampliando a consolidação deste ais exequíveis coexistem com o utopismo e são, com frequência, por ela alimentadas ”.
modelo alternativo. A imaginação tem um papel fundamental ao nutrir o utopismo e ameaçam as pautas
totalitárias ou monolíticas, como o discurso fácil de guerra às drogas. Se há alguns
O papel das federações canábicas anos, modelos como o associativismo cannábico estavam fora do horizonte histórico,
isso se deve ao fato de que a imaginação obedece suas configurações sociais e históri-
Nos últimos anos, temos acompanhado a eclosão de associações canábicas cas. Hoje o fracasso da política de drogas motiva parcela significativa do antiproibi-
por todo o país, mas ainda o número brasileiro é pequeno diante da enorme missão cionismo brasileiro a propor o associativismo focado no autocultivo e cultivo coletivo
que tem em um país das proporções continentais como o Brasil. A própria redação demonstra que o que outrora era utopia hoje assume contornos palpáveis de reali-
deste manual visa favorecer a disseminação desse modelo de gestão da cannabis, dar dade: “Ligar uma paixão utópica a uma política prática é uma arte e uma necessidade.
um leve empurrão em uma ideia que cada vez mais ganha adeptos. Na Espanha, o Mas, com o estreitamento das alternativas políticas, isso pode ser mais difícil do que
forte crescimento dos clubes de cannabis foi acompanhado da formação de feder- nunca; não obstante, eu acredito que possa e deva ser feito. Sem um impulso utópico,
ações de associações como espaços para a discussão de pautas comuns entre as enti- a política se torna pálida, mecânica e frequentemente sisifista: ela conserta os vaza-
dades. A federação é um contrato, aliança, tratado ou convênio através do qual muitas mentos, um por um, enquanto os anteparos cedem e o navio afunda. Certamente os
associações, comunas, grupos de comunas se obrigam recíproca e quantitativamente vazamentos devem ser estancados. Contudo, talvez precisemos de uma nova embar-
uns aos outros para um ou muitos objetivos particulares, cuja responsabilidade se in- cação, uma ideia facilmente esquecida quando os níveis de água sobem e a tripulação
cumbem os delegados da federação. Os membros federados não apenas estão obriga- e os passageiros entram em pânico”. Provocar o delineamento da realidade a partir
dos igualmente e comutativamente uns aos outros, mas também ao celebrar o pacto do espírito utópico é hoje, no Brasil, frente a paralisia das instituições democráticas a
se reservam individualmente mais direitos, liberdade e autoridade. Em termos gerais, estratégia mais viável para alcançarmos uma nova política de drogas em
uma federação tem por objetivo garantir às associações confederadas suasoberania,
seu espaço privado e a liberdade de seus associados, regular suas diferenças e prover,
por medidas gerais, tudo o que contribua para a prosperidade e a segurança comum.
A autoridade encarregada de sua execução jamais poderá prevalecer sobre seus con- * Historiador, Mestre e Doutorando em História UNESP -FCL-Assis, pesquisador do
stituintes, ou seja, as atribuições federais jamais podem prevalecer sobre as decisões grupo Maconhabrás CEBRID-UNIFESP.
internas da associação membro .

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QUEIMANDO MITOS ACENDENDO FATOS
Maconha Terapêutica
alGUmas orientaçÕes Para oBter a
Planta no Brasil
* Renato Filev

Nos últimos anos, o conhecimento sobre os benefícios


terapêuticos da maconha estão se difundindo pela so-
ciedade. Com isso, vem aumentando o número de pes-
soas em busca de ajuda para obter estes medicamentos.
Os componentes da planta apresentam efeitos terapêu-
ticos para uma diversidade de doenças como epilepsia
resistente, síndromes genéticas, cânceres, dores crôni-
cas, espasmos, doenças neurodegenerativas, doenças
intestinais, insônia, autismo, entre outras que vêm sen-
do amplamente estudadas. Por isso a necessidade de
reunir alguma informação a respeito do trâmite para
obtenção destes medicamentos a base de maconha e
comentar sobre as alternativas que possam existir.

Formas de consumo seguro


Ao redor do globo, a maioria de usuários
medicinais de maconha o faz através da inalação
da fumaça ou vapores produzidos pela combustão
ou aquecimento das flores da planta, que contém fertilizantes químicos ou pesticidas e é importante pobres ou moradores de periferias. A qualidade,
a maior quantidade dos canabinóides. No entan- que estejam livres da infestação de fungos e out- assim como a produção, varia de acordo com as
to, uma parcela importante de usuários utiliza es- ros micróbios. A todos (as) os (as) pacientes que inúmeras etapas de se cultivar a planta. Com ded-
tes componentes por via oral, através de produ- buscam a maconha como tratamento, é recomen- icação e experiência é possível se produzir ma-
tos provenientes da manipulação da planta, como dado que se faça o uso através de vaporizadores conha de boa qualidade, conhecendo o produ-
óleos, manteigas, extratos e sucos. A extração dos ou pela ingestão oral, pois a fumaça do baseado to que está sendo consumido. Mãos na terra já!
canabinóides é realizada por choque térmico ou com pode conter substâncias cancerígenas provenientes da
solventes orgânicos (como o etanol e o butano) e combustão da matéria orgânica. Dito isto, tentare- Produzir óleo em casa
também através da preparação de alimentos con- mos esclarecer o panorama atual que se encontra a
tendo os princípios ativos da Cannabis em mantei- situação da regulação do uso medicinal da maconha. A produção de extrato de maconha em casa é um
gas e emulsões. É importante destacar que produtos método prático e barato, mas assim como o plantio,
comestíveis contendo canabinóides demoram cerca Importação via ANVISA requer precauções quanto à qualidade do produ-
de duas horas para fazer efeito. Além disso, é to, finalidade do uso e técnicas utilizadas para a
mais difícil controlar a quantidade de canabinóides Mediante prescrição médica, o paciente re- extração. Existem diversas maneiras de se produ-
ingeridos, quando comparada com a forma inala- quererá através da plataforma virtual da ANVISA zir óleo em casa. Uma das principais diferenças
da, e a duração desses efeitos é mais prolonga- uma autorização especial de importação, e com esta está na maconha utilizada para a produção do
da, podendo durar até oito horas após a ingestão. deverá encontrar alguma empresa que tenha autor- óleo. Alguns dos métodos serão aqui apresentados.
ização semelhante para importar os produtos para
No tratamento do câncer o Brasil. Esse processo pode ser demorado. Alguns *Extração com solventes: Essa técnica envolve risco
produtos importados dos EUA são vendidos como de explosão e queimaduras. Deve-se escolher um
Para o tratamento do câncer, o uso con- suplementos alimentares e não medicamentos. Isto ambiente arejado, de preferência ao ar livre, onde
sagrado da maconha acontece devido a seu efeito faz com que o controle de qualidade em alguns não haja nenhum princípio de chama próximo à
na diminuição da náusea, vômito, perda do apetite parâmetros, como ajuste de dose, fiquem prejudi- extração. Caso a intenção seja utilizar o extrato por
e caquexia (enfraquecimento extremo) que ocorrem cados. Portanto é importante realizar uma busca via oral, a maconha deve ser desidratada e des-
geralmente em decorrência do tratamento da doença. atenta do produto que se quer obter. Em geral são carboxilada. Essa etapa pode ser realizada em um
Existem relatos de uso por conta dos efeitos anti- produtos de boa qualidade, embora bastante custosos. forno com controle de temperatura (de preferência
tumorais dos canabinóides. Contudo, mais estudos elétrico) por cerca de 25-35 minutos, em temperatura
em humanos são necessários para comprovar quais Viajar para os EUA entre 105-115 graus Celsius. Isso faz com que os
canabinóides, em quais tipos de tumores, em qual princípios ativos que estão na forma de ácidos se
estágio, qual o tipo de administração, qual a dose, É uma prática quase tão custosa quanto a primei- convertam nas moléculas capazes de atuar em nosso
entre outras condições clínicas, são as mais adequa- ra; permite acesso ao arsenal terapêutico existente organismo de maneira mais eficaz. A extração deve
das para este tratamento. Atualmente, as pesquisas mais amplo da atualidade, no que se diz respeito à ser feita preferencialmente sem a presença de água,
estão em fase preliminar, o que torna incerta a maconha medicinal. O acesso é fácil, porém caro; portanto é necessário que sejam solventes puros. Ex-
eficácia do tratamento. No entanto, sabendo da di- os produtos são de boa qualidade e, como a per- istem diferenças quanto ao tipo de solvente utilizado
ficuldade do processo terapêutico que envolve um manência é curta, existe a possibilidade de enviar e os aparatos que facilitam o processo. Caso opte
câncer, acreditamos que muitas pessoas busquem alguns produtos por postal. O paciente deve munir por usar o álcool, deve-se escolher preferencialmente
na planta uma alternativa promissora mesmo sem prescrições de médicos de ambos os países, além o álcool etílico absoluto, o qual a pureza aprox-
a comprovação científica deste benefício. Relatos de descrições técnicas do motivo pelo qual o paci- ima-se a 100%. Caso não encontre este produto,
recorrentes de pacientes com doenças crônicas, ente deve portar estes produtos. Estes documentos deve-se optar pelo uso de álcool de cereais, usado
altamente debilitantes ou com mortalidade eleva- podem auxiliar o paciente diante de algum eventual para finalidades alimentícias. A maconha descarbox-
da, apontam que a maconha melhora seu humor, questionamento judicial. Atente-se que existe um ilada deve ser colocada no solvente e mantida por
bem-estar e qualidade de vida, características essen- risco em trazer derivados de maconha dos EUA. uma hora. É importante mexer a mistura eventual-
ciais para lidar com o tratamento e com a doença. Não custa lembrar que a maconha é uma substância mente. Depois disso deve-se coar a mistura com um
considerada proibida por ambos os países a nível pano de trama fina (até mesmo um coador de café),
Cuidados e precauções federal. O conselho é conversar com um advogado limpo e de preferência novo. Essa tintura de álcool
para ele te respaldar quanto aos possíveis riscos de maconha esverdeada deve ir para uma panela
Para os pacientes que pretendem buscar aux- e medidas que você pode adotar para se precaver. elétrica ou fogão elétrico, nada que envolva chama
ílio terapêutico do fitoterápico sem a devida com- e fogo. Esse álcool irá evaporar e o produto restan-
provação de eficácia existem algumas considerações Plantar sua maconha te é o óleo de maconha, contendo os canabinóides
a serem levadas em conta relativas à segurança e prontos para a ingestão oral ou vaporização. Caso
bem-estar dos indivíduos. Pacientes imunossuprimi- É uma prática com a qual devem ser tomados al- opte por utilizar o butano deve-se tomar os mesmos
dos e que possam estar vulneráveis a outros tipos guns cuidados, como a discrição e arrumar um local cuidados para evitar incêndio e também adquirir
de infecções oportunistas, como é o caso dos HIV apropriado. O custo, comparado às primeiras opções, um aparato especial para extração com butano. Este
positivos, devem ter muita cautela quanto à qualidade é relativamente baixo. É um custo que pode variar, pode ser encontrado na internet e em lojas de produ-
da planta utilizada e a via de administração do pro- porém quanto maior o conhecimento do cultivador tos canábicos. Devem-se eliminar bem os solventes
duto. Para assegurar-se de que este tratamento não e o seu investimento, seja financeiro ou de tempo antes do consumo do produto. Em geral pode uti-
irá lhe prejudicar recomenda-se a escolha de uma dedicado ao cultivo, melhor será a sua produção. lizar a panela elétrica para acelerar esse processo.
planta cultivada para finalidades terapêuticas. Deve- Os pacientes, familiares e conviventes correm o
se buscar uma técnica adequada para o uso, ajuste risco de serem presos em flagrante como crimi- *Extração com gelo e peneiras: Essa técnica é usada
de dose e, principalmente, prevenir os riscos de uma nosos hediondos, podendo pegar até 15 anos de com maior eficiência em flores. Não funciona bem para
possível contaminação. É preferível buscar flores com prisão por tráfico. Esse risco se torna ainda mais maconha prensada. Existem sacos que podem ser ad-
procedência de origem, de produção orgânica, sem latente se o paciente e sua família forem negros, quiridos pela internet e também em lojas especializadas

CANNABICA 5
6 CANNABICA
Do Letramento ao Carnaval
maconHeiros, fUmons e GroWers no rio de Janeiro e em BUenos aires
* Marcos Veríssimo
O mês era setembro, e o ano 2009. Eu estava em Buenos Aires, participando da VIII Reunión
de Antropología del Mercosur, e as cores que saltavam das bancas de jornais na capital argentina reve-
lavam, entre outras coisas, algo que para mim parecia, no mínimo, inusitado. Refiro-me à forte presença,
naquela cidade, de uma linha editorial interessante, e que naquele momento, por falta de nome melhor, en-
tendi como sendo “revista de maconheiro”. A “THC: la revista de la cultura cannabica” estava nas ruas
desde o ano de 2006, em edições mensais, povoando aos milhares as diversas bancas daquela cidade e
suas periferias. A pioneira desta linha é a “High Times”, editada desde a década de 1970 na Califórnia.
Eu havia iniciado o doutorado em antropologia no Programa de Pós-Graduação em Antropolo-
gia na Universidade Federal Fluminense no mês anterior, e estava me ocupando da construção de um proje-
to de pesquisa do qual me ocuparia nos próximos quatro anos, e sobre o qual deveria escrever uma tese. Pen-
sava, genericamente, em contribuir para a produção do conhecimento antropológico sobre os controles e
dilemas envolvendo as chamadas “drogas” postas na ilicitude. Mas ainda me faltava um tema específico. Por
isso, folhear aquela “revista da cultura canábica” foi pra mim tão oportuno. THC é impressa com material de mui-
to boa qualidade, uma fotografia também de primeira linha, contém uma rica e variada produção editorial,
com foco na popularização de saberes e técnicas para a prática do cultivo caseiro de maconha, produção cul-
tural em torno desta planta, e denúncias de abusos e arbitrariedades cometidas pela polícia e pelo judiciário.
Por isso, diante das bancas de jornal e das páginas daquela “revista de maconheiro” foi quase impossível,
ao carioca, não se perguntar: “Por que não temos uma revista de maconheiro no Rio de Janeiro?”. A pergunta pode
que contém uma trama muito fina que permite ape- ser ingênua, idiossincrática, mas por outro lado, nos faz pensar um pouco adiante. Afinal, se a produção, usos e
nas a passagem das glândulas da planta que contém mercados da maconha estão proibidos no Brasil, também o estão na Argentina. Contudo, portenhos já haviam es-
os canabinóides, os chamados tricomas. Essa técnica tabelecido uma forma de construir esta chamada “cultura canábica” de uma maneira que os cariocas na época não
é conhecida como “Ice-o-lator” e consiste em choque pareciam estar inclinados a ousar. Havia o medo (fundamentado) de se encarar um processo penal sob a acusação
térmico e remoção física dos canabinóides da matéria de “apologia a prática criminosa” (Artigo 287 do Código Penal). Falar de maconha podia levar alguém a ter problemas
orgânica através da colocação da planta com água e com a justiça, e o que havia acontecido com o Planet Hemp na década anterior povoava ainda a memória de muitos.
gelo, ou gelo seco, neste “saco peneira”, realizando su- Desse modo, que configurações culturais e sociológicas permitem ou deixam de permitir que em duas
cessivas agitações. Existe uma técnica parecida com grandes metrópoles da América do Sul se construa ou se deixe de construir, sempre com tintas locais, a chamada
uma peneira de trama muito fina (como de nylon de 70 “cultura canábica” ? Ao chegar a esse ponto, senti que estava muito perto de ter o objeto da pesquisa de doutora-
a 40 µm): são colocadas em cima da peneira o gelo seco do. No ano seguinte, elaborei um projeto de pesquisa e fui Desse modo, que configurações culturais e sociológi-
com as flores em constante agitação; o choque térmico cas permitem ou deixam de permitir que em duas grandes metrópoles da América do Sul se construa ou se deixe
e mecânico faz com que os tricomas sejam peneirados. de construir, sempre com tintas locais, a chamada “cultura canábica” ? Ao chegar a esse ponto, senti que estava
O produto da peneiração pode ser diluído em muito perto de ter o objeto da pesquisa de doutorado. No ano seguinte, elaborei um projeto de pesquisa e fui
óleo e utilizado por via oral. Pode ainda ser diluído em para o primeiro período de trabalho de campo na capital argentina, e os contatos que eu tinha para dar início à pesqui-
outros solventes, como a glicerina ou propileno glicol, sa (meus “nativos”, por assim dizer) eram os editores da revista THC. Também no ano de 2010, passou a ser editada
utilizados em vaporizadores. Para tanto se recomenda em Buenos Aires a revista “Haze: experiências y cultivos”. Assim começou a se delinear a tese que eu tinha que con-
descarboxilar a amostra. Ainda existe uma técnica bem struir. Conheci também outros maconheiros e contextos de uso de maconha em Buenos Aires, cultivadores caseiros.
simples (rosin) que utiliza aquecimento para extrair os No ano seguinte, de volta ao Rio de Janeiro, estabeleci interlocução com interessantíssimos “nativos” cario-
tricomas. A técnica consiste em envolver uma flor com cas: o Bloco “Planta na Mente”. Participando do carnaval da cidade, das marchas da maconha no estado, e de outros
papel de adesivo (aquele branco, liso que não gruda eventos do calendário na cidade, o Planta na Mente constrói a chamada “cultura canábica” a seu modo, e de um
em nada) e pressionar com uma chapinha de cabelo. modo talvez bastante carioca. Fazem isso construindo letras alternativas e ativistas para as antigas marchinhas de
Em ambos os métodos, existem algumas precauções que carnaval ou as novidades da cultura pop, fazendo milhares de pessoas gritar em uníssono, pelas ruas da cidade: “Ei,
devem ser tomadas. Caso a necessidade seja produzir ex- polícia, maconha é uma delícia!”. Ou seja, enquanto os portenhos, vivendo em uma cidade onde há mais livrarias
tratos ricos em CBD, deve-se obter uma cepa de maconha abertas do que em todo o Brasil, construiu-se um versão letrada e editorial de fazer a “cultura canábica”, cariocas
que seja conhecida pela alta produção de CBD. São raras souberam construir a sua, de maneira também muito original, mas utilizando a oralidade, a paródia e o carnaval.
as variedades de maconha que têm essa característi- Este contraste entre duas formas de realizar a “cultura canábica” foi o eixo (delineado aqui de forma ultra-
ca, por isso é importante conhecer o produto. Deve-se resumida) em torno do qual construí a tese, que foi defendida em dezembro de 2013 e acaba de ser publicada sob
tomar cuidado com a qualidade da maconha, pois caso o nome de “Maconheiros, Fumons e Growers: um estudo comparativo do consumo e do cultivo caseiro de canábis
contenha fungos estes podem contaminar os extratos. no Rio de Janeiro e em Buenos Aires”. A editora é a Autografia, do Rio de Janeiro. Mas a cultura sempre nos mostra o
Associações de uso compassivo Desde 2014, uma série seu dinamismo, exigindo de nós o permanente esforço de atualização, de modo que podemos extrair desta aventura
de associações de pacientes e familiares que necessitam mais um exemplo disso. O que ocorre é que, depois que a tese foi defendida, e antes que se publicasse o livro, houve
de medicamentos à base de canabinóides buscam obter as quatro edições da Revista semSemente (pioneira no Brasil), há a Revista Maconha Brasil circulando amplamente
informações, respaldo legal, prescrições, apoio médico e no Rio de Janeiro, e outras tantas experiências que estão e estarão em breve entre nós, demonstrando que, embora
jurídico e também acesso direto à extratos preparados não tenhamos no Brasil a potencialidade do público leitor argentino, podemos e sabemos fazer “cultura canábica”
por uma rede movida pela compaixão. Estimulados pela dessa maneira, difundindo informações de maneira eficiente e democrática. E há esse interessantíssimo jornal que
morosidade da legislação e pelo aumento do conheci- o leitor tem em mãos, o “Cannabica”, engrossando, com maestria, o caldo dessa cultura. Talvez devêssemos mais do
mento público sobre os benefícios da planta, grupos de que tudo, neste momento, empreender esforços para multiplicar as formas de expressão da “cultura canábica”, essa
mães, pacientes e cultivadores oferecem acesso à pro- cultura que reúne maconheiros no Brasil inteiro.
dutos derivados da maconha sem finalidades de lucro.
Por isso, vida longa ao jornal Cannabica!
* Neurocientista e pesquisador da UNIFESP. Coordena o
grupo Maconhabrás – CEBRID.
* Antropólogo, Mestre e Doutor em Antropologia Universidade Federal Fluminense

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QUEIMANDO MITOS ACENDENDO FATOS
Quer Montar uma
Associação Cannábica?
Orientações da REFORMA de como
montar uma associação cannábica
Os clubes juridicamente são associações ga-
rantidas pela Constituição Federal e regulada pelo
Código Civil. E nossa estratégia se fundamenta no
artigo da Constituição que prevê que “a saúde é di-
reito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos” e na utilização
de brechas deixadas pela Lei de Drogas que preveem
atividades de atenção ao usuário que visem à melhoria
da qualidade de vida e à redução dos riscos e dos
danos associados ao uso de drogas. Também é usada
a Lei do Sistema Único de Saúde e seus princípios
protetores da autonomia do indivíduo. E na parte de
Redução de Danos é usada a Portaria 1.028/2005 do
Ministério da Saúde que estabelece que as ações de
redução de danos devem ser desenvolvidas em con-
sonância com a promoção dos direitos humanos, tendo
especialmente em conta o respeito à diversidade dos
usuários. Também são sugeridas algumas boas práticas
No judiciário temos três caminhos a seguir, para evitar riscos: realizar o cultivo conforme o Man-
não excludentes. Primeiro o pedido de Salvo Conduto, ual de Boas Práticas Agrícolas do MAPA; usar sistema
como já vem sendo feito pelas famílias de pessoas de circuito fechado de vídeo para segurança da sede
que fazem uso terapêutico da cannabis. O segundo é e comprovação de não haver desvio de finalidade;
a Ação Declaratória para reconhecimento do direito de controle das cepas de cannabis cultivadas; cadastro
cultivar coletivamente reduzindo danos. E o terceiro documental de todos os associados; transparência con-
é o pedido de alvará judicial para suprir a ausência tábil e tributária; incluir pessoas vítimas das proibição;
de regulamentação da autorização administrativa para estar presente em localidades atingidas pela guerra às
cultivo. drogas; realizar articulação política local; criar uma
Alertamos que a tese isolada do fato social marca do clube para arrecadar com venda de produtos
e sem o acúmulo de conhecimento dos recentes fatos, como camisas; compilar o máximo de dados sobre a
normas e da atual jurisprudência sobre o tema, fra- atividade para servir como base em pesquisas gerando
gilizam ações isoladas. Alguns requisitos individuais e dados e estatísticas.
coletivos para a criação e participação dos clubes são No nosso entendimento, a ANVISA não pode
sugeridos, lembrando que alguns dos requisitos podem fiscalizar os clubes, pois não há circulação para ter-
parecer exagerados, mas é em nome da segurança e ceiros, apenas os associados que compõem a asso-
seriedade da estratégia, e considerando que esse é o ciação têm acesso ao que for cultivado. A Polícia
início e com a normalização dos clubes podem ser Federal pode fiscalizar os clubes? Sim, pode, pois é
flexibilizados e serão relevantes perante a sociedade. de competência da Polícia Federal fiscalizar as cul-
Os individuais são: ter mais de 18 anos; sem anteced- turas de plantas psicotrópicas, nos termos do art. 1º
entes (exceto por uso, cultivo ou ter reabilitação penal); do Decreto 577/1992; A Polícia Civil e Militar? Sim,
residência fixa; fonte de renda comprovada, ainda que em caso de fundada suspeita de desvios de finalidade
informal; e conhecimento teórico ou prático do cultivo também podem, eis que configurariam crime.
de cannabis. Os coletivos são: a união de pessoas com O Ministério Público pode fiscalizar os clubes?
o objetivo em comum de reduzir danos; capacidade Sim, principalmente na parte contábil e tributária. O
de organização, gerenciamento e sustentabilidade (so- associado pode sair do clube com sua parte da col-
cial, ambiental e econômica); ter um endereço sede heita? Sim desde que isso seja objeto de pedido na
onde serão as atividades do clube (não pode ser demanda judicial. Os clubes podem importar sementes
um endereço compartilhado); realizar a assembleia de de cannabis? Ainda não há caminho legal para isso,
fundação; redigir o estatuto da associação; registrar o mas estamos estudando uma tese jurídica para viabili-
estatuto e obter o CNPJ de associação privada; criação zar o acesso às sementes. Aqui estão as principais in-
de um fundo coletivo para despesas de execução; e formações para a implementação dos clubes no Brasil,
contato com advogados locais para as demandas judi- contudo o mais importante é todos que participarem
ciais. estarem cientes que essa é uma estratégia que só fun-
ciona dentro uma ação conjunta de centenas de clubes
sendo abertos e operando juntos. Por isso pedimos a
todos o compromisso de não deixarem se levar pela
emoção e pressa, priorizando a sincronia entre todos
clubes participantes. Estamos criando uma forma de
comunicação para facilitar as trocas de informações e
manter todos sincronizados. Caso desejem manter con-
tato e articulação política utilizem nosso e-mail refor-
ma@reforma.org.br e nos comprometeremos a manter
informados sobre nossas ações.

CANNABICA 7
8 CANNABICA
isto é, que mobiliza uma série de instituições ao mesmo tempo: econômicas,

BREVES NOTÍCIAS SOBRE familiares, políticas, morais, religiosas, jurídicas, estéticas. Não são apenas
objetos materiais e riquezas palpáveis que se trocam, mas também sentimen-
tos, afetos, considerações, dádiva, respeito, solidariedade. Além disso, Mauss
observa que há algo inerente à troca que faz com que os parceiros se sin-

AS ASSOCIAÇÕES CANÁBICAS tam obrigados a dar, receber e retribuir o que está sendo trocado. O ponto
central de seu argumento é que esse fluxo constante de reciprocidade produz
vínculos morais entre as pessoas que participam desse circuito de trocas, que

NO BRASIL
as colocam em uma relação de obrigação, comparável às regras do nosso
direito contratual. Não quero aqui entrar numa discussão acadêmica sobre
esse ponto. Só destaco essas observações porque elas podem nos ajudar a en-
tender melhor o surgimento e a ampliação das associações canábicas no país.
* Frederico Policarpo As histórias por trás de cada uma delas é um retrato dessa solidarie-
dade e do estabelecimento desses vínculos morais. São pais, mães, familiares e
pacientes que, muitas vezes, sem ter mais onde procurar ajuda, se encontram
No artigo “Maconha e Associativismo: modelo para o Brasil?”, publi- e começam a se organizar. Médic@s, advogad@s, pesquisador@s e outros tan-
cado no livro organizado pelo Coletivo DAR: “Dichavando o Poder: drogas e tos profissionais que participam dessas associações também entram nesse cir-
autonomina” (2016), Rafael M. Zanatto apresenta um panorama muito interes- cuito de solidariedade, doando tempo, conhecimento, técnica e outras tantas
sante e informativo das associações canábicas em terras estrangeiras, a partir competências para fazer o movimento crescer. Há controvérsias, afinidades,
de descrições bem elaboradas em que até é possível sentir o cheiro da erva! discussões e desentendimentos como em qualquer movimento social. Mas há
Aquele texto serve de referência para o presente artigo, que tem como obje- muita amizade, respeito e compreensão.
tivo o inverso: apresentar um panorama das associações canábicas em terras
brasileiras. Desde 2015 acompanho o cotidiano de uma associação na cidade Cultive seus direitos: plantar é fazer justiça com as próprias mãos!
do Rio de Janeiro, a Associação Brasileira para Cannabis (ABRACannabis), o que
me fez conhecer outras associações que fazem parte da atual cena canábica no
país. Esse é o meu ponto de partida. Finalizo essas breves notícias com menção a essas bandeiras de
Felizmente, as associações estão em plena floração no país, com pes- duas associações irmãs, a Cultive (SP) e a ABRACannabis (RJ), que se
soas de diferentes estados se organizando e a cada dia novas iniciativas surgem. complementam. Essas frases representam o que me parece que está se tor-
Fica até difícil fazer um balanço desse processo. Sem a pretensão de indicar nando um consenso entre as associações, que é a necessidade urgente de
todas, aqui vão algumas: APEPI (RJ), ABRACannabis (RJ), Cultive (SP), ABRACE regulamentar o cultivo no país. Muito se fala sobre os lucros monetários e
(PB), AMA-ME (MG), AMEMM (SC), Liga Canábica (PB), entre outras. E esse pro- o potencial mercado bilionário da maconha, com investimentos pesados da
cesso do associativismo canábico já se ampliou também para propostas de indústria farmacêutica e de empresários de vários setores, reduzindo a planta
clubes sociais, expandindo a discussão para além do uso da maconha com fins a um mero objeto. Essas demandas legais da regulamentação e econômicas
medicinais. Como se vê, o cenário canábico no país é animador, dinâmico e em do comércio são inescapáveis e já começam a se fazer sentir por aqui. O
pleno crescimento. De forma bem resumida, vou destacar alguns aspectos do lobby de empresas estrangeiras e nacionais está vindo com força. A questão
atual movimento das associações canábicas brasileiras: central que parece estar em jogo atualmente é como a regulamentação será
Outro aspecto que deve ser levado em conta para se compreender o feita: voltado para o mercado ou para as pessoas? Regulamentar o cultivo
modo como as associações estão avançando com suas pautas é a aproximação doméstico, seja coletivo ou individual, é a principal arma para escapar das
com universidades públicas e centros de pesquisa. Alun@s, médic@s e pesqui- amarras da indústria farmacêutica e do autoritarismo estatal. O contexto é
sador@s universitários sempre participaram do movimento canábico. O exem- outro, mas o impulso é o mesmo: “Não compre, plante!”
plo do professor Elisaldo Carlini, que há 40 anos pesquisa o tema, é emblem-
ático desse interesse e divulgação do debate sobre a maconha. A novidade * Antropólogo, Professor da Universidade Federal Fluminense.
agora é que essa aproximação é mais ampla e institucional do que antes, não
ficando restrita a raras e louváveis iniciativas individuais. Parcerias institucio-
nais estão sendo firmadas entre universidades públicas e centros de pesquisa
com as associações. No caso do Rio de Janeiro a APEPI e a ABRACannabis são
parcerias em projetos da UFRJ, Instituto do Cérebro e da FioCruz. O próprio
grupo do professor Carlini na UNIFESP e na MaconhaBrás apoiam atividades
da Cultive, em São Paulo, e parcerias também estão em andamento na UFPB,
UnB e outras universidades com as associações locais. Esse diálogo tem sido
fundamental para dar mais legitimidade ao movimento, quebrar resistências
do aparato estatal e garantir o direito ao acesso com qualidade e segurança ao
uso terapêutico da maconha pela população brasileira.

Soltando o direito prensado

De um ano para cá, o judiciário brasileiro começou a reconhecer o di-


reito de pais, mães, familiares e pacientes de cultivarem suas próprias plantas,
em suas casas, de modo seguro e controlado. No país, já são mais de cinco
famílias, além de uma associação, a ABRACE (PB), que conseguiram o salvo-con-
duto (habeas corpus) da justiça para levarem seus cultivos domésticos adiante.
Ainda há muito que fazer para que esse direito “prensado” se torne mais “solt-
inho”. Isto porque para acessar o direito à maconha os demandantes têm que
admitir a tutela do Estado e se mostrarem “hipossucientes” do ponto de vista
médico (é preciso comprovar uma doença), econômico (ter renda insuficiente)
e legal (ter o direito à saúde lesado). Por isso que o uso da maconha ainda não
pode ser considerado como um direito a ser exercido por toda e qualquer pes-
soa. A bandeira do cultivo doméstico não é só contra a proibição, é também a
favor do exercício da cidadania plena.

Reciprocidade

Em minhas conversas com mães, pais, pacientes e ativistas bem como


nas mensagens dos grupos no whatsapp, em que essas pessoas compartil-
ham suas experiências cotidianas com a maconha, é marcante observar o cli-
ma de camaradagem. A economia moral que orienta as relações das pessoas
que participam das associações é de reciprocidade, em que elas desenvolvem
vínculos de ajuda mútua, oferecendo, recebendo e retribuindo informação e
apoio. Para um antropólogo, é quase impossível não fazer menção ao texto
“O ensaio sobre a dádiva”, em que o etnólogo francês Marcel Mauss discute as-
pectos presentes nas transações humanas que não se orientam pelos critérios
do direito contratual e também não se esgotam no valor monetário do que
está sendo trocado. Mauss considera a troca como um fenômeno social “total”,

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QUEIMANDO MITOS ACENDENDO FATOS
“Como assim?” Não é simples assim. “Você vai
precisar de mais, e mais e mais.” Não dá para
controlar. É droga. “Em muitos lugares já é le-
galizado.” “Mas aqui não.”
Conversa vai, conversa vem. “Meu filho,
você não precisa disso.” Agora já parecia pos-
sível que o garoto especial fosse um especial com
asterisco. “Como eu vou poder ficar tranquilo
sabendo que você está por aí com drogas?” O
Dr. Sampaio apelava e demonstrava amor ao seu
jeito tosco. “Onde você vai para comprar essa
porcaria? Olha o tipo de gente que você está se
envolvendo.” Se as leis não servem aos interesses
da sociedade, ou se as políticas públicas favore-
cem confrontos sociais, “não são assuntos para
serem debatidos em casa”, entre uma família que
tenta salvar sua cria. “Isso não é problema seu.
Você tem que trabalhar,” finalizou o patriarca.
Minutos de silêncio. Agonia. Choramin-
gos. “Isso é só uma fase” era a frase que piscava
em um luminoso de neon que brilhava dentro da
cabeça da Sra. Sampaio. “E enquanto você tiver
nessa fase vai ter que se virar sozinho” era a
reação que parecia óbvia para um pai, segundo as
convicções do Dr. Sampaio. “Tudo bem”, era a
forma mais rápida que Rafael via de acabar com
a contenda.
Uma pulga saltou detrás da orelha da Sra.
Arroz com Feijão bem envolvido com isso. Era como se o apre-
sentador no jornal da noite estivesse narrando a
Sampaio gritando: “ele vai embora de casa, ele
vai embora de casa.” Dr. Sampaio não se oporia.
verdade mais verdade de todos os tempos. “Tome um banho que vou arrumar o jantar”, disse
*Eder Capobianco Estupefata era o verbete que melhor defin- a matriarca na esperança de restaurar a harmonia
ia a Sra. Sampaio. “Me diz que você não vai e a família. Rafael levantou e foi para o quarto.
fazer mais isso, por favor.” Rafael olhou para O pai olhou para mãe com cara de preocupação,
Rafael estava com um problema com seus o outro lado. O Dr. Sampaio bufou. “Conversa depois ligou a TV. Ela foi para cozinha preparar
pais: eles descobriram que ele fumava maconha. com a gente.” Implorou a mãe. E ele dizia: “Eu o jantar.
O jovem vacilou com uma ponta no carro, e de- não deixo de fazer nada por causa disso.” Era um
pois que sua mãe abriu o acendedor de cigarros dos primeiros da XXVIV Turma de Biologia da * Mestrando em Letras - UNESP
para plugar o celular, e se deparou com aquele faculdade, tinha um bom estágio, planos. Isso era
celofane do diabo, o garoto especial já não era só diversão, no fim do dia, como uma cerveja.
tão especial assim. Na verdade era um proble-
ma. Aliás, vários problemas. “Quem pois aquela
porcaria na boca dele?” “Será que ele está só
nisso?” “Onde nós erramos?” Dr. Sampaio e a
Sra. Sampaio estavam apavorados. Em estado de
choque. A sujeira tinha chegado em casa. Era o
primeiro sinal do fim dos tempos.
Estava tudo abalado. Admiração. Confi-
ança. Futuro. Quando eles chegaram em casa,
colocaram aquela ponta na mesa da sala e olha-
ram para Rafael, seu pai foi eloquente: “Não me
venha com esse papo de que é de um amigo.”
“Você fumou isso no carro?” Foi o primeiro
questionamento da chorosa Sra. Sampaio. Rafael
estava sendo crucificado, e assim como Jesus
parecia querer aquilo. Ele olhava para uma e para
o outro com o desdém com que Pôncio Pilatos
lavou as mãos. Como quem não tem nada para
dizer.
A postura era ultrajante. Inaceitável.
“Também não é nenhuma novidade. Olha só para
você.” “Depois que começou a faculdade você
virou outra pessoa.” Era uma mistura de negação
com raiva. “Você não tem nada para dizer?” Que
tinha sido um erro. Que estava arrependido. Que
não ia acontecer de novo. Que aquela droga mal-
dita tinha pegado ele num momento de fraqueza
e com a ajuda de Deus ele ia se livrar daquele
terrível mau. Os dois topavam escutar qualquer
coisa que soasse como um mea culpa. Assumir é
sempre o primeiro passo.
“Como assim não significa nada?” Signifi-
cou muita coisa quando Césinha, o primo da Sra.
Sampaio, foi preso com dezoito anos fumando
maconha na praça. Foram cinco anos de cana.
Nunca mais ele se recuperou. Significou muito
para o Tio Joe, que começou assim e hoje é
viciado em crack. “Que mané planta. Que outros
tempos coisa nenhuma.” Vai pra cadeia sim. Não
tem essa. É crime. Contra a lei.
Vicia. Mata. “A única coisa que mudou aqui é
que você está metido com essa merda.” É coisa
de vagabundo. Ninguém nunca viu alguém de

CANNABICA 9
10 CANNABICA

As Loas de Maconha:
trovas, ritos e controles sociais
* Jorge Emanuel Luz de Souza

Um dos elementos de sociabilidade dos


“clubes cannábicos” se manifestava na prática
de proferir versos sobre a maconha, por alguns
especialistas chamados de “poesia da maconha”,
por outros de “trovas da maconha”. Pelo que se
sabe, um dos presentes pronunciava uma estrofe,
em geral uma quadra, decorada ou improvisada,
que poderia ser seguida de uma resposta em
coro dos demais presentes ou receber uma res-
posta individual caso tomada como desafio por
outro. Poderia se referir a alguma questão do
momento em que se dava o encontro, a fatos da
comunidade e ainda abordar temas relativos aos
usos da maconha. Quem respondesse demonstrava
conhecimento dos códigos do grupo nos quais a
prática se assentava, pois conseguia identificar e
dar continuidade ao assunto tratado pelo anteces-
sor; deveria resolver a charada e propor uma ao
seguinte.
Essa parece ter sido uma peculiaridade do “Minha cara é sem vergonha”. Enoque ainda entre seus descendentes, bem como, de formação
consumo coletivo de maconha no Brasil, pois não manifesta outra opinião, considerando a erva um dos seus quadros e dos mecanismos do apadrin-
encontramos menção à prática nos estudos que substituto do álcool, menos nociva então que hamento político. Outras poderiam abordar as
abordam a questão em outras partes do mundo. este. Por fim, as expressões “Ajuê” e “gonga” qualidades específicas de cada tipo de maconha,
Como veremos, essa característica é fruto da con- são similares a algumas expressões do kimbundu como essas provenientes do Maranhão: Dizô,
vergência do uso psicoativo da erva com práticas como a locução “aiê”, a interjeição “aiuê” e o cabra ou cabrito Na casa da tia Chica Tem carne
presentes no vasto e híbrido repertório cultural substantivo “ngônga”. Mário Ypiranga Monteiro não tem farinha Quando não é tia Chica Então é
das classes subalternas. As trovas, poesias ou loas ouviu de um agricultor a seguinte quadra em a tia Rosa Quanto mais véia seboza, Quanto mais
da maconha foram encontradas. Planeta corre no Lago Cururu, Amazonas, no começo da década nova mais cheroza. – Cheroza, mano, cheroza?
céu (...). São diversos os assuntos em questão de 1960: Dirijo é coisa incelente Remédio de dor Dizô, dizô!
aqui. A vigilância policial é abordada no ver- de dente; Assim como Deus não mente Dirijo Aqui os trocadilhos com a figura femi-
so “Soldado na gurita”, onde a palavra “gurita” não mata a gente. Dessa vez os versos afirmam nina e com alimentos são evidentes e merecem
parece ser uma variação coloquial de “guarita”, as qualidades medicinais da erva, no Amazonas uma atenção maior que pode nos ajudar a solu-
a “casinhola ou torre para abrigar sentinelas”. Os mais conhecida como “dirijo”, sendo usada como cionar a charada. Assim como na visão dos proi-
cuidados a serem tomados por quem fuma é o “remédio de dor de dente”. Esse foi, inclusive, bicionistas, porém com significados distintos, no
assunto tratado no verso “Cobre a cabeça com o um aspecto da planta reconhecido pelos próprios “folclore da maconha” a mulher também ocupa
véu”: é preciso se “encobrir” para não ser recon- especialistas do proibicionismo, a exemplo de As- um lugar paradoxal: ao mesmo tempo em que se
hecido, não se expor ou, como dizem usuários sis Iglésias, um dos primeiros: “Certos indivíduos preferia consumir as flores da “planta fêmea”, por
mais contemporâneos, não dar “bandeira”, não empregam a diamba como medicamento, em for- possuir efeitos mais fortes, acreditava-se que mul-
“vacilar”. Além disso, era preciso atenção e sol- ma de chá”. heres não deveriam participar da colheita, uma
idariedade entre todos para não ser pego de O usuário ainda afirma que o “dirijo cuidadosa operação na qual não se dizia obsceni-
surpresa, como sugere “Passarinho canta e grita”, não mata a gente”, ou seja, maconha não cau- dades nem se assoviava, nem mesmo andar pela
indicando que algum usuário ficasse atento para sa “overdose”, para utilizar um termo atual, o plantação “sob ocasião das regras” sob pena de
avisar aos demais em caso de perigo. que considerava uma verdade inabalável (“Assim “machear” todas as plantas, ou seja, transformar
Os tempos tinham mudado e parece que como Deus não mente”). Outro folclorista que todas na “planta macho”, resultando num fumo
isso não era novidade para eles. Esses versos registrou as “loas da maconha” foi Alceu May- não apreciado. Mas era a figura feminina que era
foram registrados na década de 1940, num mo- nard Araújo na década de 1950. Em viagem a usada para designar a erva, para o bem, como
mento em que o consumo de maconha já era Piaçabuçu, interior de Alagoas, ele anotou os a protetora “mamãe Daruanda” em Salvador, e
considerado crime pelas leis nacionais. Sendo as- seguintes versos, mantendo na grafia as palavras para o mal, como evidencia o frequente título de
sim, era preciso alertar os outros, lembrá-los que como teriam sido pronunciadas: Marica, eu vi “maldita”.
deveriam ficar mais atentos se quisessem manter uma jóia perdida, Dois mariante a caçá, Três Assim, “tia Chica” e “tia Rosa” podem
o hábito e os usuários sabiam que as “trovas” embarcação no má Quatro poeta na lida Cinco estar designando variedades da planta fêmea, so-
eram um eficiente meio de transmissão e ensina- vapô de saída, Pá carregá seis princesa, São sete bretudo, quando se nota que a expressão “manga
mento de experiências. Ainda Garcia Moreno, mulé de nobreza, Cunversa com oito dotô, São rosa” é empregada no universo do seu uso pop-
com versos de Propriá, Sergipe, demonstra que nove governadô, e deis capitá de riqueza. ular para se referir a uma qualidade de maconha,
outras “trovas” poderiam afirmar individualidades Nessa composição o sujeito pode estar assim como “Rosa Maria”. Note-se ainda, nessa
e manifestar a opinião pessoal do trovador sobre demonstrando, entre outras coisas, uma aguça- esteira, a referência ao processo de preparação
o consumo de drogas: Eu sou Enoque afamado da percepção da dimensão política na sociedade da planta para o fumo, que deveria obedecer a
Porque não tem cirimonha Em todo lugar que em que vivia. Podemos arriscar que quando diz regras para a colheita e a curtimenta, onde “se-
canto Minha cara é sem vergonha Deixei de be- “seis princesa” esteja se referindo a moças das boza” e “cheroza” se referem à maturidade da
ber cachaça agora só tomo maconha Ajuê Mari- elites econômicas locais, acompanhadas de mais planta consumida, se colhida mais velha e resi-
ca, Marica diga ajuê Ajuê Marica, gonga. Nesse alguém, provavelmente sua mãe, pois são “sete nosa ou mais nova com odor mais forte. Outro
ponto cabe uma conexão provocativa: ao ouvir mulé de nobreza”. Estariam elas conversando com ponto é a referência a alimentos como a “carne”
o pernambucano Bezerra da Silva cantar “Vou “oito dotô” que são “nove governadô” e possuem e a “farinha”. A alimentação era um aspecto
apertar, mas não vou acender agora/Se segura “capitá de riqueza”. Ora, ele não desconhece que, importante no consumo da maconha, segundo
malandro, pra fazer a cabeça tem hora”, não es- naquele contexto, ser “doutor” era uma das por- os especialistas. Diversos estudos mencionavam a
taríamos diante da atualização da estratégia, não tas de entrada na vida política. Por isso as elites fome como um dos efeitos fisiológicos universais
tão distante dele, dos “diambistas” maranhenses? econômicas, que têm capital e riqueza, mandavam da maconha. São comuns termos como “camarão”
Há a afirmação da individualidade do seus filhos estudar nas universidades das capitais: para designar as inflorescências fumadas da plan-
trovador, “Enoque afamado”, ou seja, que era estamos falando de oito jovens e seu padrinho ta e “manga rosa” para designar inflorescências
conhecido de todos. Era o sujeito que “não tem político, talvez um coronel, o nono governador bem desenvolvidas e amadurecidas, o que signifi-
cirimonha”, palavra que parece se tratar de mais da história. Portanto, entre baforadas na “marica” cava um fumo bom e muito apreciado entre os
uma variação coloquial, dessa vez para o termo cheia de maconha, nosso trovador discute as es- “diambistas” em oposição ao “pelo de macaco”
“cerimônia”, e não se sentia constrangido com a tratégias de alianças políticas das elites econômi- ou “poeira”, um fumo ruim, ressecado e com
opinião contrária ao uso da maconha, como sugere cas locais, nesse caso através do matrimônio muitos materiais indesejados na sua composição.

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QUEIMANDO MITOS ACENDENDO FATOS
Assim, “carne” e “farinha” podem estar designan- da maconha não deve ter sido um fenômeno res- de um consumo seguro da substância, medida
do a qualidade da maconha a ser fumada. A ma- trito a áreas do sertão, no interior dos estados, con- essa estabelecida com base nas diversas experiên-
conha boa de fumar, então, era “tia Chica” (“tem tudo, não temos informações recorrentes sobre a cias individuais, diminuindo os riscos de tensões
carne não tem farinha”), mas podia também ser prática nas capitais, ocorrendo mesmo um silêncio na relação entre usuários e não usuários.
a “tia Rosa”, uma “véia seboza” ou uma “nova sobre esse ponto. Desenvolvendo e fazendo circular, através
cheroza”, ou seja, mais ou menos curtida. “Dizô, Sabemos apenas que na Maceió de fins dos anos da experiência em comum, sanções (valores e
mano, Dizô? Dizô!”. Por fim, Garcia Moreno nos 1940 as autoridades se referiam a fumantes da regras de conduta) e rituais (estilos de com-
apresenta mais alguns desses versos colhidos em erva encobertos “até o pescoço com areia [na portamento), ou seja, controles sociais informais,
Propriá: Sobre isso ainda nos diz o Dr. Dória, ev- praia] e no escuro da noite”, formando “pirila- endógenos aos grupos, possibilitava “a utilização
idenciando outras conexões da prática: “Essa len- mpos” com a luz dos seus cigarros a queimar, de psicoativos segundo um determinado padrão”.
da a respeito da mulher menstruada é bem velha, “no entrechoques de ditos e desafios”, mas não Dessa forma, produziam e compartilhavam conhe-
e já Plínio, o Antigo, dizia que tão violenta era a sabemos quem eram ou onde teriam aprendido a cimentos sobre “os métodos de aquisição e con-
toxicidade do sangue menstrual que seu contato, prática . Em Salvador no período, assim como sumo, a escolha do meio físico e social para o
ou mesmo o seu vapor, podia azedar o vinho, não encontramos referências ao uso da “maricas” uso, as atividades associadas a ele e as maneiras
tornar estéreis as sementes (...) e diversas coisas nos casos policiais ou nos casos relatados pelos de evitar e lidar com efeitos negativos”.
mais”. A crença em poderes da menstrução tam- jornais, também não foi constatada a presença A sociabilidade, o contato entre as ex-
bém era compartilhada pelas classes subalternas dos duelos de palavras. O que não quer dizer que periências dos usuários criava um referencial
no Brasil colonial. Segundo Anthony Henman, não existia entre as rodas de fumo eventualmente comum para o reconhecimento e a busca dos
em seu estudo sobre o consumo de maconha ou que fosse um costume de todo desconhecido. efeitos desejados, tornando o grupo um ecoss-
entre os índios Tenetehara: “Distingue-se imedia- Entretanto, uma ficha de inquérito organizada istema propício e estimulante para a experiência
tamente um fumo bem curtido pela cor parda e em 1943 pelo Dr. João Mendonça, membro da psicoativa. Por fim, o uso coletivo também com-
pela ausência do cheiro de clorofila, característica Comissão Estadual de Fiscalização de Entor- partilhava um repertório de estratégias de enfren-
da maconha em estado verde”. “Inchaço grande pecentes da Bahia, questionava ao “maconheiro” tamento e negociação com os controles sociais
é postema Pano quadrado é lenço Miolo de ovo detido, entre outras coisas, “Como usa?”, “Usa formalizados e as justificativas para a permanên-
é gema Moça que dorme só Vive numa tentação só ou em companhia?” e solicitava dos mesmos cia do consumo num contexto de criminalização
Moça solteira é um cão Pé de boi é mocotó “Cite provérbios, versos, anedotas, modinhas so- e crescente condenação moral da prática. Não
(...) Me dero banho n’um taxo A parteira disse bre a maconha”380 . Essa ficha de inquérito estava errado, então, o Dr. Garcia Moreno ao
sorrindo: – Comadre este bicho é macho – Mar- visava colher dos usuários detalhadas informações afirmar na década de 1940 que os “maconheiros”
icas se o fio é macho Banho sempre num taxo sobre o uso da droga. Com temos visto, o in- de Sergipe, Alagoas, da Bahia e de todo lugar
Maricas o nosso fio é macho E trouxe o nome teresse sobre as práticas de produção, preparo e “fumam a planta e dela sabem mil coisas”. Ao
de Patacho” . consumo, assim como a investigação dos con- final dessa trajetória conturbada e inebriante so-
A primeira estrofe trata de uma série de textos sócio-culturais onde esses usos se davam bram questões, dúvidas e nebulosidade. A Can-
assuntos da vida cotidiana popular, como esses foi uma constante na produção dos cientistas que nabis sativa L. é, sem dúvida, uma alegoria da
definiam seus conceitos, tais como um “inchaço escreveram sobre o assunto desde a década de própria relação conflituosa do ser humano com
grande” ou “miolo de ovo” além de manifestar 1910. Nesse quadro eles buscavam os elementos a natureza. De uso amplamente difundido na
elementos do imaginário popular sobre a sexual- que deveriam confirmar as suas teses e justificar sociedade brasileira, ao longo de quatro séculos
idade feminina. A segunda estrofe parece tratar, a necessidade da repressão. a maconha floresceu sem muita dificuldade no
de forma cifrada, da própria maconha. A “partei- Era fundamental para as autoridades e seu chão, encontrando condições mais duras de
ra” e a “comadre” da história conversam sobre especialistas conhecer esses cenários e compor- sobrevivência com o correr do século XX.
um “bicho macho”. Se lembrarmos da crença tamentos. Não deixaram, porém, de perceber que Apesar de terem analisado o uso nas class-
popular que afirmava o poder da mulher de “ma- significados coletivos e experiências que ajudariam es médias da sociedade urbana, é possível, dadas
chear” a planta, caso entrasse em contato com os usuários a lidar com a repressão ao hábito es- as necessárias adequações, se apropriar dos ele-
ela, é possível supor que esses versos podem tavam contidos naqueles “provérbios, versos, ane- mentos fundamentais que levantaram para com-
estar fazendo referência ao tipo do fumo. E sen- dotas e modinhas”. O interesse do Dr. João Men- preender as questões culturais implicadas na práti-
do planta “macho”, tipo de sabor não apreciado, donça nos dá indícios disso. Parece que, na capital, ca em outras classes sociais. Não parece que tenha
como já vimos, a solução é fumar na “maricas” nem as autoridades nem os usuários desconheci- diminuído drasticamente o entusiasmo em torno
com água (“Banho sempre num taxo”). Os desa- am a prática. Mas, infelizmente não encontramos da planta, o que se ampliou foi o choque moral
fios dos “diambistas”, entrecortados por baforadas nenhuma dessas fichas. Especialistas e autoridades que a prática passava a produzir numa também
no cachimbo, animando a reunião, “cheios de as- que construíam o proibicionismo da maconha de- crescente percepção social condenatória do seu
sociações por consonância e ricos de definições”, scobriam que seu uso coletivo, fosse no sertão, no uso. A segunda metade da década de 1960 mar-
pareceram, acertadamente, aos olhos do diretor do Vale do São Francisco ou no meio urbano das ci- caria uma fase em que a acusação pública de se
Serviço de Assistência a Psicopatas de Sergipe, dades em crescimento, apresentava as condições relacionar com a “maldita” deixaria de recair apenas
Dr. Garcia Moreno, “uma pequena enciclopédia favoráveis à manutenção do hábito. sobre as “classes pobres e incultas”, passando a ser
popular”. A prática das “trovas” nos “clubes de Os “clubes de diambistas” do nordeste são exem- associada aos jovens das classes médias e aos mov-
diambistas” guarda semelhanças inegáveis com plos de uso controlado, de uso não problemático imentos de contestação característicos do período,
outras práticas no Brasil, a exemplo do repente, de psicoativos, de uso socialmente integrado entre chamados genericamente de “contracultura”. Esses
da embolada, do candombe e do jongo. as camadas subalternas acusadas de abusarem da deveriam tecer suas relações próprias, estabelecer
Em todas, o duelo de palavras, embalado substância e com ela cometer crimes. Como foi seus códigos, seus ritos, atribuir os valores de sua
ou não por acompanhamento musical, era, e ainda anotado, as reuniões costumam ocorrer aos sába- visão de mundo e aprender com as experiências
é nas que permanecem ativas, um código cifrado, dos, nesses lugares, “véspera do dia de descan- compartilhadas a enfrentar ou negociar com os
no qual essas palavras podem dizer outras coisas so”. Apesar das poucas informações, sabe-se que controles sociais no mundo da “guerra às drogas”.
para além do que a semântica imediata permite os “diambistas” eram trabalhadores, geralmente
supor e, juntamente com os gestos e comporta- agricultores, pequenos comerciantes, feirantes e
mentos da prática, reorganizam as fronteiras da pescadores, as ocupações mais comuns naquelas * Historiador, Mestre e doutorando em História So-
percepção das identidades. Precisava ser iniciado localidades do interior. cial UFBA.
para conhecer os códigos dos “diambistas”. Assim O mesmo Dr. José Lucena que verifi-
como o jovem Inácio do conto de Alberto Deodato cou uma “sintomatologia discreta” entre os seus Adaptado do livro Sonhos da diamba, controles do
era preciso comungar de comportamentos e com- observados no Hospital de Alienados do Recife cotidiano: uma história da criminalização da ma-
partilhar valores comuns ao grupo. O Dr. Assis na década de 1930 e não percebeu “sinais de conha no Brasil republicano. Salvador: EDUFBA,
Iglésias, ao perguntar a um dos “diambistas” de enfraquecimento intelectual” nem “sintoma de- 2015
um “clube” do Vale do Mearim no Maranhão, em sagradável” diante da “supressão brusca da ma-
1918, o que significava “Dizô” e receber como conha” entre os mesmos, é quem, se apoiando
resposta que a expressão era “sutaque de gente em reflexões do médico L. Livet, nos dá pistas
doida”, concluiu que aqueles “caboclos”, que o úteis para compreender algumas possíveis funções
Dr. Leonardo Pereira considerou depois “idiotas” e significados do seu uso coletivo para os “ma-
e “de uma indolência fantástica” empregavam conheiros”: A intoxicação em comum representa
o termo sem conhecer seu sentido, “sim” em até certo ponto uma média dos graus de in-
“africano”. Porém, ele é quem não conhecia dos toxicação individual. Ao contrário o consumidor
sentidos, não era “gente doida”, então não podia isolado pode ficar aquém da dose ótima ou ex-
conhecer de seu “sutaque”, ele foi quem não en- cedê-la com graves riscos de ordem pessoal ou
tendeu a piada. E não entender a piada pode ser social. Outra razão consiste em que nas reuniões
o primeiro sinal de que se está diante de outro a alegria de um se propaga aos demais, busca-
mundo. O duelo de palavras em ocasiões de uso da (...). O uso coletivo permitia a manutenção

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QUEIMANDO MITOS ACENDENDO FATOS
O Antiproibicionismo o ciclo de debates antiproibicionistas da UFRN que já vai
pra sua nona edição, e outras atividades de caráter mais
pontual, tendo eu nesse período me constituído como

no Brasil hoje:
ativista de alcance nacional através de participação em
diversas mesas redondas de eventos antiproibicionistas
Brasil afora desde então. De modo que o relato, o resu-
OS GOLPISTAS LADRAM MAS A CARAVANA NÃO mo que agora faço do antiproibicionismo brasileiro tem,
PARA! como não poderia deixar de ser, a minha marca, o meu
* Leilani Assunção olhar, e cobrirá basicamente portanto, os eventos dos
quais eu participei esse ano
O ano de 2017 começou num clima de velório Em abril, tive a alegria de estar no Rio de Janeiro
para quem faz ativismo no Brasil, em qualquer área, para participar na condição de palestrante do Seminário
visto que o Golpe de Estado de 2016 tem em sua Drogas + políticas promovido pela Fundação Oswaldo
agenda um forte elemento moral, de desqualificação Cruz e que em dois dias conseguiu reunir alguns dos
dos ideais e lutas dos direitos humanos, entre os quais mais interessantes nomes do debate antiproibicionista
se incluem sem duvida nossa pauta do antiproibicion- brasileiro, criando o clima pra a incrível Marcha da
ismo. Maconha do Rio de 2017, a segunda maior do pais e
Apesar do contexto interno negativo, o con- que eu tive a oportunidade de prestigiar pela segunda
texto internacional pode pesar a favor daquelas que vez.
lutam pela legalização das drogas, uma vez que é uma Do Rio segui direto para São Paulo, onde
tendência que tem se observado em dezenas de países compus a mesa sobre ativismo intitulada: “O que os
que tem graças a tal medida, visto cair drasticamente usuários querem alem de respeito” no V Congresso evento consolidando-o no calendário do antiproibicion-
seus níveis de violência e encarceramento compulsório. Internacional Maconha e Outros saberes realizado pelo ismo brasileiro como um dos mais significativos, den-
Uma coisa que sempre me revolta quando Cebrid-UNIFESP com o apoio do coletivo D.A.R que tre outras coisas por ser o único com freqüência anual
estou em debates sobre o proibicionismo, é que sem- é, sem duvida, um modelo de organização e atuação e também por ter sido o primeiro a adotar o nome de
pre que citamos a experiência européia ou mesmo para todos os coletivos do Brasil. Não teve preço, antiproibicionista no título (desde 2011) e também por
norte-americana (especialmente Canadá e alguns esta- ver o Staff acadêmico de medicina da UNIFESP, ser o que o meu caro Joey definiu como “O pólo mais ao
dos americanos como California, Colorado e Wasgh- se chocando com o uso de maconha realizado com norte do antiproibicionismo brasileiro”.
inton)os apólogos da continuação da proibição vem toda naturalidade durante os intervalos das incríveis Finalmente, estive presente também no Primeiro En-
argumentar que a diferenças entre as realidades desses e riquíssimas mesas redondas. Destaco também nesse contro de Feministas Antiproibicionistas em Recife
países e a nossa inviabilizam a utilização dos modelos evento a presença de dois dos três nomes que a partir entre os dias 30 de setembro e 1 de outubro do cor-
que deram certo la, aqui. Como historiadora fico re- de agora chamarei de “fundadores” do antiproibicion- rente ano, talvez o momento mais potente da minha
voltada com tal resposta, por que tudo que fizemos na ismo brasileiro: os ilustres Professores Elisaldo Carlini vivencia no ativismo antiproibicionista até então, a
história desse país foi importar modelos estrangeiros, e Edward Macrae, que juntamente com Antonio Nery visceralidade das reivindicações femininas, a ausência
aplicados muitas vezes sem nenhuma adaptação as Filho são sem duvida as figuras mais importantes do de transfobia de um feminismo que não é vaginocen-
realidades nossas, com tudo o que foi de sucesso e movimento antiproibicionista brasileiro. trico, mas, como Beuavoir, acredita que a mulher se
especialmente de fracasso dessas experiências. Por que De volta a Natal fui me concentrar em orga- constrói, no conjunto de coerções do patriarcado, do
justamente nessa questão, talvez hoje a mais impor- nizar a VIII edição do Ciclo de debates antiproibicion- racismo, da lgbtfobia, da misoginia em geral. Esse
tante das sociedades contemporâneas, seria diferente? istas da UFRN, que esse ano tematizou os diversos encontro, se constitui pois como um grito de batalha
O hoje já clássico documentário do ilustre usos: medicinal, recreativo, religioso. Dentre os mara- das mulheres contra a guerra as drogas, pela vida das
Rodrigo Macniven, já trás em seu título a resposta: vilhosos convidados destacamos a presença de Sidarta mulheres pobres e lgbts, lutamos pela legalização das
trata-se de uma “cortina de fumaça” , através da qual Ribeiro do Instituto do Cérebro da UFRN, Renato drogas.
a maior parte da sociedade não consegue perceber Filev o Cebrid – Dar, Rodrigo Macniven cineasta e Por fim, aconteceu em Belo Horizonte a quar-
que os poderosos interesses contra a legalização estão ativista reconhecido internacionalmente, Emilio Figue- ta edição do congresso da ABRAMB, onde estive
ancorados essencialmente na equação de que o comer- iredo advogado da marcha do Rio e do Growroom e presente compondo uma mesa sobre racismo e diver-
cio de algo que seja proibido gera muito mais lucro, Ingrid Farias da Rede Nacional de Feministas Anti- sidade, representando o meu coletivo aqui de Natal, o
seja tanto pela sonegação fiscal quanto pelo controle proibicionistas. cannabisativa mas também a LANPUD (Rede Latino
abusivo dos preços e da qualidades da mercadoria – Tal debate, realizado na UFRN entre os dias 22 Americana de Pessoas que Usam Drogas) e a RENFA
constantemente adulterada- exercido pelo mercado ile- e 24 de agosto foi um grande avanço na concepção de (Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas).
gal. O resto é absoluto preconceito étnico-social-moral. que não podemos hierarquizar os diversos usos, crian- De modo que podemos concluir que mesmo com toda
Ou seja: como já foi brilhantemente concluído por do uma espécie de “bom uso” que seria o medicinal ao a perda de financiamento com os cortes nas institu-
Edward Macrae e seu grupo de estudos em Salvador, passo que continua a se estigmatizar um uso recreativo, ições de ensino e pesquisa publicas do país de onde
para além das razões mercantis, o grande alicerce do onde esta a matriz do problema do encarceramento, ao vem a maior parte do financiamento do conhecimento,
proibicionismo é o desejo de manter a margem da mesmo tempo e que concordamos sobre a dificuldade pesquisa e ativismo antiproibicionista, o movimento
sociedade, criminalizados, setores considerados indese- de se diferenciar o que venha a ser uso recreativo do me- segue com muita vitalidade e potencia criativa, transfor-
jáveis da nossa sociedade: basicamente as populações dicinal, quando na maioria dos casos somente a pessoa madora. Mesmo com todo o ranço moral que também
pobres, geralmente negras, das periferias brasileiras. que usa pode vir a definir qual possível beneficio medic- são agendas prementes do Golpe de 16, seguiremos
De modo que nesse texto, não temos a pre- inal pode se advir do seu suposto uso recreativo. No ul- fortes, em busca de um objetivo maior que é para além
tensão de adentrar nessas problemáticas já amplamente timo dia uma mesa redonda com cara de plenária e com da legalização das drogas, as melhorias das condições
e profundamente debatidas por pensadores mais bril- representatividade quase de um pré Enca (8 estados de vida da ampla maioria do povo brasileiro.
hantes e experientes nessa temática. Tomamos tais representados – São Paulo, Rio dde Janeiro, Espírito San-
referencias como algo a priori, do qual todos (ao to, Bahia, Tocantins, Pernambuco, Paraiba, Rio Grande do * Historiadora, doutora em História UFRN
menos os que estão nesse debate) tem conhecimento, e Norte e Ceará, de três das cinco regiões do país) coroou o
partiremos portanto direto ao nosso objetivo, qual seja,
o de promover um raio x do antiproibicionismo bra-
sileiro em 2017 (primeiro ano onde desde o começo
não tivemos um governo de Esquerda a frente do país
e nós organizadores de eventos na universidade senti-
mos o quanto que isso dificultou nossas ações com os
brutais cortes de orçamentos, fazendo com que cada
uma das atividades promovidas nesse duro ano tenham
uma valor especial).
Claro que esse diagnostico parte de um lugar
social, o meu: uma mulher trans (constantemente de-
nunciando a transfobia que persiste no seio do mov-
imento antiproibicionista), nordestina, de um estado,
O Rio Grande do Norte, que é periférico até em ter-
mos de Nordeste que é uma região periférica no Brasil.
Em 2010 junto com grandes parceiros como Henrique
Lopes e Rinaldo Sampaio fundamos o coletivo anti-
proibicionista cannabisativa, cujo objetivo era articular
o movimento antiproibicionista no RN, de la pra ca re-
alizamos anualmente a marcha da maconha de Natal,

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Psicodélicos e Saúde:
A Ibogaína é uma substância que gera intensas alterações na forma de
perceber a si e ao mundo, e deriva de uma planta chamada Tabernanthe Iboga,
advinda da África, na região do Camarões e Gabão, e também usada ritualmente
de forma ancestral. A intensidade da experiência, assim como as possíveis trans-
O USO DE SUBSTÂNCIAS ALTERADORAS DE CONSCIÊNCIA NO CUIDADO DE formações que fazem, muitas vezes em pouco tempo, tem atraído cada vez mais
QUESTÕES SOCIAIS COMPLEXAS pessoas buscando alívio para suas aflições. Além dos relatos, os estudos atuais tem
mostrado resultados promissores no uso de ayahuasca e ibogaína para tratamento
* Bruno Ramos Gomes de álcool e drogas, ao mesmo tempo em que temos tido também uma quantidade
Roberto (nome fictício, história não) veio bem novo de Pernambuco junto cada vez maior de estudos com LSD, Psylocibina ou mesmo MDMA no tratamento
com a família, e aos 18 anos começou a frequentar a rua, já sem dinheiro e se ocupação. de TOC, tabagismo, dependência de álcool, estresse pós traumático, apenas para
Pedrinho veio do Paraná, passou três anos na rua e hoje em dia trabalha numa asso- dar alguns exemplos. Visto de forma simplista, os psicodélicos podem facilmente
ciação de coleta seletiva de materiais. Está bem mais organizado, mas ainda tem seus ser vistos como a nova panaceia, remédio para todos os males.
períodos “pé na jaca”: passa períodos na rua, bebendo e dormindo pelos cantos. André O tratamento com ayahuasca que estudei integrava duas formas tradicionais
nasceu na zona norte, depois que a esposa morreu num acidente de carro em que ele do chá, o vegetalismo, com suas purgas e dietas, e o Santo Daime com seus rituais
estava dirigindo, se afundou na bebida e passou a ficar nas ruas. Será que a ayahuasca musicais. O vegetalismo peruano é uma medicina amazônica, uma forma de cuidar
(cocção de plantas amazônicas também conhecida como Daime) pode ajudar estas das pessoas através das plantas, pois acredita-se que as plantas tem espíritos, são
pessoas a enfrentar melhor tão grandes desafios que a sociedade lhes impõe? A aya- seres vivos que vão saber agir no corpo do doente e melhorá-lo, fortalece-lo. Já o
huasca é um chá feito de duas plantas amazônicas, o cipó jagube e a folha da chacrona. Santo Daime é outra forma mestiça de uso do chá, com influências cristãs, indíge-
Vem sendo usado de forma ritual por mais de 70 etnias indígenas da Amazônia e por nas e africanas, fundado por Mestre Irineu Serra, um negro maranhense nascido um
religiões brasileiras como o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal. ano depois do fim de escravidão. O grupo que acompanhei, chamado Unidade de
São muitas as histórias individuais que dão corpo a este grande fenômeno Resgate Flor das Águas, misturava estes dois tipos de ritual para poder recuperar
contemporâneo, o morar na rua. O número de pessoas em situação de rua só aumen- as pessoas em situação de rua que queriam se cuidar com eles. Em minha pesquisa
ta no Brasil e no mundo. Só na cidade de São Paulo passamos de 8 mil em 2000 para de mestrado acompanhei os tratamentos e aprendi com o grupo. Desta pesquisa
15.900 pessoa em situação de rua no ano de 2015, um aumento de 82,6%. Milhares resultou o livro “O Uso Ritual de Ayahuasca na Atenção à População em Situação
de histórias de frustração, fracasso, força, superação, criatividade e escolhas de out- de Rua”, publicado pela EDUFBA.
ros modos de vida, histórias individuais, que formam um fluxo social. Diversos fatores A ayahuasca no Brasil, no entanto, só pode ser utilizada em contexto reli-
formam este fenômeno tão contemporâneo, como a alta rotatividade no mercado de gioso, sendo por enquanto vedado seu uso terapêutico. A questão é que a fronteira
trabalho, que em conjunto com a constante necessidade de mão de obra especializada entre o que é terapêutico e o que é religioso é muito nebulosa, se é que existe.
exclui um contingente da população do mundo regulado por leis e direitos. A seletiv- Acreditar no processo terapêutico, no médico, na medicação, no psicólogo, etc,
idade penal que permeia nosso sistema de justiça, se expressa na majoritária punição é um ponto que aumenta muito a chance de melhora. Nas igrejas e grupos aya-
dos pobres que, na maioria das vezes, não conseguem reestruturar suas vidas após a huasqueiros são constantes os relatos de superação de problemas como dependência
primeira condenação. Nesses casos bastante comuns, o de drogas, depressão ou ansiedade. Apesar desta lim-
destino dessas pessoas é a rua, viver abaixo de pontes e itação na legislação, algumas clínicas e comunidades
viadutos. terapêuticas têm integrado os rituais religiosos com
Viver nas ruas é algo árduo. A chuva, o sol es- ayahuasca no seu programa de tratamento.
caldante, o frio... Todos os climas em seus extremos são E de que forma estas melhoras acontecem? Com
difíceis, assim como os olhares e ações da sociedade. a ayahuasca, assim como com a Ibogaína ou outro
Estar em situação de rua aumenta o risco para diversas psicodélico como a psilocibina (que pode ser encontra-
doenças. Para aguentar a rua, grande parte deles fazem da em alguns cogumelos), fatores como a expectativa
uso de álcool e outras drogas. As drogas estão presentes do paciente, sua confiança nas pessoas à sua volta
em quase todos os momentos da nossa vida e de nossos e o ambiente influenciam diretamente na experiência
encontros sociais, e algumas vezes de forma muito dis- que a pessoa terá. Da mesma forma como influencia
tintas. Passando pelo cafezinho no trabalho, o remédio na experiência durante o efeito, a expectativa também
pra dor, a droga pra aplacar a angústia, o álcool para se vai influenciar nos resultados.
alegrar em grupo esquecendo dos problemas... Depen- Para que se atinja o resultado desejado, a substân-
dendo do contexto as drogas ocupam lugares diferentes cia precisa estar inserida dentro de um processo de
na relação conosco. A folha de coca e seus derivados é tratamento. Recente pesquisa realizada na NYU mos-
um ótimo exemplo disso: vai de planta sagrada fun- trou (Johnson et al.2016) ótimos efeitos da psilocibina
dante da cultura Inca ao Crack, usado de forma muitas na cessação de fumar em fumantes. A psilocibina tem
vezes problemática. Sou psicólogo, e trabalhando com este feito quando inserida num processo como o da
as pessoas na Cracolândia sempre ficava muito tocado pesquisa, no caso com acompanhamento de terapia
com o nível de sofrimento das pessoas e a falta de res- cognitivo-comportamental, não é só tomar cogumelos
posta a estas situações tão urgentes. A resposta do gov- que se vai querer fumar menos cigarros, não neces-
erno tem sido invariavelmente a de trazer mais violência sariamente...
e estigma. Na cidade de São Paulo, durante a gestão do De que forma uma experiência pode levar a mu-
prefeito Fernando Haddad (PT) (2013-2016) se esboçou danças no cotidiano, nos hábitos de vida? Estes pro-
uma nova política, oferecendo cuidado e qualidade de cessos acontecem e são construídos geralmente dentro
vida, algo que vem sendo desmontado pela atual gestão de relações, seja com indivíduos como o terapeuta, o
do prefeito João Dória (PSDB), que oferece o de sempre: curandeiro, o médico, o xamã ou grupos. Cada uma de-
tiro, porrada e bomba, além de internações em espaços stas substâncias está inserida em contextos diferentes,
de tratamento religiosos. E mesmo que a gestão gover- diferentes relações e formas de uso, algumas com cono-
namental estivesse realmente preocupada em cuidar da tações mais ocidentais, outras mais religiosas ou ritu-
situação, não teria muito a oferecer. Os espaços tradicio- ais nativos. Estas relações vão permitir que a pessoa se
nais de cuidado, como as comunidades terapêuticas ou entregue ao processo, além de ajudar a dar sentido à
clínicas especializadas não tem grande eficácia, além de experiência. Estamos ainda começando a compreender
muitos apresentarem constantes relatos de violações de a complexa interação entre o sujeito, o ambiente e a
direitos humanos. Ao mesmo tempo, a política pública substancia, e o que se vê é que o uso terapêutico de
atual da Rede de Atenção Psicossocial, que busca não substâncias tão fantásticas como a ayahuasca ou a Ibo-
segregar e tratar da pessoa em seu território, também gaína parece se distanciar do uso convencional de me-
não tem dados sobre sua eficácia. dicamentos e estar mais próximo de uma ferramenta
Depois de mais de dez anos trabalhando com para processos de psicoterapia, em que o terapêutico
pessoas em situação de rua que usam crack na região da se dá na relação.
Cracolândia, em São Paulo, Brasil, fui me aproximando
com curiosidade da ayahuasca por conta dos incontáveis * Psicólogo, Mestre em Saúde Pública pela Faculdade
relatos de cura. Será que poderia ajudar as pessoas que de Saúde Pública da USP e doutorando em Saúde Cole-
eu tentava cuidar? Desde então acompanhei e pesqui- tiva na FCM- UNICAMP. É coordenador do Centro de
sei um grupo que utilizava ayahuasca na recuperação Convivência É de Lei.
de pessoas em situação de rua e venho trabalhando no
acompanhamento de pacientes no tratamento com Ibo-
gaína para dependência, onde devo ter atendido cerca
de 400 pacientes. Os relatos sobre estas duas substâncias
na internet são impressionantes.

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QUEIMANDO MITOS ACENDENDO FATOS
Elaborada pelo cientista inglês com os venenos raciais na hereditarie-
Além do tratamento dos usuári-
Francis Galton (1822-1911) na segunda dade, a consequência da reprodução dos
os, uma das propostas de Cunha Lopes
metade do século XIX, a eugenia circu- “intoxicados” era a condenação de uma
estava na repressão da prática abusiva
lou em diversos países como os Estados prole fraca ou anormal. Isto é, filhos de
dos usuários. Para o psiquiatra: “A bran-
Unidos, Dinamarca, França, Alemanha, viciados ou usuários casuais poderiam
dura ou a desídia, as mais das vez-
Argentina, México, Brasil, entre out- nascer com predisposição para o uso
es, observada na aplicação de medi-
ros. Sua concepção de seleção humana de drogas, com sérios problemas físicos
cas coercitivas, muito tem contribuído
não atendeu a critérios homogêneos, ou e mentais ou mesmo com tendências à
para a expansão do vício, por isso
seja, ela foi adaptada mediante às ne- criminalidade. Por vezes, ao analisarem
que, seguros de sua impunidade, os
cessidades políticas e culturais de cada a árvore genealógica de criminosos, eu-
traficantes atuam livremente e os con-
país. Em outras palavras, o critério de genistas concluíram que se tratavam de
sumidores de estupefacientes gozam,
“bem-nascido” em um país poderia ser delinquentes de nascença, em razão do
até a baixo preço, a grande pletora
diferente em outro. Em síntese, o con- uso de drogas no histórico familiar.
das drogas mais apetecidas”.
ceito de eugenia mostrou-se amplo, com Ainda na primeira metade do
Desse modo, a recomendação
interpretação volátil e a reboque de con- século XX, a da Liga Brasileira de Hi-
era de mais internações como método
textos políticos e culturais específicos. giene Mental (LBHM), criada em 1923,
de profilaxia. Em razão do bem da co-
No Brasil não foi diferente. A constituiu um importante movimento de
letividade, do indivíduo e da hereditar-
eugenia ganhou popularidade a partir das negação e combate às drogas. O gru-
iedade, era preciso tornar as substân-
exposições do médico paulista Renato po formado por médicos e psiquiatras,
cias inacessíveis à população. A criação
Kehl (1889-1974), em 1917. Aliada, ini- por meio do seu periódico, os Archivos
de um Sanatório de Toxicômanos e
cialmente, a questões do saneamento e Brasileiros de Hygiene Mental, conde-
a prisão para quem comercializasse
higiene, a eugenia foi considerada uma nou por mais de duas décadas o uso de
ópio, cocaína e seus derivados entra-
alternativa para a recuperação de par- drogas.
vam como ações de combate às dro-
te da população nacional, considerada Em seu primeiro número de 1925, os
gas. Nesse sentido, o endurecimento das
desassistida e doente e condenada ra- Archivos traziam o texto Profilaxia So-
legislações ocupava papel fundamental.
cialmente por razões deterministas. Se cial das Toxicomanias, do Dr. Cunha
O Estado deveria assumir o compro-
devidamente controlada e aconselhada Lopes, Assistente do Hospital Nacional
misso de vigiar e punir todos aqueles
por eugenistas, a hereditariedade brasile- e médico do Sanatório Botafogo. Cunha
que insistissem em comprometer a he-
ira poderia ser aprimorada. Este era um Lopes considerava a toxicomania uma
reditariedade e a moralidade do país.
pensamento que buscava tornar o bra- doença mental e um permanente estado
sileiro uma “raça forte” frente às civili- de alma ávido por prazeres artificiais.
* Historiador, mestre e doutorando em
zações ditas adiantadas. Entre as diversas substâncias que denun-
História das Ciências e da Saúde - Fi-
A eugenia à brasileira também ciava como uma das maiores razões dos
oCruz
Drogas e Eugenia: flertou com métodos considerados mais
extremos. Especialmente no final da dé-
flagelos nacionais e de urgente necessi-
dade de profilaxia, estavam a heroinoma-
cada de 1920, avolumavam-se propostas nia, cocainomania, alcoolo-cocainismo,
teorias científicas a de restrição à imigração por questões ra- morfino-cocainismo, cocaino-veronalis-
ciais e pedidos de endurecimento da leg- mo, etheromania e opiomania.
serviço da moralização islação no combate aos venenos raciais.
* Leonardo Dallacqua de Carvalho Assim, a cartilha de propostas eugênicas
partia desde métodos de higiene pessoal, Homenagem do grafiteiro Paulo Ito ao
educação física até o desaconselhamento
É comum a política de combate
às drogas e parte da sociedade utilizar de
paradigmas “superados” das ciências para
matrimonial e sugestões de práticas de
esterilização.
Em meio à discussão eugêni-
Prof. Elisaldo Araújo Carlini, investigado
legitimar suas ações moralizadoras. Em ca, o combate às drogas foi motivo
2015, por exemplo, o deputado e ex-del-
egado Laerte Bessa (PR), empregou argu-
de extensiva propaganda. Para muitos
eugenistas, o uso de substâncias como
por Apologia ao Crime
mentos lombrosianos do século XIX para a cocaína, o álcool e o tabaco, por
afirmar que no futuro a ciência identifi- exemplo, acarretava na degeneração da
cará ainda no útero bebês com tendências hereditariedade e comprometia a prole.
criminosas. A busca por falsear as ciências Renato Kehl, em seu livro Por que sou
atualmente vem servindo como sub- eugenista?(1937) escrevia sobre a neces-
terfúgio para amedrontar a população, sidade de “eliminar todas as causas que
justificando intervenções no espaço pú- atuando maleficamente sobre o plasma
blico e privado. Uma das principais es- germinal deteriorem as sementes repro-
tratégias está em afirmar que o usuário dutoras. As principais causas nocivas são
é predisposto ao consumo por conta de as doenças da evolução crônica e certos
degeneração hereditária. Na chamada tóxicos euforisticos (álcool, tabaco, co-
“Cracolândia”, em São Paulo, usuários de caína, etc.) que determinam desordens
crack são tratados como degenerados e blastoftoricas (de hereditariedade induzi-
odiados por parte de uma população que da, portanto sem influencia decisiva na
recomenda a aplicação de uma “solução organização ancestral das referidas célu-
final”. Estas perspectivas não são inéditas, las) as quais, não obstante, devem ser,
como apresentarei a seguir. com todo o interesse, evitadas”.
A concepção de eugenia é, por Kehl recomendava que, caso o
excelência, sinônimo de controle de re- indivíduo fizesse o uso de tóxicos, de-
produção qualitativa. Os “bem-nascidos” veria ficar temporariamente ou definiti-
deveriam ser a pedra de toque para a vamente proibido de se casar. Caso o
hereditariedade de toda a humanidade. usuário fosse casado, deveria furtar-se
Por esta razão, a eugenia era a ciência da reprodução para evitar que “[...] suas
responsável pela seleção humana capaz sementes avariadas se ponham em conta-
de povoar o planeta com os melhores to com as células do sexo oposto, fecun-
exemplares da espécie. dando-as”. Em seus estudos, destacava:
Para alguns, o termo ciência “[...] depois de examinar 5.736 famílias,
relacionado à eugenia pode causar es- o Dr. Laitinen concluiu que mesmo em
tranheza, uma vez que sua legitimidade pequenas doses, o álcool exerce uma
científica na atualidade é desprovida de influência degeneradora sobre a prole.
capital de crédito. No entanto, à época Numa família de descendentes de al-
em que foi concebida e maturada, a coolistas, composta de 9 pessoas, o Dr.
eugenia nasceu com o status de ciência Nardelli constatou que todas eram física
e transitou por círculos científicos, in- e psiquicamente degeneradas”.
telectuais, culturais, políticos e sociais. Segundo os eugenistas preocupados

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Ilustração: J.R. Bazilista

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