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A essência do neoliberalismo - A TERRA É REDONDA 22/01/2021 14:55

A essência do neoliberalismo

Imagem: Elyeser Szturm

Os economistas têm suficientes interesses específicos para contribuir decisivamente para a


produção e reprodução da crença na utopia neoliberal. Apartados do mundo econômico e
social efetivo, participam e colaboram para o desmantelamento das instituições e dos
coletivos, mesmo se algumas de suas consequências lhes causem horror

Por Pierre Bourdieu*

Seria o mundo econômico, verdadeiramente, tal como insiste o discurso dominante, uma
ordem pura e perfeita, dispondo implacavelmente a lógica de suas consequências
previsíveis e prestes a reprimir todos os seus desvios com sanções que inflige, seja de
maneira automática, seja – com maior exceção – pelo intermédio de seus braços
armados, o FMI ou a OCDE, e das políticas que eles impõem: diminuição do custo da força
de trabalho, redução das despesas públicas e flexibilização do trabalho? E se, na verdade,
não se tratasse apenas da colocação em prática de uma utopia, o neoliberalismo, assim
convertido em “programa político”, mas uma utopia que, com a ajuda de sua teoria
econômica, passa a pensar a si mesma como a descrição científica do real?

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Esta teoria tutelar é uma obra de pura ficção matemática, fundada, desde o princípio,
numa formidável abstração: essa que, em nome de uma concepção tão estreita como
estrita da racionalidade identificada à racionalidade individual, consiste em pôr entre
parêntesis as condições econômicas e sociais das disposições racionais e das estruturas
econômicas e sociais que são a condição de seu exercício.

Para compreender o tamanho desta omissão, basta pensar no sistema de ensino, que
nunca é considerado enquanto tal num momento em que possui um papel determinante
na produção de bens e serviços, assim como na produção dos produtores. Deste pecado
original, inscrito no mito walrasiano[i] da “teoria pura”, brotam todas as falhas e
deficiências da disciplina econômica, e a fatal obstinação com a qual ela se apega à
oposição arbitrária, que ela mesma faz existir, por sua própria existência, entre a lógica
propriamente econômica, fundada na concorrência e portadora da eficiência, e a lógica
social, submetida à regra da igualdade.

Dito isso, essa “teoria” originalmente dessocializada e deshistoricizada tem, hoje mais do
que nunca, os meios de se fazer verdadeira, empiricamente verificável. Na verdade, o
discurso neoliberal não é um discurso como os outros. À maneira do discurso psiquiátrico
nos asilos, segundo Erving Go!man[ii], trata-se de um “discurso forte”, que só é tão
forte e difícil de combater justamente porque tem a seu favor todas as forças de um
mundo de relações de força que ele mesmo contribui para produzir enquanto tal,
especialmente ao orientar as decisões econômicas daqueles que dominam as relações
econômicas e, assim, somar sua força própria, propriamente simbólica, a estas relações
de força. Em nome deste programa científico de conhecimento, convertido em programa
político de ação, produz-se um imenso “trabalho político”(denegado, posto que, em
aparência, é puramente negativo) que visa a criar as condições de realização e de
funcionamento da “teoria”; um programa de destruição metódica dos coletivos.

O movimento, possibilitado pela política de desregulamentação financeira, em direção à


utopia neoliberal de um mercado puro e perfeito, realiza-se através da ação
transformadora e, é preciso dizer, destrutiva de todas as medidas políticas (das quais a
mais recente é o Acordo Multilateral sobre o Investimento, destinado a proteger as
empresas estrangeiras e seus investidores contra os Estados Nacionais), visando pôr em
questão todas as estruturas coletivas capazes de se antepor à lógica do puro mercado:
nação, cuja margem de manobra não para de diminuir; grupos de trabalho, por exemplo,
pela individualização dos assalariados e das carreiras em função das competências
individuais e a atomização dos trabalhadores que resulta disso, sindicatos, associações,

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cooperativas; até mesmo a família, que, através da constituição dos mercados por
agrupamentos etários, perde uma parcela de seu controle sobre o consumo.

O programa neoliberal, que obtém sua força social da força político-econômica daqueles
cujos interesses exprime – acionistas, operadores financeiros, industriais, homens
políticos conservadores ou socialdemocratas convertidos às reconfortantes renúncias do
laisser-faire, altos funcionários das finanças (ainda mais árduos na imposição de uma
política preconizando seu próprio declínio pois, diferentemente dos grandes empresários,
não correm qualquer risco de ter de pagar pelas consequências) –, tende globalmente a
favorecer a cisão entre a economia e as realidades sociais, e assim a construir, na
realidade, um sistema econômico conformado à descrição teórica, isto é, uma espécie de
máquina lógica que se apresenta como uma cadeia de restrições conduzindo os agentes
econômicos.

A globalização dos mercados financeiros, acompanhada pelo progresso das técnicas de


informação, garante uma mobilidade de capital sem precedentes e oferece aos
investidores, preocupados com a rentabilidade de curto prazo de seus investimentos, a
possibilidade de comparar de maneira permanente a rentabilidade das maiores empresas
e de punir, por consequência, os fracassos relativos. As próprias empresas, colocadas sob
tal ameaça permanente, devem se ajustar de maneira cada vez mais rápida às exigências
dos mercados; isso sob a pena, como se costuma dizer, de “perder a confiança dos
mercados”, e, de uma vez só, o apoio dos acionistas que, preocupados com obter uma
rentabilidade de curto prazo, são cada vez mais capazes de impor sua vontade aos
managers, de lhes fixar normas, por meio de diretrizes financeiras, e de orientar suas
políticas em matéria de contratação, de emprego e de salário.

Assim se instauram o reino absoluto da flexibilidade, com os recrutamentos sob contratos


de duração determinada ou os trabalhos temporários e os “planos sociais” reiterados, e,
no interior mesmo da empresa, a concorrência entre filiais autônomas, entre equipes
coagidas à polivalência e, enfim, entre indivíduos, por meio da “individualização” da
relação salarial: fixação de objetivos individuais; entrevistas individuais de avaliação,
avaliação permanente; altas individualizadas de salários ou concessão de bônus em
função da competência e do mérito individuais; carreiras individualizadas; estratégias de
“responsabilização” tendendo a assegurar a autoexploração de certos empresários que,
simples assalariados sob forte dependência hierárquica, são ao mesmo tempo tidos como
responsáveis por suas vendas, seus produtos, sua agência, sua loja, etc., sob a forma de
“independentes”; exigência de “autocontrole” que estende a “implicação” dos

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assalariados, segundo as técnicas do “gerenciamento participativo”, para bem além do


trabalho dos executivos. Estas são algumas das técnicas de assujeitamento racional que,
ao impor o sobreinvestimento no trabalho, e não apenas naquele dos cargos de
responsabilidade, e o trabalho na urgência, acabam por enfraquecer ou abolir as
referências e as solidariedades coletivas[iii].

A instituição prática de um mundo darwiniano da luta de todos contra todos, em todos os


níveis da hierarquia, que encontra a adesão ao trabalho e à empresa na insegurança, no
sofrimento e no estresse, não poderia, sem dúvidas, ser completamente bem-sucedida se
ela não encontrasse a cumplicidade das disposições precarizadas produzidas pela
insegurança e pela existência, em todos os níveis da hierarquia, e mesmo nos níveis mais
elevados, entre os empresários principalmente, de um exército de reserva de mão de obra
docilizada pela precarização e pela ameaça permanente do desemprego. O fundamento
último de toda esta ordem econômica posta sob o signo da liberdade é, com efeito, a
violência estrutural do desemprego, da precaridade e da ameaça de demissão que ela
implica: a condição do funcionamento “harmonioso” do modelo microeconômico
individualista é um fenômeno de massa, a existência do exército de reserva de
desempregados.

Esta violência estrutural influi também no que chamamos de contrato de trabalho


(reconhecidamente racionalizado e desrealizado na “teoria dos contratos”). O discurso
empresarial nunca falou tanto de confiança, de cooperação, de lealdade e de cultura
empresarial quanto em uma época em que se obtém a adesão a cada instante fazendo
desaparecer todas as garantias temporais (três quartos dos contratos são de duração
determinada, a parcela dos empregos precários não para de crescer, o licenciamento
individual tende a não ser mais submetido a qualquer restrição).

Vemos, assim, como a utopia neoliberal tende a se incarnar na realidade de uma espécie
de máquina infernal, cuja necessidade se impõe até mesmo aos dominantes. Como o
marxismo de outros tempos, com o qual, neste sentido, ela tem vários pontos comuns,
essa utopia suscita uma crença formidável, a free trade faith (a fé no livre comércio), não
apenas naqueles que dela tiram suas justificações de existência, como os altos
funcionários e os políticos, que sacralizam o poder dos mercados em nome da eficiência
econômica, que exigem o levante das barreiras administrativas ou políticas capazes de
incomodar os detentores de capital na procura puramente individual pela maximização
do lucro individual, instituída em um modelo de racionalidade, que querem os bancos
centrais independentes, que pregam a subordinação dos Estados nacionais às exigências

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da liberdade econômica pelos mestres da economia, com a supressão de todas as


regulamentações em todos os mercados, a começar pelo mercado de trabalho, a
interdição de déficits e de inflação, a privatização generalizada dos serviços públicos, a
redução das despesas públicas e sociais.

Sem necessariamente compartilhar os interesses econômicos e sociais dos verdadeiros


crentes, os economistas têm suficientes interesses específicos no campo da ciência
econômica para contribuir decisivamente, quaisquer que sejam seus estados de espírito a
propósito dos efeitos econômicos e sociais da utopia que vestem de razão matemática,
para a produção e reprodução da crença na utopia neoliberal. Separados por toda sua
existência e, sobretudo, por toda sua formação intelectual, na maioria das vezes
puramente abstrata, livresca e teoricista, do mundo econômico e social tal como ele é,
eles são particularmente propensos a confundir as coisas da lógica com a lógica das
coisas.

Confiantes nos modelos que não têm quase nunca a chance de submeter à prova da
verificação experimental, tidos a olhar por cima as conquistas das outras ciências
históricas, nas quais eles não reconhecem a pureza e a transparência cristalina dos seus
jogos matemáticos, e das quais eles são frequentemente incapazes de compreender a
verdadeira necessidade e a profunda complexidade, eles participam e colaboram para
uma formidável mudança econômica e social que, mesmo se algumas de suas
consequências lhes causem horror (eles podem contribuir com o Partido socialista e dar
sábios conselhos aos seus representantes nas instâncias de poder), não pode desagradá-
los pois, sob o risco de algumas falhas, imputáveis particularmente ao que eles às vezes
chamam de “bolhas especulativas”, ela tende a dar realidade à utopia ultraconsequente
(como certas formas de loucura) à qual eles consagram suas vidas.

O mundo está aí, porém, com os efeitos imediatamente visíveis da colocação em prática
da grande utopia neoliberal: não apenas a miséria de uma fração cada vez maior das
sociedades mais avançadas economicamente, o crescimento extraordinário das
diferenças entre os rendimentos, a desaparição progressiva dos universos autônomos de
produção cultural, cinema, edição etc., pela imposição intrusiva de valores comerciais,
mas também e sobretudo a destruição de todas as instâncias coletivas capazes de se opor
aos efeitos da máquina infernal, das quais em primeiro lugar está o Estado, depositário de
todos os valores universais associados à ideia de público, e a imposição, por toda parte,
nas altas esferas da economia e do Estado, ou no seio das empresas, desta sorte de
darwinismo moral que, com a cultura do winner, feita para os matemáticos superiores e

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para o salto a elástico, instaura como norma de todas as práticas a luta de todos contra
todos e o cinismo.

Podemos esperar que a massa extraordinária de sofrimento que um tal regime político-
econômico produz esteja, um dia, na base de um movimento capaz de interromper esta
corrida em direção ao abismo? Na verdade, estamos aqui face a um extraordinário
paradoxo: enquanto os obstáculos encontrados no caminho da realização da “nova
ordem” – esta do indivíduo solitário, mas livre – são hoje tidos como imputáveis à
rigidez e arcaísmos, e toda intervenção direta e consciente, ao menos desde que vinda do
Estado, e por qualquer parcialidade que o seja, é de cara descreditada, portanto intimada
a desaparecer em prol de um mecanismo puro e autônomo, o mercado (sobre o qual
esquecemos que é também o lugar de exercício dos interesses); na realidade, é a
permanência ou a sobrevivência das instituições e dos agentes da antiga ordem em vias
de desmantelamento, e todo o trabalho de todas as categorias de trabalhadores sociais, e
também todas as solidariedades sociais, familiares ou outras, que fazem com que a ordem
social não se afunde no caos, apesar do volume crescente de população precarizada.

A passagem ao “liberalismo” se dá de maneira insensível, logo imperceptível, como a


deriva dos continentes, escondendo assim seus efeitos, os mais terríveis no longo prazo.
Efeitos que se encontram também dissimulados, paradoxalmente, pelas resistências que
ela suscita, desde já, da parte daqueles que defendem a antiga ordem extraindo dos
recursos que ela encobria, nas solidariedades antigas, nas reservas de capital social que
protegem toda uma parte da ordem social presente da queda na anomia (capital que, se
não é renovado, reproduz, é destinado ao enfraquecimento, mas cujo esgotamento não
será para amanhã).

Mas estas mesmas forças de “conservação”, que são facilmente tratadas como forças
conservadoras, são também, em outra relação, forças de resistência à instauração da nova
ordem, que podem tornar-se forças subversivas. E se podemos, então, conservar
qualquer esperança razoável, o que ainda existe, nas instituições estatais e também nas
disposições dos agentes (especialmente os mais ligados a estas instituições, como a
pequena nobreza de Estado), de tais forças que, sob a aparência de simplesmente
defender, como criticaremos logo em seguida, uma ordem desaparecida e os “privilégios”
correspondentes, devem, de fato, para resistir à prova, trabalhar na invenção e na
construção de uma ordem social que não teria como lei única a procura do interesse
egoísta e a paixão individual pelo lucro, e que daria lugar a coletividades orientadas à
busca racional pelos fins coletivamente elaborados e aprovados.

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Dentre os coletivos, associações, sindicatos, partidos, como não dar um lugar especial ao
Estado, Estado nacional ou, melhor ainda, supranacional, isto é, europeu (etapa na
direção de um Estado mundial), capaz de controlar e de impor eficazmente os lucros
realizados nos mercados financeiros e, sobretudo, de combater a ação destrutiva que
estes últimos exercem sobre o mercado de trabalho, organizando, com a ajuda dos
sindicatos, a elaboração e a defesa do interesse público que, queira-se ou não, jamais
sairá, mesmo ao custo de algum erro de escrita matemática, da visão de contador (em
outro temos, diríamos de lojista) que a nova crença apresenta como a forma suprema da
realização humana.

*Pierre Bourdieu (1930-2002), +lósofo e sociólogo, foi professor na École de


Sociologie du Collège de France

Tradução: Daniel Souza Pavan

Notas

[i] NDLR: em referência a Auguste Walras (1800-1866), economista francês, autor de De


la nature de la richesse et de l’origine de la valeur (1848); ele foi um dos primeiros a tentar
aplicar a matemática ao estudo econômico

[ii] Erving Go!man, Asiles. Etudes sur la condition sociale des malades mentaux, Editions de
Minuit, Paris, 1968.

[iii] Podemos nos remeter, sobre tudo isso, aos dois números da Actes de la recherche em
sciences sociales consagrados às “Nouvelles formes de domination dans le travail” (1 e 2),
nº114, setembro de 1996 e nº115, dezembro de 1996, e, especialmente à introdução de
Gabrielle Balazas e Michel Pialoux, “Crise du travail et crise du politique”, nº114, p.3-4.

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