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BRASILIANA Anno XXVI, n.

112,2006

ORNA LEVIN, O teatro para ler e ver

CARLOS EDUARDO SCHMIDT CAPELA, A posse e o sangue

VERA LINS, Una revista intertextual e intercultural, A Atheneida

VERONICA STIGGER, "Não te esqueças nunca que eu venho dos trópicos. "
Mito e nação em Maria Martins

EDUARDO STERZI, Murilo carioca. Espaço, metamorfose, catdstrofi, poesia

MARIA BETÂNIA A,\1bROSO, Configurações da nacionalidade na leitura


de uma poesia estrangeira. Murilo Mendes e a crítica italiana

EGUIMAR SIM6ES VOGADO, O olhar além da paisagem. Transcendência,


mito e realidade no Romance da pedra do reino de Ariano Suassuna
'-'
MARIA ISABELAEDOM PIRES, Ecos do Norte. A representação do espaço
amazônico na literatura de Milton Hatoum
EDUARDOSTERZI

MURILO CARIOCA
ESPAÇO, METAMORFOSE, CATÁSTROFE, POESIA~'

A cidade grande, representada principalmente pelo Rio de


Janeiro, aparece para Murilo Mendes como o espaço meta-
rnórfico por excelência, não apenas palco de transformações,
mas ela mesma objeto de contínuas e febricitantes mudanças.
Podemos imaginar a funda impressão que causou, ao garoto
egresso da interiorana Juiz de Fora, o desvario da metrópole à
beira-mar, então capital, de fato e por direito, política e
cultural, dos Estados Unidos do Brasil. Grosso modo, o solo
onde Murilo nascera negava-lhe a modalidade de experiência
de que, desde o arrebatamento proporcionado pelo Halley na
infância', ele andava à procura; não obstante, a escassez de

1, O texto que aqui se apresenta é parte de um estudo mais amplo,


intitulado Figuras do sublime: a retórica da catástrofe em Murilo Mendes. Para esta
pesquisa, contei com uma bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq).
1 Murilo Mendes atribui à visão do cometa, quando contava nove anos, o
seu despertar para a arte poética: "Nunca vi coisa mais bela do que aquele corpo
luminoso, com a sua enorme cauda resplandecente de estrelas, passeando pelo
céu de minha cidade natal. Durante as três noites em que apareceu não dormi um
minuto sequer e talvez tenha sido esse o primeiro instante em que me senti
tocado pela Poesia." Em entrevista a Homero Senna, "Lição de poesia," em
Homero Senna, República de letras (Rio de Janeiro: São José, 1968), p. 252. Em
suas memórias da infância, A idade do serrote, Murilo anota sucintamente:
"Passagem do cometa Halley. A subversão da vista. A primeira idéia do cosmo."

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sublime - pois que disso se tratava - atiçava-lhe, a modo de Aqui toquei imediato
compensação, o engenho transfi~urador, tão 'pr~Frio de sua Ou por tangência & contaminação
maneira de ver o mundo e decalcá-lo em poesia: Escapando- Múltiplas coisas grandes
Visíveis invisíveis."
nos o mar, oprimindo-nos a montanha relativa, a gente se vinga
com um desafio maior ao cotidiano; a cidade, pequena, ao
A oposição entre Juiz de Fora, locus imaginário residual, e
mesmo tempo que nos circunscreve, propõe-nos um treino
o Rio de Janeiro, predominante, marca sobretudo a antítese
mais intenso dos sentidos e da imaginação. "2 O impulso
entre o arcaico e o moderno, embora a então capital da
constante para a evasão do plano contingente, que perseverou
Guanabara, se comparada com as metrópoles européias ou
pelos anos a fio, foi moldado e exercita~o: .como ~e po?e
norte-americanas, ainda fosse um tanto provinciana; e Murilo,
verificar em A idade do serrote, no terntono da infância,
de fato, talvez tenha sido, entre os poetas brasileiros, aquele que
reduto natural do maravilhamento. Se a imagem de Juiz de
melhor captou a convergência tão carioca de hábitos rema-
Fora persistiu nos primeiros livros, foi mormente como
nescentes do passado rural e costumes peculiares à vida urbana.
reminiscência do lugar do assombro inaugural e de suas
Num poema como "Família russa no Brasil," pode-se ver como
reverberações, arrancados mais a golpes de fantasia do que
Murilo compreendeu que, no Rio de Janeiro, condensando, de
obtidos espontaneamente:
resto, o que ocorreu, ainda que com menor encanto, em quase
De noite eu ia no fundo do quintal todas as capitais brasileiras, a desagregação gradual das malhas
pra ver se aparecia um gigante c<:mtrezentos anos sociais não anulou de pronto as relações interpessoais
que ia me levar dentro dum surrao, distingui das por uma exuberante e agressiva intimidade,
mas não acreditava nada.' inédita, desde sempre e até hoje, em outras paisagens:

O Rio de Janeiro, porém, oferecer-lhe-ia a imediatez na O Soviete deu nisto,


"espantação de viver.?" É o que ele relembra no "Grafite n~ seu Naum largou de Odessa numa chispada,
Pão de Açúcar," escrito em 1964, durante um breve retorno a abriu vendinha em Botafogo,
logo no bairro chique.
cidade em que o agora cidadão romano passara a juventude:
Veio com a mulher e duas filhas,
uma delas é boa posta de carne,
a outra é garotinha mas já promete.
Murilo Mendes Poesia completa e prosa, organização, preparação do texto e No fim de um ano seu Naum progrediu,
notas de Luciana Stegagno Picchio (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994), p. 897. já sabe que tem Rui Barbosa, Mangue, Lampião.
Assim começou sua vita nova: "Levo uma vida secreta, começo a rotura com o
Joga no bicho todo o dia, está ajuntando pro carnaval,
mundo, sou tocado todos os dias pela visão do cometa Halley" (ibidem, p. 972).
2 Murilo Mendes, A idade do serrote, cit., p. 937.
depois do almoço anda às turras com a mulher.
J Murilo Mendes, "O menino sem passado", Poemas em Poesia completa e
prosa, cit., p. 88. .'
As filhas dele instalaram-se na vida nacional.
4 Murilo Mendes, Espaço espanhol em Poesza completa e prosa, czt., p, Sabem dançar o maxixe
1183. conversam com os sargentos em tom brasileiro.

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Chega de tarde a aguardante acabou, audição: Murilo está atento ao convidativo olor da menina
os fregueses somem, seu Naum cai na moleza. recém-saída do banho e às notas do piano).
Nos sábados todo janota ele vai pro criouléu. Como bem notou Mário de Andrade, Murilo, embora
Seu Naum inda é capaz de chegar a senador," nascido em Minas Gerais, exibe um carioquismo
irredutível.:" Resplende, no autor de Poemas, a "naturalida-
o testemunho vazado aqui em tom jocoso tinge-se de uma de," a "coragem ignorante de si," típica do "gavroche cario-
implacável melancolia em "Perspectiva da sala de jantar," ca.:" Deve-se ler os apontamentos de Mário, por assim dizer,
também produzido em fins dos anos 20: pelo avesso. É lícito perguntar se a mímese do modo de ser
carioca não é, em Murilo, um procedimento irônico, a
A filha do modesto funcionário público
dá um bruto interesse à natureza morta escavação necessária, no centro do terreno circundante, de
da sala pobre no subúrbio. uma trincheira a partir da qual o poeta exerce sua crítica do
O vestido amarelo de organdi existente. O ambíguo "Noite carioca" induz-nos a apostar
distribui cheiros apetitosos de carne morena nessa conjetura:
saindo do banho com sabonete barato.
Noite da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro
O ambiente parado esperava mesmo aquela vibração: tão gostosa
papel ordinário representando florestas com tigres, que os estadistas europeus lamentam ter conhecido tão
uma Ceia onde os personagens não comem nada, tarde.
a mesa com a toalha furada Casais grudados nos portões de jasmineiros ...
a folhinha que a dona da casa segue o conselho A baía de Guanabara, diferente das outras baías, é
e o piano que eles não têm sala de visitas. camarada,
recebe na sala de visita todos os navios do mundo
A menina olha longamente pro corpo dela e não fecha a cara.
como se ele hoje estivesse diferente, Tudo perde o equilíbrio nesta noite,
depois senta-se ao piano comprado a prestações as estrelas não são mais constelações célebres,
e o cachorro malandro do vizinho são lamparinas com ares domingueiros,
toma nota dos sons com atenção.' as sonatas de Beethoven realejadas nos pianos dos
bairros distintos
o próprio poeta figura-se como íntimo dos seus personagens, não são mais obras importantes do gênio imortal,
seja ao imitar cacoetes da fala popular ou ao demarcar a são valsas arrebentadas ...
tremenda proximidade de seu ponto de vista (e de olfato e

, Murilo Mendes, "Grafite no Pão de Açúcar," Convergência em Poesia 8 Mário de Andrade, "Murilo Mendes" em Mário de Andrade, Táxi e
completa e prosa, cito pp. 633-34. Crônicas no Diário Nacional (São Paulo: Duas Cidades, 1976), p. 294.
6 Murilo Mendes, "família russa no Brasil," Poemas, cit., p. 91. , Mário de Andrade, "A poesia em 1930" em Mário de Andrade, Aspectos
7 Murilo Mendes, "Perspectiva da sala de jantar," Poemas, cit., pp. 92-3. da literatura brasileira (São Paulo: Martins, 1974), p. 43.

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Perfume vira cheiro, muito, produzindo essa mudança de ângulo psico-
as mulatas de brutas ancas dançam nos criouléus lógico. Além disso temos nós no Rio atual margem para
suarentos. a contemplação gratuita?"

o Pão de Açúcar é um cão fila todo especial Nesse momento, o poeta sente estiolar-se, por exaustão, o
que nunca se lembra de latir pros inimigos que impulso metamorfoseante que, para ele, sempre fora o motor
transpõem a barra essencial da sociedade contemporânea. Percebe que o esforço
e às 10 horas apaga os olhos pra dormir."
para ser absolutamente moderno, apregoado por Rimbaud, ao
ganhar as ruas, resultou numa espécie de entropia, numa -
É a ruptura do equilíbrio, até então conservado, entre a
talvez provisória - morte da experiência e do sentido. Perder
sociabilidade familiar e a integração à modernidade que
a "margem para a contemplação gratuita" parece significar,
Murilo lamenta, com eloqüência, numa das crônicas de
para Murilo, perder a possibilidade de desvelar o sublime
recordação de Ismael Nery, escrita em 1948. Evoca com
aderente ao cotidiano (a "sensação de vida aumentada"
nostalgia o Rio de sua juventude, deplorando a degradação da
presumia o pleno descortinar-se da "vastidão das massas
paisagem primitiva da cidade, na qual, supostamente, se
naturais"). Se seus concidadãos mercadejam até com a
preservava a harmonia entre natureza e ocupação humana:
paisagem, aviltando-a como aviltam a si mesmos, que resta ao
o Rio de entre 1920 e 1930 era uma cidade deliciosa, poeta de gracioso? Alguma coisa, nesse constrangido teatro de
pacata, de um ritmo de vida manso, quase provinciano. fantoches (a referência ao aperto nos ônibus, esboçada de viés,
Começavam a surgir ainda tímidas as primeiras casas não deve ser passada por alto), ainda servirá de substância à
de apartamentos. Viajava-se comodamente de Ipanema poesia?
à Praça Mauá em ônibus às vezes metade vazios. Vejamos como o próprio Murilo veio a aperceber-se do
Copacabana não era o grotesco empório de exibicio- impasse. Em texto de 1951, ele extremou sua queixa, ao
nismo de hoje, cumpria dignamente sua missão de
escrever que o Rio de Janeiro tornara-se uma "cidade trágica,
pórtico do mar. A cidade estirava-se voluptuosamente
ao sol, com a linha da baía ainda não prejudicada pelos arena de encontro entre a nova técnica e a natureza bárbara,
últimos aterros e pelo acúmulo de arranha-céus. A testemunho do desajustamento cultural, espiritual e político do
vastidão das massas naturais quase virgens sugeria a homem brasileiro."12 O adjetivo anexado a "cidade" fala-nos
sensação da vida aumentada, de um aprofundamento do interesse que a situação descrita tem para sua poesia. A
no tempo e no espaço, de uma grandeza superlativa. cidade é "trágica" porque nela se encena o conflito entre duas
Não há dúvida que a enseada de Botafogo, o Pão de forças brutais, um conflito do qual ela mesma há de sair ferida,
Açúcar e os outros morros continuam no mesmo lugar;
mudaria a cidade ou mudei eu? Mas, além da já
mencionada invasão dos arranha-céus, é certo que o
ambiente e o estilo de vida da cidade se transformaram 11 Murilo Mendes, Recordações de Ismael Nery (São Paulo: Edusp e
Giordano, 1996), p. 69.
12 Murilo Mendes, "Livio Abramo," Letras e artes (Rio de Janeiro, 29 abro
1951), apud Laís Corrêa de Araújo, Murzlo Mendes (Petrópolis: Vozes, 1972) p.
10 Murilo Mendes, "Noite carioca," Poemas, cit., p. 96. 171.

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para não falar dos coadjuvantes e espectadores, seus Praia de Botafogo,
habitantes, entre os quais se encontra o poeta. O Rio de acácias e colunas dóricas falsificadas.
Janeiro é a "capital burguesa da angústia e da injustiça social" O meu namoro no ponto mais complicado da praia
é um pretexto para vir no jornal,
- e os termos usados são loquazes quanto ao aspecto político
seção de atropelamentos.
da tragicidade salientada e às possibilidades de rendimento Minha namorada já até parece mãe,
literário (a "angústia" é o paradoxal salvo-conduto para o os seios dela estão crescendo dia a dia,
sublime moderno). Murilo sustenta que compete aos artistas que ancas largas batem no meu nariz ...
recriarem, em suas obras, a paisagem carioca, sem recair na Hoje fui no ônibus com ela pregado na combinação
falsidade comercial da "cidade maravilhosa," não fechando os cor-de-rosa,
olhos para o "sepultamento da baía e sua transformação em adivinhando a carne morena
que dia a dia vai mudando de tom.
pista de automóveis" e a "camuflagem .dos morros pelos
Ai quando virá o espírito da destruição
arranha-céus de monstruoso mau gosto."n E o que ele faz, por acabar com a minha memória
exemplo, no poema "Botafogo," de Os quatro elementos, e corromper para sempre
ainda com certa placidez que se arrisca à cumplicidade: o corpo enxuto da filha do quitandeiro
surgindo, milagre moreno, dentre cenouras e couves.
Desfilam algas sereias peixes e galeras
E legiões de homens desde a pré-história Ó saxofones do último dia
Diante do Pão de Açúcar impassível. soprando a música do aniquilamento."
Um aeroplano bica a pedra amorosamente
A filha do português debruçou-se à janela Em "O filho do século," de O visionário, Murilo pranteia
Os anúncios luminosos lêem seu busto não a perda da natureza ou de valores transcendentes -
A enseada encerrou-se num arranha-céu." afinal, esses são representados apenas por uma medalhinha da
Virgem que é jogada ao fogo -, mas a dissolução de uma série
"Idílio unilateral," marcado pela visão hiperbólica e pela de pequenas coisas tornadas peremptas pela realidade
suspeiçâo universal características de sua leitura do mundo, e industrial - as conversas ao portão, as "tardes preguiçosas,"
reincidente no motivo da mulher-natureza freqüentíssimo em os "cheiros do mundo."16 Mas se trata realmente de uma
sua obra, transfigura a degradação da paisagem natural e queda: "Cairei no chão do século vinte." A legitimidade da
humana carioca em imagens um tanto estranhas. Um homem luta contra o estados de coisas hostil ao homem - já presente
deduz a gravidez da namorada a partir das alterações em seu na invocação aos "saxofones do último dia," no poema
corpo; paralelamente, a paisagem parece-lhe grávida de terror. anterior - é posta em dúvida por depender de práticas anti-
O juízo final germina no corpo da mulher e, curiosamente, ' humanas: "vôos destruidores," "gases venenosos," "fuzila-
desejado com ardor pelo poeta: mentos." Mas o poeta não ignora que

lJ Ibidem, p. 172. 1> Murilo Mendes, "Idílio unilateral," Poemas, cit., p. 100.
14 Murilo Mendes, "Botafogo," Os quatro elementos em Poesia completa e 16 Murilo Mendes, "O filho do século," O visionário em Poesia completa e
prosa, cit., p. 280. prosa, cit., pp. 239-40.

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Os vivos pedem vingança. A vida asfixiou meus cantos de inocência,
Os mortos minerais vegetais pedem vingança." sou da noite, da assombração
e dos ritmos desesperados.
Guardadas as devidas proporções de profundidade e Tardes calmas, vida lânguida nas varandas cariocas
alcance entre a modernidade parisiense e a modernidade olhando o mar, nunca mais.
carioca, podemos rememorar aquela, a um só tempo, luminosa Nunca mais vibrarão cantos de noivas nos meus
terraços,
e sombria constatação de Walter Benjamin de que
nem vestidos suspensos lembrarão a forma da coisa
"começamos a reconhecer, antes mesmo que eles caiam, que os amada,
monumentos da burguesia são ruínas.?" Para todas as nem eu dançarei.
civilizações, desde que o homem despontou sobre a face do Nem olharei pras rosas nem me banharei na luz das
planeta abandonando seu passado animal, chegou ou ainda madrugadas.
chegará o dia em que tudo se reduz a pilhas de pedras e Sou a luta entre um homem acabado
carcomidos esqueletos de velhos prédios. A singularidade da e um outro homem que está andando no ar,"
civilização burguesa está no fato de que transformou a ruína
em regra, destituindo-a de seu caráter de providente ponto Que Murilo, sendo da noite, da assombração, represente a
final, aplicado por um inclemente deus terribilis, ao aranzel densidade ofegante da história com imagens paradoxais de
trovejante da história. "Que tudo 'continue assim,' isto é a excessiva luminosidade, e não de trevas, é algo que depõe favo-
catástrofe," assevera Benjamin. "Ela não é o sempre iminente, ravelmente acerca de sua argúcia poética. Intitula-se "Quatro
mas sim o sempre dado."19 horas da tarde" o seguinte poema de A poesia em pânico:
Murilo, tão ciente dessa verdade quanto Benjamin,
Não vejo ninguém vivo nesta cidade enorme:
recusou-se a render culto às monumentais ruínas da burguesia Daqui a cinqüenta anos estarão todos no cemitério.
(nem por isso sua postura política e ética foi, a rigor, destituída Vejo somente a água, a pedra fixa
de ambigüidade). Restringiu-se a contemplar os fantasmas que Que me transportam ao princípio do tempo.
se libertavam dos despojos e evolavam-se no ar irrespirável de
seu tempo. Nessas emanações, admirava a refração do próprio Quem são estes fantasmas que se movem nas ruas
Agitando bandeiras, levantando os braços, tocando
destino:
tambores?
[...]

Procuro a amiga tão bela e necessária.


Se não está comigo, em mim, é porque não existe.
17 Ibidem, p. 240. O minha amiga, surge em corpo, senão acreditarei
18 Walter Benjamin, "Paris, capital do século XIX," trad. Maria Cecilia Que também eu próprio não existo."
Londres, em Luiz Costa Lima (org.), Teoria da literatura em suas fontes (Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1975), p. 315.
19 Walter Benjamin, "Parque central," trad. José Carlos Martins Barbosa, 20 Murilo Mendes, "A luta," Poemas, cit., p. 105.
em Walter Benjamin, Cbarles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo (São 21 Murilo Mendes, "Quatro horas da tarde," A poesia em pânico em Poesia
Paulo: Brasiliense, 1989), p. 174. completa e prosa, cit., p. 300.

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Quem pode ser a "amiga tão bela e necessária" senão a própria Uma leitura deste poema que se pretenda eficaz deverá,
poesia? Afinal, é ela a última garantia da consistência do de início, perceber que "anjos" e "fantasmas," "cidades claras"
homem-poeta que, horrorizado, assiste à transfiguração de e "cidades mortas," mais do que constituírem pares antitéticos,
seus contemporâneos em espectros. Só o espessamento da formam unidades ambivalentes. Sobretudo, deverá soldar
linguagem permite-lhe, por um lado, opor-se ao adensamento significado literal e significado figurativo: a fome, aqui, é e não
da história, sua engessadura num eterno presente e, por outro, é necessidade de alimento (quiçá refira-se à fome de liberdade
recusar-se à evaporação fantasmal. ou outro nutriente do espírito); o lançamento ao mar dos
Em "O visionário," de As metamorfoses, a figuração "sacos de trigo" conjura cenas como as da queima de café no
fantasmagórica e solar da catástrofe histórica atinge sua forma porto de Santos, ao fim da década de 20, em decorrência da
mais sutil e bem-acabada: queda do preço do produto no mercado internacional, mas
também - e o "trigo," matéria-prima do pão, é especialmente
À meia-noite convoquei fantasmas, adequado por seus ecos bíblicos - encerra conotações menos
Corri igrejas de cidades mortas, materialistas; o "microfone," mediante o qual os fantasmas
Esperei a dama de veludo negro,
"soltavam pragas," é o instrumento empunhado por Hitler e
Esperei a sonâmbula da visão da ópera:
por Vargas, não menos (ou mais) do que o símbolo de nossa
Na manhã aberta é que vi os fantasmas incomunicação diária, de nossa falta de comunhão, mal
Arrastando espadas nos lajedos frios: camuflada sob as vestes lantejouladas dos mass media. No
Ao microfone eles soltavam pragas. poema seguinte de As metamorfoses, "Começo de biografia,"
Vi o carrasco do faminto, do órfão, Murilo sumaria esse cruzamento de figuração e literalidade em
termos não de todo alheios à retórica de "O visionário":
Deslizando, soberbo, na carruagem.
O que renegou a Deus na maldição, Eu sou o pássaro diurno e noturno,
Vi o espírito mau solto nas ruas, O pássaro misto de carne e lenda"
Cortando os ares com seu gládio em sangue.

Vi o recém-nascido asfixiado Em "Começo de biografia," o poeta converte-se no


Por seus irmãos, à luz crua do sol. pássaro cuja missão é fornecer aos homens "o alimento da
Vi atirarem ao mar sacos de trigo catástrofe e o ritmo puro." É o que faz em "O visionário" e, de
E no cais um homem morrer de inanição. resto, em seus melhores poemas: abastecer as despensas
imaginativas dos habitantes das "cidades mortas" com
À luz do dia foi que eu vi fantasmas, estampas da catástrofe, concitando-os a reconhecerem nelas
Nas vastas praças do país do amor,
sua própria condição ruinosa ou fantasmática e a agirem de
E também anjos no meio-dia intenso,
Que me consolam da visão do mal." modo a repará-Ia. Esta parece ser, de fato, a meta da poesia

22 Murilo Mendes, "O visionário," As metamorfoses em Poesia completa e


prosa, cit., p. 326. 2J Murilo Mendes, "Começo de biografia," As metamorfoses, cit., p. 327.

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sublime (isto é, de uma poesia de força contra forma) em penumbras da deslembrança? ("Uma casa assombrada," com
Murilo Mendes, mobilizar a compaixão ou simpatia do leitor efeito, traduz-se em alemão por "ein unheimlich Haus,"? e é
(que é também, especularmente, personagem da obra); e, sob o regime do unheimlich - daquela estranheza-na-
talvez para despistar os críticos, Murilo substituiu, no verso familiaridade tão bem descrita por Freud - que, como tantas
inicial da terceira estrofe, a "manhã sublime" da primeira vezes em Murilo, novamente nos encontramos.)
edição por uma débil - embora, por certo, bem mais Arriscando-nos ao reducionismo sócio-histórico, podemos
luminosa - "manhã aberta. "24 inferir que os objetos do recalque são, fundamentalmente, os
Não é fácil perceber os nexos que há entre esse modo traços mais violentos do processo de modernização da
fantasmagórico de representação da cidade do Rio de Janeiro, sociedade brasileira, os quais ganham expressão eloqüente na
em que os índices mais evidentes da paisagem são reforma urbana do Rio de Janeiro, registrada pela crônica
deliberadamente apagados ou adulterados, e aquela visão jornalística com o sugestivo apodo de "Regeneração," cognome
ainda bastante serena de poemas como "Família russa no em que se misturam laivos de evolucionismo biológico e de
Brasil," "Perspectiva da sala de jantar" ou até mesmo "Noite exortação positivista ao progresso ordenado, ou seja, o sumo do
carioca." Contudo, eles existem, e parecem ser, à primeira pensamento da elite finissecular transbordando para o século
vista, respingos isolados de nostalgia derramados pelo poeta XX A população atingida preferiu falar em "bota-abaixo."
saudoso daquela "cidade deliciosa, pacata, de um ritmo de Uma breve rememoração histórica faz-se necessária. Em
vida manso, quase provinciano," a qual, em fins dos anos 40, 1904, o presidente Rodrigues Alves nomeou uma comissão de
ele situaria no Rio das décadas de 20 e 30. Em "O visionário," três técnicos para realizar a reforma do Rio: o engenheiro
são sobretudo os sintagmas gêmeos, pontuados por uma Lauro Müller ficou responsável pela reconstrução do porto, o
correta ironia, "país do sol" e "país do amor" (exatamente os médico Oswaldo Cruz pelo saneamento e o engenheiro Pereira
indicadores semânticos que nos levam a crer que a "cidade Passos pela reurbanização da cidade." A Oswaldo Cruz e
maravilhosa" seja o protótipo das "cidades claras"). Pereira Passos, que tratavam diretamente com a população,
No entanto, como podemos identificar nostalgia nesse foram concedidos poderes ilimitados: por decreto, tornaram-se
poema se ele foi escrito em 1938, ou seja, precisamente no imunes a ações judiciais. Desse modo, podiam investir sem
período em que, segundo o Murilo de 1948, o Rio de Janeiro receio contra os casarões do centro carioca, onde morava a
ainda vivia os seus dias de sossego? A sua cronologia, maioria da população pobre da cidade. Essas pessoas eram
estabelecida a posteriori, estaria equivocada? Seria efeito de
uma reordenação ulterior da matéria da memória? Se esta
suposição é correta, o que estaria sendo esquecido - ou, dito " Sigmund Freud, "O 'estranhc'" em Histeria de uma neurose infantil e
outros trad. Eudoro Augusto Macieira de Souza (Rio de Janeiro:
trabalhos,
com maior rigor, recalcado - na representação nostálgica? E o Imago, 1988), p. 258.
que a representação fantasmagórica deixaria emergir das 26 Cf. Nicolau Sevcenko, "O prelúdio republicano, astúcias da ordem e
ilusões do progresso," em Historia da vida privada no Brasil, Nicolau Sevcenko
(org.), 4 vol. (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), vol. 3, pp. 22-7; Paulo
César Garcez Marins, "Habitação e vizinhança: limites da privacidade no
surgimento das metrópoles brasileiras" em História da vida privada no Brasil, vol.
24 Murilo Mendes, "Notas e variantes," As metamorfoses, cit., p. 659. 3, cit., pp. 141-59.

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desalojadas sem que lhes fosse paga qualquer indenização. exército e, posteriormente, da marinha. E tropas auxiliares de
Sem outra alternativa, as famílias juntaram seus poucos Minas Gerais e São Paulo. Só dez dias depois de concentradas
pertences e rum aram para os morros. Construíram barracos todas essas forças a insurreição foi extinta. A partir de então,
com os restos de madeira dos caixotes abandonados no porto qualquer pessoa encontrada no centro da cidade que não
e com os restos dos prédios demolidos. Os telhados eram conseguisse comprovar emprego e residência fixa era presa e
improvisados com folhas-de-flandres de latas de querosene. conduzida para a Ilha das Cobras, onde a espancavam.
Surgiram assim as primeiras favelas. (Aliás, tal denominação Seguia-se a deportação para a Amazônia e o abandono sem
aparecera poucos anos antes, em outro episódio traumático da nenhum auxílio em meio à paisagem totalmente desconhecida
constituição da modernidade brasileira. Em 1897, as tropas e inóspita.
que voltavam de Canudos, sem ter para onde ir, ergueram Pereira Passos, responsável pelas obras no Rio de Janeiro,
acampamento no Morro da Providência, onde, desde 1893, já acompanhara a reforma de Paris pelo Barão de Haussmann,
haviam se instalado os moradores do célebre cortiço Cabeça durante o U Império de Napoleão Ifl (1853-1870). De fato, a
de Porco, demolido pelo prefeito Barata Ribeiro numa razia pretensão da elite carioca era levantar no centro do Rio uma
prenunciadora dos métodos e conseqüências da "Regene- petite Paris tropical. Ainda em 1904, foi inaugurada a avenida
ração," ou "bota-abaixo." No morro, os soldados miseráveis Central, atualmente avenida Rio Branco. Nela, resplandeciam
encontraram plantas com favas, semelhantes àquelas com que as fachadas art nouveau, o mármore e o cristal, a iluminação
toparam nas proximidades do arraial de Antônio Conselheiro.) elétrica - novidade na época - com lampiões finamente
Alguns habitantes do centro, que não se encaminharam esculturados, as lojas de produtos estrangeiros. Toda uma nova
para as favelas, dirigiram-se para cortiços e hotéis baratos. dramaturgia social assomou para ocupar o palco recém-
Dormiam em esteiras no chão, com muito contato corporal e edificado:
pouca higiene, o que era uma ameaça à saúde pública. Sem
demora, a administração sanitária voltou-se contra eles. As revistas mundanas e os colunistas sociais da grande
Grupos de visitadores, com o apoio da polícia, verificavam as imprensa incitavam a população afluente para o desfile
condições dos locais. Constatado algum risco de contami- de modas na grande passarela da Avenida, os rapazes
nação, demoliam o prédio. O caráter devastador e sistemático no rigor smart dos trajes ingleses, as damas exibindo as
últimas extravagâncias dos tecidos, cortes e chapéus
de tais incursões, e não uma obstinada recusa em serem franceses. A atmosfera cosmopolita que desceu sobre a
vacinados (como fez acreditar a historiografia oficial), foi o que cidade renovada era tal que, às vésperas da Primeira
empurrou os cariocas à sublevação que ficou conhecida como Guerra Mundial, as pessoas ao se cruzarem no grande
"Revolta da Vacina." As pessoas dirigiram-se para o centro, bulevar não se cumprimentavam mais à brasileira, mas
transformaram em armas os materiais utilizados na reforma e repetiam uns aos outros: "Vive Ia France!" Como
entraram em conflito com a polícia. Aos olhos da burguesia, o corolário, as pessoas que não pudessem se trajar
episódio tomou a feição de um segundo Canudos. Como a decentemente, o que implicava, para os homens,
calçados, meias, calças, camisa, colarinho, casaco e
polícia não conseguiu sufocar a rebelião, o governo convocou
chapéu, tinham seu acesso proibido ao centro da
a Guarda Nacional. Mesmo os bombeiros entraram em cidade. Mais que isso, nas imediações, as tradicionais
combate contra a população. Foram chamadas tropas do festas e hábitos populares, congregando gentes dos

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arrabaldes, foram reprimidos e mesmo o Carnaval Paulo e Minas Gerais no governo federal. O Estado Novo,
tolerado não seria mais o do entrudo, dos blocos, das
implantado por Getúlio Vargas em 1937, representa a
máscaras e dos sambas populares, mas os dos corsos de
carros abertos, das batalhas de flores e dos pierrôs e consolidação, ditada por uma lógica límpida ainda que
colombinas bem-comportados, típicos do Carnaval de bastante conturbada, do processo modernizador iniciado com
Veneza, tal como era imitado em Paris." o advento da República - processo de que Canudos e a
"Regeneração" foram acontecimentos cruciais. Vargas foi um
Esta farsa doentia - a Bel1e Époque brasileira -, encena- líder "moderno" na medida justa de suas contradições:
da a custo de uma forte opressão social, não durou muito conjugou a promoção de melhoras inegáveis nas condições de
tempo. Consistiu de um período de prosperidade econômica, vida dos trabalhadores e uma férrea repressão aos comunistas;
que abrangeu os anos da I Guerra Mundial, quando as explorou, de maneira pioneira, as potencialidades promissoras
exportações para a conflagrada Europa aumentaram e novas do rádio e do cinema para a propaganda política e, não
indústrias foram criadas para substituir o que se importava dos obstante, seu discurso e sua prática eleitoral permaneceram
países em luta." No entanto, esse período anômalo comportou- resolutamente arcaicos; referendou a censura aos artistas e à
se como um raio sobre a casa da história; seu estrondo seria imprensa ao assimilar os "rebeldes" nacional-modernistas (os
ouvido pelas décadas posteriores, e o é até hoje. Entre 1900 e gigantescos espetáculos orfeônicos, realizados sob a regência
1920, no rastro da publicidade e do desenvolvimento dos meios de Villa-Lobos, são o exemplo mais ruidoso da cooptação dos
de comunicação e entretenimento, o consumo ampliou-se no rapazes de 1922).
país. Entre 1920 e 1930, assiste-se à derrocada desse estado de Caracterizar a atitude de Murilo Mendes frente ao Estado
coisas. O preço do café, principal produto de exportação Novo como ambígua ou vacilante já seria desculpar-lhe a
brasileiro, despenca. Sucedem-se o movimento dos tenentes, a fraqueza da convicção libertária. Outrossim, acusá-lo de co-
insurreição das elites de estados alijados do poder central, as vardia ou subserviência é baratear a complexidade da situação
reivindicações de operários. O cosmopolitismo essencialmente - complexidade determinada, em grande parte, pelos aspectos
francófilo é contestado por um nacionalismo mais ou menos "modernos" da administração de Vargas. A suíte burlesca
exacerbado (no plano cultural, a Semana de Arte Moderna de "1930," seqüência de poemas de História do Brasil, apresenta
1922 catalisa essa mudança de perspectiva). Elucidam-se, à luz uma visão derrisória da revolução que conduziu o caudilho
desse nacionalismo, os versos de "Noite carioca": "O Pão de trabalhista ao poder. É a única referência direta a tais fatos
Açúcar é um cão fila todo especial / que nunca se lembra de encontrada na poesia de Murilo. Leia-se, por exemplo, aquele
latir pros inimigos que transpõem a barra." A Revolução de quase haicai publicado sob o subtítulo de "Festa familiar":
1930 põe fim à política "café-com-leite," a alternância de São
Em outubro de 1930
Nós fizemos - que animação! -
Um pic-nic com carabinas."

27 Sevcenko, "O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do


progresso," cit., pp. 26-7.
29 Murilo Mendes, "1930," História do Brasil em Poesia completa e prosa,
28 Cf. ibidem, pp. 35-7.
cit., p. 189.

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Nada resta dessa ironia na saudação, recolhida Quando o governo encarregou Portinari de decorar
posteriormente às paginas da Revista Acadêmica, que Murilo algumas salas do edifício do Ministério da Educação e
Mendes dirigiu a Vargas quando este visitou uma exposição de Saúde, sentimos que qualquer coisa estava mudada
neste país. E, de fato, está. Observa-se, por toda a
Cândido Portinari:
parte, embora obscuramente, a necessidade de entrosar
o Brasil no ritmo das realizações modernas. O governo
Sr. Presidente Getúlio Vargas
está consciente disto. A presença de V. Ex. neste
A arte possui, entre outras, uma rnissao educativa e
civilizadora: a de elevar o nível da cultura, recinto é a melhor prova de que o governo vê e ouve.
Os artistas brasileiros, por meu intermédio, agradecem
aproximando os homens entre si. O nosso tempo
a V. Ex. a sua preciosa colaboração no sentido do
voltou de novo a compreender esta alta verdade,
levantamento do nível de nossa consciência artística
abandonada pelas teorias individualistas dos últimos coletiva. 3D
séculos. Uma das ruinosas conseqüências dessa atitude
individualista foi a separação que se verificou entre o
artista e o mundo exterior, principalmente entre o Este é, sem dúvida, um dos documentos mais veementes
mundo social e político. Encerravam-se os artistas na acerca da constrangedora simbiose entre os artistas
sua vaidade, no seu orgulho e no seu exagerado modernistas e o governo autoritário de Vargas. O discurso foi
pessimismo. Ninguém os compreendia. publicado no início de 1940, e remonta a fins da década de 30
Hoje, felizmente, realiza-se um esforço de equilíbrio (o Estado Novo, não esqueçamos, começou em novembro de
entre a vida do artista, entre seu mundo interior - que
1937). Nesta época, no plano interno, acentuava-se a
lhe vem do princípio, com suas imagens, reflexões e
sensações - e o mundo natural, o social e o político. perseguição a intelectuais oposicionistas - Graciliano Ramos
ficou preso entre março de 1936 e janeiro de 1937 - e, no
plano externo, Getúlio flertava com regimes autoritários como
Sr. Presidente, o gesto do governo, pondo à disposição
o de Hitler, na Alemanha, ao qual entregaria Olga Benário,
de Portinari as salas da Escola Nacional de Belas Artes
para nelas realizar sua extraordinária mostra de mulher do líder comunista Luís Carlos Prestes, para ser
pintura, repercutiu de maneira mais simpática no meio executada. Murilo Mendes, embora tenha sofrido bem menos,
dos artistas brasileiros, principalmente entre aqueles não escapou ileso às arbitrariedades. Viu desencaminhar-se,
que há muito acompanham a carreira deste grande por obra da polícia getulista, uma pasta contendo
pintor. "Documentos Importantes" (segundo a inscrição no dorso),
Vemos nisto um sinal dos tempos. O chefe do Estado entre os quais se encontravam cartas de Alphonsus de
revela assim que está bastante atento a todas as
Guimaraens, Olavo Bilac, Alberto Oliveira e Coelho Neto,
manifestações da sensibilidade e da inteligência,
estimulando a aproximação entre os artistas e os escritores com quem o poeta se correspondera na juventude."
poderes públicos. [...J Outro não é, a nosso ver, o
pensamento do nosso esclarecido Ministro da
Educação, que tem procurado se cercar dos melhores )0 Murilo Mendes, Revista Acadêmica, n. 48, (fevereiro) 1940, apud Raúl
elementos da nossa inteligência, prestigiando-os por Antelo, "Murilo ainda Mendes," Travessia, vol. 3, n. 5 (dezembro) 1982: p. 106.
todas as maneiras ao seu alcance, e a quem se deve em Jl Cf. Renard Perez, "Murilo Mendes" em Escritores brasileiros
boa parte o êxito dessa exposição. contemporâneos. 2" série (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964), p. 245.

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Também, em fins dos anos 30, conforme conta Murilo Então o ditador do mundo
Miranda em bilhete a Mário de Andrade, um livro inédito de Mandou me prender no Pão de Açúcar:
Murilo Mendes teria sido apreendido, desaparecendo para Vêm esquadrilhas de aviões
sempre." Entretanto, sem acanhar-se, desde o início dos anos Bicar meu pobre fígado.
30, postulava junto a Drummond, chefe de gabinete de Vomito bílis em quantidade,
Gustavo Capanema na Secretaria do Interior e Justiça de Contemplo lá embaixo as filhas do mar
Vestidas de maiô, cantando sambas,
Minas Gerais e, depois, no Ministério da Educação e Saúde (a
Vejo madrugadas e tardes nascerem
alusão, no discurso, aos "melhores elementos da nossa - Pureza e simplicidade da vida! -
inteligência" tem Drummond na mira), uma indicação para Mas não posso pedir perdão."
um emprego no funcionalismo público. Murilo conquistou seu
cargo em 1936, quando foi nomeado inspetor de ensino o fígado lacerado assevera que a cicatriz social não fecha
secundário do Distrito Federal." jamais. Existem homens a quem foi negado mesmo o direito à
À luz de tais observações, poderíamos perguntar onde jaz "pureza e simplicidade da vida." Porém, o novíssimo
a "poesia liberdade." Seria fácil descartar-se do hermetismo da Prometeu não se mostra resignado. A impossibilidade de
poesia de Murilo como tática diversionista, como fuga de um "pedir perdão" pressagia a liberdade por vir.
embate direto com o real. Também não seria difícil condenar a
generalização dos ataques universalistas ou cosmopolitas de
Murilo ao "ditador do mundo" como desconversa frente à
ditadura que o afetava diretamente. Todavia, tais reproches
desconsiderariam o essencial, que são os poemas e a perspe-
ctiva que neles se imprime (ou, considerando a imanência de
toda expressão poética autêntica, talvez fosse melhor dizer: a
perspectiva que neles se estrutura, de dentro para fora, da
concentração na medula da linguagem para a pungência de
uma convicção, de uma proposição sobre o mundo dirigida ao
mundo).
Agrilhoado aos cimos do Pão de Açúcar, o "Novíssimo
Prometeu" (e Prometeu era "o primeiro mártir do calendário
filosófico" de Marx") contempla a do Ice vita do Rio de Janeiro
do mesmo ponto de vista dos favelados:

J2 Cf. Júlio Castafion Guimarães, Territórios/conjunções: poesia e prosa


críticas de Murilo Mendes (Rio de Janeiro: Imago, 1993), p. 18.
JJ Cf. ibidem,51.
H Karl Marx e Friedrich Engels, Sobre literatura e arte, trad. Albano Lima
(Lisboa: Estampa, 1974), p. 14.
" Murilo Mendes, "Novíssimo Prometeu," O visionário, cit., pp. 237-38.

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