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24/02/2021 Cada crime no seu quadrado

questões de segurança pública

CADA CRIME NO SEU QUADRADO


Áreas de milícia no Rio concentram ocorrências ligadas ao "controle" da população; mortes por intervenção
policial e crimes envolvendo drogas são mais frequentes em regiões de tráfico
JOÃO GADO F. COSTA
23fev2021_15h47

Ilustração de Carvall

N
um Rio de Janeiro acuado entre o tráfico e a milícia, o perfil dos
crimes muda de acordo com a atividade criminosa dominante em
cada região da cidade. É o que mostra um cruzamento inédito de
dados feito pelo Pindograma a partir dos indicadores do Instituto de
Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) e do Mapa dos Grupos
Armados do Rio de Janeiro, que detalhou a divisão da cidade entre
grupos de tráfico e milícia. O resultado do cruzamento mostra que os
crimes seguem uma dinâmica própria e se distribuem de um modo
peculiar pela capital fluminense: enquanto regiões de milícia registram
mais ocorrências relacionadas ao controle da população daqueles
territórios, as de tráfico concentram notificações ligadas a drogas ilícitas e
ações violentas cometidas pela polícia.

Para chegar a esse resultado, o Pindograma usou a divisão oficial da


cidade do Rio em 41 circunscrições de segurança, correspondendo às
áreas de atuação de cada Delegacia de Polícia (DP) carioca, e analisou os
crimes mais comuns em cada uma delas no ano de 2019. Em seguida,
sobrepôs os indicadores de segurança com o Mapa dos Grupos Armados,
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estudo realizado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da


Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), o Núcleo de Estudos de
Violência da Universidade de São Paulo, o datalab Fogo Cruzado, o
Disque Denúncia e a plataforma Pista News. De acordo com esse estudo,
57,5% do território carioca é controlado por grupos milicianos, 15,4% está
nas mãos de facções de tráfico de drogas e 25,2% está em disputa entre
diversos grupos. Hoje, o Terceiro Comando Puro e os Amigos dos
Amigos disputam com o Comando Vermelho o controle do tráfico da
cidade. O mapa abaixo mostra a divisão do Rio entre áreas de tráfico e
milícia feita pelo Geni/UFF:

Um dos crimes mais ligados às áreas de milícia é o de ameaça – crime


tipificado no Código Penal e que inclui práticas variadas – como um
miliciano ameaçar espancar um morador ou destruir as mercadorias de
sua loja. Na Zona Oeste, as delegacias de Campo Grande e Taquara —
que recebem as ocorrências dos bairros de Jacarepaguá e Rio das Pedras
— lideram as ocorrências de 2019. As duas regiões, notórias por serem
berço das primeiras milícias cariocas, tiveram 1.842 e 1.715 casos,
respectivamente. As taxas são 3,5 vezes mais altas do que a média da
cidade. Das dez DPs com as maiores taxas de ocorrências de ameaça, só
uma não se localiza na Zona Oeste — parte da cidade quase inteiramente
dominada pela milícia.

Abaixo, o mapa mostra a distribuição de crimes de ameaça na cidade em


2019 – e torna-se mais escuro, com maior ocorrência desses crimes, em
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regiões como Campo Grande e Taquara, áreas de milícia:

O resultado se repete mesmo considerando a população: as áreas


controladas pelas milícias têm maior incidência por 100 mil habitantes
dos crimes de ameaça. As DPs do Recreio dos Bandeirantes e de
Guaratiba, que incluem várias áreas de milícias, estão entre os locais onde
o crime mais ocorre proporcionalmente à população. É possível que os
números registrados estejam abaixo da quantidade de ocorrências reais.
Além das taxas de subnotificação normais, a milícia carioca é conhecida
por coagir a população a não denunciar crimes.

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As ameaças reportadas são apenas a ponta de uma das principais


atividades econômicas das milícias: a “proteção” aos moradores – que
tem um custo, e alto. Surgidas a partir do anos 2000, as milícias tiveram
seu início como grupos menos estruturados e mais difusos. Com o
crescimento da violência na cidade, dividida entre facções criminosas,
policiais e seguranças privados, começaram a oferecer serviços de
proteção para a população contra o tráfico, altamente organizado e
fortemente armado. A promessa dos milicianos era expulsar os
traficantes e manter a paz numa dada região mediante o pagamento de
uma taxa por parte do comércio e dos moradores locais. As populações
logo tornaram-se reféns desses supostos protetores. Os grupos
organizaram-se e tornaram-se as autoridades máximas nesses territórios.
Quem não obedecesse a eles ficaria sujeito à violência física contra si ou
contra seus estabelecimentos e, em último caso, à morte. “A proteção e a
extorsão são os mercados criminais das milícias por excelência”, afirma o
sociólogo Daniel Hirata, da UFF.

Os milicianos passaram a controlar serviços como transporte por meio de


vans, conexões de internet e tevê, fornecimento de eletricidade e
disponibilização de serviços de transporte. Tudo a preços abusivos, sem
que a comunidade tivesse como escolher de quem comprar. As milícias
passaram, assim, a regular atividades comerciais legais e ilegais dentro
das comunidades. A cientista política Jessie Bullock, pesquisadora da
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Universidade de Harvard e estudiosa do tema, diz que, diferente das


outras organizações criminosas do Rio, as milícias se sustentam mais pelo
controle da população do que por meio de uma atividade comercial como
a droga. A lógica da milícia é a de manter o controle sobre uma região e
gerar renda através da extorsão e do controle de algumas atividades
econômicas da comunidade.

Um dos esquemas criminosos mais comuns é a revenda de gás de


cozinha (GLP) a preços mais altos que o padrão. A Agência Nacional do
Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) é o órgão responsável
por, dentre outras atribuições, fiscalizar as revendas de GLP no país.
Entre 2019 e 2020, a ANP realizou 63 ações de fiscalização relacionadas à
revenda de GLP em 45 endereços do Rio de Janeiro, dos quais o
Pindograma localizou 34. Desses 34 endereços, 22 estão localizados em
comunidades controladas por milícias ou a poucos metros delas, como
mostra o mapa, com o acúmulo de pontinhos vermelhos na Taquara e em
Guaratiba, ambos na Zona Oeste.

Investigações em curso têm mostrado o envolvimento frequente de


policiais com a milícia. Na ativa ou já fora da corporação, eles muitas
vezes integram os bandos ou atuam até como chefes das milícias. Isso
pode ajudar a explicar por que há muito menos ações policiais nas áreas
de milícia que nas áreas de tráfico. Os dados sobre mortes decorrentes de
intervenção policial mostram que tais registros praticamente não

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ocorrem em regiões de milícia. Enquanto isso, são altíssimas nas áreas de


tráfico ou nos territórios disputados, como mostra o mapa.

Em 2019, a delegacia com mais mortes por intervenção policial foi a de


Bangu (Zona Oeste), seguida pela da Pavuna, com 99 e 58 ocorrências
respectivamente – isso equivale a 5,6 e 3,3 vezes a média da cidade. As
duas regiões são áreas dominadas majoritariamente pelas principais
facções do tráfico, mas onde há também conflitos com a milícia. O alto
número de homicídios por parte de policiais na DP da Taquara, onde
houve 47 casos em 2019, pode ter uma explicação similar, já que a Cidade
de Deus é um dos poucos territórios da Zona Oeste onde o tráfico retém
influência.

As taxas por 100 mil habitantes também indicam que regiões de milícias
são menos afetadas pela violência policial. Desconsiderando os bairros
pouco populosos do Centro e os bairros mais ricos da Zona Sul, as
menores taxas de homicídios em intervenções policiais são em Guaratiba,
no Recreio, em Santa Cruz e em Campo Grande, regiões de milícias – e
que são as áreas mais claras do mapa. As mais altas são em Santa Teresa,
Pavuna, Piedade e Inhaúma, áreas do tráfico ou áreas de conflito entre o
tráfico e a milícia.

Já os homicídios dolosos têm comportamento diferente: são mais altos


em áreas da cidade marcadas por conflitos entre grupos de criminosos,
seja tráfico ou milícia. As DPs de Bangu e da Pavuna estão no topo da
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lista. São áreas marcadas pela ação de três facções do tráfico em disputa
pelo controle das comunidades. Há também atuação de grupos de
milicianos, ainda que em menor grau que em outras regiões. Em seguida,
as áreas com maior número de homicídios são as delegacias de
Bonsucesso, que recebe ocorrências do Complexo do Alemão, palco da
disputa entre o Comando Vermelho (CV) e o Terceiro Comando Puro
(TCP), e da Taquara, onde o CV está em conflito com a milícia.

A história é parecida nos índices por 100 mil habitantes. Desconsiderando


as regiões do Centro pouco povoadas, a Pavuna lidera o ranking de
homicídios em relação à população. Em seguida, vem a DP da Cidade
Nova, na região central do Rio, para onde vão os registros de morros
como Fogueteiro e do Complexo de São Carlos, onde o CV disputa a
hegemonia com a milícia e o TCP; e em terceiro lugar fica a DP de
Inhaúma, bairro da Zona Norte dominado pelo CV mas também local de
confronto com os milicianos.

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O tráfico de drogas no Rio de Janeiro, nas proporções que tem hoje, se


consolidou na década de 1980, quando a cocaína se solidificou como uma
das drogas recreativas mais populares. Nessa época, o Comando
Vermelho — facção fundada em 1979, com estrutura hierarquizada para a
coordenação de crimes — começou a traficar o produto e cimentar sua
posição na região como o principal fornecedor de drogas do Rio. A partir
dos anos 1990, o tráfico se estabeleceu e provocou um aumento dos
confrontos em diversas comunidades da cidade, com o surgimento de
facções rivais.

Os crimes envolvendo drogas ilícitas (tráfico ou apreensão de drogas) são


mais frequentes em regiões da Zona Norte controladas por facções do
tráfico. As DPs de Bonsucesso, Brás de Pina, Penha e Pavuna estão entre
as líderes de ocorrências desses dois crimes. Na Zona Sul, a DP do Leblon
também teve registros significativos – para esta delegacia vão, por
exemplo, parte das ocorrências dos morros do Pavão-Pavãozinho-
Cantagalo, área do CV. No Leblon, bairro de classe média alta na Zona
Sul carioca, a alta frequência de crimes envolvendo drogas está mais
associada às ocorrências de posse da substância.

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A DP que mais registrou crimes envolvendo drogas, no entanto, foi a de


Bangu. Em 2019, foram 270 ocorrências de tráfico e 843 de apreensão. Os
casos de tráfico na região destoam significativamente do restante do Rio,
pois correspondem a cinco vezes a média da cidade e quase o dobro de
Bonsucesso, região que aparece em segundo lugar nesses crimes. Essa
distorção pode ser provocada pelo fato de o Complexo Penitenciário de
Gericinó (antigo CP de Bangu) ser localizado na jurisdição da DP, pois as
tentativas de levar drogas para dentro do presídio são comuns.

Em termos relativos, as DPs da Pavuna e de Bonsucesso, ambas


localizadas em áreas controladas pelas facções, tiveram quase oito vezes
mais crimes de apreensão e tráfico por 100 mil habitantes que Campo
Grande e dez vezes mais que o Tanque (zona da milícia). Comparado
com Santa Cruz, o número é 22 vezes mais alto.

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É preciso ressalvar, no entanto, que o perfil dos crimes dos grupos


criminosos está mudando. A socióloga Maria Isabel Couto, pesquisadora
do Fogo Cruzado, projeto que mapeia tiroteios no Rio de Janeiro, afirma
que, em anos recentes, já existe “uma sobreposição dos padrões de
atuação desses grupos, com a milícia atuando por vezes junto ao tráfico
[…] e com o tráfico avançando sobre a regulação de diversas atividades
econômicas nos locais que dominam.” O envolvimento direto de agentes
estatais com as milícias se torna um problema para os registros de crimes
envolvendo drogas nessas áreas. A falta de denúncias contra os
paramilitares e a falta de investigação por parte da polícia ajudam a
mascarar a realidade.

Por ora, porém, a distribuição geográfica dos crimes ainda parece se


alinhar às atividades econômicas típicas dos grupos criminosos:
enquanto as facções do tráfico focam na movimentação da droga e são
alvos de ações do Estado mais frequentemente, as milícias atuam para
manter o rígido controle da população – usando a ameaça e a violência
como argumentos.

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