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ANAIS DOS SIMPÓSIOS TEMÁTICOS

A História e o campo do patrimônio:


desafios e perspectivas

3 a 7 de outubro de 2016 | Porto Alegre - RS


Porto Alegre, 3 a 7 de outubro de 2016

Anais dos simpósios temáticos


A História e o campo do patrimônio:
desafios e perspectivas

Evento organizado por


GT Nacional História e Patrimônio Cultural/ANPUH BRASIL
e Curso de Museologia/UFRGS

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação

Porto Alegre, 2017


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
Carlos Alexandre Netto
Reitor

Rui Vicente Oppermann


Vice-Reitor

Viviane Carrion Castanho


Diretora da Biblioteca Central

Organização
Zita Rosane Possamai e Fernanda Albuquerque

Diagramação
Clara Eloisa Ungaretti

Projeto Gráfico
Vanessa Velozo

CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO
BIBLIOTECA
________________________________________________________________________

S47198 a Seminário Nacional História e Patrimônio Cultural (1 . : 201 6 out. 3-7 : Porto
Alegre, RS)
Anais dos simpósios temáticos... / Organizado por GT Nacional História e
Patrimônio Cultural ANPUH Brasil e Curso de Museologia da UFRGS;
organização: Zita Rosane Possamai e Fernanda Albuquerque – Porto Alegre :
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Biblioteconomia e
Comunicação, 201 7.
p. 817

ISBN 978-85-9489-044-3

1. Patrimônio cultural - Eventos. 2. História - Eventos I. Possamai, Zita


Rosane (Org.). II. Albuquerque, Fernanda. (Org.). III. Titulo.

CDU: 930.85
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Realização
GT História e Patrimônio Cultural – ANPUH Brasil
Curso de Museologia – UFRGS
Reitor: Carlos Alexandre Netto
Vice-Reitor: Rui Vicente Oppermann
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Vice-Pró-Reitor de Planejamento: Luís Roberto da Silva Macedo
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Vice-Pró-Reitora de Extensão: Claudia Porcellis Aristimunha
Direção da Fabico: Ana Maria Mielniczuk de Moura
Coordenação do Curso de Museologia: Zita Rosane Possamai
Coordenação Geral do Evento
Zita Rosane Possamai
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Christiane Kalb – Universidade Federal de Santa Catarina
Claudia Martinez Marques – Universidade Estadual de Londrina
Daniela Pistorello – Universidade Estadual de Londrina
Giane Souza – Sistema Municipal de Museus de Joinville
Ilanil Coelho – Universidade de Joinville
Letícia Julião – Universidade Federal de Minas Gerais
Odair Paiva – Universidade Estadual de São Paulo
Roberto Severino – Universidade Federal da Bahia
Comissão Organizadora Local
Ana Carolina Gelmini de Faria – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Ana Celina da Silva – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Claudia Aristimunha – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Claudira Cardoso – Universidade Federal de Santa Maria
Elias Machado – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Eráclito Pereira – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Éverton Quevedo – Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul
Fernanda Albuquerque – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Jeniffer Cuty – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Vanessa Barrozo Teixeira – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Comissão Científica
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Cintia Regia Rodrigues – Universidade Regional de Blumenau
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Cristina Meneguello – Universidade Estadual de Campinas
Daniela Pistorello – Universidade do Estado de Santa Catarina
Elisabete da Costa Leal – Universidade Federal de Pelotas
Éverton Quevedo – Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul
Márcia Chuva – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Marlise Giovanaz – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Ricardo de Aguiar Pacheco – Universidade Federal Rural de Pernambuco
Vera Lucia Maciel Barroso – Centro Histórico-Cultural Santa Casa
Projeto Gráfico | Diagramação | Formatação dos textos
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Desenvolvimento do Site
Ricardo Serres
SUMÁRIO
“De acordo com a moderna pedagogia” .....................................714
Cristiane I. V. Miglioranza | Zita Rosane Possamai

Introdução à história através do Museu Histórico


de Esteio .......................................................................................731
Fabian Filatow

Preservação e Educação ...............................................................742


Estela Machado Winter Galmarino | Frinéia Zamin

Uma política de educação patrimonial .......................................759


Fernanda Rocha de Oliveira | Mariana Kimie da Silva Nito

Pensando o patrimônio na educação básica


em Piratini/RS ..............................................................................773
Marlise Buchweitz | Gabriele Hellwig

Ensino de História, Patrimônio Cultural


e Memória Social .........................................................................785
Juçara Mello | Sérgio Barra

Memórias do Olimpo ...................................................................800


Tatiana Carrilho Pastorini Torres | Carmem G. Burgert Schiavon

ÍNDICE DE AUTORES .....................................................................811


UMA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: A CONSTRUÇÃO
DE UMA MATRIZ DE PROJETOS EDUCATIVOS

Fernanda Rocha de Oliveira


Rede Paulista de Educação Patrimonial (REPEP)
fernanda-arq@hotmail.com
Mariana Kimie da Silva Nito
Rede Paulista de Educação Patrimonial (REPEP)
marykn@gmail.com

RESUMO
A educação patrimonial vem crescendo em importância no debate
da preservação do patrimônio. A crescente demanda de grupos da
sociedade civil por outras políticas de memória levou ao surgimento
de ações como as da Rede Paulista de Educação Patrimonial. Tomando
por inspiração pensamentos difundidos por esta Rede e, apostando na
substituição de uma educação transmissora de valores patrimoniais
por uma instrumentalização para a tomada de consciência das
pessoas como sujeitos de suas histórias (FREIRE, 2001, pp. 29-46),
apresentamos aqui a ideia de matriz de projetos educativos para se
pensar em uma política pública contínua da educação patrimonial.
A proposta de matriz foi formulada a partir da identificação de
problemáticas reais (tendo como estudo de caso a Casa de Portinari,
na cidade de Brodowski-SP). Apresenta diferentes níveis de ação não
somente pontuais, mas integrados de maneira sistêmica, em que se
espera ser possível construir uma política transversal e participativa
do patrimônio cultural.

INTRODUÇÃO
Como prática corrente, costuma-se aprender com a história
para compreender o presente e repensar o futuro. E essa postura
é aplicável nas mais diversas áreas, sendo extremamente útil para
tentativa de superação de algumas demandas que se apresentam
com o passar dos anos e com as mudanças das relações sociais.
Na trajetória do campo do Patrimônio Cultural é possível detectar
diversos momentos que implicaram transformações nos seus
discursos e nas suas práticas. Igualmente, o segmento da Educação
que atravessa a temática patrimonial (comumente intitulado de
educação patrimonial) passou por diversas inflexões que estão
sintonizadas com as críticas a alguns pensamentos preservacionistas.

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Fernando Siviero (2015) analisou, em artigo, a história da
educação no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) com base na inserção das ações preservacionistas no espaço
social urbano e na sua interferência na materialidade e na realidade
social. Do seu trabalho convém destacar quatro pontos importantes
para entendimento da trajetória da educação patrimonial no Brasil.
Um deles é relacionado às primeiras décadas de pensamen-
tos e políticas preservacionistas do IPHAN, quando a visão sobre edu
cação no patrimônio era de uma ferramenta de legitimação e difusão
dos valores atribuídos pelo Estado a um conjunto autorizado de
bens. Nesse momento, a preservação do patrimônio não era um
conceito difundido e assimilado pela sociedade. Por isso, o discurso
de “conhecer para preservar” era defendido pelos intelectuais do
campo, no intuito de levar informações à população e nela implantar
a importância da preservação. Esta perspectiva refletia também o
pensamento registrado em documentos internacionais da época1.
Um segundo momento diz respeito aos discursos apregoa-
dos nas décadas de 1970 e 1980, permeados pelos movimentos
de redemocratização do país, que trouxeram uma busca por
aproximação da política junto aos diferentes grupos formadores
da sociedade. Neste período, tentou-se aliar a dinâmica cultural
às atividades de preservação, fazendo da população guardiã do
patrimônio por ser ela a detentora dos bens culturais. Exemplo
disso foi a criação do Projeto Interação2, que também se alinhava a
reflexões de documentos internacionais da época3 que consideravam
que a população (detentora dos bens culturais) deveria participar dos
processos de preservação. (SIVIERO, 2015, pp. 93-94).
Em contraposição a esse pensamento, um novo momento de
inflexão na trajetória da educação patrimonial ocorreu no momento
da inauguração deste termo no Brasil, por meio da publicação do Guia
Básico de Educação Patrimonial, em 1999. Embora este documento
possa ser considerado um marco – por ter conseguido trazer para
a agenda política preservacionista um novo papel para a educação
–, apresenta alguns entendimentos que não seguem os mesmos

1 Carta de Atenas, de 1931, Carta de Nova Délhi, de 1956, e as Cartas de Paris, da


década de 1960. (SIVIERO, 2015, p. 85/89).
2 Teve como objetivos principais incentivar, valorizar e promover a cultura popular por
meio da participação da comunidade através de processos educacionais”. (SIVIERO,
2015, p. 94).
3 Declaração e Manifesto de Amsterdã de 1975.

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princípios difundidos nas décadas anteriores. Ao apresentar uma
metodologia de “alfabetização cultural” (SIVIERO, 2015, p. 96), o
Guia aproximou-se da definição de “educação bancária” apontada
por Freire (2001)4, conduzindo os leitores a aprenderem a identificar
determinados valores considerados importantes, ao invés de instigá-
los a pensar suas próprias atribuições de valores enquanto sujeitos
de sua história (FREIRE, 2001). Ademais, ao instaurar uma única
metodologia, o Guia causa uma fragmentação do campo da educação
patrimonial, uma vez que ignora todas as outras metodologias
criadas e executadas nas mais diversas áreas (museus, atividades da
educação formal e informal, etc.).
Num quarto momento e, como discurso de resistência e
revisão da metodologia e da ideologia apontada pelo supracitado
Guia, novos horizontes foram abertos a partir da articulação de diver-
sos profissionais que intencionavam debater a função da educação
dentro da práxis preservacionista e do IPHAN como agente educador.
Um dos frutos dessas ações foi a publicação do caderno “Educação
patrimonial: histórico, conceitos e processos” (IPHAN, 2014). Para
Siviero:

Ao considerar o patrimônio cultural apropriado social-


mente como tema gerador (FREIRE, 2005), e não como
objeto dos processos educativos, propõem-se duas
profundas alterações pedagógicas: são as pessoas e
suas referências culturais os objetos e objetivos da
educação patrimonial, e não mais os bens culturais
tombados ou registrados. (SIVIERO, 2015, p. 103).

Conforme lembra Simone Scifoni, “é forçoso reconhecer que


a Educação Patrimonial é, ainda hoje, no Brasil, um campo de ação
“em construção”, não consolidado, amplo, diverso e contraditório, não
suficientemente fundamentado, multidisciplinar e interdisciplinar
por natureza”. (SCIFONI, 2015, p. 195). Mas é interessante verificar
uma convergência de discursos que intencionam o tratamento da
questão de modo mais dialógico e transversal, sintonizado com o
pensamento freiriano de “libertação do sujeito”5.

4 É chamada “bancária” a educação feita a partir do “ato de depósito” de conhecimento


pelo professor aos alunos. Assim, não há uma comunicação efetiva, uma troca, mas o
envio de uma informação que é meramente recepcionada, apreendida e repetida.
5 A libertação (como oposição a dominação) do sujeito ocorre quando se estabelece
uma visão crítica sobre a realidade de modo a poder, efetivamente, transformá-la.
(FREIRE, 2001, pp. 33-35).

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Ressalta-se, porém, que diferentemente das primeiras
décadas de instauração de uma política de preservação, a noção de
proteção do patrimônio deixou de ser desconhecida pela sociedade.
Com isso, não se justifica, nos tempos atuais, o uso do discurso
de “conhecer para preservar”. É preciso superá-lo por meio da
construção coletiva, negociada e compartilhada de valores, evitando
o estabelecimento de relações verticais nas políticas públicas
(impostas pelo Estado).
É nesse contexto que surgiu a Rede Paulista de Educação
Patrimonial, um coletivo educador multidisciplinar de profissionais
que se propuseram a articular ideias e experiências nos vários
segmentos na área de cultura e educação, envolvidos com projetos
e temáticas da proteção e valorização da memória coletiva e do
patrimônio cultural. A Rede tem como princípios norteadores de
educação patrimonial: a transversalidade da atividade educativa
em todo o processo de patrimonialização; a dimensão política
inerente a qualquer campo de disputas; o respeito à diversidade na
construção de narrativas e na atribuição de valores; a interlocução
com a população, uma garantia constitucional; a autonomia e a
centralidade dos sujeitos, fazendo da sociedade a protagonista e o
maior foco das ações de preservação; e as transformações sociais
como objetivo (ESTATUTO, 2014).
Os princípios da Rede se coadunam com aqueles apresenta-
dos por recente portaria que estabelece diretrizes de Educação
Patrimonial no âmbito do IPHAN (portaria nº 137, de 28 de abril de
2016). Este documento constitui um novo marco para o campo da
educação patrimonial, instituindo-a como prática transversal aos
processos de preservação e valorização do patrimônio cultural, e
conceituando-a da seguinte forma:

processos educativos formais e não formais, construí-


dos de forma coletiva e dialógica, que têm como foco
o patrimônio cultural socialmente apropriado como
recurso para a compreensão sociohistórica das referên-
cias culturais, a fim de colaborar para seu reconheci-
mento, valorização e preservação. (IPHAN, 2016).

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Tendo como base os princípios de educação patrimonial
aqui apresentados, o presente trabalho objetiva a proposição de
uma Matriz de Projetos Educativos6 voltada ao Patrimônio, pensada
para ser aplicado em uma realidade específica. Para tal, utilizou-se de
alguns procedimentos metodológicos que orientam a proposição de
projetos educativos. Para seleção do objeto de estudo, tomou-se por
base a experiência de trabalho de campo da pesquisadora Mariana
Nito, realizada na cidade de Brodowski-SP (NITO, 2015). O objeto
eleito foi contextualizado por meio de uma “Leitura de Situação”, que
destaca elementos importantes para entendimento da realidade em
que se objetiva atuar, bem como aponta o problema central que se
quer iluminar e que se pressupõe gerar a necessidade de aplicação
desse tipo de projeto. Utilizando-se por base a conceituação trazida
por Paulo Freire (2001), foram percebidas situações que trazem
limitações (“Situações-Limite”), do ponto de vista da valorização
do patrimônio, a determinados grupos de indivíduos da cidade
mencionada. A partir disso, buscou-se problematizar a questão de
modo a diagnosticar seus motivos e subsidiar a elaboração de uma
proposta que busca colaborar para a superação de tais dificuldades a
partir de diferentes formas de entrada para o enfrentamento destas,
encarando a educação patrimonial como política.

PATRIMONIALIZAÇÃO DA CASA DE PORTINARI


Neste item contextualizaremos nosso objeto de investigação:
a Casa de Portinari, localizada na cidade de Brodowski-SP.
Brodowski localiza-se na microrregião de Ribeirão Preto
(região norte do Estado de São Paulo, a 337 quilômetros da capital).
De acordo com IBGE, a população estimada na cidade em 2014 era de
23.134. A produção agrícola da cidade ainda é intensa, principalmen-
mente, no cultivo da cana de açúcar. Por sua proximidade com a
metrópole de Ribeirão Preto (20 minutos) e com a cidade de Franca
(40 minutos), muitos moradores vivem em migração pendular tanto
em jornada de trabalho quanto em universidades.
A cidade, desenvolvida sobretudo a partir da chegada da
estrada de ferro (vinculada à economia cafeeira local) e de suas
respectivas benfeitorias, recebeu a família Portinari no momento de
sua constituição, tendo sido onde nasceu o artista Cândido Portinari:

6 A reflexão aqui apresentada foi desenvolvida para a avaliação da disciplina


Patrimônio Cultural e Projetos Educativos, ministrada pela Profª. Drª. Simone Scifoni,
no âmbito da Pós-graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo.

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“Nasci numa fazenda de café. Meus pais trabalhavam na terra…
Mudaram-se da fazenda Santa Rosa para a estação de Brodósqui
–onde não havia ainda povoado; eu devia ter dois anos de idade”
(PORTINARI, 2001, p. 37).
O êxito de Cândido Portinari foi apropriado pela cidade,
que incorporou na sua identidade e memória social fatos e objetos
materiais associados a ele. A Casa de Portinari, por exemplo, ficou
conhecida mundialmente não apenas por ter sido onde o artista
viveu, mas por apresentar, em sua materialidade, qualidade artística
das pinturas murais e dos experimentos nela executados7.
Mediante tais atribuições de valor, com o falecimento de
Portinari (década de 1960) iniciou-se um longo processo para conser-
vação da Casa e para sua patrimonialização. Com a burocracia e o
contexto político, o tombamento federal da Casa de Portinari pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) ocorreu
somente em 1968.
A Casa foi convertida em museu em 1970, mesmo ano
em que houve também o tombamento estadual do imóvel – pelo
Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico
e Turístico (CONDEPHAAT). Mas a vocação do local para abrigar
este tipo de uso já havia sido identificada por Cândido Portinari,
sua família e seus amigos anos antes, dadas as espontâneas e
constantes visitações dos fãs do artista à Casa. Com as proteções
legais da Casa e com sua musealização, a cidade de Brodowski passa
a ser reconhecida mundialmente como a “Terra de Portinari”. O
Museu Casa de Portinari passou a ter papel significativo na dinâmica
da cidade, realizando diversas atividades, atuando como atrativo
econômico pelo viés turístico e mantendo uma ligação simbólica
entre as famílias moradoras e a família Portinari (por meio de objetos
que antes pertenciam a pessoas que conviveram com o artista).
A figura de Portinari não somente criou nos brodosquianos
vínculos identitários decorrentes do orgulho que muitos sentem por
terem nascido na mesma cidade do artista, mas também propor-
cionou certa influência na vocação artística da cidade. Essa tendên-
cia se relaciona tanto ao sentido de produção artística pelas pes-
soas, como pelo caráter “inspirador” que é conferido à cidade. O

7 Apesar de corresponder a um conjunto de casas de técnicas construtivas simples, a


Casa de Portinari ganhou destaque pelos experimentos de pintura murais que foram
empreendidas nas paredes da casa, feitas quando o artista retornava para passar as
férias.

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papel econômico também pode exercer certa positividade na visão
dos citadinos sobre o legado patrimonial que representa o artista.
E esse conjunto de fatores talvez explique o grande interesse da
população pela preservação da Casa de Portinari.
Em pesquisa elaborada por Nito (2015)8, foram desenvolvidas
diversas abordagens de diálogo e de conhecimento da cidade. Por
meio da realização de oficinas de desenho e conversação, mais do que
levantar informações, foi possível criar situações de compreensão dos
processos existentes no entorno a partir das percepções das pessoas
que vivenciam os espaços. Deste modo, revelou-se o conhecimento
diverso da população local sobre seus patrimônios.
Entre as conversas ocorridas, fato interessante é a existência
de relatos da população de um excesso do uso da figura de Portinari,
principalmente, em sua constante inserção nas disciplinas escolares.
Contudo, conforme aponta Silva (2009, pp. 13-14 apud NITO, 2015),
nem todos os brodosquianos frequentam o Museu ou participam
das atividades por ele promovidas, sendo carentes as iniciativas da
administração do poder público local para a preservação da história e
da memória da cidade para além daquelas relacionadas a Portinari.
A forte patrimonialização relacionada à figura de Portinari
parece ter obscurecido outras necessidades identitárias de determi-
nados grupos, levando ao subaproveitamento do patrimônio como
recurso de percepção de outros objetos sociais que registram diferen-
tes narrativas culturais da cidade, nos seus diversos períodos.
Ademais, ainda são inexistentes os canais permanentes
de discussão do patrimônio na cidade. A presença dos órgãos de
preservação é ainda esporádica e, com isso, ineficiente para a manu-
tenção de diálogos constantes. E a figura do Museu, que tem sido
a maior representante de ações de preservação locais, tem sido
vista com certa negatividade por alguns cidadãos, porque as ações
desenvolvidas por seus representantes não têm ocorrido de modo
a dialogar com os interesses da população local. Contudo, é válido
registrar que este equipamento cultural, sozinho, não tem estrutura
física, financeira e de recursos humanos para suprir toda a demanda
patrimonial do município.

8 Pesquisa realizada no âmbito do mestrado profissional do IPHAN, que objetivava a


reflexão sobre entornos de bens tombados em São Paulo. O trabalho realizado teve
como estudo de caso a Casa de Portinari, localizada em Brodowski-SP.

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Embora algumas ações protetivas do IPHAN tenham ocor-
rido sem participação social9, a partir da realização do referido
estudo sobre o entorno da Casa Portinari (NITO, 2015), percebeu-se o
interesse da sociedade civil local no debate sobre as questões ligadas
à preservação de bens culturais da cidade. Ressalta-se também
que, por meio das pesquisas de campo do referido estudo, gerou-se
uma expectativa por parte da população de uma participação mais
constante do órgão de preservação (originando uma lacuna no papel
que o IPHAN possui junto àquela sociedade), especialmente durante
as festividades da Semana de Portinari10.

PROPOSTA DE UMA “MATRIZ DE PROJETOS EDUCATIVOS”
A insatisfação da população com a pouca presença dos
órgãos protetivos na cidade e com a pouca participação social nas
decisões relacionadas aos processos de patrimonialização locais vem
gerando o que Paulo Freire (2001) denomina “Situações-Limite”. A
partir delas, alguns temas são ocultos por grupos que se sentem
atendidos em suas necessidades, enquanto outros grupos não são
contemplados.
Para exemplificar o entendimento, a falta de diálogo para
construção de valores e diretrizes que irão delinear a normatização
e necessárias delimitações da área de entorno da Casa de Portinari
pode levar a conflitos entre os moradores, os órgãos de proteção
e o Museu. Assim, a inexistência de canais para esse diálogo irá
favorecer apenas os grupos que tomam as decisões. Ademais, o
subaproveitamento do interesse local na temática preservacionista
relacionada às referências culturais locais pode afetar as condições
de um maior “enraizamento”11 da população com o patrimônio da sua
cidade, o que levaria à manutenção da hegemonia dos grupos que
historicamente vêm tomando as decisões no assunto.

9 A exemplo do processo de implementação de Termo de Ajustamento de Conduta


(TAC), celebrado em 1999.
10 O evento, que é feito em parceria com a Prefeitura Municipal de Brodowski durante
a semana do aniversário da cidade (em agosto), promove atividades diversificadas e
também relacionadas às artes – especialmente às artes plásticas.
11 Conceito cunhado por Simone Weil (2014), que significa uma relação ativa com a
coletividade em que se vive.

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Assim, foram estabelecidos “Temas-Geradores”12 para
buscar problematizar essas “Situações-Limite”: Existem canais para
debates permanentes e francos entre sociedade e poder público
para deliberação de ações e propostas? O enraizamento existente
nessas populações tem sido aproveitado de alguma maneira? Que
atividades poderiam valer-se das memórias e do envolvimento de
grupos locais para fomentar ações voltadas ao patrimônio? Como
técnicos de órgãos protetivos poderiam se fazer mais presentes
e valorizar a participação social sem promover uma intimidação
na população? Que outros patrimônios (para além dos ligados a
Portinari) a população pode considerar de valor?
Com base nos questionamentos citados, recorreu-se a
alguns conceitos estabelecidos na literatura voltada a projetos
educativos, de maneira a buscar uma proposição de ações melhor
fundamentada. Nesta temática, Paulo Freire é sempre uma grande
referência, já que trata a educação enquanto ato de conhecimento
que promove uma aproximação crítica com a realidade (FREIRE,
2001). Buscando fugir de uma noção de educação “pré-fabricada”,
tal como propõe o autor, o projeto aqui apresentado foi precedido
de uma reflexão sobre o público a ser abordado e o contexto no qual
está inserido, intencionando não a educação sobre a importância
de um patrimônio específico, mas uma instrumentalização para a
autoeducação (FREIRE, 2001, p. 38). Assim, pretende-se favorecer que
a sociedade civil reflita criticamente as tradições às quais se submete
e tome consciência de outras realidades ainda não experimentadas
que pode usufruir, tornando-se, assim, sujeitos de sua realidade.
A importância de fazer dos grupos sociais sujeitos da história
e da memória local tem como fundamento legal a atribuição que a
Constituição Federal lhes atribuiu, desde 1988. Conforme lembra
Meneses (2009), com o “deslocamento da matriz de valoração”,
destes deve emanar os valores patrimoniais a serem preservados.
Contudo, é sempre importante atentar para a coexistência de
valorações técnicas e sociais, como lembra o autor (MENESES, 2009,
p. 34). Nesse sentido, é importante que, nessa arena de interesses,
haja espaço para os diversos tipos de valor que podem ser atribuídos
aos bens.

12 Tema gerador permite o distanciamento critico para a percepção de uma situação,


problematizando-a para se chegar à ações que ajudem a superar os entraves das
situações-limite.

767
A partir do entendimento de que a “Situação-Limite”
encontrada trata-se de uma prática recorrente (de ausência de canais
de diálogo com o poder público e de reflexão crítica dos grupos
sociais em relação ao seu patrimônio), buscou-se uma proposta que
contemplasse não somente ações a curto prazo (de diálogo pontual),
mas que projetasse um alcance mais profundo ao influenciar a
agenda de políticas públicas relacionada ao tema.
Deste modo, foi elaborada uma Matriz de Projetos
Educativos – ao invés de um único projeto educativo –, que objetiva
múltiplas frentes de atuação de acordo com os princípios aqui
apontados, contando com uma rede de parceiros e com a sociedade
civil. Trata-se de uma matriz que entrelaça ações estruturantes, ações
pontuais e possíveis resultados esperados a partir da realização delas,
mas que não hierarquiza estes níveis de ação, e sim, valoriza-os em
sua pluralidade. São frentes de trabalho em diferentes escalas inter-
relacionadas, que buscam enfrentar a problemática identificada de
uma maneira não pontual, mas contínua (com ações a curto e longo
prazo) e vinculada a uma dimensão política. A seguir, serão indicadas
as ações propostas acompanhadas de uma justificativa.
Ações Estruturantes:
- valorização da memória local: entende-se esta ação como básica
para que a população aprenda a superar a mera reprodução de
discursos patrimoniais correntes – sobretudo de realidades que não
vivenciam –, e passem a refletir quais objetos e/ou manifestações
servem de suporte para suas memórias;
- fortalecimento de rede Oeste Paulista: o estabelecimento de ações
em rede favorece o diálogo territorial a partir da troca de experiências
e da ampliação do debate em âmbito regional;
- implementação do projeto da Casa do Patrimônio: projeto que vem
sendo desenvolvido no âmbito do IPHAN, pretende ser um espaço
de diálogo mais horizontal entre o poder público e a sociedade.
Se implantado na realidade de estudo (Brodowski), poderia ser de
atendimento de escala local ou regional, a depender da necessidade;
- criação de conselho local: apropriando-se dos canais de abertura
democrática para participação social nas políticas, a criação de
conselho levaria a uma instância deliberativa importante, podendo
contemplar uma agenda mais ampla de cultura, na qual o patrimônio
poderia ser uma das temáticas a serem debatidas;
- definição de diretrizes do entorno: considerando ser esta uma
necessidade já estabelecida (pelo fato de haver uma proteção legal

768
que exige o estabelecimento de diretrizes para preservação do
entorno), considera-se importante que o processo promova partici-
pação social.

Ações pontuais:
- rodas de memória: trata-se de atividades de valorização e de
compartilhamento de memórias, que podem ter como temas: “Eu,
minhas memórias e nossas relações”; “Compartilhando memória do
passado de ontem e hoje”; “O que queremos para Brodowski?”;
- oficinas para elaboração de desenhos (afetivos): o convite ao
desenho mais livre pode ser mais convidativo do que a proposição de
elaboração de mapas13. Assim, a realização de oficinas para expressar
graficamente e intuitivamente temáticas diversas podem trazer
resultados interessantes. São sugestão de temas: “patrimônios de
Brodowski”; “entorno da Casa de Portinari”;
- exposições dos resultados das oficinas e rodas de memória:
propõe-se a apresentação dos produtos resultantes, de modo a
estimular a valorização do exercício de reflexão e diálogo entre os
diferentes grupos sobre bens que os representem culturalmente;
- formação dos professores: considera-se importante ampliar o
quadro de multiplicadores de uma pedagogia menos transmissora
e mais problematizadora relacionada ao patrimônio. Possuindo os
professores papel importante como formadores de opiniões, sugere-
se uma complementação na sua formação, fomentando debates
como “Problematizando a educação patrimonial” e “Inventário
Participativo”14;
- encontro de agentes sociais potenciais: a promoção de encontro
entre agentes sociais interessados na causa do patrimônio favorece a
criação de uma agenda de atuação, melhor articulando as atividades
locais.

Produtos:
- elaboração de documentos técnicos (mapas, diretrizes, etc.):
entendendo que as discussões realizadas e os resultados das atividades
propostas (como desenhos, atas, etc.) podem ser apropriados pelos
técnicos de órgãos preservacionistas e por acadêmicos, por exemplo,
vê-se a possibilidade de elaboração de documentos técnicos que
13 A exemplo das oficinas registradas no trabalho de Nito (2015).
14 Metodologia que foi recentemente lançada pelo IPHAN e pode ser aplicada junto
aos alunos, para que identifiquem suas próprias referências culturais.

769
contemplem as valorações ao patrimônio feitas pelos diversos
grupos;
- roteiros: uma vez estabelecidos os suportes das memórias
consideradas relevantes pela sociedade civil, sugere-se a elaboração
de diversos roteiros, tanto na escala da cidade quanto da região na
qual está inserida, de modo a incentivar uma vivência mais constante
dos bens culturais pelos próprios moradores ou por visitantes;
- propostas de trabalho para educadores e outros públicos:
considerando que as atividades realizadas devem ser não somente
eventuais, mas de caráter contínuo, sugere-se que a partir das
atividades desenvolvidas sejam montadas propostas de trabalho
para públicos diversos.
Não se pretendeu estabelecer qualquer tipo de hierarqui-
zação entre estas frentes de ações, mas, ao contrário, almeja-se uma
inter-relação e interação entre elas que promova uma alimentação
e redefinição constante dos seus objetivos. E para a realização
destas e outras atividades que possam vir a serem propostas,
devem ser elencados diversos atores sociais (públicos e privados)
que compactuem com os ideais de diálogo e de participação social
propostos pela educação patrimonial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tal como apontou Freire em relação aos processos linguístico
e de alfabetização política (FREIRE, 2001, p. 31), as ações educativas
podem ser uma prática para a domesticação ou para a libertação dos
homens. E esta deve ser uma preocupação central para a realização
de qualquer das atividades aqui apresentadas: promover uma visão
crítica, que leve as pessoas a refletirem seus próprios sentimentos e
necessidades, de modo a compartilhá-los para a construção coletiva
dos valores, em detrimento de uma mera reprodução de discursos.
Embora não seja possível refletir criticamente os resultados
do projeto por este ainda não ter sido aplicado, aposta-se no seu
potencial de tentar aprender com o passado: buscando a superação
da visão bancária da educação para o patrimônio. Ao valorizar
formas mais sociais de atribuição de valor, acredita-se na construção
e na aplicação de uma ferramenta em que o valor do objeto
não se sobreponha ao da memória e das afetividades, trazendo
protagonismo aos grupos sociais.
Apesar de que tenham sido pensadas diversas ações estrutu-
rantes e pontuais, além de produtos esperados a partir de sua aplica-

770
ção, sabe-se que poderão existir diversos outros frutos não previstos.
Estes poderão gerar outras reflexões e frentes de ação que promovam
uma constante renovação da matriz de projetos, de modo que ela se
adapte às novas demandas, às novas dinâmicas e aos novos valores
dos grupos sociais.
Se “[...] a resposta que o homem dá a um desafio não muda
só a realidade com a qual se confronta: muda o próprio homem, cada
vez um pouco mais, e sempre de modo diferente” (FREIRE, 2001, p.
42), ao se tornarem sujeitos de sua própria realidade, as pessoas
poderão trazer transformações afetivas e efetivas que colaborem na
sua qualidade de vida.
Com a realização deste trabalho, espera-se trazer contribui-
ções para a utilização da educação patrimonial enquanto ferramenta
política para a autonomia dos grupos sociais acerca das questões
que influenciam diretamente na sua condição cidadã. Mais que uma
ferramenta de transmissão de conhecimento, o estabelecimento
de um plano de ação/reflexão contínua – como aqui apresentado
por meio de uma matriz de projetos educativos– permite fomentar
práticas de libertação e de transformação social.

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