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ANTROPOLÍTICA

Nº 5 2º semestre 1998

ISSN 1414-7378
Antropolítica Niterói n. 5 p. 1-106 2. sem. 1998

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© 1999 Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da UFF
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Edição de texto: Sônia Peçanha
Projeto gráfico e capa:José Luiz Stalleiken Martins
Editoração eletrônica: Jussara Moore de Figueiredo
Digitação: Khátia M. P. Macedo
Supervisão Gráfica: Káthia M. P. Macedo
Coordenação editorial: Ricardo B. Borges

Catalogação-na-fonte

A636 Antropolítica : revista contemporânea de Antropologia e Ciência Política. — n. 5


(2. sem. 98) - — Niterói : EdUFF, 1997-
383v. : il. ; 23 cm.
Semestral.
Publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da
Universidade Federal Fluminense.
ISSN 1414-7378
1. Antropologia Social. 2. Ciência Política. I. Universidade Federal Fluminense.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política.
CDD 300

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Hildete Pereira de Melo Hermes de Araújo AryMinella(UFSC) OtávioVelho(PPGAS/UFRJ)
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ZairoBorgesCheibub GláuciaOliveiradaSilva(PPGACP/UFF) SimoniLahudGuedes(PPGACP/UFF)
IsabelAssisRibeirodeOliveira(IFCS/UFRJ) TâniaStolzeLima(PPGACP/UFF)
JoséAugustoDrummond(PPGACP/UFF) ZairoCheibub(PPGACP/UFF)

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SUMÁRIO

ARTIGOS
JORNALISTAS: DE ROMÂNTICOS A PROFISSIONAIS .......................................7
Alzira Alves de Abreu

MUDANÇAS RECENTES NO CAMPO RELIGIOSO BRASILEIRO ........................ 21


Cecília Loreto Mariz e Maria das Dores Campos Machado

PESQUISA ANTROPOLÓGICA E COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL : NOVAS


DISCUSSÕES SOBRE ANTIGOS PROBLEMAS ........................................... 45
José Sávio Leopoldi

TRÊS PRESSUPOSTOS DA FACTICIDADE DOS PROBLEMAS PÚBLICOS


AMBIENTAIS ......................................................................................... 63
Marcelo Pereira de Mello

DUAS VISÕES ACERCA DA OBEDIÊNCIA POLÍTICA : RACIONALIDADE E


CONSERVADORISMO ........................................................................... 81
Maria Celina D’Araujo

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ARTIGOS

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7

JORNALISTAS: DE ROMÂNTICOS
A PROFISSIONAIS*
ALZIRA ALVES DE ABREU* *

O texto procura identificar e analisar como as mudanças técni-


cas, políticas e econômicas, que o país viveu nas últimas déca-
das, introduziram exigências na formação e desempenho dos
jornalistas brasileiros. A introdução do marketing nas empresas
jornalísiticas é um dos exemplos dessas transformações e da
mudança na visão dos profissionais da mídia.
Palavras-chave: jornalistas, transição, democracia,
profissionalização.

I NTRODUÇÃO
Os jornalistas brasileiros sofreram, ao essas posições até os anos 70. Indicar
longo das últimas décadas, uma algumas dessas alterações é o objeti-
reestruturação nas suas estratégias e vo deste texto.
posições, decorrentes das mudanças
políticas, econômicas e tecnológicas Ao trabalharmos com o discurso dos
que ocorreram na sociedade, e que jornalistas 1 sobre o processo de mu-
tiveram repercussões no sistema cul- danças ocorrido nas últimas décadas
tural. Conseqüentemente, mudou o na imprensa e no jornalismo brasi-
perfil dos jornalistas, se compararmos leiro, um tema nos apareceu com fre-
os que ocupam hoje as posições es- qüência: o jornalista é visto hoje como
tratégicas e de maior prestígio na profissional e pragmático, por oposi-
mídia com aqueles que ocupavam

* Este trabalho é parte do projeto “Brasil em transição: um balanço do final do século XX”, apoiado pelo
Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (PRONEX). O projeto tem o CPDOC da Fundação Getúlio
Vargas como instituição-sede e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da UFF
como instituição participante. Parte deste trabalho foi apresentado no Xth International Oral History
Conference. Rio de Janeiro, 14-18 de junho de 1998.

** Doutora em Sociologia, Universidade de Paris V, Pesquisadora do CPDOC/FGV e coordenadora do


projeto “Brasil em transição” .

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ção ao passado, quando era românti- mação profissional específica, porta-


co e boêmio. Profissionalismo e ro- dor de um diploma de curso superi-
mantismo são palavras utilizadas tan- or de jornalismo. A exigência do di-
to pelos jovens quanto pelos mais ploma surgiu em 1969, quando foi re-
velhos, e a oposição parece ter o sig- gulamentada a profissão e foi defini-
nificado de que antes (até a década da uma área de trabalho que só pode
de 70) os jornalistas tinham um ser exercida por pessoas portadoras
envolvimento político e ideológico de um atestado de formação especí-
claro, agiam em função de determi- fica para a profissão. Através da
nados valores e utopias, enquanto institucionalização do monopólio das
hoje isso não ocorre mais. Hoje a pro- oportunidades de trabalho na área
fissão teria perdido o seu caráter ro- de comunicação, instituíram-se tam-
mântico e ideológico porque, no di- bém os princípios de classificação so-
zer de um dos jornalistas que ouvi- cial baseados no mérito da ocupação
mos, com o fim da bipolaridade di- (BARBOZA, 1998). A partir daí pode-
reita- esqueda, capitalismo-socialis- se dizer que os indicadores formais
mo, com o fim das utopias, com a vi- de verificação do grau de
são pragmática de mercado e a pre- profissionalização estavam preenchi-
dominância do sistema neoliberal e dos, com a existência de uma associ-
suas conseqüências, mudou a forma ação (ABI), regras de conduta codifi-
de o jornalista lidar com os fatos e cadas e uma formação específica que
praticar quotidianamente a sua ati- permite controlar o acesso à profis-
vidade. são.

É certo que as mudanças que ocorre- A profissionalização veio como uma


ram na estrutura da imprensa a par- exigência da ampliação das deman-
tir, principalmente, dos anos 70, cri-
das do mercado, com o crescimento
aram as condições para a entrada dos meios de comunicação de mas-
em cena de um novo tipo de jorna- sa, e a implantação da grande indús-
lista, o que está munido de uma for- tria cultural. É nesse momento que
aparecem as lógicas da diferencia-
ção social, quando os membros do grupo que atuavam visando à organização

do espaço do trabalho buscam limi- faculdades de jornalismo ou de co-


tar a concorrência através do estabe- municação.
lecimento de fronteiras, regularizan-
do a profissão. A ela só terão acesso
agora aqueles que possuírem uma
O REJUVENESCIMENTO DAS
formação especializada, obtida nas REDAÇÕES

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Quando se fala da profissionalização reção. Ao contrário da geração mais
de hoje, por oposição ao romantis- jovem, os nascidos nos anos 20/30
mo de ontem, parece que se quer iniciaram a vida profissional quando
estabelecer uma distinção entre o o país vivia em pleno regime demo-
perfil do jornalista que ocupava as crático, quando havia liberdade de
redações até o final dos anos 60 e o imprensa. Concentramos nossa aná-
perfil dominante na atualidade. Essa lise nessas duas gerações, porque
distinção pode ser visualizada a par- estamos interessados em trabalhar
tir dos dados de nossa pesquisa, que com aqueles que têm o poder de de-
observou os jornalistas de maior po- finir orientações. Entretanto, no in-
der e prestígio nas redações dos jor- terior das redações, coabitam várias
nais de maior circulação do Rio de gerações que ocupam diferentes fun-
Janeiro, São Paulo e Brasília. Iden- ções na hierarquia.
tificamos, grosso modo, duas gerações
que se cruzam nas redações. As duas gerações se distanciam,
quando analisamos as imagens que
Dos 41 jornalistas analisados, 29,3% elas próprias têm sobre o seu papel
(12) pertenciam à geração nascida social. Os mais velhos, os “românti-
nas décadas de 20/30 e 70,7% (29) à cos”, se identificam como mediado-
geração dos anos 40/50. Os jornalis- res entre a sociedade global e o indi-
tas que ocupam hoje as posições de víduo, entre a população e o poder
maior poder e prestígio nas redações, público. Percebem seu papel como o
os que têm cargos de direção, são os de guias, que ajudam a educar os
pertencentes à geração mais jovem, leitores. Nesse caso, o jornalista não
ou seja, os nascidos no pós-guerra. se vê como uma simples caixa de res-
Essa geração iniciou a vida profissio- sonância, mas como um intérprete da
nal durante o regime militar e foi sociedade, como um servidor públi-
atingida em sua trajetória de vida por co. Seu papel é formar a opinião
uma conjuntura que suprimiu todas pública. O jornalismo está voltado
as liberdades democráticas. Seu para a defesa de determinadas cau-
aprendizado profissional foi feito sob sas, para bandeiras políticas, é uma
a censura dos meios de comunicação. missão. Essas tarefas que eles se atri-
Os mais velhos são hoje colunistas de buem devem ser entendidas como
prestígio, ou ocupam um cargo espe- um ideal que eles tentaram transfor-
cial nas empresas, mas não detêm mar em práticas profissionais. O jor-
nenhum cargo ou posição de direção nalismo missionário continua sendo,
nas redações. Muitos ocuparam esses para essa geração, o horizonte da pro-
cargos até os anos 70. É verdade que fissão, o que em parte vai conduzir a
encontramos ainda dois jornalistas uma visão crítica do jornalismo de
nascidos nos anos 30 que se encon- hoje, visto como de má qualidade,
tram em posições de chefia e de di- decadente e degradado.

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Os mais jovens, os nascidos nas dé- mentos para a análise da mudança
cadas de 40/50, ao iniciarem a car- social e das interações sociais. Tra-
reira nos anos 60, ainda viam o jor- balhamos com o conceito de geração
nalismo como uma forma de pensar presente basicamente nas análises de
o país. Alguns, como uma forma de Karl Mannheim, que considera o es-
atuação revolucionária. Um dos jor- tudo das gerações essencial para o
nalistas que ouvimos nos disse: “Nós entendimento da mudança social,
achávamos que o jornalismo era uma algo que abre caminho para um
missão; informar era ajudar a trans- melhor conhecimento da história e
formar a sociedade, era um exercí- ajuda a reconstituir os momentos de
cio democrático. Estava ligado com rápida mudança em uma dada soci-
a ideologia que nós tínhamos. Passar edade (MANNHEIM, 1990). A exis-
ao povo as informações, denunciar tência efetiva de uma geração, segun-
as arbitrariedades, os escândalos, isso do Mannheim, passa pela ocorrên-
tinha uma chama de transformação. cia de mudanças que determinam a
Hoje ser jornalista é uma profissão produção de vínculos criativos entre
como outra qualquer, de advogado, cada geração. O processo de mudan-
médico, dentista. Não sei se isso é ça leva ao surgimento de novos gru-
bom. Tem o lado bom, sem dúvida, pos de idade, ao seu contato com o
esse lado profissional”. No entanto novo e com a herança cultural acu-
hoje, essa geração mais jovem mu- mulada.
dou de perspectiva, defende que o
jornalista deve ser um profissional a Nas duas últimas décadas, mudan-
serviço da informação. Ele é um pro- ças profundas ocorreram nas empre-
dutor e um difusor da informação, sas jornalísticas. Realizaram-se gran-
aquele que deve relatar o que está des investimentos em equipamentos,
ocorrendo para que a população pos- introduziram-se novas tecnologias,
sa ter elementos para tomar posições, houve mudanças na estrutura em-
fazer julgamentos. Essa geração con- presarial e na gestão administrativa,
sidera que seu papel é o de testemu- concentração dos veículos de comu-
nho da história, é o de relator da his- nicação e alargamento e diversifica-
tória de seu tempo. Para o desempe- ção do público consumidor. Ao lado
nho desse papel, eles detêm a técni- disso, a concorrência e a competição
ca da informação. se tornaram mais agudas no campo
profissional, exigindo um novo per-
Para entendermos as atitudes e os sis- fil para os que trabalham com a in-
temas de valores de determinados formação.
grupos sociais, e as estratégias que
utilizam para ascender socialmente, No passado, as redações eram um
consideramos que a passagem de espaço de prestígio intelectual. Nos-
uma geração a outra nos fornece ele- sos mais conhecidos e prestigiados

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escritores, poetas, críticos literários e giado para a defesa das posições par-
de arte foram homens de imprensa tidárias e ideológicas. Hoje os edito-
– basta lembrar Alceu Amoroso riais perderam a importância, são
Lima, Álvaro Lins, Otto Lara destinados a uma faixa específica de
Rezende, Carlos Drummond de leitores que vêem neles uma fonte de
Andrade. Muitos deles se identifica- orientação sobre determinados assun-
vam profissionalmente como jorna- tos. A perda de importância do edi-
listas; outros, embora escrevendo di- torial pode significar que a impren-
ariamente nos jornais, não poderiam sa se tornou menos militante e me-
ser assim considerados. Os editoriais, nos partidária. Ela é mais plural,
espaço reservado para o jornal ex- deixou de ser opinativa, é menos
pressar sua posição política, eram adjetivada, é mais crítica. Na medi-
pensados e formulados pelos jorna- da em que são menos partidários, os
listas/ intelectuais. As redações con- jornais cada vez se diferenciam me-
tavam com jornalistas que não só nos. Os manuais de redação foram
analisavam e comentavam os acon- em parte o instrumento utilizado
tecimentos políticos, como se viam para impor uma padronização, tan-
no papel de indicar alternativas para to na forma de construir a notícia
as mais variadas questões. Os jorna- como na de elaborar o texto. Até os
listas podiam ter e tinham opinião. anos 70, o mercado era ocupado por
um grande número de jornais, de
Até os anos 60, quando a indústria diferentes orientações partidárias, e
de massa era incipiente, a imprensa o público leitor desses jornais era o
podia ser considerada partidária. eleitor dos diferentes partidos. Hoje
Ou seja, embora os jornais não fos- os grandes jornais do Rio e de São
sem sustentados pelos partidos, re- Paulo estão disputando o leitor do
fletiam os seus diferentes interesses centro e, para isso, não importa o que
ideológicos. Basta lembrar dos anos diz o editorial, e sim a cobertura das
50: O Globo era o jornal que defendia notícias. É claro que isso não quer
as idéias e posições liberais da UDN, dizer que a cobertura das notícias seja
assim como O Estado de S. Paulo; a Úl- isenta, e que o jornal não tome posi-
tima Hora era partidária e defensora ção.
das posições do PTB, enquanto ou-
tros se alinhavam às posições do PSD. A profissionalização foi afastando o
Os jornais gravitavam em torno da escritor, o intelectual, da imprensa.
personalidade do dono ou do reda- Eles agora podem colaborar como
tor chefe do jornal. Havia o jornal cronistas, colunistas, eventualmente
do Lacerda, o jornal do Samuel assinar artigos, mas não integram
Wainer, o do Dr. Roberto, o dos mais as redações. Muitos jornalistas
Mesquitas, o do Macedo Soares etc. da geração dos anos 20/30 que fize-
Os editoriais eram o espaço privile- ram parte da nossa amostra conside-

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ram o jornalismo como uma forma la princípios, ou idéias básicas para
literária, que como tal deve ser culti- a orientação da sociedade, e a impo-
vada. Para essa geração, a grande sição da voz do técnico, do expert. No
perda do jornalismo na atualidade debate sobre a função dos intelectu-
foi o texto, que se tornou, no dizer ais e a relação entre política e cultu-
de alguns, muito tosco. Os jornais ra, Norberto Bobbio (BOBBIO, 1997,
teriam perdido a qualidade, entre p. 72) procura mostrar que caiu em
outras razões porque a forma de descrédito o intelectual engajado
apresentar a notícia é muito pobre e politicamente, o utopista, que “gos-
o texto é muito mal escrito. taria de mudar o mundo à sua ima-
gem e semelhança. Passou a ter mais
A profissionalização determinou ain- crédito o intelectual com os pés na
da outras perdas. Antes os jornalis- terra, que aconselha o político a dar
tas eram mal remunerados, mas ti- um passo de cada vez”. A derrocada
nham vantagens: não pagavam im- da utopia comunista anunciou a mor-
posto de renda, nem impostos de te do intelectual idealista e fez nas-
transmissão patrimonial, tinham di- cer o intelectual realista. Bobbio re-
reito a preços reduzidos nas passa- toma a distinção weberiana entre
gens aéreas etc. O regime militar ações racionais segundo o valor (in-
extinguiu essas vantagens. telectuais) e ações racionais segundo
o fim (experts). Os intelectuais são
É importante ressaltar que a inter- aqueles que elaboram princípios
penetração entre o meio jornalístico que são determinados pela crença
e o meio intelectual sempre existiu e consciente nos valores, que são aco-
continua a existir, ocorrendo, muitas lhidos como guias da ação; os experts
vezes, uma superposição de papéis são aqueles que, indicando os conhe-
que ora torna mais visível o papel de cimentos mais adequados para alcan-
um, ora de outro. Hoje, no debate çar um determinado fim, fazem com
público sobre as questões de interes- que a ação que a ele se conforma
se da população, os jornalistas se possa ser chamada de racional segun-
identificam com freqüência com os do o objetivo.
experts, com os economistas, transmi-
tindo o parecer, o conhecimento es- O critério para estabelecer a distin-
pecífico dos técnicos que ocupam os ção entre os dois tipos de intelectu-
altos escalões da administração pú- ais, o que distingue um do outro, deve
blica e privada. ser, segundo Bobbio a “diversa tare-
fa que desempenham como criado-
O que na verdade ocorreu na im- res ou transformadores de idéias ou
prensa foi o que se deu na sociedade conhecimentos politicamente rele-
– o silêncio do intelectual que formu- vantes, a diversa função que eles são

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chamados a desempenhar no contex- mas sociais, econômicos, financeiros,
to político”. Assim, por ideólogos ele de ciência e técnica, atividades cul-
entende aqueles que fornecem prin- turais. Os jornalistas estão sendo obri-
cípios-guia, e por experts, aqueles que gados a investir cada vez mais numa
fornecem conhecimentos-meio. formação especializada.

O jornalista hoje não só dá voz ao Os dados que obtivemos em nossa


expert, como também se especializou, pesquisa indicam que houve um ex-
se transformou em um expert. Existem pressivo crescimento de diplomados
hoje na imprensa espaços abertos em cursos universitários: 48,3% (14)
para numerosas áreas que pedem ti- dos jornalistas da geração nascida nos
pos de competência específicas, às anos 40/50 concluíram o curso uni-
vezes muito especializadas: proble- versitário de jornalismo, 6,9% (2), o
curso de direito, 20,7% (6), cursos de
ciências
gia) e 3,4% (1), curso técnico. Por outro lado,humanas (história,
encontramos 17,2%sociolo-
(5) de
jornalistas que iniciaram o curso universitário (direito, história, economia) e
não o concluíram. Somente um jornalista não terminou nem o curso secun-
dário. Dos jornalistas pertencentes Mudou também a forma de o jorna-
à geração nascida nos anos 20/30 que lista se inserir na empresa. Durante
têm formação superior, 41,6% fre- o regime militar, a profissão se tor-
qüentaram curso de direito, somen- nou bem remunerada, já que a polí-
te 8,3% fizeram curso de jornalismo tica se tornou um tema perigoso e,
e 16,7% terminaram curso universi- na época do chamado “milagre eco-
tário de letras. Por outro lado, 16,7% nômico”, as editorias de economia ad-
não concluíram o curso de direito e quiriram enorme importância e pres-
16,7% não possuem o curso secundá- tígio. Os jornalistas dessas editorias
rio. foram levados a fazer uma opção por
uma empresa, a trabalhar em tem-
As mulheres, raras nas redações até po integral em uma só redação. Isso
os anos 60, hoje representam em tor- foi pouco a pouco se estendendo a
no de 35% do total de profissionais. 2 todos os outros setores jornalísticos.
Do grupo analisado em nossa pesqui- O chefe de redação de um dos jor-
sa, 90% nasceram na década de 50, nais de maior circulação do Rio de
e todas têm curso universitário, sen- Janeiro lembra que, quando ele co-
do que 77% concluíram curso de jor- meçou a trabalhar em jornal, em
nalismo e 23% têm curso de história. 1968, “jornalista era uma profissão
A entrada tardia nas redações e a muito mal paga e as pessoas tinham
forte competição obrigaram as mu- vários empregos, quase sempre em-
lheres a uma maior formação esco- pregos públicos. O jornal era mais
lar formal. um “bico”, era uma coisa meio boê-

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mia, uma profissão intelectual. O jor- duto qualquer. Praticamente todos os
nalista também não achava que tinha jornais de grande circulação nacio-
que ganhar muito no jornal, porque nal passaram a utilizar a cor, o que
ali era o lugar onde ele servia à soci- os obrigou a melhorar a qualidade
edade, se divertia também e desem- do papel.
penhava um papel social”.
Essas foram as estratégias desenvol-
O NOVO MODELO DE JOR- vidas pelas empresas de comunica-
ção em sintonia com a publicidade,
NALISMO: O MARKETING mas essas transformações radicais
foram absorvidas diferentemente
A introdução do marketing em todas pelos jornalistas em função da posi-
as empresas, e as pesquisas de mer- ção que ocupam na hierarquia das
cado a ele associadas, vieram tentar redações. Para os que se encontram
adequar o jornal, visto como “produ- hoje nas funções de direção e chefia,
to”, ao público consumidor (leitor, há uma integração à nova concepção
ouvinte ou telespectador) e à publi- e uma imagem positiva na forma de
cidade. A partir das características do o jornal se relacionar com o público.
público, de suas expectativas, de seus A importância da distinção entre gru-
gostos e valores, as empresas defi- pos geracionais aparece aqui com
nem o conteúdo, a forma de apre- maior evidência. Para o diretor de
sentação, e a linguagem do produto redação da Folha de S. Paulo, Otávio
que será apresentado. Essa nova con- Frias Filho, (1997) o grande sucesso
cepção e esse novo método de apre- da sua empresa deve ser atribuído,
sentar a notícia e a informação obri- em grande parte, ao fato de o jornal
garam o jornalista a modificar a for- ser “mais permeável à mudança” e
ma de elaborar o texto, que, em al- ter conseguido “identificar tendênci-
guns casos, tornou-se mais curto, a as, comportamentos e modas, de que
escolher títulos sintéticos, a estabele- se apropriou”. Praticamente todos
cer uma relação entre texto e ima- os jornais de maior circulação no Rio
gem, a diagramar sua matéria de de Janeiro, São Paulo e Brasília uti-
acordo com determinadas orienta- lizam o recurso da pesquisa junto ao
ções, ou seja, criaram uma relação leitor, que procura definir em pro-
estreita entre a redação e as exigên- fundidade as características deste do
cias da publicidade. Ao mesmo tem- ponto de vista socioeconômico, cul-
po, as empresas de publicidade pro- tural e político, e também sua rela-
curaram induzir as empresas ção com o jornal. Alguns jornais fa-
jornalísticas a se tornarem meios de zem essa pesquisa a cada dois anos.
divulgação mais atraentes e seduto- Um outro tipo de pesquisa é a que
res, pois elas são o suporte para a acompanha diariamente a reação
maior e melhor venda de um pro- dos assinantes e visa a aferir a resso-

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nância e o desempenho do jornal Ao mesmo tempo, a combinação da
junto ao leitor. competição que o mercado impõe
com a escassez de recursos das em-
Esses instrumentos de avaliação se presas leva à busca de ampliação
tornaram fundamentais na era da do público leitor entre as camadas
competição e permitem a introdução mais pobres da população, que cons-
de inovações, alterações na forma de tituem a grande massa. Aqui o pa-
apresentar a notícia e conhecer os pel do marketing é definir as expecta-
assuntos que despertam mais interes- tivas e os gostos do leitor. Para o jor-
se no leitor. Otávio Frias Filho mos- nalista Roberto Müller (1998), a im-
tra como a pesquisa junto ao leitor prensa é obrigada a fazer concessões
vem permitindo o sucesso do jornal. ao mau gosto e à vulgaridade. Daí a
Ela propiciou, a partir de 1984, quan- exploração dos escândalos, a apresen-
do teve início sua utilização, a am- tação de histórias dramáticas, o gran-
pliação das colunas no jornal, o au- de destaque para o crime ou para o
mento dos cadernos, a utilização com acidente.
maior intensidade e de forma osten-
siva de recursos gráficos, tabelas, Mas o novo modelo, ao responder à
quadros e mapas. Certos procedi- guerra pela circulação, pela conquista
mentos mais tradicionais de reporta- do leitor, levou à introdução de re-
gem foram revalorizados. Foi criado cursos não-jornalísticos na imprensa,
um padrão de texto muito impesso- tais como a política dos fascículos, dos
al, muito seco, muito descritivo, muito brindes, dos sorteios. Aumentou tam-
rigoroso, no sentido de não admitir bém o número de suplementos
juízo de valor. Evidentemente essas temáticos dirigidos a segmentos soci-
observações sobre o texto se referem ais específicos (jovens, mulher) e
à parte noticiosa do jornal, e não aos ampliou os cadernos dedicados a as-
artigos assinados. suntos como vestibular, informática,
saúde etc. Apareceram ainda com
No novo modelo de jornalismo, o lei- freqüência números especiais dedi-
tor é visto como cliente, e o mercado cados a eventos ou instituições, todos
se torna um instrumento importante com vistas a atrair publicidade. O
no momento de se criar um novo público se beneficiou com um maior
produto que deve estar em sintonia espaço dado às páginas de opinião,
com esse leitor. No jornalismo tra- às seções de cartas do leitor, às se-
dicional, o jornalista escreve acredi- ções de reclamações e de serviços.
tando que sabe o que o leitor quer Em alguns jornais, foi introduzida a
ler, ouvir ou ver. Hoje, cada vez mais, figura do ombudsman, que tem sua tra-
é a pesquisa de mercado que se tor- dição nos países nórdicos europeus e
na o instrumento de aferição das ne- cuja função é criticar o jornal e de-
cessidades do leitor. fender os leitores. A Folha de S. Paulo

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foi a introdutora dessa atividade na resultados das pesquisas diárias fei-
imprensa brasileira em 1989. O tas entre seus assinantes, ele consta-
ombudsman atende os leitores, ouve ta que, mesmo entre estes, que seri-
suas críticas e sugestões e as encami- am em tese pessoas mais qualifica-
nha para a redação. Prepara, por das, com maior poder aquisitivo, as
escrito, uma crítica, que circula in- notícias relativas a “polícia”, ou seja,
ternamente, apontando os erros co- crimes, acidentes etc., têm grande
metidos pelo jornal: ortográficos, de índice de leitura. Isso não significa,
informação e de edição. para esse jornalista, que se deva co-
locar o noticiário de “polícia” na pri-
Mas agradar ao leitor tem limites, meira página nem exagerar nesse
pois o jornal pode, ao tentar satisfa- tipo de noticiário.
zer os gostos do leitor, baixar a quali-
dade da informação e contribuir para Muitos jovens jornalistas chamam a
a permanência de determinadas ten- atenção para o fato de que sem o
dências e valores da sociedade. Os marketing, sem a preocupação com o
jornalistas consideram que as pesqui- lado comercial e sem a participação
sas e o marketing nas empresas fazem de todos nessa busca por vender
parte da nova imprensa, mas acham mais, o jornal desaparecerá. Alguns
que não podem se orientar única e consideram que fazer um bom jor-
exclusivamente pelo gosto imediato nal, que não vende porque a empre-
do leitor. Ricardo Noblat (1997), que sa e os jornalistas não têm uma vi-
dirige a redação do Correio Brasiliense, são do seu público, ou porque não
diz que o jornal “pode e deve usar se preocupam com a gestão interna
recursos de marketing que são aplica- da empresa, é ficar de costas para o
dos a outros produtos; não é possível mercado, não acompanhar as mu-
editar hoje um jornal com base ape- danças.
nas na experiência, na intuição, no
faro”. Entretanto, ao analisar os

Essas posições apareceram com clareza durante o Congresso Brasileiro de


Jornais (1977), do qual participaram 70 jornais. Um dos temas de destaque

nos debates foi a importância de uma culação no país (O GLOBO, 17 ago.


aproximação cada vez maior com os 1977).
leitores, “como um instrumento para
determinar a linha a ser seguida nas O jornalismo está perdendo espaço
próximas edições”. Esta foi a visão dentro das empresas para as áreas
transmitida pelos diretores e chefes comerciais, de marketing e de distri-
de redação dos jornais de maior cir- buição. As pesquisas de mercado co-
locaram os leitores, ouvintes e

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telespectadores no centro da comu- (1997) se identifica com a época em
nicação, o que determinou uma per- que não se consultava o leitor para
da de poder dos jornalistas, transfor- nada e diz: “Imagina se você faria a
mando-os em atores coadjuvantes. Os reforma do Jornal do Brasil consultan-
jornalistas que até pouco tempo atrás do o leitor do final dos anos 50, que
podiam ser considerados como os era constituído pelo público de do-
porta-vozes da opinião pública hoje mésticas: iam dizer não à reforma.
estão cada vez mais distantes desse Isso impediria a inovação”.
papel, que está assegurado pelas pes-
quisas de mercado. São elas que, Alberto Dines (1997a, 1997b), ao ana-
através da consulta permanente ao lisar a fase de transição política e téc-
público, transmitem a informação nica da imprensa dos anos 70/80, a
sobre o que este pensa, quais os seus considera como um período de mui-
gostos e preferências. Essas infor- tas perdas. Ele, que teve papel des-
mações orientam a posição da mídia tacado na imprensa brasileira du-
e dos políticos. rante os anos 60-70, vê com muito
pessimismo o jornalismo que se pra-
A interação entre redação e marketing tica hoje. A seu ver, “a abertura, quer
nem sempre ocorre de forma harmo- dizer, aquele momento que podia ser
niosa. Na maior parte das empresas, o mais feliz da imprensa brasileira,
a orientação do marketing é no senti- foi marcada no governo do general
do de trabalhar ao lado da redação, Geisel e no do general Figueiredo por
de prestar serviços a fim de obter os uma intervenção dos empresários da
melhores resultados na apresentação comunicação na própria essência do
do produto e ganhar a concorrência. fazer jornalismo, com a introdução e
Na realidade, as relações são muitas a supremacia do marketing, com as
vezes de imposição de determinadas mudanças nas redações, com a subs-
regras por parte do lado comercial, tituição das pessoas mais experien-
provocando situações tensas e mes- tes, mais velhas, mais idealistas, mais
mo conflituosas. O jornalista humanistas, por quadros
freqüentemente se sente impedido tecnocráticos que acreditam no
de expressar sua criatividade dian- marketing como a lei número um do
te da imposição dos interesses comer- jornalismo. Tudo isso marca profun-
ciais. damente a imprensa brasileira hoje”.

Mas a reação dos jornalistas perten-


centes à geração dos anos 20/30, os
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“donos de colunas”, é em geral de Dos dados e informações obtidos so-
não-aceitação do que eles chamam de bressaem indícios dos conflitos e das
“ditadura do leitor”, ou de “subser- lutas pelo poder entre as duas gera-
viência ao leitor”. Zuenir Ventura ções aqui examinadas. Tudo indica

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18

N
que, no momento da mudança polí-
OTAS
tica e tecnológica, as gerações mais
velhas, detentoras até então do mo-
nopólio das decisões e dos postos mais
elevados da hierarquia, perderam
essa posição para a geração mais jovem que estava até então excluída das
1 Na elaboração deste texto nos apoiamos nas entrevistas que realizamos com 42 jornalistas, em informações
posições de direção. Uma das explicações para essa substituição pode ser
e dados obtidos em jornais e nas revistas Imprensa e Veja.
encontrada nas oportunidades de acesso a uma formação escolar mais espe-
2cializada e na nas
Dados levantados capacidade
redações dosde acompanhar
jornais: O Globo, Jornalcom maior
do Brasil, O Dia,rapidez
Folha de S. as transforma-
Paulo, O Estado de S.
ções
Pauloque se operavam
e revista Veja. na estrutura tecnológica por parte dos jornalistas mais
jovens. O conflito de gerações deve ser explicado por referência à estrutura
específica das empresas jornalísticas. Quando se deu a transição do regime
autoritário para o regime democrático, ocorria também a abertura de canais
ascendentes de mobilidade social e a abertura de oportunidades de trabalho
em novos veículos de informação, em especial com a implantação e a expan-
são dos canais de televisão.

As exigências do mercado de trabalho levaram os jornalistas, que buscavam


ascender na carreira, a desenvolver estratégias que envolveram uma forma-
ção escolar mais especializada, uma adaptação aos novos recursos econômi-
cos, políticos e simbólicos postos à sua disposição. A competição entre os
meios de comunicação pode ser apontada como um dos fatores determinantes
na mudança do comportamento dos jornalistas. Eles se tornaram mais pro-
fissionais, mais eficientes, por exigência do mercado. A informação está
ligada a operações que vão da coleta à apuração, até a construção da notí-
cia. A estrutura de produção de um jornal exige hoje, primeiramente, um
rigor muito grande no fechamento, o que obriga o jornalista a trabalhar sob
a pressão do tempo e do espaço. O jornal hoje fecha seis horas mais cedo.
Antes, o jornal fechava quando o jornalista acabava de redigir a sua matéria,
ou quando o editor dizia “pode fechar”. A situação mudou, e quem determi-
na o fechamento é outra instância, a comercial. O jornal tem que obedecer a
horários rígidos, pois há contratos com companhias aéreas que distribuem
para outros estados e com serviços terrestres para a distribuição em outras
cidades do mesmo estado. O jornalista hoje trabalha mais: além de preparar
a notícia, ele deve fazer a diagramação, indicar as fotos, desenhos, gráficos,
tudo o que constará da sua matéria. Por outro lado, houve uma redução
drástica de pessoal nas redações. Os repórteres são obrigados a fazer duas
ou três matérias, tudo sob pressão. Um maior controle da qualidade se torna
difícil nesse processo rápido e ágil. Esses são, em geral, os argumentos utili-
zados para mostrar como caiu a qualidade da informação veiculada hoje.

Na verdade, é a competitividade entre os vários tipos de mídia, e a concor-


rência pelo mercado, que são responsáveis pelo comportamento dos jorna-

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listas na atualidade. Não é supérfluo dizer que a informação, além de um
bem simbólico, tornou-se basicamente um bem econômico, uma mercado-
ria. A concorrência obrigou os jornalistas a produzirem para um mercado
cada vez mais competitivo, determinando uma postura menos política e menos
ideológica, diante dos fatos e das notícias. Os jornalistas se tornaram mais
profissionais, mas isso não significa que sejam mais isentos diante da infor-
mação. Ao contrário, estariam “mais inclinados a colaborar com os poderes
externos” (BOURDIEU, 1996). Isso pode significar uma maior dependência
em relação ao poder. Ou seja, teria havido uma redução na autonomia e na
margem de manobra dos jornalistas diante do monopólio da comunicação
que passou a ser exercido pelos políticos e pela opinião pública.

ABSTRACT
This article analyses how the technical, political and economic
changes that Brazil underwnt in the last decades introduced
new requirements for the formation and work performance of
Brazilian journalists. The introduction of marketing concerns
in the journalistic enterprises is an example of these
transformations and of the changes in the vision of of the midia
professionals.
Keywords: journalists, transition, democracy, professionalization

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paris : PUF, 1988.
BARBOZA, Maria Ligia de Oliveira. Para onde vai a classe média : um
novo profissionalismo no Brasil? Tempo Social, v. 10, n. 1, p.129-142, maio
1998.
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MUDANÇAS RECENTES NO CAMPO


RELIGIOSO BRASILEIRO
CECÍLIA LORETO MARIZ*
MARIA DAS DORES CAMPOS MACHADO* *

Duas tendências aparentemente contraditórias marcam o processo


atual de transformação da religião no Brasil. Enquanto cresce,
por um lado, o pluralismo institucional com a multiplicação de
igrejas evangélicas, ocorre uma desinstitucionalização religiosa com
parte da população abandonando uma identidade religiosa
institucional e vivendo uma religiosidade desvinculada de qual-
quer instituição. No presente artigo, tenta-se entender a maior
institucionalização analisando tanto o discurso da “batalha espi-
ritual” e de luta contra outras religiões das igrejas pentecostais,
neopentecostais e dos grupos carismáticos católicos, bem como os
projetos de ampliação institucional e de busca de visibilidade na
esfera pública defendidos por esses grupos. Já para entender a
desinstitucionalização religiosa analisa-se o discurso de indivídu-
os isolados que, em geral, não se identificam com nenhuma reli-
gião propriamente dita adotam um “ecletismo e/ou hibridismo”
religioso.
Palavras-chave: globalização, sincretismo religioso, pentecostalismo,
movimento de renovação carismática, nova-era.

Apesar do atraso de sua publicação, o cen- como David Martin (1990) em seu livro
so geral do Brasil de 1991 trouxe infor- Tongues of Fire e David Stoll (1990) em Is
mações novas sobre as religiões nesse país. Latin American Turning Protestant? estavam
Ratificando a tendência para o crescimen- prevendo. Em 1991, o censo aponta que
to intenso da proporção da população que 8,98 % da população brasileira se dizem
se identifica como “cristã reformada” ou protestante, enquanto Martin e Stoll suge-
protestante, os seus dados revelam, con- riam que fossem 20%. Por outro lado, o
tudo, que naquele ano este percentual não censo traz uma nova e importante infor-
era tão grande quanto alguns autores, mação: um crescimento significativo do

* Professora adjunto do Departamento em Ciências Sociais e da Pós-Graduação em Ciências Sociais PPCIS


da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
** Professora adjunto do Departamento de Letras e Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro.

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percentual dos que se dizem sem religião. mente secularizados e desprovidos de
Já previsto em estudos anteriores (MARIZ, qualquer religiosidade. Os que se decla-
1992), esse fenômeno tem sido ainda pou- ram sem religião não estão declarando que
co analisado pela literatura sobre religião não possuem crenças religiosas ou que
no Brasil – talvez por ser um percentual abandonaram qualquer prática. Podemos
ainda muito baixo em termos nacionais interpretar que se dizer “sem religião” sig-
(4,7%). No entanto, é importante obser- nifica, na verdade, uma não-adesão a uma
var que nos grandes centros no Brasil – instituição ou identidade religiosa: uma
como, por exemplo, o Estado do Rio de rejeição à religião institucionalizada. Des-
Janeiro – os “sem religião” constituem o ta forma, qualquer análise do censo só faz
segundo maior percentual de identidade sentido nos estudos da religião acompa-
religiosa, somente superado pelo da iden- nhada por uma discussão complementar
tidade católica, chegando a ultrapassar o com dados qualitativos1.
daqueles que se dizem protestantes (inclu-
indo, entre estes, os pentecostais). Nesse Sem esquecer nenhuma das considerações
estado, enquanto 12,69% são protestan- acima, não se pode negar o valor dos da-
tes, ou evangélicos, como preferem se cha- dos do censo que indicam transformações
mar,13,73% se dizem sem religião. importantes no campo religioso brasilei-
ro. Essas transformações podem ser
Já chamamos atenção em outra ocasião sumarizadas em duas tendências aparen-
(MARIZ, 1994) para os limites de dados temente contraditórias. Paralelamente a
como os do censo, que indagam apenas a um crescente pluralismo institucional, que
identidade religiosa do informante, no es- se expressa no florescimento de igrejas
tudo da vida religiosa de qualquer socie- evangélicas e no seu fortalecimento en-
dade. O primeiro limite desses dados é não quanto instituições competitivas, ocorre
informar sobre as práticas e crenças. As- também uma desinstitucionalização religi-
sumir uma mesma identidade religiosa osa com parte da população abandonan-
não quer dizer ter uma mesma crença ou do a identidade religiosa institucional sem
prática. No Brasil, os dados do censo re- necessariamente aderir a outra.
velam apenas parte da realidade religiosa
já que é comum encontrar pessoas que fre- Nosso objetivo neste artigo é discutir estas
qüentam simultaneamente mais de um duas tendências. Identificamos como prin-
grupo religioso. Este é, por exemplo, o cipais protagonistas da primeira tendên-
caso de vários fiéis e líderes de religiões cia os chamados grupos religiosos
afro-brasileiras que se dizem católicos. neotradicionais, que seriam as igrejas
Além disso, os que se dizem “sem religião” pentecostais, e também, em parte, o mo-
talvez possam adotar práticas e crenças vimento de renovação carismática católi-
religiosas as mais diversas. Como nos lem- co (MRCC). Argumentamos que a tendên-
bra Colin Campbell (1997), não se deve cia pró-institucionalização religiosa se ex-
assumir que, em qualquer pesquisa, os que pressa nesses grupos de forma particular-
se dizem sem religião sejam ateus – total- mente forte em dois diferentes fenômenos.

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O primeiro, que se observa tanto no nível igreja foi criada no Rio de Janeiro em 1977
da instituição quanto do indivíduo, é a e se tem destacado, entre outras coisas, por
adoção da teologia da guerra espiritual seu crescimento institucional, especialmen-
que instala um conflito religioso ao te expresso no seu grande investimento
demonizar as outras religiões. Procurare- no espaço público e ainda por seu confron-
mos discutir aqui este fenômeno através to direto com a Igreja Católica nesse espa-
da análise do discurso dos fiéis pentecostais ço. Já nossa análise da desinstituciona-
e carismáticos sobre o espiritismo e religi- lização não privilegiará nenhum grupo
ões afro-brasileiras. O segundo fenômeno religioso, mas se baseará na análise do dis-
é o projeto de ampliação institucional que curso de indivíduos isolados. Alguns des-
implica também uma busca de maior visi- ses preferem não se identificar com nenhu-
bilidade na esfera pública por parte das ma religião propriamente dita, alguns nem
diversas igrejas pentecostais e também de querem se dizer religiosos. Há outros, con-
setores da Igreja Católica ligados ao tudo, que podem eventualmente assumir
MRCC. Embora este fenômeno ocorra em alguma identidade religiosa institucional,
outras igrejas e também no MRCC, con- em geral vão-se dizer católicos, mas vivem
centramos nossa análise no caso da Igreja uma religião muito própria, adotando prá-
Universal do Reino de Deus. Classificada tica desvinculada dos cânones e dogmas
pela literatura como neopentecostal, esta dessa instituição.

O FORTALECIMENTO DO PLURALISMO INSTITUCIONAL:


O EMBATE ENTRE CONFISSÕES RELIGIOSAS

O crescimento das igrejas evangélicas a protestantes, que chegaram ao país no sé-


partir da década de 60 inaugurou o culo XIX, não ameaçavam a predominân-
pluralismo institucional no Brasil. Afirmar cia católica. Por um lado, os adeptos das
isso não significa dizer que até então este religiões afro-brasileiras percebiam (e a
país não conhecia prática religiosa plural. maioria ainda parece perceber) sua práti-
Apesar da quase exclusividade da identi- ca religiosa como complementar ao catoli-
dade católica, esta sociedade já conhece cismo e por isso se diziam e ainda hoje se
de muito tempo a diversidade de crenças dizem católicos. Por outro, os protestan-
e práticas religiosas. Como tem mostrado tes, que rejeitam a identidade católica, não
com freqüência a literatura, o catolicismo constituíam ameaça devido a sua insigni-
sempre foi uma religião polifônica, ficância numérica e sua pequena aceitação
polissêmica e cheia de embates internos. pela população em geral. O protestantis-
No entanto, enquanto instituição, a Igreja mo só ganha alguma visibilidade nacional
Católica nunca encontrou rival até bem com o vertiginoso crescimento das igrejas
recentemente no Brasil. Os grupos de pentecostais que o censo somente reve-
religião afro-brasileira, cujo registro his- lou a partir das décadas de 60 e 70.
tórico data do século XVII, e as igrejas

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Desta forma, pode-se dizer que o Brasil da Igreja Católica. Tampouco competiam
não conhecia, até bem pouco tempo, o com essa igreja no espaço político.
chamado “mercado religioso”, como des-
crito por Peter Berger (1985) e Pierre A tendência ao pluralismo institucional vai-
Bourdieu (1986), ou seja, o pluralismo se fortalecer mais nas décadas de 80 e 90
religioso no nível institucional. Aqui, di- por dois fatores. Nesta época, o
ferentemente do que ocorre nas socieda- pentecostalismo ganha visibilidade maior
des norte-americana e européia, o indiví- no espaço público, com o surgimento das
duo não se via diante de grupos religiosos igrejas chamadas neopentecostais que ado-
que disputam, em pé de igualdade, fiéis. tam projetos políticos claros (MARIANO,
Nem se sentia o indivíduo pressionado a 1995 ; FRESTON, 1994). Entre estas igre-
rejeitar uma identidade e prática religio- jas, destaca-se a Igreja Universal por, en-
sas antigas, quando quisesse adotar uma tre outras coisas, seu projeto institucional
nova e se afiliar a um novo grupo. Este mais ousado como veremos mais adiante.
pluralismo do tipo institucional é no Bra- Também este mesmo período é marcado
sil um fenômeno relativamente muito re- pela expansão do MRCC, que agora al-
cente. O pluralismo que existia até então cança, e com sucesso, as camadas popula-
não contestava a identidade católica. Em- res. Na década de 90, não são mais as Co-
bora houvesse uma diversidade interna de munidades Eclesiais de Base que preocu-
crenças entre as diferentes formas de “ca- pam os cientistas sociais e que mobilizam
tolicismos” e “espiritismos”, o indivíduo os católicos, mas sim o MRCC, que che-
não se via diante de uma diversidade de gou ao Brasil importado dos EUA em 69/
instituições religiosas solicitando sua 70, e que, diferentemente das CEBs, tem
afiliação exclusiva. Mantendo-se católico um projeto de reforçar a identidade cató-
desde seu nascimento, praticava ou dei- lica e sua instituição, a Igreja. Segundo
xava de praticar o espiritismo afro-brasi- dados recentes (PIERUCCI , PRANDI,
leiro ou kardecista sem ter que abando- 1996), o MRCC alcança bem mais católi-
nar o catolicismo. Embora estas religiões cos do que as CEBs. Os católicos
mediúnicas oferecessem práticas carismáticos representam agora 4% da
ritualísticas e explicações distintas sobre a população brasileira, enquanto os progres-
vida e a morte, eram pouco sistas não ultrapassam a casa dos 2%.
institucionalizadas e não tinham preten-
sões de competir com a Igreja Católica, Um fenômeno novo no campo religioso
especialmente na vida pública. Não havia, no Brasil nesses últimos 30 anos parece ser,
por exemplo, rituais que competissem com assim, a ampliação de um pluralismo reli-
o batismo e o casamento católicos. Estes gioso institucional com proposta de
rituais, que expressam publicamente mo- exclusivismo religioso e um compromisso
mentos do ciclo de vida do indivíduo e de institucional propiciado pelo grande cres-
sua família, inserindo-os num espaço cimento da igrejas pentecostais, fora de
comunal e social, sempre foram até bem Igreja Católica, e pelo Movimento de Re-
muito pouco tempo, monopólio exclusivo novação Carismática (MRCC), dentro des-

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ta igreja. Consideramos que ambos os senvolve estratégia de atuação no espaço
movimentos religiosos reforçam a público, seja com candidatos políticos, seja
institucionalização tanto por sua propos- com uso da mídia, ou ainda realizando tra-
ta, explícita no discurso das lideranças e balhos assistenciais. Há, assim, em ambos
em sua estrutura organizacional, como os movimentos, um projeto claro de for-
também pela prática e discurso de seus talecimento da instituição que se reflete
membros. Estes grupos se destacam por nessa busca por maior visibilidade e mai-
defender uma afiliação religiosa exclusi- or poder na esfera pública. Adotando uma
va, rejeitar qualquer mistura religiosa e atitude missionária e combatendo práticas
pregar um maior compromisso do indiví- religiosas múltiplas e sincréticas, igrejas
duo com a instituição. Ambos têm um pro- pentecostais e grupos carismáticos se co-
jeto de transformar a realidade tanto “por locam em disputa por novos fiéis, inaugu-
baixo” como “por cima”, como diria Kepel rando, no Brasil, um mercado religioso nos
(1988). Ou seja, ambos buscam transfor- moldes descritos pela literatura menciona-
mar a realidade não apenas através da mu- da. A adesão a esses grupos implica uma
dança de vida individual, mas também via conversão no sentido de que se exige uma
um fortalecimento da instituição, que de- transformação no estilo de vida.

O FORTALECIMENTO DA INSTITUIÇÃO NO DISCURSO DOS


FIÉIS: A DEMONIZAÇÃO DE OUTROS GRUPOS

Tanto as igrejas pentecostais como os gru- rarem discriminados internamente dentro


pos católicos carismáticos contribuem para da Igreja Católica, reforçam essa institui-
a formação de um mercado religioso, ção em oposição ao pentecostalismo.
quando adotam um discurso de acusação
demoníaca e exigem uma adesão exclusi- A tendência pela institucionalização reli-
va a seu grupo com rejeição de outras prá- giosa se revela no cotidiano dos fiéis quan-
ticas religiosas. Apesar de muito semelhan- do esses, ao se converterem, abandonam
tes, e talvez por isso mesmo, pentecostais antigas práticas religiosas e passam a
e carismáticos se colocam em arenas opos- combatê-las veementemente. Este comba-
tas. Criticando a Igreja Católica, todos os te é mais acirrado em relação ao espiritis-
pentecostais combatem as imagens, a ve- mo, tanto o kardecista, quanto o afro-bra-
neração a Maria e, o Papa. Algumas igre- sileiro. Pentecostais e católicos carismáticos
jas chegam a chamar o catolicismo de reli- acusam o espiritismo de demoníaco.
gião demoníaca. Em contrapartida, os
carismáticos católicos enfatizam a figura de Aderir a esses grupos implica, não apenas
Maria e, apesar de por vezes se conside- a aquisição de uma nova crença e prática,

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mas, e principalmente, o abandono e crí- e que são assim também sincréticos. Se
tica dos valores e atividades anteriores. O sincretismo é entendido como um proces-
discurso sobre a força do demônio, muito so de troca ou aculturação religiosa, todos
marcante e presente em ambos os grupos, os grupos que vivenciam o encontro com
exige que o fiel recuse as práticas comba- o diferente serão, em graus diversos,
tidas pela liderança religiosa, servindo sincréticos. Como nesse sentido ser
para marcar as fronteiras institucionais e sincrético é, em certa medida, um proces-
assim fortalecer as igrejas e seus dogmas. so inevitável, o que nos parece mais pecu-
liar a esses grupos é seu discurso
Tais como os pentecostais, aqueles que antissincrético. Mas não se pode negar que
participam do Movimento de Renovação em sua prática um sincretismo não-inten-
Carismática Católica em geral conhecem cional e inconsciente ocorra à revelia desse
o espiritismo e experiências mediúnicas e discurso, ou seja, dos propósitos e dos pro-
estão preocupados com eles. Criticam os jetos desses sujeitos e grupos.
católicos que vão aos grupos espíritas em
geral, mas, em especial, os que vão aos cen- A proposta antissincrética se expressa ex-
tros afro-brasileiros. Afirmam que isso leva plicitamente e com bastante força na gran-
o diabo a entrar na vida das pessoas. Este de aceitação da teologia da guerra espiri-
discurso da liderança parece ser compar- tual que se implanta e cresce nesses gru-
tilhado pela maioria dos membros das co- pos. Fiéis de ambos os movimentos acu-
munidades renovadas, tal como ocorre no sam de demoníacas as religiões afro-espí-
meio pentecostal. ritas, que, em geral, praticavam juntamen-
te com a fé católica antes da conversão, e
Apesar dessa associação de outras religiões associam essas práticas a uma série de pro-
(em especial as não-cristãs) com o demo- blemas e dificuldades individuais nas es-
níaco,2 aparentemente levar à negação de feras material, afetiva e de saúde.
qualquer sincretismo religioso. É impor-
tante, contudo, salientar que se nega ape- Nas diferentes pesquisas que já desenvol-
nas a valorização e o reconhecimento do vemos, nenhum de nossos entrevistados
sincretismo. De fato, a intenção é manter acusou o espiritismo e as religiões afro-bra-
a pureza da fé tal como expressa nos seus sileiras de superstição, de truques ou
primórdios. Mas ao discurso de rejeição charlatanismo (MARIZ, 1990, 1994, 1997;
de sincretismos não necessariamente MACHADO, 1994, 1996; MACHADO,
corresponde a isenção de qualquer tipo de MARIZ 1994; 1997). Rejeitam-se estas
sincretismo ou importação de prática reli- religiões por serem demoníacas, mas não
giosa externa. Com efeito, muitos autores, por serem mentirosas ou falsas. Nesse sen-
tais como Birman, (1997), Oro, (1992 , tido, todos acreditam nas experiências so-
1997) Sanchis (1994) entre outros, que brenaturais e extraordinárias que nelas
vêm analisando as práticas, crenças e ritu- ocorrem.
ais destes grupos, defendem que eles in-
corporam elementos de outras religiões

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O discurso de Elaine3 , uma carismática força que nada pega, não pega mesmo.
de 30 anos com segundo grau completo e Aceitar o pentecostalismo católico ou pro-
renda familiar de nível médio baixo, testante não implica negação ontológica
exemplifica esta rejeição radical às práti- daquilo em que antes se acreditava, mas
cas religiosas que tinha antes de ingressar uma redefinição da natureza desses fenô-
no movimento. Vamos notar que a nega- menos espirituais que passam a ser vistos
ção de Elaine não implica em descrença como obra do demônio. O depoimento de
no sentido cognitivo do termo. Em sua Marina, professora, segundo grau,
entrevista, esta fiel relembra, em tom de branca, classe média, 48, é bastante
crítica, que, embora católicas, ela e sua fa- esclarecedor quanto à mudança de visão
mília adotavam uma prática religiosa mis- de mundo que ocorre com o católico quan-
turada e sincrética antes de se engajarem do ingressa no MRCC. Também ex-prati-
no MRCC: cante do espiritismo, Marina declara:

Eu e minha mãe sempre fomos à Igreja Acredito [no espiritismo], ... não como
Católica e ao Centro [Espírita] ao coisa de Deus...(mas) como sendo coisa
mesmo tempo [...]. Meus pais faziam de Satanás. Em Deuteronôminos estão
“Encontro de Casal” mas continuavam contidas as coisas que o Senhor
fazendo consultas em Centros abomina, o Espiritismo está presente.
[espíritas]. (...) minha mãe chegou ao
ponto de pensar em ir na [Igreja]
Tal como fazem os protestantes, Marina
Universal... acho até que foi (...)
Ninguém dava um passo sem.. consultar cita a Bíblia para sustentar seu argumen-
Pai Benedito (...) tudo o quê dava errado to. Embora a ênfase do MRCC e do
era culpa de alguém que tinha feito pentecostalismo na escritura como fonte
macumba para mim (...) de verdade e de toda argumentação sugi-
ra a desinstitucionalização religiosa na
Agora Elaine rejeita o espiritismo, mas ao medida em que permite aos indivíduos o
afirmar que “ainda hoje quando passo acesso às palavras divinas sem a mediação
perto de macumba peço licença”, demons- institucional,. podemos observar que esta
tra que esta rejeição não implica descren- desinstitucionalização é relativa. A Bíblia,
ça. É importante lembrar que o temor que ou qualquer livro religioso que é tido como
assume ter em relação ao espiritismo e à única fonte de verdade, pode ser conside-
macumba não significa que duvide de sua rada como uma instituição em seu concei-
fé atual ou que não está totalmente con- to ideal. Como tal, conseqüentemente
vertida aos novos princípios que adquiriu gerará sempre uma instituição social, na
no MRCC. Tal como ocorre entre os medida em que cria fronteiras que sepa-
pentecostais, os carismáticos católicos não ram os que realmente a seguem dos que
negam o poder das macumbas ou outras não a aceitam ou somente a aceitam como
práticas não-cristãs. Esta não-negação fica uma entre outras fontes de verdade. Por
clara quando a entrevistada explica que lá isso podemos dizer que a adoção da Bíblia
na Carismática dizem que é só pensar com como fonte prioritária de verdade é, em

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si, base para uma identidade religiosa uma revisão do que seja uma identidade
exclusiva e uma semente de institucio- religiosa. Na definição de ambos, esta iden-
nalização.4 tidade, além de exclusiva, deve ser rati-
ficada pela participação no grupo e pela
A negação do espiritismo e religiões afro- adoção de um estilo de vida tal qual defi-
brasileiras aparece de modo ainda mais nido pela instituição a que se pertence.
contundente no discurso dos pentecostais,
tanto dos fiéis quanto da liderança que O discurso do MRCC aproxima-se do pro-
adotam a chamada teologia da batalha es- testantismo em geral, na medida em que
piritual. As famosas “entrevistas com os só pode ser identificado como protestante
demônios”, que ocorrem na Igreja Uni- ou evangélico quem, além de aceitar Je-
versal antes do exorcismo, realizam esse sus, tiver se batizado ou se afiliado a algu-
processo de ressignificação das crenças ma igreja e tiver compromisso com esta
anteriores e procuram demarcar frontei- igreja. O engajamento constitui critério
ras e reforçar o poder da instituição reli- fundamental na definição da identidade.
giosa como o local seguro onde se está a Aqueles que se afastam deste engajamento
salvo dos ataques do demônio. e prática são considerados, entre os pro-
testantes, como “desviados”. Constituiriam
Além da desqualificação radical das religi- esta categoria fiéis cuja identidade religio-
ões mediúnicas, outra estratégia seguida sa é questionada pela liderança e pela co-
por esses grupos confessionais na defini- munidade em função de alguma falha no
ção ou fechamento de suas fronteiras e na seu compromisso com a igreja e/ou a “dou-
tentativa de unificar simbolicamente a re- trina”. No universo evangélico, ao menos
alidade é o estímulo ao compromisso reli- no discurso oficial, a identidade é bastan-
gioso forte com sua instituição e a adoção te institucionalizada. Já a identidade cató-
de um novo ethos. Outro elemento que re- lica não é ameaçada pelo “desvio” das re-
vela a maior importância da instituição no gras ou pela pouca participação. O católi-
dia-a-dia dos fiéis é sua grande participa- co não-praticante nunca deixa de ser iden-
ção na vida institucional: em geral, um tificado como católico (BRANDÃO, 1988).
membro de uma igreja pentecostal e o do O MRCC inova no campo católico quan-
MRCC, além de ter freqüência mais do que do cobra participação e exclusividade re-
semanal ao grupo, faz doações materiais a ligiosa, competindo com as igrejas
este. Tanto para os carismáticos como para pentecostais por se assemelhar demais com
os pentecostais, a adesão a esses grupos elas.
implica uma mudança de vida e uma de-
dicação quase diária ao grupo. Nisso os Analisando a adesão às igrejas pentecostais
carismáticos católicos adotam um compor- e ao MRCC, nossos dados tendem a refu-
tamento religioso que no Brasil tem sido tar a hipótese de que a mudança de dis-
considerado como característico dos evan- cursos religiosos e identidades religiosas,
gélicos. Ambos os movimentos inovam no que ocorre nesses casos, reflita apenas uma
campo religioso brasileiro, quando fazem mudança de consumo de bens mágicos,

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como têm sugerido autores como Prandi mais com o grupo. O trabalho missionário
(1996) e outros. A maior parte dos entre- e o discurso evangélicos, como também
vistados desses grupos assume um forte carismáticos católicos, desenvolvidos tan-
compromisso institucional e redefine seu to pelas lideranças como pelos demais fi-
estilo de vida com a adoção de uma nova éis, tentam transformar esses “consumido-
moralidade. Verificamos tanto entre res de serviços religiosos” em membros
carismáticos como entre pentecostais, além engajados na instituição. Não negamos que
de um discurso oficial em relação a uma possa haver um hiato entre o modelo de-
identidade institucionalizada, um forte finido pela instituição e a prática, mas ar-
engajamento na comunidade escolhida. gumentamos que esses grupos estão orga-
Com isso, não estamos, no entanto, negan- nizados para desenvolver uma pressão que
do que tenhamos encontrado fiéis com ati- leve os fiéis a adotarem uma prática mais
tudes “consumistas” , apenas “clientes” de próxima possível do modelo definido pela
“orações fortes” e que iam simultaneamen- instituição, que nega o modelo
te a outros grupos. Observamos, contudo, desinstitucionalizado do consumista reli-
que este não era considerado ainda um gioso, que parece ser o dominante na ten-
membro efetivo do grupo ou igreja. Eram dência oposta, que também cresce no Bra-
vistos como pessoas que iniciavam o pro- sil e é combatida como demoníaca.
cesso de conversão. De fato, a conversão é
um processo lento de aproximação e re- Um exemplo da pressão para adotar uma
traimento, e o grau de compromisso va- identidade de maior compromisso apare-
ria em função deste movimento de idas e ce no discurso de Márcia, atualmente da
vindas. Nem todos os processos de con- Assembléia de Deus. Esta entrevistada lem-
versão se concluem com o sucesso que bra que freqüentou a Igreja Universal por
querem as instituições. E, além do mais, um tempo sem ser convertida de fato.
pode ocorrer, entre os já converso, a Conta:
desconversão: esta possibilidade se inau-
gura junto e simultaneamente com o “mer- Agora vai fazer um ano que eu me
cado religioso”. converti. Porque eu freqüentava a igreja
e tudo, mas não tinha aceitado Jesus
No primeiro momento da conversão, há ainda (...) eu fiquei mais ou menos um
a busca apenas de uma solução a um pro- ano assim (...) freqüentando, mas
fumava e bebia. [E explica] : eu não
blema pragmático, que corresponderia à
era convertida, mas convencida.
atitude “consumista”. Neste momento, o
indivíduo ainda não é um fiel, mas um cli- A diferença entre convencido e converti-
ente. Ele pode permanecer neste estágio do não é uma criação da entrevistada. Aír-
e também ser cliente eventual de outras ton Jungblut (1994) encontra a mesma
religiões para problemas diversos. No distinção feita pelos Atletas de Cristo. O
entanto, no universo evangélico e estar convencido é uma primeira etapa do
carismático, esta pessoa será pressionada processo de conversão. Como para a mai-
a tomar uma decisão de se comprometer oria a conversão exige este compromisso

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de mudança, ela é adiada. Adiar a conver- mina na maioria dos católicos brasileiros
são significa, para alguns, adiar o batismo. que não são praticantes.5
No entanto, as pessoas podem ficar fre-
qüentando a igreja por longo tempo e ser Apesar de se expressar nesses elementos
identificadas como evangélicas. Este foi o da vida quotidiana, a tendência à
caso de Lúcia que por seis anos freqüen- institucionalização de grupos religiosos,
tou a IURD sem se batizar. Quando inda- que leva a um pluralismo institucional cres-
gamos por que não se batizava, ela expli- cente, se revela mais claramente no forta-
cou-nos que ficava “duvidada”, ou seja, ti- lecimento das igrejas pentecostais no es-
nha dúvidas mesmo, acrescentando que, paço público e também no seu projeto de
segundo a obreira da igreja, tais dúvidas busca de maior visibilidade para competir
eram colocadas pelo demônio. A incerte- com a Igreja Católica nas esferas políticas,
za de Lúcia se expressava também no fato no setor assistencial e na mídia. Um bom
de ela nunca ter conseguido parar de be- caso que exemplifica essa tendência é o da
ber. Sem ter-se batizado, morreu alcoóla- Igreja Universal. Dentre todas as igrejas
tra, contudo, entre seus vizinhos e amigos evangélicas, é a que se tem destacado nes-
era identificada como evangélica já que sa constrição do pluralismo institucional
participava dos rituais daquelas igrejas. por sua atitude bélica contra outras religi-
Neste como em outros casos, constatou-se ões, em especial, contra a Igreja Católica,
que o frágil compromisso aparece no dis- e por suas estratégias para alcançar mais
curso como uma etapa no processo, dife- poder enquanto instituição.
rindo da frouxa participação que predo-

AMPLIAÇÃO DO PLURALISMO INSTITUCIONAL


ATRAVÉS DA LUTA POR INFLUÊNCIA NO ESPAÇO PÚBLICO:
O CASO DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS

A hegemonia do paradigma sociológico da lando releituras de Weber e Peter Berger,


secularização fez crer que o refluxo da re- particularmente do processo de seculari-
ligião para a esfera privada fosse um fe- zação. Nas diferentes vertentes interpre-
nômeno intrinsecamente ligado à tativas, a atenção se volta para as mudan-
modernidade e, portanto, uma tendência ças de função ou a descentralização da
inexorável. O desenvolvimento de movi- função, assim como a diferenciação entre
mentos como a Maioria Moral nos EUA, a função e o desempenho da religião na
Comunhão e Liberdade na Itália e de vida social contemporânea (LUHMAN
fundamentalismos como o islâmico e o ju- apud BEYER, 1991), a ênfase na experi-
daico no Oriente (KEPEL,1992) demons- ência, no sensorial e emocional na rela-
trou a fragilidade de tal hipótese, estimu- ção com o transcendente (HERVIEU-

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LÉGER, 1993) e nas novas formas de par- cado religioso somente pode-se estabele-
ticipação na esfera pública. De modo ge- cer efetivamente quando o peso e a força
ral, a privatização se refere ao surgimento das diferentes instituições religiosas dei-
de um pluralismo religioso na sociedade, xam de ser extremamente desiguais. As-
refletindo estruturas básicas da sim, a luta por um maior espaço público
modernidade, estruturas essas que por si de uma instituição religiosa torna-se nes-
mesmas não solapam a possibilidade de se caso condição para a própria
uma religião publicamente influente modernidade religiosa entendida como
(BEYER, 1991). institucionalmente plural.

Três argumentos inter-relacionados justi- Para desenvolver nosso argumento, vamos


ficam a hipótese de Beyer (1991, p. 396) : centralizar-nos aqui no caso da Igreja
a) para que haja influência pública não Universal do Reino de Deus (IURD) que
basta que a religiosidade individual seja tem sido um objeto mais sistemático de
elevada ao ponto de inspirarem as ações investigação. Com apenas 20 anos de fun-
públicas dos adeptos; b) também não é dação, esta denominação é a segunda en-
suficiente a criação de organizações, mo- tre as igrejas pentecostais em número de
vimentos e instituições por parte da lide- templo e de fiéis na Região Metropolitana
rança; c) o que se espera, então, é que no do Rio de Janeiro (ISER, 1992 ;
mínimo os líderes tenham um controle FERNANDES et al., 1998). Interpretada
sobre o serviço religioso considerado in- como uma Igreja “quente” e “poderosa”
dispensável atualmente por alguns adep- pela sua capacidade de expulsão dos de-
tos. Não se pode ignorar também que a mônios, a direção desta denominação não
globalização “altera significantemente a se satisfaz mais com a associação do mal
forma como a religião consegue alcançar com as forças malignas e considera a “po-
essa influência pública”e terá um tempo breza”, “a corrupção”, “a falta de uma
relativamente difícil para fazê-lo na socie- política de planejamento familiar”, o tu-
dade global como um todo. Confrontan- rismo sexual como males que justificam:
do as posturas liberais (identificados com a) a entrada no debate público em torno
os seguidores da Teologia da Libertação) destes temas; b) a criação de um braço so-
e conservadoras, conclui que “esta influ- cial ou filantrópico – Associação Beneficen-
ência será mais fácil de ser alcançada, se te Cristã; e, finalmente c) as alianças e os
os líderes religiosos aplicarem as modali- apoios aos candidatos eleitorais, quando
dades religiosas tradicionais no intuito de não se consegue lançar na disputa política
promover uma mobilização política representantes do próprio grupo. Tanto
subsocial em resposta à globalização da a mídia impressa quanto a eletrônica cons-
sociedade”. tituem meios importantes nesta influência
pública, substituindo, muitas vezes, as reu-
Tentando ir por um caminho diferente do niões de massa que tantos problemas acar-
de Beyer, chamamos atenção para o fato retaram para a denominação. A presença
de que no caso do Brasil, o próprio mer- de especialistas, feministas e membros de

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movimentos civis em programas de deba- No que se refere à atuação da ABC, o que
tes têm ao nosso ver favorecido a “desteo- conhecemos é o material de divulgação –
logização”de temas polêmicos como “sexo vinhetas de 45 minutos na televisão – e
seguro”,“contracepção”, “aborto em caso matérias no Jornal Folha Universal sobre a
de anomalia fetal”, “AIDS” etc... visita de tal associação a favelas, presídios
e bairros periféricos de grandes cidades.
O confronto com a Igreja Católica, princi- Ali, juntamente com serviços odonto-
palmente quando a visita papal ao país teve lógicos, são oferecidos cestas básicas, pre-
como tema central a família, favoreceu a servativos, pílulas anticoncepcionais, cor-
ênfase nas questões do planejamento fa- te de cabelo, instruções jurídicas etc... En-
miliar, com a liderança religiosa utilizan- tretanto, para se ter uma idéia melhor dos
do indistintamente o púlpito, os progra- objetivos e dos limites deste assisten-
mas radiofônicos e televisivos, assim como cialismo seria necessário pesquisas de cam-
sua imprensa para cobrar do Estado a apli- po avaliando “o trabalho realizado”,
cação de leis que beneficiariam as cama- “quem são os assistidos”, “quais os critéri-
das mais carentes. Mas ainda que critique os adotados na definição geográfica das
a posição da Igreja hegemônica contra as intervenções assistenciais” e a representa-
campanhas preventivas da AIDS, e parti- ção dos “pobres e desfavorecidos” destes
cularmente a distribuição gratuita de ca- grupos e suas ações sociais.
misinhas, seus representantes alinharam-
se ao lobby católico no final do ano de 1996 Não se pode esquecer, contudo, que a Igre-
diante da votação do projeto de lei da de- ja Católica tem sido muito ativa em ter-
putada Marta Suplicy pela legalização da mos de assistência social, complementando
união dos homossexuais. Mais polêmica se ou mesmo substituindo o Estado naquelas
mostra a posição com relação ao aborto: regiões geográficas e nas esferas da vida
enquanto o dirigente máximo se posiciona social e econômica em que o mesmo não
a favor do aborto em caso de estupro, al- se faz presente – educação, saúde, reco-
guns pastores – como foi o caso na época lhimento de menores, atendimento a vici-
do Pastor Ronaldo Didini que defendia a ados etc... Tal ênfase no assistencialismo
permissão em casos de anomalia fetal diminui, não só com o desenvolvimento
(MACHADO,1997) – outros, principal- da Teologia da Libertação, que veio intro-
mente os representantes políticos, pressi- duzir uma nova maneira de lidar com os
onaram a comissão de Constituição, Justi- pobres, organizando-os para a luta social
ça e Cidadania que analisava o projeto de e política, como também com os atritos
lei (209/91) dos deputados federais Eduar- com os aparelhos do Estado que tentaram
do Jorge e Sandra Starling (Partido dos controlar a entrada de novos padres e frei-
Trabalhadores) que obrigava hospitais li- ras do exterior e, conseqüentemente, as
gados ao Sistema Único de Saúde (SUS) a atividades desenvolvidas pela Igreja Ca-
realizarem os casos de aborto previstos no tólica no país. A novidade fica então por
Código Penal de 1940. conta da mudança de atitude dos
pentecostais frente aos problemas

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socioeconômicos, particularmente, à misé- É sabido que o uso da mídia impressa e
ria de um contingente significativo da po- eletrônica pelos evangélicos brasileiros é
pulação. Mudança esta fomentada em anterior à própria fundação da IURD e
grande parte pelas estratégias de ação das que a estratégia de complementar o tra-
denominações neopentecostais no balho nos templos com a utilização dos
enfrentamento com a Igreja Católica e com meios de comunicação não é uma prerro-
os grupos espíritas que sempre deram gativa dessa denominação nem dos evan-
muita importância à idéia de caridade en- gélicos. Uma pesquisa recente (FONSECA,
quanto assistência social.6 1997, p. 209) demonstra, entretanto, que
os fiéis da IURD encontram-se numa
Mas é no uso dos meios de comunicação “redoma de mídia que acaba por isolá-los
de massa, sem dúvida alguma, que o es- do mundo. Eles possuem reuniões diári-
forço dos grupos religiosos em usar estra- as, opções para rádio AM e FM, um jornal
tégias do mundo moderno para ampliar – o qual possui alta qualidade gráfica – e
sua visibilidade e poder na esfera pública uma emissora de TV”. Além disso, os li-
se faz de forma mais clara, assimilando não vros lidos são os escritos por seus líderes
só as mensagens de curta duração, os efei- religiosos, características que, acrescida das
tos especiais, mas a valorização dos discur- anteriores, asseguram maior fidelidade
sos humanos ou temas e problemas do dos fiéis a esta Igreja. Outro ponto desta-
gênero humano frente aos temas estrita- cado por este estudo é a significativa acei-
mente teológicos (PACE,1997) No caso tação dos membros deste grupo
específico da Igreja Universal (IURD), a confessional do emprego do dinheiro re-
produção de minisséries e vinhetas com colhido na eleição de candidatos que vão
pequenas histórias/testemunhos de ex-al- representar os interesses do universo evan-
coólatras, ex-prostitutas, ex-drogados, as- gélico, particularmente da igreja nas dife-
sim como a grande ênfase dada à saúde rentes instâncias do poder estatal.7
feminina (MACHADO, FERNANDES,
1996 e MACHADO, FERNANDES,
CAMPÁ,1997) ilustram bem esta tendência.

A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO RELIGIOSA:
“BRICOLAGE RELIGIOSA” E “SINCRETISMOS”
Iniciamos nosso artigo chamando atenção dade religiosa. Confrontados com uma
para o fato de que, apesar do fortalecimen- intensificação das trocas entre valores cul-
to de instituições religiosas com caráter turais e com uma convivência quotidiana
neotradicional, aqui também ocorre o pro- com os mais diversos universos valorativos
cesso de desinstitucionalização da identi- e ainda com a hiperindividualização cres-

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cente, as instituições, grupos religiosos e marcada numa sala comercial. O ponto
os indivíduos reagem de formas distintas. máximo da experiência ocorre quando o
Embora partam de cosmovisões opostas e consulente é levado a se deitar para a apli-
levem a experiências religiosas em parte cação de Shiatsu, ocasião em que, segundo
conflitantes, ambas as reações, como já a mesma, os toques de suas mãos facilitam
dissemos, são fruto do processo de a identificação dos problemas e a origem
globalização. Como argumenta Friedman dos traumas psicológicos. Apenas tal ses-
(1994, p. 329), a globalização na sua di- são de massagem oriental é cobrada, e o
mensão cultural se constitui num preço segue o de mercado destes produ-
processo multidimensional dual e, tos e serviços religiosos. Esta católica con-
acrescentaríamos, contraditório, entre a siderada como “cheia de dons” pelos “seus
homogeneização modernista e a fragmen- seguidores”, além de associar as práticas
tação étnica e cultural (PACE, 1997). de relaxamento orientais, fala sobre os
traumas da vida uterina responsáveis por
A última tendência se expressa, como vi- todas as dificuldades enfrentadas pelas
mos algumas páginas atrás, no crescimen- pessoas no desenvolvimento de sua vida e
to de grupos neotradicionais – carismáticos nas suas relações interpessoais.
e pentecostais –, que marcam fortemente
suas fronteiras e buscam uma proposta Numa outra área da mesma cidade, Vitó-
ética e o comprometimento institucional ria, 56 anos, uma carismática fervorosa e
marcante. Já a outra se refere a uma forte participante, freqüenta com assiduidade
hibridização em curso nas práticas e cren- uma clínica fundada por uma ex-luterana,
ças religiosas e para o caráter pessoal no convertida ao catolicismo. Formada em
campo das escolhas e decisões sobre as psicologia e responsável pela introdução
vivências religiosas. Aí há uma grande no Brasil de técnicas avançadas no trata-
abertura para todas as experiências exter- mento de relaxamento e regressão à fase
nas. Os relatos a seguir ilustram tal pro- da vida uterina, esta psicóloga também “foi
cesso de hibridização e apontam para essa condecorada por Sua Santidade o papa
tendência que cria um novo tipo de Paulo VI com a medalha de ouro e com a
sincretismo no campo religioso brasileiro. designação de singular benfeitoria da cau-
Essa nova modalidade se distinguiria da sa cristã” (MORAES, 1987). Combinando
anterior e tradicionalmente conhecida atendimentos espiritual (há um padre que
(chamado de pré-moderno por Pierre atende aos que ali se dirigem), psiquiátri-
Sanchis) por ser mais centrada no indiví- co, psicológico, os pequenos grupos de
duo. oração e as aplicações dos Neurotron e
Hipnotron – aparelhos e técnicas oriundos
Em bairro de classe média em uma gran- dos balneários russos, voltados para o tra-
de metrópole brasileira (Belo Horizonte), tamento de doenças mentais e estresse –
uma “profetiza” católica carismática enche se oferece a Terapia de Integração Pesso-
a igreja nos dias de grupo de oração e re- al, um “tratamento” completo e concen-
cebe para consultas particulares com hora trado para aqueles que portam diversos

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tipos de mal-estar: do câncer à depressão, budista e nem católica: sigo o caminho
da AIDS à esquizofrenia. O auge do trata- do meio.
mento encontra-se na superação das re-
sistências do “paciente” e na “reativação Essas histórias mostram pessoas de classe
da memória do inconsciente” onde os trau- média, escolarizadas, que cada vez mais,
mas estão registrados. Nesse discurso, lançam mão de serviços religiosos como
constata-se a importância das teorias psi- quem adquire produtos num supermer-
cológicas para a bricolage realizada pelos cado, sem perceber que a busca de ajuda
segmentos médios da população. religiosa frente uma situação aflitiva não
tem necessariamente a mesma natureza de
Uma terceira experiência é a de Valéria. uma decisão entre consumir o iogurte
Com não mais que 45 anos, bonita e cheia Parmalate, o Danone ou Dan’up. Na rea-
de vida, esta mulher contava às irmãs que lidade, com baixo grau de comprometi-
diante dos seus inúmeros problemas – da mento com esta ou aquela igreja tradicio-
falta de dinheiro à dificuldade de manter nal, a maioria das pessoas – podemos
uma empregada doméstica em seu lar – designá-las ainda de fiéis – se sente hoje
tomara uma atitude radical: fizera uma livre para este balé onde o que importa é
consulta com uma “benzedeira”. Viajan- a resolução de um problema imediato. A
do de táxi durante uma hora pelo interior decisão é de cunho pessoal e débeis são os
mineiro, nossa fiel católica descobriu-se mecanismos de controle das instituições
frente a uma simples mulher que, depois religiosas para evitar esta dança que, de
de ouvi-la, mostrou suas mãos vazias e um mantra, pode passar a ser guiada por
pediu apenas que retirasse os seus calça- um hino mariano ou uma música new age.
dos e os entregasse a ela. Foi então que ela
disse ter visto surgir deles, inexplicavel- Tais exemplos nos remetem para uma dis-
mente, uma série de pregos tortos que, na cussão mais ampla e para processos
visão da “benzedeira”, estariam trancan- macrossociais em curso na pós-
do a porta de sua casa. Uma posterior con- modernidade (LYOTARD,1985) ou na
versa com esta dona de casa católica, por- alta modernidade, como preferem outros
tadora de um diploma universitário e, no (GIDDENS, 1991). Não nos
momento, em processo de “terapia psica- aprofundaremos aqui na polêmica sobre
nalítica”, evidenciaria ainda mais o cará- a superação ou não da modernidade, afir-
ter pluralista de suas práticas: mamos apenas nosso alinhamento com as
noções de Giddens sobre a exacerbação do
Tenho sempre em minha bolsa dois caráter reflexivo da modernidade. De
terços, o “japa mala” para cantar os qualquer modo, a literatura sobre a
mantras e o católico para rezar o terço globalização e sua dimensão cultural tem
da libertação, aquele de Jesus Cristo. Da destacado a multiplicidade ou pluralidade
mesma maneira eu acendo uma vela e de resultados do processo de interação da
peço proteção a um determinado santo,
cultura local com a “cultura de mercado”,
mas não deixo de acender também um
incenso em minha casa. Enfim, não sou
sugerindo que, em muitos casos, e nós

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acrescentaríamos tratar-se do brasileiro, vitória da “religião invisível” “à la
“surgem diversas maneiras de hibridização Luckman”, mas sim como a supremacia da
ou crioulização em que os significados de religião visível “seja na esfera pública (...),
bens, informações e imagens de origem seja nas múltiplas formas que assume na
externa são retrabalhadas, sincretizadas e biografia concreta de milhões de pessoas
fundidas com tradições culturais e formas em busca de um sentido religioso fora, à
de vida já existentes” (FEATHORSNE, margem ou dentro, das religiões de nasci-
1996). mento”.8

O acompanhamento estatístico das mu- Para Colin Campbell (1997), essas trans-
danças no campo religioso brasileiro mos- formações na religiosidade ocidental refle-
tra-se bastante revelador do que estamos tem um processo de orientalização do Oci-
falando. Em uma década, não só os católi- dente. Seguindo a argumentação de
cos perdem fiéis, como crescem os evan- Campbel, há uma expansão da visão
gélicos e, de forma bastante acentuada, monista da religiosidade oriental que se
aqueles que se dizem “sem religião”. Como contrapõe ao dualismo entre o bem e o
já salientamos anteriormente, é importan- mal da religiosidade ocidental. Por não
te que se tenha bem claro que aqueles que conceber o mal e o bem como totalmente
se enquadram nesta classificação, não po- excludentes, o monismo permitiria essa
dem e não devem ser confundidos com hibridização de crenças e rejeitaria a ne-
ateus ou descrentes da existência de Deus. cessidade de uma exclusividade religiosa
Pesquisa estatística realizada na Grande e a acusação a outras como demoníacas.
Belo Horizonte e com amostragem, por-
tanto, bastante inferior, sugere, entretan- Enquanto esta hibridização ou
to, a complexidade do fenômeno, demons- “orientalização” é o fenômeno religioso
trando que é significativo o índice dos que marcante neste fim de milênio nos países
acreditam em Deus – 98,4% – mais ricos, e nas camadas mais instruídas
(ANTONIAZZI, 1991, p. 10). Esta ponde- dos países mais pobres, nas camadas po-
ração remete-nos para um conjunto de pulares dos países do chamado Terceiro
características do campo religioso contem- Mundo, como o Brasil, a contraface desse
porâneo que pode ser sistematizado em processo é o crescimento de grupos religi-
função do enfraquecimento da religiosi- osos que defendem ortodoxia e desenca-
dade institucionalizada e do fortalecimento deiam “guerras espirituais” contra outras
da subjetivização dos sistemas de crenças religiões e especialmente contra o
e das experiências religiosas de caráter descomprometimento com a fé, a
emocional. Denominado “liberalização superindividualização e as “bricolages reli-
religiosa” por Enzo Pace (1997, p.34), este giosas”.
processo de afastamento dos crentes das
religiões institucionais e de enfraqueci- Como a prática religiosa sincrética tem es-
mento da identidade religiosa não deve ser tado presente em diferentes graus nas di-
interpretado, segundo Pace, como uma versas camadas sociais brasileiras já há

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muito tempo, o que se destaca pela origi- Logo, notamos no Brasil a presença des-
nalidade é a crescente popularidade – es- sas duas formas diferentes da religiosida-
pecialmente nas camadas sociais menos pri- de responder à globalização. Essas res-
vilegiadas, que tendiam sempre a ser mais posta não apenas se distinguem quanto à
cordatas e submissas –9 de um estilo religi- sua proposta ética e sua abertura para o
oso bélico de confrontação e acusações ex- diferente, como também em sua relação
plícitas. De fato aqui, nas camadas mais po- com o mundo público.
bres, sempre prevaleceram esses elemen-
tos cognitivos e valorativos, que podem ser
identificados como não-ocidentais; a novi-
dade é sua rejeição por parte desta camada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O debate que busca relacionar a religioso e à banalização de fronteiras. O


globalização com a cultura e, em particu- mesmo observamos no Brasil – esses pro-
lar com a religião, tem apontado não só a cesso ocorrem, mas não são os únicos em
“banalização das fronteiras religiosas”, curso. Parker registra que, nas populações
como também um reforço à tendência de mais pobres e nas áreas mais marginais,
privatização das escolhas religiosas com a ocorrem processos de maior fechamento
correspondente secularização do espaço de fronteiras religiosas, crescem seitas,
público. Estes dois processos são inter-re- fundamentalismos, integrismo, ou seja,
lacionados. Se, por uma lado, percebe-se fortalecem-se instituições. As observações
esta “banalização das fronteiras” na cres- de Parker têm paralelo com a nossa, no
cente dificuldade, por parte das religiões caso do Brasil. Embora não tenhamos ob-
tradicionais, em regular e manter seus servado o crescimento propriamente de
adeptos dentro dos “limites seguros e está- seitas ou fundamentalismos religiosos,
veis de seus sistemas de crenças”, por ou- notamos que ocorre um processo
tro, esta se explica pela crescente marcante de institucionalização religiosa
subjetivização da religião. O indivíduo não por parte de igrejas cuja membrezia é re-
mais atribui autoridade a uma instituição crutada numa população de baixa renda
para limitar ou definir o conteúdo de suas e instrução. Estas instituições tentam im-
crenças. O pluralismo religioso é, assim, pedir os sincretismos de toda sorte, tanto
reforçado, mas ganha um caráter distinto aquele já tradicionalmente existente na
desde que o papel da instituição é enfra- sociedade brasileira, como o mais atual,
quecido. identificado com um estilo “nova era” de
ter religião. Os maiores inimigos para es-
No entanto, como observou Cristián Parker sas igrejas são os elementos africanos e
(1997), analisando a sociedade chilena, mediúnicos de qualquer expressão reli-
globalização não leva apenas ao sincretismo giosa.

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Notamos que são os grupos, cuja propos- fende o reforço à instituição a que perten-
ta busca maior institucionalização, que ce, alguns fiéis adotam e/ou aceitam rela-
marcam fortemente suas fronteiras, com- tivamente bem a freqüência simultânea a
batendo outras religiões, especialmente os grupos pentecostais. No entanto, perce-
grupos afro-brasileiros e espíritas. Para be-se um grande esforço da liderança ca-
além desta confrontação com as religiões tólica, particularmente dos membros da
mediúnicas, cabe lembrar a estratégia de hierarquia, em delimitar as fronteiras e
confronto aberto de uma igreja, que combater os movimentos de ida e vinda
estamos estudando mais detidamente, a dos seus integrantes. Assim, constatou-se
Igreja Universal, com a religião católica, que um processo típico de quem está en-
atacando não só seus símbolos e crenças, trando na Renovação Católica Carismática,
como também suas autoridades, especial- fundamental para a opção decisiva pelo ca-
mente o Papa, trazendo a guerra espiri- tolicismo, tem sido: a) o marianismo que,
tual para o interior do cristianismo. Isto, embora historicamente forte no catolicis-
contudo, não impede totalmente que os mo popular, vem sendo estrategicamente
fiéis possam adotar prática simultânea em incitado pela hierarquia para atenuar a ên-
mais de um grupo religioso. No entanto, fase nos poderes do Espírito Santo, típica
nota-se que, se entre os pentecostais o trân- do pentecostalismo; b) a valorização dos
sito religioso e a participação simultânea sacramentos; e c) o estímulo constante à
ainda ocorrem, estes se limitam ao univer- relação com o Santo Papa. De qualquer
so evangélico, trazendo, como resultado, modo, a Igreja Católica no Brasil se vê
uma acirrada competição entre as múlti- obrigada a aceitar um tipo de religiosida-
plas igrejas e a condenação, por parte da de há muito combatida pela hierarquia,
liderança de cada igreja, da falta de fideli- bem como pelos movimentos mais pro-
dade à comunidade religiosa. Outra con- gressistas – tipicamente emocional, senso-
seqüência desta concorrência crescente é rial e interativa –, e a aprender com os
a flexibilização da moral e dos costumes pentecostais novas estratégias na conquis-
em denominações como a própria Assem- ta e preservação de fiéis. E mais, ainda que
bléia de Deus,1 0 característica que tem ate- tenha uma histórica participação na socie-
nuado a histórica resistência da classe mé- dade civil e política brasileira, esta Igreja
dia brasileira ao pentecostalismo. se vê hoje obrigada a disputar espaço com
os evangélicos, seja na mídia, seja nas ali-
Já no universo católico, nota-se fato simi- anças políticas com os dirigentes e os mo-
lar. Enquanto a liderança do MRCC de- vimentos sociais.

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NOTAS
1 No entanto, é necessário pesquisar ainda mais o 5 Prandi (1996, p. 13-14) afirma; “a maioria dos
tema. Em pesquisas qualitativas, já escutamos católicos tradicionais mantém a religião apenas
pentecostais da Igreja Universal se dizerem “sem como identidade social, indo à igreja somente para
religião”. Quando questionamos sua resposta, já os ritos de passagem”. Lembra que os católicos que
que eram notadamente crentes, esses explicaram assim se comportam representam 61% do total do
que “ter religião” era ter fé em “santos”, “pro- brasileiros adultos.
messas”, “espíritos”, e que eles não tinham reli-
6 Algumas igrejas protestantes históricas também
gião, mas eram cristãos.
demonstraram essa preocupação, embora suas
2 Em nossa pesquisa de campo, observamos, como ações não tenham adquirido a mesma visibilidade
vamos nos referir mais adiante, que há algumas dos outros grupos assinalados.
vozes discordantes, mas essas são minoritárias.
7 Esta igreja chega ao cuidado de ter um coordena-
Alguns entrevistados se referem ao espiritismo
dor de política – bispo Alberto Rodrigues – que se
como outro caminho válido ou aceitam pressu-
reúne com os deputados estaduais e federais para
postos do espiritismo sem confrontá-los com os
acompanhar os projetos políticos em andamento
princípios católicos. Um exemplo dessa segunda
nas câmaras parlamentares que interessam à co-
visão é uma babá de 32 anos (segundo grau com-
munidade (Folha Universal, 9 a 15 nov. de 1997).
pleto, branca, camada popular) que participa da
oração carismática e diz acreditar em reencarna- 8 “É no Rio de Janeiro que vamos encontrar a po-
ção. Outro exemplo foi uma psicóloga com cerca pulação mais laicizada, a mais pluralista em ter-
de 46 anos, também carismática, que disse res- mos religiosos, a menos católica de todo país”
peitar a opção espírita como tão válida quanto a (PIERUCCI, PRANDI, 1996, p. 22).
dela pelo MRCC.
9 Há, contudo, exceções a esta tendência, como foi
3 Todos os nossos entrevistados estão com nomes o caso do movimento de Canudos.
fictícios.
10 Criada em 1911, no norte do Pará, uma das regi-
4 Segundo Kepel (1992), são as religiões que possu- ões mais pobres do Brasil, essa denominação foi
em um livro santo as que têm mais propensão apontada pelos estudiosos como fundamentalista
para se tornarem fundamentalistas. Embora nos- pela sua rigidez doutrinaria, seu afastamento da
so conceito de institucionalização não se identifi- cultura e mundo social brasileiros e pela leitura
que nem se reduza ao fundamentalismo, esse literal da Bíblia.
último parece levar a um projeto de uma
institucionalização em alto grau.

ABSTRACT
The ongoing process of transformation of religion in Brazil is
marked by two apparently contradictory tendencies. Whereas, on
the one hand, there is an institutional pluralism with a multiplication
of evangelical churches, there is a concomitant religious
deinstitutionalization: one section of the population is abandoning
its institutional religious identity to live a religiosity detached from
all institutions. To understand these phenomena better, in his article,
the authors analyse, on the one hand the discourses of Pentecostals

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and neo-Pentecostal churches and charismatic Catholic groups
against other religions, as well as these groups’ institutional
development projects and their search for visibility within the public
sphere; and on the other hand, the language of isolated individuals
who, generally, do not identify themselves with any religious properly
speaking and adopt a religious “ecletism and/or hybridism.”
Keywords: globalization, religious sincretism, pentencontalism,
movement for charismatic renovation, new era.

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PESQUISA ANTROPOLÓGICA E
COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL: NOVAS
DISCUSSÕES SOBRE ANTIGOS PROBLEMAS*
JOSÉ SÁVIO LEOPOLDI **

A hermenêutica tem estimulado a rediscussão de várias questões


concernentes à pesquisa antropológica. Neste trabalho buscou-se
privilegiar duas delas, a saber, a relação antropólogo/informante e
a chamada ‘tradução cultural’, que consiste na compreensão de
um fenômeno ou dado de uma cultura e sua ‘tradução’ para a
língua/cultura do pesquisador. Referências ao contexto político-
acadêmico em que tais questões emergiram contribuem para a com-
preensão da maneira como elas têm sido encaminhadas.
Palavras-chave: pesquisa antropológica, informante, interpreta-
ção simbólica, tradução cultural, modelo consciente e modelo in-
consciente.

INTRODUÇÃO
A propalada crise da Antropologia que radical de pressupostos, como acontece
empolgou os meios acadêmicos nas últi- com a substituição de paradigmas em de-
mas décadas parece ter sido dimensionada terminado campo científico. Aliás, um dos
com certo exagero. Na verdade, o que tal- focos centrais da alegada crise – o qual,
vez esteja ainda ocorrendo pode não pas- associando a Antropologia a seu objeto de
sar de uma turbulência, mesmo que um estudo tradicional, ou seja, as chamadas
tanto vigorosa, no interior da disciplina – “sociedades primitivas”, colocava a ques-
para não usar a expressão “revolução”, tão da permanência da disciplina em face
que após Thomas Kunh (1962) parece do desaparecimento daquelas sociedades
necessariamente implicar uma mudança – pode ser considerado, na realidade, um

*
Este trabalho é dedicado ao prof. Roberto Cardoso de Oliveira (atualmente prof. do CEPPAC/UnB) que
teve oportunidade de fazer uma leitura crítica e oferecer sugestivas observações sobre o seu conteúdo.
Cabe enfatizar, porém, que a responsabilidade pelo resultado do trabalho é inteiramente do autor.
**
Professor do Departamento de Antropologia da UFF.

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falso problema. Ainda que teoricamente se são da crise acima referida – a Antropolo-
pudesse pensar num processo global de gia passava não mais a ser identificada com
transformação das populações tribais, com o seu objeto de estudo, fosse ele indígena,
a perda de suas características “primitivas” camponês ou urbano, mas por uma pos-
devido ao contato com o mundo moder- tura metodológica em relação a ele.
no, em termos concretos isso só ocorreria
num ritmo lento o suficiente para compro- Segundo Lévi-Strauss, que considerou a
meter qualquer tentativa de previsão que questão já no final dos anos 50, a Antro-
não fosse um exercício inócuo de pologia “procede de uma certa concepção
futurologia. do mundo ou de uma maneira original de
colocar os problemas, uma e outra desco-
Afinal, em pleno limiar do século XXI, ain- bertas por ocasião do estudo de fenômenos
da sobrevivem grupos caçadores-coletores, sociais não necessariamente mais simples
embora ameaçados pela pressão (como se está muitas vezes inclinado a acre-
irreversível de outros modos de produção, ditar) do que aqueles de que é palco a so-
como sobrevivem nos Estados Unidos so- ciedade do observador” (LÉVI-STRAUSS,
ciedades indiscutivelmente indígenas, ape- 1970, p. 369). Enfatizando a questão da
sar de todo o cerco que lhes impõe o siste- diferença e sua importância para a Antro-
ma capitalista. Ainda que tais sociedades pologia, Lévi-Strauss também observa que
venham a ser submetidas num futuro “enquanto as maneiras de ser ou de agir
próximo a mudanças econômicas e de certos homens forem problemas para
socioculturais num ritmo mais rápido do outros homens, haverá lugar para uma
que aquele que já vêm experimentando reflexão sobre essas diferenças, que, de
desde algum tempo, muito provavelmen- forma sempre renovada, continuará a ser
te continuarão a existir por um período o domínio da Antropologia” (LÉVI-
imprevisivelmente longo como sociedades STRAUSS, 1962, p. 26 apud CARDOSO
diferenciadas das sociedades nacionais que DE OLIVEIRA, 1995, p. 214). Mais recen-
as circunscrevem. A persistência da iden- temente, Laplantine bateu na mesma te-
tidade étnica é um ingrediente por exce- cla ao dizer que a Antropologia social
lência dos grupamentos humanos e segu-
ramente foi minimizada por aqueles que afirma a especificidade de sua prática,
temiam um desaparecimento abrupto das não mais através de um objeto empírico
sociedades primitivas – e, por extensão, da constituído (o selvagem, o camponês),
própria Antropologia – ainda que suas mas através de uma abordagem
características mais exteriores possam, re- epistemológica constituinte. (…) Pois a
Antropologia não é senão um certo
almente, vir a ser consideravelmente mo-
olhar, um certo enfoque que consiste
dificadas de modo bastante acelerado. De em: a) o estudo do homem inteiro; b) o
qualquer maneira, como foi salientado, estudo do homem em todas as
esse acabou revelando-se um falso proble- sociedades, sob todas as latitudes em
ma na medida em que – antes mesmo do todos os seus estados e em todas as
período em que esteve em voga a discus- épocas (LAPLANTINE, 1988, p. 16).

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Segundo esse enfoque, que tem predomi- paradigma hermenêutico de alguma
nado no contexto da disciplina, a Antro- desordem na matriz disciplinar
pologia se define, então, por um “olhar” (constituída, originalmente, pelos
(não contemplativo, mas investigador) so- paradigmas orientados pelas ciências
bre o “outro” (i. é., pertencente a outra naturais), o que se viu foi (…) uma sorte
de rejuvenescimento da disciplina. (…)
sociedade, cultura ou grupo social), ou,
A hermenêutica não veio para erradicar
ainda mais apropriadamente, sobre a “di- os paradigmas, hoje chamados
ferença” que a existência do “outro” ne- tradicionais. Mas para conviver com
cessariamente implica. Secundariamente, eles, tensamente, performando uma
mas não menos importante, o exercício matriz disciplinar efetivamente viva e
antropológico, que é fundamentalmente produtiva (CARDOSO DE OLIVEIRA,
comparativo – e pressupõe a convivência 1995, p. 216, 220).
com a diferença e a tentativa de
compreendê-la a partir de uma postura O presente trabalho objetiva discutir algu-
relativizadora –, tende a fazer do antro- mas questões trazidas pela hermenêutica
pólogo um crítico privilegiado da sua pró- junto às quais também se colocam aspec-
pria sociedade, porquanto consegue de- tos associados a uma pós-modernidade
senvolver um olhar sobre ela como se fos- antropológica. Dentre os vários temas que
se um observador situado “fora” dela. poderiam ser abordados desta angulação
e que propõem uma revisão dos ingredi-
Voltando ao ponto de partida, pode-se entes tradicionais da pesquisa antropoló-
dizer, portanto, que a questão gica, dar-se-á prioridade à relação antro-
freqüentemente considerada o foco da cri- pólogo-informante, peça fundamental da
se foi convenientemente contornada, de pesquisa de campo, e à questão da “tradu-
modo que parece mais que adequada a ção cultural” associada ao trabalho antro-
afirmação de que: pológico, além de considerar-se o cenário
político-ideológico em que se tem espraia-
as turbulências que a Antropologia do a onda hermenêutica, a qual tem esti-
sofreu em passado recente, não foram mulado com bastante vigor a rediscussão
de molde a contaminá-la no nível dessas e de outras questões.1
epistêmico. (…) Com a introdução pelo

POLÍTICA E ANTROPOLOGIA
Começamos, então, por abordar este últi- farão considerações de natureza mais pro-
mo ponto, isto é, o contexto político-ideo- priamente antropológica. Como o aspec-
lógico em que as referidas questões têm to político tende a influenciar a discussão
sido colocadas e que constituirá o pano de daquelas questões, seguramente elas serão
fundo sobre o qual, subseqüentemente, se mais bem compreendidas quando coloca-

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das numa perspectiva que não negligen- se da desde el momento en que ponen
cia o contexto político-ideológico em que sus conocimientos al servicio de un
têm sido elaboradas. Embora a questão sistema que íntimamente rechazan y
política tenha sido mencionada em mui- critican (apud ROJAS, 1969, p. 791-
tos trabalhos atuais, essa referência é emi- 792).
nentemente episódica, já que surge no tra-
to de apenas algumas questões, como é o Mas, se a Sociologia e a Ciência Política
caso das chamadas “Antropologias perifé- constituíram, por assim dizer, receptácu-
ricas”. Não se tem colocado, portanto, em los naturais das idéias de Marx, a Antro-
termos abrangentes no sentido de consti- pologia não teve como oferecer a mesma
tuir um ingrediente importante na consti- disponibilidade. Empolgada por um estru-
tuição mesma do panorama em que emer- turalismo que estendeu sua influência – e,
ge o conjunto das questões que têm sido junto com ela, o prestígio da disciplina –
discutidas na arena antropológica. É essa às mais variadas áreas do conhecimento, a
permanência do político que se quer Antropologia teve dificuldade em mostrar
enfatizar e que pretende colocar-se aqui de que maneira poderia contribuir para
como um aspecto fundamental para as uma atuação política conseqüente. Não
considerações que se farão sobre as ques- que os teóricos mais envolvidos com o es-
tões acima referidas. truturalismo tivessem tais preocupações à
flor da pele. Afinal, como escreveu o pró-
Inicialmente cabe examinar, ainda que prio Lévi-Strauss, “supondo que nossas
resumidamente, as razões que nos levam ciências um dia possam ser colocadas a
a acreditar numa continuada contamina- serviço da ação prática, elas não têm, no
ção do contexto antropológico pelo políti- momento, nada ou quase nada a oferecer.
co. Para tanto, remetemo-nos a algumas O verdadeiro meio de permitir sua exis-
décadas atrás quando o mundo acadêmi- tência, é dar muito a elas, mas sobretudo
co em geral e as ciências sociais em parti- não lhes pedir nada” (apud
cular desenvolveram uma postura extre- LAPLANTINE, 1988, p. 28). É fato que a
mamente crítica em relação às sociedades Antropologia econômica, principalmente
ocidentais – particularmente as ditas “cen- a desenvolvida na França por autores con-
trais” em termos da produção do conheci- sagrados como Meillassoux, Pouillon,
mento antropológico, marcadas ainda pela Terray e Godelier, acolheu vigorosamente
herança colonialista – na esteira de uma as idéias marxistas, mas foi a análise estru-
crescente influência marxista. Como disse turalista que deu o tom maior do discurso
Stefano Varese, antropológico no período. Apesar disso, no
entanto, desenvolveu-se no interior do
las ciencias sociales son un producto campo antropológico e em sintonia com
más de la sociedad de consumo y como idéias políticas permeadas pela ideologia
tales están a su servicio con tanto o marxista uma espécie de “Antropologia
mayor eficiencia que los campesinos, revolucionária” que procurava posicionar-
los obreros o los técnicos. La miseria se de maneira política radical em favor das
moral e intelectual de estas disciplinas

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populações consideradas exploradas pelo A falência do marxismo e dos movimen-
sistema capitalista e pela Antropologia que, tos revolucionários que ele inspirava obvi-
de braços com ele, via aquelas populações amente contribuiu para a mudança de
como mero objeto de estudo sem maior posicionamentos políticos mais
consideração para o contexto político que radicalizadores, mas acabou dando lugar
as vitimava. a uma postura de comprometimento aca-
dêmico, não totalmente isento de um cer-
Uma tal postura de reação ao conformis- to radicalismo, com o “outro” – objeto por
mo antropológico tradicional remonta aos excelência da pesquisa antropológica. Des-
anos 60 e 70 e foi, um pouco sa maneira, a disciplina estaria não só exor-
exageradamente, referida por Adam cizando antigos fantasmas que vagavam
Kuper nos seguintes termos: pelo espaço antropológico desde os tem-
“Anthropologists who worked in any pos em que participou de empreendimen-
capacity in the Third World should rather tos de exploração colonial, mas também
serve revolutionary nationalist or socialist resgatando a participação política que não
forces. Neutrality was the refuge of fools teve nos períodos mais recentes devido,
and scoundrels” (KUPER, 1994, p. 537). como já se viu, ao predomínio do inócuo –
Esse posicionamento pode ser ilustrado do ponto de vista político – estruturalis-
pela referência de Alfonso Rojas à corren- mo. É essa postura de comprometimento
te ideológica que, no seu entender, no fi- acadêmico que tem contaminado de ma-
nal da década de 60, se impunha cada vez neira abrangente o desenvolvimento atu-
mais aos antropólogos do continente ame- al da disciplina e que se tem concretizado
ricano: através de uma posição “politicamente
correta” expressa por uma espécie de ali-
El punto central de esta corriente es que ança com o “outro” contra alguns pressu-
el antropólogo debe estar postos metodológicos da disciplina que
‘comprometido’, es decir, involucrado seriam responsáveis por um processo de
políticamente con el propósito alienação desse mesmo “outro” de um con-
fundamental de propugnar por un texto – o da investigação antropológica –
cambio de estructuras de poder y
onde sempre desempenhou um papel cen-
alcanzar así para el país un futuro cada
día mejor, más libre y más
tral.
independiente”.2 (...) Las escuelas
antropológicas europeas y norte- Mal comparando, era como se a Antropo-
americanas, son colonialistas todas logia tradicional produzisse uma espécie
ellas, por lo tanto, como comentario de “mais-valia antropológica” através da
obligado, se deduce que no pueden exploração do “outro” ou da “outra cul-
darnos una idea o imagen adecuada de tura”, quadro esse que cabia reparar atra-
la realidad ni de los problemas sociales vés do resgate da participação dele ou dela
propios del mundo contemporáneo na realização do trabalho antropológico e
(ROJAS, 1969, p. 787, 791). da disposição de contribuir – agora sem
maiores radicalizações – para sua inserção

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no contexto político mais amplo. Nesse The ethnographer should therefore
caso, o desempenho “politicamente corre- convey the messages of progressive
to” equivaleria a um compartilhamento do forces to sympathizers abroad (KUPER,
“lucro antropológico” entre pesquisador 1994, p.542-543).
(leia-se Antropologia) e o nativo (leia-se a
outra cultura), considerado agora um igual Pode-se, então, dizer que aquele envol-
e devendo ter também, junto com a sua vimento político concreto, para não dizer
sociedade e sua cultura, uma maior parti- revolucionário, proposto por alguns seto-
cipação na própria produção antropoló- res da comunidade de antropólogos a par-
gica. Isto posto, cabe destacar a tendência tir dos anos 60, acabou dando lugar, no
atual da Antropologia de associar desen- período mais recente, a uma preocupação
volvimentos da chamada pós- voltada para questões mais propriamente
modernidade com ingredientes políticos antropológicas, ainda que mantendo como
que pressupõem um engajamento do tra- pano de fundo um cenário político de “re-
balho antropológico no sentido de ecoar beldia” contra pressupostos tradicionais da
anseios das populações nativas, que cons- disciplina, cenário esse que tem fornecido
tituem objeto da pesquisa científica. Se- os ingredientes para o que pode ser consi-
gundo ainda Kuper: derada uma postura “politicamente cor-
reta”. É então a partir dessas considera-
this view of the ethnographer as a ções que se vai discutir aqui algumas ques-
spokesperson – or medium – for the tões que vêm sendo colocadas no contex-
demos permitted some to reincorporate to antropológico atual como é o caso do
the post-modernist programme with a papel do antropólogo vis-à-vis a figura do
Marxist view (…). This line of argument informante – uma personagem central do
feeds readily into a current political
trabalho de campo – e da “tradução cultu-
discourse that links identity, culture and
politics. (…) It is the voices struggling
ral” que está implícita em virtualmente
to articulate a message of liberation that todo trabalho antropológico.
the ethnographer must strain to hear.

PESQUISADOR, INFORMANTE E INTERLOCUTOR

A chamada Antropologia tradicional sem- que estivesse sendo observada, e ouvir


pre viu no informante uma figura central também – e especialmente – sobre o que
da pesquisa de campo. Afinal, o pesquisa- não via, isto é, relatos, histórias, mitos,
dor, além de ver e de escrever, precisava tam- acontecimentos passados, acontecimentos
bém ouvir, ouvir sobre o que ele via, no presentes não-observados diretamente,
sentido de que alguém do grupo enfim, dados que lhe interessavam como
pesquisado podia explicar alguma coisa pesquisador. Criou-se, então, por assim

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dizer, toda uma mitologia em torno da fi- nal da pesquisa, isto é, o artigo, a tese, o
gura do informante e de sua importância ensaio, a monografia, o livro, enfim, o tra-
para o pesquisador, a ponto de se poder balho publicado.
dizer, parodiando a conhecida frase, que
“atrás de todo grande (ou mesmo peque- Esse quadro em que o informante, apesar
no) antropólogo existe sempre um gran- de desempenhar uma função central na
de informante”. Ao assunto tem sido re- pesquisa, já que era o provedor de infor-
servado um bom espaço na produção an- mações, acabava sendo marginalizado na
tropológica passada e presente, mas a onda produção antropológica, tem sido severa-
hermenêutica chegou produzindo uma mente criticado porque revelaria uma pos-
forte turbulência em torno dele. A visão tura autoritária do pesquisador – ineren-
até certo ponto romântica do bom informan- te não só à autoridade decorrente do seu
te, que aparecia como uma espécie de sá- status de antropólogo, mas também ao fato
bio do grupo disposto a colaborar gene- de que ele, e só ele da comunidade acadê-
rosamente para o bom empreendimento mica, vivenciou no campo aquilo sobre que
antropológico, fonte de informação segu- escreveu. Quanto a este último ponto, apa-
ra a ser processada pelo antropólogo, tem rentemente menos problemático, perce-
estado sob competente fogo cerrado. bem-se alguns aspectos que provocaram
distorções não consideradas na vigência
Não é exatamente a figura do informante dos paradigmas clássicos da Antropologia.
em si que foi colocada sob suspeição, mas o Geertz, por exemplo, ressalta que
papel que de fato lhe deve caber no pro-
cesso de produção da pesquisa e nos tra- the ability of anthropologists to get us
balhos dela decorrentes, bem como o tipo to take what they say seriously has less
de relação que se deve estabelecer com ele. to do with either a factual look or an air
Na pesquisa tradicional, o informante era of conceptual elegance than it has with
visto como desempenhando apenas a fun- their capacity to convince us that what
they say is a result of their having
ção do falar (já que os dados não falam),
actually penetrated (or, if you prefer,
enquanto ao antropólogo cabia a função been penetrated by) another form of life,
de ouvir e escrever (também a de observar, of having, one way or another, truly
mas freqüentemente o que era observado ‘been there’ (GEERTZ, 1988, p. 4-5).
dependia da complementação explicativa
do informante para ser adequadamente E para Marcus e Fischer “what gives the
compreendido). Nesse processo, graças à ethnographer authority and the text a
relação estabelecida – em que o informan- pervasive sense of concrete reality is the
te era apenas um fornecedor de informa- writer’s claim to represent a world as only
ções, portanto alienado da execução do one who has known it firsthand can, which
trabalho antropológico –, e à própria con- thus forges an intimate link between
cepção que se tinha da linha de produção ethnographic writing and fieldwork”
acadêmica, havia uma enorme distância (MARCUS, FISCHER, 1986, p. 23).
entre a fala do informante e o produto fi-

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Quanto à autoridade do pesquisador em pesquisador/informante pela relação pes-
face dos outros aspectos da pesquisa, na quisador/interlocutor. Sustenta-se que esta,
esteira da turbulência crítica provocada sim, possibilita um verdadeiro diálogo en-
pela hermenêutica e pós-modernidade, tre antropólogo e, vá lá o neologismo,
não há quem não admita que é chegada a antropologizado, já que a “autoridade”
hora de rever a posição todo-poderosa do daquele tende a diluir-se o suficiente para
antropólogo vis-à-vis seus dados de cam- não “sufocar” a voz do nativo (como acon-
po, a relação com o informante e sua es- tecia na Antropologia tradicional onde
crita etnográfica. Mas, então, qual a pos- prevalecia a relação pesquisador/infor-
tura mais adequada em relação ao infor- mante) de modo que a possibilidade de um
mante? Não é difícil concordar com a afir- real conhecimento aumenta consideravel-
mação de que a posição passiva do infor- mente. Com essa mudança se produz, de
mante, submetido numa relação de poder acordo com Cardoso de Oliveira, um “ver-
à autoridade do pesquisador, não cria con- dadeiro ‘encontro etnográfico’ ”, ou uma
dições efetivas para que sua voz seja real- “fusão de horizontes”:
mente ouvida e adequadamente expressa
no trabalho antropológico. E uma das for- desde que o pesquisador tenha a
mas que têm sido utilizadas para sublinhar habilidade de ouvir o nativo e por ele
a produção cooperativa do conhecimento ser igualmente ouvido, encetando um
etnográfico e contrabalançar o poder diálogo teoricamente de ‘iguais’ (…).
discursivo do antropólogo3 é a de abrir es- Trocando idéias e informações entre si,
etnólogo e nativo, ambos igualmente
paço no trabalho publicado para transcri-
guindados a interlocutores, abrem-se a
ções literais da fala do informante. Mas, um diálogo em tudo e por tudo superior,
de qualquer maneira, transcrições são – metodologicamente falando, à antiga
conscientemente ou não – sempre mani- relação pesquisador/informante
puladas por quem as transcreve, quase que (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996, p.
reforçando a monofonia da autoridade do 21, 1995, p. 223).
pesquisador. Como lembra James Clifford,
No bojo das discussões mais recentes, difi-
looking beyond quotation, one might cilmente se poderia imaginar uma
imagine a more radical polyphony that discordância significativa do conteúdo des-
would ‘do the natives and the sa nova relação etnólogo-interlocutor, que
ethnographer in different voices’; but também soa politicamente corretíssima. A
this too would only displace questão é como colocar isso em prática,
ethnographic authority, still confirming
mesmo porque freqüentemente a tentati-
the final virtuoso orchestration by a
single author of all the discourses in his
va de se estabelecer uma relação mais ínti-
or her text” (CLIFFORD, 1988, p. 50).4 ma entre aqueles dois agentes da pesquisa
tem resultado numa etnografia de cunho
Na tentativa de se produzir um maior intimista que está longe de constituir um
equilíbrio entre as partes envolvidas, tem- inquestionável ganho antropológico.5 Ao
se também optado por substituir a relação fim e ao cabo, a questão acaba resumindo-

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se na “habilidade” do pesquisador em “ne- Por isso, parece um tanto ilusória a possi-
gociar” com o interlocutor uma “lingua- bilidade de se estabelecer uma relação
gem comum” que expresse o significado igualitária entre etnólogo e interlocutor,
do dado antropológico. ou seja, uma relação na qual se possa en-
trever uma “fusão de horizontes”.7 Isso
Mas aqui surge uma dificuldade que não equivaleria, na realidade, a transformar o
convém ignorar: quem acaba controlando interlocutor em uma espécie de antropó-
o diálogo é inevitavelmente o pesquisa- logo nativo – o que talvez possa em certa
dor.6 Afinal, não há como negar que a medida acontecer, mas com o preço que
pesquisa é sua, isto é, os assuntos a serem essa transformação necessariamente teria
tematizados, as questões a serem conside- para o transformado e, conseqüentemen-
radas, os fenômenos a serem observados te, para o próprio trabalho de pesquisa.
ou descritos originam-se de suas preocu- Afinal, o horizonte antropológico, enquan-
pações enquanto pesquisador e neste pon- to matizado por pressupostos científicos,
to pelo menos dificilmente se poderia fa- não faz parte do leque de horizontes
lar em igualdade. Ainda que o termo descortinados a partir das culturas nativas.
“interlocução” pretenda significar uma Nesse caso, transformar o “outro” em an-
relação entre pessoas “idealmente iguais”, tropólogo, ainda que obviamente guarda-
o fato é que o antropólogo não pode dei- das as proporções, constituiria apenas um
xar de ouvir o “outro” de maneira crítica, autoritarismo de novo tipo. Mas não se
isto é, fazendo passar o que é ouvido pelo quer negar aqui que a tentativa de uma
crivo da matriz disciplinar ou da teoria an- aproximação mais autêntica com o “outro”
tropológica. Nesse sentido, a “igualdade” (no sentido de ouvi-lo bem, e de fazer eco-
entre pesquisador e pesquisado fica pre- ar no texto escrito a voz de quem sabe o
judicada de saída, já que – mesmo que não que o pesquisador não sabe e quer saber),
se considere que suas motivações para o não deva ser seguidamente tentada, mes-
diálogo são diferentes, o que aponta para mo porque nesse caso uma interlocução
uma participação desigual nele –, do pon- mais positiva, com menos ruídos,
to de vista da pesquisa aquele acaba “en- indubitavelmente tende a ocorrer.
quadrando” a fala deste. O que se susten-
ta aqui, portanto, é que a relação pesqui- Em suma, quer-se ressaltar que uma ten-
sador/pesquisado (ou qualquer outra de- são inevitável permeia a relação pesquisa-
nominação que se lhes queira dar) é ne- dor/pesquisado decorrente do dese-
cessariamente construída sobre uma dife- quilíbrio também inevitável dos papéis di-
renciação de papéis (diferenciação essa ferenciados vividos por eles. Mas se essa
seguramente agravada pela diferença en- tensão é insuperável, por outro lado, ela
tre as culturas e línguas dos respectivos pode ser minimizada e o antropólogo “há-
agentes) que provoca um inevitável bil” não é aquele que acredita poder
desequilíbrio naquela relação, contami- eliminá-la completamente, já que ela não
nando de maneira inescapável o trabalho pode ser eliminada, mas aquele que,
antropológico nela ancorado. e xercitando a sua humildade (em

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contraposição à pretensão e à arrogância desigualdade tendem a ser associadas a
que constituíam ingredientes facilmente uma postura política “incorreta” – mas,
encontráveis na pesquisa antropológica entre pessoas que reconhecem as desigual-
tradicional) percebe a insuperabilidade dades que vivenciam. E, porque as reco-
daquela mesma tensão e trabalha no sen- nhecem, estão mais capacitadas a reduzi-
tido de minimizá-la, reduzindo a enorme las, reduzindo também, e conseqüente-
– a qualquer título – distância que o sepa- mente, as distorções inerentes a encontros
ra do nativo/interlocutor. Nesse caso, não entre diferentes culturas, a “traduções” de
se teria exatamente um diálogo entre uma a outra cultura, a decodificações de
iguais – com o preço de saber que a refe- significados culturais, enfim, inerentes ao
rência e, especialmente, a aceitação dessa conjunto do trabalho antropológico.

A TRADUÇÃO CULTURAL

Mas o encontro entre pesquisador e rentes significados em que ela pode encai-
interlocutor traz uma outra dificuldade, xar-se na sua própria cultura, que é o des-
agora no nível da linguagem. É que por tino daquela tradução.
mais próximos que estejam os seus respec-
tivos horizontes, como não se podem real- Aliás, mesmo numa única cultura a comu-
mente fundir, haverá sempre uma distân- nicação lingüística entre os diferentes
cia a ser percorrida para que se possa es- agentes sociais é sempre imperfeita já que
tabelecer um diálogo efetivo entre eles. cada um deles tende a atribuir um signifi-
Línguas diferentes remetem a universos cado, digamos, particular (ainda que se-
culturais e simbólicos também diferentes, melhante ao dos outros, daí a possibilida-
de modo que, como acontece com qualquer de de comunicação intra-cultural) aos con-
tipo de tradução, a chamada “tradução an- ceitos daquela cultura.8 Locke, já no seu
tropológica” – isto é, a compreensão de um Ensaio acerca do entendimento, ao discorrer
fenômeno de uma cultura e sua tradução sobre o significado das palavras afirmou
para outra, geralmente a do próprio an- que:
tropólogo – não deixa de conviver com
ruídos, vale dizer, imperfeições inerentes ao elas freqüentemente deixam de
próprio processo de tradução. Isto quer estimular em outros (mesmo se usam a
dizer que a tradução nunca é perfeita e, mesma língua) as mesmas idéias que
nesse caso, o antropólogo precisa saber que nós as consideramos como seus sinais;
tem que conviver com uma tal dificuldade e todo homem tem liberdade tão
inviolável para formar palavras para
e estar aberto para uma “negociação” com
significar idéias ao seu agrado como
o interlocutor, no sentido de apreender o ninguém tem o poder para obrigar
melhor significado de uma dada catego- outros a ter as mesmas idéias em suas
ria nativa tendo em vista os possíveis dife- mentes quando, como ele, usam as

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mesmas palavras. (…) A menos que as à nous entendre, que, souvent même,
palavras de uma pessoa estimulem as nous nous mentons, sans le vouloir, les
mesmas idéias em quem as escuta, uns aux autres: c’est que nous
tornando-as significativas no discurso, employons tous les mêmes mots sans
não fala inteligivelmente (LOCKE, leur donner tous le même sens
1978, p. 225). (DURKHEIM, 1968, p. 622 – grifo do
autor).
E para Durkheim:
Se tais distorções necessariamente ocorrem
concevoir une chose, c’ést en même dentro de uma mesma cultura e de uma
temps qu’en mieux appréhender les mesma língua, parece óbvio admitir que
éléments essentiels, la situer dans un elas são bem maiores quando se trata de
ensemble; car chaque civilisation a son culturas diferentes.9 Nesse caso, a habili-
système organisé de concepts qui la dade lingüística de qualquer antropólogo
caractérise. En face de ce système de
engajado no processo de tradução antro-
notions, l’ésprit individuel (…)
pológica será sempre colocada a duras
s’efforce de se les assimiler, car il en a
besoin pour pouvoir commercer avec provas. Daí decorre que esse papel de tra-
ses semblables; mais l’assimilation est dutor dificilmente pode ser compartilhado
toujours imparfaite. Chacun de nous les com o interlocutor,10 a menos que este
voit à sa façon. Il en est qui nous também esteja familiarizado com a língua
échappent complètement, qui restent en do pesquisador e tenha sensibilidade sufi-
dehors de notre cercle de vision; ciente (como se espera do antropólogo)
d’autres, dont nous n’apercevons que para compreender as dificuldades ineren-
certains aspects. Il en est même, et tes ao processo e ter parte ativa na negoci-
beaucoup, que nous dénaturons en les ação acima referida. Como esse caso, para
pensant; car, comme elles sont dizer o mínimo, não ocorre com freqüên-
collectives par nature, elles ne peuvent
cia, por mais uma razão se percebe a difi-
s’individualiser sans être retouchées,
culdade de se pensar a relação pesquisa-
modifiées et, par conséquent, faussées.
De là vient que nous avons tant de mal dor/interlocutor em termos igualitários.

MODELO CONSCIENTE E MODELO INCONSCIENTE

Mas as dificuldades não param por aí. A pológica através de um diálogo entre
questão que envolve o aspecto consciente/ iguais como querem os hermeneutas. Afi-
inconsciente do discurso do nativo talvez nal, a Antropologia, notadamente a An-
constitua um obstáculo ainda maior na ten- tropologia estrutural, pela sua vertente
tativa de encurtar a distância entre pes- simbólica, trabalha com interpretação, seja
quisador e interlocutor na pesquisa antro- de rituais, de comportamentos sociais, de

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mitos, enfim, de tudo aquilo prenhe de consciência coletiva. Com efeito, os
simbologia passível de ser socialmente modelos conscientes – que se chamam
decodificada. Uma das tarefas da Antro- comumente “normas” – incluem-se
pologia simbólica é, justamente, procurar entre os mais pobres que existem, em
revelar o significado de fenômenos sociais razão de sua função, que é de perpetuar
as crenças e os usos, mais do que expor-
expressos através de símbolos que
lhes as causas (LÉVI-STRAUSS, 1970,
permeiam o contexto de uma dada socie- p. 304. Grifo do autor).
dade. Acontece que, via de regra, o dado
observável tem sua função manifesta e sua Nesse caso, no “diálogo” entre o antropó-
função latente, aquela perceptível – à me- logo e o seu interlocutor este obviamente
dida que se manifesta no nível consciente só pode fazer referência aos modelos que
do indivíduo –, esta imperceptível – por- lhe são conscientes – e, portanto, vale re-
quanto codificada no nível inconsciente. É petir, mais pobres – ou seja, aqueles mais
o caso, por exemplo, da linguagem, fala- óbvios, que necessariamente são de domí-
da por obra da consciência do sujeito, mas nio público, deixando de manifestar-se
cuja sintaxe ele usa sem conhecimento sobre os modelos inconscientes que são ti-
explícito das regras, instaladas no seu in- dos como os mais ricos porque mais
consciente. Uma das tarefas do antropó- reveladores. A dificuldade de acesso a es-
logo é, segundo Lévi-Strauss, apreender tes modelos inconscientes ocorre, segun-
os modelos conscientes e inconscientes do ainda Lévi-Strauss, porque “quanto
“construídos” pela sociedade – e cuja ma- mais nítida é a estrutura aparente, mais
téria-prima são as relações que se produ- difícil torna-se apreender a estrutura pro-
zem no interior dela – já que tais modelos funda, por causa dos modelos conscientes
tornam manifesta a estrutura social daque- e deformados que se interpõem como obs-
la sociedade. Porém, os seus agentes soci- táculos entre o observador e seu objeto”
ais normalmente só têm acesso aos mode- (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 304).
los conscientes, que constituem as normas
que regem essa sociedade e que são O mesmo se poderia dizer substituindo-se
e xplicitados da maneira mais im- observador por interlocutor ou nativo. Afinal,
pressionista e superficial. Já os modelos o modelo inconsciente que se quer reve-
inconscientes, o próprio nome o diz, não lar é do interlocutor (talvez fosse mais cor-
estão ao alcance dos indivíduos porque se reto dizer não é, já que ele desconhece sua
constituem de ingredientes registrados no existência) ou, melhor dizendo, construído
nível inconsciente. Não são, portanto, pela sociedade a que ele pertence, mas
transparentes para a consciência coletiva. mascarado para a consciência coletiva e,
De acordo com Lévi-Strauss: conseqüentemente, para o agente social
enquanto impregnado por ela. Por outro
uma estrutura superficialmente lado, o antropólogo sabe que existem mo-
dissimulada no inconsciente torna mais delos inconscientes e, presumivelmente,
provável a existência de um modelo que conhece os caminhos que levam ao seu
a mascara, como uma tela, para a desvendamento, ao contrário do que acon-

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tece com o interlocutor. “Lévi-Strauss”, diz ente (portanto, não-suspeitado) expresso
Leach, “postula que, subentendido no sen- através de símbolos produzidos pelo paci-
tido manifesto das estórias [mitológicas] ente/interlocutor, que são contextualizados
deve existir um outro não-sentido, uma e decodificados pelo psicanalista. É essa
mensagem envolta num código. Por ou- linguagem simbólica falada pela socieda-
tras palavras, ele pressupõe, com Freud, de que o antropólogo busca desvendar
que um mito é uma espécie de sonho coletivo e para compreender, além dos mitos, tam-
que deve ser susceptível de interpretação, bém aspectos da cultura e sociedade nati-
de modo a revelar o seu sentido oculto” vas que fogem a qualquer análise dos agen-
(LEACH, 1973, p. 56, grifo do autor). tes sociais, capacitados a se manifestarem
Nesse sentido, mais uma vez se complica a apenas sobre fenômenos passíveis de se-
tentativa de se estabelecer uma relação rem expressos pela linguagem comum e a
entre iguais envolvendo antropólogo e lógica que a permeia. Segundo Erich
interlocutor. Afinal, neste caso, aquele pre- Fromm:
tende desvendar o que é parte deste, mas
cuja existência é por ele desconhecida. povos diferentes criam mitos dife-
rentes, tal como diferentes pessoas
Para ficarmos ainda com Lévi-Strauss, mas têm sonhos diferentes. Porém, a
referindo agora à sua contribuição para o despeito dessas diferenças, todos os
estudo e decodificação de mitos das po- mitos e todos os sonhos têm uma
coisa em comum: são escritos na
pulações nativas, é fácil perceber que a lei-
mesma língua, a linguagem simbó-
tura que ele proporciona por trás do dis-
lica. (…) É uma linguagem cuja
curso mítico – como Leach bem enfatizou lógica difere da linguagem conven-
no trecho acima transcrito – dificilmente, cional que falamos de dia, uma ló-
para não dizer de forma nenhuma, poderia gica em que as categorias dominan-
ser proposta pelos próprios nativos, já que tes não são o espaço e o tempo, mas
não têm acesso às regras e códigos (vale sim a intensidade e a associação.
dizer, à linguagem inconsciente) que tornam (…) É uma língua com gramática
manifesto o sentido mais profundo dos e sintaxe próprias, por assim dizer,
mitos. Nesse particular, a relação antro- e cujo conhecimento é imprescin-
pólogo/interlocutor se aproxima daquela dível para se poder entender o
que se estabelece entre o psicanalista e o significado dos mitos, dos contos
de fada13 e dos sonhos (FROMM,
seu paciente,11 na medida em que o tra-
1973, p. 15-16, grifo do autor).
balho analítico pode ser pensado em ter-
mos de uma tensão constante e necessária Um exemplo marcante de interpretação
entre modelos conscientes e inconscientes. de fenômenos sociais através da
A livre associação, a interpretação de um explicitação de modelos inconscientes em
sonho – assim como a narração de um sociedades indígenas é o oferecido por
mito12 – têm como matéria-prima o dis- Pierre Clastres (1986, p. 71-89) para o
curso do interlocutor (modelo consciente), “canto dos homens” entre os guaiaqui, ín-
mas objetivam revelar o modelo inconsci- dios caçadores-coletores da América do

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Sul. Esse canto é caracterizado pela parti- expresso por eles. Dificilmente se poderia
cipação individual (embora cantem ao esperar que um índio guaiaqui discorres-
mesmo tempo, cada indígena canta a sua se sobre o significado mais profundo do
música), pela exaltação do eu e pela utili- “canto dos homens”, na medida em que
zação de uma linguagem eivada de expres- isso não só implicaria o acesso a uma lin-
sões particulares, no sentido de que não são guagem simbólica que ele desconhece, mas
inteiramente compreendidas pelos outros também remeteria a uma atividade
indivíduos. Permanentemente aprisionados (interpretativa) que provavelmente, para
numa implacável rede de troca, não dizer seguramente – pelo menos na
compartilhamento e interdependência – profundidade requerida para a interpre-
que inclui até a poliandria, com a qual con- tação de modelos inconscientes –, não faz
vivem de maneira explicitamente parte do horizonte cultural dos nativos.1 5
desgostosa – os índios guaiqui expressari-
am nesse canto sua rebeldia contra essa Como a linguagem simbólica e a lógica que
“intolerável” submissão a uma ordem so- lhe é inerente não são acessíveis ao
cial extremamente opressiva, mas da qual interlocutor quando este se refere a um
não conseguem escapar na vida real. Eva- dado etnográfico eivado de simbolismos
dir-se-iam, portanto, dela simbolicamen- (seja ele um mito, um ritual, um compor-
te – vale dizer, inconscientemente – na for- tamento social), isso necessariamente pro-
ma de um canto que apontaria para a li- voca um desequilíbrio na relação que se
berdade do indivíduo das normas sociais (pela estabelece entre ele e o antropólogo que,
atitude individualista ao cantar a sua mú- presumivelmente, domina aquela lingua-
sica, em contraposição à instância coleti- gem e aquela lógica. Estimular o
va, presente praticamente em todos os ní- interlocutor a qualquer tentativa de inter-
veis do contexto social), a independência do pretação – ainda que, digamos, com o
eu (através do canto individual em que melhor dos resultados –,traduzir e editar
exaltam os próprios feitos e qualidades) e o que foi dito por ele constituem procedi-
a recusa da troca e do compartilhamento mentos que deixam manifesto exatamen-
inescapáveis de que têm de participar na te aquele desequilíbrio, já que essas ativi-
vida cotidiana (aqui substituídos pela re- dades acabam expressando o exercício,
cusa da comunicação verbal – da troca de por mais diluído que seja, de uma autori-
mensagens, que é o leit-motiv de toda lin- dade da qual o antropólogo moderno quer
guagem – graças à utilização de palavras abrir mão, mas que é a condição
incompreensíveis aos outros indivíduos). inescapável da realização do seu trabalho.
Mesmo porque ela emerge de saberes dife-
Pode-se discordar da interpretação de renciados – o do pesquisador e o do nativo
Clastres, mas o fato é que ele busca deci- – que não podem ser nivelados, ainda que
frar a imagem simbólica14 concretizada por esse desnível possa ser consideravelmente
aquele dado etnográfico e explicar a lógi- reduzido por uma postura mais aberta e
ca que preside os tais cantos, vale dizer, respeitosa por parte do antropólogo, no
decodificar o modelo inconsciente que é sentido de integrar de uma forma mais

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aprofundada e abrangente a participação os hermeneutas, mas não com o tipo de
do interlocutor/informante na pesquisa, relação radicalmente clean que acreditam
propiciando um espaço mais adequado ao ser possível estabelecer com os
seu saber e à sua voz. Como, aliás, querem interlocutores nativos.

NOTAS
1 A contribuição que a hermenêutica trouxe aos 6 Cf. nota 3 acima.
paradigmas tradicionais da Antropologia é refe-
rida por Cardoso de Oliveira em Antropologia e a 7 Não se está negando aqui a possibilidade – mes-
crise dos modelos explicativos (CARDOSO DE OLI- mo a necessidade – de que haja alguma
VEIRA, 1995). superposição dos “horizontes” do antropólogo e
do nativo/informante. Afinal, para que haja um
2 Cf. ainda Varese: “La tarea antropológica no mínimo de comunicação é imprescindível a exis-
puede limitarse exclusivamente a la denuncia ex- tência de áreas comuns entre as respectivas lín-
catedra sino debe abordar tambiém el campo de la guas e culturas – e é isso que torna possível a “tra-
acción” (citado em ROJAS, 1969, p. 789). Tam- dução antropológica”. Mas, nesse caso, o uso da
bém Barbara e Alan Harber: “Un radical no puede expressão “fusão de horizontes” para caracteri-
poner su lealtad del lado de su profesión o de la zar o “diálogo” entre agentes de culturas muito
institución a la que pertenece. Nuestra lealtad está diferentes – como é o caso do pesquisador e do
con los camaradas políticos y con los propósitos nativo -, parece pouco adequado, a menos que
políticos por los cuales estamos trabajando” (CAR- ela seja explicitamente qualificada como “parci-
DOSO DE OLIVEIRA, 1995). al”. Sem essa referência, a expressão contamina
toda a idéia de interlocução com seu conteúdo
3 Segundo Geertz, “within anthropology it is hard
totalizador, sugerindo, então, uma superposição
to deny the fact that some individuals, whatever
virtualmente completa dos horizontes dos
you call them, set the terms of discourse in which
interlocutores, o que somente seria possível en-
others thereafter move – for a while anyway and
tre agentes pertencentes ao mesmo contexto
in their own manner” (GEERTZ, 1988, p. 19).
sociocultural e lingüístico (aliás, a rigor, nem mes-
4 Em From the door of his tent: the fieldworker and the mo neste caso; cf. p. 55 do presente trabalho).
inquisitor, Ronaldo Rosaldo mostra como a retóri-
8 Essa dificuldade de comunicação entre pares é bem
ca etnográfica é permeada por diferentes tipos
ilustrada por Deborah Tannen em Analysing
de autoridade que acabam fazendo dela um ins-
discourse: text and talk (1982), Conversational style:
trumento de caráter autoritário (ROSALDO,
analyzing talk among friends (1984) e That’s not what
1986).
I meant (1986). Cf. também GRICE, 1975,
5 Marcus e Fischer atentam para o fato de que “at GUMPERZ, 1982).
times, the dialogue metaphor has been taken too
9 “Os indivíduos em cada cultura codificam a expe-
simplistically, allowing some ethnographers to slip
riência em termos das categorias de seu próprio
into a confessional mode of writing, as if the
sistema lingüístico, captando a realidade apenas
external communicative exchange between a par-
como é apresentada em seu código”, afirma Daniel
ticular ethnographer and his subjects was the most
Goleman. “Cada cultura acentua e classifica as ex-
important goal of research, to the exclusion of a
periências diferentemente. O antropólogo reco-
balanced, full-bodied representation of
nhece que o estudo de um código diferente do
communication both within and across cultural
nosso próprio pode nos levar a conceitos e aspec-
boundaries” (MARCUS, FISCHER, 1986, p. 30).
tos de realidade a partir dos quais nossa própria

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maneira de olhar para o mundo nos exclui. (…) A 12 “No uso de Lévi-Strauss”, escreve Leach, “o mito
cultura molda a percepção para conformá-la a cer- não tem localização no tempo cronológico mas
tas normas, limita os tipos de experiência ou cate- possui certas características que são igualmente
goria para experiências disponíveis ao indivíduo comuns aos sonhos e contos de fada” (LEACH,
e determina a adequabilidade ou aceitabilidade de 1973, p. 54).
um dado estado de consciência ou sua comunica-
ção em situação social” (GOLEMAN, 1996, p. 13 Bruno Bettelheim, em The uses of enchantment –
156,157). the meaning and importance of the faire tales, busca
exatamente explicitar as mensagens embutidas
10 Segundo ainda Marcus e Fiscer, “in cross-cultural nos contos de fada. Segundo ele, tais histórias
communication, and in writing about one culture “came to convey at the same time overt and
for members of another, experience-near or local covert meanings – came to speak simultaneously
concepts of the cultural other are juxtaposed with to all levels of the human personality,
the more comfortable, experience-far concepts that communicating in a manner which reaches the
the writer shares with his readership. The act of uneducated mind of the child as well as that of
translation involved in any act of cross-cultural the sophisticated adult. (…) Fairy tales carry
interpretation is thus a relative matter with an important messages to the conscious, the
ethnographer as mediator between distinct sets of preconscious, and the unconscious mind (…). By
categories and cultural conceptions that interact dealing with universal human problems,
in different ways at different points of the particularly those which preoccupy the child’s
ethnographic process” (MARCUS, FISCHER, mind, these stories speak to his budding ego and
1986, p. 31, grifo do autor). encourage its development, while at the same
time relieving preconscious and unconscious
11 “The concept of ‘unconscious meaning’ belongs
pressures” (BETTELHEIM, 1976, p. 5,6).
to a theory of repressive unconscious, such as
Freud’s, in which a person may be said to ‘know’ 14 Segundo Gilbert Durand “a imagem simbólica
something unconsciously”, diz Talal Asad. “The é transfiguração de uma representação concreta
business of identifying unconscious meanings in através de um sentido para sempre abstrato. O
the task of ‘cultural translation’ is therefore perhaps símbolo é, pois, uma representação que faz apa-
better compared to the activity of the psychoanalyst recer um sentido secreto, é a epifania de um mis-
than to that of the linguist” (ASAD, 1986, p. 161). tério” (DURAND, 1995, p. 11-12).
Uma interessante discussão sobre o inconsciente
na obra de Lévi-Strauss bem como sobre a relação 15 Kuper, referindo-se à antropóloga Gefou-
da Antropologia com a psicanálise a partir de uma Madianou, menciona que “she argues for the
mesma concepção de inconsciente é oferecida por power of international sociological models and
Claude Lépine em O inconsciente na Antropologia theories in the interpretation of local social and
Lévi-Strauss (1974). cultural processes, even if these are unintelligible
to many natives” (KUPER, 1994, p. 546).

ABSTRACT
Hermeneutics has been stimulating the re-discussion of several
questions regarding the anthropological research. This article deals
with two of these questions: the anthropologist/informant relationship
and the “anthropological translation” – understanding traits of
another culture and “translating” them to the researcher’s language

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and culture. Comments on the political-academic context in which
those questions arose help to understand the way they have been
developing in the anthropological field.
Keywords: anthropological research, informant, symbolic
interpretation, cultural translation, conscious and unconscious
model.

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TRÊS PRESSUPOSTOS DA FACTICIDADE DOS


PROBLEMAS PÚBLICOS AMBIENTAIS
MARCELO PEREIRA DE MELLO *

Este artigo objetiva discutir, à luz da sociologia


fenomenológica, o processo de constituição dos chamados proble-
mas ambientais como objetos de estudo dos cientistas, como tema da
regulação estatal, através das políticas públicas específicas, e como
objeto de preocupação das pessoas em geral. Basicamente, estare-
mos inquirindo acerca dos processos cognitivos que permitiram o
entendimento, largamente difundido nas sociedades contemporâ-
neas, do meio ambiente e dos problemas ambientais como fenôme-
nos apodícdicos, isto é, como objetos desvinculados dos processos de
cognição e intersubjetividade envolvidos nas relações sociais.
Segundo o nosso argumento fundamental, são três os pres-
supostos envolvidos na construção dos problemas públicos ambientais
como fenômenos factuais: o pressuposto da especificidade, o da ori-
gem e o da alterabilidade. A aceitação acrítica destes pressupostos,
está na origem do processo através do qual “problemas ambientais”
se transformam em “problemas públicos”, isto é, em problemas re-
gulados pelo poder público e suas instituições. A partir disso, pro-
curamos discutir um pouco a linguagem política específica dos pro-
blemas ambientais desenvolvida pelos atores políticos tradicionais,
no processo de politização da “problemática ambiental”.
Palavras-chave: meio ambiente, políticas públicas, cognição.

O objetivo deste artigo é discutir, à pessoas em geral. Basicamente, estaremos


luz da sociologia fenomenológica, o pro- inquirindo acerca dos processos cognitivos
cesso de constituição dos chamados pro- que permitiram o entendimento, larga-
blemas ambientais como objetos de estu- mente difundido nas sociedades contem-
do dos cientistas, como tema da regulação porâneas, do meio ambiente e dos
estatal, através das políticas públicas espe- problemas ambientais como fenômenos
cíficas, e como objeto de preocupação das apodícticos, isto é, como objetos

* Doutor em Ciências Políticas pelo Iuperj; Professor Adjunto do Departamento de Sociologia da UFF.

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desvinculados dos processos de cognição especificidade, o da origem e o da
e intersubjetividade envolvidos nas rela- alterabilidade.
ções sociais.
Conquanto nosso pequeno estudo, esteja
Para tanto, elaboramos um roteiro crítico mais voltado para os aspectos cognitivos
dos pontos obscuros e inconsistências pre- envolvidos na construção dos chamados
sentes nas diferentes concepções de meio “problemas ambientais”, procuraremos
ambiente e problemas ambientais manipu- entender, também, o processo pelo qual
ladas rotineiramente pelos principais ato- estes problemas se transformam em pro-
res envolvidos nas disputas em torno dos blemas públicos, isto é, em problemas re-
significados e das políticas de caráter gulados pelo poder público e suas insti-
conservacionista. Segundo o nosso argu- tuições fundamentais. Estaremos aptos,
mento fundamental seriam três os pres- assim, a discutir um pouco a linguagem
supostos envolvidos na construção dos política específica desenvolvida pelos ato-
problemas públicos ambientais como fenô- res políticos tradicionais, no processo de
menos factuais: o pressuposto da politização da “problemática ambiental”.

O POSTULADO DA ESPECIFICIDADE
DOS PROBLEMAS AMBIENTAIS

A condição mais elementar para a consti- ência”, como afirma Husserl (1986), a pos-
tuição de um “problema” é satisfeita, se- sibilidade de compreensão dos fenômenos.
gundo a perspectiva fenomenológica,
quando a interação de duas ou mais pes- Com efeito, tanto para cientistas quanto
soas suscita a reflexão e a ação delas no para leigos, a delimitação do problema ou
sentido da decodificação e classificação do objeto de estudo constitui o passo inici-
dessa situação empiricamente dada. A de- al, a partir do qual eles passam a produzir
finição de uma situação qualquer como seus modelos de explicação teórica sobre
“problemática” ou “normal” requer um o mundo. Essa característica comum do
sistema de categorização dos eventos, que conhecimento produzido socialmente, seja
se utiliza do acervo de conhecimentos com científico ou de senso comum, de definir a
o qual as pessoas organizam suas experi- especificidade do problema, ou seja, de
ências e passam a imputar significados diferenciá-lo de todos os demais, além de
para os objetos sensíveis do mundo natu- lhe conferir uma identidade no conjunto
ral. Embora sejam reconhecidos social- dos fatos quotidianos da vida social, tem
mente por reputações diferenciadas, o co- ainda um papel essencial: a distinção
nhecimento científico e o de senso comum cognitiva estimula a atribuição de
coincidem, segundo essa perspectiva, por facticidade aos fenômenos descritos. Defi-
rebaixarem ao “estreito marco da experi- nir um problema é, nessa perspectiva,
torná-lo familiar, compreensível no senti-

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do de ser algo que corresponde às expec- cidades constitui um exemplo disso. Como
tativas criadas em comum sobre o mundo descreve Crenson (1971), os fenômenos
possível. Nesse mesmo processo, os pro- conhecidos como “inversões térmicas”, que
blemas passam a ser considerados como ocorreram em Londres e Nova York, em
dotados de existência própria, no sentido 1952 e 1953, respectivamente, provoca-
de independentes da cognição. ram incidentes urbanos com o registro de
centenas e até milhares de mortes, mas
O caso específico que iremos estudar, da foram tratados de maneira corriqueira
construção social dos problemas pelas autoridades responsáveis pelo con-
ambientais, constitui um exemplo muito trole da poluição do ar nessas duas cida-
bem definido de como os julgamentos des.1 Em Nova York, prossegue o autor,
morais e os recursos cognitivos ordinários embora pudesse ser considerada uma ci-
podem combinar com as informações da dade avançada em termos de controle de
análise científica no processo de atribui- poluição do ar, pelo simples fato de pos-
ção de unidade e identidade a um con- suir um órgão público especializado na
junto heterogêneo de fenômenos que pas- mensuração da quantidade de partículas
sam a ser considerados como se possuíssem suspensas no ar, mesmo após a constatação
uma natureza especial; como se fossem da possível relação entre as inversões tér-
“ambientais”. Dessa combinação entre es- micas e a mortandade de pessoas e ani-
forço classificatório e julgamento moral, mais, nenhuma atitude excepcional foi
respaldada por uma identidade entre os reivindicada pelos habitantes ou pelas au-
postulados de um mundo natural consti- toridades locais. Como descreve Crenson
tuído fora dos sujeitos é que possivelmen- (1971, p. 2):
te surge a noção de facticidade dos pro-
blemas ambientais. Evidentemente, a O órgão local de controle da poluição
assunção da apodicidade desses problemas do ar, o Bureau of Air Pollution Control,
gera ações concretas das pessoas com efei- continuou o seu trabalho em relativo
tos concretos sobre o funcionamento das obscurantismo, com uma pequena
instituições. As políticas são, nessa pers- equipe, um pequeno orçamento, e sob a
mesma legislação vigente. 2
pectiva, um dos resultados possíveis de
toda essa operação. Para explicar essa desproporção entre a
gravidade do problema e a magnitude da
A perspectiva de que os problemas preocupação pública neste caso específi-
ambientais e as políticas são objeto de acor- co, não podemos dizer sequer que se tra-
do cognitivo e matéria de dissenso moral tava de um problema novo, desprovido de
pode ser confirmada pela maneira diferen- um conjunto de evidências empíricas apro-
ciada com que alguns fenômenos sociais priadas para a formulação de uma expli-
são percebidos pelo conjunto das pessoas cação científica do fenômeno. O mesmo
e são tratados com um procedimento Crenson (1971) afirma que, desde as ob-
institucional distinto, estimulado por essa servações realizadas em Londres quando
percepção. A poluição do ar nas grandes da ocorrência do fenômeno do fog nos in-

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vernos de 1873, 1880, 1882 e 1892, cien- ra ampla o suficiente para mobilizar os
tistas e decisores públicos já possuíam só- acervos teóricos das ciências naturais e
lidos indícios da relação existente entre a humanas, especialmente as suas
inversão térmica e o aumento do número postulações mais ortodoxas, os cientistas
de mortes nesse período. 3 No entanto, ambientalistas e ecologistas resolveram o
nenhuma política especial foi formulada e problema da abordagem teórica do meio
nenhuma instituição especial foi cogitada ambiente de uma maneira heterodoxa, i.
de se criar para o enfrentamento do pro- e., invocando um “novo” paradigma ba-
blema. seado na interdisciplinaridade. O
silogismo embutido nessa solução científi-
Mais de cem anos depois, no Rio de Janei- ca para a construção do objeto é o de que
ro, o secretário municipal do meio ambi- se o meio ambiente é um complexo de fe-
ente, já legalmente responsabilizado pe- nômenos de natureza física, química, bio-
los “problema ambientais”, ao se deparar lógica e antrópica, a combinação dos mo-
com esse mesmo fenômeno da inversão delos teóricos das diversas disciplinas do
térmica, no inverno de 1996, não tinha conhecimento científico (a Física, a Biolo-
qualquer dúvida acerca da definição do gia, a Química e as Humanidades) satisfa-
problema em questão, conforme se lê num rá as condições técnicas elementares para
artigo de jornal onde afirma categórico: A o estudo dos “problemas ambientais”. Tan-
poluição atmosférica está se tornando em to otimismo metodológico só é possível,
um dos mais sérios problemas ambientais obviamente, quando são relegados a um
neste fim de século” (LOBO, 1996). segundo plano todos os problemas inter-
nos de consistência e aberta divergência
Embora o diagnóstico do problema forne- nas epistemologias de cada uma das disci-
cido em seguida “Na base deste problema plinas incorporadas.
estão as indústrias e principalmente os
veículos motorizados..”LOBO, 1996), pu- A despeito disso, a definição científica dos
desse sugerir que o tema devesse ser tra- problemas ambientais não apenas empres-
tado pelo secretário de transportes ou da tou, ao longo do tempo, uma inegável
indústria e comércio, o titular do meio apodicidade ao tema, como conseguiu le-
ambiente se apressa em declarar: “Por isso, gitimar algumas das previsões mais incon-
no segundo semestre daremos início a dois sistentes dos ecologistas acerca do fim do
importantes projetos: dimensionamento mundo. Um sem-número de teorias me-
de uma rede de monitoramento da polui- diadoras entre os acervos das ciências tra-
ção e a campanha ‘limpando o ar”(LOBO, dicionais e a expressão ética e dos valores
1996). morais de culturas naturalistas, especial-
mente orientais e aborígenes, cumpriram,
Do ponto de vista científico, a proposição além disso, o importante papel de confe-
do estudo dos “problemas ambientais” rir especificidade e densidade aos temas
ocorreu de uma maneira bastante origi- patrocinados pelos grupos de ambien-
nal. Definido o meio ambiente de manei- talistas e ecologistas.4

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Trilhando esses mesmos caminhos da nas tradicionais da disputa política, as rei-
postulação da especificidade do objeto vindicações e a visão de mundo das pesso-
“problemas ambientais”, desbravados pela as e grupos identificados com a causa da
observação científica, as políticas ambi- proteção ambiental. Com alguma resistên-
entais procuraram identificar-se como um cia e com as naturais dissidências das fac-
novo paradigma de ação coletiva dos agen- ções dos movimentos ecologistas, são fun-
tes públicos e privados. As idéias de dados em inúmeros países, nos anos 70 e
finitude dos “recursos naturais” e da 80, os “Partidos Verdes”, cuja representa-
inexorabilidade da destruição do planeta ção era composta de uma frente
pela ação predatória dos seres, defendida diversificada de interesses e concepções
pelos ativistas da causa ecológica e mem- sobre a natureza e o meio ambiente, mas
bros da comunidade científica, criaram a que passaram a atuar politicamente como
expectativa de que as medidas políticas a se representassem uma unidade de pro-
serem adotadas deveriam ter um caráter pósitos e interpretações convergentes so-
igualmente radical. Para muitos dos bre os “problemas ambientais”.
ambientalistas e ecologistas, as ideologias
e a política tradicionais não seriam capa- Na realidade, como pretendemos
zes de enfrentar as questões ambientais. A demonstrar adiante, a matriz propulsora
afirmação de um autor engajado no mo- desse processo de atribuir especificidade
vimento ambientalista, para quem “A po- científica e política aos problemas
lítica, tal como a conhecemos, não conse- ambientais derivou da constituição de um
gue mais lidar com essas questões consenso cognitivo em torno da definição
[ambientais] porque compartilha a men- desses problemas e sobre a forma de atua-
talidade que as originou”, reproduz uma ção das instituições sociais no sentido de
convicção compartilhada por muitos mem- sua alteração. A constituição de uma ma-
bros do movimento ambientalista contem- triz cognitiva, como veremos, influenciada
porâneo (VINCENT, 1995). por ideologias desenvolvimentistas, naci-
onalistas, conservacionistas e liberais, no
O desenrolar do processo de publicização caso brasileiro, e o estabelecimento de uma
dos temas do ambientalismo demonstra- base consensual do conflito é que viabilizaram,
ram, entretanto, a “necessidade histórica” em termos políticos, morais e cognitivos, a
(BAHRO, 1984) de se levar, para as are- publicização dos problemas ambientais.

O PRESSUPOSTO DA ORIGEM DOS PROBLEMAS AMBIENTAIS


Uma segunda condição fundamental no entais, segundo os padrões de indistinção
processo de atribuição do status de “reali- conceitual desses elementos típicos da ati-
dade” e “verdade” aos problemas ambi- tude natural, e à qual todo e qualquer pro-

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blema tem de satisfazer para se tornar um Grosso modo, tanto nas ciências naturais
“problema público”, diz respeito à teo- quanto nas ciências humanas, em seus
rização sobre sua origem. paradigmas dominantes, o tempo perma-
nece como um elemento imponderável. O
Identificar a origem de um problema é tempo, em ambos os casos, é um simples
parte indissociável do processo de sua des- dado do mundo que está aí; é apenas mais
crição e, mesmo, da escolha dos métodos um dos elementos da realidade sensível
mais adequados para a sua resolução. No contra o qual nada posso fazer.5 Nas ciên-
plano da atitude natural, a origem é, nor- cias sociais, o sentido de temporalidade
malmente, a descrição de um contexto es- coincide freqüentemente com a noção de
pecífico ilustrado com dados circunstanci- historicidade e esta, por sua vez, é suben-
ados por uma noção de temporalidade que tendida como um agregado de fatos que
emerge na consciência a partir do entre- se ordenam no fluxo do tempo sensível. A
cruzamento de dados biológicos e biográ- “história” é freqüentemente um recurso
ficos da existência individual, com o tem- metodológico utilizado pelos cientistas so-
po próprio do mundo. Na experiência ciais para explicar a localização temporal
concreta, a inserção do tempo interior no de um fenômeno, a sua “origem”. A no-
tempo transcendente do mundo faz com ção de origem é, portanto, inseparável da
que eu experimente a minha finitude e a definição da temporalidade de um proble-
finitude das relações sociais nas quais es- ma qualquer. A procura da origem de um
tou inserido. Ou seja, a temporalidade es- fenômeno, entendida como um conjunto
pecífica de minha situação está em contras- de antecedentes dos acontecimentos que
te com a autenticidade do tempo do mun- precipitaram a sua existência concreta
do. Em termos gerais, esta é a definição constitui, tanto para cientistas quanto para
comum de temporalidade, presente nas leigos, um dos recursos mais elementares
análises de leigos e cientistas sociais. Como do processo de aceitação e legitimação de
afirmam Schutz e Luckman (1977, p. 110), um problema ou conhecimento qualquer.
ainda que uma situação possa ser estru-
turada a partir de uma ordenação incon- No caso específico que queremos analisar,
gruente entre o tempo do mundo, o tem- das políticas públicas ambientais, Vincent
po biológico, o tempo social e a duração (1995) retira do conjunto de versões cor-
interior, ela será rigorosamente limitada rentes sobre a origem do movimento eco-
pela transcendência do tempo do mundo. lógico e ambientalista, uma classificação
A pressuposição pelos indivíduos dessa no- que define quatro posições básicas na vas-
ção de temporalidade faz com que somen- ta mitologia que envolve o tema da ori-
te na atitude teórica, mediante a reflexão, gem dos problemas ambientais.
a consciência crítica possa fixar-se na aná-
lise de cada um desses “tempos”. Na atitu- O primeiro desses enfoques míticos sobre
de natural, ao contrário, eles são apenas as origens do ecologismo é comum, na
componentes necessários da existência, observação muito apropriada de Vincent
dados pelo horizonte da experiência. (1995), à maioria das ideologias. Trata-se

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da tentativa de remontar a existência de explicar a forte consciência ecológica dos
sentimentos ecológicos e de amor à natu- povos germânicos (GALTUNG, 1986). Um
reza aos primórdios da espécie humana. outro motivo apontado como justificativa
O aspecto básico desse enfoque está em dessa versão que situa nos oitocentos a
situar os povos tribais ou “primitivos” como origem do ambientalismo é que, tal qual o
grupos e sociedades mais conscientes eco- movimento romântico que marca esse pe-
logicamente que as sociedades contempo- ríodo, o ecologismo é cético com respeito
râneas. Neste caso, a origem dos proble- às possibilidades da razão compreender
mas ambientais é conjugada com o surgi- todos os fenômenos e atingir o ideal su-
mento da industrialização e a posterior premo da felicidade. Outra convergência,
intensificação dos processos produtivos ambos os movimentos, o ambientalismo e
baseados em matrizes energéticas minerais o romantismo, negam o antropocentrismo
e fósseis, altamente poluentes. Junto a todo e a concepção de que a natureza é um con-
esse processo se teria esvanecido a consci- junto inerte de recursos à disposição da
ência instintiva do ser humano, da sua empresa humana. Segundo essa interpre-
unidade com o meio natural. As idéias que tação, tais afinidades indicariam o roman-
os autores filiados a essas perspectivas di- tismo como o antecedente mais longínquo
fundem são as de que os povos primitivos do pensamento ambientalista e, concreta-
ou pré-industriais respeitavam implicita- mente, das primeiras medidas inspi-
mente a natureza e dela só extraíam o radoras de uma política ambiental con-
necessário para a sua sobrevivência. Ou- servacionista. No entanto, como observa
tros, ainda, acrescentam um ingrediente Vincent (1995), um dos pontos fracos des-
religioso à questão, e afirmam que as pers- sa teoria é exatamente o fato de que a
pectivas animistas dos povos tribais, pré- racionalidade e a ciência exerceram e exer-
cristãos, responderiam por um contato cem um papel crucial na formulação das
mais estreito dos seres humanos com a principais teses dos ecologistas.
natureza (VINCENT, 1995).
Uma terceira perspectiva sobre a origem
Uma segunda abordagem situa os pri- do ambientalismo identifica no período
mórdios das idéias ambientalistas e ecoló- histórico do pós-guerra, na década de
gicas no século XIX, especialmente em sua 1960, no momento de reaquecimento e
segunda metade. Neste caso, o movimen- expansão das economias mais dinâmicas
to romântico europeu, especialmente vi- do hemisfério norte, o surgimento de uma
goroso na Alemanha, é apontado como o verdadeira expressão política do movi-
responsável pela fundamentação das pri- mento ambientalista. O contexto, portan-
meiras críticas à herança racionalista do to, seria o da hegemonia do “indus-
iluminismo europeu e, neste sentido, re- trialismo” como forma de desenvolvimen-
conhecido como o precursor do naturalis- to econômico (SABEL, PIORE, 1986), do
mo e do conservacionismo da virada do “consumo conspícuo” como estilo de vida
século XX. Esta tese é especialmente útil (VEBLEN, 1980) e da “guerra fria” como
para os autores culturalistas que procuram a forma predominante das relações políti-

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cas e diplomáticas das grandes potências latórios de profunda ressonância, tais
econômicas do Ocidente. como o Global 2000 Report, do governo
Carter, Uma só Terra (1972), relatório não-
Tendo como referência essas noções cien- oficial da ONU, Os Limites do Crescimento
tíficas e conceituais acima mencionadas, os (1972), do Clube de Roma, bem como o
defensores dessa terceira perspectiva afir- número Blueprint for Survival (1972) do
mam que os problemas ambientais e os jornal Ecologist.
movimentos ambientalistas teriam sido
definidos nos anos 60, juntamente com o Vistas desde um ponto de vista feno-
surgimento e a multiplicação de inúmeros menológico, a argumentação estritamen-
grupos e organizações não-estatais e não- te científica não permite, verdadeiramen-
governamentais em defesa das garantias te, qualquer afirmação categórica sobre
individuais e dos direitos sociais e políti- uma suposta “origem” ou “origens” dos
cos das minorias. A formação de uma cons- problemas ambientais. Ou, para dizermos
ciência ecológica coletiva nos países indus- de maneira mais afirmativa, todas essas
trializados de tradição política democráti- teorias estão corretas nas suas afirmações
co-liberal e o surgimento do ambientalismo sobre a origem dos problemas ambientais,
político nesses países teriam-se alimenta- e suas teses se assentam sob um conjunto
do, segundo esta perspectiva, das idéias de evidências consistentes com os critérios
defendidas pelos movimentos sociais de básicos da análise científica. No entanto,
defesa dos direitos dos indivíduos peran- os argumentos de cada uma dessas teori-
te o Estado, da mobilização das mulheres as, embora satisfaçam aos padrões cientí-
em torno da redefinição do seu papel na ficos convencionais de definição e análise
sociedade e dos grupos de ativistas do de um objeto, não conseguem dar conta
movimento anti-nuclear e pacifistas, que da fluidez das definições desses problemas
rejeitavam o uso da energia nuclear pelos e das variações de conteúdos, bem como
seus aspectos de poluição radioativa e de das inconsistências internas das políticas
centralização política.6 Um desses analis- ambientais empiricamente verificadas. Se-
tas, Brian Tokar, afirma: “A verdadeira ori- gundo a nossa perspectiva, a escolha de
gem do movimento verde está nas subleva- uma “origem” para os problemas ambi-
ções políticas e sociais que varreram os Es- entais atende a uma concepção política
tados Unidos e todo o mundo ocidental específica e a suas conveniências, que tra-
durante a década de 60” (VINCENT, 1995). tam da definição das “políticas públicas
ambientais” e, conseqüentemente, da
Uma quarta perspectiva, entretanto, con- alocação de recursos escassos. No caso das
sidera os anos 70 como o período mais explicações científicas, a sustentação lógi-
adequado para situar a origem do movi- ca de suas afirmações exige a aceitação de
mento ambientalista contemporâneo, um número muito grande de pressupos-
principalmente em vista da reação públi- tos, isto é, de matérias e conceitos contro-
ca a acontecimentos desse período como versos utilizados sem qualquer exercício de
as crises do petróleo (1973 e 1979) e a re- demonstração.

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O PRESSUPOSTO DA ALTERABILIDADE
E A ATRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Finalmente, uma última condição básica do, desconforto, ameaça ou perigo cons-
da constituição de um “problema públi- tatado. Quando se definem as condições
co”, no caso específico, de um “problema de alterabilidade do problema e, ato contí-
ambiental”, combina uma crença difusa nuo, se responsabiliza alguma das institui-
entre os indivíduos sobre sua alterabilidade, ções públicas ou o conjunto delas pelas vir-
e o julgamento moral que inspira a tuais alterações nesse problema, ele passa
responsabilização: “Quem deve fazer algu- a ser, de fato, um problema público. Este
ma coisa a respeito”. Só então, quando são é o passo mais elementar para que qual-
combinados os processos cognitivos que quer problema público, definido enquan-
identificam os problemas e as formas de to tal, passe a existir como um conceito
sua resolução, com as justificativas morais operativo e classificatório para as ações
acerca da sua importância, premência ou patrocinadas pelas instituições sociais. Al-
necessidade é que são criadas as políticas guns exemplos desse processo dinâmico
que permitem a alocação de recursos li- de definição do problema e de imputação
mitados, retirados de uma comunidade de de responsabilidades podem ser retirados
interesses conflituosos. do conjunto dos atos típicos das políticas
ambientais no Brasil. Um exame crítico
Na verdade, somente podemos isolar essa desses atos indica que diferentes concep-
variável interveniente da alterabilidade/ ções de natureza e meio ambiente gera-
responsabilização dos problemas públicos ram problemas e políticas diferenciadas e,
como um recurso analítico excepcional. A conseqüentemente, metodologias distintas
estrutura de definição de um problema para o seu tratamento. Problemas como o
público, além de atribuir uma identidade do saneamento básico e da poluição do ar,
para os fenômenos e situações analisados por exemplo, hoje considerados como
e de estabelecer uma origem comum para “problemas ambientais” típicos, já foram
eles, traz em seu bojo a noção de rever- tratados institucionalmente como proble-
sibilidade desses, ou seja, a possibilidade mas de saúde pública e trânsito de veícu-
de alteração dos problemas considerados. los, respectivamente.7 Igualmente, a estru-
Essa é a justificativa básica que permite o tura de importância atribuída às institui-
envolvimento de instituições públicas e a ções do conjunto das organizações estatais
conseqüente politização dos problemas funciona como referencial simbólico do
ambientais. maior ou menor relevo que um determi-
nado tema das políticas públicas adquire
A alterabilidade de um problema indica, para os grupos sociais mais organizados e
portanto, que a intervenção de alguém influentes. Os problemas ambientais, por
responsável poderá estancar, mitigar ou exemplo, antes de merecerem um lugar
até mesmo extinguir o motivo de incômo- hierárquico destacado no conjunto das

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instituições políticas tradicionais, tendo problema passa a ser objeto da atenção das
sido elevados ao nível de ministério em instituições oficiais.
diversos países, inclusive no Brasil, eram
tratados de maneira isolada, parcial e com- As disputas em torno do reconhecimento
plementar a partir de um conhecimento público de um problema, isto é, a luta por
fundamentado nas clássicas divisões sua legitimação junto às instituições públi-
paradigmáticas da ciência contemporânea. cas oficiais, constituem, nessa perspectiva,
Eram, assim, problemas de saúde pública, a essência própria da política. Cabe res-
trânsito, demográfico e sociais, simples- saltar, preliminarmente, que a política não
mente, e não problemas ecológicos e se esgota nas instituições oficiais ou em seus
ambientais como passaram a ser conside- recursos, embora os canais próprios e ex-
rados recentemente. A combinação das clusivos da publicização dos problemas se-
noções de alterabilidade/responsabilidade jam as instituições que atuam com a chan-
no processo de definição dos problemas cela do Estado. Isto porque, conquanto os
públicos ambientais constituiu, assim, uma recursos públicos possam ser subtraídos
das condições básicas da sua transição de por grupos privados de inúmeras manei-
um problema socialmente definido para o ras, inclusive através da fraude e da
rol dos fenômenos da existência suposta- corrupção, somente o patrocínio de suas
mente fatual. instituições permite uma justificativa poli-
ticamente estruturada para a alocação de
Todo o processo pelo qual se obtém o re- recursos materiais coletivos, retirados de
conhecimento público de um “problema” uma base consensual conflitiva e precária.
não é, no entanto, trivial. Como observa Em outros termos, o que queremos dizer
Gusfield (1986), inúmeros problemas so- é que as instituições coletivas de regulação
ciais, isto é, inúmeros problemas que atin- política, como o são as próprias políticas
gem virtualmente muitos indivíduos de públicas, constituem recursos escassos que
uma mesma comunidade, como as brigas permitem às comunidades expressarem
conjugais, para ficarmos no exemplo des- seus interesses materiais e afirmarem seu
se autor, não chegam a se constituir em julgamento moral e sua visão de mundo.
problemas públicos exatamente por essa É, portanto, a escassez de consenso, em
falta de responsabilização efetiva das ins- última instância, de consenso cognitivo e
tituições políticas e sociais pela sua “reso- moral, particularmente, que condicionará
lução”. O sucesso ou fracasso de tornar um e motivará as disputas políticas em torno
problema público dependerá, portanto, de do reconhecimento público do problema.
incontáveis processos de publicização e so-
mente o exame empírico de cada um de- Finalmente, a alterabilidade explica ain-
les poderá detalhar. A influência de recur- da uma característica dos problemas pú-
sos econômicos e coercitivos dos grupos blicos em geral, e das políticas ambientais
patrocinadores dessas ações de publi- em particular, que é a da variabilidade do
cização constitui apenas alguns dos inúme- status do problema. Como afirma Gusfield
ros meios possíveis através dos quais um (1986), a realidade de um problema é

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freqüentemente expandida ou contraída e setoriais. Essas diferentes concepções
em seu escopo de acordo com mudanças “políticas” dos problemas ambientais po-
no padrão cognitivo ou nos julgamentos dem ser exemplificadas pelas diferentes
morais. No caso dos problemas ambientais, políticas ambientais perseguidas pelos go-
eles já foram considerados alternadamente vernos brasileiros.
como problemas estratégicos de Estado, ou
simplesmente como problemas específicos

OS PROBLEMAS PÚBLICOS E A LINGUAGEM POLÍTICA

As condições da cognição de um proble- simplesmente pela coerção. Como afirma


ma público representam apenas uma par- Edelman:
te da questão. Uma vez identificados, os
problemas públicos necessitam de uma lin- Enquanto a coerção e a intimidação
guagem própria de expressão política. Da ajudam a checar a resistência em todos
mesma maneira como a definição dos pro- sistemas políticos, a tática chave deve
blemas públicos ambientais requerem um ser sempre a evocação de significados
sistema de conceituação e classificação, ou que legitimem e favoreçam cursos de
seja, de uma linguagem consensual larga- ação e ameacem ou efetivamente con-
vençam as pessoas a darem suporte ou
mente amparada nos postulados da análi-
permanecerem aquiescentes.8
se científica e nas máximas do senso co-
mum, a expressão política de seus efeitos Desse ponto de vista, a política é funda-
requer, igualmente, uma linguagem espe- mentalmente uma expressão particular do
cial. consenso possível em torno da distribui-
ção desigual de recursos, status e poder. A
De acordo com Edelman (1977), toda lin- política é uma linguagem que provê de
guagem política é a expressão do conflito sentido os diferentes fatos da realidade
em torno da imposição de significados co- sensível e, por implicação, a linguagem
muns dos eventos, das crises, das mudan- política é a realidade política (Edelman,
ças políticas, dos líderes e dos problemas, 1985:10). Nessa perspectiva, a política é
entre os diferentes grupos sociais. Nesse uma linguagem particular, porque é o
processo de disputa pela imposição de es- meio simbólico específico pelo qual as dis-
quemas interpretativos, são mobilizados crepâncias de recursos, status e poder en-
recursos de natureza material e hono- tre as pessoas e os grupos de uma deter-
ríficos. A estratégia básica, afirma, consis- minada comunidade são dissimuladas por
te em imobilizar a oposição e mobilizar um discurso que ajuda a manter intacta
suporte. Em termos políticos, a alocação essa estrutura de desigualdades. Enfim,
de benefícios num contexto de escassez é definir um problema na linguagem políti-
justificada prioritariamente por uma ar- ca é torná-lo possível e assimilável pelo
gumentação eivada de simbologia e não conjunto dos membros da comunidade.

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Afirmar politicamente a sua existência sig- eminentemente simbólica. A linguagem
nifica incentivar um comportamento política ativa a produção de significados e
“aquiescente” (EDELMAN, 1977) com os explicações do imponderável para as pes-
termos da desigualdade implícitos em toda soas a partir da referência idealizada aos
ação política. Enquanto linguagem, a po- sentidos de ordem e desordem, justo e in-
lítica ajuda a construir uma interpretação justo, aliado e inimigo e demais posições
que impregna de significados e sentidos em torno das quais as pessoas se alinham.
os fatos recolhidos aleatoriamente no pas- A política dá a elas, enfim, o sentido de
sado, fornece uma explicação plausível que os problemas insolúveis da vida quo-
para os acontecimentos do presente e pro- tidiana seguem administrados e atendidos
jeta o futuro de acordo com a ideologia da melhor e da única maneira possível.
dominante na audiência (EDELMAN,
1985, p. 11). De acordo com Edelman (1977), a lingua-
gem política se caracteriza pela generali-
No caso específico da problemática ambi- zação, pela distorção e pela inversão. To-
ental, os símbolos e os conceitos de “uni- das essas características refletem, na ver-
dade” e “universalidade” mobilizados pe- dade, as tentativas de construção de um
los diversos atores envolvidos nos proces- diálogo possível entre interesses e ideolo-
sos de formulação das políticas são um bom gias de grupos sociais marcados pela desi-
exemplo de como a ambigüidade e a gualdade de recursos materiais e cog-
maleabilidade do discurso político atuam nitivos. Na verdade, a linguagem política
no sentido de obliterar as matérias nitida- é responsável direta pela interpretação
mente controversas do ponto de vista dos possível que atribui um sentido de uni-
diversos interesses dos grupos sociais.9 versalismo e conseqüência para ações que
são eminentemente erráticas e particula-
Desde uma perspectiva fenomenológica, res em seus efeitos. Toda ação política que
a política constitui um tipo de práxis que, direta ou indiretamente toca na questão
da mesma forma que o senso comum e a da alocação de recursos e, especialmente,
ciência, está situada no universo da atitu- toda ação governamental são responsáveis
de natural. O que implica dizer que a ex- pela desigualdade social, razão pela qual
pressão política, enquanto uma das mani- as políticas agem no sentido de minimizar
festações da sociabilidade, se utiliza de as repercussões públicas dessas ações ao
metodologias semelhantes àquelas que mesmo tempo em que estabelecem uma
o conhecimento científico e o conheci- arena de disputa e barganha para os gru-
mento de senso comum empregam nas pos mais mobilizados e diretamente inte-
suas ações quotidianas, e cujos resultados ressados nessas decisões. Não existe polí-
práticos resultam na atribuição de facti- tica pública neutra, pela simples razão de
cidade aos fenômenos identificados. A par- que não existem problemas que possam
ticularidade da política, segundo esta pers- ser definidos de uma mesma maneira pe-
pectiva, está nos meios próprios de sua los diferentes grupos sociais. Uma política
expressão, que é feita por uma linguagem antiinflacionária que esteja baseada em

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juros altos certamente beneficiará a alguns exemplos os racismos, os diversos tipos de
e prejudicará a outros. Dar incentivos para revisionismos e as perseguições. O que é
a agricultura ou criar reservas indígenas e importante ressalvar é que a funcionali-
restringir a exploração mineral trará, da dade da política e dos recursos simbólicos
mesma forma, resultados diferenciados mobilizados por ela na criação de um con-
para os diversos grupos sociais. Nestes ca- senso cognitivo sobre a realidade inde-
sos, a linguagem política terá como papel pendem, em larga medida, da consistên-
principal a produção de símbolos refe- cia interna de dados e informações mobi-
renciais que apoiarão a construção de um lizados na defesa dos distintos argumen-
consenso cognitivo em torno das necessi- tos. A linguagem política oferece uma ló-
dades e até das vantagens para todos, da- gica peculiar que permite a qualquer um
quelas ações propostas por alguns. Final- defender qualquer posição sem a conside-
mente, os fatos políticos e a linguagem que ração de eventuais contradições, lacunas
os descreve são ambíguos pelo simples e até mesmo inversões em seu discurso.
motivo de que os eventos, as lideranças e Nessa mesma medida, permite que as de-
as políticas que mais afetam o bem-estar sigualdades materiais, os problemas soci-
presente e futuro das sociedades são in- ais crônicos e os dilemas morais insolúveis
certos, desconhecidos e porque seu foco sejam dramatizados e absorvidos coletiva-
se dirige freqüentemente para os aspectos mente.
mais simbólicos e retóricos da ordem.
A partir dessa concepção de uma realida-
Dessas características da linguagem políti- de construída pelos recursos da cognição,
ca advêm suas maiores virtudes para a so- podemos definir as instituições políticas e
ciabilidade. As opiniões políticas consistem as políticas públicas de maneira geral,
em poderosos recursos que facilitam o como repertórios de símbolos que drama-
ajustamento cognitivo entre as pessoas. tizam as compreensões consensuais dos
Quando elas assumem uma posição polí- indivíduos sobre a realidade, e que são
tica e combinam suas impressões recípro- acionados pelos diversos grupos sociais em
cas sobre os fatos do mundo, elas estão pugna, com o objetivo de mobilizar recur-
construindo, ao mesmo tempo, seus esque- sos materiais retirados de uma base
mas interpretativos e suas convicções. Além conflitiva. As políticas, para serem bem-
sucedidas, dependem, sobretudo, da sua
disso, por intermédio da linguagem polí-
eficácia simbólica, i. e., da sua capacidade
tica, as pessoas dramatizam sua crença em
de mobilizar em proveito de suas iniciati-
valores morais coerentes com os quais che-
vas os símbolos positivos da ordem e da
cam as evidências de uma realidade fatual consistência moral. A coerção e a ameaça
postulada em comum. Finalmente, a lin- de seu uso pela política ou para a im-
guagem política também é importante plementação de políticas são, como afir-
porque permite a externalização de pro- ma Edelman, um recurso potencial dos
blemas e estados emocionais dificilmente grupos mais poderosos, com vistas a fixar
racionalizáveis por outros meios de expres- os limites negociáveis das ações
são. Desse conjunto de fenômenos são (EDELMAN,1985).

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CONCLUSÃO ção às explicações que supõem uma exis-


tência apodíctica dos problemas ambi-
entais e uma especificidade intrínseca a um
Conforme procuramos demonstrar, o certo conjunto de fenômenos assim defi-
meio ambiente e os problemas ambientais nidos, afirma que eles existem apenas en-
são conceitos constituídos a partir de um quanto construção intersubjetiva erigida
processo dinâmico de cognição do qual é sob uma base cognitiva comum pelos su-
impossível isolar a subjetividade dos ato- jeitos da ação. Nesta perspectiva, a noção
res envolvidos. Seja na esfera do conheci- de poder político está relacionada à capa-
mento científico ou das políticas públicas, cidade diferenciada que cada ator social
os “problemas ambientais” só se constitu- possui de influenciar na definição de um
em como objeto da preocupação pública problema público qualquer, seja nos seus
porque existe um sistema de categoriza- aspectos cognitivos ou de julgamento mo-
ção, prévio, que permite a cada um dos ral. As disputas políticas e os diversos re-
atores envolvidos com essas questões for- cursos mobilizados pelas partes são, nesse
mular uma teoria consistente com as in- sentido, disputas em torno da própria
formações produzidas socialmente. Na constituição de “realidade” dos problemas.
realidade, cada uma das interpretações
formuladas pelos diferentes agentes pro- Neste sentido, o processo de politização,
cura arrogar para si o status de verdade ou de publicização dos problemas ambi-
definitiva e autoridade sobre o fenômeno entais, adaptando o conceito de “cultura
invocado, o que provoca o dissenso pró- dos problemas públicos” de Gusfield (1988),
prio das disputas políticas. não ocorreu, portanto, sem o enfren-
tamento de graves conflitos entre signifi-
Dessa forma, procuramos identificar al- cados, sua abrangência e sua capacidade
guns dos pressupostos mais comuns nas de estimular as ações coletivas. Segundo a
interpretações correntes sobre o tema, com perspectiva fenomenológica, mesmo os
o intuito de destacarmos o conteúdo problemas relativos à delimitação do es-
intersubjetivo de cada uma delas. Seguin- paço público e à forma de atuação das ins-
do os princípios da fenomenologia, intro- tituições, que estão na raiz da constituição
duzimos uma dúvida radical sobre as afir- da identidade do movimento ambientalista
mações científicas e políticas sobre o “meio contemporâneo, devem ser abordados a
ambiente” e os “problemas ambientais”, e partir da problematização das bases do
nelas desvendamos alguns dos recursos consenso cognitivo e dos julgamentos mo-
cognitivos tradicionais presentes nas teo- rais formados em torno dessas questões.
rias produzidas pelos leigos em seus rela-
cionamentos sociais. As políticas públicas ambientais, nesta pers-
pectiva, devem ser entendidas como um
Como demonstramos, no caso específico dos subprodutos dos discursos sobre a or-
dos problemas e das políticas ambientais, dem. Ou seja, a ordem social e institucional
a perspectiva fenomenológica, em oposi- e, consequentemente, o poder político, são

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elementos utilizados como referência re- pal distinção desse modelo fenome-
tórica para ações coletivas cujos significa- nológico frente as teorias do paradigma
dos são negociados quotidianamente pe- científico tradicional está exatamente nes-
los indivíduos, a partir de uma base sa postulação de uma ordem sócio-políti-
cognitiva precária. Nessa perspectiva, as ca como produto de uma metodologia lei-
políticas públicas ambientais refletem o di- ga, isto é, como o resultado de um proces-
namismo próprio da construção social de so coletivo de construção de significados
“problemas”, de maneira geral, e de “pro- comuns que emprestam um sentido de
blemas públicos”, em particular. A princi- ordem para as relações dos indivíduos.

NOTAS

1 Crenson, Matthew A. The Un Politics of Air Pollution, samento e da ideologia ambientalistas, a origem
Baltimore and London, The John Hopkins Press, da manifestação política do movimento ecológico
1971. O número exato das mortes relacionadas é consensualmente reconhecida como tendo ocor-
ao fenômeno da inversão térmica em Londres, rido entre as décadas de 60 e 70. Ver a esse res-
em 1952, foi de quatro mil (p. 6) e, em Nova York, peito: Galtung, 1986. Hoffman, Johnson, et al.
em 1953, ocorreram aproximadamente 200 mor- Raymond, 1982. Buttel, F., 1985.
tes excedentes, possivelmente ligadas a este mes-
7 No governo de Juscelino Kubistchek, por exem-
mo fenômeno de poluição (p..2).
plo, o amplo programa divulgado pelo governo
2 Crenson, Matthew A. op. cit. “The local Bureau federal relativo ao saneamento, abastecimento de
of Air Pollution Control continued to do its work águas e controle dos resíduos sólidos, líquidos ou
in relative obscurity, with a small staff, small gasosos “para a melhoria das condições
budget, and under existing legislation” p. 2. ambientais”, fazia parte do Código Nacional de
Saúde e era responsabilidade do Ministério da
3 Crenson, Matthew A. op. cit. p. 2. Saúde. V. Decreto n. 49.874, de 11 de janeiro de
4 Entre a copiosa literatura relativa ao tema em 1961: Anexo 1. A poluição do ar, por sua vez, foi
pauta gostaria de destacar os trabalhos de Capra, tratada como um problema de trânsito de veícu-
1993, e de Schumacher, E. 1983, como dois dos los pelo governo Costa e Silva, conforme se vê pelo
que obtiveram maior repercussão na opinião pú- Decreto n. 62.127, de 16 de janeiro de 1968, que
blica. regulamenta o Código Nacional de Trânsito. V.
Anexo 1.
5 É necessário uma ressalva para a Física, como uma
disciplina científica que tem no próprio tempo um 8 O texto original é: “While coercion and
objeto de estudo e reflexão. Mesmo assim não intimidation help to check resistence in all political
deixa de ser notável o predomínio que ainda pre- systems, the key tactic must always be the
serva na academia e no vulgo a noção oitocentista evocation of meanings that legitimize favored
de tempo como elemento constante, consagrada courses of action and threaten or reassure people
pela teoria mecânica de Newton. so as to encourage them to be supportive or to
remain quiescent” (EDELMAN, 1985, p. 11).
6 Embora haja, como ressaltamos anteriormente,
um dissenso a respeito da origem histórica do pen- 9 Nos EUA, por exemplo, o conflito em torno das
matérias potencialmente controversas da legisla-

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ção ambiental é dramatizado politicamente como denciais de 1996, ver Bouguerra, 1996). No Bra-
uma divergência ideológica entre “democratas” e sil, a política de distribuição da agência federal
“republicanos”, “intervencionistas” e “liberais”, de fomentos à iniciativa empresarial, o BNDES,
enquanto no Congresso a política de meio ambi- entre 1990 e 1995, através da rubrica “projetos
ente é objeto de disputas e barganhas entre os de meio ambiente”, empregou cerca de um bi-
diversos lobbies de industriais e seus interesses lhão e seicentos milhões de dólares (US$1,6 bi-
bastante concretos (A propósito da discussão da lhão) em benefício de empresas privadas dos se-
política ambiental como objeto de divergência tores de siderurgia, química e fertilizantes. Jornal
política nos EUA, às vésperas das eleições presi- do Brasil, 23 jul. de 1996.

ABSTRACT
This paper tackles, in the light of fenomenological sociology,
the process of the constitution of the so called environmental problems
as objects of studies of cientists, state regulation, through public
policies, and of concern of the people in general. Basically, we are
discussing the cognitive process in the contemporary societies
responsible for the understanding of the “environment” and the
“environmental problems” as factual fenomenons, i. e., as objects
independent of the cognition and the intersubjectivity of the social
relations.
According to the fundamental argument of this article there are
three presumptions involved in the process of the constitution of the
“environmental public problems”: the presumption of the specificity,
of the origin, and of the alterability.
The acritical assumption of these three pressumptions is,
according to our point of view, in the origin of the process of
transformation of “environmental problems” into “public problems”,
i. e., into problems regulated by the public power and its institutions.
From this stand, we discuss the specific political language created
by the traditional political actors to deal with the process of
politicization of the environmental problematique.
Keywords: environment – public policies – cognition.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOUGUERRA, Mohamed Larbi. L’environnement au couer des élections americaines


: les pollueurs auront-ils carte blanche? Le Mond Diplomatique, p.19, juin 1996.

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DUAS VISÕES ACERCA DA OBEDIÊNCIA


POLÍTICA: RACIONALISMO E
CONSERVADORISMO
MARIA CELINA D’ARAUJO *

O artigo parte da idéia clássica de que a existência da comunida-


de política organizada exige obediência política o que, por sua vez,
imporia um princípio de desigualdade. Duas visões contrapostas
têm argumentado a favor da legitimidade da obediência. Uns, os
racionalistas, defendem a tese de que o governo é produto da ra-
zão humana e que é legítimo obedecer ao que racionalmente esco-
lhemos como melhor. Outros, os conservadores, apontam para a
incapacidade do homem em fazer da razão um agente criativo e,
defendendo o primado da sociedade e da cultura sobre o indiví-
duo, fundamentam a obediência na tradição e no costume que pre-
servam a ordem. Para os primeiros, a obediência existe como dedu-
ção racional da decisão dos homens de formarem a sociedade vi-
sando à segurança e ao bem-estar. Para os segundos, é um hábito
que vem história e da cultura e que garante ao homem a preserva-
ção da sociedade e, portanto, a condição primeira de sua existên-
cia.
Palavras-chave: obediência política, legitimidade, contratualismo,
racionalismo, conservadorismo.

INTRODUÇÃO
Este artigo examina a noção de obediên- Passaremos em revista alguns autores e
cia política contrastando as doutrinas cuja obras exponenciais de cada uma dessas
lógica tem por base argumentos racional- matrizes teóricas para demonstrar que a
dedutivistas, como Hobbes, entre outros, idéia de obediência legítima varia de acor-
com aquelas que se fundamentam na his- do com a concepção acerca das origens do
tória e na indução, por exemplo, Burke.

* Doutora em Ciência Política, professora da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora da Fundação


Getúlio Vargas.

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poder e com o arcabouço teórico utilizado ência se torna justificável ou necessária.
para corroborar tais origens. Sabe-se que, em determinadas ocasiões, a
desobediência é fundamental para a
Começando pelo que parece mais reco- reformulação das regras políticas. Por tudo
mendável, podemos afirmar que a obedi- isso, é válido investigar por quais razões
ência política só se transforma em proble- os homens se submetem para entender-
ma teórico e histórico se verificada a exis- mos também por que resistem e se revol-
tência de governo. Significativamente, tam. Assim, uma forma possível de pensar
grandes tratados políticos começam, de a obediência é perguntar-se por que ra-
fato, a examinar a origem do governo para zões os homens não se revoltam. Se histo-
daí derivarem a obediência. Concluindo ricamente a obediência tem sido mais cons-
ou não sobre a legitimidade desta, não há tante que a desobediência, isso não está
dúvidas que ela tem-se expressado como necessariamente relacionado ao fato de
uma sina à qual o homem está submetido que os homens tenham sido mais felizes
em sua vida social. Porque gosta, porque que infelizes.
é obrigado, porque julga necessário ou por
uma série de outros motivos, o fato é que Conforme lembra Barrington Moore, tem
o homem obedece. sido tão freqüente os homens submete-
rem-se à opressão e degradação que não
A observação mais rudimentar nos diz que se torna surpreendente o fato de se revol-
a existência de governo implica uma rela- tarem em alguns casos mas principalmen-
ção social desigual, na qual uns poucos te o de não se revoltarem (MOORE JR.,
detêm o poder de mando e a maioria obe- 1979). Ou seja, a obediência pode ser um
dece. Nesse sentido, a noção de obediên- fenômeno tão surpreendente quanto o seu
cia pode ser entendida como desigualda- inverso. De qualquer forma, todas as ques-
de entre os homens. Mas argumenta-se tões a esse respeito têm tido um fundo de
também que a obediência não diz respeito preocupações bastante válido. Afinal, não
apenas ao súdito. O próprio governo te- se trata de uma questão simples, mas tra-
ria limites de ação fixados pela lei. A obe- ta-se de ver na obediência um elemento
diência nesse caso não estaria restrita à necessário e crucial para a existência de
ação dos homens entre si, mas estaria as- qualquer ordem política cujos resultados
sociada à relação dos homens com as leis. para a vida individual têm sido quase sem-
pre limitativos.
Num e noutro caso, a obediência continua
existindo. E esse é um problema central Se a tomarmos pela ótica das relações en-
na filosofia política, assim como o é o seu tre liberdade individual e ação estatal, a
inverso, a desobediência. Admitindo que obediência pode ser analisada de duas for-
a obediência é necessária a qualquer ar- mas diferentes, dependendo de como se
ranjo político sob o qual uma dada comu- explique a gênese da ordem: se pelo ra-
nidade exista, é pertinente também inda- cionalismo dedutivo ou se pela argumen-
gar-se em que circunstâncias a desobedi- tação histórica do surgimento da ordem.

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Vale lembrar, desde já, que ambas as abor- o contratualismo, o homem tem direitos
dagens apresentam bons argumentos para naturais e o recurso à razão é a forma de
a legitimidade da obediência, assim como assegurar aquilo que lhe é natural. É sua
para explicar sua necessidade. Não discor- faculdade racional que o leva a contratar
dam, portanto, nesse ponto. Diferem, con- visando à garantia daqueles direitos fun-
tudo, – e trata-se de uma diferença impor- damentais, ainda que isso implique algu-
tante – quanto aos pressupostos. Uns a mas limitações à sua ação individual. Em
entendem como produto da racionalidade desacordo com esta corrente, a outra não
humana e, portanto, como uma invenção é adepta da teoria dos direitos naturais
dela decorrente. Sendo criação racional, nem atribui à razão papel tão central nos
está governada pela própria razão e por destinos do homem. Não porque o supo-
nenhuma outra força superior ao homem. nha irracional, mas porque o concebe
Os outros a entendem como resultante como um ser movido por sentimentos,
necessária da própria conveniência dos hábitos e costumes tanto quanto pela ra-
homens em família e em sociedade, resul- zão.
tante essa que não revela o acionar de qual-
quer racionalidade expressa, mas apenas Veremos em que medida esses pressupos-
a necessidade natural do homem de viver tos influenciam a análise que cada uma
comunitariamente. Resumidamente, nes- dessas correntes faz acerca da obediência
te caso, a obediência existe porque o ho- política. Lembre-se que está em jogo tam-
mem é um ser social antes de ser racional. bém o papel da desobediência, posto que
Ele inventa a obediência nas suas relações o contratualismo em seu decorrente
elementares e aprende a repeti-la porque racionalismo estabelece, a priori, diferen-
a experiência lhe mostra que é assim que temente da outra abordagem, as circuns-
as coisas devem funcionar. tâncias em que ela se faz necessária. Antes
de discutirmos cada uma dessas aborda-
Está em jogo nestas duas visões o papel gens à luz de alguns de seus mais expres-
que se deve atribuir à razão na conforma- sivos representantes, convém determo-nos
ção da vida social, mas também a concep- um pouco sobre o significado das diferen-
ção de homem natural. Embora ambas as ças entre elas. Isso nos remete à proble-
correntes admitam que exista uma natu- mática do conhecimento como tal conce-
reza humana e a qualifiquem cada uma a bido pela filosofia da ilustração e pelo ro-
seu modo, existe uma diferença quanto à mantismo.
aceitação ou não de direitos naturais. Para

RAZÃO E O PROBLEMA DO CONHECIMENTO


Como nos lembra Cassirer(1975, Cap.1), de progresso espiritual. Esse era um mo-
o século XVIII foi marcado pela forte pre- vimento de idéias que se expressava basi-
sença de uma filosofia que postulava a idéia camente pela crença anterior na unidade

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e invariabilidade da razão humana. Supu- o levaria à liberdade. Sua racionalidade o
nha-se a existência de uma razão que fos- levaria também a aprimorar as instituições
se a mesma para todas as épocas, nações e existentes, pois supunha-se que a mente
culturas. Considerava-se essa razão como podia apreender o universo e subordiná-
a medida crítica de todas as instituições, lo às necessidades humanas (ZEITLIN,
assim como de sua adequação à natureza 1973). Mantinha-se uma concepção de
humana. universo baseada na aplicação geral das leis
naturais, atribuindo-se ao pensamento a
Em contraposição ao século XVII, época tarefa e o poder de moldar a vida. Nessa
de construção dos grandes sistemas filo- perspectiva, a razão e a ciência permitiri-
sóficos, o século XVIII vai forjar um con- am ao homem alcançar graus cada vez
ceito mais móvel e livre de filosofia procu- maiores de liberdade e de perfeição. Em
rando romper com a perfeição sistemáti- suma, acreditava-se que o progresso geral
ca. O exemplo perseguido então era o da do homem dependia de seu progresso in-
ciência de Newton que, escapando da de- telectual.
dução, centrava-se na análise. Uma resul-
tante desse processo foi o tratamento dado A novidade do século XVIII, “Século das
ao que era até então concebido como opo- Luzes”, não é, portanto, para Cassirer, a
sição entre matéria e idéias. descoberta destas atribuições da razão. A
novidade consiste exatamente em manter
Por sua herança iluminista, a matéria não esses postulados associando-os à conside-
será vista por essa nova filosofia como um ração dos fatos. Estes deveriam apresen-
conjunto de singularidades, mas percebe- tar formas, regularidades e relações defi-
se nela uma forma que a penetra e a do- nidas, de modo que, em conhecendo os
mina. Ou seja, estabelece-se uma aliança fatos, se conheceriam também suas formas
entre espírito racional e espírito positivo e conexões imanentes. Associando-se a
com a finalidade de unificar a mul- observação à razão, o homem estaria mais
tiplicidade de fenômenos naturais numa perto da descoberta das “verdades eter-
única regra universal. Diferentemente do nas” tão proclamadas pelo Iluminismo. Na
racionalismo do século XVII, a razão não prática isso significava unir o racionalismo
se expressa mais como o conjunto de ver- à filosofia empirista como medida correta
dades eternas comuns ao espírito huma- para conhecer os fatos e suas possibilida-
no e à esfera divina. Acreditava-se sim na des intrínsecas (ZEITLIN, 1973). Mas esta
capacidade analítica da razão que, passí- união não descaracteriza o movimento em
vel de aprimoramento, permitiria o exer- busca das grandes generalizações.
cício analítico de decompor fenômenos e
formar novas unidades de conhecimento. Segundo Meinecke (1943), o princípio
generalizador tinha no jusnaturalismo a
Em que pesem essas alterações em rela- sua principal base. Pensava-se em indiví-
ção ao século anterior, continuava-se pen- duos com direitos naturais e dotados de
sando que o homem era racional e que isso uma razão eterna e independente de tem-

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po histórico, e isso se tornava um critério século algumas vozes já se levantam em
de universalidade para todos os indivídu- defesa do factual e do particular como fon-
os de qualquer época. te de saber. Cassirer(1975, Cap.5) cita
Pierre Bayle, mas é importante também
O racionalismo que vigorava a partir de lembrar do empirismo de Hobbes e Locke.
Descartes postulava uma imutabilidade Diferentemente do primeiro, os dois últi-
dos ideais humanos, uma identidade per- mos, não obstante a ênfase na empiria, ain-
manente da natureza humana e um ho- da estavam, como se sabe, filiados às con-
mem geral e abstrato como sujeito da His- cepções jusnaturalistas e aos modelos
tória. Postulava também a capacidade de generalizantes e dedutivistas.
perfeição do homem o que passa a ser co-
nhecido como a idéia de progresso. Via- Em meio a este debate e paralelo ao
se o processo histórico como a presença surgimento do pensamento analítico, um
transparente da razão e os fatos serviam novo movimento de idéias surge vigoroso
como ilustração dessa razão absoluta. e é classificado por Meinecke como uma
grande revolução no pensar ocidental
O enfoque novo introduzido no século (MEINECKE, 1943). Trata-se agora de
XVIII com relação aos fatos não invalida zelar pelas individualidades históricas e
a pretensão maior de buscar-se as leis uni- sociais em contraposição ao pensar
versais que regiam o homem e a socieda- generalizante. Não se concebe aqui o in-
de. E, nesse sentido, a razão é primordial. divíduo como sujeito universal, mas como
É através dela que se poderia chegar a produto de determinadas circunstâncias,
generalizações, assim como conceber o ho- particularmente como produto de um
mem como sujeito universal. As implica- passado vivido. Esse pensar
ções maiores desse sistema de pensar têm individualizador vai caminhar paralelo à
sido apontadas como sendo exatamente idéia de evolução que trabalha com a no-
aquelas que estipulariam não só a univer- ção de espontaneidade, de adaptação e de
salidade das leis gerais, mas também a pre- imprevisibilidade. Além disso, vai estar
sunção da existência de um indivíduo atento às características psíquicas dos in-
igualado pela razão e, portanto, também divíduos, às comunidades, às paixões e aos
universal. É dentro desta ampla matriz de impulsos irracionais do homem.
pensamento que valora o papel da razão
e dos direitos naturais que vamos encon- A supremacia da razão enquanto meio e
trar as várias interpretações que concebem fim do conhecimento é assim questionada
a origem do governo como contrato. e introduz-se a noção de cultura como fun-
damental ao conhecimento das singulari-
Se aquele pensar racionalista e abstrato foi dades do homem. Não se persegue mais a
marcante no conhecimento do social, é descoberta do que é universal e igual, mas
também verdade que nunca dominou so- busca-se, ao contrário, mostrar a diversi-
zinho. Para não recuarmos para antes do dade do homem alertando-se, acima de
século XVII, lembre-se que nesse mesmo

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tudo, para o fato de que tais diferenças não importante na reflexão sobre continuida-
são efeitos provocados intencionalmente. de/ruptura na história. Burke e
Tocqueville, 1 por exemplo, a tomarão
Esse movimento, que está correntemente como pretexto para pensar essa proble-
associado ao surgimento do Romantismo mática.
alemão, teve repercussões importantes
para as Ciências Sociais como um todo. Se esse episódio revolucionário reforça
Seguindo seu rastro, a História consagrou uma forma de pensar conservadora, o fato
o historicismo como forma de conhecimen- é que desde antes já se apontava para a
to, a Sociologia foi profundamente mar- necessidade de um novo enfoque na esfe-
cada pela ênfase no papel da comunidade ra das relações humanas que considerasse
sobre o indivíduo (TRINDADE, 1978), a com mais vigor o peso dos costumes, das
Filosofia, através principalmente de Hume instituições, da história, enfim, da socie-
e Kant, vai apresentar uma nova teoria do dade, na configuração do indivíduo.
conhecimento, e a Ciência Política também
será afetada. Neste último caso, não se Conforme nos mostra o trabalho de
perseguirá mais uma ciência do poder Schneider sobre os moralistas escoceses
político regida somente por regras gerais, (SCHNEIDER, 1967), entre os quais se
mas se passará a considerar a importância inclui Hume, nota-se já uma grande pre-
dos costumes, da tradição e da comunida- ocupação em formular uma nova doutri-
de. O indivíduo em questão não é mais na filosófica que dê mais ênfase aos fato-
definido pela razão que o iguala, mas, ao res mentais que agem sobre o homem, as-
contrário, pela história que o distingue. sim como demonstrar as limitações da ra-
zão enquanto guia para as ações dos indi-
Seguida de forma rigorosa, esta tendên- víduos. Fica nítida nesses autores a impor-
cia no estudo da política converteu-se no tância da tradição, dos costumes e das re-
que hoje se conhece como conserva- gras sociais, estas como fatores anteriores
dorismo que, levado às últimas conseqü- ao indivíduo. Não se trata mais aqui de
ências pela reação francesa, converteu-se conceber a sociedade como um agregado
em muito mais do que uma defesa dos de indivíduos racionais, mas de vê-la como
valores tradicionais. A reação conservado- instância com feição e identidade própri-
ra na França, expressa por Bonald e as. Além disso, esses moralistas são céticos
Maistre (ZEITLIN, 1973 ; TRINDADE, quanto à previsibilidade dos efeitos das
1978) não só apregoou os valores da tra- ações humanas. Por instinto e hábito, di-
dição como fez a defesa religiosa da conti- zem eles, os homens são levados a agir sem
nuidade histórica e da hierarquia social. saberem de antemão quais os efeitos de
Neste caso, estava em jogo o impacto da suas ações. Apontam assim para uma his-
Revolução francesa e a novidade política tória que é feita pelos homens indepen-
de, através de uma revolução, se instalar dentemente de suas deliberações. Uma
um regime novo e igualitário. A revolu- história marcada pela evolução, assim
ção de 1789 será, sem dúvida, um marco

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como o homem, apesar disso não ter sido do outro, estão os que entendem que, a
uma escolha. depender apenas de leis racionais, o ho-
mem não constituiria sociedade alguma.
A título de conclusão, lembremos que o
que está em jogo não é o caráter racional Feitas essas preliminares que nos ajudam
do indivíduo, mas principalmente o papel a situar a discussão, veremos como a ques-
que se deve atribuir à razão, às ambições tão da obediência é abordada por alguns
universalizantes do saber sobre o homem contratualistas clássicos – Hobbes, Locke
e ao peso que se deve dar aos componen- e Rousseau – e por alguns daqueles cuja
tes irracionais da conduta humana. Ou lógica de argumentação está baseada na
seja, se de um lado há os que acreditam História. Neste último caso, a opção recaiu
ser a razão a fiadora dos direitos e leis da em Hume, Mostesquieu (enquanto uma de
natureza e por aí justificam a obediência, suas leituras possíveis) e Burke.

A RACIONALIDADE DA OBEDIÊNCIA

Enquanto existe uma ampla concordân- Ambos partem da idéia de contrato social
cia quanto à filiação teórica de Hobbes e como arranjo racional necessário e impres-
Locke ao contratualismo, quando se trata cindível à vida social organizada. Ambos
de Rousseau, outras possibilidades são concordam igualmente quanto à existên-
aventadas. Igualmente complexo é o cia dos direitos naturais do homem, quan-
“enquadramento” de Hume e Montes- to à natureza egoísta do indivíduo e quanto
quieu. Certamente ambos não atribuem à à idéia de progresso. Supunham ambos
tradição histórica o peso que lhe foi confe- que indivíduos egoístas mas racionais se-
rido por Vico e Herder, mas não há dúvi- riam capazes de formular conhecimento
da que marcam o conhecimento do políti- para contornar a escassez e minimizar o
co quando introduzem essa preocupação, conflito. Ou seja, partilhavam de uma pers-
assim como não há dúvida em relação à pectiva otimista em relação ao futuro das
centralidade do contrato no pensamento sociedades.2
de Rousseau.
Mas essas concordâncias não conseguem
O contratualismo tem em Hobbes um de esconder divergências de fundo entre eles.
seus maiores expoentes, embora as resul- Enquanto Hobbes partia daquelas premis-
tantes por ele formuladas acerca do con- sas para justificar teoricamente a necessi-
trato tenham sido continuadamente reba- dade do soberano absoluto, Locke, ao con-
tidas. Locke será um dos principais críti- trário, as usará para a defesa do governo
cos do “Hobbismo” enquanto concepção limitado e isso certamente tem implicações
absoluta de poder, mas os pontos em co- no que se refere às obrigações políticas do
mum entre eles são também significativos. cidadão. Para Hobbes, o governo se origi-

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nava de um contrato entre súditos do qual tos do cidadão, pois que decorre da lei
não participa o soberano. A invenção do natural que exige que os contratos sejam
pacto era decorrência da consciência que cumpridos. O homem natural não tem
os homens tinham, em seu estado de na- direitos e, apesar da igualdade inerente ao
tureza original, de que deixados à sua sorte estado da natureza, também não tem li-
seriam todos vítimas do estado de guerra. berdade. O soberano mantém essa igual-
Por isso, os homens concordam quanto ao dade transformando todos, indiferen-
estabelecimento do governo entendido ciadamente, em súditos e definindo o cam-
como um contrato entre eles pelo qual po da liberdade. Esta se define apenas
delegavam a alguém, não contratante, o
direito de instaurar a ordem social visan- naquelas coisas que, ao regular suas
do basicamente à paz e ao bem-estar ge- ações, o soberano permitiu: como a
ral. liberdade de comprar e vender, ou de
outro modo realizar contratos mútuos;
A conclusão mais impressionante deste de escolher sua residência, sua
alimentação, sua profissão e instruir
argumento é que apenas com a criação do
seus filhos conforme achar melhor, e
governo surge a sociedade civil. A vida coisas semelhantes. (HOBBES, 1974,
social é decorrência, assim, da obra do so- p. 135.)
berano que, uma vez instituído, tem toda
a legitimidade para fixar os direitos natu- Assim definida, a liberdade não permite
rais dos homens, seus direitos civis e polí- a ninguém resistir ao Estado. A este deve-
ticos e seus deveres. É o soberano que or- se apenas absoluta obediência, porque nos
dena o caos criando a ordem, a lei, os di- protege. É exatamente na esfera da pro-
reitos. Aos membros da comunidade teção do indivíduo que Hobbes visualiza a
estabelecida por tal contrato são atribuí- única possibilidade de desobediência. Sen-
dos os deveres de obediência em troca da do a proteção o fim da obediência, e sen-
segurança. Esse contrato é irrevogável e o do o contrato estabelecido nesses termos,
soberano é fonte de todas as leis, regras e apenas quando essa proteção falha é que
direitos. É o árbitro de todas as disputas e pode o súdito rebelar-se legitimamente.
opiniões, comandante das forças militares, Neste caso, ele não está desobedecendo ao
fonte de todas as honrarias e punições. soberano legítimo – porque este é ser o que
Como tal, obriga os indivíduos e estes obe- protege – mas muito provavelmente vol-
decem porque assim julgam vantajoso e tando a uma situação pré-pacto.
porque assim o prometeram quando esta-
beleceram a comunidade. Sendo fonte das Desse modo, a obediência é, como em
leis, o soberano a elas não se submete – Locke, uma decorrência lógica do contra-
não pode ser senhor e súdito ao mesmo to social e dos fins a que se destina. Por
tempo. Sendo fonte da ordem, represen- dedução, Hobbes articula natureza huma-
ta a segurança do cidadão.
na egoísta com insegurança e, desta, par-
te para a justificativa do pacto. Por dedu-
Dentro desse raciocínio, a obediência ao
soberano é, por sua vez, a fonte dos direi- ção ainda, supõe que sendo seu fim a se-

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gurança e a proteção do indivíduo, todos agressores e contra paixões desmesuradas
os desígnios do soberano são legítimos e (LASLETT, 1980). Aqui como em Hobbes,
os homens concordam naturalmente em o Estado racional é o freio das paixões.
obedecer. Produto da racionalidade huma- Diferem, como vimos, quanto às partes
na, soberano e obediência são inseparáveis. contratantes, mas diferem também quan-
Estão mutuamente referenciados e um é to à competência do soberano.
condição da existência do outro.
Segundo Locke, o direito de governar faz
Por dedução, Locke chega a conclusões parte dos direitos naturais, na medida em
diferentes quanto aos fins do contrato: os que no estado da natureza constitui lei o
homens, observa, precisam de governo, fato de cada um poder decidir/governar
mas não de qualquer governo, crítica di- sua vida e o produto de seu trabalho. Por-
reta ao poder ilimitado do Leviatã. O con- que há essa capacidade e porque a vida
trato não justifica o poder arbitrário dos social é construção racional dos indivídu-
reis e o direito destes governarem mal. Os os pré-contrato é que se pode entender
homens contratam não apenas porque que o papel do Estado seja basicamente o
precisam de governo, mas porque dese- de regular e proteger os direitos dos ho-
jam ser bem governados. De qualquer for- mens. A isto se chega através de um acor-
ma, resta saber por que os homens deman- do entre os homens no qual se decide pela
dam por governo. Segundo Locke, os ho- instituição de um governo composto por
mens nascem livres e iguais. Sendo racio- representantes escolhidos na comunidade.
nais, a vida no estado de natureza é co- Neste caso, governo e súditos são partes
mandada de forma a que cada um seja o contratantes. O governo não é exterior
próprio juiz de seus atos. A execução das nem superior ao indivíduo. É, ao contrá-
leis da natureza está nas mãos do próprio rio, parte da atividade desses homens. A
homem. Sendo racional, esse homem na- criação do governo dá origem, em Locke,
tural é capaz de gerar a cooperação, de à sociedade política que constitui, assim, a
criar a solidariedade e, portanto, a socie- novidade gerada pelo contrato. Significa
dade. Nesse particular, difere de Hobbes, um pacto voluntário com objetivos primor-
para quem a sociedade civil é, ela também, diais bastante definidos: impedir a trans-
uma criação do soberano. gressão à lei natural e à propriedade.

Homens livres e iguais, vivendo socialmen- A feitura do pacto deriva, como em


te, optam pelo governo, entendendo-o Hobbes, da necessidade de segurança, mas
como requisito para a garantia da liberda- em Locke ele só pode ser viabilizado me-
de e da propriedade. O Estado de Locke diante o consentimento de todos os cida-
é produto também de um contrato que visa dãos. Todos os cidadãos não é o mesmo
à proteção do indivíduo. No seu caso, con- que todos os homens. O autor refere-se
tudo, trata-se da proteção de direitos an- àqueles indivíduos que, em fazendo me-
teriores ao contrato. Nesse sentido, os ho- lhor uso da razão, conseguem apropriar-
mens contratam com a finalidade de pre- se do produto do seu trabalho preenchen-
servação da humanidade contra possíveis do assim o requisito natural do direito à
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propriedade. Nesse sentido, não está fa- nidade. Mas de tal forma as coisas estão
lando de um governo de todos. Refere-se, matizadas, que essa preservação era ela
sim, ao governo representativo da maio- mesma possível como o instituto da pro-
ria dos cidadãos no uso de sua razão. priedade, produto do trabalho do indiví-
duo racional que pudesse fazer uso livre
Não resta dúvida que Locke está avança- de seus direitos.
do no que diz respeito à moderna enge-
nharia política do liberalismo. Seu gover- Por dedução, Locke concluía sobre a ne-
no não tem qualquer conotação divina. É cessidade do governo, mas por essa via
um arranjo institucional elaborado racio- também nomeava o tipo de governo que
nalmente, tendo como justa medida a ca- os homens deviam esperar. Ou seja, o go-
pacidade dos homens e baseado na lei na- verno limitado. Por sua própria origem,
tural que dita possuir cada indivíduo o “o objetivo grande e principal, portanto
poder executivo da lei da natureza e estar da união dos homens em comunidade,
dotado de uma virtude política natural. colocando-se eles sob o governo, é a pre-
Mas, para Locke, não é suficiente apenas servação da propriedade”(LOCKE, 1973,
que o governo seja representativo. Os ter- p.85). Isso significava claramente que
mos técnicos dessa representação deviam Locke se opunha ao poder que o sobera-
ser bem definidos, assim como sua com- no pudesse dispor sobre “as coisas” dos
petência. Sua doutrina de divisão de po- homens. É por esta ótica que se pode en-
deres caminha nessa direção e é sintomá- tender sua ênfase na liberdade assim como
tico que atribuía ao legislativo um papel a preocupação quanto à fixação daquilo
central. Locke quer minimizar tanto quan- que seria inerente às funções do governo.
to possível as tendências arbitrárias do
executivo tão plenamente justificadas pe- Em suma, o Estado de Locke tem poderes
los teóricos do absolutismo e pelo próprio limitados pelo pacto que lhe dá origem. É
Hobbes (LASLETT, 1980). lícito que faça apenas o que lhe foi atribu-
ído. Isto porque seu Estado não é um
Certamente não apresentava um modelo dogma, mas uma criação viva. Deve ser um
de democracia pois que não considera a espelho de interesses sociais e de leis na-
participação regular do povo nem a igual- turais devidamente ordenadas. Isso signi-
dade social (GOUGH, 1980). Era, sim, um fica dizer que faz do consentimento a con-
liberal que defendia intransigentemente o dição necessária para o governo. E é por-
direito de propriedade, a liberdade e o que resulta do consentimento que a obe-
governo representativo. Do ponto de vis- diência se torna legítima. Não há possibi-
ta do conhecimento, adotava alguns pres- lidade de ser de outra forma, posto que
supostos essenciais à montagem de seu sendo o homem naturalmente livre, nada
raciocínio. Entendia que liberdade, socie- pode sujeitá-lo a qualquer poder a não ser
dade, razão, propriedade e trabalho eram sua própria vontade(LOCKE, 1973, p.85).
naturais e formulava, como lei fundamen-
tal da natureza, a preservação da huma-

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Esta condição para a obediência traz em- timento são lados de uma mesma moeda.
butida a noção de que a desobediência é Com o consentimento fica estabelecido que
legítima quando a existência do governo ninguém é obrigado a obedecer incondi-
não mais estiver assentada no consenti- cionalmente. Quanto à obediência, está
mento e quando a autoridade deixar de nela contida a premissa de que, tendo os
agir de acordo com os fins inerentes à sua homens consentido no governo, é impe-
função. Mas, em oposição a Hobbes, a de- rativo obedecer ao preceito natural de que
sobediência/rebelião não representa o mo- cada um deva manter suas promessas. O
mento crítico de retorno ao estado da na- argumento é lógico e convincente. Tem
tureza. É, ao contrário, um momento de motivações pragmáticas visto ser Locke um
redefinição da sociedade política com a Whig, mas seu fundamento básico segue a
dissolução do governo, mas sem a dissolu- matriz racionalista.
ção da sociedade civil.

Da lógica pela qual chega à noção de con-


trato, deduz-se que obediência e consen-

ROUSSEAU E O CONTRATO REVISITADO

Rousseau destaca-se nesta discussão pela um raciocínio hipotético do passado para


forma original como entende o que deve- justificar o que existe: propõe um novo
ria ser as origens do contrato. Enquanto arranjo com vistas ao futuro. Vejamos a
em Hobbes o soberano é único e absoluto lógica de sua argumentação. O autor par-
e enquanto Locke vê no governo a repre- te de uma indignação motivada pelo fato
sentação política da maioria, Rousseau de que homens naturalmente livres se en-
quer redefinir o contrato ampliando suas contrarem coagidos e limitados. Tal ocor-
bases de sustentação. Não se trata mais de rência não era um resultado compatível
delegar poder a um governante único ou com a condição do direito natural. A desi-
à maioria. Trata-se de transformar a so- gualdade era uma criação da vida em so-
berania em manifestação de todos: a co- ciedade, não uma decorrência necessária
munidade é, ela mesma, o soberano. da natureza do indivíduo.

Assim como os outros autores, Rousseau Rousseau detecta que o principal respon-
nos fala de direitos naturais e de homens sável por essa desigualdade era o fato de
naturalmente livres e racionais. Sua teo- que se tenha retirado do homem o direito
ria do contrato não parte, contudo, da re- básico de decidir sobre si. A instituição do
flexão de como esses fatores se combina- governo tinha vindo acompanhada pela
ram, mas postula uma forma de como de- idéia de delegação de poderes, quer ao rei,
veriam ser combinados. Rousseau não faz quer à maioria. A existência desse gover-

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no era ela mesma uma limitação à sobera- a vontade geral e os interesses de toda a
nia do indivíduo. Esta soberania era comunidade. A obediência, no caso deste
indivisível e inalienável e, sendo assim, autor, é o complemento da liberdade, vis-
constituía um contra-senso qualquer for- to que os homens chegam à vontade geral
ma política que se baseasse na representa- para serem mais livres de modo tal que,
ção e na delegação de poderes. O esforço ao obedecerem a si próprios, permanecem
do autor vai-se centrar na formulação de tão livres quanto antes (ROUSSEAU, 1973,
uma proposta de comunidade política na V. 1, Cap. 6).
qual o cidadão seja ao mesmo tempo obje-
to e sujeito das leis e do poder. Dentro Vemos que dentro de uma mesma lógica
dessa preocupação, chega à concepção de racional dedutivista chega-se a vários con-
vontade geral. Ela seria a expressão fiel tratos. O de Rousseau é certamente o mais
da totalidade das vontades individuais de complexo, mas em todos eles coloca-se a
tal forma que se constituiria uma comuni- centralidade da obediência. Pode-se dar
dade na qual cada um obedecendo ao todo como certa a preocupação de Rousseau de
obedeceria a si mesmo. corrigir a doutrina inglesa de contrato so-
cial que julgava não como um progresso
Esta formulação de Rousseau tem sido lida mas como subjugação e escravização do
de várias maneiras desde os que o enten- homem. Nesse sentido, seu contrato não
dem como um pioneiro do individualis- representaria o contraste entre estado na-
mo até aqueles que o classificam como um tural e sociedade civil, mas seria a ruptura
defensor e fundador do socialismo de Es- com a história de opressão e corrupção e
tado que sacrifica o indivíduo (CASSIRER, a instauração de uma nova vida de liber-
1980). É certo, contudo, que, ao enfatizar dade (CORCOVAN, 1983). Nesta, a obe-
o papel da vontade geral, Rousseau criou diência não era sinônimo de submissão a
“um novo sujeito de responsabilidade, de regras de um governo contratual, mas ex-
imputabilidade. Este sujeito não é o ho- pressão da libertação do homem que faz
mem individual, mas a sociedade inteira” de si mesmo, através da vontade geral, o
(CASSIRER, 1980, p. 411). A consciência seu próprio soberano.
de responsabilidade da sociedade não anu-
lava a necessidade do governo. Este era, Como em Hobbes e Locke, os argumen-
contudo, um agente da vontade geral so- tos são coerentes e logicamente derivados.
berana, “um corpo intermediário estabe- Mas em política nem tudo é lógica, assim
lecido entre os súditos e o soberano para como não era apenas lógica a vontade ge-
sua mútua comunicação, um corpo encar- ral de Rousseau. A rigor, o autor dá-lhe
regado da execução das leis e da manu- um caráter supra-racional e espiritual. E,
tenção da liberdade civil e política” mais ainda, introduz um conceito de co-
(ROUSSEAU, 1973, p. 80). munidade que não estava muito afeito à
lógica individualista e ao racionalismo ao
Sendo assim definido, o governo só faz jus qual se filiara o liberalismo. Sintomatica-
à obediência na medida em que exprime mente alguns autores como Sabine e

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Corcoran o têm associado a outra descen- principalmente à importância que
dência teórica e o colocam ao lado de Rousseau deu à idéia de comunidade
Burke e próximo de Hume. Isto se deve como sujeito político.

JUSTIÇA COMO BASE DA OBRIGAÇÃO POLÍTICA

Comunidade, sentimentos, costumes, con- me observações, mas vai avançar nesse


venção, tradição e impressões são termos ponto e chega a conclusões diferentes das
que marcarão com maior ou menor inten- de Locke quanto às potencialidades da
sidade o outro grupo de autores que pas- razão.
saremos a comentar. Embora não descar-
tem in totum a conduta racional dos ho- Comecemos pela distinção entre impres-
mens, irão relativizá-la. Característico tam- sões e idéias. As impressões são dadas pe-
bém em Hume, Burke e Montesquieu é o los sentidos e as idéias seriam representa-
fato de, resguardadas as diferenças, não ções, na memória e na imaginação, resul-
se deterem na explicação primeira da ori- tantes dessas impressões. Tudo no enten-
gem das coisas, mas de formularem seus dimento humano passaria pelos sentidos
raciocínios a partir da observação empírica e as impressões seriam as percepções ori-
sem a preocupação de deduzir modelos ginárias enquanto as idéias seriam cópias
genéricos em termos de regras políticas. das impressões. Hume faz, contudo, uma
Rejeitam, assim, as versões que explicam diferença entre idéias simples e comple-
o governo através da derivação racional xas, sendo as primeiras as que reprodu-
que vê nas leis universais e na razão, en- zem impressões de forma direta e imedia-
quanto qualidades congênitas à mente, a ta, enquanto as complexas não se asseme-
origem e a condição de existência das so- lham diretamente a nenhuma impressão.
ciedades políticas. São construções da mente que, não
obstante, continuam tendo nas impressões
Quando se fala de Hume, deve-se primei- os seus elementos constitutivos (VERGEZ,
ramente esclarecer que sua contribuição à 1984).
teoria política está intimamente relaciona-
da à originalidade de sua teoria do conhe- Esse empirismo psicológico seria marcante
cimento com a qual se mantém coerente. para a discussão de causalidade, elemen-
Enquanto Locke supunha existir leis na- to crucial para a teoria de Hume. Se o co-
turais de justiça e propriedade inscritas na nhecimento vem dos sentidos, as relações
mente humana com a mesma clareza das causais estão também sujeitas a revisão.
leis da lógica e da matemática, Hume vai Hume entende que os fatos concretos não
questionar a estrutura desse conhecimen- têm relações lógicas e não são passíveis de
to. Fica claro que de Locke ele cativa a idéia conhecimento demonstrativo. Sendo as-
de que a mente humana é uma “tábula sim, não estão no domínio da dedução ló-
rasa” na qual a experiência sensível impri- gica. Estando fora desse domínio, Hume

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pode descartar que as relações causais pos- explicar a crença psicológica na causali-
sam ser demonstradas através de conexão dade. O espírito acostuma-se a ver um
necessária. A necessidade, para ele, ocor- fenômeno associado a outro e estabelece
re na mente e não no objeto, pois as rela- psicologicamente uma ligação necessária.
ções de causalidade são originadas a par- A causalidade, desse modo, não seria um
tir da observação e da experiência sensí- princípio que rege as coisas, uma neces-
vel. É a ação do hábito sobre a imaginação sidade no sentido do encadeamento de
que nos faz chegar a certas associações de causas e efeito, mas sim um princípio da
causa e efeito e, nesse sentido, a conexão natureza humana. Do mesmo modo, a
não é lógica. probabilidade também seria um impul-
so do espírito e das impressões.
Nenhum objeto, segundo Hume, pode
revelar, através das qualidades que se mos- Neste contexto, o papel da razão é tam-
tram aos sentidos, nem as causas que o bém revisado. Ela se definiria como uma
produziram nem os efeitos que daí faculdade de entendimento e de conhe-
advirão. Ou seja, nenhum efeito pode ser cimento, orientaria as ações, mas a esco-
determinável a priori (VERGEZ, 1984). Em lha final dos objetivos pertenceria às pai-
assim sendo, não há causalidade, não há xões. As ações dos homens visariam a al-
causa e efeito: apenas associamos sensações gum fim (utilidade) e a razão dirigiria o
e idéias e presumimos daí relações lógicas impulso, mas não poderia inibi-lo. É por
que não são reais. Não há causa nem co- isso que Hume diz ser a razão “escrava
nexão. Há apenas sucessão de fatos no das paixões”. E estas, por sua vez, não
tempo cuja repetição não nos permite che- são verdadeiras nem falsas: são o que ele
gar ao conhecimento autêntico chama de “existência original” (AIKEN,
(HARZARD, 1974, V. 2). 1948).

As implicações desse argumento são da A moral, por sua vez, também não tem,
maior relevância, pois que significa que a em Hume, fundamento na razão, mas
indução não é princípio de conhecimen- sim nos sentimentos. A moralidade se
to; um grande número de exemplos de define como o conjunto de qualidades
um mesmo fenômeno não nos traz certe- aprovadas conforme sua utilidade (jus-
za quanto ao conhecimento desse fenôme- tiça, benevolência etc.). Nessa linha,
no. Acompanhando este raciocínio, vería- bem e mal não são objetivos. Sua gê-
mos o quanto o conhecimento científico nese está na simpatia e nos sentimen-
estaria comprometido. Além de não haver tos, estes permanentes e uniformes na
conhecimento a priori, nada de definitivo natureza humana. Mas essa perma-
se poderia aprender também da experi- nência não é incompatível com a di-
ência ou da observação (RUSSEL, 1982). versidade de costumes, hábitos e com
a multiplicidade de civilizações visto
Não havendo explicações para as causas, que a aplicação dos sentimentos pode-
Hume sustenta, entretanto, que é preciso se dar de formas diversas.

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Sua doutrina diz que o bem e o mal são apenas como um calculista. Hume obser-
definidos em termos do prazer ou da dor va que o homem não tinha só essa pro-
que as ações produzem. Assim, os motivos pensão e que sentimentos como benevo-
não são bons ou maus moralmente, a não lência, afeto ou altruísmo, por exemplo,
ser quando vistos à luz das conseqüências. eram inerentes à sua existência não
Com isso, Hume não está reduzindo a obstante pudessem se expressar de forma
moralidade a um sistema de julgamento diferente. As opiniões de Hume acerca do
relacionado apenas às conseqüências pois, governo e da obediência política estão to-
se a conduta, objeto da moral, está relaci- das elas marcadas por esses postulados que
onada com os fins, estes, por sua vez, não rejeitam os direitos naturais, questionam
existem separados das paixões e estas são a possibilidade do conhecimento autênti-
orientadas pela razão. O sentimento mo- co, assim como o papel da razão enquanto
ral brota da natureza humana, expande- condutora da História. Embora sua abor-
se pela simpatia e estabiliza-se pela con- dagem seja analítica e não-histórica, Hume
venção. Isso quer dizer que não há obri- vai-se posicionar de forma original. Para
gação implícita no fim para o qual a ação é ele não haveria, como vimos, verdades
dirigida e que só se considera como valor evidentes nem leis eternas de moralidade.
aquilo que é útil ou agradável para nós ou Podia-se apenas presumir a existência de
para os outros. Mas a aprovação moral não convenções explicadas pela História ou
é um sentimento inato: ela é explicada pela pela Psicologia, cuja razão de existência
simpatia, ou seja, pela partilha de prazer seria sua utilidade. Diferentemente de
e dor produzidos numa pessoa afetada por Burke, não justificava as instituições e seu
uma ação. desenvolvimento apenas a partir da His-
tória, mas atribuía a esta função crucial no
A simpatia torna-se, nesse autor, funda- entendimento das sociedades.
mental para a vida moral. Esta se torna
possível quando a dor e/ou felicidade dos Hume entendia que “estado de natureza”,
outros têm impacto sobre nossos sentimen- “contrato”, “consentimento” e “direitos
tos, o que explica nossa capacidade para a naturais” eram apenas construções ideais
reciprocidade de sentimentos. Nossas res- pelas quais os filósofos, pretendendo ex-
postas a outra pessoa são determinadas plicar o que aconteceu no passado, se pro-
pela observação de seu comportamento, punham a predizer o que os homens seri-
através do qual podemos perceber, por am capazes de fazer. Mas, para ele, isso
associação, emoções que sentimos em nós eram ficções e a política não poderia ser
mesmos, o que reforça a consciência de nós examinada desse modo. Era preciso, para
mesmos.3 tanto, considerar o que os homens podem
e devem fazer assim como seus desejos e
Levando em conta esses argumentos, as condições de escassez. Por hábito e por
pode-se entender a crítica de Hume à éti- interesse, o homem é um ser social e sua
ca racional que levava a um tipo de vida em sociedade depende muito mais de
utilitarismo no qual o homem era visto convenções do que de leis positivas. As

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convenções surgem com o tempo, tornam- exata e regular.”4 De fato, Hume não está
se habituais e são mantidas porque úteis. preocupado em discutir as origens do go-
Por isso, pode-se presumir que sendo a verno, mas principalmente seus fins e as
convenção e o hábito as bases da vida soci- bases morais da obrigação política. Num
al, Hume opõe-se à lógica do cálculo deli- de seus escritos, deixa claro que, embora
berado do auto-interesse e dá uma nova os homens não sejam apenas egoístas, exis-
significação à História quando aponta para te um jogo de paixões que ameaça a esta-
a importância do respeito pelos costumes bilidade da ordem. As convenções surgem
e pela tradição, elementos fundamentais entre os homens exatamente para assegu-
para que as convenções existam. rar certas regularidades/regras de condu-
ta de acordo com o sentimento geral do
bem comum. Desse modo, surgem as idéi-
Em seu raciocínio, regras sociais, costumes
as artificiais de justiça, injustiça, proprie-
e tradição não pertencem a qualquer sen-
dade, direito e obrigação.5 Dessas idéias é
timento natural e são, portanto, artificiais;
a da justiça uma das que Hume mais des-
instintos (fome, sexo) fazem parte da hu- taca; entendia ser finalidade do governo a
manidade, mas a sociedade não existe só elevação do bem comum e sem justiça não
com base neles. Por isso, vale a pena insis- poderia haver “paz entre os homens, nem
tir, o conceito de convenção torna-se cen- segurança, nem mútuo intercâmbio”.6
tral. As convenções surgem gradualmente Porque além de convenção o governo deve
através da experiência sensível dos ho- garantir a justiça, os homens devem obe-
mens, ganham força e adesão e são aceitas decer, “novo dever que tem de ser inven-
por sua utilidade testada e não por qual- tado para vir em apoio ao de justiça”.7
quer valor racional auto-evidente. A soci-
edade, e seus costumes, seriam, assim, pro- Constatando estar no passado o melhor
dutos da necessidade e do hábito e não caminho para a justiça, os homens se acos-
resultado de decisão racional de um gru- tumam a obedecer não mediante a formu-
po de homens para escaparem ao “estado lação de qualquer contrato, mas em fun-
de natureza”. “Seu” homem continuava ção de um hábito justificado pela experi-
sendo mais sensitivo que racional. ência e pela História.8 Hume questiona,
assim, a tese contratualista de que os ho-
É dentro dessa lógica que Hume se opõe mens se submetem à autoridade median-
à idéia de contrato, quando considera a te a obrigação/sanção de uma promessa,
questão do governo. Os homens se deixam ou seja, proteção. Isso, a seu ver, dava sem-
governar não por obrigação de cumprir pre a possibilidade de revolta, já que con-
trato supõe distrato. Em sua tese sobre
um trato, mas por um desses hábitos que
obediência, procura, portanto, dar-lhe um
expressam as convenções. Nessa linha, é
caráter mais permanente, alertando que
infrutífero discutir a origem primeira do
para ela somos obrigados pelo governo
governo, visto não haver regra particular “somente em virtude de tendência para a
para tanto. “A razão, a história e a experi- utilidade pública” e porque de outra for-
ência mostram-nos que todas as socieda- ma a sociedade não pode subsistir.9
des políticas tiveram origem muito menos

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Essa vinculação da obediência com a justi- entendimento acerca das finalidades polí-
ça, dentro da argumentação de Hume, não ticas e morais do governo, que, enquanto
representa uma relação de necessidade, convenção espontânea, não pode ser re-
mas expressa uma combinatória útil duzido apenas às deliberações dos desíg-
verificada historicamente. Exprime tam- nios da razão.
bém uma argumentação realista para o

AS LEIS E A TRADIÇÃO LEGITIMANDO A OBEDIÊNCIA

Assim como Hume, Montesquieu vai to- (1982, p. 57) e Zeitlin como um pensador
mar em consideração aspectos singulares filiado à filosofia medieval (ZEITLIN,
das sociedades e chegar ao mundo histó- 1973).
rico através dos meios que o próprio
Iluminismo lhe dava. Sua sensibilidade É possível que Montesquieu seja tudo isso
para com a História, o diverso e o particu- e muito mais. O que pretendemos aqui é
lar o colocam numa posição de superação marcar o fato de que existe nele evidênci-
do racionalismo e, ainda como Hume, não as bastantes de que a História é fator
partilhará da crença em leis universais crucial na ordenação do político. O termo
deduzíveis racionalmente (MEINECKE, histórico aqui não diz respeito apenas a um
1943). Fique claro que Montesquieu não passado que gerou hábitos, produziu coi-
é um historicista nem um conservador sas materiais e acumulou cultura. Está re-
nato. Ele partilha de idéias básicas da Ilus- lacionado também com a observação das
tração, mas, a exemplo de Hume, vai ado- circunstâncias nas quais se desenvolve um
tar também uma idéia de razão operativa determinado sentimento ou ação. Nesse
que se desenvolve com a experiência e que sentido, a História é também o presente;
atua sobre os sentidos. A originalidade de leva em conta a historicidade das situações,
seu trabalho permitiu, segundo Raymond os costumes, os hábitos e as tradições.
Aron, que fossem construídas sobre ele
diferentes visões (1982, p. 53). Meinecke Isso é tão importante que as instituições
o veria oscilando entre o universalismo ra- de uma sociedade, por exemplo, devem
cional e o sentido histórico das particula- ser entendidas nas suas inter-relações e na
ridades; Comte, como um determinista e dependência que têm do todo e das for-
Althusser diria que, elaborando uma filo- mas de Estado. E é do estudo dessa diver-
sofia determinista que constata a diversi- sidade de situações que se pode chegar a
dade da legislação e a explica pela uma ordem conceitual que torna a Histó-
multiplicidade de influências sobre a co- ria inteligível. Esse tipo de reflexão não
munidade, Montesquieu teria se transfor- inclui, entretanto, o exame da origem do
mado num gênio inovador e reacionário. governo ou dos direitos naturais. Montes-
Aron, por sua vez, o considera como um quieu tem como ponto de partida o que
liberal que ignorava a idéia de progresso existe desde sempre em cada civilização.

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Vai examinar basicamente as relações en- gidos. As leis são entendidas como “rela-
tre regimes políticos e tipos sociais, desta- ções necessárias que derivam da natureza
cando que o mais importante em tudo isso das coisas” de tal forma que todos os seres
é a existência de uma autoridade que es- vivos, inanimados ou simbólicos, possuiri-
teja conforme a ordem e as leis. am suas leis. Assim deverá ser também com
os homens.
As coisas que governam os homens são
os fenômenos naturais - como o clima A preocupação com as leis acompanha
– as instituições sociais – como a também a preocupação com a liberdade.
religião, as leis, as máximas de governo; Mas esta não é um princípio abstrato, mas
são também, por outro lado, a tradição, sim uma construção relativa a uma deter-
a continuidade histórica, característica
minada lei. Se a liberdade consiste em que
de toda a sociedade e que Montesquieu
chama de exemplo das coisas passadas.
o cidadão possa fazer aquilo que lhe per-
Todas essas coisas juntas formam o mite a lei, esta não é, portanto, uma liber-
espírito geral (...) resultante do conjunto dade em geral, mas a liberdade de cada
das causas físicas, sociais e morais comunidade dependendo da natureza e
(ARON, 1982, p. 43). dos princípios do governo.

Porque entende a importância desse con- A natureza do governo é o que permite a


junto de fatores, começa seu Espírito das Montesquieu fazer a classificação de três
Leis mencionando exatamente que, na in- tipos básicos: a república (democrática ou
finita diversidade de leis e costumes, os aristocrática), a monarquia e o despotis-
homens não eram orientados apenas por mo. Eles se distinguem, fundamentalmen-
seus caprichos (MONTESQUIEU, 1973, te, quanto ao número de governantes e
p. 27). quanto à existência ou não de leis.

Constatando que cada sociedade tem uma Assim passamos do governo re-
forma de pensar e um caráter particular, publicano, no qual todos (democracia)
Montesquieu quer descobrir as razões dis- ou muitos (aristocracia) governam
so. Não quer explicar pela lógica a origem segundo as leis, ao monárquico, que é o
dessas diversidades nem deduzir o seu poder de um único homem sujeito às
leis, e, enfim, ao governo despótico,
devenir(GROETHYSEN, 1980). Afastan-
onde um único indivíduo exerce um
do-se do racional dedutivismo, exclui tam-
poder absoluto e arbitrário, sem leis”
bém da ciência social as explicações religi- (GROSRICHARD, 1979, p. 55).
osas ou morais (ALTHUSSER, 1972,
Cap.1). Vai desenvolver uma abordagem Esses três tipos são construções conceituais
descritiva e comparativa com o objeto de que devem se aproximar, mais ou menos,
entender as leis que regem os homens. Sua das diversas realidades de organização so-
noção de lei, todavia, não tem um sentido cial. Mas, talvez mais importante que essa
finalista, não é um mandamento, não su- tipologia formal, são os princípios que os
põe alvos a serem obrigatoriamente atin- orientam. Os princípios do governo são

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aqueles sentimentos que orientam suas pios do governo. Assim temos que na re-
ações e que lhes permitem agir. Eles são, pública a obediência implica necessaria-
por excelência, o que garante a condição mente virtude cívica, de forma a que os
de mando e obediência. O princípio da interesses da nação sejam sempre maiores
república é a virtude política que se ex- que os pessoais. Na monarquia, por sua
pressa pelo amor à pátria e pelo medo da vez, ela faz parte das relações mútuas
lei. O da monarquia é a honra que signifi- autolimitadas entre os diferentes órgãos
ca o amor de si, amor à sua classe e o medo que compõem a sociedade. Não é obedi-
da opinião. E o princípio do despotismo é ência à pátria nem ao rei mas é obediên-
o medo, literalmente, o medo da morte. cia no sentido de uma conduta que deve
ser pautada sempre de acordo com a hon-
Se sua teoria do despotismo pode ser en- ra e com as opiniões. É por essa razão que
tendida como o superdimensionamento de Montesquieu entende ser a monarquia o
uma possibilidade, isso se deve à preocu- governo com mais condições de modera-
pação em desaprovar os governos arbitrá- ção, pois o princípio de honra propiciaria
rios. Montesquieu está interessado na de- um estado de coisas no qual o próprio
fesa do governo moderado, na defesa do poder limitaria o poder e a obediência se-
equilíbrio de poderes sociais de modo a ria crucial para a limitação auto-referen-
que nenhum poder seja ilimitado e que as ciada de cada corpo político.
paixões se autocontrolem. Por isso, suas
inclinações recaem sobre a forma monár- No caso de despotismo, a obediência não
quica na qual o governo, orientado pela é regida por qualquer outro sentimento a
honra e mediado por diversos corpos in- não ser o temor. Os homens obedecem
termediários (nobreza, clero, por exem- simplesmente porque temem a morte. Esta
plo), preserva a liberdade contra os capri- distinção nas formas de obedecer é coe-
chos do poder e as violências do povo rente com a linha desenvolvida pelo au-
(DEDIEU, 1980). Nela, ainda, a divisão de tor que recusa qualquer fatalidade e pro-
poderes contribuiria para a harmonia, o cura, através da diversidade imprescindí-
equilíbrio e a moderação. vel, buscar regularidades na vida política.
A obediência não é derivação de um con-
Até aqui não há nada de específico envol- trato explícito, mas é produto das leis que
vendo diretamente a questão da obediên- governam os homens e pode variar con-
cia, nem esta foi no autor um problema forme variem essas leis no tempo e nos
destacado em sua forma geral. Pode-se, lugares. Ela se manifesta de acordo com
contudo, fazer algumas deduções acerca os princípios do governo.
de como é vista. Fica claro que a obediên-
cia é uma condição básica para qualquer Diferentemente de Hume e Montesquieu,
ordem política. Mas não se trata da obedi- Burke não oscilará entre o pensar ilustra-
ência em geral, mas sim da obediência de do e o pensar histórico. Rompe com a Ilus-
acordo com certas leis, de acordo com o tração e as opiniões acerca de seu traba-
espírito geral das nações e com os princí- lho convergem em apontá-lo como um

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conservador exponencial. Assim como evidente que está passando um atestado
Montesquieu, não se propõe a fazer uma de óbito a qualquer pretensão abstrata ou
teoria do conhecimento, mas não há dúvi- racional dedutivista.
da que, no que diz respeito à política, suas
opiniões se transformaram em ensina- Isso o leva a recuperar também a impor-
mentos valiosos quer para aqueles que tância da religião e dos símbolos enquan-
apóiam seu modo de pensar, quer para to elementos constitutivos da ordem. Su-
seus opositores. põe um contrato originário concebido mís-
tica e religiosamente cujo conteúdo
Do ponto de vista de Meinecke, Burke prescritivo é guiado por instintos práticos.
leva, para o estudo do Estado, o conheci- Na medida em que sustenta esse ponto de
mento individualizado (MEINECKE, vista e que se deixa prender pelas raízes
1943). Não se trata aqui de fazer qualquer da vida histórica, Burke expressa, nas pa-
concessão ao racionalismo, mas de opor- lavras de Meinecke, um tradicionalismo
se decididamente a ele, transformando as consciente. O móvel mais forte de suas
tradições, os costumes, as circunstâncias, reflexões é o temor pela revolução, o medo
enfim a História de cada país singular, nos pelos projetos que no desejo de tudo me-
únicos fatores explicativos da ordem soci- lhorar destroem de uma só vez todos os
al. Não se trata mesmo, a exemplo de referenciais de uma sociedade. Se esta se
Montesquieu, de procurar regularidades. define fundamentalmente por seus costu-
Ao contrário, Burke quer marcar as dife- mes e tradições trazidos do passado, é in-
renças e quer ao mesmo tempo deixar cla- concebível para Burke pensar-se numa
ro que elas são produto de passados dis- realidade social que possa começar do
tintos. nada. Esse era o equívoco dos revolucio-
nários que julgavam ser necessário golpe-
Cada sociedade é o produto de seu passa- ar de uma vez todas as instituições para
do, assim como as instituições que as go- reconstruir-se uma nova ordem baseada
vernam. E, ao explicar a evolução das ins- em princípios racionais de justiça e liber-
tituições apenas por seu passado históri- dade.
co, Burke está, nos dizeres de Aiken, mais
perto do que Hume, de um pensar É nessa linha que desenvolve uma crítica
historicista que vê as coisas como certas furibunda aos revolucionários franceses de
simplesmente porque existem ou porque 1789 e alerta para a sabedoria de pensar-
ocupam um lugar no processo histórico se a História como um processo de conti-
(AIKEN, 1948). Sua ênfase nas tradições, nuidade com mudanças e adaptações, mas
no passado e na continuidade como guias sem rupturas. “A simples idéia de fabricar
para as ações do homem que o leva a de- um novo governo é suficiente para nos
clarar que o “Estado torna-se uma associ- encher de repulsa e horror”(BURKE,
ação não só entre vivos, mas também en- 1982, p. 67). Os franceses erraram ao
tre os que estão mortos e os que irão
nascer”(BURKE, 1982, p. 116), deixa bem

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agir como se nunca tivessem sido cometem crimes para obter seus fins, mas
moldados em uma sociedade civil, como fabricam fins para cometerem crimes”.10
se pudessem tudo refazer e partir do
nada. Começaram mal porque A violência do processo francês - e que
começaram por desprezar tudo aquilo aumentaria ainda após a publicação de
que lhes pertencia (BURKE, 1982,
Reflexões em 1790 - é para o autor o resul-
p.71-72).
tado daqueles movimentos que querem
Burke temia pelo futuro da Revolução tudo mudar e que repentinamente atri-
Francesa cujas conseqüências previa serem buem poder a grupos até então despre-
calamitosas, mas temia, mais do que isso, parados. Burke era francamente temero-
a disseminação na Europa, e principal- so quanto à participação política da massa
mente na Inglaterra, do ideário revoluci- e não escondia que a tarefa de governar e
onário. Por isso, suas Reflexões podem ser zelar pelo público deveria caber aos ho-
entendidas como um trabalho de análise, mens mais cultos e mais bem preparados
mas também como uma tarefa consciente que, por assim o serem, deviam livremen-
de propaganda anti-revolucionária. Ali te - mandato livre - defender os interesses
havia a preocupação de aconselhar a to- da nação. Não só eram os mais capacita-
dos os que se mobilizavam politicamente dos para as funções de governo como eram
de que cada país devia acomodar-se a suas aqueles que detinham conhecimento so-
circunstâncias e costumes e de que não se bre as necessidades humanas e sobre as
poderia – e mesmo que se pudesse não se tradições e leis de seu país. O governo fora
deveria – romper abruptamente com o inventado exatamente para atender a es-
passado. sas necessidades e para que o homem pu-
desse obter justiça. Para que isso fosse al-
Como nos lembra, “a ciência de construir cançado, cada homem abdicaria do direi-
o bem-estar da nação” não é como outras to de governar-se a si próprio e submeter-
ciências experimentais passível de um co- se-ia ao poder constituído. Não se trata de
nhecimento a priori nem pode ser formu- um contrato fundamentado em direitos
lada a partir de curtas e xperiências naturais, mas diz respeito a uma ordem
(BURKE, 1982, p. 90). Tudo o que somos, de coisas que constitui um poder que se
inclusive o governo, é produto de uma confunde com liberdade, na medida em
longa experiência que, a bem da liberda- que se orienta por condutas legitimadas
de, da paz e do bem-estar, deve ser pre- pelo passado com as quais as pessoas se
servada. Lutar contra esta evidência era, identificam. Elas só podem ser livres por-
segundo Burke, entrar em aventuras cujos que têm um governo em conformidade
riscos seriam imprevisíveis, mas cuja cru- com suas circunstâncias específicas e com
eldade seria explícita. Numa de suas car- suas tradições.
tas resume bem a percepção que tinha dos
revolucionários franceses dizendo que Só os homens de visão conseguem, segun-
eram capazes de qualquer mal e que “não do Burke, ter a real dimensão da impor-
tância de conhecer-se a sociedade e só eles

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estão preparados para zelar por ela e por defendendo o respeito às singularidades
seus costumes. de cada sociedade, quer fazer da Inglater-
ra um modelo a ser seguido. De fato, co-
É impossível estimar a perda que resulta meça o capítulo terceiro de suas Reflexões
da supressão dos antigos costumes e dizendo que “os franceses poderiam, se
regras de vida. A partir desse momento tivessem querido, ter aproveitado nosso
não há bússola que nos guie, nem temos exemplo e ter dado à sua liberdade recu-
meios de saber a qual porto nos perada uma dignidade análoga”(BURKE,
dirigimos (BURKE, 1982, p. 102).
1982, p. 71). Podemos, contudo, argu-
Se Burke estava tão preocupado em con- mentar também que esse “conselho” não
denar a revolução que seria, além de uma visava tanto a impor modelos a outros pa-
ruptura criminosa, uma manifestação ex- íses. Burke queria chamar a atenção para
tremada de desobediência para com a or- o fato de que a Inglaterra, melhor que
dem estabelecida, é claro que para ele a qualquer outra nação, soubera combinar
obediência deve ser deveras importante. tradição e mudança e com isso criar uma
Mas não é uma questão teórica. Faz parte das sociedades mais livres, que, do seu
do hábito e da tradição que se obedeça à ponto de vista, a humanidade já havia cri-
autoridade e à lei por ela representada. ado. Assim, o que estava em jogo não era
Os homens lhe devem obediência porque copiar o que a Inglaterra fizera, mas
é assim que a vida em comunidade pode alertar para o fato de que cada nação de-
ser operada. Mas essa não é uma obediên- veria ter a sabedoria de preservar suas tra-
cia em abstrato derivada de qualquer con- dições se pretendesse evoluir na direção
trato. É uma obediência que expressa a da justiça e da liberdade. E cada História
confiança no poder, a confiança de que o particular deveria apontar as formas como
poder da sociedade continuará sendo ca- isso deveria ocorrer.
paz de zelar pelos homens: os homens
nada são sem a sociedade, sem sua Histó-
ria.

Meinecke (1943, p. 239) detecta uma con-


tradição no pensamento de Burke que,

OBEDIÊNCIA SIM, AINDA QUE COM


FUNDAMENTOS DIFERENTES
Vemos, no decorrer do trabalho, que a é avaliado diversamente são os argumen-
obediência política é tão importante para tos que a tornam legítima. Os contra-
uma quanto para outra abordagem. Os tualistas a justificam mediante a dedução
argumentos variam, mas sua necessidade da existência de um contrato firmado li-
e legitimidade não estão em causa. O que vre e racionalmente ou a ser formado

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(Rousseau). Assim, a obediência existe ne- gundo esse raciocínio, a sociedade é ante-
cessariamente como dedução racional da rior ao indivíduo e o transcende. Esta óti-
decisão dos homens de formarem a socie- ca não elimina o papel da razão, mas
dade visando à segurança e ao bem-estar. relativiza o seu sentido criativo, assim como
A sociedade, nesse sentido, é uma cons- a visão racionalista também não descarta
trução racional dos homens para que pos- in totum a caracterização social do homem.
sam usufruir livremente de seus direitos O que está em questão é o papel que se
naturais ou mesmo, como no caso de atribui a cada um desses fatores. Mas como
Hobbes, tornar esses direitos explícitos. vimos, isso faz uma diferença importante.
Cada um dos autores aqui mencionados
A obediência, dentro dessa lógica, é parte faz uma leitura particular a respeito da
integrante da criação racional dos homens; obediência mas é possível, a partir da re-
é condição para a vida social que deve ex- flexão anterior, marcar uma distinção en-
pressar o zelo pelos interesses e direitos tre os dois grupos.
inerentes ao indivíduo. A História, neste
caso, contingência e não determinante, Para o primeiro, a obediência é uma deri-
serve para ilustrar as proposições já aca- vação explícita dos compromisso dos ho-
badas de que a ordem social é produto da mens frente à construção da ordem da
construção dos homens e que a obediên- qual são autores e será caracterizada a
cia faz parte desse arranjo racional. partir da visão que têm de como essa cons-
trução foi efetuada. Em cada caso, a obe-
Em contraposição a isso, os outros autores diência está associada a outro fator
vão afirmar que os homens obedecem não correlato e correspondente que expressa-
por obrigação de cumprir um trato mas ria o fundamento maior das razões do con-
porque são movidos socialmente por há- trato. Assim as relações obediência/sobe-
bitos e tradições que lhes são transmitidos rano (Hobbes), obediência/consentimento
pela educação e pela socialização. O fato (Locke) e obediência/liberdade (Rousseau)
de não se deterem a discutir as origens do são deduções derivadas da relação contra-
governo é ilustrativo. Questionam ser a tual maior. Não precisam ser explicadas
sociedade um derivado lógico da racio- historicamente, pois trazem a marca de
nalidade humana - ela não se explica pelo uma outra matriz de conhecimento que
fato de o homem ser racional, mas pelo permite conhecer a priori essas relações.
fato de que existe. Mais do que isso, os
autores que se opõem ao racional-dedu- Quanto ao segundo grupo, é possível tam-
tivismo parecem inverter os termos da re- bém inferir algumas associações básicas
lação homem-sociedade. O social não é quanto à obediência. Em Hume, ela diz
produto da ação racional dos homens; e é respeito principalmente à justiça, em
a sociedade que cria o indivíduo. Assim o Montesquieu está diretamente referen-
homem não é principalmente um ser ra- ciada ao princípio do governo e em Burke
cional, mas sim um ser social - a sociedade define-se pela confiança no poder. O modo
é condição primeira de sua existência. Se- pelo qual se chega a estas conclusões dife-

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re do anterior. Não são deduções racionais, cionais e que o progresso da humanidade
mas imperativos da observação daquilo seria decorrente do desenvolvimento da
“que existe”. São descobertas feitas a par- consciência que o homem passava a ter se
tir da experiência dos homens que, por seus próprios erros e acertos, enquanto
serem eminentemente sociais, são levados isso, o tradicionalismo colocava em dúvi-
a interagir dentro dos parâmetros que lhe da o primado da razão. Questionando a
são legados socialmente. A obediência aqui idéia de uma razão inata que iguala os
pertence àquele conjunto de circunstân- homens, o tradicionalismo aponta para a
cias verificadas historicamente e que, jun- necessidade de se considerar as diferen-
to a outros fatores, delineiam a ordem so- ças, as desigualdade e as singularidades
cial na qual o indivíduo se inscreve. Ela tanto individuais como culturais. Criticam
não faz parte do contrato. É parte da His- o racionalismo que, com a presunção de
tória, das tradições e das relações sociais tudo conhecer, não considerava que as
que os homens encontram à sua volta. É ações humanas produziam resultados não-
condição para a existência da ordem soci- previstos racionalmente e alertam para o
al ainda que os indivíduos não tivessem, fato de que as sociedades não são passí-
originalmente, decidido que devesse ser veis apenas de explicações racionais. Em
assim. suma, a crítica da visão histórica deixa pa-
tente que, enquanto se entender a ordem
Enquanto a corrente racional-dedutivista política do ponto de vista racional-
apostava na confiança de que através da dedutivista, estaremos considerando o in-
ciência todos os problemas pudessem ser divíduo apenas como um ser eminente-
elucidados; que todas as sombras e dúvi- mente racional que, como tal, pode con-
das pudessem ser afastadas; que a socie- tratar. Não se levaria em conta a capacida-
dade pudesse ser organizada em bases ra- de dos homens de produzir cultura.

NOTAS

1 Reflexões sobre a revolução em França e O antigo regime 6 Hume, D. 1963. (Da origem do governo), p. 38.
e a revolução, respectivamente.
7 Hume, D. 1963. (Da origem do governo), p. 39.
2 Masters, Roger D. 1983.
8 Hume, D. 1963. (Do contrato original)
3 Aiken, Henry D. 1948. Sobre o conceito de sim-
patia e a influência que terá em Adam Smith ver 9 Hume, D. 1963. (Do contrato original) p. 63 e
Stewart, Dougald. 1966. Sobre as diferenças des- 55.
se conceito em Hume e Smith, Adam., 1976, in- 10 Citado por Connor, Cruise O’Brien na introdu-
trodução. ção que faz ao Espírito das Leis, 1982, p. 25.
4 Hume, D. 1963 (Do contrato original).
5 Hume, D. 1963. (Da origem da justiça e da pro-
priedade)

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ABSTRACT
This articles discusses the classic notion that the existence
of the organized political community demands political
obedience, leading to the imposition of a principle of
inequality. Two opposite points of view have argued,
however, in favor of the legitimacy of obedience. The first
is that of the rationalists, who sustain that government is
the embodiment of human reason e and that it is legitimate
to obey what we rationally choose as the best. The second
is that of the conservatives, who argue that men are
incapable of employing reason as a socialy creative force.
They defend the primacy of culture and society over the
individual, stating that obedience is based on tradition and
habit, both of which contribute to preserve order.
Rationalists sustain that obedience exists as a rational
deduction of the decision to form society with the goal of
attaining safety and well-being. Conservatives argue that
obedience is a habit that comes from history and culture,
and that it provides men with the guarantee that society
will be preserved, therefore providing them with the most
important condition for their existence.

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RESENHA

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AUTO-SUBVERSÃO*
GISÁLIO CERQUEIRA FILHO**

São 20 ao todo os ensaios escritos a partir cena internacional a partir da queda do


de 1986 e publicados agora em 1996 sob o muro de Berlim (9/11/89), do fim da União
curioso título “Auto-subversão — teorias Soviética (URSS) e das transformações no
consagradas em xeque”. Digo curioso, Leste Europeu.
porque Albert Hirschman nunca foi um
subversivo nem no sentido terminológico Neste aspecto, necessitamos colocar em
propriamente dito, nem no sentido que a xeque as teorias consagradas pela comu-
repressão política atribui ao termo. nidade acadêmica, pela mídia e até por
Governos, mas não exatamente pelos fa-
Todavia, passada a conotação depreciati- tos históricos. Aí talvez resida a maior di-
va da expressão subversivo, o autor a uti- ferença de Albert Hirschman (A. H.) em
liza no sentido de submeter as próprias relação a muitos dos seus pares: a reve-
idéias a uma espécie de revisão crítica, ma rência pela história; em outras palavras,
non troppo. Na verdade, o título produz ele nunca brigou com os fatos.
mais um efeito lingüístico e de marketing,
pois de fato o autor não chega a rever tan- No capítulo I, a meu juízo o mais denso,
to assim as suas interpretações originais. temos uma espetacular demonstração da
Mas permanece uma evidente abertura in- interpretação analítica do autor. A partir
telectual e grande capacidade de diálogo, de uma simples tabela em que se registram
inclusive consigo mesmo. Há uma notável ano a ano, desde 1949 a 1989, as saídas
disposição num homem com mais de 80 (emigrantes e refugiados) da RDA (inclu-
anos para o novo, o diverso, o heterodo- sive Berlim Oriental) para a RFA (inclusi-
xo, o imprevisto. ve Berlim Ocidental), temos a construção
fascinante de uma teoria explicativa para
Assim, a sua propensity do self-subvertion (tí- a queda do muro de Berlim e a unificação
tulo original da obra) deve ser encarada das duas Alemanhas por alguém, ainda
mais como a incrível capacidade para exa- que agora de nacionalidade americana,
minar as novas realidades impostas na visceralmente ligado à Germânia. Trata-

**
Albert O. Hirschman, Auto-subversão – teorias consagradas em xeque. Tradução de Laura Teixeira Motta. São
Paulo : Companhia das Letras, 1996. Original de 1995 publicado pela Harvard University Press.
**
Professor adjunto do Departamento de Ciência Política da UFF.

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se de uma das mais instigantes análises da b) no sentido de terem sido escritos sem-
realidade européia contemporânea. pre tendo em vista um referencial concre-
to tipo concessão de título honorário ou-
Neste particular, o autor realiza pequenas torgado por alguma universidade da Amé-
retificações com relação às próprias idéias rica do Norte, Europa ou homenagem aca-
anteriormente apresentadas em outros dêmica e, mais raramente, reunião cientí-
trabalhos e comunicações científicas, de- fica; e
monstrando mais do que nunca completa
ausência de dogmatismo e forte presença c) no sentido de que chegam em boa hora.
tanto de tolerância teórica quanto políti-
ca. A retórica intransigência não faz o seu Nestas ocasiões, talvez, também em fun-
gênero, e em quase todos os artigos da Par- ção deste caráter mais pessoal, íntimo e
te I Albert Hirschman acentua a sua flexi- particular em que o homenageado se en-
bilidade e esperança. contra, haja uma propensão rigorosamen-
te oposta à auto-subversão, ou seja, a da
Assim, é muito significativo que ele con- auto-afirmação.
clua os cinco primeiros capítulos recordan-
do um surpreendente e inusitado Sísifo, Por isso a parte segunda é dedicada às vi-
tão querido da maioria dos intelectuais, em cissitudes da construção identitária de
geral dedicados e perseverantes. quem foi duramente atingido pela guer-
ra. São textos em que o intelectual não se
...recordo o quanto me comoveu, muitos furta à emoção e aos sentimentos, como
anos atrás, o ensaio escrito por Camus na que permitindo ao leitor entrever aspec-
época da guerra, O mito de Sísifo, e especi-
tos biográficos, às vezes não reivindicados
almente a última sentença: Il faut imaginer
Sisyphe heurex (é preciso imaginar Sísifo fe- como importantes, pelo menos até então.
liz). Talvez em conseqüência de minhas Porque o que vemos emergir aqui vem
reflexões sobre utilidades da auto-subver- com a marca do que foi reprimido por lon-
são, eu possa agora ir além da formulação go tempo. E agora retorna; melhor dizen-
de Camus e propor, em vez disso, de modo do, pode retornar. O “retorno do repri-
menos elegante porém mais radical: é pre-
ciso imaginar o próprio Sísifo fazendo a rocha
mido” de que falava Sigmund Freud vem
despencar (HIRSCHMAN, 1996, p. 106). aqui na esteira dos acontecimentos que se
sucedem no Leste Europeu e particular-
Todos os ensaios do volume são ensaios de mente na Alemanha, agora unificada.
ocasião, no bom sentido do termo, aliás Albert Hirschman classifica simplesmente
triplo sentido: como arrebatadora a experiência de en-
contrar, no intervalo de uma semana, qua-
a) no sentido de se referirem aos impactos tro pessoas de seus diversos passados na
e transformações direta ou indiretamente Alemanha e França (HIRSCHMAN, 1996,
vinculados às mudanças no “socialismo Cap. 6). A aventura da teoria econômica
real”; torna-se a ventura de uma vida rica de

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percalços, mas verdadeiramente emocio- deve significar uma disposição para a
nante. Com elegância e sem afetação, des- “auto-subversão”.
creve porque não estudou na famosa
Sciences Po (Instituto de Estudos Políticos As suas notórias ligações profissionais com
da Universidade de Paris), até hoje uma a América Latina, pois trabalhou um lar-
paixão, e o quanto foi significativo reali- go período da sua vida na Colômbia, e os
zar a sua formação na École de Hautes Études muitos escritos sobre desenvolvimento la-
Coomerciales (conhecida como HEC). São tino-americano credenciam a abordar te-
oferecidas pistas concretas para o estudio- mas tão caros a todos nós. Todavia, a nos-
so da História das Idéias acerca das rela- so ver, aqui há um vício corporativo: Albert
ções entre a Economia e as demais Ciênci- Hirschman beira as raias da indulgência
as Sociais, em particular a Geografia Hu- quando se trata de avaliar os economistas
mana e Econômica, na configuração do e tecnocratas responsáveis pelas políticas
pensamento econômico de A.H. (HIRS- públicas nos últimos 30 anos no nosso con-
CHMAN, 1996, Cap. 8). tinente. Uma visão excessivamente otimis-
ta e esperançosa não chega a dar conta das
A terceira parte do livro, sob o título “no- muitas oportunidades perdidas, inclusive
vas incursões”, assinala preocupações ou- no campo econômico; nem ajuizar o cará-
tras que não estritamente ligadas à ter repressivo dos regimes militares com o
“autocrítica” e “às emoções”. Aqui apare- seu corolário de injustiças.
cem velhos temas que o autor tem percor-
rido; por exemplo, o da industrialização, Acentua aspectos positivos da atualidade
o da presença do Estado na economia, o latino-americana (por exemplo, a atual
da avaliação da sociedade de mercado, o baixa taxa de natalidade), mas passa ao
desenvolvimento latino-americano. Mas largo dos negativos (por exemplo, o
todos estes velhos temas são (re)visitados narcotráfico e a economia de mercado no
à luz das transformações atuais propicia- contexto do fim da guerra fria e de uma
das pelo fim da guerra fria e pelo avanço abundante oferta de sofisticadas armas de
das forças produtivas, com destaque para guerra).
a informatização da sociedade a partir da
revolução da microinformática. Ao ressaltar a crescente urbanização na
América Latina como um outro elemento
A impressão que fica é a de que o escritor positivo no desenvolvimento econômico e
não pode parar a busca que já se via em de novas oportunidades no mercado de
obras anteriores (como The strategy of trabalho, o autor não dá a devida ênfase à
economic development, A bias for hope, Saída, real situação de injustiça e violência no
Voz e Lealdade, A retórica da intran- campo. E a questão da corrupção no inte-
sigência: perversidade, futilidade e amea- rior do Estado adquiriu tal envergadura
ça). Mas se a busca não deve cessar, a refe- em tantos países da América Latina que
rência às obras anteriores é essencial; isto não justifica a omissão. Mais do que uma

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reflexão sobre o papel dos militares nos América Latina certamente não escapará;
últimos 30 anos no continente latino-ame- mas a sua nova inserção na divisão inter-
ricano, o que de resto não é realizado pelo nacional do trabalho não assegura a auto-
autor, mas há variada literatura à disposi- mática solução para nossos problemas so-
ção dos interessados, a nossa realidade es- ciais.
taria a exigir uma análise profunda da
burocracia ou tecnocracia, com destaque Entretanto, Albert Hirschman tem muito
para a corporação dos economistas e suas a nos oferecer. Em “Os conflitos sociais
teorias importadas dos Estados Unidos. como pilares das sociedades de mercado
Como isso não chega a ser realizado, qual- democráticas” (HIRSCHMAN, 1996, Cap.
quer sugestão de tratar as últimas três dé- 20), ele ensaia uma interpretação vigoro-
cadas como trente glorieuses, como sugeriu, sa que em tudo contraria a tradição ibéri-
em 1979, Jean Fourastié para o crescimen- ca em não reconhecer o conflito social
to e modernização ocorridos na França, como legítimo. Neste particular o exage-
pode parecer, além de uma comparação rado otimismo conta a favor, pois A. H.
indevida, uma gozação intolerável. Estag- não se deixa abater com essa permanente
nação, recessão, desemprego não estive- busca do consenso. Onde muitos não vêem
ram acompanhados de crescente queda de saída (exit) ele está buscando indícios e pis-
mortalidade infantil como parece sugerir tas por onde a(s) voz(es) possa(m) se fazer
o escritor. ouvir (voice), indicando alternativas.

O mesmo no que tange às taxas de alfabe- De modo um tanto intuitivo, o autor ques-
tização que, se caíram, vêm sempre acom- tiona o princípio do “favor” e da lealdade,
panhadas de elevadas taxas de evasão es- sobretudo quando fundada nas relações
colar e não chegam a significar o ingresso pessoais ou de parentesco (loyalty) que não
da massa da população nos círculos da deve ser entendida exatamente como le-
cultura letrada. Pior ainda no que se refe- aldade, mas muito mais adequadamen-
re à saúde, pois antigas doenças, como o te como submissão. A submissão presente
cólera ou a febre amarela por exemplo, e no “toma-lá, dá-cá” do favor (CER-
até a hanseníase, ressurgiram com imensa QUEIRA FILHO, 1993).
força. O Estado tem deixado a saúde pú-
blica à mercê dos processos de privatização, Na verdade A. H. se esforça por buscar
excepcional via de acumulação de capital. uma interpretação que se sustente no in-
E o que dizer da população infanto-juve- dividualismo e na irredutibilidade do con-
nil nas ruas das grandes cidades? Das cri- flito social na tradição teórica alemã (Max
anças e adolescentes em situação de risco? Weber, Simmel, Tonnies, Ralph Dahren-
Do crescimento da prostituição infantil? dorf, entre outros), tanto em oposição ao
Olhar a realidade nossa de cada dia sim- approach da luta de classes (Karl Marx, F.
plesmente optando por lentes coloridas Engels) quanto à perspectiva da deslegi-
não é solução. De fato, vivemos um timação do conflito e busca de um consen-
rearranjo da ordem internacional. Dele a so de natureza absolutista presente na vi-
são ibérica.

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Quando aborda o tema do conflito, como A grande pergunta que se faz é: em socie-
parte intrínseca da construção de uma or- dades fortemente desiguais, como nas da
dem democrática, A. H. lança a questão América Latina, a substituição dos confli-
da dialética sem o terceiro termo. A deno- tos divisíveis por aqueles considerados
minada “minidialética”, sem a negação da indivisíveis, o ocultamento, mais ou me-
negação, da superação hegeliana, aparece nos consciente, das demandas sociais clás-
como questão metodológica das mais in- sicas, ou a utilização de expressões e ditos
teressantes, que valeria a pena investigar. espirituosos, diminuem o sofrimento de
O mesmo para os chamados “conflitos milhões de homens, mulheres e crianças
indivisíveis”, do aborto (ver EUA) às lutas que vivem em condições de exclusão
étnicas (Sérvia, Bósnia, País Basco) e ao social?
fundamentalismo (Irã, Chechênia, Iraque),
quando ironiza: Que Deus nos devolva a luta Mas não há dúvida de que, ao se contra-
de classes!, recordando as palavras de por à teoria da luta de classes (conflitos
Benjamim Constant diante de um intré- indivisíveis) e à classificação conforme o pa-
pido guerreiro e vitorioso Napoleão: Que drão antagônica/não-antagônica, princi-
Deus nos devolva nossos reis preguiçosos!... pal/secundária, A. H. alarga o entendimen-
to das lutas sociais típicas das sociedades
Em muitas observações do escritor há sense de mercado pluralista.
of humour, fina ironia; às vezes um pouco
de sarcasmo. Isto, sem dúvida, torna atra- Uma das muitas sábias lições que nos ofe-
ente e prazerosa a leitura, mas não seria o rece nestes tempos de tantos descontentes
caso de interrogar: tais boutades favorecem (ver cap. 17: “A industrialização e seus nu-
a produção de conhecimento? Será que a merosos descontentamentos: Ocidente,
restauração em França acabou com a luta Oriente e Sul”) é aquela transcrita no ca-
de classes explicitada nua e crua na Revo- pítulo 9 (“Dúvida e ação antifascista na Itá-
lução Francesa? A globalização e o fim do lia: 1936-38”), originalmente palestra pro-
socialismo real implicam o cancelamento ferida na Universidade de Turim.
dos conflitos divisíveis?
O que fascinava então o autor, referindo-
Em sociedades fortemente desiguais, persistem se ao amigo e cunhado Eugenio Colorni,
demandas clássicas; entre elas, a demanda por era a íntima conexão entre a postura inte-
terra (texto do pronunciamento escrito, lectual que enfatizava a ausência de um
mas eliminado e, portanto, não lido pelo firme comprometimento ideológico e o
Presidente Fernando Henrique Cardoso, comprometimento com a ação política ar-
ele próprio cientista político e autor do riscada. Era a forma peculiar como Corloni
prefácio do livro Hirschman, ao receber o e seus companheiros abordavam as ques-
título de Doutor Honoris Causa na Univer- tões filosóficas, psicológicas e sociais que
sidade de Bolonha, em 13/2/97, conforme os impelia à ação em situações em que a
Jornal do Brasil (14 fev. 1997, p. 3). liberdade de pensamento era suprida ou
nas quais sentiam que a injustiça era óbvia

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e a estupidez intolerável. Era quase como zeroso. Sua atitude sempre pareceu como
se se esforçassem para provar que Hamlet uma concepção de ação política e um
estava errado: estavam decididos a mos- modo de combinar a vida privada e a
trar que a dúvida podia motivar a ação em pública. Se eu tivesse tempo, argumenta-
vez de prejudicá-la. Ademais, a participa- ria que todos nós ainda podemos apren-
ção em ações de alto risco não era de modo der com ela, pois este tipo de combinação
algum encarada por eles como um preço de participação em assuntos públicos com
a ser pago pela liberdade de reflexão que abertura intelectual parece-me ser o
estavam praticando; era, antes, seu equi- microalicerce ideal de uma política demo-
valente natural, espontâneo, quase pra- crática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CERQUEIRA FILHO, Gisálio. A ideologia do favor e a ignorância simbólica da lei. Rio de
Janeiro : Imprensa do Estado, 1993.
HIRSCHMAN, Albert O. Auto-subversão : teorias consagradas em xeque. Tradução de
Laura Teixeira Motta. São Paulo : Companhia das Letras, 1996.

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NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS


APRESENTAÇÃO

1. A revista Antropolítica, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência


Política da UFF, aceita originais de artigos e resenhas de interesse das Ciências Soci-
ais e de Antropologia e Ciência Política em particular.
2. Os textos serão submetidos aos membros do Conselho Editorial e/ou a pareceristas
externos, que poderão sugerir ao autor modificações de estutura ou conteúdo.
3. Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8 páginas, no caso
das resenhas. Eles devem ser apresentados em duas cópias impressas em papel A4
(210 x 297mm), espaço duplo, em uma só face do papel, bem como em disquete no
programa Word for Windows 6.0, em fontes Times New Roman (corpo 12), sem
qualquer tipo de formatação, a não ser:
• indicação de caracteres (negrito e itálico);
• margens de 3cm;
• recuo de 1cm no início do parágrafo;
• recuo de 2cm nas citações; e
• uso de itálico para termos estrangeiros e títulos de livros e periódicos.
4. As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre parênteses, com
as seguintes informações: sobrenome do autor em caixa alta; vírgula; data da publi-
cação; vírgula; abreviatura de página (p.) e o número desta.
(Ex.: PEREIRA, 1996, p. 12-26).
5. As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão ser apresentadas
no final do texto.
6. As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do texto, obedecen-
do às normas da ABNT (NBR-6023).
Livro:
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. 2. ed. São Paulo :
Abril Cultural, 1978. 208 p. (Os Pensadores, 6)
LÜDIKE, Menga, ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação : abordagens qualitativas.
São Paulo : EPU, 1986.
FRANÇA, Junia Lessa et al. Manual para normalização de publicações técnico-científicas. 3.
ed. rev. e aum. Belo Horizonte : Ed. da UFMG, 1996, 191 p.
Artigo:
ARRUDA, Mauro. Brasil : é essencial reverter o atraso. Panorama da Tecnologia, Rio de
Janeiro, v. 3, n. 8, p. 4-9, 1989.

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Trabalhos apresentados em eventos:
AGUIAR, C. S. A. L. et al. Curso de técnica da pesquisa bibliográfica : programa-padrão
para a Universidade de São Paulo. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO, 9., 1977, Porto Alegre. Anais... Por-
to Alegre : Associação Rio-Grandense de Bibliotecários, 1977. p. 367-385.
7. As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa reprodução gráfica.
Elas deverão ser identificadas com título ou legenda e designadas, no texto, como
figura (Figura 1, Figura 2 etc.).
8. Os textos deverão ser acompanhados de resumo em português e inglês, que não
ultrapasse 250 palavras, bem como de 3 a 5 palavras-chave também em português e
em inglês.
9. Os textos deverão ser precedidos de identificação do autor (nome, instituição de
vínculo, cargo, título, últimas publicações etc.), que não ultrapasse 5 linhas.
10. Os colaboradores terão direito a cinco exemplares da revista.
11. Os originais não aprovados não serão devolvidos.
12. Os artigos, resenhas e demais correspondência editorial deverão ser enviados para:
Comitê Editorial da Antropolítica
Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política
Campus do Gragoatá, Bloco “O”
24210-350 – Niterói, RJ
Tels.: (021) 620-5194 e 719-8012

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Desejo adquirir a Revista Antropolítica nos 1 2 3 4 , ao preço de R$ 13,00 cada*.

117
Nome: ___________________________________________________________ Deposite o valor da(s) obra(s) em
nome da Universidade Federal
Profissão: ________________________________________________________ Fluminense/Editora (Banco do
Brasil S.A., agência 3602-1, conta
Especialidade: _____________________________________________________ 170500-8), depósito identificado nº
15305615227047-5.
Endereço: ________________________________________________________ Envie-nos o comprovante de
depósito, através de carta ou fax,
_________________________________________________________________ juntamente com este cupom, e
receba, sem qualquer despesa
Bairro: ______________________________ CEP: ______________ – ________ adicional, a encomenda em sua
residência ou local de trabalho.

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Cidade: __________________________________________ UF: ____________
* Comprando os quatro números,
Telefone: ( _______ ) _______________________________________________ pague somente R$ 45,00
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RESENHA

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NÓS CIDADÃOS,
APRENDENDO E ENSINANDO A DEMOCRACIA
DE MARIA CONCEIÇÃO D´INCAO E GERARD ROY
OUA NARRATIVA DE UMA
EXPERIÊNCIA DE PESQUISA
ANGELA M. FERNANDES MOREIRA LEITE*

A necessária criação de relações democrá- da vida social, abrangendo, inclusive, a


ticas entre as populações contempladas organização de uma festa junina. Em to-
por programas de desenvolvimento gover- dos esses espaços sociais, a ênfase é colo-
namentais ou não-governamentais é o cada na atuação dos indivíduos, no seu
tema do livro de Maria Conceição D’lncao comportamento, bem como na reação dos
e Gerard Roy, que apresenta urna propos- pesquisados diante da presença dos pes-
ta corajosa de trabalho no campo das ci- quisadores.
ências sociais.
É sempre ressaltado pelos autores que os
Expondo o resultado da pesquisa realiza- trabalhadores assentados foram socializa-
da junto a 39 famílias rurais de um assen- dos numa situação de dominação, razão
tamento de trabalhadores no Estado de pela qual reproduziriam, neste novo coti-
São Paulo, quatro anos após sua implan- diano, os mesmos mecanismos de compe-
tação, os autores estabelecem como ponto tição, invalidação dos companheiros, des-
de partida que só a aprendizagem e o exer- confiança, dissimulação e resistência sor-
cício da democracia no cotidiano dessas po- rateira da situação anterior. Tais práticas
pulações poderá transformá-las em atores transformam-se em empecilhos para a atu-
de seu próprio desenvolvimento ou de sua ação dos indivíduos com autonomia, como
história, propondo, no final, seu assesso- cidadãos, frente aos problemas que, na
ramento para tal conquista. nova situação de pequenos produtores
rurais, têm que enfrentar, i.e., regras de
A análise do cotidiano no assentamento é mercado, regras do sistema financeiro e
direcionada para os relacionamentos es- luta pelo acesso a políticas de saúde, habi-
tabelecidos nas famílias, entre famílias, na tação, educação etc.
associação dos produtores e no conjunto

*
Aluna do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política do
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense.

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A matriz ideológica sobre a qual foi resolução de um problema, que acaba por
construído o objeto da pesquisa é apresen- constituir-se em interessante tema de dis-
tada como a crença nas possibilidades re- cussão sobre o papel do pesquisador: pre-
novadoras das relações democráticas, en- parar a população assentada para viver
tendidas como encontro de pessoas autô- democraticamente essa nova situação,
nomas, iguais no direito de se exprimir li- através de uma interposição, de uma me-
vremente. Dentro desta perspectiva, diação operada por agentes externos. Na
D’lncao e Roy trabalham com duas noções ausência de um comportamento democrá-
precisas e particularizadas de cidadania e tico entre os trabalhadores assentados, os
democracia Por cidadania entendem o autores deslocam sua posição de pesqui-
exercício da igualdade e da liberdade que sadores para se colocarem como media-
a lei autoriza, mas não assegura. Não estão dores políticos, investindo na construção
se referindo à defesa dos direitos do indi- de relacionamentos capazes de tomar a
víduo diante dos poderes estabelecidos na forma de relação entre iguais.
sociedade, mas a uma determinada forma
de organização que conduz à participação Vários agentes externos operavam no as-
efetiva na sociedade (p. 24). sentamento: os das Comunidades Eclesiais
de Base da Igreja católica, os sindicalistas,
A idéia de democracia configura-se tam- os militantes de partidos políticos ou do
bém de forma particularizada: acontece MST e técnicos de estatais. Entretanto,
quando uma lei comum regida as relações como, segundo D’Incao e Roy, essas me-
entre contratantes, formalmente iguais diações estabeleciam uma intervenção pro-
diante dela. Referem-se a uma democra- gramada a partir da negação do que eram
cia que denominam de coletivista, comu- esses trabalhadores, não lhes forneciam os
nitária e popular que pressupõe pessoas meios para lidar com a liberdade a que eles
autônomas e possuidoras de direitos, só aspiravam quando se dispuseram a lutar
podendo ser alcançada se tiver como fon- pela conquista de uma terra. Conseqüen-
te os participantes do grupo, os atores so- temente, tenderiam a recolocá-los na situ-
ciais. A idéia foi construída em oposição à ação de dominados, reforçando seus limi-
democracia liberal que vem sendo aplica- tes em lugar de alargá-los.
da e que, por conceber os indivíduos fora
de suas condições reais de existência, faz Ao se decidirem pela construção da cida-
com que permaneçam presos às múltiplas dania no cotidiano dos trabalhadores pela
realidades coletivas que determinam sua interposição de sua presença, a posição
condição de dependência. Nesse sentido, assumida pelos autores é a de oposição aos
os autores consideram que as famílias e os que acreditam na neutralidade científica,
homens integrados na pesquisa “não são assim como aos pesquisadores que adotam
livres para não ser isso que eles são”. uma postura de observar, perguntar e es-
cutar. Em troca, propõem a prática do di-
Por conta dessa proposta, Maria Concei- álogo crítico na investigação social, onde a
ção D’lncao e Gerard Roy propõem-se a relação sujeito investigador e sujeitos da

Antropolítica Niterói, n. 3, p. 139-142, 2. sem. 1997

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investigação vai desempenhar um papel tro dessa perspectiva que Maria Concei-
importante, pois “o conhecimento do ou- ção D’lncao e Gerard Roy esperam que seu
tro ocorre ao mesmo tempo em que o pes- trabalho possa levar os formadores a “en-
quisador se deixa conhecer”. contrar o caminho para ajudar cada um
desses homens a conquistar sua autono-
Deslocando-se dos parâmetros convenci- mia”.
onais da prática de pesquisa, o trabalho
apresenta como característica a interven- A citação desses formadores – agentes so-
ção dos pesquisadores na vida pessoal dos ciais que vão fazer a mediação necessária
pesquisados – o que sempre boi planejado – conduz a outra observação sobre o livro.
– e a posterior intervenção no coletivo Os autores apresentam a confrontação
dessas pessoas e que, por não ter sido pro- entre ventos saberes, tinto dos sujeitos in-
grama, leva-os a viver o que denomina- vestigados como dos diversos agentes que
ram “uma situação experimental” (embo- operam no assentamento – igreja, técni-
ra a ausência desta última meta não consi- cos do governo, militantes do Movimento
ga convencer), na qual assumem a posi- Sem Terra etc. No decorrer do trabalho,
ção de mediadores políticos. todos eles vão sendo desqualificados à
medida que o saber dos autores vai sendo
Por tal deslocamento das intenções dos qualificado e concebido como o único ca-
autores, o objeto sobre o qual constroem paz de produzir as transformações no gru-
o texto do livro termina por configurar-se po estudado.
como a história da construção de uma
mediação concorrente no assentamento. Afirmações como “nós estamos perfeita-
mente conscientes de que é nossa media-
Uma outra característica do trabalho é seu ção que toma possível, nesta momento, esta
caráter interdisciplinar: para fundamen- atmosfera fusional” ou “nosso papel me-
tar a pesquisa no campo das ciências soci- diador nesse processo, como assegura-
ais utiliza-se do instrumental elaborado dores das regras de negociação democrá-
pela psiquiatria e por conceitos formula- tica~ evidentemente necessário” demons-
dos em outros campos do conhecimento. tram a valorização da sua perspectiva e que
Nesses termo, é através da abordagem de a intervenção no espaço social estudado,
Jean-Paul Sartre que os autores conside- percebida, intuída ou mesmo descoberta
ram o assentado como uma “situação” que em outros trabalhos na área das ciências
só se transforma em homem quando vi- sociais, no livro de Maria Conceição
vendo direcionado a um objetivo particu- D’Incao e Gerard Roy é explicitada como
lar. Conseqüentemente, como estabelecem meta a ser alcançada.
que a problemática individual funciona
como limite para a atuação na esfera soci- Mas eles não param aí: propõem-se uma
al, só quando se alcança autonomia como experiência de libertação do grupo, que seria
indivíduo pode-se pensar na construção conseguida pela sua interferência, pelo
de um contexto social democrático. É den- diálogo crítico praticado e que se apresenta

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como o caminho que “reenviaria os passa e que muitas vezes não é considera-
interlocutores a eles mesmos”. do como um dado a ser levado em conta
na análise, os autores apontam para vári-
O conjunto dessas “novidades” contidas no as direções de reflexão. Mesmo sem
livro faz com que a pesquisa, ao invés de sociologizar mudança e mediação e apre-
apresentar-se como relatório de um tra- sentando o assentamento como uma ilha,
balho científico, dê a impressão de consti- sem ligações com outros segmentos da so-
tuir-se em reflexões sobre uma vivência, ciedade, eles mostram as formas possíveis
ou mesmo tome a forma de narrativa de de mediação operando numa determina-
uma experiência de pesquisa e até de re- da situação, a internalização da domina-
latório de sessões de terapia de grupo. ção com reflexo direto na totalidade do
indivíduo, e, ainda e principalmente, o
De qualquer forma, num trabalho ousa- papel do pesquisador-mediador-interventor
do, com uma pesquisa de campo extensa, que eles tomam explícito já ao colocar
paciente e interessantíssima em que, com como título de sua conclusão “intervenção
honestidade, expõem os problemas de re- alienante e mediação libertadora”.
lacionamento que todo pesquisador social

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RESENHAS

Antropolítica Niterói, n. 2, p. 123-129, 1. sem. 1997

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AS NOITES DAS GRANDES FOGUEIRAS – UMA


HISTÓRIA DA COLUNA PRESTES,
DOMINGOS MEIRELLES
JOSÉ AUGUSTO DRUMMOND*
Domingos Meirelles passou vinte anos pre- Prestes quase implora por uma abordagem
parando este texto, equilibrando as de- romântica. O texto resiste bem a alguns
mandas de sua profissão de jornalista com percalços provocados pela sua “adesão
os requisitos de um trabalho mais pareci- simpática” aos tenentes. Meirelles explo-
do com o de historiador. O jornalista, por rou ao máximo toda a empiria e os regis-
definição, se absorve em assuntos canden- tros disponíveis, dialogou com a literatu-
tes do presente e enfrenta prazos de ho- ra, refletiu sobre as conexões e cronologi-
ras, dias ou, raramente, algumas poucas as dos eventos e pensou a fundo sobre a
semanas. O historiador focaliza o passado motivação dos atores históricos. Como se
e tem prazos de meses ou anos. Nesse diz, ele “esgotou o assunto”. É imprová-
alentado estudo sobre a Coluna Prestes, vel que qualquer conjunto porventura ain-
Meirelles mostra que combinou bem essas da inexplorado de fontes venha a deslo-
atividades distintas, ultrapassando em car as que foram usadas por Meirelles e
muito o chamado “jornalismo inves- seus antecessores no estudo da Coluna
tigativo” – o único no qual os jornalistas se Prestes. Igualmente, pouco ou nenhum
permitem ir além dos temas atuais e dos espaço existe na literatura para “revisões”
prazos curtos. Ele só não preencheu to- interpretativas radicais. Interpretações
dos os requisitos da “investigação históri- distintas das de Meirelles estão publicadas
ca” propriamente dita porque não quis. É há anos, algumas documentadas de for-
mais certo dizer que o autor praticou a “in- ma mais magra ou escritas com ímpeto
vestigação histórica”, mas preferiu escrever “revisionista” imaturo, outras registradas
como jornalista. Meirelles escreveu um com maior rigor analítico, outras ainda
“romance histórico” ou uma “história ro- com a perspectiva “diacrônica” (no trato
manceada”, descartando os cânones do da questão do “legado político” recebido
texto acadêmico. e transmitido pelos tenentes) ausente no
texto em questão.
O resultado é o melhor, mais legível e mais
completo relato sobre os episódios que O autor aborda o assunto em tom de ro-
compõem a Coluna Prestes. É o chama- mance, ou de relato “engajado”, aberta-
do livro definitivo. Ele foi feliz na escolha mente simpático aos protagonistas – os
da narrativa romanceada, pois a Coluna oficiais rebeldes do Exército e da Marinha

* Professor do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e


Ciência Política da UFF.

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de Guerra, os tenentes – e hostil aos seus grafia de depoimentos e participantes e
inimigos. Isso prende a atenção e desper- cita todos os textos de reconstituição e aná-
ta a emoção do leitor. Meirelles utiliza bem lise produzidos mais recentemente por
outro recurso de escrita: narra as dezenas historiadores, cientistas políticos e jorna-
de episódios como vinhetas um tanto sol- listas – embora não entre em debates com
tas que aos poucos se encaixam e se expli- interpretacões diferentes da sua.
cam. A atenção do leitor se renova a cada
início de episódio. Sua prosa é quase sem- Meirelles se interessou mais, no entanto,
pre clara, econômica e elegante, embora pelas fontes primárias, nas quais garimpou
por vezes se contamine pelos excessos cuidadosamente nomes, fatos, datas e lo-
“apaixonados” das fontes que parafraseia cais que lhe permitiram escrever as suas
– ao invés de transcrever. Ele não quis vinhetas coordenadas de forma tão eficaz.
atravancar o texto com excesso de aspas e Entrevistou (ou usou depoimentos pres-
acabou acolhendo o palavreado e as tados a terceiros) pelo menos 47 testemu-
entonações, nem sempre facilmente legí- nhas, participantes e estudiosos, em vári-
veis, dos depoimentos e documentos de os estados. Serviu-se de uma boa quanti-
muitas décadas atrás. No final, o texto de dade de arquivos particulares, inclusive o
Meirelles fica curiosamente (intencional- do coronel baiano Horácio de Matos, o mais
mente?) parecido com os excelentes rela- eficiente inimigo da Coluna Prestes. Con-
tos de dois participantes da Coluna Pres- sultou ainda documentos militares inédi-
tes, João Alberto Lins de Barros e Italo tos, documentos diplomáticos, anais par-
Landucci, escritos na década de 50, como lamentares, mensagens de governadores
um misto de memória política e recorda- e jornais de vários estados. Meirelles pa-
ções sobre a juventude, e com a preocu- rece ter sido o primeiro pesquisador a usar
pação de clareza e simplicidade. Se essa a preciosa documentação que registra os
foi a intenção de Meirelles, ele foi bem- processos judiciais a que foram submeti-
sucedido. Produziu um texto legível, que dos os rebeldes de São Paulo. Resta acres-
fala à razão, ao coração e ao prazer de ler. centar que o autor viajou a alguns lugares
As 700 páginas fluem instigantemente e por onde a Coluna passou, incorporando
sem cansar. ao texto suas observações pessoais sobre
flora, clima, topografia e paisagens natu-
Mas o escritor Meirelles também cumpriu rais, rurais e urbanas. Esse volume de
o seu “dever de casa” como pesquisador. fontes e seu uso criterioso dão um emba-
Perseguiu suas fontes – documentais, bi- samento factual muito forte ao texto que
bliográficas, iconográficas e testemunhais se quer “romanceado”. As ilustrações tam-
– como um profissional do ramo da histó- bém são boas, mas o mapa da marcha
ria. Com exceção do texto da historiadora merecia ser muito mais detalhado.
profissional Anita Leocádia Prestes, este
relato sobre a Coluna Prestes é o mais bem Tenho alguns destaques, ressalvas e obser-
documentado dentre todos os publicados vações críticas a fazer sobre pontos especí-
sobre o tema. Ele usa quase toda a biblio- ficos do livro. Em primeiro lugar, a deci-

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são de começar a narrativa pela rebelião civis de São Paulo e cidades vizinhas
de 1924, na cidade de São Paulo, foi mui- (p. 144).
to boa. Meirelles, assim, destaca e detalha
o feito politicamente mais importante de A simpatia do autor pelos rebeldes, fator
todo o movimento tenentista (mais que a maior do encanto do texto, causa pelo
própria Coluna Prestes): a quebra do con- menos um sério dano a sua análise. Ele se
trole governamental, por mais de vinte indigna com as mais rotineiras medidas
dias, sobre a maior cidade industrial do governamentais para a defesa da ordem
país, com a simpatia de grande parte da estabelecida. É certo que houve excessos
população civil. O autor faz ainda um re- e até crimes – como a tortura e o “degre-
lato dramático do criminoso e esquecido do” de presos políticos – cometidos pelos
bombardeio da cidade por canhões e avi- guardiães da ordem. Meirelles, no entan-
ões legalistas, ordenado pelos mais altos to, defende incondicionalmente os objeti-
chefes civis e militares do país. Os trechos vos tenentistas, como se a ordem vigente
sobre o levante e o bombardeio seriam tivesse obrigação de se render sem defesa,
suficientes para garantir a originalidade do como se a virtude autoproclamada dos
livro. rebeldes obrigasse os supostamente cor-
ruptos a renunciar de pronto. Aliás, em
Meirelles mostra também que o domínio nenhum momento Meirelles enfrenta a
rebelde da cidade de São Paulo foi quase espinhosa questão de fundo: o governo de
acidental e decorreu de ações risivelmen- Artur Bernardes, contra o qual se rebela-
te amadoras. Exibe os “pés de barro” dos ram os tenentes, era legal e legitimamente
seus heróis, mas narra os seus tropeções constituído de acordo com as regras aceitas pela
chaplinianos com invariável simpatia pelo sociedade política da época, inclusive pela
seu instinto desestruturador. No entanto, esmagadora maioria dos militares.
esses episódios revelam também um Bernardes surge como um “déspota”, mas,
despreparo dos rebeldes para as tarefas de na verdade, ele encarnava a ordem políti-
construção. Esse despreparo e outras evi- ca civil legitimamente estabelecida no país.
dências de irresponsabilidade política dos Não é realista nem saudável esperar que
tenentes (confiscos de recursos públicos, li- uma ordem política legítima se demita
bertação de presos, destruição de docu- perante os protestos moralistas – mesmo
mentos públicos), revelados ao longo do que fundamentados – dos seus opositores
texto, não merecem a crítica do autor. mais boquirrotos. “Gritar alto” não dá vir-
Meirelles se satisfaz com as alegações ju- tude política a ninguém.
venis e inflamadas dos rebeldes e não lhes
exige eficácia, nem mesmo para as tarefas Meirelles narra as origens do movimento
de rebelião e destruição. O máximo que tenentista em 1922 apenas no fim do tex-
faz é apontar a “indigência” e a “ingenui- to, dificultando a compreensão de todo o
dade” políticas dos tenentes, por exemplo, quadro de conspirações e rebeliões que ele
em seu relacionamento com autoridades tão bem descreve. Isso também ajuda a

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ocultar a legitimidade de Bernardes. Os esteja romanceando o passado. As possi-
tenentes – um pequeno segmento de jovens bilidades de ocorrer na São Paulo de 1924
oficiais do Exército e da Marinha – con- uma insurreição comunista remotamente
testaram a ordem e se levantaram em ar- parecida com a da Rússia de 1917 eram
mas contra ela. “Mereceram” a repressão. simplesmente nulas, mas o leitor nunca é
Elegeram-se juízes da política brasileira, informado sobre isso. Da mesma forma,
sem mandato ou sequer a adesão da maio- em vários trechos, Meirelles toma a sério
ria dos seus colegas de farda. Sabemos os os “planos” mais fantasiosos ou mesmo
prejuízos que a atitude “salvacionista” dos estapafúrdios dos rebeldes desnorteados
militares de qualquer época causa a uma e frustrados, como a da criação de uma
ordem política democrática e civilista. Os república independente no Mato Grosso
tenentes deram a sua contribuição para o (p. 212), ou uma brancaleônica “aliança”
enorme legado de arbítrio militar com que com garimpeiros de Mato Grosso (p. 598-
ainda nos debatemos. Como Meirelles se 599), ou a míope e teimosa expectativa de
deixa “capturar” pelo tempo dos fatos nar- adesões militares.
rados, ele nada tem a dizer sobre isso.
Aliás, pouquíssimas passagens “atualizam” Na página 225, em outro exemplo,
a análise de Meirelles, que preferiu Meirelles considera a mera criação de um
contextualizar seus temas quase que ex- perímetro de defesa no então remotíssimo
clusivamente em sua própria época, a dé- oeste do Paraná como um “novo hálito de
cada de 20. Ele “aprisionou”, de propósi- vida” para os combalidos rebeldes em fuga,
to, o seu texto na época dos fatos relata- pelo fato de a área ser, na expressão de
dos. Isso faz o texto mais atraente, porém um participante, “maior que a Suíça”. Ora,
dificulta a análise. Nesse aspecto também esse território, além de remoto, tinha va-
sua narrativa fica parecida com muitos lor militar mínimo: não possuía infra-es-
depoimentos dos personagens. trutura, agricultura, cidades, fábricas ou
sequer uma população significativa. Ou
Um outro problema analítico do texto – seja, o controle dele não foi grande amea-
também causado pela “simpatia” com o ça ao governo federal. Ser “maior que a
tenentismo – é que por vezes Meirelles Suíça” é uma verdade geográfica, mas
toma a sério demais as falas dos seus per- política e militarmente é apenas uma bra-
sonagens. Que o governo federal, ou os vata que não somou recursos para a re-
chefes rebeldes, ou as classes empresariais beldia. A tentativa de achar algum mérito
temessem que a rebelião militar em São na rocambolesca rebelião do encouraçado
Paulo descambasse para um “levante São Paulo vai pelo mesmo caminho de va-
bolchevista” (p. 74), por exemplo, é um lorizar demais as versões dos tenentes so-
dado importante e que afetou as ações dos bre as suas ações aventureiras.
personagens. No entanto, a fantasia dos
personagens não deve ser aceita acriti- A narrativa em vinhetas faz com que
camente pelo narrador, mesmo que este Meirelles por vezes introduza personagens

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importantes repentinamente – como o temiam um levante comunista, precisa-
próprio chefe supremo das rebeliões mente a falta de consciência de classe dos tra-
tenentistas, Isidoro Dias Lopes (p. 63) – balhadores seria a condição sine qua non
gerando bons efeitos dramáticos, mas tam- para que a sua adesão fosse aceita. Isidoro
bém algum “barulho” na fluência do seu evidentemente não daria armas para
texto. Outro líder relevante, João Fran- membros do incipiente PCB, mas Meirelles
cisco (ibidem), além de ser apresentado acaba embaralhando sua própria explica-
abruptamente, nunca é claramente iden- ção.
tificado como um caudilho civil ou coronel
gaúcho. Os dois tinham longos currículos Uma das contribuições mais importantes
de rebeldia no Rio Grande do Sul, fato al- do livro é o registro cuidadoso de dezenas
tamente significativo – mas infelizmente de levantes e/ou conspirações militares que
pouco explorado – para a visão de ocorreram em muitos pontos do Brasil –
Meirelles sobre as origens da Coluna Pres- paralelamente ao “eixo principal” da re-
tes. Outros personagens importantes têm belião em São Paulo, depois no Rio Gran-
suas biografias igualmente truncadas e o de do Sul, e finalmente, na Coluna Pres-
texto, assim, perde algumas boas oportu- tes. O autor dá o local, a data, os conspi-
nidades. Há uma inegável eficácia dra- radores, a abrangência e o destino final de
mática em apresentar um personagem todas essas conspiratas e rebeldias. A mais
importante de forma abrupta, para mais dramática e atípica foi a de Cleto Campelo,
tarde revelar o seu status verdadeiro, mas em Pernambuco, envolvendo quase exclu-
em algumas poucas passagens esse recur- sivamente ferroviários, numa aventureira
so provoca mais confusão do que emoção fuga de trem do litoral para o sertão. Ape-
no texto de Meirelles, talvez pelo grande sar do fracasso completo de todas essas
número de personagens envolvidos. O conspiratas – a Coluna Prestes nunca re-
objetivo maior de Meirelles – um texto cebeu a adesão de militares rebelados do
atraente – exigia um pouco mais de cui- Exército – boatos ou notícias sobre elas de
dado na introdução e na identificação dos fato influenciaram as atitudes e as decisões
personagens. dos principais chefes rebeldes, mostrando
bem que o seu maior desejo era ampliar a
Depois de explicar bem a intrigante deci- mobilização militar, independentemente
são inicial dos chefes rebeldes em São Pau- de apoio ou rebeldia civil. Essa longa sé-
lo de aceitar adesões (remuneradas) de rie de rebeliões demonstra ainda o precá-
imigrantes europeus e de rejeitar as de rio grau de unidade do Exército e sua li-
trabalhadores brasileiros, Meirelles, na mitada capacidade de defesa da ordem,
página 136, confunde a questão. Ele in- atestando que Bernardes esteve certo – o
forma que os rebeldes finalmente aceita- que Meirelles não reconhece – em usar po-
ram a adesão de operários brasileiros, lícias militares estaduais e forças civis irre-
apesar de a “grande maioria” não ter gulares para combater a Coluna Prestes.
“consciência de classe”. Ora, se os rebeldes

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Meirelles persegue pelo menos dois temas patia, apesar da prática covarde das “de-
“de época”, cuja ligação com a Coluna golas” prisioneiros. Quando se trata dos
Prestes é tênue demais para merecer tan- inimigos civis dos tenentes, porém, princi-
ta atenção. As pressões inglesas pela aber- palmente os do Nordeste, muda o tom: os
tura e privatização da nossa economia, e a líderes viram execráveis e corruptos “co-
influência política dos bicheiros cariocas ronéis” e os liderados se tornam desprezí-
são dois assuntos explorados muito mais veis e sanguinários “jagunços” ou “cães de
por sua discutível “atualidade” do que pela caça”. Ora, os civis gaúchos (rebeldes) e
relevância para o tema principal do texto. nordestinos (defensores da ordem) arma-
Mesmo que Meirelles provasse que Ber- dos representam exatamente o mesmo fenô-
nardes se dobrou às pressões inglesas (o meno social: donos de terra, cujo grande
que não aconteceu) e que ele se beneficia- poder privado extrapola e penetra no
va pessoalmente de dinheiro do jogo do poder público através da arregimentação
bicho (o que ele não afirma), isso pouco de exércitos privados de agregados e pa-
acrescentaria às motivações e ações rebel- rentes. Meirelles, no entanto, adere par-
des dos tenentes. Além do mais, nos anos tidariamente à antipatia de todos depoen-
seguintes, e até hoje, Bernardes tornou- tes da Coluna pelos chefes nordestinos
se um dos “arcebispos” do movimento na- (contrários à rebeldia) e à exaltação dos
cionalista brasileiro, que incluiu muitos dos chefes gaúchos (só os rebeldes), sem per-
seus antigos desafetos, inclusive alguns te- ceber que os dois grupos são do mesmo
nentes. Nessas analogias entre temas se- veio na estrutura social e política do país.
melhantes de décadas muito distantes en- Nesse tema, mesmo criticando o regiona-
tre si, Meirelles confundiu a contex- lismo dos libertadores gaúchos, exibe o seu
tualização do seu tema com a antiguidade maior grau de parcialidade como analista.
de certas questões que parecem apenas
atuais. Os melhores momentos do livro – Meirelles desencava pioneiramente e com
amplamente majoritários – são mesmo os detalhes originais um episódio negro da
que focalizam a rebelião e as marchas dos repressão política brasileira: o “desterro”
tenentes. de prisioneiros políticos e comuns para
Clevelândia, no Amapá. Civis, soldados e
Um outro tropeção analítico causado por suboficiais rebeldes, além de criminosos
sua simpatia pelos tenentes rebeldes apare- comuns do Rio, escolhidos de forma apa-
ce na análise de seus aliados e inimigos ci- rentemente aleatória, sofreram um vergo-
vis. Meirelles derrama suas simpatias pe- nhoso e letal cortejo de maus-tratos num
los líderes civis dos libertadores gaúchos, rincão remoto do país, aparentemente ao
aliados dos tenentes, chamando-os cerimo- arrepio da legislação de exceção em vigor.
niosamente de “caudilhos” ou “chefes” e O detalhe importante de que nenhum ofi-
elogiando a bravura dos seus vistosos ata- cial militar ou político civil importante foi
ques de cavalaria, e até suas vestimentas; enviado para lá não foi explicitamente
seus liderados são também vistos com sim- notado pelo autor. Ao que parece, nenhu-

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ma autoridade civil ou militar jamais foi los vinte anos de gestação do texto – de
administrativa ou judicialmente punida ler todos os documentos, ouvir todas as
por esse desterro. falas e ponderar sobre todas as interpre-
tações, reescrever tudo da forma mais le-
Previsivelmente, a interpretação implícita gível e – espero – pôr o assunto para “des-
de Meirelles sobre a Coluna Prestes é igual cansar” por um bom tempo. O livro me-
à mais tradicional, divulgada ainda em rece – e eu desejo que ele tenha – o mais
1933, por Virgínio Santa Rosa, outro sim- completo sucesso editorial, comercial e de
patizante dos rebeldes: os tenentes teriam crítica.
expressado os anseios renovadores de se-
tores sociais civis emergentes ou margina- Falta agora, para completar o resgate da
lizados. Essa visão “civilista” dos tenentes memória da Coluna Prestes, um bom fil-
foi mais recentemente contestada por vá- me, que chegará (?) já com décadas de atra-
rias interpretações que destacam o seu so. Que os roteiristas e cineastas brasilei-
militarismo, mas Meirelles não se ocupa ros se mobilizem, antes que Steven
com polêmicas interpretativas. Coube-lhe, Spielberg compre os direitos e inicie as fil-
no entanto, o privilégio – propiciado pe- magens...

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OS SERTÕES: DA CAMPANHA DE CANUDOS,


EUCLIDES DA CUNHA; O SERTÃO PROMETIDO:
MASSACRE DE CANUDOS NO NORDESTE
BRASILEIRO, ROBERT M. LEVINE
TEREZINHA MARIA SCHER PEREIRA*

Há exatamente cem anos foi enviada a pri- títulos que têm Canudos como referência.
meira expedição miliciana ao sertão de Ca- Destacando dois desses lançamentos, to-
nudos, na Bahia, para pôr fim à cidade memos primeiramente a 36ª edição de Os
santa, onde o beato Antônio Conselheiro Sertões, pela Francisco Alves, a editora cam-
pregava a crença milenarista da transfor- peã da publicação da obra-prima de
mação do mundo injusto em um paraíso. Euclides da Cunha. Por ocasião da publi-
A primeira expedição foi derrotada pelos cação da Edição crítica de Os Sertões – um
conselheiristas e a ela se seguiram mais fabuloso trabalho de organização feito por
duas – dessa vez formadas por tropas re- Wa l n i c e N o g u e i r a G a l v ã o – p e l a
gulares do Exército brasileiro – que tive- Brasiliense em 1985, a Editora Francisco
ram idêntico destino. Alves era responsável por 29 das 32 edi-
ções existentes desta que, sem dúvida,
O mito em torno do sertão distante, habi- pode ser considerada a mais importante
tado por jagunços fanáticos, tidos como obra mista de épico e ensaio da literatura
monarquistas, cresceu em todo o país, jun- brasileira.
tamente com o terror e o repúdio das
idéias consideradas primitivas, contrárias, A reedição de 1995, além da introdução
portanto, ao progresso republicano. Final- de Walnice Nogueira Galvão, traz ainda
mente foi organizada a quarta expedição, um eficaz comentário da pesquisadora
formada por um contingente de seis mil Terezinha Marinho, além de reproduções
soldados, divididos em 25 batalhões de li- fotográficas obtidas da caderneta de ano-
nha e cavalaria, com armas sofisticadas à tações do próprio Euclides da Cunha.
época, como os canhões Krupp, tudo isso
para destruir de vez Canudos, o que ocor- Retomar a leitura de Os Sertões, nos dias
reria em outubro de 1897. de hoje, pode funcionar como um dos
exercícios possíveis e preliminares da com-
Em 1995, às vésperas do centenário desse plexa tarefa de interpretar o Brasil. Não
que pode ser considerado um dos mais im- precisamos, por ora, considerar o estatuto
portantes episódios de guerra civil do país, ficcional da obra – a primeira a retratar,
o mercado editorial foi contemplado por sem idealizações, o espaço sertanejo, de-

* Professora do Departamento de Letras e do Mestrado em Letras da UFJF.

Antropolítica Niterói, n. 2, p. 131-135, 1. sem. 1997

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pois das tentativas românticas e naturalis- que culminaram, cinco anos depois do
tas. Também não é preciso reiterar que Os fato, em 1902, na publicação de Os Sertões.
Sertões abre caminho para a outra verten- Nos cinco anos que se seguiram ao fim de
te possível de codificação do espaço regio- Canudos, Euclides – que tinha sido envia-
nal: a alegórica, empreendida por João do por um jornal republicano para cobrir
Guimarães Rosa. a guerra – elaborou sofridamente as ano-
tações feitas no calor da hora da batalha.
Basta lembrar que, um século depois do
conflito de Canudos, o drama inventariado Analisar detidamente fatos a que presen-
por Euclides não cessa de se repetir no ciara fez com que o escritor se defrontasse
Brasil. Exemplo disso são os massacres com a amarga frustração de seus anseios
constantes que se apresentam como juvenis e com o abalo de idéias que o ti-
respostas, tanto aos movimentos reivindi- nham norteado até então. O resultado
catórios organizados dos sem-terra, quan- dessa experiência reflexiva, que acabou
to à população miserável e marginalizada por incluir uma revisão de valores, está nas
das cidades. páginas carregadas de dramaticidade de
Os Sertões, escritas sempre com um rigor
A interpretação de Canudos, nesse contex- apaixonado.
to, permanece contemporânea. A ambigüi-
dade estrutural do romance – que se ori- Para além da sempre referida qualidade
ginou do desejo de denunciar o atraso do literária, da correção do estilo e da eviden-
que seria a vida sertaneja e culminou na te preocupação com o rendimento da lin-
condenação da República que deveria re- guagem (este traço, segundo Alfredo Bosi,
presentar a modernidade – é correlata à indica o pré-modernismo de Os Sertões), é
ambigüidade cultural de um Brasil moder- preciso notar o maior mérito da obra.
no e outro arcaico. Estamos nos referindo à ambivalência que
decorre do ponto de vista de Euclides,
Até hoje o Brasil condena Canudos de sempre oscilando entre a missão de defen-
duas maneiras: exorcizando o atraso e der os ideais republicanos e a crescente
execrando a truculenta solução dos que admiração pelos sertanejos. Tendo inicia-
detêm o poder. O fantasma de Canudos do o relato, seguindo os valores positivistas
continua, portanto, a interferir na nossa e evolucionistas de sua formação intelec-
história. Por isso, as diversas reedições da tual, o escritor termina por denunciar o
obra são atuais e necessárias. crime perpetrado pela República contra
os excluídos da “modernidade” do sul do
Para apresentar a reedição atual retome- país.
mos, ainda que brevemente, alguns tópi-
cos de Os Sertões. Comecemos pelas rela- O leitor pode perceber que, mesmo com a
ções preliminares de Euclides da Cunha possível atenuação das emoções vividas no
com o fenômeno da guerra de Canudos, momento da escrita, Euclides não disfar-

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ça sua indignação diante de cenas como a volta do absolutismo. Para uma pessoa de
da degola dos prisioneiros, ordenada pelo princípios como Euclides, deve ter sido
comando das tropas republicanas. muito duro ter que admitir que a insani-
dade poderia estar instalada no regime
Observem-se os fragmentos seguintes: pelo qual ele lutara durante toda a vida.

A degolação era, por isso, infinitamente Contemplar, quase cem anos depois, o dra-
mais prática, dizia-se nuamente. Aquilo não ma de Canudos, através da peça arquite-
era uma campanha, era uma charqueada.
tada por Euclides da Cunha em Os Sertões,
Não era a ação severa das leis, era vingan-
ça. Dente por dente. (...) Ademais, não ha- faz com que ressurjam traumas históricos
via temer-se o juízo tremendo do futuro. A até hoje não resolvidos. Como o da insta-
história não iria até ali (...) Nada tinha a lação do regime republicano no país, re-
ver naquele matadouro. (p. 381-382). forçado pelo desejo desesperado de parte
das elites de portarem, pelo menos, uma
A última frase do livro refere-se ironica- aparência de modernidade. A República
mente ao capítulo anterior, que trata da nasceu em meio à disputa pelo poder, de
decapitação de Antônio Conselheiro, com um lado, pelos positivistas que viam nela
a finalidade de se enviar sua cabeça para o progresso; de outro, pelas elites oligár-
análise e diagnóstico de sua loucura. O quicas ultraconservadoras.
médico Nina Rodrigues – professor de
medicina legal e forense da Faculdade de De qualquer modo, o governo republica-
Medicina da Bahia, conhecido por suas no estava longe de conhecer e, muito me-
teses sobre “contágio messiânico” e “cons- nos, de resolver os anseios populares da
tituição epidêmica da loucura” –, encar- nação. A rigor, excluindo-se a capital e ci-
regado de examinar o crânio de Conse- dades mais importantes, o resto do país
lheiro, espantou-se ao não encontrar nele vivia praticamente relegado à própria sor-
nada de anormal. Euclides da Cunha, ao te. O desespero que tomou conta das ci-
perceber que crime mesmo tinha sido o dades do Rio de Janeiro e São Paulo, du-
da República chauvinista “do sul”, fecha rante o episódio da guerra de Canudos –
Os Sertões com uma única e concisa frase: o primeiro do tipo a ser completa e avida-
“É que não existe um Maudsley para as mente coberto pela imprensa, através do
loucuras e os crimes das nacionalidades” telégrafo – mostra que o desconhecimen-
(p. 409). to da realidade rural e interiorana era
completo na vida urbana.
Antes da experiência da guerra, Euclides
via Canudos com outros olhos. Chegou Essa “visão do litoral” – expressão criada
mesmo a comparar a insurreição com a pelo historiador norte-americano Robert
acontecida em Vendéia, na França, onde Levine em seu livro O sertão prometido: o
camponeses se revoltaram contra os ide- massacre de Canudos – é, em parte, respon-
ais da Revolução Francesa e clamaram pela sável pela tragédia de Canudos, uma das

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páginas mais sangrentas da história da for- toritária” da sociedade brasileira que, nos
mação social brasileira. estertores do século XIX, se caracterizou
por conflitantes tensões envolvendo aqui-
Robert M. Levine faz uma leitura muito lo que foi convencionalmente designado
eficiente da questão de Canudos e do pa- por “litoral” e “hinterlândia”, segundo
pel que nela exerceu o brilhantismo de concepções interessadas em definir a
Euclides da Cunha. A proposta do estudo integração de tais espaços socioeco-
de Levine é perceptível logo no início das nômicos.
345 páginas escritas de maneira a não per-
mitir o abandono da leitura antes do fim. Levine ainda se refere à importância do
Trata-se de uma reavaliação de Canudos pensamento mágico no “interior”, dado
e do Conselheiro de modo a incidir criti- que, aliado à religiosidade, propiciou prá-
camente sobre as bases da História da Re- ticas e cultos que funcionam como solução
pública do Brasil. para os marginalizados em desespero.

O autor faz, como historiador, um percur- Canudos, segundo o historiador, funcio-


so pela História do Brasil, mas é muito nou ainda como o bode expiatório para o
agradável também acompanhá-lo em seu governo de Prudente de Morais que não
trajeto geoespacial. Seu interesse pela ge- ia bem e sofria pressões dos jacobianos
ografia sertaneja e, mais amplamente, pelo florianistas.
espaço brasileiro o faz quase rivalizar-se com
Euclides da Cunha nesse aspecto. O histo- O drama de Canudos, diz Levine, não ces-
riador percebe ainda a dimensão teatral sa de ecoar ainda hoje. Como precisamen-
de Os Sertões e o teor mito-dramático do te nota Nélida Piñon – que escreve o texto
episódio em si. Conjugando com maestria de apresentação de O sertão prometido – ,
estas duas constatações, torna sua análise apenas parcial e tortuosamente se cumpriu
uma das mais lúcidas remontagens da uma das profecias de Antônio Conselhei-
questão de Canudos. A obra de Levine tem ro. O sertão de Canudos “virou mar” de-
ainda o mérito de apontar para a varieda- vido à construção de uma represa no lo-
de das causas do fato histórico da guerra. cal. Nos anos 70, a vila foi inundada, e uma
Nova Canudos construída em local próxi-
Reunindo alguns fatores que teriam pro- mo. No entanto, a vida dos miseráveis da
piciado o acontecimento, o autor destaca região (e de outras tantas do Brasil) pou-
os fatores culturais, relacionados à história co mudou desde a época em que o Conse-
luso-brasileira com destaque para o lheiro perambulava por lá. Talvez seja por
sebastianismo, surgido no bojo da heran- isso que, ainda hoje, importa muito refle-
ça judaico-cristã. Os fatores históricos são tir sobre episódios como este.
relativos à questão da “modernização au-

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA, Euclides da. Os sertões : da campanha de Canudos. 36. ed. Rio de Janeiro :
F. Alves, 1995.
LEVINE, Robert M. O sertão prometido : massacre de canudos no Nordeste Brasileiro.
Tradução de Mônica Dantas. São Paulo : EDUSP, 1995.

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NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS


APRESENTAÇÃO

1. A revista Antropolítica, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência


Política da UFF, aceita originais de artigos e resenhas de interesse das Ciências Soci-
ais e de Antropologia e Ciência Política em particular.
2. Os textos serão submetidos aos membros do Conselho Editorial e/ou a pareceiristas
externos, que poderão sugerir ao autor modificações de estutura ou conteúdo.
3. Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8 páginas, no caso
das resenhas. Eles devem ser apresentados em duas cópias impressas em papel A4
(210 x 297mm), espaço duplo, em uma só face do papel, bem como em disquete no
programa Word for Windows 6.0, em fontes Times New Roman (corpo 12), sem
qualquer tipo de formatação, a não ser:
• indicação de caracteres (negrito e itálico);
• margens de 3cm;
• recuo de 1cm no início do parágrafo;
• recuo de 2cm nas citações; e
• uso de itálico para termos estrangeiros e títulos de livros e periódicos.
4. As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre parênteses, com
as seguintes informações: sobrenome do autor em caixa alta; vírgula; data da publi-
cação; vírgula; abreviatura de página (p.) e o número desta.
(Ex.: PEREIRA, 1996, p. 12-26).
5. As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão ser apresentadas
no final do texto.
6. As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do texto, obedecen-
do às normas da ABNT (NBR-6023).
Livro:
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. 2. ed. São Paulo :
Abril Cultural, 1978. 208 p. (Os Pensadores, 6)
LÜDIKE, Menga, ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação : abordagens qualitativas.
São Paulo : EPU, 1986.
FRANÇA, Junia Lessa et al. Manual para normalização de publicações técnico-científicas. 3.
ed. rev. e aum. Belo Horizonte : Ed. da UFMG, 1996, 191 p.
Artigo:
ARRUDA, Mauro. Brasil : é essencial reverter o atraso. Panorama da Tecnologia, Rio de
Janeiro, v. 3, n. 8, p. 4-9, 1989.

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Trabalhos apresentados em eventos:
AGUIAR, C. S. A. L. et al. Curso de técnica da pesquisa bibliográfica : programa-padrão
para a Universidade de São Paulo. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO, 9., 1977, Porto Alegre. Anais... Por-
to Alegre : Associação Rio-Grandense de Bibliotecários, 1977. p. 367-385.
7. As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa reprodução gráfica.
Elas deverão ser identificadas com título ou legenda e designadas, no texto, como
figura (Figura 1, Figura 2 etc.).
8. Os textos deverão ser acompanhados de resumo em português e inglês, que não
ultrapasse 250 palavras, bem como de 3 a 5 palavras-chave também em português e
em inglês.
9. Os textos deverão ser precedidos de identificação do autor (nome, instituição de
vínculo, cargo, título, últimas publicações etc.), que não ultrapasse 5 linhas.
10. Os colaboradores terão direito a cinco exemplares da revista.
11. Os originais não aprovados não serão devolvidos.
12. Os artigos, resenhas e demais correspondência editorial deverão ser enviados para:
Comitê Editorial da Antropolítica
Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política
Campus do Gragoatá, Bloco “O”
24210-350 – Niterói, RJ
Tels.: (021) 620-5194 e 719-8012

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PB

COLEÇÃO ANTROPOLOGIA E
CIÊNCIA POLÍTICA
Os fornecedores de cana e o A predação do social (3)
Estado intervencionista (1) ARI DE ABREU SILVA
DELMA PESSANHA NEVES 1997. 308 P.
1997. 384 P.
R$ 24,00
R$ 26,00 Focaliza conseqüências de decisões
A autora brinda o leitor com con-
políticas na área socal brasileira,
tribuições ainda pouco discutidas
em particular, no setor sanitário,
pelos antropólogos, ao considerar
analisando os efeitos dos gastos
a especificidade da experiência
definidos para área. Consiste em
social e política dos fornecedores
explicar por que o processo polí-
de cana. Apresenta, também, com
tico brasileiro caracteriza-se como
incomum riqueza de detalhes e
altamente predatório, dilapidador
sob uma instigante démarche antro-
e ineficiente com relação aos gas-
pológica, o processo de constru-
tos públicos em geral.
ção social e política dos fornece-
dores de cana. Assentamento rural: reforma
Devastação e preservação agrária em migalhas (4)
ambiental no Rio de Janeiro DELMA PESSANHA NEVES
(2) 1997. 440 P.
JOSÉ AUGUSTO DRUMMOND R$ 28,00
1997. 306 P. Analisa o processo de mudança de
R$ 24,00 posição social de trabalhadores
Narra e avalia os diferentes usos rurais assalariados para produto-
que as terras florestadas flumi- res mercantis, no quadro de apli-
nenses sofreram, desde os anôni- cação do PNRA – Plano Nacional
mos povos indígenas construtores de Reforma Agrária (1985) –,
dos sambaquis até a moderna ca- transformação possível diante da
feicultura comercial. As caracterís- falência e da desapropriação da
ticas naturais e sociais de cada um área agrícola de uma das usinas da
dos parques nacionais fluminenses região Açucareira de Campos, Es-
– Itatiaia, Serra dos Órgãos, Tijuca tado do Rio de Janeiro.
e Serra da Bocaina – também são
analisadas nesta obra.

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A antropologia da academia: cá-la e classifica os municípios do


quando os índios somos nós Estado do Rio de Janeiro, bem
como os bairros de Niterói e da
(5) capital do estado de acordo com a
ROBERTO KANT DE LIMA conceituação e a medição corres-
2. ED. 1997. 65 P. pondente. Um estudo útil para a
R$ 10,00 implementação de políticas sociais.
Pretende discutir algumas ques- Indicado para funcionários da
tões relativas ao tema do colonia- administração pública interessa-
lismo cultural, em particular no dos em questões sociais, plane-
que se refere à possibilidade da jadores urbanos e regionais, estu-
produção de um conhecimento dantes universitários e cidadãos
antropológico capaz de descober- interessados na situação de sua ci-
tas esclarecedoras no âmbito da in- dade. Trata-se de um trabalho pi-
terpretação de países do Terceiro oneiro na utilização da meto-
Mundo e, em especial, do Brasil. dologia quantitativa para a medi-
ção da qualidade de vida em mu-
Jogo de corpo (6)
nicípios brasileiros.
SIMONI LAHUD GUEDES
1997. 355 P. Pescadores de Itaipu — meio
R$ 28,00 ambiente, conflito e ritual no
Jogo de corpo é um livro que se ins-
creve na temática da cultura da
litoral do Estado do Rio de
classe trabalhadora. Procura arti- Janeiro (8)
cular, a partir de trabalho etnográ- ROBERTO KANT DE LIMA
fico, as concepções de homem e 1997. 333 P.
trabalhador, enfocando o proces- R$ 30,00
so de construção social de traba- Inaugurando a série A Pesca no
lhadores e, por essa via, de uma Estado do Rio de Janeiro, Pesca-
forma particular de construção da dores de Itaipu – meio ambiente, con-
pessoa. flito e ritual no litoral do Estado do
Rio de Janeiro retrata a praia de
A qualidade de vida no Esta- Itaipu (Niterói, RJ) em um passa-
do do Rio de Janeiro (7) do não muito distante e faz uma
ALBERTO CARLOS ALMEIDA breve avaliação das mudanças
1997. 128 P. ocorridas.
R$ 12,00
Define o que é qualidade de vida,
escolhe indicadores para quantifi-

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PB

Sendas da transição (9) tória política brasileira, mais pre-


SYLVIA FRANÇA SCHIAVO cisamente, da história do período
1997. 178 P. de 1946 a 1964, com base em de-
R$ 15,00 talhada interpretação de fontes
Uma contribuição ao estudo do secundárias, atas de reuniões de
campesinato parcelar, tão a gosto ministros da República e depoi-
de inúmeros antropólogos que, na mentos biográficos.
década de oitenta, buscaram o
Um abraço para todos os
meio rural como lugar de refle-
xão sobre as mudanças que muito amigos: algumas considera-
rapidamente sacudiam o campo ções sobre o tráfico de dro-
brasileiro. gas no Rio de Janeiro (12)
ANTÔNIO RAFAEL
O pastor peregrino (10) 1998. 178 P.
ARNO VOGEL R$ 16,00
1997. 300 P. Uma investigação acerca do tráfi-
R$ 26,00 co de drogas no Rio de Janeiro,
O autor analisa o ritual da primei- em especial aquele que é imple-
ra visita do Papa João Paulo II ao mentado no interior das favelas
Brasil, revelando ao público aca- cariocas.
dêmico e ao leitor interessado na
Baseado em dados colhidos em
questão religiosa, no Brasil, as
trabalho de campo realizado nos
implicações simbólicas e sociológi-
anos de 1995 e 1996, analisa as
cas desse acontecimento.
características infraccionais dos
grupamentos que atuam no tráfi-
co nas comunidades. Um estudo
Presidencialismo, parlamen- corajoso sobre um dos temas mais
tarismo e crise política no polêmicos da atualidade.
Brasil (11)
Antropologia – escritos exu-
ALBERTO CARLOS ALMEIDA
1998. 251P. mados-1. Espaços circunscri-
R$ 22,00 tos – tempos soltos (13)
Trata-se de importante contribui- L. DE CASTRO FARIA
ção para a compreensão de situa- 1988. 286 P.
ções da crise política, bem como R$ 18,00
para o entendimento do golpe de Apresenta ao público leitor de An-
64. O autor faz uma análise da his- tropologia no Brasil o conjunto

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dos textos escritos e de programas elas de fato dramatizam em rela-
de curso ministrados pelo autor. ção às formas de controle social e
Professor Emérito da UFRJ e da de resolução de conflitos existen-
UFF, ao longo de seus 85 anos, tes na sociedade brasileira.
mais de 60 deles dedicados à ati-
vidade acadêmica ininterrupta,
O Brasil no campo de futebol
Castro Faria publica seu primeiro (16)
livro. SIMONI LAHUD GUEDES
Uma ótima leitura para aqueles 1998. 136 P.
que se propõem a pesquisar a his- R$ 12,00
tória do pensamento social brasi- Enfoca o futebol como operador
leiro e a da Antropologia. da identidade nacional brasileira,
analisando a forma como ele se
Violência e racismo no Rio de transforma em veículo para o de-
Janeiro (14) bate sobre características do povo
JORGE DA SILVA brasileiro. Discute também os sig-
1998. 249 P. nificados do futebol na vida dos
trabalhadores urbanos e seu lu-
R$ 22,00
gar no processo de socialização
Produto de esforço teórico e aca-
masculina através de estudo reali-
dêmico, é sobretudo uma contri-
zado numa escolinha de futebol.
buição prática para os estudiosos
da questão racial e da violência, Modernidade e tradição:
bem como para os formuladores
de políticas públicas destinadas à
construção da identidade
melhoria da qualidade de vida da social dos pescadores de
população, relacionadas com a Arraial do Cabo (RJ) (17)
violência e a segurança pública e ROSYAN CAMPOS DE CALDAS BRITTO
ao público de modo geral. 1998. 265 P.
R$ 15,00
Novela e sociedade no Brasil
Uma etnografia da vida social e econômi-
(15)
ca dos pescadores de Arraial do Cabo.
LAURA GRAZIELA FIGUEIREDO FERNANDES
Instigante análise para a compre-
GOMES
ensão da pesca enquanto ativida-
1998. 137 P. de econômica de nosso país e de
R$ 15,00 nosso Estado. Traz uma relevante
Destaca o objeto das narrativas contribuição teórica para demons-
telenovelísticas e explicita o que trar as transformações das socie-

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dades tradicionais frente à moder- gica, Arqueologia, Etnologia e dos
nidade. estudos de cultura material.
Resgata dimensões da trajetória
As redes do suor: a reprodu- do autor pouco evidentes para
ção social dos trabalhadores aqueles que já o conheceram en-
da pesca em Jurujuba (18) volvido com pós-graduação, estu-
LUIZ FERNANDO DIAS DUARTE dos de Antropologia social e his-
1999. 289 P. tória da produção intelectual.
R$ 15,00
As redes do suor resulta de pesqui- Seringueiros da Amazônia:
sa sobre os processos de identifi- dramas sociais e o olhar an-
cação implicados na diferenciação tropológico (20)
pelo trabalho na pesca em Ju- ELIANE CANTARINO O’DWYER
rujuba. É um dos raros trabalhos 1998. 231 P.
a lidar com essa problemática no R$ 22,00
contexto urbano moderno brasi- O livro descreve uma viagem pe-
leiro. ricial ao alto rio Juruá, no Estado
A descrição etnográfica da vida de do Acre, solicitada pela Procura-
um bairro popular e das diversas doria Geral da República para in-
formas do trabalho na pesca nos vestigar denúncias sobre trabalho
leva à discussão das questões cen- escravo. O levantamento antropo-
trais da mudança e modernização lógico é feito no contexto de ame-
em nosso país. aças contra os membros do Con-
selho Nacional dos Seringueiros,
Antropologia – escritos exu- praticamente um ano depois do
mados – 2: dimensões do co- assassinato de seu líder Chico
nhecimento antropológico Mendes. Através dos testemunhos
(19) dos seringueiros, pode-se consta-
tar, in loco, formas de violação das
L. DE CASTRO FARIA
liberdades pessoais e de constran-
1999. 424 P.
gimento ilegal perpetradas contra
O segundo volume de Antropolo-
as populações seringueiras pelos
gia – escritos exumados apresenta a
chamados patrões dos seringais.
produção de L. de Castro Faria
nas áreas de Antropologia Bioló-

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Práticas acadêmicas e o en- a autora, existe uma fórmula, cuja


sino universitário: uma etno- função é, de um ponto de vista
externo ao campo jurídico, persu-
grafia das formas de consa- adir aqueles a quem é dirigida; e,
gração e transmissão do sa- de um ponto de vista interno, dis-
ber na universidade (21) tinguir os profissionais deste ofí-
PAULO GABRIEL HILU DA ROCHA PINTO cio, atribuindo-lhes ou não pres-
1999. 244 P. tígio.
Um trabalho relevante, não só
Angra I e a melancolia de
pela sua singularidade, como tam-
bém pela abrangência e fôlego uma era: um estudo sobre a
com que foi concebido e realiza- construção social do risco (23)
do. Constitui-se em fonte segura GLÁUCIA OLIVEIRA DA SILVA
de subsídios para a compreensão 1999. 284 P.
de nossas instituições universitá- R$ 20,00
rias e acadêmicas. A originalidade deste livro reside
na etnografia pioneira da única
“Dom”, “Iluminados” e “Fi- usina nuclear existente no Brasil
gurões”: um estudo sobre a na época e na construção de uma
representação oratória no antropologia do trabalho em situ-
Tribunal do Júri do Rio de ação de risco.
Janeiro (22) Instigante, dominando a literatu-
ra sobre trabalho, comunidade,
ALESSANDRA DE ANDRADE RINALDI
risco e meio ambiente, é uma das
1999. 107 P.
contribuições mais notáveis para
R$ 12,00
uma sociologia do drama vivido
Busca compreender a representa-
pelos trabalhadores e empregados
ção da oratória do Tribunal do
do nuclear.
Júri no Rio de Janeiro. Segundo

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NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS


APRESENTAÇÃO

1. A revista Antropolítica, do Programa de Pós-Graduação em Antropo-


logia e Ciência Política da UFF, aceita originais de artigos e resenhas
de interesse das Ciências Sociais e de Antropologia e Ciência Políti-
ca em particular.
2. Os textos serão submetidos aos membros do Conselho Editorial e/
ou a pareceristas externos, que poderão sugerir ao autor modifica-
ções de estutura ou conteúdo.
3. Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8
páginas, no caso das resenhas. Eles devem ser apresentados em duas
cópias impressas em papel A4 (210 x 297mm), espaço duplo, em
uma só face do papel, bem como em disquete no programa Word
for Windows 6.0, em fontes Times New Roman (corpo 12), sem
qualquer tipo de formatação, a não ser:
• indicação de caracteres (negrito e itálico);
• margens de 3cm;
• recuo de 1cm no início do parágrafo;
• recuo de 2cm nas citações; e
• uso de itálico para termos estrangeiros e títulos de livros e perió-
dicos.
4. As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre
parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em
caixa alta; vírgula; data da publicação; vírgula; abreviatura de pági-
na (p.) e o número desta.
(Ex.: PEREIRA, 1996, p. 12-26).
5. As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão ser
apresentadas no final do texto.
6. As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do
texto, obedecendo às normas da ABNT (NBR-6023).
Livro:
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. 2.
ed. São Paulo : Abril Cultural, 1978. 208 p. (Os Pensadores, 6)
LÜDIKE, Menga, ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação : abor-
dagens qualitativas.São Paulo : EPU, 1986.

Antropolítica Niterói, n. 5, p. 107-114, 2. sem. 1998

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FRANÇA, Junia Lessa et al. Manual para normalização de publicações téc-
nico-científicas. 3. ed. rev. e aum. Belo Horizonte : Ed. da UFMG,
1996, 191 p.
Artigo:
ARRUDA, Mauro. Brasil : é essencial reverter o atraso. Panorama da
Tecnologia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 8, p. 4-9, 1989.

Trabalhos apresentados em eventos:


AGUIAR, C. S. A. L. et al. Curso de técnica da pesquisa bibliográfica :
programa-padrão para a Universidade de São Paulo. In: CON-
GRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA E DOCU-
MENTAÇÃO, 9., 1977, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre : As-
sociação Rio-Grandense de Bibliotecários, 1977. p. 367-385.
7. As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa re-
produção gráfica. Elas deverão ser identificadas com título ou le-
genda e designadas, no texto, como figura (Figura 1, Figura 2 etc.).
8. Os textos deverão ser acompanhados de resumo em português e
inglês, que não ultrapasse 250 palavras, bem como de 3 a 5 pala-
vras-chave também em português e em inglês.
9. Os textos deverão ser precedidos de identificação do autor (nome,
instituição de vínculo, cargo, título, últimas publicações etc.), que
não ultrapasse 5 linhas.
10. Os colaboradores terão direito a cinco exemplares da revista.
11. Os originais não aprovados não serão devolvidos.
12. Os artigos, resenhas e demais correspondência editorial deverão
ser enviados para:
Comitê Editorial da Antropolítica
Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência
Política
Campus do Gragoatá, Bloco “O”
24210-350 – Niterói, RJ
Tels.: (21) 620-5194 e 719-8012

Antropolítica Niterói, n. 5, p. 107-114, 2. sem. 1998

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N o m e :
Deposite o valor da(s) obra(s) em
_____________________________________________________ nome da Universidade Federal
P r o f i s s ã o
Fluminense/Editora
:
(Banco do Brasil
S.A., agência 3602-1, conta 170500-
___________________________________________________ 8), depósito identificado
E s p e c i a l i d a d e nº
: 15305615227047-5.
______________________________________________ Envie-nos o comprovante de
depósito, através de carta ou fax,
Endereço: ____________________________________________-juntamente com este cupom, e
______ receba, sem qualquer despesa
adicional, a encomenda em sua
____________________________________________________________residência ou local de trabalho.

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Bairro: ______________________________ CEP: _____________-
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Cidade: _____________________________________ UF:
___________
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