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A arte da denominação e que a autora chama de


“proto-performances”) até os trabalhos mais
performance – do recentes e midiáticos, como os de Matthew
Barney. Trata-se, então, de rico material que
futurismo ao presente termina por auxiliar a compreensão de tal
período, expondo um conjunto de ações,
invenções e atitudes, que mesmo estando
RoseLee Goldberg, São Paulo: Martins
numa determinada posição paralela ao pró-
Fontes Editora, 2006 prio sistema, foi determinante para a cons-
Alexandre Sá trução de ideário específico que se inicia no
começo do século 20 e se estende até os
dias de hoje.
A performance esteve durante o século 20 no primeiro
plano de tal atividade: O texto, de enorme riqueza de detalhes,
funciona metodologicamente de maneira
uma vanguarda da vanguarda.
jornalística. E talvez seja esse seu maior pa-
RoseLee Goldberg radoxo... Embora seja um documento fun-
damental para a compreensão dessa lingua-
Resenhar um livro já clássico pode ser ta- gem que abrange o teatro, a dança e as ar-
refa absolutamente simples que talvez não tes plásticas, em alguns momentos ele reite-
auxilie em nada o processo de leitura... Tal- ra o paradigma da performance como sen-
vez tenha sido essa a primeira questão que do uma arte viva, que acontece em deter-
surgiu quando me foi proposto escrever minado espaço e que tem no tempo real do
sobre o livro de RoseLee Goldberg, origi- acontecimento sua mais potente diretriz. O
nalmente publicado em 1979, e agora final- que quero dizer é que o texto termina sen-
mente traduzido para o português.1 Sim. do vítima de seu próprio instrumento de tra-
Trata-se de obra de referência para quem balho: a palavra – em determinados momen-
deseja conhecer, investigar ou mesmo ini- tos, o detalhamento das ações e da atmos-
ciar alguma pesquisa sobre a história da fera cênica dos trabalhos é tão forte, que
termina tornando a leitura ligeiramente can-
performance e sobre seus principais artis-
sativa, até porque, por melhor que sejam
tas. É livro básico que oferece generoso
escritas e encadeadas as palavras e as letras,
panorama do assunto e que narra de ma-
elas jamais serão capazes de traduzir a sen-
neira minuciosa grande parte dos eventos
sação de um evento performático.
perfomáticos que foram determinantes para
a instauração dessa linguagem híbrida, ain- Além disso, é importante lembrar que o
da pouco estudada no Brasil. leitor não encontrará uma investigação es-
tética ou filosófica profunda, pois não é esse
O livro abrange a produção moderna e con- o intuito do livro. As questões pertinentes
temporânea, ou seja, ousa investigar desde à performance – como, por exemplo, a
as primeiras produções (que ainda não ti- questão da cena, a tangência entre a
nham consciência de si, nem a clareza da teatralidade e a ação performática, a dilui-

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Resenhas

ção (e não a absoluta aniquilação) do obje- Alexandre Emerick


to de arte, a corporeidade, a liberdade pos-
sível da experimentação em um campo
ampliado que surge pela confluência de prá- Movidas por saudável inquietação frente aos
ticas historicamente estabelecidas, as ques- desafios de fornecer material teórico para a
tões físicas de um corpo social incorpora- discussão da arte da performance em nosso
do no performer, as imbricadas relações meio, as organizadoras Maria Beatriz de
entre sujeito e sua inerente objetividade Medeiros e Mariana F. M. Monteiro dão seg-
subjetiva, a História da Arte como material mento ao empenho iniciado com a publica-
possível de performatização, as estratégias ção de Tempo e performance, em janeiro de
de vigilância/controle e as tentativas poéti- 2007. De certa forma, e não poderia ser di-
cas de escape – servem apenas como pano ferente, em decisivos momentos volta a dis-
de fundo para o livro, mas não são elemen- cussão do tempo em Espaço e performance,
tos determinantes para a reflexão da auto- sendo hoje indissociáveis as idéias de tempo
ra (nesse caso específico). e espaço.

Como dissemos, o livro é utilíssimo como Muitos são os estudos dirigidos à con–
documento histórico, como possibilidade de ceituação do espaço nos últimos anos, des-
construção de um panorama determinado, de revisões que se valem do distanciamento
como base para o começo de uma pesquisa histórico das preocupações do final do sé-
sobre o assunto, como referência bibliográ- culo 19 e início do 20, passando pelas inter-
fica para uma linguagem atípica de bibliogra- venções artísticas no espaço físico e chegan-
fia também híbrida e em certo aspecto esfa- do à máxima virtualidade do espaço digi-
celada, como um primeiro olhar que certa- tal. De fato, o desvio do fisicalismo
mente precisará de outros tantos olhares por newtoniano, alimentado pela teoria da re-
caminhos diversos e não menos tortuosos latividade e pelos pressupostos teóricos da
ao longo de uma gama infindável de corpos física quântica, acentuou-se no decorrer da
(teóricos e práticos) outros. segunda metade do século 20 em parale-
1 Vale lembrar que a autora atualiza e revisa constantemen- lo aos avanços tecnológicos. No campo da
te as edições. arte a performance representa o desloca-
mento decisivo para a conceituação e expe-
rimentação estética do espaço da vida, uma
relação recorrente nas preocupações da arte
Espaço e performance
contemporânea. Nesse rastro lembramos as
manifestações da arte cinética que significa-
Maria Beatriz Medeiros e Mariana F. M. ram o enlace do espaço da obra com o espa-
Monteiro (orgs.), Brasília: Editora da Pós- ço do observador envolvido no processo, mas
Graduação em Arte da Universidade de com a arte da performance desmistifica-se o
Brasília, 2007, 193p. espaço da obra, a identidade da tríade au-

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tor-obra-público manifesta-se como diversos pertinentes ao comentário do es-


Corpobra. A performance como o corpo-a- paço e da performance, como lugar,
corpo no espaço e com o espaço. cinesfera, entrelugar, persona , teleper–
formance, fluxo, processo, cronotopia, e nos
Definitivamente admitido, o espaço da vida
deparamos com expressões como “espaço
como campo de experimentação estética é
em fluxo”, “sujeito em trânsito”, “visões flui-
ampliado para além das limitações do espa-
das”, “territórios afetivos”, “local funcional”,
ço e do tempo imediatos com a mediação,
estimuladas pela reflexão sobre o tema.
a princípio com os registros fílmicos e sua
audiência restrita, alcançando hoje escalas São 13 artigos trabalhando conceitos que
mundiais pelas web cams. discutem a apresentação performática do
corpo e sua inter-relação com o espaço. Às
Agir, estar, presenciar, situações do corpo
vezes de teor mais ensaísta ou em momen-
no espaço despertadas como performance.
tos crítico-descritivos de experiências de ar-
Esquivando-se habilmente da cilada de privi-
tistas ou ações coletivas, a exploração das
legiar algumas de suas implicações em
potencialidades das relações do corpo com
formatada categorização, o livro aponta a
a esfera pública urbana é acentuada. As rela-
dimensão da performance em seu caráter
ções entre espaço e poder ecoam nesse que
híbrido. A performance como força cen-
se apresenta como espaço político.
trífuga estabelecendo conexões entre di-
ferentes categorias, linguagens, contextos e Performance urbana envolve e diz respeito
meios, mas ainda a performance artística apa- a todos, nas escolas, igrejas, shoppings, ruas.
rece como força axial da compilação, segui- A performance artística surge como fagulha
da em presença e vulto pelo teatro com a a despertar-nos desse estado de não-arte-
discussão do espaço cênico, a interação com cotidiano para uma evocação sugestiva de
o público e o desdobramento da idéia de sentidos. Arte pública como incisivo diálogo
espaço do teatro como lugar físico e fixo, entre arte e vida na contemporaneidade,
trazendo para o centro da elaboração cêni- como interseção entre o circuito da arte e a
ca a idéia de mobilidade. Ainda a dança e cultura cotidiana.
sua relação com a música são às vezes co-
mentadas na interação do corpo com o es- O corpo traz a discussão do eu e do outro,
paço. Nessas disposições reencontramo-nos de situação e movimento; o espaço, a idéia
com artistas de presença certa nas páginas de lugar e de localidade; em ambos, a busca
gerais da arte e visitamos artistas e coletivos de superação dos limites fronteiriços. O cor-
recentes com suas aparições expressivas, po, sua presença física ou mediada é a medi-
notadamente em território nacional. da da performance. A relação com o espa-
ço vai além do auxílio em sua compreensão,
Diferentes formações trazem consigo um sendo mesmo partícipe de sua gênese. Em
variado repertório de termos e conceitos sua apresentação performática com o espa-
garimpados em vasto referencial teórico. São ço, temos o corpo como assimilador e
erigidos, revisados ou discutidos conceitos reverberador, gestor e genitor de sentidos.

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O estudo parte de um argumento de Cícero,
The preference for the no qual o orador romano considera aquilo
que nos parece altamente sedutor ao pri-
primitive: episodes in the
meiro olhar o que também nos levaria rapi-
history of western taste damente a sensações de excesso e repug-
and art nância. Gombrich destaca, ainda, a grande
influência exercida por uma historiografia –
articulada inicialmente por Vasari –,
Ernst H. Gombrich.. Londres: Phaidon construída como um organismo vivo, que
Press, 2002, 324p. atingiria a maturidade e entraria em deca-
Rosane Bezerra Soares dência. Diversos artistas e críticos poderiam
considerar sinais de decadência o forte ape-
lo aos sentidos originado de algumas obras,
Último livro escrito por Ernst Gombrich preferindo a sinceridade de trabalhos mais
(1909-2001) e publicado postumamente, The antigos e menos sofisticados.
preference for the primitive apresenta um es-
tudo sobre a contínua variação de gosto na A análise de textos da Antigüidade é segui-
história da arte ocidental, destacando, mais da por comentários sobre as mudanças de
especificamente, os momentos em que tra- gosto a partir do século 18; Gombrich des-
balhos antigos e menos sofisticados ou “pri- taca a influência das obras de Raphael Sanzio
mitivos” são considerados superiores aos mais sobre vários artistas e, por outro lado, o gran-
refinados e fiéis à representação da natureza. de interesse despertado entre pintores e
Em geral essas mudanças são rapidamente colecionadores pela arte da Idade Média. Às
associadas à valorização das tradicionais gra- vezes, a busca da simplicidade estaria rela-
vuras japonesas no século 19 ou das másca- cionada à valorização da espiritualidade, ou-
ras africanas no século 20; entretanto, tras, a atos de nacionalismo; os exemplos
Gombrich procurou demonstrar que tais são diversos, e as razões das mudanças, igual-
movimentos ocorreram continuamente, du- mente variadas. As análises prosseguem até
rante um longo período, por diversas razões. os movimentos de vanguarda do século 20;
o autor demonstra então acreditar na exis-
É importante observar que a noção de tência de padrões na arte, assim como na
primitivismo, no texto, não está relacionada capacidade humana de julgar uma obra me-
à idéia irônica de trabalhos construídos em lhor do que outra. Diante desse quadro, sur-
culturas não industrializadas, mas a algumas giria o desejo de transcender limites e de
obras inseridas em um jogo de valorização e buscar a melhoria dos instrumentos de ex-
desvalorização ocorrido no interior da arte pressão, o que teria envolvido artistas do
européia. Nesse contexto, o autor não se século 20 em torno do “primitivismo”.
limita a descrever as mudanças de gosto na
história; procura ainda suas origens e seus De modo geral o texto é apresentado de
significados, no passado e em tempos mais forma clara, como é habitual nos escritos de
recentes, destacando o papel de escritores, Gombrich. Nele o autor estabelece diálogo
críticos e de artistas nas transformações. entre disciplinas como a antropologia, a filo-

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sofia, a psicologia, por exemplo, reunindo medieval, afrescos, dermografismos do sé-


grandes questões que o perseguiram desde culo 19, o Santo Sudário e mesmo o imagi-
seus primeiros trabalhos, especialmente nário de Bataille), porém, faz perceber que
quanto à natureza da representação nas ar- o problema que se constitui é mais comple-
tes visuais. Abrangente em alguns momen- xo do que “metáfora, abstração ou tema
tos e condensado em outros, o texto é iconográfico”.
acompanhado de 242 ilustrações que pare-
cem ter sido escolhidas apenas para uma Todos os textos estão marcados por cha-
referência geral. Entretanto, um dos elemen- gas, genitais, cortes, buracos. Essas fendas
tos que poderá despertar rapidamente a manifestam-se como fulcro fenomenológico
atenção de muitos leitores é o fato de nas obras. São “sintoma” – irrupção de um
Gombrich permanecer fundamentalmente inconsciente (que é tanto pessoal quanto ‘da
ligado à idéia de progresso nas manifesta- cultura’) na forma – e reafirmam que “uma
ções artísticas que envolvem a mímesis, ou das forças da imagem é de funcionar ao
seja, a imitação da natureza. Acredita que a mesmo tempo como sintoma (interrupção
mímesis tornou-se tão fundamental na tradi- no saber) e conhecimento (interrupção no
ção clássica, que teria distorcido os olhos oci- caos)”,1 e, assim, mesmo a história da arte
dentais em relação à arte de outras culturas; deve ser encarada de modo aberto.
assim, o que requer explicação não é a au- Nessa condição complexa, a arte pode rela-
sência de mímesis, mas sua invenção. É inte- cionar-se com a filosofia, com a sociologia,
ressante destacar que a maior parte de sua com a antropologia e com a psicanálise, e
docência na Universidade de Londres foi autores como Deleuze, Bataille e Freud são
centrada na tradição clássica e na arte do trazidos para o confronto. Mas obra de arte
Renascimento, sobre a qual publicou, não é vista como pretexto, como ocorre
ininterruptamente, diversos artigos. Resta- freqüentemente no confronto da arte com
nos esperar, portanto, a publicação de to- outros campos do saber. Percebemos a lei-
dos os seus artigos e livros no Brasil. tura de Warburg e de Benjamin nesse pon-
to de vista, no qual a arte é sinal de sobrevi-
vência do passado e de antecipação do fu-
turo. Nesse caminho, admite-se, a obra não
L’image ouverte é mais um centro, mas um limite paradoxal
que, atravessado, sempre se renova.
Georges Didi-Huberman. Paris:
O “sintoma”, mesmo produzindo uma gama
Gallimard, 2007, 408 p.
de leituras nas quais corpo e alma, idéia e
Cezar Bartholomeu matéria, e estrutura e espaço se relacionam,
não é a condição isolada da reunião dessas
imagens. Participa seu caráter de “imagens
Didi-Huberman reúne, nesse livro, oito en- teológicas” (sejam clássicas, como afrescos
saios que pareceriam ter sido escolhidos pela da Idade Média, sejam seculares, como a fo-
temática – tratam da representação do cor- tografia), caracterizadas por aparecerem
po. A diversidade dos objetos (arte bizantina, como “encarnação”. Nelas, o sintoma reve-

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